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CAMILA MARGON MASSI

JULIO BENTIVOGLIO
LUCAS FIOREZI
ORGS.

PASSADOS
EM TRANSE
M E T A - H I S T Ó R I A
E O BRASIL 50 ANOS DEPOIS

EDITORA MILFONTES
PASSADOS
EM TRANSE
M E T A - H I S T Ó R I A
E O BRASIL 50 ANOS DEPOIS

APOIO:
Passados em Transe
Copyright © 2023, Julio Bentivoglio [et. al.].
Copyright © 2023, Editora Milfontes.
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Brasil

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Passados em Transe: Meta-história e o Brasil 50 anos depois


Evento realizado na Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória nos dias 26, 27 e 28
de junho de 2023. LETHIS - Laboratório de Estudos em Teoria da História e História da
Historiografia.
Camila Margon Massi
Julio Bentivoglio
Lucas Bispo Fiorezi
(organizadores)

Passados em Transe
Meta-História e o Brasil
50 anos depois

Editora Milfontes
Vitória, 2023
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida
ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico,
incluindo fotocópia e gravação digital) sem a permissão prévia da editora.

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Projeto Gráfico e Editoração


Lucas Bispo Fiorezi

Impressão e Acabamento
Maxi Gráfica e Editora

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


B651p BENTIVOGLIO, Julio; FIOREZI, Lucas B.; MASSI, Camila M,
Passados em transe: Meta-história e o Brasil 50 anos depois. / Camila M. Massi,
Julio Bentivoglio e Lucas B. Fiorezi.
Vitória: Editora Milfontes, 2023.
198 páginas p.: 23 cm.

ISBN: 978-65-5389-071-8

1. Teoria da História 2. Historiografia 3. Metodologia da História 4 Anais


I. Julio Bentivoglio II. Camila Massi III. Lucas Fiorezi

CDD 907
Sumário
Um sonho, se é que existiu (1771) de Louis-Sébastien Mercier �������������7
Anelise Dambroz Spinassé

O trauma presente na narrativa do Fogo de 1951: uma análise dos


jornais O momento e Imprensa Popular e da obra Barra Velha, o último
refúgio (1978) �������������������������������������������������������������������������������������������������� 13
Camila Margon Massi

A imaginação histórica moderna acerca da África Romana: o caso


de René Cagnat (1852-1937) �������������������������������������������������������������������� 33
Edjalma Nepomoceno Pina

Historiografias oitocentistas em análise: interpretações de Hayden


White sobre Burckhardt e Droysen �������������������������������������������������������� 43
Edmo Videira Neto

A construção da memória de si e reflexões sobre gênero em A


Verdade Nua, De Luz Del Fuego���������������������������������������������������������������� 59
Gabriela Loureiro Barcelos

Os “Entre-Lugares” na história intelectual das mulheres


iranianas��������������������������������������������������������������������������������������������������� 75
Júlia Carolina de Amorim Benfica

A melancolia como expressão da experiência moderna em Blissful


Agony de Amylton de Almeida (1972) ��������������������������������������������������� 87
Kelly Alves Andrade

A falsificação do conceito de materialismo histórico na obra A


Ideologia Alemã durante o período stalinista ���������������������������������������111
Luiza Santana Locatel Araujo
Tempo e temporalidades em Além do apenas moderno e O brasileiro
entre os outros hispanos, de Gilberto Freyre (1973 e 1975)��������������121
Messias Araujo Cardozo

Aventuras e desventuras na modernidade: uma análise de O Hobbit,


de J. R. R. Tolkien (1930-1937) ............................................................139
Roney Marcos Pavani

Desafíos y reflexiones en el escenario político peruano: un análisis


comparativo entre Gramsci y Benda ����������������������������������������������������163
Yasmani Esquivel Caballero

Terror à negritude, amor ao seu sangue: Diop e o Senegal na Primeira


Guerra Mundial ������������������������������������������������������������������������������������������163
Hiasmim da Silva do Espírito Santoo
História e imaginação social na utopia
iluminista de O Ano 2440
Um sonho, se é que existiu (1771) de Louis-Sébastien
Mercier
Anelise Dambroz Spinassé1

A pesquisa intitulada “História e Imaginação social na utopia


iluminista de O ano 2440: um sonho, se é que existiu (1771) de Louis-
Sébastien Mercier” surgiu no decorrer do primeiro ano de Iniciação
Científica, vinculada ao projeto “Distopias históricas: diálogos
entre história, literatura e teoria da história”. Com o objetivo de
analisar o problema da utopia na França no século XVIII a partir do
conceito de imaginação social, utiliza-se como fonte literária o livro
L’An 2440, Rêve s’il en fut jamais. Este trabalho é dividido, então,
nos seguintes momentos: a apresentação da fonte, os conceitos
operacionalizados, um breve panorama histórico do período e a
reflexão, a partir dos estudos desenvolvidos até então, sobre o papel
da literatura utópica como fonte histórica.
L’An 2440, Rêve s’il en fut jamais (1771) foi um livro best-
seller escrito pelo político, dramaturgo, escritor e jornalista Louis-
Sébastien Mercier, em que este narra o sonho de um homem francês
sobre Paris, setecentos anos no futuro, no ano de 2440. Acolhido
por um sábio filósofo que o guia por aquela cidade onde “parecem
reconhecer um soberano diferente de Luís XV”,2 o narrador descobre
1 Graduanda em História pela Universidade Federal do Espírito Santo,
pesquisadora de Iniciação Científica vinculada ao Laboratório de Estudos em
Teorias da História e História da Historiografia. (Lethis/Ufes).
2 Uma das primeiras declarações realizadas pelo narrador, quando este deixa
sua casa e constata que se encontra em Paris, mas não a sua Paris. Ele observa,

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Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

não somente um mundo novo, mas um tempo novo: o futuro, tido


como inevitável, moldado sob a ótica iluminista após séculos de
revoluções. A França é regida por um rei sábio, sob os moldes
históricos de Henrique IV, que Mercier admirava; a escravidão foi
abolida e as Américas tornaram-se independentes; a Igreja Católica
foi destruída e vigora uma religião próxima ao deísmo universal,
observado em outras literaturas do período, como A Nova Heloísa
de Rousseau. Através da exploração desta cidade futurista Mercier
retrata o fim do absolutismo monárquico ao descrever as ruínas
da Bastilha, do Jardim das Tulherias e do Palácio de Versalhes. É
neste último local que o narrador desperta, após encontrar a figura
castigada de Luís XIV, revivido pela “justiça divina” para contemplar
os destroços de “seu” projeto.
Em Estratos do Tempo o historiador Reinhart Koselleck
(Koselleck, 2013, p. 121) observa que O ano 2440 é um marco para a
transformação da literatura de utopia no Ocidente, provavelmente
o primeiro romance futurístico e nele se observa o fenômeno de
temporalização da utopia: é a irrupção do futuro na utopia.
Nos anos posteriores de sua publicação, O ano 2440 foi
um absoluto sucesso de vendas. De acordo com o historiador e
pesquisador em História Cultural e literatura revolucionária,
Robert Darnton (Darnton, 1995, p. 115), este livro figurou em
primeiro na lista de mais vendidos da Sociedade Tipográfica de
Neuchâtel; conforme os estudos da Professora de Estudos Franceses
na Universidade de Melbourne, Jaqueline Dutton sabe-se que por
volta do final de 1772, havia cerca de dezoito mil cópias do livro em
circulação pela Europa (Dutton, 2020, p. 237). O livro foi, segundo
Everett Wilkie Jr., proibido e condenado pela Inquisição espanhola.
Mesmo com o status de clandestinidade, foi traduzido para o inglês,
o espanhol, o italiano e o alemão e alcançou praticamente todos os
países da Europa. (Wilkie, 1985).
Acerca da utilização dos conceitos de utopia e imaginação
social para realizar a crítica histórica, cabe destacar — conforme
em choque, que o ano no monumento público estaria incorreto. Como poderia,
afinal, estar no século XXV? (Mercier, 2016).

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Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

Bronislaw Baczko — que o estudo das utopias, enquanto conceito


e como gênero literário, deve considerar o lugar singular que
as mesmas possuem na imaginação social de uma época. Sobre a
significação do conceito de utopia, Marilena Chauí introduz no
debate inicial de suas Notas sobre Utopia que a palavra foi inventada
no século XVI por Thomas Morus, com sua obra magna chamada
Utopia (1516). A partir desta, várias outras obras também passaram
a ser denominadas por esta palavra, em diferentes momentos e
contextos. Remete a origem grega na qual tópos significa lugar e “o
prefixo u tende a ser empregado com significado negativo, de modo
que utopia significa não lugar ou lugar nenhum”. (Chauí, 2008, p.
7).
No livro Utopian Lights, o filósofo e historiador Bronislaw
Baczko aponta que, durante a Modernidade, as utopias ocuparam
um lugar de prestígio, o de veiculadores e legitimadores dos
imaginários sociais. Ainda em conformidade com Baczko, busca-se
ao longo da pesquisa desenvolver uma compreensão do momento
histórico vivenciado por Mercier, de acordo com a noção deste
autor de imaginário social. Seria:
deste modo, uma das forças reguladoras da vida colectiva. As
referências simbólicas não se limitam a indicar os indivíduos que
pertencem à mesma sociedade, mas definem também de forma
mais ou menos precisa os meios inteligíveis das suas relações
com ela, com as divisões internas e as instituições sociais, etc. O
imaginário social é, pois, uma peça efetiva e eficaz do dispositivo
de controlo da vida colectiva e, em especial, do exercício da
autoridade e do poder. Ao mesmo tempo, ele torna-se o lugar e o
objecto dos conflitos sociais. (Baczko, 1985, p. 309-310).

Postulada a utopia — e a literatura utópica — como uma


veiculadora e legitimadora dos imaginários sociais de uma época, é
necessário compreender os diálogos feitos entre o autor e o contexto
histórico no qual estava inserido. Louis-Sébastien Mercier, estudante
do Colégio das Quatro Nações, dedicou um capítulo de sua utopia
para tratar do tema da educação na França. Mais precisamente, o
que — em seu futuro ideal — deveria ser estudado. Na narrativa,
apresenta uma forte reforma educacional, pautado em princípios
iluministas, antimonarquistas, anticlericalistas e pacifistas. Através

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Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

da figura do sábio filósofo, do guia, o leitor apreende que na Paris


de 2440:
se ensina pouca história porque esta é a vergonha da humanidade, e
cada página é um tecido de crimes e loucuras. Que Deus não permita
que exponhamos aos olhos Dele esses exemplos de banditismo
e ambição! A pedanteria da história tem transformado reis em
deuses. Nós ensinamos aos nossos filhos uma lógica mais segura e
ideias mais saudáveis. Aqueles frios cronologistas, os cultivadores
das nomenclaturas de todos os séculos, todos esses escritores
românticos e corrompidos, que são os primeiros a empalidecer
diante de seus ídolos, extinguiram-se junto com os panegiristas
dos príncipes da terra. Pois bem! Com o quão breve e rápido é o
tempo, vamos empregar o lazer de nossos filhos em sobrecarregar
suas memórias com nomes, datas, fatos inumeráveis e árvores
genealógicas? Que misérias fúteis quando temos diante de nós o
vasto campo da moral e da física! Em vão se argumentará que a
história fornece exemplos que podem instruir os séculos seguintes:
exemplos nocivos e perversos que servem apenas para ensinar o
despotismo e torná-lo mais insolente e terrível, mostrando os seres
humanos sempre subjugados como um rebanho de escravos, assim
como a impotência dos esforços em prol da liberdade, que expira
sob os golpes infligidos por alguns homens que fundamentam os
direitos de uma nova tirania sobre uma tirania antiga. (Mercier,
2016).3

O trecho apresentado, por sua citação direta à História


como algo reservado aos “frios cronologistas” e a perpetuação das
antigas tiranias, levanta indagações sobre o momento vivenciado
pela França durante o período que Mercier escreveu O ano 2440
e a forma como este trecho se entrelaça com o livro em si. Para
essa primeira questão, cabe lembrar que O ano 2440 foi escrito
entre os anos de 1770 e 1771. É o período, conforme lembra
Robert Darnton, do golpe de Nicolas de Maupeou e da reforma que
reforça os poderes monárquicos e retira os poderes dos parlamentos
franceses. Mercier, ao longo da narrativa, dedicou duras críticas ao
governo de Luís XV. Nesse contexto, ainda, é necessário enxergar
Mercier como um discípulo de Rousseau. A obra de Rousseau foi
a única, dentre os filósofos e escritores franceses e europeus do
período, que foi plenamente preservada na utopia de seu discipulo.
A literatura iluminista, em especial a Enciclopédia de Diderot e

3 Tradução própria.

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Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

D’Alembert, passa a ser utilizada como livro didático, elemento


formativo essencial para a educação das crianças. Questiona-se,
aqui, porque o elemento educacional é tão marcante ao longo d’O
ano 2440. Durante o decorrer da pesquisa de Iniciação Científica,
este elemento foi compreendido — e aqui evoca-se novamente
Baczko — pelo caráter da utopia. Conforme esse autor:
utopias são demonstrações e expressões de uma era específica,
mostrando suas obsessões, pesadelos e revoltas; o escopo dessas
representações como o caminho tomado pela imaginação social;
sua maneira de evidenciar o possivel e o impossível. Ir além da
realidade social, mesmo se apenas em um sonho e como um
escapismo, é parte daquela realidade e oferece um testemunho
revelador sobre ela (Baczko, 1989, p. 5).4

Nesse sentido, recorda-se o que estava em disputa no


imaginário social da França naquele momento. O crescimento e a
adesão aos ideais iluministas representou uma disputa com a Igreja
católica e os jesuítas pelo controle e administração da educação.
Com a expulsão destes últimos, conforme descrito por Diane Brown
no artigo The Pedagogical City of Louis-Sebastien Mercier’s L’An 2440,
o que estava em questão era o conflito pelo controle da educação e
da construção dos currículos. A literatura fortemente iluminista,
fortemente rousseauniana, de Mercier se insere, assim, como um
diálogo com esse conflito de seu tempo.
Os elementos apresentados aqui, e desenvolvidos ao longo do
projeto de pesquisa de Iniciação Científica, objetivaram fazer uma
reflexão sobre as relações entre literatura utópica, imaginação social
e o estudo da História. Nesse sentido, resgata-se um argumento
de Baczko, no capítulo The Social Imagination and the Utopian
Representations, de Utopian Lights:
para os historiadores, o interesse primordial do estudo das utopias
é o fato do utópico se colocar na dimensão do impossível, do
processo utópico não se resignar a olhar para a realidade social
presente e a sua projeção no futuro como as únicas possíveis; o
utópico desloca os próprios limites do que é aceito como possível
ou mesmo imaginável (Baczko, 1985, p. 5).5

4 Tradução própria.
5 Tradução própria.

11
Referências Bibliográficas
BACZKO, Bronislaw. A imaginação social. In: Enciclopédia Einaudi.
Antropos-Homem. Lisboa: Imprensa Nacional, Casa da Moeda,
1985.
BACZKO, Bronislaw. Utopian Lights: The Evolution of the Idea of
the Social Progress. Nova York: Paragon House, 1989.
BENTIVOGLIO, Julio. História & Distopia: a imaginação histórica
no alvorecer do século XXI. 2 ed. Vitória: Editora Milfontes, 2019.
BROWN, Diane. The Pedagogical City of Louis-Sébastien Mercier’s
“L’An 2440”. The French Review, v. 78, n. 3, fev. 2005.
CHAUÍ, Marilena. Notas sobre Utopia. Cienc. Cult., São Paulo, v.
60, [n. spe1], jul. 2008.
DARNTON, R. O diabo na água benta: ou a arte da calúnia e da
difamação de Luís XIV a Napoleão. São Paulo: Companhia das
Letras, 2012.
DARNTON, Robert. The forbidden best-sellers of pre-revolutionary
France. New York:W.W. Norton, 1995.
DUTTON, Jacqueline. Rewriting France’s Future: From Louis-
Sébastien Mercier’s Pre-Revolutionary Projections to Michel
Houellebecq’s Islamic Agendas via Secular State Ethics. In:
KENDAL, Z. et al. Ethical Futures and Global Science Fiction. Reino
Unido: Palgrave Macmillan, 2020.
KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo. Estudos sobre história.
Rio de Janeiro: Contraponto, 2014.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica
dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006.
MERCIER, Louis S. El Año 2440: un sueño como no ha habido otro.
Madri: Ediciones Akal, 2016.
WILKIE, Everett C. Jr. Mercier’s “L’An 2440”: Its publishing history
during the author’s lifetime. Part II. Harvard Library Bulletin XXXII,
n. 4, 1984.

12
O trauma presente na narrativa do
Fogo de 1951
Uma análise dos jornais O momento e Imprensa
Popular e da obra Barra Velha, o último refúgio (1978)
Camila Margon Massi1

Uma comunidade indígena incendiada, seus habitantes


perseguidos, presos e submetidos a torturas físicas e psicológicas:
esse é o cenário do episódio que ficou conhecido como Fogo de
1951. O contexto de destruição foi resultado de uma ação policial
realizada frente a tentativa de retomada do território do Parque
Nacional Monte Pascoal (PNMP), que fora desapropriado em 1943
por meio do Decreto 12.729 do dia 19 de abril de 1943. Decreto que
previa a prerrogativa de desapropriar, quando necessário, as terras
ou benfeitorias que estivessem na área delimitada do PNMP.
A desapropriação das terras foi resultado de um extenso
interesse do governo de Getúlio Vargas no extremo Sul da
Bahia, devido a primazia da chegada dos portugueses nesse local.
Objetivando definir o ponto exato onde atracaram pela primeira
vez, cria a Comissão do Descobrimento. Essa Comissão integrou
um importante personagem, comumente referenciado como Dr.
Barros, mas de identidade confirmada como Aurélio Costa Barros
(Canela, 2020, p. 41), uma figura central no processo de tomada do

1 Mestranda pelo Programa de Pós-graduação em História pela Universidade Federal


do Espírito Santo, na linha de pesquisa Representações e ideias políticas sob orientação do
prof. Dr. Julio Bentivoglio e bolsista Capes/Cnpq. Graduada em Licenciatura em História
(2023) pela mesma instituição, é vinculada ao Laboratório de Estudos de Teoria da
História e História da Historiografia (Lethis-UFES). E-mail para contato: camilamargon.
massi@gmail.com.

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Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

PNMP. Em 1939 iniciou-se um trabalho de topografia do Monte


Pascoal e o estudo da exata situação geográfica do território. No
relatório apresentado dois anos após o levantamento de dados, não
há qualquer referência à presença indígena na região do Monte
Pascoal (Carvalho, 2009). Contradizendo o relatório oficial, Santos
afirma que o levantamento de dados e o conhecimento total do
território só foi possível graças à ajuda dos indígenas que viviam
na comunidade indígena de Barra Velha (Santos, 2017, p. 208).
Até aquele momento, os Pataxó acreditavam que a medição estava
sendo feita a seu favor, para o reconhecimento e demarcação da
terra indígena. (Santos, 2017, p. 30).
Esse cenário será palco de compreensão dos eventos que
precederam o Fogo de 1951. Para esse fim, aborda-se a utilização
das fontes impressas para analisar uma historiografia indígena
produzida por essas fontes e a presença de um trauma (LaCapra,
2016) do episódio que ficou conhecido como Fogo de 1951. Essa
discussão faz parte de uma pesquisa de mestrado em estágio inicial.
Objetiva-se, neste breve ensaio, discutir a utilização de documentos
impressos na narrativa do evento

Cronologia de eventos e o Fogo de 1951


Nessa pesquisa, considera-se a demarcação territorial por
parte do governo em 1943, como o marco inicial dos eventos que
resultaram no Fogo de 1951. Nesse cenário é relevante destacar os
relatos presentes na obra Barra Velha: o último refúgio (1978) em que
Manuel Braz, referenciado como Mané Súia, relata para o autor
Cornélio Vieira Oliveira, sobre o evento:
O índio Manoel Braz, também conhecido como Mané Súia, estava
em Cariava numa tardem quando viu chegar um grupo de oito
homens. Traziam enorme bagagem. Aparelhos que nunca tinham
visto, mochilas e umas caixas pesadíssimas. O chefe do grupo disse
chamar-se doutor Barros. Era engenheiro. Viera demarcar as terras
da região [...] logo foi contratado para trabalhar com o grupo.
Estavam precisando de gente para ajudar no serviço [...].
Depois de algum tempo voltaram para completar a demarcação,
gastando para isso mais três meses [...]

2
Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

O Súia conta que no final do trabalho o doutor Barros vinha


explicando que ia ser criado um parque florestal naquela área e,
que eles não deveriam mais derrubar árvores. Deveriam fazer roças
apenas nas capoeiras e o melhor mesmo seria procurar logo outras
colocações. Ninguém poderia ficar naquela área. O governo ia criar
o parque e todos teriam que sair dali. (Oliveira, 1978, p. 13-15).

No dia 19 de abril de 1943 o Diário Oficial do Estado da Bahia


publicou o Decreto-Lei n° 12.729, delimitando a extensão territorial
do PNMP em 69.898 hectares, a fim de estabelecer o ponto exato da
chegada dos portugueses, comemorá-la e conservar a fauna e a flora
do local. (Carvalho, 2008, p. 2). A aldeia indígena, nesse cenário,
passou a pertencer ao governo, que a transformou em um parque,
desapropriando as terras da comunidade Pataxó. O sentimento
de angústia e desespero assolou a comunidade, sentimento o qual
impulsionou a luta pela garantia de suas terras e a emergência de
uma figura propulsora: Capitão Honório Conceição Borges (Santos,
2017, p. 30). Realizou duas viagens ao Rio de Janeiro em busca de
resultados para a demarcação territorial. Em sua segunda jornada
pensou ter encontrado a solução, informou aos habitantes que em
três meses chegariam agentes do Sistema de Proteção ao Índio (SPI)
para efetuar a demarcação da terra:
assim, de acordo com a história que a gente ouve do Fogo de 51,
na época eram conhecidos como capitães... esse capitão Honório
viajou e quando ele voltou ele trouxe esses dois homem branco...
que disseram que eram... engenheiros, que vieram para marcar e
delimitar a terra, por isso muitas pessoas dizem que foi culpa dele
né, do capitão Honório, que ele é o vilão da história, mas outros
pataxós não acham, cada um tem uma visão dessa afirmativa,
porque ele foi em busca da demarcação, mas só depois do Fogo de
51 que o povo começou a lutar pela demarcação. (NP, 2021, p. 6).

A data exata da chegada dos dois indivíduos à aldeia de Barra


Velha possui discordâncias, nesse momento, considera-se o início
do mês de maio como relevante para localizar os eventos no espaço-
tempo. Os dois indivíduos autodeclarados como funcionários
do governo, encontram-se identificados nos registros históricos
relacionados ao Fogo de 1951. De acordo com Oliveira (Oliveira,
1978, p. 17) nenhum indígena se recorda da identidade desses
homens, afirma que um apresentou-se como engenheiro e outro

3
Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

como tenente. O Jornal A Tarde (BA), na matéria publicada no dia


01 de junho de 1951 afirma que a identidade de um desses sujeitos é
de Ari Bhering (A Tarde, 01/06/1951) e supõem que o seu parceiro
seria Nelson Schaum, o jornalista que escreveu a reportagem
no jornal O Momento (BA). A partir da chegada desses sujeitos à
aldeia, diversas ações realizadas contribuem para a compreensão do
desenrolar dos eventos que transcorreram até o Fogo de 1951.
Havia uma curiosidade extensa dos indígenas com estes
homens brancos que chegaram à aldeia, toda a comunidade
indígena manteve sua atenção centrada nesses indivíduos em
um primeiro momento (Oliveira, 1978, p. 18). Questionaram
acerca do mercado mais próximo e no dia seguinte se dirigiram à
localidade acompanhados de diversos indígenas. Chegaram à venda
de Corumbau de Teodomiro Souza, ameaçaram-no de prisão e o
amarraram, para assim assaltarem a venda e a sua casa (Oliveira,
1978, p. 20-21). Em uma continuidade de narrativa de Manoel
Graciano, quem afirma ter soltado Teodomiro das amarrações de
corda, relata que estava conversando com o garoto e explicando por
que aquela ação não era correta e logo viu as linhas do telégrafo
cortadas a sua frente (Oliveira, 1978, p. 21). De acordo com Santos
(Santos, 2017, p. 36) os indígenas foram persuadidos a cortar a
linha do telégrafo que passava em Barra Velha, sob o pretexto de
evitar que qualquer informação acerca da demarcação chegasse
às autoridades. Nesse mesmo cenário, a população indígena ficou
completamente isolada e sem possibilidade de comunicação. O
reparo foi feito pelo inspetor da linha telegráfica em Caraíva e
logo foi cortada novamente pelos indígenas (Oliveira, 1978, p. 23).
Nesse momento, duas cabeças de gado já haviam sido mortas sob
a justificativa de obter mantimentos para realizar a demarcação
(Santos, 2017, p. 35).
Nesse sentido, vale destacar que a interpretação que
considera que os indígenas foram enganados e manipulados,
corrobora com a perspectiva de ingenuidade dessa população. Esse
discurso vai de encontro com os caminhos com que a historiografia
tem traçado ao trabalhar com povos indígenas, pautado em uma

4
Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

perspectiva de centralidade desses atores (Almeida, 2019). A


ação dos indígenas é considerada neste trabalho como consciente,
de agentes políticos e históricos que detém um senso crítico e
agiram, em sua maioria, em consonância com esses agentes a fim
de defender o seu território e reafirmar seu espaço físico e social
na sociedade envolvente.
Dois dias após a chegada dos dois personagens à aldeia de
Barra Velha, a polícia é informada acerca do cenário da localidade.
Como ação imediata, foram enviados dois batalhões da polícia
militar, o primeiro advindo de Porto Seguro, sob a liderança de
Major Arsênio Alves. Em relação ao segundo destacamento policial,
há discordâncias em relação à sua origem, variando entre a região
do Prado ou Caravelas. Independentemente da origem, ambos se
encontraram na noite do dia 11 de maio de 1951 e iniciaram um
fogo cruzado entre lados opostos da aldeia:
perto de Barra Velha os dois destacamentos se encontraram. E,
na escuridão da noite. Julgando ambos que estavam defrontando
os caboclos, iniciaram um fogo cruzado que durou quase uma
hora, e que terminou com a fuga dos soldados de Caravelas, em
verdadeiro pânico, deixando armas e bagagens (Imprensa Popular,
19 jun. 1951).

A fuga dos soldados advindos de Caravelas ou Prado incita a


ideia de que tenha sido um fogo cruzado onde ambos acreditavam
estar combatendo os caboclos, porém não se descarta a possibilidade
realizarem disparos diretos à aldeia. Mesmo com o desconhecimento
do contexto do início dos disparos, a narrativa dos indígenas
presentes na obra se opõe a perspectiva de que havia sido um fogo
cruzado por desconhecimento, quando afirma:
Mané Súia e mais dois companheiros foram dar uma espiada para
o lado do brejo, mas quando estavam chegando no pé de dendê.
Ouviram um tiro para cima deles. Trataram de correr, porque
já estavam bem perto. Ainda ouviram um tiro de espingarda
partindo da aldeia.
O que se ouviu então foi um barulhão tremendo, que parecia
trovoada. O fogo dos fuzis chegava a clarear a escuridão (Oliveira,
1978, p. 24)

5
Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

Nesse momento, diante da irregularidade das duas fontes,


faz-se necessário destacar que as representações dos eventos nessa
pesquisa não são divididas entre adequadas e não adequadas. As
narrativas que, ao serem comparadas, apresentarem inconsistências,
como o caso acima, servirão de análise para as diferentes formas
que o evento pode ser narrado, desconsiderando o critério de
verossimilhança. Tratando-se de relatos sistematizados na obra
Barra Velha: o último refúgio, a memória pode suplementar, se opor
ou acordar com a história escrita, tida como oficial, aquela presente
nos jornais impressos selecionados. Levando em consideração que a
memória como ela pode enganar a lembrança de um determinado
evento em prol do esquecimento subconsciente explicado pela
psicologia, ou por consequência de uma política negacionista.
(LaCapra, 2016, p. 382).
Ao cessar fogo, no dia seguinte os policiais adentraram à
aldeia e, ao constatar que a maioria dos habitantes havia fugido
para a floresta, atearam fogo nas casas e iniciaram um processo de
captura desses indígenas mata adentro:
o João Pequeno, logo que saiu do brejo, pelo Sudoeste, recebeu
uma descarga de tiros. Jogou-se ao chão e saiu rastejando, com os
tiros passando por todos os lados, arrancando tufos de areia no
chão. Levantava e corria mais um pouco até conseguir esconder-
se num buraco onde tiravam barro para reboco das casas. Daí a
pouco começou a ouvir um barulho se aproximando e pensou que
era o fim. Mas percebeu que o barulho era o Mané Súia, que sendo
defeituoso, falseava nas passadas. (Oliveira, 1978, p. 25).

A população Pataxó foi caçada e perseguida, os indígenas


apreendidos eram levados para Caraíva ou para o Prado e alguns
eram obrigados a ajudar a capturar os outros que ainda estavam
foragidos (Santos, 2017, p. 39). Nesse momento, as narrativas
presentes na obra Barra Velha: o último refúgio e a reportagem escrita
no jornal O Momento entram em concordância.
A expedição de Arsênio prosseguiu mata a dentro, perseguindo
os dois aventureiros, o suposto engenheiro e o suposto tenente.
Cercados e presos, com eles foi encontrada uma arma automática,
tomada do comerciante Teodomiro Rodrigues, mas sem munição.
Apesar de se haverem rendido sem resistência, foram assassinados

6
Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

friamente a tiros de fuzil, disparados pelo soldado Ambrósio e


pelo guarda-linhas do Telegrafo Paulo Cruz, que serviu de guia ao
destacamento. Uma jovem cabocla que se encontrava na cabana
dos aventureiros, enganada por eles ou arrastada à força, também
foi assassinada com um tiro de fuzil disparado pelas costas. Os
documentos encontrados com os dois aventureiros os identificam
como Antonio Barbosa e Jorge de tal. (O Momento, 1951. [Edição
00718]).

Capturados e levados ao cárcere, os indígenas afirmam


que foi na prisão que transcorreram as torturas físicas, os abusos
psicológicos e sexuais (Oliveira, 1978). Esse cenário de destruição
e violência provocaram uma dispersão forçada do grupo (Carvalho,
2008, p. 39). Um ato violento contra a população indígena de
Barra Velha que teve seus direitos violados e a sua terra arrasada.
Nesse contexto, a maior parte das famílias que residiam em Barra
Velha preferiu adentrar as matas e formar novas comunidades ou
iniciaram um processo de negação da sua ancestralidade como
forma de proteção e segurança.
É relevante destacar nesse momento, como as terminologias
para relatar esse evento se modificam de acordo com as fontes
selecionadas para a análise. Nos jornais, encontra-se a terminologia
de revoltas (O Momento, 27 mai. 1951). Em entrevistas disponíveis
na dissertação de Mestrado de Rejane Maria da Cunha, intitulada
Fogo de 51: reminiscências Pataxó de 2010 agrega importantes
nomenclaturas utilizadas por diferentes entrevistados, como: guerra,
revolta, massacre e revolução. Todas essas partem de uma tentativa
de construir uma nova posição desses indígenas como atores de
sua própria história. A expressão Guerra de 51, segundo Cunha
(Cunha, 2010, p. 71) remete a combates armados entre nações ou
partidos minimamente preparados, em um combate entre duas
forças opostas. Adaptando-se a realidade do Fogo de 51, de um lado
há os policiais e as ações governamentais, que buscaram durante
anos desapropriar Barra Velha dos indígenas Pataxó em nome de
um processo de desenvolvimento econômico. E um lado oposto,
seria representado pelos indígenas que buscaram a resolução da
demarcação de terra, resistiram às ações violentas e se mantiveram
no território.

7
Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

Percebe-se também esse movimento na tentativa de resgate


da cultura tradicional dos povos originários que cresceu nas últimas
décadas no Brasil. Esse movimento também se faz presente na etnia
indígena Pataxó de uma forma geral. A formação de um grupo de
pesquisa chamado Atxohã é um dos resultados desse movimento de
resgate: formado por estudantes da aldeia Coroa Vermelha e da
Reserva da Jaqueira, foi criado com o objetivo de reviver e manter
presente a língua Pathoxã (Bonfim, 2012, p. 48). Essa mudança
de cenário prioriza uma produção de uma história e de uma
narrativa que coloca os indígenas como atores históricos e políticos,
utilizando-se principalmente do artifício da história oral.

As fontes selecionadas para estudo


Ao buscar fontes escritas desse período, a obra Barra Velha:
o último refúgio, se destacou. Escrita por, à época, um delegado
da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI), Cornélio
Vieira de Oliveira. O autor não possui referências de sua trajetória
disponíveis online e não há registros da sua formação acadêmica. As
informações acerca de Cornélio Vieira são provenientes do acervo da
Associação Nacional de Ação Indigenista (ANAÍ),2 os documentos
que o citam são de cunho jornalístico e atos oficiais da Fundação
Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI) e do Sistema de Proteção
aos índios (SPI). Após o levantamento dessa documentação, pode-
se encontrar uma relação de documentos que cita Cornélio Vieira
em seus respectivos cargos. Reconhece-se, nesse momento, que a
escrita dessa obra é uma prática discursiva que incorpora uma parte
ideológica, de apresentação de códigos do próprio autor que realizou
inúmeras seleções para organizar esse livro. (Traverso, 2012, p. 90).
A fonte impressa Barra Velha: o último refúgio é um conjunto
de depoimentos cedidos a Cornélio, coletados de maneira
desconhecida, visto que não há especificação acerca da metodologia

2 O acervo da Associação Nacional Indigenista foi recentemente digitalizado


e está disponível de forma parcial em: Centro de referência virtual. Disponível
em: https://www.docvirt.com/docreader.net/docreader.aspx?bib=CRV_Indigena_
AcervosInstituicoes&pesq=&pesquisa=Pesquisar&pagfis=0

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Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

utilizada na obra. Foi publicada em 1985 em Londrina, com editoria


própria de Cornélio Vieira de Oliveira, resultando em um seleto
número de cópias. Vale destacar que a edição analisada é de 1978,
acredita-se que essa seja uma primeira versão entregue aos indígenas
que possuíam a liberdade de solicitar alterações.
Inicialmente, a obra discorre sobre alguns usos e práticas dos
Pataxó, diferenciando aqueles que viviam na comunidade indígena
daqueles chamados de “índios da mata” (Oliveira, 1978). Também
aborda sobre a cultura, o comércio, as redes de sociabilidade, assim
como a diáspora indígena posterior ao Fogo de 1951 (Oliveira,
1978, p. 5). A construção narrativa da obra se organiza para criar
um cenário a fim de atingir o eixo central: o Fogo de 1951. Os
testemunhos cedidos ao autor são narrados de forma cronológica e
preservando detalhes das vítimas, podendo considerá-lo como um
documento escrito de relatos diretos do acontecimento. Percebe-se
o teor de literatura e de ficção presente no livro, essa característica
é levada em consideração no momento da análise. Desconsidera-se a
obra como uma transcrição direta dos testemunhos, aproximando-
se mais de uma transcriação, onde o autor possuiu liberdade para
alternar a ordem das narrativas para melhor adaptar-se à construção
da história.
Além da discussão em torno da obra, buscou-se fontes
impressas, objetivando a construção de narrativas compostas
de versões individuais e de matérias jornalísticas. O periódico
O Momento3 noticiou em maio de 1951 o Fogo na comunidade
indígena de Barra Velha, reportagem escrita pelo jornalista
Nelson Schaun, intitulada Invasão de Caboclos no Sul da Bahia (O
Momento, mai. 1951). O periódico foi inaugurado em abril de
1945, no mesmo ano em que o Partido Comunista Brasileiro (PCB)
entrou na legalidade e era o único jornal do Partido Comunista
em circulação no Brasil (Serra, 1987, p. 29). Editado em Salvador
onde, hoje possui o seu acervo disponível para consulta na
Biblioteca Pública do Estado da Bahia (PBEP). Operou por mais

3 Sobre a história desse periódico, ver: SERRA, Sônia. O Momento: história de um


jornal militante. Dissertação de Mestrado. Salvador, UFBA, 1987.

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Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

de dez anos (1945-1957) e possuía relevante afinidade ideológica


com o Partido Comunista, embora a princípio, não fosse um
órgão oficial do partido. Defendia seus interesses e princípios,
constantemente desempenhava funções de um órgão partidário,
quando veiculava as suas mensagens, até mesmo as internas (Sena
Júnior, 2009). Um jornal que procurava além de divulgar notícias,
desenvolver a política de massas e aglutinar a inteligência baiana
com artigos de intelectuais de esquerda. Estimulava a imprensa
popular, buscando cumprir a determinação marxista de divulgação
dos ideais comunistas, formação de quadros, transformação social
e tomada do poder (Serra, 1987).
Outro jornal que relatou o acontecimento foi o Imprensa
Popular (RJ). Este surgiu a partir do fim do periódico carioca do
Partido Comunista Brasileiro A Tribuna Popular, no ano de 1948 e
seguiu em circulação até 1958. Devido a ilegalidade do partido no
período de surgimento do jornal, o vínculo da Imprensa Popular com
o PCB era secreto (Brasil, 2016). Possuíam quantidade de fotos e
ilustrações significativas, traziam manchetes e títulos chamativos,
com fontes enormes, abordando os problemas sócio-políticos mais
variados, visando a atenção das classes populares (Brasil, 2016).
Em suas páginas aborda os rumos e as posturas do PCB, deixando
claras as posições favoráveis ao partido, mas não revelando a sua
vinculação direta. A reportagem que noticia o Fogo de 1951, do
dia 19 de junho do mesmo ano, está disponível virtualmente no
site da Hemeroteca Digital. Essa é uma republicação da matéria
publicada originalmente no jornal O Momento em maio de 1951,
que é constantemente referenciada ao longo do texto. A fim de
destacar a relevância deste jornal, ao citar a repercussão do debate
acerca dos acontecimentos no Sul da Bahia, causa um alarde
na Assembleia Legislativa. Nesse momento emerge a figura do
deputado Wilson Lins (Partido Republicano), que afirma: “êsse
foi o único jornal que narrou a verdade, não se deixando levar
pelas falsas versões da polícia e do governo” (Imprensa Popular,
19 jun. 1951).

10
O trauma presente na narrativa das fontes impressas
Nesse contexto, uma abordagem acerca da memória presente
nos relatos da obra Barra Velha: o último refúgio é relevante. De
acordo com o historiador francês Henry Rousso (Rousso, 2006,
p. 94) a memória enquanto conceito é uma reconstrução seletiva
de um passado que nunca é somente daquele indivíduo, mas
deste inserido em um contexto familiar, social e nacional. Dessa
forma, a memória é um elemento fundamental da identidade e da
percepção de si e dos outros seres (Rousso, 2006, p. 96). A discussão
acerca da coletividade da memória argumenta que a história da
memória tem sido quase sempre uma história das feridas abertas,
aquelas palpitações e interrogações acerca de certos períodos
(Rousso, 2006, p. 95). A realidade do debate acerca do Fogo de
1951, de uma constante rememoração e um luto extenso acerca do
acontecimento ajudam a compreender a concepção da memória
como uma história das feridas abertas, defendida por Rousso.
(Rousso, 2006).
Considera-se, nesse aspecto, que a memória é uma construção
coletiva, onde “as nossas lembranças se fortificam graças às
narrativas coletivas que, por sua vez, se reforçam por meio das
comemorações públicas de acontecimentos que marcaram a memória
coletiva” (Ricoeur, 1996, p. 248). Porém não está não é imune a
construção individual: rememoração, é um processo de elaboração
individual e, a comemoração, é um trabalho de construção de uma
memória coletiva (Ricoeur, 1996) Nesse sentido, vale destacar
que as comemorações não dizem a respeito apenas às festividades
nacionais, mas também, no caso da etnia Pataxó, os rituais Awê que
são realizados nas comunidades indígenas e possuem um caráter de
rememoração. (Vieira, 2016).
Trata-se de uma construção coletiva acerca de um episódio
que ocorreu na aldeia de Barra Velha e que foi sistematizado na obra
Barra Velha: o último refúgio (1978). Além dessa produção coletiva, os
jornais constituem uma construção de uma narrativa pela imprensa
jornalística do período, seja em concordância ou discordância com

11
Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

oxs relatos presentes na obra. O periódico O Momento destacou-se


para essa pesquisa devido a viagem de campo realizada pelo seu
jornalista Nelson Schaum, a fim de coletar as informações dos
próprios indígenas, materializando a versão dos indígenas acerca
do Fogo de 1951.
Vale destacar que a presença de uma memória dos
acontecimentos objetiva definir e reforçar os sentimentos de
pertencimento e fronteiras sociais entre a coletividade (Pollak, 1989,
p. 4). De acordo com o historiador Michael Pollak (Pollak, 1989, p.
10-11), ao considerar o papel fundamental das memórias coletivas
de coesão de grupos da sociedade, existem sempre limitações a esse
enquadramento, que podem estar nos imperativos de justificação
das ações que acabam adiando a reconstrução dos fatos. É inegável
que memórias coletivas oficiais4 possuem uma integração na
memória nacional, ao contrário das memórias silenciadas, nosso
objeto de estudo.
A análise minuciosa da obra Barra Velha: o último refúgio trará,
para além da análise da memória, a compreensão de uma narrativa
de um evento traumático para a população indígena de Barra Velha.
De acordo com o historiador norte-americano Dominick LaCapra
(2014), não devemos confundir a história com o trauma. O trauma e
suas causas podem ser características proeminentes da história, mas
simplesmente considerá-los como iguais prejudica o entendimento
das suas dimensões, neutralizando ou mitigando seus efeitos. Nesse
sentido, entender o trauma como algo exclusivamente psicológico
e individual é equivocado, já que esse possui conexões sociais e
políticas que só podem ser compreendidas em consonância com a
realidade coletiva. (LaCapra, 2014, p. 11).
É importante investigar o trauma e os efeitos pós-traumáticos
de uma forma que não os isole, mas os vincule à investigação de
outros problemas significativos, incluindo as relações mais gerais

4 Nesse caso, considera-se como memórias coletivas oficiais aquelas que foram
aceitas e implementadas pelos detentores de poder, como a memória da escravidão, da
colonização, da independência etc. São narrativas postas e amplamente utilizadas pela
sociedade comum.

12
Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

entre história e memória, envolvendo o papel do testemunho e


história oral. (LaCapra, 2016, p. 377).5
De acordo com Dominick LaCapra, a extensão e a intensidade
dos eventos e das experiências traumáticas parecem marcar nosso
tempo de forma diferenciada, já que sempre existiram testemunhos,
configurando a chamada “era do testemunho” (WIEVIORKA Apud
LaCapra, 2020, p. 30). Ao considerar o Fogo de 1951 enquanto
uma experiência traumática que muda a rede de sociabilidade dos
indígenas de forma permanente, busca-se conceitualizá-lo como um
evento-ruptura. Para compreender o que seria o evento-ruptura,
é necessária uma introdução da discussão acerca da periodização
da História do Tempo Presente. Segundo Christian Delacroix
(Delacroix, 2018), a problemática do campo de estudo do tempo
presente, envolve a dificuldade para a sua definição e, com o objetivo
de sanar imprecisões, sugere definir o tempo presente como um
novo período ou subperíodo da história contemporânea baseado
em datas-rupturas. O tempo presente começaria com a última
catástrofe que fecha um período e abre outro. Periodização que
pode variar de acordo com cada sociedade. Dentro da proposição
dessa pesquisa, considera-se o Fogo de 1951 enquanto um evento
traumático de uma data-ruptura, seja pela constante presença
do luto nas sociedades Pataxó do extremo sul da Bahia, seja pelo
movimento da diáspora que ocorreu imediatamente após o episódio
traumático. De qualquer ponto de vista citado acima, o Fogo de
1951 mudou a rede de sociabilidade e de convivência da população
Pataxó de forma permanente.
O historiador LaCapra (LaCapra, 2014) se debruça sobre a
temática do trauma de forma cuidadosa, levando em consideração
que não é apenas um sintoma psicológico, mas que possui conexões
cruciais com a realidade política e social. Ao trazer à tona as suas
dimensões, argumenta que a maneira como são retratados, as ações
posteriores e os discursos estão diretamente relacionados com as
5 Tradução autoral, conferir no original: “it is important to inquire into trauma and
post-traumatic effects in a manner that does not isolate but instead links them to the
investigation of other significant problems, including the more general relations between
history and memory, involving the role of testimony and oral history.”

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Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

diferenças de riqueza, status e poder, podendo facilitar a opressão e


o abuso. (LaCapra, 2014, p. 11).
O trauma tem atraído para si especial atenção e apresenta
diferentes problemáticas, particularmente em relação aos seus
desdobramentos, resultando no extenso interesse pelos testemunhos
(LaCapra, 2020, p. 31). Considerando que o testemunho possui
marcas dos efeitos de um trauma, esse pode ser completamente
consumido e distorcido. LaCapra transfere certas categorias
patológicas da psicanálise para o plano histórico, buscando dar
sentido a relações entre história e violência, adaptando conceitos
da psicanálise para classificar processos traumáticos e seus efeitos
culturais.
O historiador norte-americano utiliza-se do conceito
freudiano de perlaboração6 e o transplanta para o campo
historiográfico, permitindo acessar e dar um novo sentido àquilo que
o inconsciente ainda não assimilou, nesse caso, o trauma de 1951.
Argumenta a possibilidade de elaborar o passado interpretando
memórias traumáticas, buscando um trabalho da memória, uma
ressignificação de determinado evento traumático (LaCapra,
2014). Nesse momento, vale singularizar para o Fogo de 1951 que,
por meio da análise dos documentos, busca-se a reconstrução de
uma história e, consequentemente, de uma memória, por meio da
narrativa do trauma.
Estudos que utilizam fontes impressas como material
primordial, são organizados e interpretados de acordo com o
problema de pesquisa e o objeto de estudo. Em relação a esta
pesquisa, a análise de conteúdo das fontes é primordial, respeitando
a individualidade de cada tipologia documental. As mensagens,

6 A perlaboração psíquica na perspectiva freudiana aborda a forma como o sujeito


interage com o acontecimento passado ou com as experiências traumáticas da sua vida.
O inconsciente é estimulado a fazer uma representação da experiência traumática,
diferenciando o que é passado do que é presente. Narrar esse acontecimento significa
trazê-lo para o consciente, dessa forma emergem sensações e emoções vividas, dando
um novo sentido a elas e possivelmente a ressignificando. Para mais informações, Cf.
FREUD, Sigmund. Recordar, Repetir e Elaborar. Novas recomendações sobre a técnica
da psicanálise II. FREUD, Sigmund. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de
Janeiro: Imago, 1996.

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Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

segundo Franco (Franco, 2020, p. 08), “expressam as representações


sociais na qualidade de elaborações mentais construídas socialmente,
a partir da dinâmica que se estabelece entre a atividade psíquica
do sujeito e o objeto do conhecimento”. Os periódicos jornalísticos
serão analisados como a representação de uma narrativa do período
em questão.
Os periódicos jornalísticos serão desvinculados da
perspectiva que os enquadra como transmissores imparciais
e neutros do acontecimento, e tampouco como uma fonte
desprezível por ser repleta de subjetividade (Capelato, 1988, p.
21). Trata-se das fontes em consonância com Robert Darnton
(Darnton, 2010 [1939]), ao afirmar que a notícia não é o relato
do que aconteceu no passado imediato, é o relato de alguém
sobre determinado acontecimento. Nesse sentido, conceitualiza-
se os jornais como uma coletânea de relatos, sistematizados e
organizados a fim de atender as especificidades do sistema editorial
e do público leitor (Darnton, 2010 [1939], p. 17). É necessário
pensar a inserção histórica dos jornais enquanto força ativa da
vida moderna, como um ingrediente do processo do registro dos
acontecimentos, atuando diretamente na constituição dos modos
de vida e perspectivas (Darnton, 2010 [1939]). Eles não apenas
serão utilizados como fontes de dados sobre as sociedades do
passado, mas serão analisados como participantes da história, dos
processos e conjunturas ao qual estão inseridos.
Nesse sentido, os jornais selecionados (O Momento e Imprensa
Popular) para estudo acerca do Fogo de 51, não serão utilizados
apenas como documentos para refutar ou afirmar os relatos
presentes na obra. Nenhuma das fontes será considerada como
transmissor imparcial da verdade, serão historicizados, abordadas
e relacionadas a um contexto histórico mais amplo, mantendo um
constante diálogo entre as fontes. O passado não oferta testemunhos
neutros e objetivos, todo documento é suporte de prática social e,
por isso, representa um lugar social de um determinado tempo,
sendo diretamente determinado pela intencionalidade histórica
que o constitui. (Cruz; Peixoto, 2007, p. 258).

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Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

A utilização dos jornais em pesquisas historiográficas


comumente os representa como objetos mortos, descolados das
tramas históricas em que se constituem (Cruz; Peixoto, 2007, p. 256).
O reconhecimento da importância da imprensa pelos historiadores
enquanto fonte e objeto de pesquisa na segunda metade do século
XX, não foi acompanhado de avanços metodológicos satisfatórios.
Frequentemente, essas fontes são apresentadas como substitutivas
ou secundárias, “as publicações são tomadas como meras fontes de
informação” (Cruz; Peixoto, 2007, p. 256). Os materiais impressos,
principalmente os jornalísticos, não serão deslocados do seu contexto
de produção, os artigos retirados dos periódicos específicos serão
tratados em consonância com a realidade geral do periódico e como
fonte histórica a fim de obter uma narrativa jornalística acerca do
Fogo de 51.

Conclusão
A produção de conhecimento histórico acerca dessa população
é comumente realizada por meio de análise de documentos
exteriores a eles, que possuem sua cultura enraizada na oralidade.
Nesse trabalho inicial, ao acessar a sistematização de relatos em
uma obra por Cornélio Vieira Oliveira, abriu-se um leque de
possibilidades de análise e de produção de conhecimento pautado
na vivência desses próprios indígenas. A resistência do povo Pataxó
é caracterizada, principalmente, pelo fato de terem se mantido na
região. Muitos migraram para outras regiões, outros se integraram
vivendo uma vida urbana, mas os que permaneceram resistem e
lutam pelos seus direitos.
Vítimas de um processo falho de aculturação e invisibilidade,
essa população hoje passa por uma tentativa de valorização cultural.
Essa mudança no cenário de desvalorização para uma reafirmação
de seus direitos e de sua ancestralidade é marcada por uma iniciativa
dos próprios indígenas de produzir um conhecimento histórico os
colocando como atores históricos e políticos. Essa corrente que tem
sido acompanhada também por pesquisadores não-indígenas que

16
Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

buscam a centralidade destes nos acontecimentos que os permeiam,


ratificando uma historiografia tradicional que marginaliza as
comunidades indígenas e suas narrativas.
O objetivo deste trabalho não foi sanar as imprecisões acerca
do Fogo de 1951, mas buscar uma compreensão inicial da forma
como o trauma se manifesta na narrativa presente na obra Barra
Velha: o último refúgio (1978) e que, ao ser comparada com jornais
que noticiaram o evento na época, como os jornais O Momento
(BA) e Imprensa Popular (RJ), traz à tona algumas inconsistências
que podem ser consideradas como marcas de um efeito pós-
traumático, de acordo com as discussões propostas por Dominick
LaCapra.

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19
Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

Faculdade de Educação. Universidade Federal de Minas Gerais,


Belo Horizonte, 2016.

20
A imaginação histórica moderna acerca
da África Romana
O caso de René Cagnat (1852-1937)
Edjalma Nepomoceno Pina1

Ao longo dos séculos XIX e XX, os países que compõem


a África do Norte, conhecidos hoje como Marrocos, Argélia,
Tunísia, Líbia e Egito, foram progressivamente subjugados pelo
imperialismo francês, italiano e britânico. Nessa esteira, sua herança
cultural passou a ser intensivamente explorada por acadêmicos que
buscavam vestígios da presença do antigo Império Romano, que
outrora dominou a região entre os séculos II a.C. e V d.C. No caso
da Tunísia, país que corresponde a boa parte da antiga província
romana da África Proconsular, os anos 1830 foram um turning point
nas pesquisas arqueológicas situadas na região. O país foi visitado
por uma série de exploradores europeus treinados e munidos
de métodos inovadores, além das condições de trabalho mais
confortáveis proporcionadas pela presença de forças de ocupação
europeias que serviam de proteção e suporte material. Inicialmente
realizadas por empresas com fins lucrativos, como a Société pour
l’exploration de Carthage, criada em Paris em 1837. Outras escavações
em vários lugares contribuíram para uma melhor compreensão do
território e topografia dos antigos locais, incluindo as realizadas em
Utica e Sousse, localizadas respectivamente a 40 km e 150 km de
Cartago. O aspecto lucrativo da exploração arqueológica certamente
1 Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal
do Espírito Santo (PPGHis/Ufes), sob orientação do Prof. Dr. Belchior Monteiro Lima
Neto. Membro do Laboratório de Estudos sobre o Império Romano, seção Espírito Santo
(Leir/ES). Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior –
Brasil (CAPES). E-mail: edjalma.contato@gmail.com.

21
Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

foi importante, atraindo a elite local ao ponto de levar um de seus


membros, Mohamed Ben Mustapha Khaznadar, a conceder-se o
monopólio das escavações pelo Bey em 1880. Ele foi praticamente o
único protagonista tunisiano na arqueologia do século XIX no país.
(Pimouguet-Pédarros, I.; Clavel-Levêque, M.; Ouachour, F. [s. d.], p.
57-78).
Igualmente destacado foi o trabalho realizado pelos
eclesiásticos como o Padre Adolphe-Louis Delattre, que em 1875 foi
nomeado como capelão da categral de Saint Louis em Cartago. Por
cerca de cinquenta anos, ele conduziu escavações e montou o núcleo
do futuro museu de Cartago, com uma coleção de 6.347 objetos.
Suas escavações nas basílicas de Damous El Karita e de Cipriano
contribuíram para um melhor conhecimento da topografia cristã
de Cartago. Além disso, durante esse período, na França, surgiram
as primeiras revistas especializadas nas quais os exploradores
publicaram seus boletins de escavação.
Esses autores produziram uma variedade de catálogos
arqueológicos que são consultados até os dias atuais, pelos
interessados na chamada África Romana. A despeito da
contribuição para a compreensão desse passado, seus trabalhos
também estão repletos de interpretações sobre o passado
confeccionadas a partir de sua posição de poder como europeus
no ápice de sua hegemonia política e econômica (Neto, B. M.
L. 2019, p. 84-108; Lepelley, C. 2016, p. 418-437). Tendo isso
em vista, o que propomos aqui não é uma discussão acerca do
tratamento dos vestígios arqueológicos, mas sim uma brevíssima
reflexão sobre a imaginação daqueles que se debruçam sobre
o passado e como tal imaginação respinga em sua escrita da
história. Objetivamos indicar um caminho de análise para futuros
pesquisadores da historiografia do XIX sobre a Antiguidade.
Propomos que as obras gestadas no seio do imperialismo europeu
também podem ser pertinentes para compreender como seus
autores imaginavam o Mundo Antigo, revelando percepções
anacrônicas e profundamente conectadas com a agenda política
dos impérios em voga.

22
Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

Podemos começar remontando a 1894, na Tunísia. O dia


mal havia começado e o historiador e arqueólogo René Cagnat
contemplava o nascer do sol em Túnis, capital da colônia francesa.
Cagnat já era um experiente acadêmico de 42 anos, liderando
uma pequena expedição científica pelas terras do país africano,
financiado pelo governo Francês. Naquela manhã, Cagnat muniu
seu espírito com a disposição necessária para percorrer o território
africano por três anos. Ao relembrar este dia, escreveu:
bem acima de nossas cabeças, lá no alto, voava um bando de
flamingos rosados, com asas abertas e pescoços esticados, que
iriam pousar nas águas do lago de Túnis. Isso nos lembrou de nossa
história romana e, como se fossemos próprio Rômulo, aceitamos
esse presságio (Cagnat, R.; Saladin, H. 1894).

Logo no início de sua expedição, Cagnat faz uma alusão ao


mito de fundação de Roma, no qual Rômulo e Remo, dois irmãos
que foram abandonados em um rio e criados por uma loba, cresceram
e fundaram a cidade de Roma. Segundo a lenda, Rômulo e Remo
buscaram sinais dos deuses para indicar quem seria o governante.
Rômulo observou 12 abutres voando sob sua cabeça, o que seria a
anuência divina de que ele deveria ser o primeiro rei de Roma (Tito
Lívio, Ab Urbe condita libri, IV-VI).
A comparação que Cagnat faz entre sua missão e o presságio
de Rômulo nos faz pensar na capacidade criativa do historiador
e do literato. Os historiadores são frequentemente vistos como
guardiões dos fatos reais, enquanto os escritores de ficção são
vistos como criadores de histórias inventadas. No entanto, como
Cagnat mostra, a consciência do historiador também é permeada
de imaginação, invenções ou fantasias de poder. Cagnat está ciente
da hegemonia francesa na região, o que lhe dá a confiança necessária
para se imaginar como o próprio Rômulo diante de seus domínios.
Da mesma forma que o primeiro rei de Roma fundou as bases de
uma poderosa civilização, Cagnat esperava estabelecer as bases da
compreensão do passado romano na África. Sua busca é uma mistura
de ciência e fé, história e literatura. A comparação de Cagnat é um
lembrete de que a história é uma disciplina viva, não uma coleção de

23
Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

fatos congelados no tempo. É uma história em andamento, que está


sempre sendo reescrita.
Tal problemática que para nós é clara, naquele momento ainda
não figurava no horizonte de intelectuais europeus, que perseguiam
o passado com passos confiantes. Afinal, como não ser confiante
em seu ofício enquanto se carrega consigo a crença de possuir uma
consciência histórica amparada por uma razão, capaz de conceber o
passado de maneira isenta e realista? Essa concepção seria um traço
da identidade do ocidente moderno industrial, que enxergava sua
relação racional com a história, como umas das características de
distinção em relação às demais culturas do globo, que teriam uma
relação mais memorialista e afetiva com o passado (White, 1992). Em
outros termos, a percepção eurocêntrica de consciência histórica
deu-lhes a sincera noção de que apenas eles, mediante seus métodos
e abordagens, poderiam alcançar a verdade dos fatos.
O que Cagnat e outros ainda não sabiam é que a história
não se limita ao método, mas se expressa em narrativa, e toda
narrativa é um conjunto de escolhas. O texto é montado como
estrutura verbal em prosa, que tem como proposta, ser um modelo
explicativo de determinado período, pessoa, evento ou prática do
passado, mas que não deixa de ser uma representação. Nessa lógica,
historiadores caracterizam os elementos do passado e os rearranjam
com a finalidade de causar aquilo que White chamou de impressão
narrativa, ou o que Roland Barthes chamou de efeito de real (White,
1992, p. 18; Barthes, R. 2004, p. 181). O rearranjo do passado, em
um texto, transforma os eventos em espetáculo, ou em histórias
trágicas, épicas, cômicas e satíricas. Nesse processo, as fontes não
são tratadas como indícios, mas sim como provas da verdade.
Ao narrar o passado romano em África, Cagnat não pôde
deixar de dar a esse período as cores de uma história épica de
conquista gloriosa. Os romanos eram seus protagonistas, e aqueles
que habitavam o continente africado eram os antagonistas. Alguns
anos após sua excursão pela Tunísia, ele publica L’armée romaine
d’Afrique et l’occupation militaire sous les empereurs, no qual escreve:

24
Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

nós podemos [...] com certeza, comparar nossa ocupação da Argélia


e da Tunísia àquela das mesmas províncias africanas pelos romanos.
Como eles, nós conquistamos gloriosamente a região, como eles,
nós asseguramos a ocupação, como eles, nós tentamos transformá-
la à nossa imagem e trazê-la para a civilização (GAGNAT, 1913, p.
776).

Diante desses dizeres, podemos nos questionar: Cagnat


está escrevendo uma História Antiga ou uma História da Europa
moderna, utilizando cenário e personagens da Antiguidade? O
autor se mostra alinhado com uma tendência dos historiadores do
XIX que viam a presença romana no Norte da África como uma
saga épica de colonização e romanização das populações locais. O
resultado dessa saga seria o apagamento das culturas ali existentes,
mediante a dominação militar e instalação da civilização, em
detrimento da dita barbárie dos povos tradicionais. Trata-se de uma
narrativa histórica anacrônica, pois busca espelhar dois contextos
distintos e separados por mais de dois mil anos.
Cagnat apresenta um estilo de escrita organicista, que busca
agrupar evidências dispersas a fim de consolidar uma grande
narrativa explicativa (White, 1992, p. 30). White chama atenção,
para a necessidade desse tipo de historiador de concluir seu relato
com uma explicação de finalidade, consequência ou significado
da história levantada (White, 1992, p. 36). Um exemplo disso é a
conclusão que Cagnat retira de um indício arqueológico encontrado
em antigos cemitérios da Tunísia:
os nomes que encontramos nos cemitérios dessas aldeias são mais
nomes romanos do que nomes indígenas, o que indica claramente a
nacionalidade dos agricultores estabelecidos nesta região. Isso era
verdade em toda a África romana, onde o elemento fenício e líbio
não assimilado foi empurrado para as montanhas pela conquista e
colonização (Cagnat; Saladin, 1894, p. 150).

A partir dessa evidência, Cagnat conclui que toda população


da África Romana era de origem estrangeira, mais especificamente
itálica, devido a um processo de colonização que substituiu os
ocupantes daquelas terras ou retirou deles qualquer traço da cultura
anterior. Para chegar a isso, ele não levanta outras possibilidades,
como: 1) os povos fenícios e líbios talvez não tivessem o costume

25
Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

de marcar seus túmulos com seus nomes, o que fez com que eles
deixassem menos resquícios de memória; ou 2) os povos locais
podem ter adotado nomes romanos devido ao convívio, portanto
os indivíduos enterrados não seriam de origem romana, mas apenas
teriam adotado os nomes por uma série de razões possíveis.
Essas alternativas não poderiam estar na mente de Cagnat,
pois a finalidade de sua narrativa já estava enunciada: reforçar a
tese de conquista e colonização aos moldes modernos, baseados na
repressão dos costumes tradicionais e na aculturação. No século
XIX, esse processo era entendido como romanização das regiões
provinciais. Deste então o conceito passou por uma série de críticas
ao longo das décadas, mas, apesar de suas origens no mínimo
problemáticas, o termo ainda é utilizado, ainda que seu sentido
tenha sido atualizado. Hoje, romanização é entendida muito mais
como uma relação dialógica entre os modelos culturais greco-
romanos e a diversidade cultural das províncias, em um processo
de intercâmbios de símbolos, práticas e crenças que possibilitou
identidades multifacetadas tanto no centro do Império quanto em
sua periferia (Bustamante; Davidson; Mendes, 2005, p. 25).
Certamente que a leitura de autores antigos como Tácito,
Estrabão, Pomponio Mela e outros também induziu a essa percepção
de que a população local era inferior em cultura. (Pomponius Mela,
2001; Tácito, 2015, [libros I-IV]; Estrabón, 2015, [libros XV-
XVII]) Esses autores viam os povos que não viviam em cidades do
modelo greco-romano, e em especial aqueles habitantes nas regiões
interioranas, como bárbaros e hostis. Entretanto, os romanos
nunca alimentaram a ilusão de estarem colonizando a África com a
população da Itália. Pelo contrário, reconheciam a autonomia nas
diversas cidades que já existiam na região, de origem fenícia, dando
a cada uma um grau de cidadania diferente. Grosso modo, havia
as coloniae, que eram cidades de status elevado. Essas poderiam
ser tanto ex novum, ou seja, fundadas do zero à luz de Roma, ou
cidades autóctones refundadas com nome romano após instalarem
o modelo de organização latino. Abaixo dessa estava o municipium,
categoria no qual se inserem as cidades nativas que, em geral,

26
Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

apoiaram os romanos em suas guerras de conquista da região e


diplomaticamente inseridas no Império, porém optando por manter
alguma organização tradicional e recebendo cidadania apenas para
sua elite. Abaixo de todas, as chamadas cidades peregrinas, ou
oppidum stipendiarium, eram as cidades que guerrearam contra os
romanos no passado e, após a dominação, mantiveram suas leis e
costumes locais, porém sem qualquer cidadania romana e pagando
os impostos diretamente à cidade de Roma. (Lima Neto, 2014, p.
56).
Cabe frisar que foram poucas as cidades novas fundadas
por Roma em África, pois foi privilegiada uma estratégia de
concessão de cidadania às cidades já existentes, que gradativamente
se alinhavam à lógica administrativa romana e ao estilo de vida.
Nesse processo, as elites do Norte da África atuavam como agentes
ativos na absorção de alguns elementos culturais romanos, como
maneira de alcançar a cidadania e com isso oportunidades políticas
e econômicas na ampla rede de relações que um Império integrado
oferecia.

Considerações finais
Portanto, as próprias fontes averiguadas por René Cagnat
contradizem suas interpretações. Os autores greco-romanos não
falam em uma colonização em larga escala do Norte da África, e
evidências como os nomes latinos nas tumbas poderiam ter outras
explicações: como uma escolha consciente das elites que nomearam
seus filhos com nomes latinos com vias de se aproximar do poder
imperial. Essa mesma elite, como sabemos, frequentemente enviava
seus herdeiros para estudar em Roma e Atenas, vide os exemplos de
Apuleio e Tertuliano. Desta forma, podemos nos perguntar como
Cagnat e outros acadêmicos chegaram a conclusões tão destoantes
das que temos hoje?
Entre as diversas variáveis possíveis, uma delas é de que
não havia em Cagnat um quadro mental capaz de conceber um
passado diferente do presente. Como alertou Hayden White, a

27
Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

forma literária do texto histórico é desdobramento do próprio


ser do indivíduo, portanto não se trata de uma falta de método,
de documentação ou de erudição, mas sim um problema
epistemológico na forma como os historiadores do XIX viam a
história e seu ofício. Não podemos ignorar que a narrativa de que
os romanos ocuparam a África de habitantes bárbaros, colocaria
os europeus como verdadeiros proprietários daquela terra. Cagnat,
um francês, refere-se a história de Roma como “nossa história”.
Ou seja, a invasão do Norte da África seria uma reconquista de
território anteriormente Europeu, uma continuação de uma
história interrompida durante o medievo. A imaginação histórica
de uma África totalmente romanizada cairia por terra caso se
reconhecesse a permanência das culturas locais e das cidades
fenícias e berberes que ali existiam sob o jugo romano. O mesmo
pode ser dito se fosse aceito que as bases urbanas, econômicas e
religiosas do Norte da África já estavam postas antes do primeiro
romano sequer pôr os pés na região.
Em outras palavras, seja por alinhamento à agenda do
império que financiava suas pesquisas, ou por um protocolo mental
inconsciente, arqueólogos como René Cagnat foram fabricantes e
propagadores da imaginação histórica e de suas próprias fantasias
pessoais acerca da África Romana, que não lhes permitiria ver uma
realidade mais plural, não importa o quanto escavassem as areias do
passado.

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29
Historiografias oitocentistas em análise
Interpretações de Hayden White sobre
Burckhardt e Droysen
Edmo Videira Neto1

Quando citado, o nome de Hayden White desperta polêmica


e reverência dentro dos círculos historiográficos. Isso ocorre devido
não só às inúmeras produções historiográficas de um autor que
permaneceu ativo por mais de 50 anos, mas também por conta de
seu estilo provocativo, que convidava os historiadores ao debate
tirando-os de sua zona de conforto, e por ser aquela pessoa que
Rüsen designou como “o enfrentador crítico dos estudos históricos”
(Rüsen, 2020, p. 97). Sendo assim, quando falamos em Hayden
White precisamos sempre seguir o conselho de Herman Paul e nos
perguntarmos “qual White?” (Paul, 2011, p.7) Devido ao grande
número de temas abordados e obras produzidas, responder esse
questionamento é fundamental para qualquer trabalho que recorte
a obra do historiador norte-americano. Por isso, seguiremos nesse
texto as reflexões deixadas por este autor em suas obras que tratam
sobre as várias historiografias produzidas pelo século XIX, em
especial, suas reflexões contidas em Meta-história.
Mais especificamente, nossa proposta é compreender a forma
com que White interpreta o trabalho de dois historiadores clássicos
do século XIX: Jacob Burckhardt e Johann Gustav Droysen. Enquanto
o primeiro deles recebeu um capítulo específico em Meta-história, o
segundo não teve tal destaque, mas foi analisado pelo norte-americano
em alguns momentos dessa obra e em artigos posteriores. Sendo assim,
1 Doutorando em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro –
UNIRIO. Email. edmo.videira@gmail.com

31
Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

um questionamento central norteia nosso texto: como White concebe


Burckhardt e Droysen como modelos diferentes de historiografias
no século XIX e de que maneira os conceitos de contemplação e
compreensão na obra desses autores podem servir para entendermos
elaborações historiográficas distintas? Esse questionamento se
apresenta para nós porque entendemos que, ao analisar esses
historiadores, White buscava demonstrar que historiografias podem
ser constituídas de diversas maneiras, assim como as implicações
ideológicas e as elaborações de passados produzidas por elas também
serão distintas. Portanto, utilizaremos as ideias de contemplação e
compreensão para perpassarmos pela interpretação que o autor
norte-americano realiza sobre esses clássicos da historiografia.

A contemplação do passado: leituras whiteanas sobre


Jacob Burckhardt
Inicialmente, buscaremos elaborar algumas questões sobre
o pensamento de Burckhardt interpretadas por Hayden White.
Definido pelo autor norte-americano como “o mais talentoso
historiador da segunda metade do século XIX” (White, 2019, p.
254), entendemos que Burckhardt produziu uma historiografia
contemplativa, pois como ele mesmo nos diz em seu livro Reflexões
sobre a história: “a contemplação é um direito, dever e necessidade”
(Burckhardt, 1961, p. 18). Seguindo esta mesma linha de pensamento
ao estudar a obra do historiador suíço, Cássio Fernandes, nos diz
que “a amarga desilusão com o presente tinha provocado [...] o seu
definitivo afastamento de qualquer ligação com a esfera da ação
ou do pensamento político e impulsionava-lhe ao recolhimento
contemplativo” (Fernandes, 2006, p. 6). O que percebermos
aqui é uma elaboração do conhecimento histórico na chave da
contemplação, ou seja, o ofício do historiador estaria diretamente
relacionado com a atividade de contemplar passivamente a
experiência pretérita do tempo.
Sendo assim, entendemos, seguindo as interpretações
de White, que a contemplação se apresenta como um conceito

32
Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

problemático porque retira do trabalho histórico uma instância


que é decisiva para o próprio historiador norte-americano: a ação.
Temos aqui um dos principais elementos de crítica de White à obra
de Burckhardt. Ao se recolher em sua torre de marfim e apenas
contemplar a velha Europa como em um culto às belezas pretéritas,
Burckhardt deixou de lado em seus textos o elemento da ação e
as preocupações com o tempo presente. Por isso White diria que
este historiador “nutria uma repugnância pela sociedade e buscaria
refugiar-se da realidade na experiência artística” (White, 2019, p.
254). Vemos então a emergência de uma historiografia focada no
passado e em seus eventos, que desconsideraria as implicações dos
acontecimentos históricos para a vida dos sujeitos imersos no tempo
presente. E ao analisar esse tipo de interpretação do passado, White
não pouparia críticas, justamente porque essa forma passadista de
se estudar história era algo que sempre despertou as críticas deste
pensador ao longo de sua produção intelectual.
Entretanto, mesmo levando em consideração essa
interpretação que percebe os textos de Burckhardt como moldados
na chave da contemplação, precisamos salientar algumas questões
importantes. Ao analisar os escritos do historiador suíço, White
nos apresenta duas concepções e interpretações diferentes da obra
de Burckhardt, ou seja, os trabalhos desse historiador oitocentista
poderiam ser lidos de duas maneiras distintas. De acordo com
Hayden White, a primeira concepção seria: “exaltadora do feito
de Burckhardt, obscurece as implicações éticas e ideológicas da
posição epistemológica que fornece a Burckhardt a originalidade
de sua concepção de história a autenticidade de sua maneira de
escrevê-la” (White, 2019, p. 245). Percebemos aqui, que uma parte
da tradição de intérpretes burckhardtianos, de acordo com White,
direcionaria suas reflexões apenas para enaltecer os feitos desse
historiador, deixando de lado elementos que eram constituintes de
sua narrativa histórica e que, para White, seriam de fundamental
importância não só na fase da escrita dos textos históricos, mas
também no momento em que outros pensadores interpretassem
esses textos. E aqui, em nossa visão, o que desperta o incômodo de

33
Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

White com essas leituras enaltecedoras de Burckhardt é justamente


uma espécie de exclusão ética e ideológica, ou seja, desconsiderar
o fato de que as narrativas burckhardtianas, assim como qualquer
outro texto, produziriam implicações éticas e ideológicas. Desta
forma, precisamos entender que White sempre se preocupou com
esses elementos e entendia que eles eram constituintes de qualquer
narrativa sobre o passado produzida por historiadores ou não
historiadores. Sendo assim, analisar Burckhardt somente a partir da
visão de seus feitos desconsideraria esse importante e problemático
fator de sua obra, que, para White, era a produção de uma narrativa
histórica irônica com uma implicação ideológica reacionária.
Já a segunda interpretação dos textos de Burckhardt, segundo
White, seria depreciadora pois “obscurece a justificação estética
dos primeiros éticos que corretamente denuncia como prova do
niilismo essencial, do egotismo e da postura ideológica reacionária
de Burckhardt” (White, 2019, p. 245). O que percebemos aqui
é uma outra visão da obra do historiador suíço que consideraria
justamente sua postura ideológica reacionária, algo que faltaria
nas outras interpretações destacadas por White. E este ponto é
bastante problemático porque afeta diretamente o tempo presente
dos sujeitos que consomem esta narrativa, por isso, acreditamos
que essas interpretações sobre Burckhardt foram aquelas que mais
agradaram a White. Não coincidentemente, a leitura que o norte-
americano oferece a respeito deste historiador vai na mesma direção
dos intérpretes que fornecem uma visão mais crítica e até mesmo
depreciativas sobre os problemas éticos e ideológicos dos escritos
do historiador oitocentista. E para justificar seu posicionamento
de leitura burckhardtiana a partir desta ótica, White apresentaria
uma importante citação desse historiador que definiria sua posição
política e ideológica:
a palavra liberdade é sonora e bela, mas não deve falar nela quem
não viu nem viveu o cativeiro instalado pelas massas vociferadoras,
denominadas 'o povo', não viu com os próprios olhos nem suportou
a agitação civil [...] Tenho demasiado conhecimento da história
para saber que não devo esperar do despotismo das massas senão
uma tirania futura, que significará o fim da história. (White, 2019,
p. 246).

34
Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

Nesse momento, concordamos com a interpretação


whiteana que percebe essa passagem como sintomática da posição
ideológica de Burckhardt. Ao tratar a ideia de povo com um
caráter pejorativo e associar as massas a um suposto despotismo,
Burckhardt evidencia em sua narrativa aquele tom reacionário
que White assinalara anteriormente. Portanto, aqui chegamos a
um impasse, ou talvez, a uma ironia de White: ao mesmo tempo
em que o norte-americano considera Burckhardt o historiador
mais talentoso do século XIX, como destacamos anteriormente,
ele também percebe sua narrativa histórica como potencialmente
perigosa em termos éticos. Além disso, vale destacarmos que mesmo
chamando a atenção para essas duas interpretações concorrentes
de Burckhardt, White em seu Meta-história segue deliberadamente
a segunda linha de pensamento, o que muitas vezes parece ser
até mesmo injusto com o historiador suíço e com sua importante
fortuna crítica para os estudos históricos. Entretanto, entendemos
que essa é uma característica de White e, sem dúvidas, a proposta
de sua grande obra. Ao mesmo tempo em que ao longo de toda
sua trajetória intelectual White foi movido pelos impulsos e
desejos éticos, Meta-história também se propõe como um livro que
analisaria as imaginações históricas do século XIX tendo como
um dos elementos de análise justamente as implicações éticas e
ideológicas dessas narrativas.
Após esse pequeno excurso sobre as diversas formas de ver
e interpretar Burckhardt, precisamos agora entender como White
caracteriza o trabalho desse historiador e os usos do passado que ele
produz. Por isso, o que vemos caracterizado pelo norte-americano
no trabalho de Burckhardt é um uso do passado exclusivamente
como curiosidade, enaltecedor de suas belezas e meramente
contemplativo. Nesta visão, a história se assume não enquanto um
conhecimento produtor e construtor da ação presente, mas como
uma ciência que contempla indivíduos e eventos passados. Não
por acaso White diria as seguintes palavras à Ewa Domanska ao
ser perguntado sobre um estudo do passado com a única função de
saber como as coisas aconteceram:

35
Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

se algumas pessoas gostam de estudar o passado como um fim em


si mesmo e simplesmente contemplar imagens belas ou sublimes
de um mundo que costumava ser, está tudo bem para mim. Mas
não finja que tal interesse ou obsessão pessoal tenha qualquer valor
para alguém, exceto para a pessoa que os empreende (Domanska,
2008, p. 13).

Essas palavras de White mantém o autor em sua linha


crítica aos modelos de historiografia como aquele produzido por
Burckhardt. O principal problema não é contemplar e estudar o
passado, mas o que essa atividade pode ou não contribuir para as
ações práticas dos sujeitos no tempo presente, afinal de contas, toda
e qualquer narrativa sobre o passado desperta angústias, sentimentos
e perspectivas não só sobre o passado, mas fundamentalmente, sobre
o tempo presente. E aqui, ao analisar as implicações ideológicas que
narrativas históricas como as de Burckhardt teriam para os seus
leitores, White chegaria à conclusão que tais esforços implicariam
em uma concepção reacionária de mundo, expressa pelos relatos
burckhardtianos vazados na ironia.
E a ironia para White, se constitui como um tropo ao mesmo
tempo importante e perigoso. Importante porque, segundo ele,
uma das tarefas do historiador seria transcender a ironia por meio
da própria ironia, assim como White tenta fazer em Meta-história,
pois de acordo com ele, este seria um livro conscientemente vazado
na ironia (White, 2019, p. 14). E perigoso porque as implicações
ideológicas de um enunciado irônico seriam reacionárias, como
aquele que vemos no caso de Burckhardt. Sobre esse tropo, White
nos diria que “o alvo do enunciado irônico é afirmar tacitamente
a negação do que no nível literal é afirmado positivamente ou o
inverso” (White, 2019, p. 51) e ainda que “a ironia é moldada em
falsidade por força de uma reflexão que usa a máscara da verdade”
(White, 2019, p. 242). Portanto, a ironia representa esse jogo entre a
verdade e a mentira, afirmar e negar e, mais do que isso, a utilização
daquilo que White chama de máscara da verdade, ou seja, afirmar
no nível literal o que é negado em outros níveis. E em Burckhardt,
White conseguiu encontrar um historiador que mobiliza em sua
narrativa esse tropo, pois ele é identificado como um pensador

36
Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

que prefigura o campo histórico a partir do modo de elaboração


de enredo satírico. E a sátira, como bem demonstrado por White, é
um dos modos funcionais da ironia e representa um momento em
que, nas palavras do norte-americano, “o conhecimento histórico se
divorcia em definitivo de qualquer pertinência para os problemas
sociais e culturais de seu próprio tempo e lugar” (White, 2019, p.
244).
Nesse sentido, acreditamos que a utilização da ironia como
tropo dominante nas narrativas burckhartianas implicaria e
produziria em sua historiografia um abandono da ação presente
em nome do recolhimento contemplativo do passado. E essa
atividade afetaria não só as produções e os usos do passado narrado
e historicizado nos textos do historiador suíço, mas também
acarretaria em uma visão de mudo reacionária naquele que lê e
utiliza essas narrativas. Sem dúvidas, essa crítica de White abarca
parte da obra de Burckhardt e, como ele mesmo reconhece,
obscurece diversas realizações desse historiador.

A compreensão histórica: Hayden White interpreta


Johann Gustav Droysen
Ao contrário de Burckhardt, quando White interpreta
a obra do historiador alemão Droysen, o conceito que surge
como destaque é o de compreensão. Este foi um dos principais
temas abordados pelo historiador alemão que provavelmente,
produziu o maior tratado sobre teoria da história do século XIX,
a Historik. Em seu Meta-história, por mais que Droysen não receba
um capítulo específico de análise, White destaca uma importante
passagem do autor alemão, segundo a qual: “não é a objetividade
que é a maior glória do historiador. Sua validez consiste em
procurar compreender” (White, 2019, p. 282). Ao trazer para o
plano principal dos estudos históricos a compreensão, Droysen
se afastaria de muitos de seus contemporâneos que viam como
finalidade última dos estudos históricos a busca pela objetividade
realista do passado. Como este historiador nos demonstra em

37
Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

seu Historik, “a compreensão seria o conhecimento mais perfeito


que é humanamente possível” (Droysen, 1983, p. 34). Portanto, o
que vemos emergir nessa análise de White sobre a historiografia
de Droysen é o conceito de compreensão como balizador da
constituição de narrativas sobre o passado. Compreender seria
essa atividade de buscar no presente os elementos que ainda
nos restam do passado com a intencionalidade de construirmos
a partir deles narrativas sobre aqueles que nos antecederam.
Por isso White nos diria em seu artigo sobre a Historik que “o
objetivo da compreensão histórica é, em última análise, apenas
o aprofundamento da faculdade do próprio entendimento – que
tem origem na práxis da sociedade em geral” (White, 1980, p. 86).
E aqui, fica evidente para nós a importância que a compreensão
teria para White devido a sua relação com a prática e a ação social.
Em nossa visão, ao interpretar os escritos de Droysen e a ideia
de compreensão histórica, o norte-americano percebeu nesse
conceito uma potencialidade de mobiliza-lo não só para analisar
fenômenos históricos, mas fundamentalmente, para se entender
e compreender a experiência presente dos sujeitos e as suas
existências temporais.
Além do conceito de compreensão, acreditamos que outro
ponto importante do espólio intelectual de Droysen tenha chamado
a atenção de White: sua crítica à objetividade histórica. Por mais que
diversas vezes Droysen seja confundido com outros historiadores
alemães, como Ranke, e associado a uma tradição historicista de
objetividade histórica, precisamos entender que essa definição não
serve para esse historiador. Se de fato, Droysen pode ser entendido
como um intelectual pertencente à ideia de historicismo, ele não
pode ser considerado como um realista ingênuo. Primeiramente,
porque como demostra Gunter Scholtz, o conceito de historicismo
é polissêmico e pode assumir significados diferentes em
determinados contextos (Scholtz, 2011) fazendo com que diversas
formas de historicismo possam ser desenvolvidas com a intenção
de compreender as experiências históricas. Portanto, Droysen se
constitui enquanto um historicista crítico da objetividade histórica,

38
Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

diferentemente de vários contemporâneos seus que viam na busca


do passado como ele realmente foi a maior conquista do historiador.
Nesse sentido, podemos destacar uma importante passagem de
Droysen que critica justamente essa visão chapada e objetificada do
passado:
assim, não se trata de confirmar o passado objetivamente ou em
toda a amplitude de seu então presente — isso seria um absurdo,
como querer encontrar o quadrado do círculo —, mas de ampliar
nossa, a princípio, estreita, parcial, obscura. representação do
passado, ampliar nossa compreensão deles, complementá-lo,
corrigi-lo, aumentá-lo, segundo pontos de vista sempre novos
(Droysen, 1983, p. 36).

Aqui, percebemos uma importante crítica do historiador


alemão à ideia de objetividade. Enquanto os historiadores
continuassem buscando encontrar o quadrado no círculo, o
conhecimento histórico não se preocuparia com aquilo que
realmente importa, a saber, a compreensão e a representação
do passado. Por isso, acreditamos que ao olhar para a obra de
Droysen, White encontraria essa potencialidade representacional
que, mesmo no século XIX, já havia sido elaborada por pensadores
como o intelectual alemão. Não por acaso, White reconheceria a
diferença de Droysen para seus contemporâneos ao nos dizer que
“foi porque Droysen percebeu que a reflexão histórica lida com
o plausível e não com o verdadeiro que ele deu tal destaque ao
problema da representação histórica” (White, 1980, p. 82). O que
estaria em jogo na teoria de Droysen não seria o acesso e descrição
da realidade passada, mas sim a compreensão e a representação
desse passado no presente e, especialmente, a partir do presente.
É uma reversão não só da temporalidade privilegiada de estudos
históricos, mas também do objetivo de tal atividade. E este ponto,
sem dúvidas, dialoga diretamente com os anseios e aspirações que
a obra de White oferece para nós, uma vez que o norte-americano
sempre se preocupou com a representação do passado e o papel
que as narrativas históricas teriam nessa representação. Portanto,
acreditamos que ao olhar para Droysen, White percebeu que já no
século XIX existiam pensadores que elaboraram uma outra ideia

39
Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

de história, com preocupações distintas e com um cuidado maior


com o processo de representar fatos e pessoas que não estão mais
presentes ontologicamente.
Ao opor a ideia de contemplação com o conceito de
compreensão a partir da interpretação de White desses dois
historiadores, percebemos o surgimento de uma elaboração
narrativa que leva em consideração as experiências dos sujeitos
no tempo e, mais do que isso, a evidenciação de que o processo de
compreensão histórica só pode ser realizado a partir do presente.
Concordamos aqui com Pedro Caldas quando nos diz que “para
Droysen, a compreensão depende do presente” (Caldas, 2006,
p. 100) e também com Arhur Assis que nos aponta que “toda
história para Droysen é uma história do presente” (Assis, 2014,
p. 51), ou seja, essa temporalidade do historiador em sua vivência
particular é aquilo que condiciona a possibilidade de elaboração
do conhecimento histórico. Essa questão do presente como
produtor de várias histórias é algo bastante caro para White e seus
estudos. Por isso acreditamos que ao interpretar a historiografia
de Droysen, White percebe que já no século XIX existiam outras
possibilidades e alternativas para a constituição do conhecimento
histórico enquanto ciência. Aqui é válido destacarmos que talvez a
operação historiográfica vencedora tenha sido aquela simbolizada
pelo objetivismo de Ranke e a contemplação passiva de Burckhardt.
Contudo, esses não eram os únicos caminhos disponíveis para a
afirmação da cientificidade disciplinar da história.
E o caminho que a historiografia de Droysen possibilita vai na
direção de uma defesa realizada por White ao longo de sua trajetória
intelectual: a centralidade do tempo presente para as interpretações
históricas. Nesse sentido, White nos apresenta uma interessante
análise sobre a importância do presente para Droysen. Segundo
ele: “Droysen sempre insistiu que a melhor historiografia surgiria
das preocupações do historiador com os problemas de sua própria
época” (White, 1980, p. 75), ou seja, não só a tarefa da compreensão,
mas também as preocupações do historiador deveriam levar em
consideração não apenas o passado encerrado, mas sim, as angústias

40
Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

e questionamentos do tempo presente do historiador. Vemos aqui


um uso do passado que transcende a contemplação e passa a pensar
na importância desse passado para a vida presente dos sujeitos. Por
isso acreditamos que ao ler a obra de Droysen, White percebeu uma
série de pontos que ele próprio abordaria ao longo de sua carreira.
Nesse momento, vale destacarmos que as produções de
Droysen também teriam implicações ideológicas e White as
consideraria como implicações burguesas. Como um típico burguês
alemão do século XIX, mesmo se preocupando com o presente e a
compreensão do passado, Droysen não conseguiria escapar em sua
historiografia de seus próprios ideais políticos. Por isso White diria
que “a Historik de Droysen fornece nada menos do que um relato dos
princípios teóricos da ideologia burguesa em seu estágio nacional
industrial” (White, 1987, p. 105) se transformando assim em uma
narrativa com finalidades eminentemente burguesas.2
E vazando suas narrativas a partir de uma ideologia burguesa,
Droysen não abandonaria os pressupostos éticos que são inerentes
aos textos históricos. Como ele próprio nos diz: “de maneira análoga,
pode-se dizer que a ética é a lei da história, a ordem ética do mundo,
o domínio e a conformação dos poderes éticos” (Droysen, 1986, p.
73). Percebemos então, que mesmo um historicista tipicamente
burguês ainda no século XIX reconhecia esse domínio ético da
historiografia. Mas aqui, é importante ressaltarmos que a ética
de Droysen não é a mesma ética que White pontuou ao longo de
seus trabalhos. Se para o norte-americano a ética sempre esteve
associada à ideologia e aos dilemas e conflitos políticos, em Droysen
o elemento ético assume uma relação direta com o tradicional
2 Aqui, cabe ressaltarmos que, no contexto de Droysen, burguesia não se refere a
um projeto econômico burguês. A ideia de Droysen enquanto um burguês está muito
mais relacionada com a burguesia culta alemã que concebe o indivíduo não enquanto um
sujeito econômico emancipado do mundo, mas sim, como alguém passível do processo
de formação proporcionado pela Bildung. Sobre esta questão da intelectualidade e dos
mandarins alemães, ver: RINGER, Fritz. O Declínio dos Mandarins Alemães: A Comunidade
Acadêmica Alemã, 1890 – 1933. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000.
A respeito do conceito de burgueses e sua especificidade alemã, ver: KOSELLECK,
Reinhart. Três mundos civis?/ Três mundos burgueses? Sobre a semântica comparativa
da sociedade civil/burguesa na Alemanha, na Inglaterra e na França. In: KOSELLECK,
Reinhardt. História de conceitos: estudos sobre a semântica e a pragmática da linguagem
política e social. Contraponto, Rio de Janeiro, 2020.

41
Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

conceito germânico de Bildung. Segundo Koselleck, “poder-se-ia


definir a Bildung como o campo de força reflexivo e comunicativo
que impõe a integração entre todos os bens da vida e das artes e
todos os estoques de conhecimento” (Koselleck, 2020, p. 148). Sem
dúvidas, ao nos referirmos a esse conceito, estamos falando da
formação do sujeito, ou seja, das diversas instâncias compartilhadas
pelos indivíduos ao longo de suas vidas que o proporcionaram um
amadurecimento das faculdades intelectuais e culturais. E não
coincidentemente, a Bildung possui uma relação intrínseca com
a burguesia, uma vez que “entre os historiadores sociais existe
o consenso geral, mesmo que vago, de que a Bildung moderna se
impôs justamente com aquela formação que podemos chamar de
burguesia” (Koselleck, 2020, p. 148). Portanto, essa ética burguesa
de Droysen que chamamos atenção está diretamente relacionada ao
ideal da Bildung, da formação, do cultivo e da posição do indivíduo
perante o mundo que habita.
Não pretendemos aqui associar White a essa tradição
tipicamente alemã da Bildung, uma vez que ele possui uma outra
formação cultural e intelectual que também abarca esse conceito,
mas não se restringe a ele. Contudo, não podemos deixar de
apontar as proximidades entre as reflexões whiteanas e esse caráter
de formação ética oferecido pela Bildung. Sobre este assunto, em
uma entrevista concedida à Ewa Domanska, White nos diria que
“o único valor real que a história tem como campo de estudo é
seu papel na edificação dos jovens – o que nossos colegas alemães
chamam de Bildung” (Domanska, 2008, p. 14). O que percebemos
aqui é não só a familiaridade de White com esse conceito que foi
extensamente abordado por Droysen, mas também a importância
que o norte-americano dedica a ele. Se o único valor da história
enquanto conhecimento científico é a edificação dos sujeitos, nada
mais justo do que esse processo respeitar os ritos e as potencialidades
éticas ofertadas pelo conceito de Bildung. Portanto, chegamos a um
ponto de convergência entre White e Droysen. Por mais que suas
concepções de ética fossem distintas, não podemos deixar de notar
a convergência da reflexão de ambos no que se refere à utilidade

42
Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

formativa dos estudos históricos e, mais do que isso, na importância


que essa formação acarretaria para a vida e a experiência dos sujeitos
no tempo presente.

Considerações Finais
Proferir palavras definitivas sobre qualquer terma que envolva
a obra de Hayden White seria uma tarefa não só presunçosa, mas
também praticamente impossível. Entretanto, faz-se necessário
apontarmos algumas questões com o intuito de finalizarmos nosso
texto. Sendo assim, é importante destacarmos que a abordagem
proposta por nós que buscou analisar as interpretações de White
sobre Burckhardt e Droysen foi apenas uma das diversas leituras
possíveis de White a respeito desses historiadores. O ponto central
que gostaríamos de salientar nessa conclusão é que, ao olhar para o
século XIX, tanto em seu Meta-história quanto em artigos posteriores,
White buscava projetos concorrentes para perceber como os
pensadores desse período entendiam o conhecimento histórico e
como essa disciplina deveria se constituir cientificamente na visão
deles. Por isso a diversidade de leituras e autores escolhidos pelo
norte-americano.
Acreditamos que para o projeto empreendido por White nos
anos posteriores à publicação de Meta-história, uma historiografia
focada na compreensão, como aquela elaborada e defendida por
Droysen faria mais sentido em suas aspirações, suas ideias de
representação e seu contínuo compromisso ético/político com
narrativas históricas e sujeitos que as experienciam. Portanto,
colocar em oposição os conceitos de contemplação e compreensão
também serve para entendermos que as elaborações narrativas
sobre o passado podem e devem ser distintas, a depender é claro,
da perspectiva utilizada por aquele que escreve sobre o passado.
Além disso, a questão que se apresenta não se refere somente à
elaboração ou à forma com que essas narrativas foram moldadas e
representadas, mas fundamentalmente, às implicações éticas para
o tempo presente que estes historiadores fundamentaram a partir

43
Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

de seus textos. O ponto central para White, seu compromisso de


vida e obra, é justamente perceber os modos, ou tropos, em que
determinados textos são vazados, bem como as funcionalidades
políticas e ideológicas que os mesmos emprestam para o tempo
presente. O que está em jogo não é definir qual narrativa histórica
produzida pelo século XIX é mais científica, realista ou objetiva do
que outra, mas sim, qual tipo de historiografia é mais responsável
com o presente e com a construção de futuros imagináveis. Realizar
essa tarefa é imprescindível para que possamos construir ideias
de passado que levem em consideração o tempo presente dos
sujeitos que as recebem, bem como os dilemas, conflitos e angústias
experienciados por cada um deles. Escolher o passado, como diria
White, é também escolher um presente e um futuro.

Referências bibliográficas
ASSIS, Arthur Alfaix. What is history for? Johan Gustav Droysen and
the functions of historiography. Berghahn books, 2014.
BURCKHARDT, Jacob. Reflexões sobre a história. Rio de Janeiro:
Zahar, 1961, p. 18.
CALDAS, Pedro Spinola Pereira. A atualidade de Johann Gustav
Droysen: uma pequena história de seu esquecimento e de suas
interpretações. Locus: Revista de História, v. 12, n. 1, 2006.
DOMANSKA, Ewa. A conversation with Hayden White. Rethinking
History, v. 12, n. 1, p. 3-21, 2008.
DROYSEN, Johann Gustav. Histórica: Lecciones sobre la
Enciclopedia y metodología de la historia. Barcelona: Editorial Alfa,
1983.
FERNANDES, Cássio da Silva. Jacob Burckhardt e a preparação
para a cultura do Renascimento na Itália. Fênix – Revista de História
e Estudos Culturais, v. 3, n. 3, 2006.
KOSELLECK, Reinhardt. História de conceitos: estudos sobre a
semântica e a pragmática da linguagem política e social. Rio de
Janeiro: Contraponto, 2020.

44
Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

PAUL, Herman. Hayden White: the historical imagination. Nova


York: Polity, 2011.
RINGER, Fritz. O Declínio dos Mandarins Alemães: A Comunidade
Acadêmica Alemã, 1890 – 1933. São Paulo: Editora da Universidade
de São Paulo, 2000.
RÜSEN, Jörn. A turning point in theory of history: the place of
Hayden White in the history of metahistory. History and Theory, v.
59, n. 1, 2020.
SCHOLTZ, Gunter. O problema do historicismo e as ciências do
espírito no século XX. Traduzido por Pedro Spinola Pereira Caldas.
História da historiografia, Ouro Preto, n. 6, mar. 2011.
WHITE, Hayden. Droysen’s Historik: Historical Writing as a
Bourgeois Science. In: WHITE, Hayden. The Content of the form:
narrative discourse and historical representation. Baltimore: Johns
Hopkins University Press, 1987.
WHITE, Hayden. Meta-História: a imaginação histórica do século
XIX. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2019.
WHITE, Hayden. Reviewed Work: Historik by Johann Gustav
Droysen. History and Theory, v. 19, n. 1, p. 73-93, 1980.

45
A construção da memória de si e
reflexões sobre gênero em A Verdade
Nua, De Luz Del Fuego
Gabriela Loureiro Barcelos1

Reflexões sobre o fazer historiográfico


Para pensarmos a construção da memória, em suas múltiplas
possibilidades, bem como seus usos na construção da narrativa
histórica, deve-se levar em conta a intencionalidade e linguagem
utilizada para mobilizar e (re)construir fatos, personagens e
acontecimentos. Ao transitarmos rumo ao passado, seja ele
mais próximo ou mais distante, estamos presos a nossa própria
temporalidade. De modo teórico, historiadores compreendem essa
colocação ainda em seus anos iniciais de formação, já à prática se
constitui um esforço constante, pois é atravessado não apenas pelas
epistemologias ou abordagens possíveis à construção narrativa, mas
também pela nossa própria subjetividade e identidade. Isso quer
dizer que, nossas experiências pessoais, nosso lugar social, nossa
relação com o outro, nossa posição em relação ao mundo, está sempre
ali, por mais que desejamos adotar a chamada “imparcialidade”, ela
se ausenta em diversos momentos do fazer historiográfico. É preciso
ser capturado, afetado para desejarmos pesquisar, compreender,
investigar algo ou alguém na História.
1 Professora – SEDU/ES. Doutoranda em História pelo Programa de Pós-Graduação
em História (PPHR) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), na linha
de pesquisa Relações de Poder, Linguagens e História Intelectual. Licenciada e Mestra
em História pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). O título da pesquisa
que desenvolve é “Corpo e Nudez: Uma leitura de gênero sobre Luz Del Fuego através de
seus escritos e da imprensa carioca (1950 – 1967)”, sob orientação da Profa. Dra. Maria da
Glória de Oliveira. E-mail de contato: gloureirobarcelos@gmail.com

47
Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

Em nosso momento e espaço atual, encontramos debates


plurais, seja na Academia ou em Redes Sociais, que apresentam cada
uma a seu modo, debates que discutem questões como: o Século
XXI, a América Latina, o Brasil, o Neoliberalismo, as Pluralidades
Identitárias, as Narrativas Dissidentes etc. Mobilizo esses debates,
com a finalidade de apontar para a contemporaneidade das
interpelações de Hayden White quanto à produção historiográfica.
Em Meta-História (1992), publicada pela primeira vez na
década de 1970 e publicada no Brasil na década de 1990, Hayden
White considera a linguagem como determinante à construção da
História. Contudo, ao caracterizar o discurso histórico como uma
possibilidade interpretativa e a produção historiográfica sendo um
produto da narrativa, notadamente, fora recebido negativamente
pelos círculos historiográficos.
White utilizou de prerrogativas sólidas sobre o que se
entendia sobre conhecimento histórico, e apresentou que o discurso
histórico, antes de ser entendido como um conhecimento específico,
deve ser compreendido como uma estrutura de linguagem. Afinal,
o historiador, em seu fazer, produz interpretações dos vestígios
do passado. Essas interpretações, por serem únicas, assumem
numerosas formas, pois “onde não há narrativa, não existe discurso
distintivamente histórico” (White, 1991, p. 2).
É através dessa posição assumidamente narrativa da História,
que apresento minhas interpelações sobre a construção da memória
de Luz del Fuego. Minha posição narrativa e minha relação com
meu objeto de pesquisas abraçam a linguagem, não é uma escolha
casual, escrever em primeira pessoa e utilizar pronomes possessivos,
é uma escolha consciente, um lembrete de que a História se faz a
partir de pluralidades narrativas.

Os atravessamentos do gênero na construção da


memória
Luz del Fuego foi desarquivada da memória capixaba, em um
esforço de grupos diversos: Estado, coletivos, produtores culturais.

48
Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

A expressão “desarquivada” foi uma tentativa de trocadilho para


o meu próprio encontro com a personagem e agora, objeto de
pesquisa. Em 2017, o APEES sediou a exposição “Cem anos de
Luz”, apresentando a trajetória da artista Luz del Fuego, compondo
uma mesa de abertura que visava discutir a contribuição de Luz del
Fuego para o naturalismo e o feminismo no Brasil.
Mesmo realizando uma pesquisa na área da história
política, entrar em contato com essa exposição me impactou
de diversas formas. Como mulher, pesquisadora e feminista,
não havia presenciado uma exposição sobre uma mulher neste
espaço, mesmo frequentando-o desde 2013. Não estou negando
a existência de fontes sobre e de mulheres neste espaço, afinal
ele se constrói como um reduto de memória, riquíssimo em
textos, imagens, jornais, cartas e arquivos privados doados.
Todos catalogados, guardados, esperando uma consulta. Aponto
para a ausência de sujeitos que constituem parte de grupos
historicamente silenciados: mulheres, negros, indígenas, PCD’s
e LGBTQUIAP+.
Se a memória de sujeitos do passado que se encaixam nesses
grupos é construída de modo efêmero, como podemos utilizar esses
espaços para consultar pessoas, movimentos ou feitos que nunca
ouvimos falar? Faço essa pergunta pois, o Arquivo sempre foi um
espaço fundamental para minha formação acadêmica, por isso, uma
extensão do meu cotidiano, quase familiar. Isso pode ser uma das
justificativas para o meu impacto com a exposição, o que pensava
ser mais um dia de consulta as fontes, foi o encontro e a celebração
de uma mulher. A exposição proporcionou um mergulho na arte,
corpo e memória de Luz del Fuego.
A lei da Assmann compreende ausência de sujeitos femininos
nestes espaços de memória, como sistêmica. A autora compartilha
do entendimento da teoria feminista de que o senso comum
percebe a “grandeza”, como uma caraterística feita por homens e
para homens. Em outras palavras, a grandiosidade de um feito ou
de um sujeito que deve ser celebrado e lembrado, está ligada ao
seu gênero. A autora utiliza de uma reflexão feita pelo poeta Gray,

49
Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

no século XVIII, de que a fama não estava ao alcance de pobres e


marginais, para deslocar essa observação para atualidade e afirmar
que
hoje chama nossa atenção o fato de que a luz da fama nunca ou
quase nunca brilha sobre as mulheres. Não importa como se
chamem [...] nos anais da história a fama nunca rima com mulher.
Em todas as camadas sociais a mulher constitui o pano de fundo
sobre o qual a fama masculina se ergue, luzente. Enquanto as
condições para a inclusão na memória cultural forem a grandeza e
a canonização clássica, as mulheres serão sistematicamente vítimas
do esquecimento cultural: trata-se de um caso clássico de amnésia
estrutural (Assmann, 2011, p. 66-67).

A intencionalidade do resgate da memória da artista me


atravessou. Naquele momento, parte da minha subjetividade, da
construção da minha memória individual, passou a ser associada
à exposição e por consequência, a Luz del Fuego. Tomei como
verdade aquilo que ouvi, me encantei pela personagem e alguns
anos depois, decidi compreender os múltiplos atravessamentos do
resgate de memória sobre e da artista. Julgo relevante, apresentar
algumas fotografias da artista apresentadas na exposição, para
compreendermos a potência fotográfica, tanto na mobilização
da memória da artista pelo arquivo, quanto na produção de sua
memória de si.

Imagem 1: Fotografias de Luz del Fuego mobilizados pelo APEES. Fonte: A Verdade Nua,
1948.

As imagens utilizadas na exposição são encontradas em uma


pesquisa rápida no Google, embora elas também estejam disponíveis
nos raros exemplares de sua autobiografia A verdade Nua. Em um
olhar imediato, já reconhecemos a nudez, a feminilidade, docilidade

50
Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

e até mesmo, ingenuidade, quando observamos o jogo entre corpo,


quadros e composição fotográfica.
Podemos pensar que por se tratar da década de 1950,
apresentar-se e celebrar-se nua, fosse algo disruptivo, parte do “lado
B” do cenário cultural do Sudeste. Não era bem isso. Luz tinha
manchetes em jornais de grande circulação, como o Globo, matérias
compostas por fotografias sensuais e seminuas em folhetins como O
Cruzeiro. Ao relacionar a memória escrita por Luz del Fuego com
aquela que me foi apresentada, me fez refletir sobre como o gênero
atravessar a construção da memória).
Sylvia Paletschek (2008) observa a influência mútua entre
gênero e memória, reconhecendo que o gênero também é um
produto da memória cultural. As práticas e performances de
gênero são constantemente deslocadas do passado para o presente
e reintegradas à memória coletiva. As memórias também são
influenciadas pelo gênero. Portanto, a performance de gênero e a
memória são condicionadas social e culturalmente.

A Verdade Nua e a reivindicação da memória de si


Aleida Assmann (2011) e Jan Assmann (2016) abordam a
memória cultural como uma instituição que vai além de palavras
e gestos construídos. Ela se manifesta e é armazenada em formas
simbólicas que se solidificam, permitindo sua transferência de uma
situação para outra e de uma geração para a próxima. Para os autores,
a construção da memória humana ocorre por meio de interações
dinâmicas, não se limitando apenas entre indivíduos, mas também
entre “coisas” externas, como objetos, lugares, paisagens, sons, entre
outros.
Para este artigo, selecionei uma dessas “coisas” para refletirmos
acerca da produção da memória: a autobiografia A Verdade Nua.
Com um olhar penetrante, uma composição fotográfica que destaca
seu rosto sério ou confrontante, a primeira nudez apresentada em
sua obra é a de seu olhar.

51
Imagem 2: Composição fotográfica da primeira página da obra. Fonte: A Verdade Nua,
1948.

Seguido de uma epígrafe provocativa, como o fragmento a seguir


“Sou considerada pelos ignorantes, claro, como leviana, exibicionista
e criatura imoralíssima. [...] Justamente porque faço tudo o que tenho
em mente, realizo as coisas que mais desejo, ponho em prática as
teorias que julgo acertadas, é que me censuram. Tiro da vida o que ela
pode dar de bom, de agradável e útil” (Del Fuego, 1948).
Penso nos motivos que a artista teve para se dedicar a
construir não apenas um livro autobiográfico, mas também um
documentário A Nativa Solitária. Não encontro uma resposta exata,
mas podemos apontar para uma disputa de narrativas do outro e
de si mesmo. Fato é, Luz del Fuego entrou no jogo de construção
de sua memória pública. Essa disputa aberta, é evidenciada em
sua epígrafe. Encontramos o outro representado pelo externo - a
imprensa, e aqueles que consumiam sua arte e o que era dito sobre
ela. Luz tinha consciência de que a circulação dessas opiniões
moldava o imaginário de sua persona pública. Este fragmento
também apresenta, mesmo que parcialmente, sua compreensão de
si, através da consciência e defesa de que ser uma mulher que exalta
a sua vontade – seja na nudez, na arte, política ou na construção de
seu discurso – pode provocar diversas reações.

52
O relato e a exposição de si como exercício de
reconhecimento
Para melhor compreendermos essa disputa de narrativas
para a construção da memória, é preciso um exercício imaginativo,
visualizando a memória a partir de sua mobilização, flexível,
apreendida por diferentes agentes, em diferentes espaços,
despertando reações diversas. Jan Assmann (2016) discute essas
operações da memória em três níveis -individual, social e cultural
–, é a operação da memória dentro desses níveis que nos permite
capacitar à uma formação de consciência de identidade, pessoal ou
coletiva.
A obra de Luz del Fuego saiu em uma tiragem pequena,
não tem páginas ou sumário. A escrita não seguiu o modelo
autobiográfico clássico. Luz não relata sua infância, adolescência
ou juventude. A artista escreve como um manifesto, uma defesa
de opinião. Para isso, ela distribui suas reflexões em seções, com
títulos que se relacionam aos temas discutidos. Luz utiliza as
seções de sua obra - ao Sol, o Espírito, as Serpentes, Religião, ou os
Bailados- para divagar sobre vários assuntos e dentro de cada um
deles, encontramos justificativas, explicações e reflexões sobre a sua
personalidade e sobre o seu mundo.
A partir disso, entendo que a construção de um relato de
si em A Verdade Nua, se constituiu como uma reinvindicação de
identidade, reconhecimento, a partir do espaço e tempo, onde
encontramos normas sociais que atravessam os sujeitos. Ao relatar a
si mesma, a artista realiza um movimento individual a fim de causar
algum impacta ao outro que fala sobre ela, pois
ao falar com o outro, e a pedido do outro, sobre como vivemos,
estamos respondendo a um pedido e tentando estabelecer ou
restabelecer determinado vínculo, honrar o fato de que fomos
interpelados desde outro lugar. [...] Fazer um relato si, portanto,
é um tipo de exposição de si, uma exposição com o propósito de
testar se o relato parece correto, se é compreensível pelo outro,
que o ‘recebe’ por meio de um conjunto de normas (Butler, 2019,
p. 165-166).

53
Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

Assim, Luz del Fuego foi impulsionada pelo desejo de


apresentar-se, não apenas artisticamente, mas narrativamente.
É com a narrativa que a artista encontra o impulsionamento à
autonomia e ao reconhecimento de si. Butler compreende que a
autonomia e o autorreconhecimento são construídos a partir dos
sentidos que se atribui aos corpos e como nos encontramos nestes
sentidos.
A primeira seção de sua obra – O Espírito – se inicia com
uma apresentação espontânea de suas inspirações para a construção
de suas opiniões, afirmando “faço cabedal favorito de minhas
divagações os autores que descrevem as heroínas envoltas em espesso
manto de sensualismo”. Em seguida Luz cita nomes de autores que
segundo ela, constroem essas “heroínas”. Darwin, Schopenhauer,
Shakespeare, Platão, Einstein e outros.
Destaco essas menções, não para contestar se Luz del
Fuego realizou essas leituras ou mesmo, como ela pode encontrar
a descrição de heroínas vestidas em um manto de sensualismo
nas obras desses autores. Mas sim, para destacar esse movimento
como uma ação de legitimidade intelectual. Ao citá-los, Luz
apresenta o que seriam suas reflexões pela leitura, como a
partir disso pode refletir sobre questões subjetivas ou mesmo
universais. O fragmento “com Poincaré e Einsteins, consigo por
instantes compreender a quadratura do círculo, em resolução, e
vejo nitidamente o universo curvo enroscado como uma cobra
comendo a própria cauda” é um dos exemplos que podemos
mobilizar para compreender essa ação.
Nestes pequenos fragmentos de sua autobiografia, é possível
compreender, como sugere Butler (2019) que o “si-mesmo” da
artista se formou dentro de um conjunto de normas sociais que
questionam a possibilidade de ter uma boa vida dentro de uma má,
já que às convenções sociais e a própria construção de moralidade se
apresenta em percepções maniqueístas. É através disso que se abre a
possibilidade de reinvenção do outro com outro e de si com o outro,
que possibilitam meios e mecanismos discursivos participativos à
recriação dos condicionantes sociais.

54
Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

Dar um relato de si tem um preço não só porque o ‘eu’ que apresento


não pode apresentar muitas condições de sua própria formação,
mas também porque o ‘eu’ que se entrega à narração não pode
abranger muitas dimensões de si mesmo: os parâmetros sociais
de interpelação, as normas pelas quais o ‘eu’ torna-se inteligível,
as dimensões não narráveis ou até indizíveis do inconsciente que
persistem como estranheza facilitadora no cerne do meu desejo
(Butler, 2019, p. 170).

O que se percebe com a escrita de A Verdade Nua é que Luz


não quer se reduzida a uma artista reconhecida pela nudez, mas
sim como alguém que acessa o conhecimento e que, por isso, pode
justificar suas ações e apresentar suas percepções de mundo. A
presença da feminilidade em sua obra, se dá como uma alegoria da
inspiração. Nenhuma escritora ou artista é mencionada pela artista.
Essa ausência não parece incomodar a bailarina, ao mesmo tempo, o
fato de as artes plásticas pintarem nus femininos em maior número
do que nus masculinos, é algo exaltado pela artista.
Não poderá existir mais grata contemplação para os olhos humanos
do que o de um nu feminino irrepreensível. Digo feminino pela
simples razão, hoje, perfeitamente admitida pela generalidade
dos estudiosos do assunto, de que o nu machego ou macharrão é
desagradável aos estetas. Também a situação dos genitais no gênero
humano predispões ao sentimento negativo ao puro esteta, em que
não influam os germes, de libido desenfreado. Aliás, é de notar-se
a ínfima qualidade de nus masculinos frente a infinita maioria de
obras d’Arte, escultura, pintura, desenho, gravura e coreografia –
existentes nos teatros de todos os tempos, nos museus e galerias de
todos os continentes (Del Fuego, 1948).

Por mais que Luz tivesse ousado e construído novas formas de


bailados e de interpretação cênica, ao lermos alguns fragmentos de
sua obra aqui mobilizados, as frases de efeito da imprensa capixaba
em relação à exposição, voltam à tona. Seria Luz del Fuego uma
feminista? Uma mulher a frente de seu tempo?
A minha memória sobre Luz, partiu do afeto despertado pela
exposição do APEES. Mesmo sendo uma historiadora, que sempre
repetiu como um mantra “somos aquilo que nosso tempo e espaço
permitem ser”, confesso que, em meu íntimo, em um movimento
de ingenuidade quase infantil, esperava que as afirmativas da
imprensa e da exposição fossem uma verdade. Mesmo em sua recusa

55
Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

ao casamento por se tratar de um ideal burguês ou pela sua defesa


de uma liberdade sexual, experienciada em seus relacionamentos
e em suas declarações acerca da sensualidade feminina como uma
possibilidade de liberdade, Luz ainda é uma mulher de seu tempo.
Ler A Verdade Nua é compreender, como sugere Butler em Relatar
a si mesmo: crítica da violência ética (2019), ao observar que quando o
sujeito narra a si mesmo, mobiliza uma responsabilidade que dialoga
com as condições sociais em que o sujeito está inscrito. Falar de si é
sobretudo evidenciar um processo de formação da subjetividade, em
que o sujeito não tem consciência do que é formado puramente por ele
(se é que isso é possível) ou pela sociedade que o moldou.
Para compreender essa relação da subjetividade e as
convenções sociais, novamente mobilizo Judith Butler em sua
obra mais conhecida Problemas de gênero: feminismos e subversão da
identidade (2016). Pois as dinâmicas e normas sociais que se lançam
sobre os corpos, são construídas a partir da diferenciação. Limitar-
se ao sexo, que não é um constructo exclusivamente biológico, mas
discursivo, é exclui a potência de ação do gênero.
O uso da categoria de gênero, neste sentido, possibilita a
construção da narrativa histórica pelo potencial de ação política,
pois instiga a reflexões sobre como os sujeitos lançam mecanismos
que possibilitam relativa subversão às normas. É com esse exercício
que os sujeitos encontram espaços, dentro das próprias convenções
sociais, que permitem as formas de existência singulares, em um
esforço de produtivo para novas formas.
Sobre essa possibilidade do gênero em Butler, Safatle (Safatle,
2019, p. 174-175) aponta que o gênero não deve ser entendido
como uma teoria de produção de identidades, mas sim, como uma
astuta teoria que possibilita a compreensão de que, através do
reconhecimento de algo no interior da vivência da sexualidade,
que não se submete integralmente às normas e identidades, há a
descoberta que ter um gênero é uma maneira de ser despossuído, ao
abrir o desejo para aquilo que desfaz nossas apreensões de si a partir
da relação com o outro.

56
Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

A sociabilidade particular que pertence à vida corporal, à vida


sexual e ao ato de tornar-se um gênero (que é sempre, em certo
sentido, tornar-se gênero para outros) estabelece um campo de
enredamento ético com outros e um sentido de desorientação para
a primeira pessoa, para a perspectiva do Eu. Como corpos, nós
somos sempre algo mais, e algo outro, do que nós mesmo.

Devemos olhar para a construção do imaginário de Luz


del Fuego, problematizando a categoria mulher e como a ideia
de “ser mulher” se relaciona com a produção de identidade e,
consequentemente, com a idealização do ser. É preciso esclarecer que
ao discutirmos o gênero, reconhecemos que as convenções sociais se
formam a partir de uma estrutura binária, à qual são direcionados
esforços discursivos que consolidam a naturalização do discurso
sobre os corpos e seus usos. E isso se dá de modo imperativo, dentro
de regimes de poder que convergem de opressões masculinas e
heterossexista.
Em outras palavras, Butler (2019) pretende compreender
como o conceito de gênero produz uma identidade que passa a
ser reconhecida pelo meio como algo ontológico, como se fosse
anterior à relação social, natural ao ser. Butler (2019) se distancia
dessa naturalização do ser, para isso ela se apoia na articulação sobre
os atos performativos dos sujeitos, que incorporam as exigências
normativas ancoradas na ideia de gênero.
O gênero é a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos
repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente
rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de
uma substância, de uma classe natural de ser (Butler, 2019, p. 69).

Ao utilizar dessa reflexão sobre o gênero direcionada a


construção de um relato de si em Luz del Fuego, deixa claro que a
artista apresenta em sua narrativa um conflito discursivo quanto às
normas sociais. Temos a materialização do imaginário coletivo da
época do que se entendia como mulher, através da associação entre o
sexo biológico e a experiência da identidade, ao apresentar expressões
e condutas que estão de acordo com a heteronormatividade.,
ao utilizar dos padrões de gênero ao exaltar sua feminilidade em
apresentações e até mesmo em sua nudez, quando afirma que

57
Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

não poderá existir mais grata contemplação para os olhos humanos


do que o de um nu feminino irrepreensível. Digo feminino pela
simples razão [...] de que o nu machego ou macharrão é desagradável
aos estetas (Fuego, 1948, p. 36).

Nessa passagem, Luz confronta os padrões binários de corpos,


em sua compreensão, o nu masculino – machego ou macharrão –
não é belo, não é confortável. A plenitude da nudez se encontra no
nu feminino, para justificar sua posição, ela evoca as obras de arte
“aliás, é de notar-se a ínfima quantidade de nús masculino frente
a infinita maioria de obras d’Arte, escultura, pintura, desenho,
gravura e coreografia [...] femininas” (Fuego, 1948, p. 36).
Ao mesmo tempo, Luz não se submete, em totalidade, às
normas sociais. Isso pode ser percebido em sua relação com o seu
corpo através da nudez. Neste caso, a nudez é entendida como uma
experiência com a natureza, tanto do ambiente quanto do próprio
sujeito. Experienciar a nudez é abraçar aos desejos: “Penso como
Oscar Wilde, a melhor maneira de escaparmos ao martírio de uma
tentação, é nos lançarmos nela!” (Fuego, 1948, p.39). Ao fazer essa
afirmativa, a artista recusa ao que é esperado por uma mulher e
abraça características esperadas do masculino. A recusa aos padrões
e desejos socialmente construídos para o gênero feminino, se destaca
com a posição de Luz sobre o casamento:
As ideias sôbre a falsa educação, sôbre o nudismo e suas ligações
com o problema sexual, foram sempre motivo de minhas
constantes cogitações e estudos. Apesar de ser uma menina aluna
de colégio religioso, estava constantemente a matutar nas coações
a que submetem a nós mulheres no que concerne ao casamento.
E assim desde criança eu tinha em mente não me casar e seguir
uma livre carreira em que eu pudesse exibir meus conhecimentos e
gestos artísticos (Fuego, 1948, p. 40).

A artista resgata uma memória infantil, para justificar que a


construção de suas interpretações se iniciou ainda na infância. Ao
realizar este resgate, Luz opera na produção de uma linguagem, aqui
entendida na construção dos atos, quando se apresenta nua e através
da publicação de suas opiniões. Sua nudez não se trata apenas de
uma exibição ou manifestação artística do seu corpo, ela também é
política, logo uma ideia, defendida na obra A Verdade Nua (1948).

58
Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

Podemos interpretar os usos conscientes do corpo pela artista, como


um mecanismo que reflete o poder através da ação da artista, que
lança sua nudez como manifestação de poder, que é um movimento,
visto que “o poder não é algo que se adquira, arrebate ou compartilhe,
o poder é algo que se exerce” (Foucault, 2019, p. 90).
Para a artista, a nudez transforma as possibilidades
performativas, em sua vida artística e pessoal. Os usos sobre o seu
corpo nu, é percebido como parte de um mecanismo de ação de sua
vontade, de seu poder. A plena consciência do corpo como ação em
Luz Del Fuego, nos desperta para o entendimento de Butler (2016)
de que o corpo constitui a materialidade desse sujeito reflexivo. A
nudez de Luz Del Fuego não opera, unicamente, de forma artística
ou erótica, mas também emancipatória. Ao utilizarmos a concepção
de gênero como performance, em nossa interpretação sobre as
ações de Luz Del Fuego, percebemos que o corpo atua como um
campo atravessado por múltiplas ações e poderes, que partem,
não apenas, da artista como sujeito, mas de todos os encontros,
sujeições e interpretações socialmente construídas. É a partir desses
atravessamentos, que Luz Del Fuego constrói o seu modo de agir e
as justificativas sobre o que pensa de si.
A construção desses significados – ação e “eu” - são
produzidos e marcados pela ideia de gênero e o corpo materializa
a transformação e adequação exigidas por essa ideia. É importante
salientar que, mesmo que Luz Del Fuego, por vezes, confronte
as ideias de gênero socialmente construídas, ela não foge delas,
mas as ressignifica. A artista não pretende questionar o que é
feminino, ou questionar a existência de padrões de feminilidade,
mas ela quer incorporar aquilo que ela considera como correto,
em sua vivência de mulher, como aceitável dentro dos padrões
normatizados.

Considerações Finais
A obra de Luz del Fuego é uma materialização escrita da busca
pelo reconhecimento e este processo, que constitui pelo olhar do

59
Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

Outro, que reconhece ao mesmo tempo que retira os sentidos de si


em ações, comportamentos, fazeres. É através desse distanciamento
de si pelo Outro, que sentidos e a própria subjetividade é
questionada. A Verdade Nua é um dos resultados desse deslocamento,
ao (re)construir a narrativa de si, Luz questiona o a realidade que
organizou a seu próprio modo.
As interpretações de Luz Del Fuego publicadas em sua obra
A Verdade Nua (1948), apesar de negar algumas performances
destinadas ao seu gênero, como por exemplo o casamento, não
pretendem subverter ou se levantar contra as performances de
subjetivação, mas ampliar os seus padrões, buscando tornar aceito
as suas concepções, configurando novas formas de sentir e fazer das
práticas naturalizadas aos gêneros.
Ao utilizarmos a categoria de gênero, percebemos que,
tanto a imprensa quanto a publicação das visões de Luz Del Fuego,
se configuram em espaços tensionados em que se constroem
o gênero. Essa construção possui forças e pesos diferentes, ao
mesmo tempo em que utilizam a escrita e publicação como
uma tecnologia que possibilite a circulação das performances
de subjetivação que lhes são consideradas corretas e aceitáveis.
A imprensa busca reforçar as normas e padrões normatizados,
enquanto Luz Del Fuego busca ampliar o leque de performances
destinadas ao gênero.

Referências Bibliográficas
ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação: formas e transformações
da memória cultura. Tradução: Paulo Soethe. Campinas: Editora da
Unicamp, 2011.
ASSMANN, J. Memória comunicativa e memória cultural. História
Oral, v. 19, n. 1, 2016, p. 115–128.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismos e subversão da
identidade. 11 ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2016.
BUTLER, Judith. Atos Performáticos e a formação dos gêneros: um

60
Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

ensaio sobre fenomenologia e a teoria feminista. In: HOLLANDA,


Heloisa Buarque (org). Pensamento feminista: conceitos fundamentais.
Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019.
BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: Crítica da violência ética. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2019.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber.
Rio de Janeiro: Edições Graal, 2019.
FUEGO, Luz Del. A Verdade Nua. Rio de Janeiro. [editor
desconhecido], 1948, [s. p.].
PALETSCHEK, Sylvia; SCHRAUT, Sylvia. Introduction: Gender
and memory culture in Europe. In: PALETSCHEK, Sylvia;
SCHRAUT, Sylvia. The Gender of Memory: Cultures of remembrance
in Nineteenth- and Twenticth- Century Europe. Frankfurt:
Campus, 2008.
SAFATLE, Vladimir. Dos problemas de gênero a uma teoria da
despossessão necessária: ética, política e reconhecimento em Judith
Butler. In: BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: Crítica da violência
ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.
WHITE, Hayden. Teoria literária e escrita da história. Estudos
históricos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 13, 1991.
WHITE, Hayden. Meta-História: A imaginação histórica do século
XIX. São Paulo: Editora da USP, 1992.

61
Os “Entre-Lugares” na história
intelectual das mulheres iranianas
Júlia Carolina de Amorim Benfica1

No discurso político iraniano, secular ou religioso, as mulheres


eram vistas como o futuro da nação devido a sua importância
biológica, na educação das crianças, como responsáveis por
transmitir a cultura e participantes do contexto nacional. Todos os
três Estados que assumiram a política no Irã após 1925 como fim
da dinastia Qajar, ou seja, Reza Pahlavi (1925-1941), Mohammad
Reza Pahlavi (1942-1979) e o imam Khomeini a partir de 1979,
tentaram conectar a participação social e familiar das mulheres aos
seus programas nacionais de desenvolvimento (Yeganah, 1993, p.
4).
O século XX representou um processo de reivindicações
e políticas públicas que incentivaram a participação feminina.
Na parte educacional, a Universidade do Teerã, inaugurada em
1936, foi a primeira do país a admitir homens e mulheres. Em
1963, as mulheres adquiriram o direito ao voto e de se elegeram ao
parlamento iraniano. O Family Protect Law, conjunto de leis voltadas
as questões familiares, a partir de 1975 estabeleceu o direito de
mulheres se divorciarem, de solicitarem a custódia de seus filhos,
e a idade mínima de casamento para meninas passou de 13 para os
18 anos. No ano de 1978, no auge dos conflitos entre a população
e o Estado, 22 mulheres pertenciam a Majlis, parlamento iraniano.
A pesquisadora iraniana Haleh Esfandiari (2010) especifica que,
1 Doutoranda em História pelo Programa de Pós-Graduação
em História da UFRRJ, Mestre em História pelo Programa de Pós-
Graduação em História da UFOP e Licenciada em História pela UFES.
Contato: juliabemfica@gmail.com

63
Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

em 1978, 333 mulheres eram candidatas para câmaras municipais,


1/3 dos estudantes universitários eram mulheres, e dois milhões de
mulheres entre os quase 36 milhões de habitantes do Irã neste ano,
representavam a força de trabalho do país.
As medidas autoritárias de Mohammad Reza Pahlavi entre
1963 até 1978, somadas à exploração estrangeira de matéria prima
iraniana, principalmente o petróleo, e à expansão da cultura
ocidental nos meios urbanos em contraste com o contexto agrário
e de pobreza em que grande parte da população iraniana vivia,
alimentou a insatisfação popular, que por meio de revoltas entre
1978 e 1979, demandava o fim do regime do xá. Todavia, para
intelectuais iranianas como Haleh Esfandiari e a ex-ministra em
Relações das Mulheres, Mahnaz Afkhami, a participação feminina
na Revolução era devido a uma expectativa de melhora que o regime
teocrático não cumpriu.

Mulheres na política iraniana


Na perspectiva de Mahnaz Afkhami (2002), também ex-
secretária da organização governamental Women’s Organization
of Iran (WOI), durante a década de sessenta e setenta havia sido
feito um trabalho de conscientização das mulheres, treinamentos
profissionais, centros onde elas pudessem aprender a ler ou até
mesmo deixar seus filhos para trabalharem. Houve uma mobilização
política feminina para que elas participassem ativamente, mas para
a ex-ministra, não foi dito mobilizá-las para que. Desta forma,
abriu-se um espaço para que grupos de fundamentalistas religiosos
pudessem utilizar da maior presença pública feminina para produzir
um tipo de discurso religioso, como argumentos que convencessem
grupos de mulheres de que a revolução representaria liberdade e
igualdade.
O pesquisador iraniano Ali Akbar Mahdi (2004) expõe o
surgimento de organizações de mulheres muçulmanas como a
Women’s Society of Islamic Revolution e a Muslim Women’s Movement,
que entre outras, foram organizações que apoiavam a Revolução de

64
Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

1979 a partir de um cunho religioso. Mahdi salienta que com a saída


de Mohammad Reza Pahlavi e a figura do Aiatolá Khomeini como
líder supremo da República Islâmica, direitos das mulheres foram
revogados.
O Family Protect Law2 foi abolido, revogando as leis sobre
casamento, custódia, poligamia e idade mínima de casamento
para meninas. Mulheres foram barradas de 69 campos de estudos
nas universidades, foram banidas de profissões como juízas,
foram proibidas de participar de esportes, entre outros. Segundo
Haleh Esfandiari, em 1981 o parlamento aprovou a Islamic Law of
Retribution, que introduziu práticas como flagelação, apedrejamento
e as mulheres deveriam pagar com sangue por crimes como adultério
e contra o código de vestimenta islâmico (Esfandiari, 2010).
De acordo com Haleh Esfandiari (2010), politicamente, as
mulheres mantiveram o direito ao voto e de serem eleitas para o
parlamento, no quesito trabalhista, foram impulsionadas pelo Estado
a ocupar cargos como professoras e enfermeiras, por reforçarem o
seu papel enquanto mães e esposas. Logo após a Revolução, políticas
da nova teocracia foram rígidas em relação as mulheres: de acordo
com o código de vestimenta islâmico, mostrar mesmo que um
pouco do cabelo se tornou punível, e a penalidade podia ser até de
70 chibatadas. No período entre 1980 e 1988, o regime também
tentou segregar mulheres e homens nos espaços públicos, o que não
foi uma medida bem-sucedida. A guerra entre Irã e Iraque durante
esses anos, levou os homens aos campos de batalha e estimulou
novamente o status feminino.

Os “Entre-Lugares” da participação feminina no Irã


À primeira vista, a Revolução de 1979 parece ter sido um
marcador social entre o que, até então, era entendido como um

2 Em 1967, o Irã adotou uma série de leis progressistas em relação a família, o Family
Protect Act. Em 1975, o documento foi expandido e concedeu mais direitos às mulheres,
chamando-se, a partir de então, Family Protect Law. Após a Revolução Iraniana de 1979,
ele foi anulado e a sharia foi reintroduzida como parâmetro legislativo para questões
familiares e relacionadas às mulheres.

65
Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

processo de modernização do Irã e, com o regime de Khomeini,


representou um retrocesso nos direitos das mulheres. Porém, um
aspecto importante do processo político contemporâneo do Irã é o
fato de que o país não chegou a ser diretamente colonizado por países
estrangeiros. Há registros de concessões para Rússia e Grã-Bretanha
a partir de meados do século XIX, e a grande exploração norte-
americana durante o regime Pahlavi. Mas, ainda assim, estamos
falando de um país de história e culturas milenares, o processo de
modernização e as concepções são singulares neste contexto, ainda
que países próximos, como Egito e Turquia, também estivessem
tentando se estabelecer como nações modernas.
Esses pontos são importantes de serem ressaltados, pois
incidem no processo revolucionário iraniano e sinalizam que, uma
análise da história intelectual do país, não poderá partir de uma
perspectiva pós-colonial, ainda que ela tenha influência nas análises.
Por esta razão, o conceito de entre-lugares de Homi Bhabha (2013)
foi escolhido para falar sobre a história intelectual das mulheres
iranianas. Ao pensarmos em entre-lugares, conseguiremos observar
que a Revolução de 1979 não foi uma linha fixa que dividiu a
sociedade iraniana entre moderna e retrógrada.
Defendo a ideia de entre-lugares pois, primeiro, é um trabalho
que dá continuidade ao que Edward Said (Said, 2007) fez em
Orientalismo, pensando nas relações entre Oriente e Ocidente, e no
tipo de sociedade descrita pelos europeus. Como o autor aponta, o
conceito de Orientalismo advém da compreensão do empreendimento
cultural, francês e britânico, durante o Imperialismo. Por um lado,
uma descrição que partia de uma tentativa de hegemonia cultural, o
que Said retoma e sublinha como “o Oriente não é um fato inerte da
natureza”, essa compreensão é uma produção tanto quanto a noção
de Ocidente (Said, 2007, p. 31). Por outro lado, trata-se de uma
narrativa que só foi possível devido a esse processo do Imperialismo
que produziu uma articulação entre as diferentes culturas.
Tais lugares, regiões, setores geográficos, como o 'Oriente' e
o 'Ocidente', são criados pelo homem. Assim, tanto quanto o
próprio Ocidente, o Oriente é uma ideia que tem uma história

66
Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

e uma tradição de pensamento, um imaginário e um vocabulário


que lhe deram realidade e presença no e para o Ocidente. As duas
entidades geográficas, portanto, sustentam e, em certa medida,
refletem uma à outra (Said, 2007, p. 31).

Em segundo lugar, aponto a leitura de Edward Said (Said,


2007) porque, pensar a questão dos “entre-lugares” é considerar,
não apenas as relações de poder que prevaleceram entre os países
colonizados na Ásia e África nos séculos XVIII e XIX, mas também as
relações de centro-periferia com regiões que não foram diretamente
colonizadas, ainda que tenham tido forte influência europeia neste
período, como é o caso do Irã.
O terceiro ponto sobre o conceito de entre-lugares como
uma categoria de análise, é a questão da identidade dos sujeitos
no mundo moderno. Ir além das “narrativas de subjetividades
originárias e iniciais” e, passar a focar em momentos e processos
que “são produzidos na articulação de diferenças culturais”, auxilia
na expansão do olhar para o estudo de outras comunidades, como
sugere Homi Bhabha (Bhabha, 2013, p. 20).
De maneira prática, utilizando o exemplo iraniano, uma
pesquisa sobre as mulheres iranianas precisa estar atenta a dois
pontos possivelmente improdutivos em uma análise historiográfica.
Primeiro: o imaginário que opera desde a Revolução de 1979 de que
as mulheres ocupam um lugar de submissão na sociedade iraniana.
Segundo: um ponto de vista que tenta pensar gênero no Irã a partir
da lógica americana ou europeia de feminismo, que utiliza os
conceitos liberdade e emancipação de maneira que não cabem no Irã.
E não cabem, inclusive, por diversos motivos. Muitas vezes,
recai sobre as mulheres do Irã a responsabilidade total de lutar
por seus direitos a “liberdade”, mas sem considerar a militarização
de setores como a Guarda Revolucionária, a função expressiva
da Polícia da Moralidade na fiscalização do comportamento dos
iranianos, e o fato de se tratar de um regime teocrático com práticas
autoritárias.
Além disso, como acontece em muitos outros locais, o
conceito de liberdade e emancipação costuma ser pensado em

67
Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

termos jurídicos, como o fortalecimento de direitos políticos,


civis e sociais, mas esquece-se de considerar que a história persa
tem mais de dois mil anos, com dinastias, monarcas, zoroastrismo,
cristianismo e islã convivendo no mesmo espaço. Trata-se de um
país que representa uma forte liderança para outros países da região
justamente pela posição anti-ocidental que adotou desde 1979. E,
não menos importante, muitas vezes não se considera as vontades
individuais de diferentes grupos de mulheres que compartilham de
outras concepções de liberdade.
Por mais que não tenha sido colonizado diretamente, os
regimes iranianos do século XX abriram espaço para a exploração
estrangeira, usufruiu deste capital, fez parte de um contexto de
desenvolvimento do capitalismo mundial e, portanto, recebeu
influências culturais de um tipo de modernização nos moldes
europeus e norte-americanos. Ainda assim, trata-se de uma região
singular, os persas não são árabes, e nem todo iraniano é muçulmano.
Desta forma, é importante pensar que esta análise da historiografia
das mulheres iranianas as coloca como concomitantemente
responsáveis pelas transformações do país. Isso é necessário para
pensar como as identidades dos grupos de mulheres no Irã são
produzidas nestes processos de articulação das diferenças culturais,
como sinaliza Bhabha (Bhabha, 2013).
Em suma, nem submissas, muito menos dependente da salvação
das mulheres de outros países. É nesta articulação que surgem
grupos de mulheres do partido comunista, grupos guerrilheiros na
Revolução Constitucional de 1905, grupos de feministas, grupos de
mulheres muçulmanas, grupos de mulheres muçulmanas feministas.
Sendo assim, as ações imperialistas no Irã não refletem uma análise
pós-colonial, mas uma análise anti-ocidental, de maneira geral.

Mulheres iranianas: entre modernização e tradição


Ainda que as medidas adotadas pelo Estado iraniano após
Revolução de 1979 se apresentem como prejudiciais para as
mulheres, é importante ressaltar quais são as referidas mulheres.

68
Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

Interessante notar que por parte do regime teocrático, as mulheres


receberam reconhecimento e sua importância foi reforçada, porém
de outra maneira.
A mulher, enquanto unidade da sociedade, não será mais
considerada como uma 'coisa' ou uma 'ferramenta' para o
consumismo e exploração. Na recuperação da importância de seus
deveres e respeitoso papel de mães que sustentam os indivíduos
que pertencem à corrente de pensamento, como pioneiras junto
aos homens, como guerreiras nos campos de batalha da vida, o
resultado será seu acolhimento de uma responsabilidade ainda
maior. Na concepção do Islã, ela vai assumir princípios elevados e
beneficência (Irã [Constituição], 1989, p. 14).

O trecho acima está presente na introdução da Constituição


da República Islâmica do Irã, estabelecida em 1979 e atualizada em
1989. A percepção de que a mulher na sociedade iraniana não será
mais considerada como coisa ou uma ferramenta para o consumismo
e exploração, advém dos embates entre clérigos e o regime do xá
Mohammad Reza Pahlavi.
Parte desse confronto se apoiava na perspectiva do intelectual
iraniano Ahmad Fardid (Fardid, 1984, p. 13), pois ao apresentar
o conceito de gharbzadagiem¸ ocidentoxização, o autor demonstra
contradições fundamentais entre a estrutura tradicional da
sociedade iraniana que, na relação com o ocidente, caminhava rumo
a colonização, a uma subordinação à Europa e à América. O termo
foi incorporado por aiatolás críticos ao regime Pahlavi durante a
Revolução de 1979. A ocidentoxização era algo que precisava ser
combatido, incluindo as perspectivas sobre algumas mulheres na
sociedade, que se vestiam e portavam como os ocidentais.
Pelo discurso religioso islâmico no Irã, que enxerga as
influências estrangeiras como algo tóxico, e por reforçarem o papel
das mulheres enquanto esposas e mães, permanece no imaginário
coletivo a concepção de submissão das mulheres iranianas ao Estado.
Todavia, como coloca Bhabha, “os embates de fronteira acerca da
diferença cultural têm tanta possibilidade de serem consensuais
quanto conflituosos” e, por essa razão, “podem confundir nossas
definições de tradição e modernidade”. Observar as fronteiras

69
Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

nas relações entre Ocidente e Oriente é visualizar uma ponte na


qual os sujeitos estão realinhando as fronteiras entre o público e o
privado, “o alto e o baixo, assim como desafiar as expectativas de
desenvolvimento e progresso” (Bhabha, 2013, p. 21).
O argumento de que as mulheres não serão usadas como
“ferramenta para consumismo e exploração” podem adquirir dois
significados diferentes: por um lado, a propaganda do regime Pahlavi
que usava o desenvolvimento urbano como sinal de modernização
e, por outro ponto de vista, o regime teocrático que instituiu o uso
do cobrimento dos cabelos como um sinal de diferenciação aos
costumes ocidentais. O que diferencia essas concepções enquanto
modernas ou não é a forma como as temporalidades incidem sobre
nossas percepções de tradição no passado.
Desde o século XIX, o Irã estava constante em contato com
a Grã-Bretanha e Rússia a partir das concessões realizadas entre
os países. A partir de 1925, com Reza Pahlavi, houve um foco
maior em promover a modernização do país de maneira rápida.
Entretanto, essa modernização era superficial, a intenção era
sobrepor instituições modernas a velhas estruturas agrárias. Nesse
período, noventa por centro da população vivia da agricultura,
e foram ignorados em prol de orçamentos que beneficiavam os
exércitos, continuava dando privilégio aos ricos, crescia o número
de empresas estrangeiras no país enquanto a educação continuava
sendo privilégio para poucos (Armstrong, 2009, p. 192).
De acordo com Karen Armstrong (Armstrong, 2009), essa
pequena elite ocidentalizada, de classe média e alta, era quem se
beneficiava do programa de modernização. Por exemplo, o traje
ocidental se tornou obrigatório para todos os homens (exceto para
os ulemás, pois tinham seu status clerical reconhecido) assim como
a proibição do uso do chador passou a valer a partir de 1936. Ainda
segundo Armstrong,
os soldados arrancavam o véu das mulheres com a baioneta e o
rasgavam na rua. Reza queria que o Irã parecesse moderno, apesar
do conservadorismo subjacente, e não media esforços para alcançar
seu objetivo. (Armstrong, 2009, p. 193).

70
Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

Já na perspectiva da pesquisadora iraniana Nahid Yeganeh


(1993), longe de retornar a um islã tradicional, a Revolução Iraniana
de 1979 representou um momento histórico de duas maneiras:
primeiro, a partir da revisão das demandas políticas durante o
século XX no Irã; segundo, devido a especificidade histórica em
criar novas alianças entre o nacionalismo e o islã, que se tornou
o pilar das políticas de gênero na República Islâmica. Segundo a
autora, a nova Constituição do país criou um ideal de mulher em
oposição a mulher ocidental e aos seus valores sobre o que é ser
mulher.
Yeganeh (Yeganeh, 1993, p. 7) aponta para um fortalecimento
do controle dos homens sobre as mulheres na família ao mesmo
tempo em que garantiu as mulheres o direito de se manterem
ativamente participantes na sociedade. Assim como apontado
anteriormente, houve uma valorização da mulher enquanto mãe,
esposa e concedeu a elas o papel de exercerem seus instintos naturais
na vida social.
Essa concepção pode ser percebida também no trabalho
de Haleh Afshar (Afshar, 1998). A pesquisadora iraniana aborda
questões sobre a vida pública e privada das mulheres, como por
exemplo a partir do trabalho Fatna al Sabbah, que ao escrever nos
anos de 1980, revoga seu direito de reescrever sua herança enquanto
mulher em uma sociedade muçulmana. Afshar (Afshar, 1998, p. 6)
relata que, durante o século XX, houve um processo de desconstrução
e reconstrução dos discursos islâmicos, devido a experiência
feminina nas sociedades do Oriente Médio. Isso acontece, pois, um
grande número de mulheres intelectuais desafiara as interpretações
majoritariamente masculinas nas instituições religiosas e sobre sua
fé.
Esse processo de inserção de mulheres nesse campo
interpretativo tem como precedente as influências ocidentais no Irã
durante o século XX, pois foi um período em que escolas foram criadas
e que a participação era incentivada. Porém, apesar de representar
essa importância, as iranianas consideram que assim como ao final
do século XX havia diversas discussões sobre feminismo, também

71
Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

havia muitos islãs, no sentido de existirem muitas interpretações


possíveis das escrituras. O processo de construção da jurisprudência
islâmica foi majoritariamente masculino, porém as mulheres
passaram a reforçar que não havia nada no Corão que as impedisse
de também participar (Afshar, 1998, p. 6).
Neste sentido, a importância de pensar as fronteiras descritas
por Homi Bhabha, quais são os pontos em que uma noção de
modernização e tradição se encontram nesse diálogo entre Ocidente
e Oriente? Será que ocorre nas diferenças aparentes entre a forma
como um regime mais moderno utiliza-se da participação feminina
como propaganda e o regime teocrático reforça o papel de mães e
esposas? Ou será que é a reivindicação feminina nos espaços religiosos
que demonstra um processo de emancipação das mulheres?

Considerações Finais
Ao utilizar o conceito de “entre-lugares”, Bhabha salienta que
quando o imaginário da distância espacial é usado como argumento
para definir duas comunidades diferentes, esquece-se de pensar nos
hibridismos incidem sobre um internacionalismo histórico. Ao
longo do século XX, pode-se perceber o surgimento de escolas, de
organizações que focavam no desenvolvimento de mulheres no Irã,
influenciadas muitas vezes pela presença estrangeira no país.
O imaginário da distância espacial [...] dá relevo a diferenças
sociais, temporais, que interrompem nossa noção conspiratória
da contemporaneidade cultural. O presente não pode mais ser
encarado simplesmente como uma ruptura ou um vínculo com o
passado e o futuro (Bhabha, 2013, p. 23).

Repensando as nuanças que os hibridismos culturais têm na


história, podemos perceber como, mesmo após a Revolução de 1979,
não foi possível eliminar toda e qualquer influência Ocidental, por
mais que o Estado teocrático tenha tentado fazer isso através das
políticas públicas de controle social.
As meninas continuaram frequentando às escolas, aos poucos
retomaram postos de trabalho e cursos universitários dos quais

72
Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

tinham sido banidas, passaram a ter presença no esporte. Pensar o


trabalho fronteiriço na história intelectual de mulheres iranianas é a
possibilidade de pensar uma tradução cultural que retoma o passado,
observando-o como algo eventual à modernidade, descontínuo ou
até mesmo em desacordo com ela. Ainda assim, esse “entre-lugar”
que pode ser acidental/inesperado/imprevisto é capaz de inovar e
interromper a atuação do presente, de forma que, a relação entre
o passado e o presente, não é nostálgica, mas fundamental para
entender a vida e a forma como os hibridismos culturais operam
nas relações sociais históricas.

Referências Bibliográficas
AFKHAMI, Mahnaz. The women’s organization of Iran:
Evolutionary politics and revolutionary change. Foundation for
Iranian Studies. Bathesda, p. [s. n.], 2002. Disponível em: https://fis-
iran.org/article/an-introduction-to-the-womens-organization-of-
iran/. Acesso em: 23 jul. 2023
AFSHAR, Haleh. Islam and feminisms: an Iranian case-study. New
York: Palgrave, 1998.
AHMAD, Jalal Al-i [et. al.] Occidentosis: a plague from the West.
Berkeley:Mizan Press,1984.
ARMSTRONG, Karen. Em nome de Deus: o fundamentalismo no
judaísmo, no cristianismo e no islaminismo. São Paulo: Companhia
das Letras, 2009.
BHABHA. Homi K. O Local da Cultura. 2. ed. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2013.
ESFANDIARI, Haleh. The women’s movement. The Iran primer:
power, politics, and US policy. 2010, [s. n.]. Disponível em: https://
iranprimer.usip.org/resource/womens-movement. Acesso em: 23
jul. 2023.
MAHDI, Ali Akbar. The Iranian women’s movement: A century
long struggle. The Muslim World, New York, n. 4, v. 94, p. 434, 2004.
IRÃ [Constituição]. The Constitution of the Islamic Republic of Iran.

73
Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

Islamic Propagtion Organization: Teerã, 1989, p. 14.


YEGANAH, Nahid. Women, Nationalism and Islam in
Contemporary Political Discourse in Iran. Feminis Review, n. 44,
1993.

74
A melancolia como expressão da
experiência moderna em Blissful Agony
de Amylton de Almeida (1972)
Kelly Alves Andrade

Quais as possíveis relações entre a melancolia e a modernidade


na literatura? Como expressão da condição do artista, para o
poeta francês Yves Bonnefoy (2014) ela é o espinho na carne da
condição moderna refletida nas culturas do Ocidente, mas, antes
da constituição de uma definição moderna, a melancolia tem sua
origem etimológica no grego antigo, mediante a fusão entre melanos
(negro) e kholé (bílis), designando um estado de adoecimento do
fígado, cuja bílis enegrecida indicava irritabilidade e mal-estar
(Konder, 1999). Em seguida, a melankholia, consoante a medicina
romana, seguia traduzindo a predominância da bílis negra no
corpo, um estado que afetava desde o cérebro até a circulação
sanguínea, provocando calores insuportáveis, que apenas com a
drenagem do líquido enegrecido acabariam, conforme expõe Luiz
Costa Lima na obra Melancolia: Literatura (Costa Lima, 2017, p. 18).
Durante o Renascimento, a partir da redescoberta da Problemata1,
Masílio Ficino redefine o significado da melancolia em sua obra
De Triplici Vita (1489). Com base no Problema XXX, I, que unia a
noção platônica do delírio como indicador de talento na arte da
criação, algo também proposto por Aristóteles para interpretação
racional entre genialidade, loucura e melancolia, Marsílio Ficino

1 Na obra Melancolia: Literatura, Luiz Costa Lima explica que editores recentes
atribuem a escrita da Problemata à Teofrasto, sucessor de Aristóteles na escola peripatética.
Devido a divergências sobre a autoria, Costa Lima considera a hipótese de que a obra pode
ter sido escrita por diferentes autores (Costa Lima, 2017, p. 22).

75
Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

acrescentou às contribuições dos filósofos gregos, noções de


astrologia como uma explicação dialética entre a harmonia dos
atos humanos em sua capacidade criativa, unindo a dimensão
médica, filosófica e astrológica à sua explicação da melancolia.
No início do século XVI, tais dimensões foram assimiladas por
Albrecht Dürer na composição da gravura alegórica Melencolia
I “cuja bílis negra em estado de combustão conjugava-se com
facilidade com a tonalidade sombria no centro da gravura” (Costa
Lima, 2017, p. 22-35).
A gravura de Dürer influenciaria o pensamento moderno
de Walter Benjamin que incorporou a representação artística na
construção do seu método de trabalho nas Passagens (2006). Na
obra de Benjamin, a melancolia indicada por um retângulo preto
dividido por uma linha roxa, seria uma alusão direta à Melencolia
I de Dürer. Walter Benjamin estabelecia a imagem como alegoria
da condição do artista nos tempos modernos, cuja gravura exercia
diversos direcionamentos nas siglas2 que compõem as Passagens
(1982). Na Constelação I, o tédio, representado por um ponto preto,
seria a forma urbana da melancolia e teria ligação com a pintura de
1849 do francês Gustave Coubert, que imortalizou um momento de
trabalho do amigo e poeta Charles Baudelaire. A gravura Melencolia
I e a pintura de Baudelaire criada por Gustave Coubert, serviriam
de inspiração para a sigla da concentração na obra de Benjamin,
sinalizada com um ponto preto “que figura o tédio em forma de
Angústia, e finca sua bandeira preta no crânio do poeta como na
última estrofe do poema Spleen em As flores do mal” (Bolle, 2019, p.
63-65).

2 Em seu livro sobre o drama barroco alemão, Benjamin oferece uma visão do gênero
e da época através de sua interpretação dessa gravura [...] Na folha de Dürer pode-se
descobrir todo um repertório de formas que Benjamin utilizou em suas siglas: pontos
como os que representam o olhar da Melancolia ou o traçado do instrumento que ela segura
nas mãos e que pode servir ao mesmo tempo para escrever, desenhar e medir: servir, em
suma, à criação; linhas como as da perspectiva ou as que se cruzam na ampulheta como
representação do tempo, ou ainda as linhas onduladas configurando o corpo do cão que
dorme e sonha ou do demônio nefasto flutuando na atmosfera; planos como o círculo que
representa a esfera, emblema da concentração; o quadrado mágico e o enquadramento
da cidade no fundo; ou enfim; no centro, o enigmático emblema da pedra, com sua
combinação de triângulos (Bolle, 2019, p. 49).

76
Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

Na lírica baudelariana, a melancolia seria expressão da


contemplação solitária da haussmannização no Segundo Império
na capital parisiense. Jean Starobinski (Starobinski, 2014, p.
15) chama atenção para deslocamentos lexicais indicativos do
melancólico na poesia de Baudelaire, como o termo inglês spleen,
originário do grego splên ou baço, órgão do sistema linfático
afetado pela bílis negra (melancolia). O spleen no título dos poemas,
alegoriza a melancolia como sintoma da subjetividade do homem
desenraizado que sobrevive ao tédio na Paris moderna do século
XIX. Este desenraizamento como perda da identidade com o espaço,
para Walter Benjamin, aparece nas Passagens (2006) na seção notas
e materiais do compilado de fragmentos E- Haussmannização, lutas
e barricadas através do fragmento [E 3a, 6] que consiste em uma
citação de Dubech e D’Espezel na obra Histoire de Paris (1926), no
qual os autores caracterizam a experiência da metropolização e
sua falta de reconhecimento pelos habitantes da capital francesa:
Paris deixou, para sempre, de ser um conglomerado de pequenas
cidades tendo sua fisionomia, sua vida; onde se nascia, onde se
morria, onde se gostava de viver, que não se pensava em abandonar;
onde a natureza e a história tinham colaborado para realizar a
variedade na unidade. A centralização, a megalomania criaram
uma cidade artificial onde o parisiense, traço essencial, não se sente
mais em casa. Assim, desde que pode, ele vai embora e eis uma
nova necessidade, a mania da vilegiatura. Inversamente, na cidade
desertada por seus habitantes, o estrangeiro chega com data fixa: é
a ‘estação’. O parisiense, na cidade transformada em encruzilhada
cosmopolita, sente-se desenraizado (Dubech; D’espezel, 1926, p.
427-428 apud Benjamin, 2006, p. 169).

Antigo e moderno estariam ligados à ruína na poesia de


Baudelaire. São um emblema da modernidade, afinal, a completa
destruição de bairros e ruas medievais deram lugar às grandes
avenidas modernas, passagens cobertas, e bulevares – símbolos
da reurbanização. Desta forma, as ruínas do passado confundiam-
se com os imponentes edifícios do presente, expondo a relação
corrosiva do tempo, expressos em verso no poema O Cisne (Le
Cygne) na seção Quadros parisienses de As flores do mal: “Paris
muda! Mas nada na minha melancolia mudou! /Novos palácios,
andaimes, lajedos/Velhos subúrbios, tudo em mim é alegoria/ E

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Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

essas lembranças pesam mais do que rochedos” (Baudelaire, 2011,


p. 483).
Le Cygne de Baudelaire encarna a rememoração, superposição
temporal no presente marcado pelo sentimento de perda do
transeunte ao atravessar a praça da nova cidade, oprimido pelas
imagens melancólicas de um tempo anterior em oposição ao ritmo
acelerado das novidades. Através da melancolia ou spleen, o poeta
expõe a realidade transitória do presente em meio às ruínas do que
um dia foi novidade, desta relação, emerge sua crítica alegórica da
modernidade (Starobinski, 2014; Gagnebin, 2009).
A sobrevivência do citadino nos poemas baudelarianos
influenciou o pensamento de Walter Benjamin que, ao escrever
sobre o declínio da experiência (Erfahrung), sublinha estar fadada
a uma repetição paralisante do passado nos tempos modernos. Em
seu pensamento, o presente deveria agir na construção de uma
nova experiência, liberta e questionadora do passado reincidente.
Entre as exigências desta nova experiência estaria a necessidade de
implodir essas imagens naturalizadas, de decifrá-las. A partir desta
reflexão, o projeto filosófico benjaminiano busca um novo conceito
de experiência (Erfahrung) considerando a dimensão da linguagem,
escrita, e vivência (Erlebnis) essenciais na construção conceitual
de sua análise crítica da modernidade. Sobre a articulação entre
experiência e vivência, Katia Muricy, explica:
a experiência (Erfahrung) é relacionada à memória individual
e coletiva, ao inconsciente e à tradição. A vivência (Erlebnis)
relaciona-se à existência privada, à solidão, à percepção
consciente. Nas sociedades modernas, o declínio da experiência
corresponde a uma intensificação da vivência. A experiência
se torna definitivamente problemática e a sua possibilidade
depende de uma construção vinculada à escrita (Muricy, 1998,
p. 184).

A estes conceitos, insere-se o de nova barbárie: a destruição


para construção do novo desvinculado da tradição. Em termos
culturais, a tradição dissipou-se no alvorecer do século XX e a I
Guerra Mundial (1914-1918) teria extinguido a capacidade de
narrar a experiência, inaugurando a ruptura do homem moderno

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Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

com o passado e aceitação de sua pobreza, conforme expõe o ensaio


de 1933, Experiência e pobreza:
A horrível mixórdia de estilos e concepções do mundo do século
passado mostrou-nos com tanta clareza aonde esses valores
culturais podem nos conduzir, quando a experiência nos é
subtraída, hipócrita ou sorrateiramente, que é hoje em dia uma
prova de honradez confessar nossa pobreza. Sim, é preferível
confessar que essa pobreza de experiência não é mais privada, mas
de toda a humanidade. Surge assim uma nova barbárie (Benjamin,
1985, p. 105).

A guerra que emudeceu os homens a partir de 1918, marca o


momento de declínio de uma experiência comunicável, conforme
expõe Benjamin no ensaio O narrador (1936). O romance, gênero
literário moderno, surge como produto destas transformações, no
qual o romancista torna-se um indivíduo isolado, e a escrita, sua
fonte de expressão:
o narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria
experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas
narradas à experiência dos seus ouvintes. O romancista segrega-se.
A origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais
falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e
que não recebe conselhos nem sabe dá-los. Escrever um romance
significa, na descrição de uma vida humana, levar o incomensurável
a seus últimos limites. Na riqueza dessa vida e na descrição dessa
riqueza, o romance anuncia a profunda perplexidade de quem a
vive (Benjamin, 1985, p. 186).

É na poesia de Baudelaire que Walter Benjamin extrai esta


característica isolada dos personagens que habitam a metrópole.
Este ser desenraizado, no cotidiano moderno, precisa ficar em um
constante estado de alerta, ao passo que é submetido ao excesso de
estímulos e choques, que afetam sua capacidade de armazenamento
da memória e a transmissão da experiência, como se evidencia no
poema “Perda da auréola” em O spleen de Paris: pequenos poemas
em prosa (UFSC, 1988), o qual descreve o momento em que um
indivíduo perde sua aura na lama do macadame ao tentar esquivar-
se de uma carruagem enquanto tentava atravessar uma avenida.
O protagonista comemora então o ocorrido em uma conversa,
exultando-se, finalmente, de se desprender de seus distintivos

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Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

do passado e saúda sua condição de homem moderno como seus


iguais, dizendo: “Posso agora passear incógnito, praticar ações vis e
me entregar à devassidão, como os simples mortais. E eis-me aqui,
igualzinho a você, como vê!”. (Baudelaire, 1988, p. 217).
Para Benjamin, a perda da experiência coletiva é similar ao
processo de perda da aura: características tradicionais das obras de
arte que se perdem pela reprodutibilidade técnica, ou, dos indivíduos
que adquirem valor de mercadoria na sociedade capitalista, como
nos poemas baudelarianos:
As flores do mal é a sua resposta à manifestação da arte como
mercadoria e do público como massa [...] a tarefa poética a que
se propõe Baudelaire é a de articular as vivências desgarradas da
modernidade em uma autêntica experiência. (Muricy, 1998, p.
193).

Esta autêntica experiência como articulação entre modernidade e


antiguidade a partir da alegoria, mostra a decadência de um passado
em ruínas do qual emerge o mundo moderno, onde figuras alegóricas
como o flâneur, o dândi e a prostituta, surgem como heróis modernos,
ao darem conta da nova realidade capitalista, e são expressão da
consciência crítica de Baudelaire sobre este processo (Muricy, 1998,
p. 200). Para Benjamin, a partir da alegoria, a experiência moderna
do século XIX aproxima-se do barroco no século XVII. Efêmero e
eterno reencontram-se, como bem sintetiza, Katia Muricy:
o que Benjamin quer enfatizar, a serviço da sua teoria da
experiência, é como a beleza moderna, ligada à busca do novo, está
paradoxalmente ligada à morte. Esta morte é a da memória – o
desaparecimento da experiência – em benefício da descontinuidade
das 'lembranças', que se multiplicam e se desligam da linearidade
da memória como instantâneos 'fotografados' nas alegorias da
poesia de Baudelaire. Nos Tableaux Parisiens, Paris aparece como
ruína antiga, revelando nessa alegoria a verdade da cidade moderna
como mímeses da morte (Muricy, 1998, p. 206).

Sobre a relação entre alegoria e o artefato literário, Flavio


Kothe (Kothe, 1976, p. 100) analisa sua aproximação na perspectiva
de Benjamin, no momento em que o signo3 é transcendido pela
3 No estudo sobre o Trauerspiel, Walter Benjamin desenvolve sua teoria da alegoria
a partir de uma distorção da estética romântica por um falso conceito de símbolo como

80
Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

expressão melancólica da alegoria, capaz de revelar o outro como


desvio na escrita da história linear e progressiva, expondo o
ponto de vista dos oprimidos. Assim, o papel da crítica seria fazer
ressurgir a correspondência entre passado e presente, para revelar
novas relações históricas e temporais. Desta forma, a leitura de
uma obra do passado poderia revelar a leitura da experiência
de uma época por meio da alegoria, como fez o filósofo alemão
ao tomar a alegoria nos poemas de Baudelaire como uma visão
do outro no cortejo triunfal dos vencedores. A melancolia teria
o poder de revelar a dicotomia entre as utopias do progresso na
modernidade e as mazelas dos que foram inseridos neste processo,
destarte, a definição de melancolia anteriormente citada, como “o
espinho na carne da modernidade” ao qual Yves Bonnefoy escreve
no prefácio de A melancolia diante do espelho (Bonnefoy, 2014, p. 7),
elucida o papel transgressor que o estado melancólico adquire nos
tempos modernos.
Desta forma, chegamos à conclusão de que Walter Benjamin
e Baudelaire encararam a realidade histórica do tempo em que
viveram de forma melancólica. Pela obra do poeta francês do século
XIX, a transformação da experiência na moderna Paris do Segundo
Império Napoleônico, reivindicava a melancolia como oposição
à ordem dominante. Esta dimensão ganha novos contornos na
filosofia da história de Walter Benjamin que, por meio do estado
melancólico, destaca a consciência da opressão e a necessidade de
despertar os oprimidos na luta contra as ideologias do progresso.
Não há dúvida de que o filósofo judeu-alemão vivenciou o resultado
da primeira grande guerra como uma inflexão histórica, escrevendo
sobre os soldados que voltavam mudos e destituídos de experiência,
e anos depois, a ascensão dos regimes totalitários como um
espectador crítico, clamando por um novo conceito de história capaz
de mobilizar a luta contra o fascismo:
expressão de um saber absoluto. Desta relação, o conceito de alegoria - considerada na
tradição estética romântica uma derivação do símbolo - é retomada “como categoria
crítica na compreensão de fenômenos estéticos do qual o conceito de símbolo não oferecia
eficácia teórica [...] no horizonte teológico que Benjamin encontra a concepção autêntica
de símbolo com a qual pretende restaurar, na filosofia da arte, não só o lugar do símbolo,
mas também da alegoria (Muricy, 1998, p. 160).

81
Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

a tradição dos oprimidos nos ensina que o 'estado de exceção'em


que vivemos é na verdade a regra geral. Precisamos construir
um conceito de história que corresponda a essa verdade. Nesse
momento, perceberemos que nossa tarefa é originar um verdadeiro
estado de exceção; com isso, nossa posição ficará mais forte na luta
contra o fascismo. (Benjamin, 1985, p. 208).

Alegorizar o melancólico pelas vias do romance em contextos


capitalistas e repressores possibilita pensar a alegoria benjaminiana
da modernidade como uma chave de análise em outros contextos
e em outras realidades possíveis. Este é o caso do Brasil sob
controle dos militares pós-1964 e a implantação do projeto de
modernização conservadora.4 Momento de entrada massiva
de capital estrangeiro, mecenas dourado da industrialização e
reurbanização dos grandes centros brasileiros, agora habitados
por uma massa anônima de trabalhadores atraídos pela utopia
de ascensão econômica no Brasil do milagre. Este país idílico,
construído nos jornais e nas propagandas de tv, comemorava o
expressivo aumento do PIB e a vitória do tricampeonato de futebol
em 1970, ao mesmo tempo em que grandes obras remodelavam
a paisagem e as relações sociais. Expressão síntese deste tempo
de exceção pode ser localizado nas palavras de ordem: Ninguém
segura este país (1970).5 Para conduzir este projeto modernizador,
um amplo aparato repressivo de vigilância e censura ramificava-se

4 O conceito de modernização conservadora parte de um estudo de Barrington Moore


Jr. sobre as origens sociais da ditadura e da democracia. Moore queria compreender o
papel político que as elites agrárias teriam desempenhado na passagem da sociedade
rural para a sociedade industrial. Isso leva-o a fazer um estudo comparativo no qual,
de um lado, se alinham as sociedades capitalistas nas quais se desenvolveu o regime
democrático parlamentar, como Inglaterra, França e Estados Unidos, de outro, países
como Alemanha, Rússia, Japão, nos quais vicejou uma modernização conservadora [...] a
ideia de modernização conservadora se aplicaria no Brasil à emergência da modernidade
como um todo, abarcando diversos períodos de nossa formação histórica, da Primeira
República ao Estado Novo [...] e apreende um processo social calcado explicitamente num
modelo político conservador, no qual os valores democráticos são preteridos para um
plano secundário [...] a noção é amplamente aplicada ao pós-1964 [...] onde o período
militar combina repressão política e expansão econômica, ação policial e modernização da
máquina do Estado e incentivo às atividades empresariais (ORTIZ, Renato. Revisitando
o tempo dos militares. In: MOTTA, Rodrigo Patto Sá; REIS, Daniel Aarão; RIDENTI,
Marcelo. A ditadura que mudou o Brasil: 50 anos do golpe de 1964. Rio de janeiro: Zahar,
2014.)
5 Mais sobre isso, ver: CORDEIRO, Janaina Martins. A ditadura em tempos de milagre:
comemorações, orgulho e consentimento. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015.

82
Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

garantindo o controle, a submissão e o beneplácito da sociedade,


ao mesmo tempo em que se torturava e se procurava eliminar
os cidadãos considerados inimigos ideológicos do regime e do
próprio progresso, palavra que não traduzia uma outra realidade
que disputava espaço com o tempo de construir dos militares, e
escancarava a difícil sobrevivência dos trabalhadores ao arrocho
salarial e a fome que assolava os mais pobres, responsável por
altos índices de mortalidade infantil e brasileiros vivendo em
situação de extrema miséria. São estes os habitantes e personagens
periféricos nas cidades da ditadura, cuja classe média emergia
como a principal beneficiária do capitalismo tardio (Cordeiro,
2015).
Para Flora Süssekind (Süssekind, 2019, p. 14) nesta díspar
realidade brasileira, a literatura assumiu posturas heterogêneas
conforme o avanço da censura e a consolidação da indústria
cultural na sociedade. As estratégias culturais do regime militar até
a edição do AI-5 foram flexíveis, permitindo a cultura de protesto
da esquerda, conferindo, ao menos inicialmente, certa liberdade de
expressão e crítica no campo artístico e literário. Desta forma, os anos
iniciais da ditatura foram de expansão dos meios de comunicação de
massa e de conteúdo televisivo similar ao lifestyle americano. Depois
de 1968, Silviano Santiago (Santiago, 2019, p. 470) relembra ter
ocorrido um maior isolamento econômico e moral do artista, com a
ampliação da censura. Para este autor, o fazer literário na década de
1970 refletiu o clima de instabilidade e controle, sobretudo, a partir
da criação da Política Nacional de Cultura (PNC),6 que integrou
a produção literária à lógica capitalista, momento de expressiva
tiragens de livros, abertura de editoras e incentivo econômico, e
a censura controlava o campo literário para garantir a circulação
de títulos livres de conteúdo subversivo. Seja em tom de crítica ou
apenas como entretenimento, o romance histórico, a reconstrução
do memorialismo, a literatura pasteurizada da classe média, o

6 Criada em 1975 pelo ministro da cultura, Ney Braga, e o Conselho Federal de


Educação, a Política Nacional de Cultura (PNC) regulamentava as bases da produção
cultural no governo Geisel, pautada na centralização autoritária, intervenção estatal e
mercantilização da cultura brasileira (Reimão, 1993, p. 77).

83
Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

romance-reportagem e o romance alegórico, representaram a


complexa relação entre literatura, ditadura e mercado nos anos
setenta (Hollanda; Gonçalves, 1979, p. 29).
Na derrisão de formas e práticas literárias anteriores com
o recrudescimento do autoritarismo, um novo tipo de literatura
começou a ganhar corpo em diferentes regiões do Brasil. E no
interior dela, ao lado dos formatos existentes, o romance alegórico
ressurgiu para contar a história que não pôde ser escrita. Jornalistas/
escritores como Antônio Callado, José Louzeiro e Paulo Francis são
alguns exemplos que tematizaram a realidade brasileira pelas vias
do romance alegórico7. A preferência pela alegoria, este dizer o outro,
no contexto da repressão política, é facilmente explicado em função
de driblar os censores pelo ciframento da linguagem. Apesar disso, a
explicação causal mediante o par censura/alegoria não consegue dar
conta de questões mais complexas que envolvem a escrita alegórica,
conforme aponta Davi Arrigucci Jr. Em Jornal, realismo, alegoria diz
este crítico literário:
concordo que haja condições sociais favorecendo uma alegoria
generalizada. Certamente poderíamos explorar também a
questão da alegoria na tradição literária, mais a fundo. A
tendência à alegoria mostra que não é apenas a repressão da
linguagem que num determinado momento obriga a falar através
de metáforas continuadas – e daí a alegoria. Mas há uma coisa
mais grave, mais profunda, e é o problema de que é muito difícil
se ter a visão da totalidade, a visão da abrangência. A alegoria
é a forma alusiva do fragmentário. Este é o ponto (Arrigucci
Junior, 1979, p. 28).

Pode-se, portanto, dizer que a fragmentação histórica causada


pelas transformações do capitalismo no Brasil, e não somente
durante o Regime Militar, seria uma das origens da escrita alegórica
na concepção de Davi Arrigucci Jr. A ditadura militar, na análise
daquele autor, apresenta-se apenas como mais um recorte temporal
dessa condição. Outros autores e obras em ditaduras do Cone-Sul
expressam esta mesma fragmentação como ruína de uma realidade

7 Davi Arrigucci Jr. argumenta sobre uma possível escrita alegórica em romances de
Antônio Callado, José Louzeiro e Paulo Francis, entretanto, com ressalvas, se levar em
consideração as tensões do realismo e alegoria.

84
Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

que não poderia ser narrada em sua totalidade pela derrota política
na literatura:
a alegoria seria então uma forma desesperada, a própria expressão
estética da desesperança. O florescimento da alegoria em tempos
de reação política nada teria a ver, então, com a difundida
explicação de que para escapar à censura a literatura construiria
formas 'alegóricas' de dizer coisas que em outras condições
poderiam ser expressas 'diretamente'. A alegoria é a face estética
da derrota política – veja-se a relação entre o barroco e a contra-
reforma, a poesia alegórica de Baudelaire e o Segundo Império, a
relevância atual da alegoria na pós-modernidade – não por causa
de algum agente extrínseco, controlador, mas porque as imagens
petrificadas das ruínas, em sua imanência, oferecem a única
possibilidade de narrar a derrota. As ruínas são a única matéria-
prima que a alegoria tem a sua disposição (Avelar, 2003, p. 85).

O tolhimento da liberdade de expressão somado à expansão


massiva da produção e do mercado capitalista produzem a bárbarie
que Benjamin crítica na VII Tese sobre o conceito de história, pois
nunca “houve um monumento da cultura que não fosse também
um monumento da barbárie” (Benjamin, 1985, p. 208). Ou seja,
desta cultura opressora, a favor da utopia dos vencedores, em
temporalidades modernas ou pós-modernas, como a época de
Baudelaire, de Walter Benjamin ou das Ditaduras na América
Latina, vivenciada em transformações radicais na experiência
urbana, encontra-se um elo e um tipo de escrita literária comum, a
escrita alegórica. Pensando a relação da melancolia de Baudelaire ao
ver sua Paris se tornar uma metrópole moderna perante ruínas do
que antes era reconhecido e ficara no passado, é possível evocar esta
dimensão alegórica da modernidade à interpretação de um romance
escrito nos Anos de Chumbo da ditadura militar brasileira: Blissful
Agony ou Feliz Agonia, publicado em 1972 pelo jornalista e escritor,
Amylton de Almeida, em Vitória, capital do Espírito Santo.
A primeira edição da obra, de 1972, tratou-se de uma produção
independente, quando foram impressos somente 28 exemplares pelo
próprio autor nas oficinas gráficas do jornal O Diário, entregues para
pessoas do seu círculo íntimo de amizade. A segunda edição surgiu
em 1988, relançada pela Fundação Ceciliano Abel de Almeida com
arte da capa ilustrando o porto de Vitória em segundo plano, feita

85
Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

por Adelia de Souza. A terceira edição foi publicada mediante


apoio da Secretaria Estadual de Cultura do Espírito Santo no ano
2015. Até os dias atuais, o romance conta com poucos exemplares
encontrados em sebos da região metropolitana da Grande Vitória
e acervos de bibliotecas públicas, sendo considerada uma obra rara.
Blissful Agony foi o primeiro romance publicado por Amylton de
Almeida, sua estreia nos círculos literários da capital capixaba.
Mesclando diferentes recursos de escrita, a construção textual da
obra tinha como referência nomes da literatura moderna como
Gertrude Stein, Virginia Woolf, James Joyce e Clarice Lispector,
autores que inovaram ao usar o fluxo de consciência como recurso
literário e inspiraram o romance inaugural de Amylton de Almeida,
cuja consciência do personagem estrutura toda a narrativa, que tece
críticas à modernização de Vitória no início dos anos 1970.
A modernidade no texto amyltoniano acompanha o
entendimento de Walter Benjamin: ela é sempre barbárie. Ou seja,
produz experiências disruptivas, traumáticas. Logo, o habitante
da metrópole moderna é um ser alijado de suas tradições, de suas
memórias, de sua experiência. O impacto das transformações, da
violência militar e do silenciamento não impedem os pensamentos
do narrador. Amylton faz uso do fluxo de consciência, um termo
psicológico criado por William James na obra Os princípios da
psicologia em 1890 que considera a consciência um fluxo em
permanente movimento. Desta forma, os romances se utilizam
deste recurso para expressar ou tentar traduzir a consciência e
pensamento interior de seus personagens8. O fluxo de consciência,
representa um recuo solitário de um eu mutilado que busca a
sobrevivência em meio à experiência da catástrofe e insegurança
em relação ao mundo, fazendo com que o narrador refugie-se em si
mesmo, em seus pensamentos (Humphrey, 1976; Silva, 2009). Tal
8 Na literatura, o escritor francês Édouard Dujardin foi pioneiro na representação
da consciência no romance Les Lauriers Sont Coupés de 1887, portanto, a representação da
consciência na literatura é anterior à definição de William James na psicologia. Entretanto,
a técnica do fluxo de consciência e o monólogo interior seriam estudados pela crítica
literária a partir da obra de romancistas do século XX que aprimoraram essas técnicas
(HUMPREY, Robert. O fluxo da consciência: um estudo sobre James Joyce, Virgínia Woolf,
Dorothy Richardson, William Faulkner e outros. Tradução de Gert Meyer. São Paulo:
Cultrix, 1976).

86
Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

relação aproxima-se do pensamento de Walter Benjamin sobre a


perda da experiência e memória coletiva que levou à decadência da
arte de narrar, dando origem ao romance moderno e ao isolamento
do indivíduo:
quando o tempo se torna uma grandeza econômica, quando
se trata de ganhar, e portanto, de poupar tempo, a memória
também se transforma. O lembrar infinito e coletivo do tempo
pré-capitalista cede lugar à narração da vida de um indivíduo
isolado, que luta pela sobrevivência e pelo sucesso numa sociedade
marcada pela concorrência. O espaço infinito da memória coletiva
comum encolhe, dividindo-se em lembranças avulsas de histórias
particulares contadas por um escritor isolado, lidas por um leitor
solitário: é o advento de uma outra forma literária, o romance
(Gagnebin, 2014, p. 220).

Recorrendo ao fluxo de consciência, Amylton de Almeida


expressa de forma criativa o sentimento angustiante e a solidão ao
experimentar um tempo de transição entre o velho e o novo, no
limiar do que agora é considerado moderno na capital capixaba.
Para Francisco Aurélio Ribeiro: “Blissful Agony introduziu as
características pós-modernas na literatura capixaba, pertencendo
à geração dos anos 70 introdutora da consciência de ‘abismo
do mundo moderno’, da dissolução dos costumes, da angústia
existencial e da consciência da escrita” (Ribeiro, 1996, p. 26). A
paisagem mudava, os prédios estavam surgindo e, para o narrador,
havia “tantos barcos na baía quanto pessoas pobres pedindo
esmola nas ruas”. A única identificação com aquele momento é
a rememoração do passado do que um dia foi conhecido sobre o
cotidiano na cidade: “uma pessoa profundamente imóvel, por suas
recordações, ao mesmo tempo que se tortura por não conhecer nada
do futuro, a opressão atual sugeria sua permanência ad infinitum”
(Almeida, 2015, p. 15). Este fragmento em Blissful Agony traduz uma
contemplação melancólica do eterno retorno no presente estagnado
e controlador, trata-se de uma escrita alegórica sobre a experiência
em tempos de modernidade e repressão. Ao analisar o giro alegórico
em romances da América Latina, em contextos ditatoriais e pós-
ditatoriais, Idelber Avelar observa que tal recurso responde a uma
impossibilidade da representação pela literatura:

87
Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

a derrota histórica representada pelos regimes militares implicou


também uma derrota para a escrita literária, impõe-se então a
tarefa de 'falar de outra forma'. Este 'falar outro' não é entendido
aqui só como uma mera busca de formas alternativas de discurso,
mas também de falar do outro (em ambos os sentidos do genitivo),
de responder à chamada do outro. A alegorização tem lugar
quando aquilo que é mais familiar se revela como outro, quando
o mais habitual é interpretado como ruína, quando se desenterra
a pilha de catástrofes passadas, até então ocultas sob a tormenta
chamada 'progresso'. (Avelar, 2003, p. 264).

Em Bissful Agony o personagem reflete de forma melancólica


as transformações na cidade que emerge como metrópole e não se
identifica com as mudanças no território, que antes era conhecido
e apreciado e tornou-se estranho e inadequado. A constante
rememoração do passado revela um tempo em ruínas onde antigo
e moderno provocam a sensação de agonia no personagem, que se
sente deslocado no espaço-tempo de suas memórias sobre a capital
capixaba:
a brisa sopra, aumentando sua intensidade. 'E as caminhadas
noturnas na rua Duque de Caxias morrem com você', diz então
Cláudio, o rosto olhando a cidade. 'E a cidade, que era a sua
cidade. Que você entendia, que sofria por ela. Você talvez tenha
sido a única pessoa que viveu e conheceu todas as suas mágoas. As
primeiras e as últimas, as incontroláveis mágoas dos momentos
finais' prossegue Cláudio, quando então percebe que a brisa
aumenta sua intensidade e Lee não será mais ouvido. 'A velha
cidade ficando tão distante', Cláudio aumenta o volume da voz,
'uma cidade nova surgindo tão longe de você, tão alheia a você. E
todas as coisas se renovando e você- Cláudio então se surpreende
com o tom de sua voz, como se uma pessoa estivesse gritando com
ele – 'tão inadaptada às coisas novas, tão apegada às coisas antigas:
ao antigo cais, às ruas envelhecidas, ao tempo em que Vitória era
algumas esquinas, algumas famílias, alguns amigos. (Almeida,
2015, p. 31).

Deste trecho é possível pensar uma outra percepção do


projeto modernizador conduzido pelos militares no Espírito
Santo, o lado contraditório da modernização dos anos 1970, auge
do desenvolvimento proveniente dos Grandes Projetos Industriais
e crescimento industrial centralizado na Grande Vitória, que
transformou radicalmente a estrutura produtiva do Espírito Santo.
Sobre este processo, Maria da Penha Siqueira (Siqueira, 2001, p.

88
Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

101) evidencia que “no momento em que o país começava a usufruir


das vantagens proporcionadas pelo ‘milagre econômico’ a cidade
de Vitória estava recebendo migrantes do sul da Bahia, norte de
Minas Gerais, Zona da Mata mineira, norte do Rio de Janeiro e
interior do Estado”. Logo, o início dos anos 1970 é considerado pela
autora como marco divisório na história da ocupação de Vitória,
transformada em capital congestionada.
Proveniente do desenvolvimento econômico, esta “nova
modernidade” levou ao aumento do contingente populacional, e
consequentemente, a ocupação desordenada do espaço urbano,
formação dos bairros periféricos, aumento da violência e miséria,
além da descaracterização geográfica e urbana, revelando uma
realidade que “pairava um agudo e generalizado sentimento de que,
nesse caos de miséria e descontrole, a identificação com a cidade
tornava-se praticamente impossível” (Banck, 2011, p. 335). A
materialidade textual de Blissful Agony também critica o aumento
da pobreza que não é enxergada ou noticiada, assim como as demais
transformações vividas na economia e política. Mostra uma outra
modernidade que chega à cidade de Vitória: conduzida por políticas
de repressão e censura e processos desiguais de integração social e
expansão urbana.
O romance amyltoniano publicado cautelosamente por meio
de uma tiragem pequena e artesanal contrasta com o discurso positivo
dos feitos militares na capital capixaba, a saber, a metropolização
e a industrialização mais intensas durante os anos 1970. Walter
Benjamin entende que a análise de uma obra literária permite
estabelecer contatos com uma história escrita pela perspectiva
dos dominados, escovada à contrapelo9 das narrativas do progresso
que documentam a barbárie na modernidade. Ou seja, a partir do
9 Ao final da VII tese sobre o conceito de História, Walter Benjamin (Benjamin, 1985, p.
208) escreve: “assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo
de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o materialista histórico se
desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo”. Michel Löwy explica que
a última frase da VII tese carrega um significado histórico e político na medida em que a
expressão considera ir contra a corrente da versão oficial da história, se opondo a tradição
dos oprimidos. O verdadeiro historiador materialista, desvia “do sentido do pelo”, ou seja,
da história pautada no progresso, produtora da barbárie e opressão, e escova no sentido
contrário, revelando a versão histórica dos excluídos (Löwy, 2005, p. 74-79).

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Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

estudo da obra de um autor, seria possível recuperar as tensões


históricas de uma época e o declínio da experiência autêntica. Neste
processo, o alegórico seria um ingrediente fundamental, ao lado da
melancolia, posto revelar um passado atravessado por contradições,
vivenciado por sujeitos que compreenderam esta disrupção e que,
por meio da forma romance, se tornaram porta-vozes de um tempo
de incertezas e opressões, como podemos ver tanto na poesia
alegórica de Baudelaire, quanto no romance alegórico de Amylton
de Almeida. Na concepção benjaminiana “melancólica é a visão
histórica de quem adota o ponto de vista dos oprimidos” (Kothe,
1976, p. 100). Em uma passagem característica de Blissful Agony é
possível verificar esse tensionamento. Nela se lê:
a mulher com uma trouxa na cabeça e um filho pela mão direita,
anda pela linha férrea. (Qual seria a idade deles? Era indefinível:
Usam roupas doadas, a sociedade mal reparava neles, tolerando-os
por remorso ou culpa oblíquos, com donativos públicos; porque
havia uma sociedade; ela estava sempre organizada e limpa como
se fosse viajar; mas preferia repetir o tom de voz de sua mãe para
que ninguém reconhecesse, naquele corpo sempre pronto para uma
mudança, um possível resquício de juventude ou personalidade
própria. Raramente comiam; seriam a escória; que fé pública lhes
daria crédito? No entanto, só metaforicamente seriam citados
nos discursos do governador como membros primordiais na
construção da ----;). Alguém passeia de barco pela baía. A brisa
sopra. Podia ter um furacão aqui só pra derrubar esse monte de
edifícios. A gente levanta o rosto e, então, a brisa sopra. Era uma
época, aquela em que certa parcela da juventude voltara a beber,
ao mesmo tempo em que levemente se percebia uma mudança no
meio ambiente. Essa mudança começou com o desaparecimento
de coisas menores como poemas em jornais. 'Que fim teria levado
Farley Granger?' perguntava-se naquela época, quando então no
silêncio todo mundo sabia que não respondia que fim teria levado
o Farley Granger. (Almeida, 2015, p. 15).

O trecho acima conduz o leitor para um tipo de “visão


panorâmica” da cidade de Vitória em tempos de repressão. A censura
é indicada ao final do parágrafo de duas formas: a primeira estaria
relacionada com a crítica as mudanças no território, que viriam
acompanhadas do desaparecimento de “coisas menores como poemas
em jornais”, uma clara alusão à censura da informação. A segunda
seria a frase alegórica “Que fim teria levado Farley Granger?” e

90
Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

indica o silêncio da sociedade capixaba quanto ao desaparecimento


de indivíduos considerados inimigos políticos do regime. A
mulher com a trouxa na cabeça ilustra uma situação cotidiana
para criticar a desigualdade social que era parte contraditória do
projeto modernizador na capital capixaba: ao mesmo tempo que
“alguém passeia de barco pela baía” a miséria é parte da realidade
dos indivíduos que vivenciam as transformações na cidade que
passa pela metropolização. Eles são um resíduo da modernidade,
constituem uma massa anônima que ganha importância metafórica
no discurso do governador sobre o progresso na capital.
Não são poucas as zonas de contato descrevendo os impactos
da modernidade em passagens de Baudelaire, nas Passagens de
Benjamin (1996) ou em passadas da obra de Amylton de Almeida.
Aliás, o autor capixaba faz deferência e reconhece seu pertencimento
às hostes do grande poeta francês: “Ouve-se o coração do mundo.
Ah, eu te amo, Vitória, cidade infame, como Baudelaire disse de
Paris” (Almeida, 2015, p. 50). Todos os três compartilham, cada
um a seu modo, o mal-estar com a modernidade. Assim, enquanto
os efeitos do milagre econômico transformavam radicalmente as ruas
da capital capixaba, Amylton se identifica com os vencidos, com os
desterrados em sua própria cidade e não com os novos monumentos
de barbárie. E não poupou os condutores do regime militar de sua
crítica: “No dia 4 de outubro, o general disse que, embora não tenha
relevância o que o general disse porque, ele apenas repetia o que
um outro general dissera antes, por sua vez, copiado de um outro
general que denunciara a infiltração” (Almeida, 2015, p. 18).
Considerado um agitador cultural, Amylton de Almeida
produziu ainda peças de teatro, documentários, críticas de cinema,
ministrou cursos e oficinas; enfim uma variada e vasta produção
cultural, cujo compromisso com a justiça social acompanhou seu
fazer artístico. Por meio do aclamado documentário Lugar de Toda
Pobreza (1983) mostrou a realidade da Grande São Pedro, bairro
periférico formado durante o milagre econômico, onde os moradores
alimentavam-se e sobreviviam do lixo descartado pela prefeitura de
Vitória. Por meio da ironia – como Baudelaire – tecia críticas sobre

91
Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

a vivência na “cidade infame”, cujo espaço geográfico era sempre


personagem central. Amada ou odiada, ela era protagonista no
processo criativo amyltoniano e palco das narrativas Blissful Agony
(1972), A passagem do século (1976) e Autobiografia de Hermínia Maria
(1994), três romances que tensionam a opressão política e a perda
da experiência. Apesar de Autobiografia de Hermínia Maria ter sido
publicada postumamente, vinte e quatro anos após sua escrita,
ela foi produzida no mesmo período de Blissful Agony, e ambos
romances documentam a vida em um cotidiano marcado pela
censura e repressão. Não por acaso,
a crítica à ditadura militar não é mecânica ou panfletária, ela é parte
indissolúvel do tecido ficcional da tensa relação entre Literatura e
História que sustenta o texto amyltoniano. Os dramas pessoais se
tornam coletivos, as tragédias individuais se ampliam no social, o
humano se desfaz na brutalidade da coerção de direitos. (Gomes,
1999, p. 27).

Tal aspecto revela como toda obra literária está carregada


de historicidade, das tensões do tempo em que foram escritas,
constituindo, portanto, uma importante ferramenta de análise
para o historiador. Ler o índice histórico que todo artefato cultural
carrega, incluídas aí as obras de arte, mas também toda criação e todo
objeto produzido pelos seres humanos, significa inscrevê-lo em suas
relações de produção, que são relações histórico-sociais, enraizadas
no trabalho e na experiência humana, revelando seus sentidos mais
ocultos, sobretudo, em se tratando do capitalismo, da subtração da
mais-valia e da sistemática alienação dos trabalhadores, ou seja, dos
vencidos.
Em 1919, Walter Benjamin propôs um estudo reflexivo
acerca da literatura moderna em sua tese de doutorado O Conceito
de Crítica de Arte no Romantismo Alemão (Der Begriff der Kunstkritik
in der Deutschen Romantik), a partir do conceito de crítica de arte,
desenvolveu o de médium-de-reflexão, para analisar a capacidade
crítica e transformadora da obra de arte, o que influenciou sua
produção posterior a partir da estreita ligação entre crítica, história
e literatura, como observa Érica Gonçalves de Castro:

92
Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

trata-se de sua concepção de mundo como um grande texto


escrito, cuja leitura tem de se dar necessariamente de forma crítica
e transformadora. Em outras palavras: sendo a realidade uma obra,
ela é também um médium-de-reflexão, o que significa ampliar
os horizontes da crítica literária em direção à crítica da história.
(Castro, 2014, p. 30).

Ao propor esta dimensão, Benjamin buscava se afastar


do historicismo e do biografismo, para atingir um trabalho de
potencialização da obra enquanto objeto de estudo, cuja análise
buscava a crítica de uma época por meio da produção artística
e literária – como formas emblemáticas da expressão sensível
e reflexiva. Com isso, a própria historiografia era colocada em
funcionamento para romper com uma narrativa linear e homogênea
do tempo, para uma redenção no presente, que deveria reconhecer o
índice histórico das imagens/artefatos culturais que vêm do passado.
Em outras palavras, através do reconhecimento e leitura das imagens
dialéticas que revelam a fusão e, sobretudo, a indissociabilidade
entre passado e presente, para fazer surgir uma nova temporalidade,
evitando-se um continuum naturalizado do passado, restaura e
converte, por meio desta relação dialética, em história autêntica
(Castro, 2014, p. 62).
O reconhecimento do passado no p.resente em forma
de constelação, de diferentes imagens e mônadas, captadas pelo
historiador para uma escrita da história no e para o presente, coloca
em ação a força messiânica, promovendo a redenção dos oprimidos
pelo resgate das vivências individuais e, sobretudo da experiência
coletiva. Nesta operação, a rememoração leva à tradução das imagens
dialéticas recuperadas por meio de fragmentos de um passado
atravessado de tensões. A obra literária é entendida por Benjamin
como um fragmento privilegiado do passado, que também tem a
capacidade de atualizar-se no presente pelo crítico e historiador:
sendo a obra de arte o fragmento de uma época, a associação
entre a escritura da história e a crítica literária realiza esta última
enquanto médium-de-reflexão. É no momento de atualização
da obra, quando esta é arrancada do curso da história para ser
lida à luz das contingências do presente, que pode, acontecer a
intervenção messiânica. (Castro, 2014, p. 73).

93
Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

Considerando essa capacidade especular da obra literária,


Benjamin atualizou a obra de Baudelaire descrevendo novas
experiências da modernidade, em que o passado espelha o presente
e vice-versa, revelando uma dimensão fundamental da vida social.
Tomando a violência e a barbárie como um de seus vetores
fundamentais, a literatura se tornaria um veículo capaz de transmitir
a melancolia que perpassa os tempos de afirmação do capitalismo
e suas profundas transformações na experiência. Assim, os poemas
baudelarianos seriam capazes de refletir criticamente seu tempo e
também a obra de outros autores, mesmo bastante apartados no
tempo e no espaço. Afinal, o cerne do problema continua o mesmo:
a perda da experiência na vida moderna. Uma questão que permite
estender este aspecto do pensamento de Walter Benjamin à análise
do romance de Amylton de Almeida enquanto médium-de-reflexão
para compreender a modernidade no espaço urbano da capital do
Espírito Santo. Tal recurso permite o reconhecimento e a atualização
desta obra à luz do presente que reconhece a transformação e o
empobrecimento da experiência coletiva, explicitado pelo clamor
do romancista que vê a vida se arruinar e que se torna a consciência-
limite de um tempo contraditório, ao produzir narrativas à
contrapelo do progresso, capaz de implodir a aparente história linear
e homogênea dos tempos e da vida social.
No caso amyltoniano, este exercício historiográfico traz
outras vozes que ecoam do passado recente da ditadura militar no
Espírito Santo. Vozes que se tornam audíveis e que trazem uma outra
versão do passado, que se chocam com outras vozes e narrativas
triunfalistas que se erigiram como intérpretes privilegiados do
passado durante aquele período, traduzindo a visão e os interesses
do grande empresariado e dos simpatizantes do regime. Vozes que,
de outra maneira, impor-se-iam como monumentos da barbárie,
preservando e naturalizando a história dos vencedores. No interior
do trabalho literário de Amylton de Almeida, cujo meio de expressão
privilegiado sobre este processo foi o romance alegórico Blissful
Agony, os oprimidos ganham direito ao registro de suas memórias
e de sua existência, cabendo ao historiador compromissado com a

94
Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

história dos de baixo, revelar vozes que, de outra maneira, seriam


perdidas e derrotadas duas ou três vezes, no passado, no presente,
mas também no futuro. Daí a importância de se pensar o tempo
como um continuum que une diferentes gerações oprimidas, de
modo que o clamor do passado dirigido ao futuro possa ser ouvido
e compreendido pelos sujeitos no presente.

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Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

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Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

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98
A falsificação do conceito de
materialismo histórico na obra A
Ideologia Alemã durante o período
stalinista
Luiza Santana Locatel Araujo1

Karl Marx, um dos mais proeminentes analistas da


sociedade burguesa do século XIX, teve uma trajetória intelectual
ímpar. Além de se dedicar a tecer uma sólida análise sobre
o capitalismo, redigiu diversos escritos se dispondo a pensar
criticamente as tendências filosóficas de seu tempo. Em um
de seus projetos nunca publicados, em parceria com Engels e
outros autores, o pensador estava preocupado na discussão entre
Idealismo e Materialismo: A Ideologia Alemã, também conhecida
como manuscritos de 1845-46, ou ainda, 1845-47, foi publicada
pela primeira vez na década de 1920, décadas após a morte de
Marx, Engels e Weydemeyer, e é inegavelmente considerada pelos
historiadores marxistas como a obra na qual o Marx teria feito
a síntese da sua concepção materialista da história, sendo, pois,
fundamental para a construção da visão de história marxista. Há,
no entanto, uma duplicidade de entendimento a respeito de seu
lugar na bibliografia marxiana: em contrapartida, os editores
responsáveis pela edição das obras de Marx e Engles, em uma
entrevista realizada com Gerald Hubmann, dirigente da MEGA
(Marx Engels Edição Completa/Marx-Engels-Gesamtausgabe), e
1 Graduanda do curso de História da Universidade Federal do Espírito
Santo. Atualmente desenvolve pesquisa de iniciação científica sob orientação
do professor Dr. Júlio César Bentivoglio. Email para contato: Luizalocatel.hist@
gmail.com

99
Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

secretário da IMES (Fundação Internacional Marx e Engels), e


Ulrich Pagel, editor da MEGA, feita por Olavo Ximenes (2022),
defendem que os escritos publicados como A Ideologia Alemã
não teria corpo de livro, mas seria composta de manuscritos
fragmentários, sobre os quais temos pouquíssimos detalhes. Tal
conclusão é fortalecida sobretudo pela forma como os materiais
que compõem essa coletânea foram deixados por Marx e Engels.
Durante 1845 e 1847, houveram tentativas de publicar os
escritos em forma de revista trimestral e posteriormente como
uma publicação de volume duplo, o que não se concretizou. Nesse
sentido, torna-se difícil até mesmo falar de A Ideologia Alemã como
uma obra unitária. Em adição, no novo Marx-Engels-Jahrbuch de
2003, um anuário com propósito de documentar o trabalho do
MEGA, para compreender o que os tradutores da Ideologia Alemã
do MEGA-2, Pagel e Hubmann (2004), escreveram em suas notas
editoriais. Ambos afirmam que os textos a serem publicados em A
Ideologia Alemã não demonstram que havia um plano de uma obra
a ser publicada, mas ao contrário, os escritos que compõem a
obra demonstrariam uma crítica à filosofia pós-hegeliana a partir
de uma constituição muito mais independente dos rascunhos e
dos trechos que compõem as obras, do que um caráter unitário.
Também é interessante notar que o livro publicado pelo MEGA
e a análise publicada pelo anuário coloca A Ideologia Alemã como
composta por três autores: por Marx, Engels e também por
Weydemeyer, evidenciando, de acordo com os tradutores, que
Marx e Engels escreveram os manuscritos não no contexto de um
projeto de um livro mas sim como parte de uma suposta revista
objetivando a participação de outros autores como Weydemeyer,
Moses Hess, Georg Weerth e Wilhelm Weitling. A partir disso os
tradutores também afirmam que em nenhum momento da obra
Marx e Engels queriam fundar um suposto materialismo histórico,
porque esse não seria o conteúdo da obra a ideologia alemã, mas
sim uma forma de leitura marxista sobre o projeto (Hubmann,
Pagel, 2022. p. 33). Em contrapartida, a MEGA-1, tinha como um
de seus principais objetivos reconstruir o materialismo histórico
e a filosofia do materialismo histórico, e isso fica muito evidente

100
Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

na falsificação dos títulos dos capítulos e a forma na qual eles


são indicados, como veremos a seguir. Já na edição do MEGA-2
isso não é observado, não há um caráter de colagem e não há um
caráter de manipulação que se encaminhe para o materialismo
histórico.
A partir disso, A Ideologia Alemã requer atenção especial por
dois motivos principais: o primeiro é que essa obra é, por muitas
vezes, reconhecida como a obra na qual desenvolve-se a concepção
de história de Marx, na qual ele aplicaria o materialismo histórico à
realidade. O outro motivo é a problemática da sua tradução e como,
a partir de um editorial tendencioso, foi usada para legitimar tal
concepção.
Para contextualização, a primeira publicação de A Ideologia
Alemã foi publicada pela primeira vez na União Soviética governada
por Lênin, a partir do IME (Instituto Marx-Engels), sob direção de
David Riazanov, um historiador e intelectual russo, responsável
por organizar e comentar diversos textos de Marx e Engels como
Teses sobre Feuerbach, Manuscritos de 1844, cartas de Marx a Vera
Zasulich e trechos da Dialética da Natureza (Cerqueira, 2010, p.
207). Seu projeto foi responsável por divulgar, pela primeira vez,
muitos dos escritos de Marx e Engels, entretanto, em 1931, foi
vítima dos expurgos de Stalin, preso e substituído por Vladimir
Adoratski. A partir daí, o MEGA passou a cumprir não somente
a função de tradução e conservação das obras, mas também um
papel político e educacional pelos interesses do partido, passando
a ser um trabalho de manipulação, ou falsificação, deliberadamente
produzindo informações que não correspondiam à realidade dos
escritos.
As introduções e notas ganharam um tom muito diverso daquele
presente nos volumes editados por Riazanov. Mais preocupadas
em afirmar o marxismo-leninismo e em mostrar uma suposta
coerência entre os textos de Marx e Engels e as concepções
dominantes no período stalinista, elas deixaram em segundo plano
a abordagem histórico-crítica adotada nos volumes iniciais. Além
disso, a preocupação de Riazanov em assegurar uma reprodução
tão fiel quanto possível do conteúdo dos manuscritos deu lugar a
distorções e manipulações arbitrárias (Cerqueira, 2015, p. 830).

101
Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

Segundo nota editorial da própria Boitempo, o primeiro


capítulo de A Ideologia Alemã, mesmo nunca acabado por Marx, foi
publicado ainda por Riazanov. Ainda sim, Riazanov reconhecia
seu trabalho como inacabado, e o próprio texto de Marx tinha essa
mesma característica. Entretanto, após o comando do instituto
ser passado a Adoratski, o capítulo sobre Feuerbach passa de
algo inacabado para uma síntese fundamental da teoria histórico-
filosófica de Marx:
Bastante diferente, porém, era o juízo expresso na introdução ao
volume I/5 da MEGA-1, já sob o comando de seu novo editor,
Adoratski: ‘[...] em nenhuma outra obra de juventude encontramos
as questões fundamentais do materialismo dialético esclarecidas
de forma tão completa e exaustiva. [...] O capítulo ‘I. Feuerbach’
contém a primeira exposição sistemática de sua concepção
histórico-filosófica da história econômica do desenvolvimento
dos homens’, apresenta a união de ‘dialética’ e ‘materialismo’ num
‘todo unitário, indiviso”, expressa ‘a grande virada revolucionária’
dos autores com a ‘criação de uma verdadeira ciência das leis de
desenvolvimento da natureza e da sociedade’ (Enderle, Marx,
Engels, 2007, p. 18).

Ademais, enquanto o projeto MEGA de Adoratski publicou A


Ideologia Alemã como resultado de uma união de fragmentos, trechos
fora do manuscrito original e visando manter uma coerência utilitária
de um trabalho não acabado. A edição publicada pelo MEGA-2, sob
nova direção e orientação editorial, optou por manter os textos da
forma como haviam sido deixados originalmente por Marx e Engels
de forma cronológica, retomando o projeto com novas cooperações
e novas diretrizes editoriais que teriam como intenção publicar uma
edição histórica crítica completa das publicações e dos manuscritos
usando da fidelidade ao original, revisão crítica, no sentido de
eliminar trechos incorretos e com comentários explicativos a partir
do que eles consideriam um rigor acadêmico científico e apartidário.
Se faz necessário, pois, levar em consideração as diferenças
editoriais, sobretudo as que permeiam a publicação de A Ideologia
Alemã, visto que, por muitas vezes, é a obra usada para legitimar
a concepção do materialismo histórico, sobretudo motivado
pelas falsificações soviéticas ao conteúdo dos livros, a divisão de

102
Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

capítulos e os próprios nomes dos capítulos, que levam o leitor a


conceber uma teoria de história a partir do Marx. Para demonstrar
isso, foram analisados dois exemplares d’A Ideologia Alemã, uma da
editora Boitempo (2007), baseada nos manuscritos do MEGA-2 e
nas notas editoriais do Marx-Engels Jahrbuch, e outra do editorial
Avante! (1982), que cedeu os direitos de transcrição ao site marxists.
org, responsável por disponibilizar a obra online. A tradução
da editora Avante! para o português foi feita a partir dos textos
encontrados no Institut für Marxismus-Leninismus beim Zentralkomitee
der SED, de Berlim, sob influência da União Soviética e do Partido
da Unidade Socialista da Alemanha (SED). Como resultado da
análise, foi elaborado um quadro comparativo das duas versões
supracitadas. Nesse sentido, foram selecionados quatro capítulos da
obra da editora Avante! que foram comparados com os da edição
da Boitempo. Por serem muitos capítulos, o critério estabelecido
para a seleção foi que os capítulos a serem comparados seriam
aqueles que tendiam a uma leitura do materialismo histórico ou
que abordavam tópicos históricos e relacionavam esses tópicos
com o conceito do materialismo histórico. A proposta é evidenciar
a diferença de nomeação de um mesmo capítulo por ambas as
editoras, assim como sua ordem dentro da obra completa, visto
que, não somente os capítulos eram adulterados, mas também seus
títulos, assim como sua ordem dentro da publicação era alterada
para preencher as lacunas de uma obra incompleta e para servir a
um interesse político.
Quadro 1: Comparação das duas versões de A Ideologia Alemã
Título do capítulo
Título do capítulo
Ordenação na obra da Ordenação
na obra da Avante!
Boitempo
Premissas da
A ideologia em
concepção volume 1, capítulo volume 1, capítulo
geral, em especial a
materialista da 2 4
filosofia alemã
história
A essência
Karl Marx ·
da concepção
volume 1, capítulo Friedrich Engels volume 1, capítulo
materialista da
4 – I. Feuerbach – 7
história. Ser social e
Fragmento 2
consciência social

103
Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

Conclusões
da concepção
materialista
da história:
continuidade do Origem do Estado volume 1, capítulo
processo histórico, volume 2, capítulo e relação do Estado 2, tópico 1:
transformação 6 com a sociedade Rascunho das
da história em civil páginas 1 a 29
história mundial,
a necessidade de
uma revolução
comunista
Resumo da Origem do Estado volume 1, capítulo
concepção volume 2, capítulo e relação do Estado 2, tópico 1:
materialista da 7 com a sociedade Rascunho das
história civil páginas 1 a 29
Fonte: Produção da própria autora.

Sobretudo por muitos fragmentos terem sido já encontrados


sem títulos, o editorial usou de tal fato para nomeá-los segundo
diretrizes internas, já permeadas por concepções stalinistas, assim
como alguns capítulos tiveram suas posições alteradas dentro
do manuscrito original e, em diversas vezes, foram divididos em
dois, como é o exemplo de “Conclusões da concepção materialista
da história: continuidade do processo histórico, transformação
da história em história mundial, a necessidade de uma revolução
comunista” e “Resumo da concepção materialista da história”,
identificados como dois capítulos distintos na obra da Avante! e
que nos manuscritos originais ambos fazem parte de um mesmo
fragmento de rascunho sobre a origem do Estado e relação do Estado
com a sociedade civil. Ademais, apesar de recorrentes referências
à noção de materialismo histórico nas edições influenciadas pelo
SED, é imprescindível considerar que não há, uma citação direta do
termo por Marx, nem em A Ideologia Alemã, nem em outras obras.
O próprio termo aparece mais vezes sendo formulado sobre as
ideias Marx, isto é, por outros autores, do que nas obras do próprio
Marx, como veremos a seguir. Ademais, é importante ressaltar
que a concepção do materialismo histórico surge muito antes
da publicação d’A Ideologia Alemã, que por vezes é considerada
como seu ponto de partida justamente por falar de história e
aplicar conceitos marxistas à história. Nesse sentido, é importante

104
Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

reconhecer que, por mais que antigas edições recorram a tal termo,
há um descompasso entre tais concepções e as idéias de Marx, e isso
fica muito visível quando observamos seus escritos.
É importante ressaltar o interesse soviético por trás do
expurgo de Riazanov e das falsificações feitas por Adoratski, seguiam
a um interesse político. Era relevante para o partido legitimar uma
concepção política da história, que legitimasse a revolução e as
escolhas do partido naquele momento. Para Ximenes
era absolutamente claro para Adorastkii e ele o confessa
diretamente nas páginas introdutórias da MEGA-1. Tratava-se
de disseminar as obras de Marx e Engels em vistas de preparar
os trabalhadores do mundo para a revolução comunista (Ximenes,
2022, p. 121).

Diante disso, é extremamente importante compreender


que existe uma diferença entre o que o Marx escreve e como a
obra do Marx vai ser compreendida pelo público, sobretudo antes
de 1970. Outrossim, é preciso compreender tal obra como um
aparato legitimador da União Soviética, guiado pelas necessidades
do governo para com o materialismo histórico. Da mesma forma,
Carver e Blank (Carver; Blank, 2014, p. 26), afirmam que “O
Instituto (IME) foi forçado a ajudar ativamente a “criar o socialismo
em um só país”, a apoiar a teoria “marxista-leninista” a redefinir
suas atividades editoriais para que servissem aos interesses
propagandístico imediatos do AUCP(b). “, Não isoladamente,
Stalin publica, quatro anos após o lançamento de A Ideologia Alemã
sob o comando de Adoratski, o livro Sobre o materialismo dialético
e o materialismo histórico (1985), onde afirma que
o materialismo histórico considera que tal força é o modo de
obtenção dos meios de existência necessários à vida das pessoas, o
modo de produção dos bens materiais, dos alimentos, do vestuário,
do calçado, da habitação, dos combustíveis, dos instrumentos de
produção, etc,. necessários para que a sociedade possa viver e
desenvolver-se (Stalin, 1985, p. 16).

Tal necessidade discursiva, utilizando da falsificação do


materialismo histórico, somado ao grande expurgo promovido no
mesmo período, Stalin conseguiu sua legitimação para orientar

105
Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

a sociedade ao seu desenvolvimento, ao tomar o materialismo


histórico como uma filosofia que lhe permitiria, em suas palavras,
olhar para frente e não para trás (Stalin, 1985, p. 6).
Em conclusão, é possível perceber que as publicações
soviéticas de A Ideologia Alemã são cercadas por conflitos, sobretudo
durante o período de perseguição a Riazanov, que culminou em sua
morte precoce e a interrupção de um editorial livre de influências
stalinistas. É em tal período que podemos observar o nascimento
de uma Ideologia Alemã coesa e completa, muito diferente da
versão observada nos manuscritos originais, sobretudo no que
tange a concepção de materialismo histórico, presente na versão
soviética e inexistente nos manuscritos. Se estabelece, pois, uma
dupla Ideologia Alemã, a original, por fim, só será resgatada com
o MEGA-2 e com o editorial crítico de Hubmann e Pagel. Em
resumo, enquanto a MEGA-1 busca reconstruir, a partir de uma
falsificação, o materialismo histórico, a MEGA-2 busca reconstruir
a Ideologia Alemã, e isso fica evidente a partir da tabela comparativa
entre as duas edições. Sobretudo por muitos fragmentos não terem
título, houveram brechas para a nomeação dos mesmos de forma
arbitrária pelo editorial tendencioso, assim como sua ordenação
dentro da obra completa. Muitos capítulos tiveram suas posições
alteradas e até mesmo foram divididos para montarem o quebra
cabeça stalinista. Em contrapartida, é inexistente qualquer citação,
qualquer menção a materialismo histórico ou concepção materialista
da história nos manuscritos originais. Como dito anteriormente,
trata-se de um termo empregado mais por autores que falam de
Marx do que pelo próprio Marx, que, nunca sequer utilizou o
termo, empregado e explicado pela primeira vez por Engels em Do
Socialismo Utópico ao Socialismo Científico. Entretanto, ainda hoje é A
Ideologia Alemã, e não Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico,
que é reconhecida como a síntese da visão materialista da história.
Ademais, é importante refletir a respeito do papel de Adoratski
no editorial. A tendência stalinista que inundou os escritos do
IME aconteceu independente de Adoratksi, e não por causa de
Adoratski, sendo esse um instrumento político controlado por

106
Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

ideais de Stalin, papel o qual Riazanov negou-se a ocupar, sendo


entendido como inimigo do stalinismo. Varela (2013), chega a narrar
um episódio de confronto direto entre Riazanov e Stalin: “Stálin visita o
IME em 1927, e ao ver os retratos de Marx, Engels e Lênin, pergunta
a Riazanov: “Onde está o meu retrato?” Riazanov replica: “Marx e
Engels são meus mestres; Lênin foi meu camarada. Mas o que você
é para mim?” “ (Varela, 2013, p.13), sendo comum tais discussões
entre os dois até o expurgo e morte de Riazanov. Em conclusão,
é necessário compreender as empreitadas de Stalin na construção
do conceito de materialismo histórico, a partir da Ideologia Alemã,
Stalin obtém legitimação teórica marxista para seus feitos, como
é possível observar mais detalhadamente em sua obra Sobre o
materialismo dialético e o materialismo histórico.

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108
Tempo e temporalidades em Além do
apenas moderno e O brasileiro entre os
outros hispanos, de Gilberto Freyre
(1973 e 1975)
Messias Araujo Cardozo1

É um dado cada vez mais reconhecido por boa parte dos


historiadores que o estudo sobre o tempo e as temporalidades
é particularmente importante. Para José D´Assunção Barros, a
perspectiva do tempo é “visceral” para o historiador (Barros, 2013, p.
13). A história da historiografia enquanto um campo histórico vasto
abriga, em seu interior, investigações em torno das formas pelas
quais os conceitos de tempo e de temporalidade foram agenciados
por filósofos, por psicológicos, por sociólogos e por historiadores.
Filósofos como Santo Agostinho (354-430), Henri Bergson
(1859-1941), Martin Heidegger (1889-1976), dentre outros
pensadores de distintas tradições da filosofia, por exemplo,
apresentaram, em algumas de suas obras, um conjunto rico e fértil
de reflexões sobre o conceito de tempo e de como as temporalidades
podem ser conceituadas e problematizadas. Conjunto esse que
forma um acervo do pensamento filosófico que interessa muito aos
historiadores que, de modo geral, estão cada vez mais conscientes da
necessidade de se refletir, de maneira mais profunda, em torno da
questão do tempo histórico e das temporalidades quanto à escrita e
o ensino de história.
1 Mestre em História Social pela UFMA (Bolsa CAPES). Atualmente é Doutorando
em História na UFRGS (Linha de Teoria da História e Historiografia, orientado pelo
professor Dr. Fernando Nicolazzi). Bolsista da CAPES, e-mail: messias.histsocial@gmail.
com.

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Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

À vista disso, no interior do pensamento social brasileiro


também é possível encontrar autores que contribuíram com reflexões
interessantes em torno do conceito de tempo e das temporalidades.
Um desses autores é Gilberto Freyre (1900-1987). De sua vasta obra,
dois livros publicados na década de 1970, são as fontes principais
deste trabalho: “Além do apenas moderno” de 1973, e “O brasileiro
entre os outros hispanos” de 1975. Esta pesquisa tem como objetivo
principal responder duas perguntas: como tempo e temporalidade
foram tematizados nessas duas obras? O que era o “conceito ibérico
de tempo”?
Nessa perspectiva, estas problematizações são uma forma
de tornar os livros de Gilberto Freyre documentos históricos.
Cumpre mencionar que a vasta obra do sociólogo pernambucano
permite muitas leituras por parte de estudiosos de distintas áreas do
conhecimento. É valido situar que as problematizações que norteiam
este ensaio se inserem num projeto de pesquisa mais amplo em nível
de doutorado que estar em desenvolvimento.

Tempo histórico e temporalidades em Além do apenas


moderno (1973)
Assim Gilberto Freyre definiu o tempo: o tempo – inclusive
os futuros possíveis de um indivíduo ou de uma sociedade – é, em
grande parte, o próprio Homem. O tempo é a própria vida do
homem: indivíduo ou sociedade (Freyre, 1973, p. 15). É evidente
que essa questão é bem profunda.
Afinal, o que é o tempo? É uma pergunta que intriga
desde os físicos até, naturalmente, os filósofos e os historiadores
da antiguidade até o contemporâneo. Como conceituar as
temporalidades? Se toda historiografia tem como objeto de
estudo a experiência humana num dado tempo, essa pergunta,
melhor, a discussão em torno dela, tão cara a filosofia, desde
ao menos o medievo, conforme Agostinho (Agostinho, 1981,
p. 120), é de grande relevância nos estudos em torno do fazer
historiográfico. Pode o historiador pensar o tempo histórico

110
Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

e propor conceptualizações em torno do que seria o tempo e as


temporalidades que o constituem?
Uma possível resposta para essa pergunta é seguramente muito
complexa, portanto não há tentativas de respondê-la neste ensaio.
Se ao historiador não é lícito ou franqueado propor conceitos,
sobretudo pelos filósofos, quase os detentores de uma espécie de
“monopólio” em torno da criação dos conceitos, aos sociólogos isso
não parece um problema que cause alguma espécie de escândalo.2
Não foi ao menos para o sociólogo Gilberto Freyre, que
publicou um trabalho relativamente citado pela bibliografia mais
especializada em sua obra, no qual refletiu em torno do tempo e das
temporalidades, trata-se de: “Além do apenas moderno: sugestões
em torno de possíveis futuros do homem, em geral, e do homem
brasileiro, em particular”, publicado no ano de 1973, pela Editora
José Olympio.
Das várias dimensões do tempo, o tempo social foi o que
interessou, de maneira particular, a Freyre. Esse tempo social era
atravessado pela simultaneidade das três temporalidades, as quais
não seriam dimensões separadas, na sucessão conhecida (passado,
presente, futuro) conforme o usual na cultura ocidental. Haja vista
que “o homem nunca está apenas no presente” (Freyre, 1973, p.
xxvi-xxvii), o passado e o futuro atravessariam simultaneamente o
tempo do homem que estaria apenas parcialmente no presente.
Para a historiografia, cumpre citar a forma pela qual Freyre
tratou do tema da conjectura, que em termos de temporalidade,
aparentemente é uma operação mental que se ligaria, segundo o
sociólogo, tanto ao passado como ao futuro:
Metade do que o homem vem conseguindo reconstituir do seu
passado vem sendo obra de conjetura. Não é de admirar que o
mesmo se verifique com relação a esse outro tempo invisível que é
o futuro: mais de metade do que o homem consegue prever desse

2 Existe certamente um conjunto de produções historiográficas que vem, desde


ao menos Fernand Braudel (1984), passando por autores mais contemporâneos, como
François Hartog (2003), Reinhart Koselleck (2006), Mateus Pereira e Valdei Araujo
(2018), contribuindo para o debate sofisticado em torno de questões relativas ao tempo e
as temporalidades.

111
Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

seu outro tempo em movimento é também, necessariamente, obra


de conjetura (Freyre, 1973, p. xxvii).

De modo particular, é interessante, sem deixar de ser um


tanto ambígua, a ideia de que o passado e o futuro são conhecidos
por meio da conjetura que pode interessar ao historiador no que
ela tem de proposta para pensar o papel da conjetura na operação
historiográfica. Além do mais, também tem provocação em torno
dos limites da explicação histórica, no que ela pode conter de
preenchimento das lacunas através da imaginação e da conjetura
em torno dos acontecimentos históricos que chegam ao pesquisador
por meio das fontes que analisa.
Ademais, Freyre definiu tempo no livro em questão como
“tríbio”, pois, segundo o autor: “O tempo geral seria, assim, sempre
tríbio; sempre plural; sempre composto e complexo; sempre síntese
de três vidas coletivas. Nunca singular nem simples” (Freyre, 1973,
p. xxvii). A definição de tempo – tempo social vivido pelo homem
– estava diretamente relacionada com as temporalidades. Ao
conceituar o tempo como “tríbio”, neologismo criado por Freyre,
o autor definiu o tempo como simultaneamente passado, presente
e futuro. Embora seja evidente que as temporalidades guardem
sua especificidade, coisa que Freyre não negou, pelo contrário,
o tempo vivido seria atravessado pelas três temporalidades
de forma simultânea, de modo que uma reflexão em torno do
tempo vivenciado pelas sociedades implicaria, segundo Freyre,
em perceber como passado, presente e futuro tornam-se uma só
coisa, guardadas suas particularidades e distinções que certamente
existem.
Nessa concepção de tempo tríbio, Freyre afirmou ter tido
a inspiração na cultura hispânica. A influência dos intelectuais
e pensadores ibéricos, mais precisamente alguns pensadores
espanhóis, como o filósofo José Ortega y Gasset (1883-1955),
é um dado conhecido por alguns autores que investigam os
diálogos e interlocuções – que são termos mais apropriados do que
“influências”, conforme (Oakley, 1996) –, de Freyre com autores
hispânicos (Bastos, 2003). Da obra de Gasset, Freyre teria retirado

112
Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

a noção de que ocorre na vida social a experimentação simultânea


das três temporalidades.
A solução para as relações do homem com o tempo parece estar
no reconhecimento do tempo como uma realidade dinamicamente
tríbia da concepção brasileira; e como o homem vive imerso no
tempo, ele próprio é um ser – um estar sendo, diria talvez Gasset
– tríbio. (Freyre, 1973, p. xxvii).

Na citação, Freyre fez menção à “solução para as relações


do homem com o tempo”. O termo solução é relativo a um dado
problema. Os problemas do homem com relação ao tempo, de
acordo com Freyre, na modernidade, era o que fazer diante de
um tempo crescentemente livre que a automação da produção
capitalista estava produzindo a partir da segunda metade do século
XX. O lazer tornava-se uma prática social, segundo Freyre, cada vez
mais frequente, fruto dos processos de automação industrial que o
modelo econômico capitalista estava produzindo após a Segunda
Guerra Mundial.
O diagnóstico dessa problemática – resultante do avanço dos
processos de produção – levou Freyre a defender uma sociologia
do tempo e uma sociologia do lazer, campos da sociologia os quais,
segundo o autor, deveriam ser desenvolvidos de forma a pensar
essas questões do homem com o tempo “crescentemente livre”, do
ócio, da ascensão de formas comunitárias de vida entre os jovens,
por fim, de um tempo-lazer cada vez mais presente diante de um
tempo-trabalho em sensível declínio. Ainda de acordo com o texto
citado, o tempo é tríbio e o homem também o é. O homem sofreria
a ação do tempo de diversas formas: “o tempo mata homens, gasta
homens, supera o homem, ultrapassa homens” (Freyre, 1973, p.
101).
Sendo assim, o tempo e as temporalidades afetam diversos
homens, até o tempo futuro, de modo que uma futurologia, que seria
constituída em parte por um aparato conceitual advindo do saber
sociológico e de outra constituída de uma poderosa imaginação
científica, também deveria se constituir de modo a fazer parte de
uma sociologia do tempo aplicada ao estudo dos impactos, das

113
Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

relações e das contradições do homem com relação ao tempo e as


temporalidades.
Interessa mencionar que de junto de suas teses em torno de um
tempo tríbio, Freyre refletiu sobre o moderno, o pós-moderno e um
“além do apenas moderno”. É notório que em relação às discussões
sobre o que é a modernidade, o que é a pós- modernidade, quais suas
características específicas, existe uma larga bibliografia filosófica e
sociológica na qual se podem mencionar os estudos bem conhecidos
de Zygmunt Bauman (1998), por exemplo. O estudo sobre moderno
e pós-moderno, enquanto categoria analítica no campo da sociologia
brasileira, ainda está se consolidando e é recente. Nessa perspectiva,
não é sem razão apontar que a reflexão sociológica brasileira em
torno desses temas os quais parecem ter – nesse livro de Freyre,
publicado no início dos anos 1970 – apontamentos como um
precursor desse pensamento.
Ademais, assim como presente, passado e futuro são
separados por convenção, havendo interpenetrações entre as três
temporalidades, dificultando uma demarcação de suas fronteiras
na vida social, os limites entre o moderno e o pós-moderno, onde
termina a modernidade e começa uma pós-modernidade, são, no
mínimo, uma área sem algum consenso discernível. Freyre parecia ser
muito consciente disso, de modo que não propôs uma periodização
demarcando onde terminava o moderno e iniciava o pós-moderno.
Afinal, segundo o sociólogo:
dentro do critério de não haver, para o Homem, senão por uma
simples convenção, três tempos – passado, presente, futuro – e sim
um tempo tríbio, em que os três se interpenetram, é difícil dizer
onde termina o moderno e começa o pós-moderno. Mal começa,
já deixa de ser, para ter sido. Daí o pós- moderno se apresentar
como sua quase imediata superação. Imediata e relativamente
duradoura. O moderno é fugaz. Mas ninguém pode pôr limites
nem lógicos nem cronológicos ao pós-moderno. Ele se confunde
com o próprio futuro humano. (Freyre, 1973, p. xxviii).

Nesse sentido, ele ainda foi enfático: “O moderno apenas


moderno é efêmero e mal se define como moderno e já está sendo
superado por um tempo mais- que-moderno” (Freyre, 1973, p. 20).

114
Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

Além de enfatizar a efemeridade do moderno, Freyre argumentou


que haveria dois tipos de tempo socialmente vivenciados no interior
da modernidade. Um seria o “tempo-dinheiro” do capitalismo,
o qual as sociedades urbanas capitalistas seriam representativas.
Outro seria o “tempo- trabalho” do socialismo, o qual as sociedades
socialistas, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas – URSS – e
os países do Leste Europeu, principalmente, seriam representativos.
Dois termos que aparecem com frequência ao longo do livro
Além do apenas moderno: pós-moderno e além-do-apenas moderno.
Esses termos foram usados de uma maneira um tanto ambígua, quase
como sinônimos. De todo modo, Freyre argumentou que haveria
algumas tendências de tempos pós ou além do apenas moderno: a
valorização de tipos “superdotados”:
dentre as tendências características da nossa época e até do tempo
pós- moderno que se começa a viver em certas áreas do mundo de
hoje, superando os tempo apenas modernos vividos noutras áreas
menos desenvolvidas, esta: a valorização dos indivíduos-pessoas
supradotados de inteligência ou de talento. (Freyre, 1973, p. 177).

A figura do intelectual como um tipo social em geral,


inclusive, já teria uma tendência a ser “mais pós-modernos do que
apenas moderno” (Freyre, 1973, p. 212). Mas, por qual motivo a pós-
modernidade daria ênfase especial ou alguma espécie de tratamento
privilegiado a figura daquilo que Freyre chamou de supradotados?
Uma resposta possível seria por causa da crescente tendência
moderna, tanto em sociedades capitalistas como nas ditas socialistas
– lembrar que o texto é de 1973, o contexto era da vigência em
termos de geopolítica, da chamada Guerra Fria entre os EUA e a
URSS – de uma planificação exacerbada do futuro, transformado
tão seguro e tão estável.
O futuro como uma temporalidade objeto do planejamento,
de uma “ultrarracionalização” por parte dos cientistas da natureza, os
quais participariam como os seus planejadores ligados aos governos
das duas superpotências que na época disputavam a hegemonia
mundial. Os psicólogos, os filósofos e os sociólogos eram deixados
de lado, não eram consultados quanto à planificação do futuro.

115
Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

Um grande erro, segundo Freyre, que não apenas simbolizava


o descrédito quanto aos intelectuais das ciências humanas, mas
também que produzia um número crescente e assustador de
suicídios no interior das sociedades modernas. Sobre essa relação
entre planejamento do futuro e a ocorrência de suicídios, Freyre
destacou o caso emblemático da Suécia como exemplificação a não
ser seguido:
Tem-se já relacionado o número alarmantemente elevado de
suicídios na Suécia ao excessivo planejamento que faz, atualmente,
do futuro sueco, um futuro sem aventura, sem risco, sem surpresa:
todo previsão social para a enfermidade, a velhice, o desemprego;
todo segurança, todo conforto físico até o fim da vida. (Freyre,
1973, p. 6-7).

O futuro planejado produzia um vazio existencial, era como


se o tempo futuro, quando planejado e, de certo modo, “fechado”
– no sentido de sem aventura, risco ou surpresa – tornava-se um
tempo que matava. Logo, o futuro quando totalmente planejado
se revelava sob o signo da catástrofe. Pode-se pensar, dessa forma,
que é como se o horizonte de expectativa, para usar um conceito
de Koselleck (1990), calcado numa perspectiva do planejamento
meticuloso pelo Estado, tornava a vida no futuro sem o risco e sem
o prazer do inesperado, o que resultava no aumento significativo do
número de pessoas que decidiam tirar a própria vida.
Importa afirmar, sobretudo, que reflexões feitas por Freyre
em torno do tempo e da temporalidade não se fizeram presentes
somente na década de 1970. Desde as obras de síntese do processo
de formação da sociedade brasileira, publicadas na década de 1930,
que o sociólogo já realizou algumas incursões sobre o tema 3.
Essas reflexões de Freyre, no livro de 1973, em torno de um
tempo histórico “tríbio” no qual cada uma das três temporalidades
guardava sua especificidade e se interpenetravam ao mesmo
tempo, estavam ligadas a sua concepção de um tempo ibérico. A
modernidade trouxe duas formas de tempo: o tempo-dinheiro e o
tempo – trabalho. Freyre pensou um “tempo ibérico” como uma
espécie de “terceiro tempo”, isto é, como uma forma de terceira

116
Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

temporalidade. Ao caráter tríbio desse tempo ibérico, além do mais,


somava-se o seu aspecto mais característico: o lúdico. O que fazer
com o crescente tempo livre que uma temporalidade pós-moderna
estaria cada vez mais proporcionando? Esse era um dos desafios que
um tempo pós-moderno estaria trazendo.
Diante desse desafio, um verdadeiro problema se apresentava
ao homem, segundo Freyre, de modo que diante desse problema, o
tempo ibérico tinha muito a ensinar. O valor central do lazer, do
ócio e do experimentar a duração do tempo sem a cronometria, além
da ideia de perda ou ganho ou o labor, eram as grandes linhas gerais
desse tempo ibérico. Um tempo que não era o tempo-dinheiro nem
o tempo- trabalho. Era um tempo já pós-moderno ou, como Freyre
disse, “além-do-apenas- moderno”. Mas foi na obra de 1975 que ele
trabalhou mais esse tempo ibérico.

“On The Iberian Concept Of Time” em O brasileiro entre


os outros hispanos (1975)
O livro “O brasileiro entre os outros hispanos” (1975) é
seguramente a obra em que Gilberto Freyre mais refletiu em torno
de um suposto conceito ibérico de tempo. É interessante enfatizar
que o livro foi publicado pela editora José Olympio em convênio
com o Instituto Nacional do Livro, órgão ligado ao então Ministério
da Educação e Cultura do período da ditadura civil militar, o qual
Freyre era integrante como funcionário do Conselho Federal de
Cultura. Foi o número 168 da Coleção Documentos Brasileiros, a
época dirigida por Afonso Arinos de Melo. A coleção Documentos
Brasileiros teve três diretores: o primeiro foi o próprio Gilberto
Freyre, depois foi o historiador Octavio Tarquínio de Sousa (1889-
1959) e o último foi Afonso Arinos de Melo Franco (1905-1990) de
1936 até 1989 (Franzine, 2006).
De acordo com Freyre, a formação histórico-cultural
brasileira tinha uma “raiz” hispânica. Hispânica, entendida pelo
autor, como espanhola e portuguesa ao mesmo tempo. Essa raiz
hispânica implicava em assuntos ligados ao tempo, de modo

117
Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

que se conservaria nos traços essenciais da cultura brasileira


uma concepção de tempo bastante particular, um tempo social
hispânico que
É uma noção de tempo social que contrasta com a anglo-saxônica,
a germânica, a francesa, de maneira que é como se não fosse uma
noção européia, mas extra- européia, que tivesse concorrido para
criar no hispano a predisposição psicológica a acomodar-se melhor
que outros europeus a noções extra-européias, extramecânicas,
extra-industriais até, de tempo, que contrastam sobretudo com a
chamada 'hora inglesa'. (Freyre, 1975, p. xxxii).

De acordo com a citação, a particularidade da noção de tempo


social hispânica residiria no fato de seu antagonismo em relação ao
que Freyre chamou de “hora inglesa”. Essa hora inglesa seria o tempo
do capital, o tempo-dinheiro, os quais estariam no cerne de uma nova
orientação da experimentação do tempo que adveio da Revolução
Industrial (Thompson, 1998). O tempo hispânico teria ligação com
uma dimensão que o capitalismo industrial veio a condenar: o ócio.
Substituído pelo negócio, numa inversão da lógica que remonta aos
gregos antigos (na qual o ócio era considerado um valor e o negócio
era denegado), o ócio foi sendo cada vez mais objeto de um conjunto
de discursos que o desqualificam, investindo-se também contra
ele um conjunto de práticas, inclusive até jurídicas na tentativa
de desacreditá-lo ou interditá-lo. A exemplo, pode-se citar que na
Inglaterra com Eduardo VI, em 1547, e na França com Luís XVI,
em 1777, leis severas contra a “vadiagem” ou, simplesmente, o ócio,
foram instituídas. Para a burguesia capitalista essas leis serviam
para marcar os que não se submetiam a sua lógica de exploração do
trabalho com os signos da indecência e até do pecado (Marx, 2014,
p. 981-983).
Alguns temas presentes em “Além do apenas moderno”, de
1973, reapareceram no livro de 1975, tais como o conceito de
tempo tríbio, o fato do tempo crescentemente livre resultado da
automação, o ócio, o lazer e a crítica ao exacerbado planejamento
do futuro. De todo modo, os ensaios que compõem “O brasileiro
entre os outros hispanos” giraram em torno do conceito ibérico
de tempo. Uma leitura desses ensaios permite levantar a seguinte

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Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

questão: o conceito ibérico de tempo era uma crítica à aceleração


do tempo da modernidade capitalista?
A essa pergunta parece fundamental a resposta que sim.
Os problemas de desajustamento entre o homem e o tempo, na
modernidade, teriam relação com os efeitos que a aceleração do
tempo tinha produzido, que a “hora inglesa” era representativa.
Ademais, essa aceleração teria reduzido o tempo a dimensão
exclusivamente econômica, redução que nem mesmo a URSS estaria
distante.
Nesse sentido, cumpre citar um fragmento o qual, ainda que
extenso, é importante:
Houve tempo em que se disse com excessiva ênfase: a Espanha – ou
Portugal – representa o problema, a Europa; os Estados Unidos – ou
a União Soviética – a solução. Hoje já não é despropositado dizer-se:
Europa, Estados Unidos, União Soviética representam problemas para
os quais a solução pode estar, em grande parte, em tradições ou valores,
dos chamados de espírito, guardados pelo mundo ibérico ou hispânico,
no seu ethos e na sua cultura. Valores esses, capazes de ser atualizados
e adaptados, com o fracasso dos apenas ativistas, a novas condições
de vida e de convivência humanas que a automação começa a criar.
Entre tais valores, a noção hispânica de tempo. O pendor ibérico para
deixar o homem parte dos cuidados e das preocupações que o afligem
para amanhã, saboreando quanto possível o dia de hoje, – fumando até,
enquanto espera, o seu charuto ou o seu cachimbo; e requentando pela
saudade a experiência de ontem, para conservar dela o que possa ter de
superior ao tempo em que primeiro se verificou. (Freyre, 1975, p. xxxvi).

O diagnóstico de Freyre era de que, o tempo-dinheiro,


bem como o tempo-trabalho estaria em declínio, de modo que os
problemas do homem com o tempo, os desajustamentos, o certo
vazio existencial, que caracterizava a vida social (na passagem do
moderno para o pós-moderno ou além-do-apenas moderno), em
sociedades onde o ócio tornava-se cada vez mais frequente, era a
inspiração num tempo hispânico ou ibérico, no qual as preocupações
com o hoje, a cronometria, o “ganhar ou perder” tempo não fazia
sentido, ou ao menos não seria os signos do tempo.
Convém indicar que, desde ao menos a década de 1950, a
obra freyriana passava por um momento de inflexão teórica. Dos

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Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

ensaios de síntese sobre a formação social brasileira da década de


1930, as obras de Freyre apresentavam um conjunto de conceitos
e imagens em torno de uma ciência do trópico, que ele denominou
de Tropicologia. Essa tropicologia teria como principal ambição
estudar o homem situado nos trópicos, dando ênfase aos supostos
complexos de cultura lusitana e de cultura hispanotropical. Nesses
espaços tropicais, que configuravam áreas de cultura, desenvolveu-
se a civilização hispânica. No interior dessa civilização, nos espaços
em que teriam se situado os ibéricos nos trópicos, o tempo ibérico
também se materializou.3
Haveria, dessa maneira, nos trópicos, tempo como que um
“hispanotropical”? No capítulo “pluralismo étnico, pluralismo
cultural e tempo hispanotropical”, Freyre escreveu nesse sentido
que:
a essa fase, no desenvolvimento da civilização europeia, do tempo
como dinheiro – isto é, o hispânico, o castiçamente hispânico: o
que não se europeizou ou norte-americanizou a ponto de perder a
virtude – ou o defeito – hispânica, o hispano conservou-se de tal
modo alheio que, neste particular, sua civilização desenvolveu-se
à parte tanto da norte-americana como da anglo-americana; e em
termos de quase intimidade psicossocial com aquelas civilizações
não-européias que, por se terem conservado pré-industriais, pré-
burguesas e pré-capitalistas, em face da norte-européia e da norte-
americana, continuaram a viver, em espaços-tempos tropicais,
uma vida, pela própria ecologia dos trópicos, de ritmos lentos
de trabalho e de produção [...] um tempo lento, vago, impreciso
– mais ou menos tal ou qual hora: tempo que durante séculos
adoçado pela siesta, pelo lazer, pelo ócio, e o tempo norte-europeu
ou norte-americano: a 'hora inglesa', a hora exata, certa, precisa.
(Freyre, 1975, p. 44).

Nos trópicos, os ibéricos teriam produzido um tempo


hispanotropical com “alguma coisa de pós-moderno” (Freyre, 1975,
p. 65). Essa “alguma coisa” não fica muito clara, embora seja possível
pensar nos aspectos mais lentos, nos ritmos mais morosos, numa
experimentação do tempo a partir da valorização do lúdico e do

3 Nesse sentido, o historiador José Carlos Reis afirmou: “Freyre considera o brasileiro
dominado por um tempo lento e lúdico, preguiçoso. O ritmo brasileiro de atividade é uma
combinação de trabalho e lazer [...]. O tempo de Freyre é ibérico: sem pressa, sem relógio,
sem preço, sem dinheiro a ganhar.” (Reis, 2006, p. 79-81).

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Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

ócio, os quais, até podendo ser considerados arcaísmo barroco,


seriam, no entanto, como que um arcaísmo pós-moderno (em que
pese o oxímoro).
Para Freyre
Corresponderia a um espaço hispânico ou ibérico, ibero-tropical,
assim concebido, um tempo sociocultural, um tempo psíquico, um
tempo ultra- histórico, até, que ligado àquele espaço, constituiria
o tempo único que, como diferente de outros tempos tropicais,
daria unidade, através de noções de passado, presente e futuro
nem sempre separáveis, às vezes inseparáveis, à presença ibérica ou
hispânica em espaços, quer europeus, quer tropicais, assinalando-a
por um ritmo próprio e inconfundível de vida, de existência
e de cultura, tornadas às vezes arcaicas aos olhos de homens de
outras culturas européias ou para-européias. Culturas orientadas
por outras noções de tempo valorizadoras ao máximo não só da
separação rígida, matemática, racional, do tempo em passado,
presente e futuro como da sua fragmentação em horas, minutos
e até segundos regulada tiranicamente por cronômetros. (Freyre,
1975, p. 64).

Mesmo dando ênfase ao tempo hispanotropical, que é o


tempo ibérico, tríbio e lúdico, Freyre não desconsidera a existência
dos outros dois tipos de tempo nessa mesma civilização ibérica nos
trópicos. É que o tempo-dinheiro, assim como o tempo- trabalho,
estaria como que apenas na “superfície”, pois nos trópicos, nas suas
raízes hispânicas mais “profundas”, estaria o tempo ibérico que
estava relacionado, segundo Freyre, a aspectos pré-modernos e pré-
capitalistas, ao mesmo tempo a aspectos que ele denominou de pós-
modernos.
No livro de 1975, diferente do livro de 1973, Freyre indicou,
ainda que sem fixar uma data específica, que na Europa o começo de
uma “era pós-moderna” já se fazia sentir (Freyre, 1975, p. XLI-XLII).
Apesar disso, Freyre advertiu aos seus leitores, principalmente os
sociólogos, que “moderno” e “pós-moderno”, longe de repelirem,
encontravam-se coexistindo em vários espaços. De modo muito
semelhante à ideia de tempo tríbio, em que passado, presente e futuro
se mesclavam, o moderno e o pós- moderno se interpenetravam
também.

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Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

Como o Anexo I de “O brasileiro entre os outros hispanos” foi


publicado o texto “On the iberian concept time” que data de 1963.4
Nesse texto, Freyre deixou claro sua ideia de um conceito ibérico
de tempo:
the iberian sense of time seems to be one explanation for the fact
that, for the Spaniards and the Portuguese in the their activities
both in Europe and overseas, persons and things havebeen not only
what they seem to be but seen, considered and treated thorough
what an able interpreter of Iberian psychology, apparently applyng
a medieval philosophical saying, has described has 'a double truth',
that of the immediate detail - an objective, realistic truth - and that
of the poetic whole: a truth that includes an interpretationofthings
and person as constant, though extremely slow developmet in a
triad - past, present and future. (Freyre 1975, p. 137-138).

Essa definição de tempo ibérico se amparava numa visão bem


particular da história dos colonialismos ibéricos nas Américas.
Como a citação afirma, os espanhóis e os portugueses teriam tratado
as pessoas, nas suas atividades pelo ultramar, de um modo “poético”.
Nesse viés, é como se o sentido ibérico de tempo em sua extrema
lentidão, de alguma forma, ligasse-se a uma tendência psicossocial,
a “contemporização” dos ibéricos com os povos e culturas tropicais,
tendência que explicaria a suposta democracia étnica presente em
diversos países, como o Brasil.
Além do mais, outro aspecto a se considerar desse texto é a
noção de plasticidade do tempo ibérico. Parece que aquela imagem
ideológica do português “plástico” contida em obras como casa-
grande e senzala (1933) é retomada para pensar o caráter tríbio do
tempo ibérico. Uma dimensão também possível de ser indicada é
a antimodernidade do tempo ibérico. Uma antimodernidade que,
arcaica, pré-moderna, pré-capitalista, contrária ao tempo-dinheiro
e ao tempo-trabalho era também “pós-moderna”. Outrossim, essa
reflexão sobre a historicidade tropical tinha muitas ambiguidades.
Essa perspectiva antimoderna seria uma valorização do passado?
Uma rejeição a mudança, um apego à permanência? É o que
4 “Escrito e publicado em língua inglesa na revista dos Estados Unidos The American
Scholar, vol. 32, n.° 3, 1963 e posteriormente em alemão, em publicação avulsa, pela
Universidade de Münster, tendo obtido grande repercussão na Europa e nos Estados
Unidos” (Freyre, 1975, p. 132).

122
Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

pensa José Carlos Reis (Reis, 2006, p. 81). De todo modo, essas
reflexões freyrianas datadas dos anos 1970, em torno de um tempo
ibérico, apresentam complexidades que merecem pesquisas mais
aprofundadas sobre a temática.

Considerações Finais
Trabalhou-se, ao longo deste artigo, com duas obras de
um significativo personagem da história intelectual brasileira.
Abordaram-se essas obras como documentos históricos. Buscou-se
apontar como Gilberto Freyre definiu o tempo e a temporalidade
em duas de suas obras publicadas na década de 1970. Ao se
apresentar as reflexões de Freyre em torno do tempo histórico e
das temporalidades, foi objetivado argumentar que essas reflexões
são significativas para o campo da teoria da história e da história
da historiografia. A investigação realiza um esforço de pensar
questões relacionadas ao tempo histórico, a partir das formas pelas
quais um importante representante do pensamento social brasileiro
conceituou tempo e refletiu sobre as temporalidades.
Na primeira parte do trabalho, o objetivo foi indicar como
Freyre, no livro Além do apenas moderno (1973), refletiu sobre
o que ele denominou de “tempo tríbio”, argumentando que
passado, presente e futuro seriam temporalidades que não são
tão separadas como usualmente se pensa, de modo que o homem
viveria simultaneamente em três temporalidades. Ainda nessa
seção do texto, fez-se menção as reflexões freyrianas em torno do
moderno, pós-moderno e do que ele chamou de “além do apenas
moderno”, reflexões essas que apontavam para o conceito de
tempo e das temporalidades como da ordem do fluido, maleável
e sincrético.
Na segunda parte do ensaio, o foco residiu na análise do
“iberian concepto of time” que se encontra no livro O brasileiro
entre os outros hispanos (1975). Segundo Freyre, um aspecto central
a se considerar quanto ao estudo sobre a formação social brasileira é
a sua raiz ibérica. Dessa raiz, uma concepção de tempo hispânica se

123
Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

fazia presente, com seus ritmos morosos e lúdicos, de modo que seria
pertinente indicar a existência de um “tempo hispano-tropical”.
Esse tempo ibérico, segundo pensava Freyre, poderia ser
pedagógico para a resolução dos crescentes problemas do homem
moderno diante do tempo, problemas trazidos pela automação
industrial, criadora de tempos crescentemente livres – nos quais
um lazer para além do consumismo deveria ser pensado – se
configuravam em problemáticas as quais o sentido ibérico do
tempo, que valorizava o lúdico e o ócio, poderia contribuir.

Referências:
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da Imprensa, 1981.
BASTOS, Elide Rugai. Gilberto Freyre e o pensamento hispânico: entre
Dom Quixote e Alonso El Bueno. 1 Ed. Bauru: EDUSC, 2003.
BAUMAN, Zygmunt. O Mal-estar da Pós-modernidade. 1 Ed. Rio de
Janeiro: Zahar, 1998.
BRAUDEL, Fernand. O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico. 1 Ed.
São Paulo: Martins Fontes, 1984.
FRANZINE, Fábio. À sombra das palmeiras. A Coleção Documentos
Brasileiros e as transformações da historiografia nacional (1936-
1959). Tese (Doutorado em História). Programa de Pós-Graduação
em História Social, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2006.
FREYRE, Gilberto. Além do apenas moderno: sugestões em torno de
possíveis futuros do homem, em geral, e do homem brasileiro, em
particular. 1 Ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora,
1973.
FREYRE, Gilberto. O brasileiro entre os outros hispanos: afinidades,
contrastes e possíveis futuros nas suas inter-relações. 1 Ed. Rio de
Janeiro: Livraria José Olympio Editora; Instituto Nacional do Livro,
1975.
HARTOG, François. Régimes d’historicité, Présentisme et expériences

124
Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

du temps. Paris: Seuil, 2003.


KOSELLECK, Reinhart. Le Futur Passe. Paris: EHESS, 1990.
MARX, Karl. O Capital: o processo de produção do capital. Volume
1. 1. Ed. São Paulo: Boitempo, 2014.
OAKLEY, Francis. “Anxieties of Influence”: Skinner, Figgis,
Conciliarism and Early Modern Constitutionalism. Past & Present,
n. 151, p. 60–110, 1996.
PEREIRA, Mateus; ARAUJO, Valdei. Atualismo 1.0 – Como a ideia
de atualização mudou o século XXI. 1 Ed. Ouro Preto: SBTHH,
2018.
REIS, José Carlos. As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. 8.
Ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.
THOMPSON, Edward Palmer. Tempo, disciplina de trabalho e
capitalismo industrial. In: THOMPSON, Edward Palmer. Costumes
em Comum. 1 Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

125
Aventuras e desventuras na
modernidade
Uma análise de O Hobbit, de J. R. R. Tolkien
(1930-1937)
Roney Marcos Pavani

O texto literário como fonte histórica


Um velho provérbio irlandês, imortalizado no filme
Braveheart (1996) de Mel Gibson, diz que “a fim de encontrar o seu
igual, um irlandês se vê obrigado a falar com Deus.” Mais do que
um curioso atestado de etnocentrismo, podemos interpretar a frase
da seguinte forma: para enfrentar os percalços de uma existência
por demais fugaz, os seres humanos, dotados que são de uma
potência criativa infinita, elaboram sonhos, imaginários, utopias,
e precisam preenchê-los do modo mais inteligível possível. Daí a
sua proximidade com o divino. A esse preenchimento dá-se o nome
de ficção ou fingimento. Nas palavras do inconfundível Mario Vargas
Llosa (1936-):
condenados a uma existência que nunca está à altura de seus
sonhos, os seres humanos tiveram que enfrentar um subterfúgio
para escapar de seu confinamento dentro dos limites do possível: a
ficção. Ela lhes permite viver mais e melhor, ser outros sem deixar
de ser o que já são, desloca-se no espaço e no tempo sem sair do
lugar, nem de sua hora e viver as mais ousadas aventuras do corpo,
da mente e das paixões, sem perder o juízo ou trair o coração
(LLOSA apud Ferreira, 2009, p. 67).

Dito de outra maneira: ao longo de toda a história, e por


meio das mais variadas expressões, a humanidade foi além do óbvio
e do útil, isto é, da busca e do compromisso com a objetividade,

127
Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

daquilo que sempre existiu através da reflexão filosófica, do


discurso político ou da ciência. Estamos a falar da literatura, um
instrumento que, especialmente na modernidade, não documenta
o real (à semelhança, por exemplo, da mímese aristotélica), nem
constitui uma representação da mesma natureza que as outras
formas de conhecimento citadas.
Aliás, pode ser a literatura uma forma de conhecimento?
Algo para além de entretenimento e escapismo? O marxismo,
dentre outras escolas de pensamento, respondeu a ambas perguntas
positivamente. Para Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels
(1820-1895), as criações artísticas, em uma expressão clássica
“manifestam interesses de classe”. Logo, a literatura, que é uma
forma de arte, reflete a sociedade da qual emerge. Trata-se, sem
dúvida, de uma indução interessante, mas não explica, entre outras
coisas, a permanência do interesse em obras do passado (A Ilíada e
a A Odisseia, por exemplo) em sociedades e épocas completamente
diferentes.
Segundo Regina Zilberman (Zilberman, 2013, p. 146), o
crítico György Lukács (1885-1871) tentou resolver o problema
deixado por seus mentores epistemológicos, a ponto de ser um dos
fundadores do que se conhece hoje como sociologia da literatura. Suas
premissas eram basicamente as seguintes: 1. retomando Aristóteles,
a arte é mimética e reflete, de certa forma, o real; 2. a obra é orgânica
e constitui-se em um universo independente, porém, e é aí que está
o diferencial; 3. não se trata de “cópia” do real; 4. é algo original.
Nesse sentido, obras que permanecem são aquelas que melhor
refletem um determinado momento histórico.
Mais ainda, para Lukács “a obra literária é a expressão da visão
de mundo, a partir da consciência possível do autor” (Zilberman,
2013, p. 151). E o autor, por sua vez, se limita às coordenadas de seu
tempo, espaço e condição social. Portanto, um texto literário pode
se constituir em um documento histórico eficaz. Não para retratar a
sociedade como um todo, e sim para lançar luz a pontos específicos
dela.

128
Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

Antonio Cândido (2006) trilha esse mesmo caminho. Isto


é, um texto literário não pode ser considerado por si mesmo, sendo
necessário, em suas próprias palavras, “fundir texto e contexto”
(Candido, 2006, p. 12). Os elementos externos à obra, embora não
devam ser encarados como causas, não podem ser desprezados. Eles
são constituintes da sua estrutura.
Porém, estejamos atentos: é preciso ter consciência da relação
arbitrária e deformante entre o trabalho artístico e a realidade.
“Achar […] que basta aferir a obra com a realidade exterior para
entendê-la é correr o risco de uma perigosa simplificação causal”
(Candido, 2006, p. 22). Assim, se quisermos compreender as
influências efetivas do meio sobre a obra literária, é preciso,
primeiro, desviar-se da velha banalidade: “arte enquanto expressão
da sociedade”; e, em seguida, da ideia de que a arte está sempre
interessada nos problemas dessa mesma sociedade. Ou seja, que o
valor de uma obra se mede por réguas ideológicas.
Em uma outra perspectiva, a historiadora Sandra Pesavento
(Pesavento apud Grecco, 2014) nos diz que a literatura pode ser
salutar à compreensão da realidade, pois ela é capaz de revelar “o
campo de produção simbólica” de uma época. O texto literário
revela e insinua as verdades da representação ou do simbólico
através dos fatos criados pela ficção:
a compreensão de que a literatura é, além de um fenômeno estético,
uma manifestação cultural tem permitido ao historiador assumi-
la como fonte de pesquisa. Portanto, toda ficção está sempre
enraizada na sociedade, uma vez que é em determinadas condições
de espaço, tempo, cultura e relações sociais que o escritor cria seus
mundos de sonhos, utopias ou desejos, explorando ou inventando
através de diferentes signos linguísticos. Assim […], a obra literária
se concretiza como uma evidência histórica objetivamente
determinada, situada dentro de um processo histórico, e deve
ser adequadamente interrogada a partir de suas propriedades
específicas (Grecco, 2014, p. 46).

Se a conhecida máxima a história versa sobre o que foi, a


literatura sobre o que poderia ter sido ainda for válida (e cremos que
ela o seja), podemos inferir que a literatura se encontra no campo
das incertezas, das possibilidades, enfim, se não daquilo que é real,

129
Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

ao menos do que é concebível. Ora, todos esses elementos também


possuem uma historicidade. Quer dizer, os limites dos sonhos, da
imaginação e da ficção não são os mesmos ao longo da história.
Sabemos disso desde os primórdios dos Annales e da renovação
historiográfica dos anos 1930, a qual contribuiu enormemente para
o estudo das mentalidades coletivas. Pensar, imaginar, crer está para
além das vontades do indivíduo. É mais ou menos a essa conclusão
que chegou Lucien Febvre (1878-1956) com o seu seminal O
Problema da Incredulidade no século XVI: A Religião de Rabelais (1942),
ao atestar a impossibilidade da existência do ateísmo na Europa do
século XVI (Burke, 1997, p. 34-40).
A despeito de todas as críticas feitas à obra de Febvre, é
válida a tese de que ao nos debruçarmos sobre uma obra, não se
trata apenas de admirar a criatividade ou a inventividade de um
determinado escritor. Existe ali uma base material que condiciona
aquilo que pode ou não ser matéria de textos literários, ou de como
as histórias presentes nestes textos serão contadas.
É exatamente nesse aspecto, do indireto e do subterrâneo, e
não do óbvio e do utilitário, que os textos literários são relevantes
ao trabalho do historiador. Não se pode, assim, buscar na
literatura uma espécie de panfleto ou uma mensagem do autor para
seus patrocinadores ou para seu público. A empresa há de ser mais
sutil.
De volta ao nosso questionamento inicial, se o texto literário
permite algum tipo de conhecimento da realidade. A resposta
é, por tudo o que dissemos até aqui, positiva. Não da realidade
enquanto representação, mas como transfiguração ou mesmo
desfiguração. Um espelho côncavo, não plano. Pensemos em alguém
que, como Narciso, vê o próprio reflexo em um lago. No entanto,
diferentemente do mito clássico, esse lago não está parado, imóvel,
capaz de projetar uma imagem límpida e cristalina do observador.
As águas estão em movimento, em ondas incontáveis, pois alguém
acabou de feri-las com uma pedra arremessada.

130
Uma realidade inverossímil
No clássico ensaio de Roman Jakobson (1896-1982) – Do
realismo artístico, define-se “realismo” da seguinte forma: “uma
corrente artística que propôs como seu objetivo reproduzir a
realidade o mais fielmente possível e que aspira ao máximo de
verossimilhança” (Jakobson, 2010, p. 120). Em termos mais simples,
são realistas todas as obras que parecem verossímeis. Pausa. Eis aí o
primeiro problema para o pensador russo: para quem se direciona
esse “parecer verossímil”? Para quem escreve ou para quem lê? A
confusão se amplifica, uma vez que todos os movimentos literários,
dos românticos aos futuristas, claro está, se pretendem o máximo de
verossimilhança.
Jakobson experimenta, então, outra definição: “realismo
diz respeito, especificamente, àquela escola artística do século
XIX”. Seriam, pois, as obras dessa escola as mais verossímeis, por
tratarem de temas do cotidiano e da vida das pessoas comuns. Ivan
Jablonka (Jablonka, 2017, p. 11-12), já em tempos mais recentes,
concorda com essa proposição: o “realismo” se refere a romances
publicados entre 1830 e 1914, na tentativa de fazer uma pintura
fiel da realidade, de sondar as feridas da sociedade, as devastações
provocadas pela industrialização, e todas as transformações que a
envolveram.
Ambos os autores, no entanto, são cirúrgicos ao apontar
que a tentativa de retratar, na prosa ficcional, a realidade tal qual
ela é, ou mais próximo das camadas populares, não passa de uma
falácia. Em primeiro lugar, porque buscar uma verossimilhança
“natural” em textos literários é algo problemático. Não nos
esqueçamos do trivial: a forma da mensagem faz parte do seu
conteúdo:
a língua cotidiana conhece vários eufemismos, fórmulas de
cortesia, palavras veladas, alusões, aparências convencionais.
Quando pedimos ao discurso para ser franco, natural, expressivo,
rejeitamos os acessórios que são postos num salão, chamamos os
objetos por seu próprio nome e estes chamados têm uma nova
ressonância (Jakobson, 2010, p. 121).

131
Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

Vejam, os textos realistas não estão imunes a isso. Por exemplo,


quando se empregam certas palavras que, hoje, não nos dizem nada.
Ou quando, para se caracterizar um objeto, enfatizam-se certos
traços que antes não eram notados. Como diria Dostoiévski: “em
arte, para mostrar o objeto, é preciso proceder através do exagero,
deformar a sua aparência precedente.” É preciso colorir o objeto
para torná-lo mais visível e, daí, mais real. Logo, o realismo é uma
contradição em si mesmo.
Entretanto, e mais importante, a pretensão fundamental
do realismo é ser uma espécie de mural da sociedade, capaz de
transmitir a verdade sobre as mazelas do tempo. Afirmar isso é estar
assentado sobre a premissa de que “para escrever o mundo basta
olhar pela janela” (Jablonka, 2017, p. 13). Quer dizer, é possível
compreender a sociedade apenas observando-a, ou, do modo mais
claro e positivista possível, os fatos falam por si.
Essa pretensão, bem como a crença na capacidade humana
de apreender toda a realidade e transplantá-la para o papel, foi
paulatinamente abandonada na virada do século XIX para o
XX, um período marcado por profundas perturbações. Novos
postulados científicos, como o conceito do inconsciente, de Sigmund
Freud (1856-1939); o rompimento com a geometria euclidiana
estabelecido por Edmund Husserl (1859-1938); os trabalhos que
culminaram na Teoria da Relatividade Geral de Albert Einstein
(1879-1955), e a constatação revolucionária de que o Universo não
simplesmente é, mas está em expansão desde a sua origem, como
proposto por Edwin P. Hubble (1889-1953) modificaram a maneira
como as pessoas, sobretudo aquelas pertencentes às classes falantes,
pensavam o mundo e a si mesmas.
Todavia, mais do que ideias e novos conceitos, o que moldou
a literatura de princípios do século XX foram dois processos
históricos: a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e sua filha
rebelde, a Revolução Russa (1917-1922). Nunca, em toda a
história da humanidade, haviam sido mobilizadas tantas pessoas, e
outras tantas haviam sido mortas em tão pouco tempo, e por meios
tão eficazes. Se até então, os dois piores conflitos vivenciados no

132
Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

Mundo Ocidental – A Guerra de Secessão (1861-1865) e a Guerra


Franco-Prussiana (1870-1871) contavam seus mortos na ordem
das centenas de milhares, agora passava-se a falar em dezenas de
milhões.
Corpos estripados em trincheiras ou pendurados em arame
farpado; nuvens mortíferas de gás asfixiando ou cegando soldados;
metralhadoras a disparar projéteis na cadência de 600 a 1000 tiros
por minuto; chamas de tamanho humano queimando terra e carne;
máquinas voadoras despejando quilos e quilos de explosivos sobre
tropas em fuga; e, finalmente, os tanques de guerra, verdadeiros
monstros blindados, atropelando de maneira implacável qualquer
coisa que estivesse em seu caminho. Sejamos francos: na condição de
sobrevivente, como retratar tudo isso? Era tão absurdo e grotesco,
que beirava o inacreditável, o instransmissível.
A Primeira Guerra, e o século XX de um modo geral, tornaram
verdadeiro o que já foi dito e repisado por diversos literatos: a
verdade pode, às vezes, ser inverossímil; a vida constitui um grande
absurdo. Ela, por si só, não convence ninguém. E, uma vez que se
quer transmitir essa experiência, é preciso ir além da mera descrição
realista, das coisas “tais quais aconteceram”.
Se o realismo já era insuficiente antes de 1914, após a Guerra
ele caiu no descrédito. Para quem participou do conflito ativamente
e se propunha a escrever, era preciso transcender, explorar outros
gêneros, e daí abraçar o fantástico. Não por acaso, na literatura de
língua inglesa, para além de nomes como Siegfried Sasson (1886-
1967), T. E. Lawrence (1888-1935), Wilfred Owen (1893-1918)
e Virginia Woolf (1882-1941), que enfatizavam as desilusões do
período, o que se observou foi, de um lado, a criação de universos
desconhecidos e cenários distópicos: H. G. Wells (1866-1946),
Aldous Huxley (1894-1963), George Orwell (1903-1950); e de
outro, de mundos de fantasia e de espanto: H. P. Lovecraft (1890-
1937), C. S. Lewis (1898-1963), Robert Howard (1906-1936), além
de um certo ex-combatente e futuro catedrático de Anglo-saxão em
Oxford, chamado J. R. R. Tolkien (1892-1973).

133
Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

As palavras de John Garth, que escreveu o interessantíssimo


ensaio Tolkien e a Grande Guerra (2022), ecoam o que já dizia
Dostoiévski sobre a arte, especialmente em tempos perturbadores
e inverossímeis:
a ficção fantástica leva vantagem sobre o 'realismo' […] Ela amplifica
e esclarece a condição humana […]. Existe um parentesco espiritual
entre o infeliz Meglin [personagem do conto A Queda de Gondolin.
de Tolkien] e W. Smith [protagonista do 1984, de Orwell],
bebendo seu gim da vitória sob os olhos do Grande Irmão (Garth,
2022, p. 266. [Grifos do autor]).

O fantástico emerge
A realidade é um absurdo; o realismo não passa de um
oxímoro. Os artistas do mundo moderno, os literatos em particular,
eram conscientes disso. A escrita do século XX estava embebida do
desejo de transcender o real para compreendê-lo. Não é coincidência
que, como afirmou Tom Shippey (SHIPPEY, 2002, p. vii): “o modo
literário dominante no século XX foi o fantástico”. Dão testemunho
disso obras significativas, tais como: O Hobbit e O Senhor dos Anéis
(Tolkien), A Revolução dos Bichos e 1984 (Orwell), O Senhor das
Moscas (W. Golding), A Guerra dos Mundos e A Ilha do Dr. Moreau (H.
G. Wells):
those authors of the twentieth century who have spoken most powerfully
to and for their contemporaries have for some reason found it necessary to
use the metaphoric mode of fantasy, to write about worlds and creatures
which we now do not exist, whether Tolkien’s 'Middle-earth', Orwell’s
'Ingsoc', the remote islands of Golding and Wells, or the Martians and
Tralfamadorians who burst into peaceful English or American suburbia
in Wells and Vonnegut (Shippey, 2002, p. viii).1

Shippey observa que não são poucas as vezes em que se


atribui a isso explicações simplistas, por exemplo, “doença literária”,
“escapismo” ou “fuga da realidade”. Ora, é preciso lembrar sempre
1 “Os autores do século XX que falaram com mais força para e por seus contemporâneos,
por algum motivo, acharam necessário usar o modo metafórico da fantasia, para escrever
sobre mundos e criaturas que agora não existem, seja a ‘Terra-média’ de Tolkien, o ‘Ingsoc’
de Orwell, as ilhas remotas de Golding e Wells, ou os marcianos e tralfamadorianos
que irromperam nos pacíficos subúrbios ingleses ou americanos em Wells e Vonnegut”
[Tradução nossa].

134
Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

que boa parte dos autores citados esteve diretamente envolvida nos
eventos traumáticos do século XX (como a Primeira Guerra ou os
expurgos de Stalin), e não virou as costas diante deles.
Que Tolkien tenha apelado para esse gênero ao longo de toda a
sua vida, portanto, não era mero capricho pessoal. Ele simplesmente
se dedicou a abordar temas oportunos: a origem e a natureza do
mal, ou a condição humana sem o suporte da Revelação Divina,
por exemplo. Como vimos, a prosa realística não dava conta deles,
diferentemente da fantasia.
Já dizia Ivan Jablonka (Jablonka, 2017, p. 16), que um
romance ajuda a esclarecer a realidade não por ser verossímil, mas
pela qualidade de sua abordagem. Nesse sentido, Marcel Proust
(1871-1922) é mais útil que um mau sociólogo, 1984 é melhor do
que historiadores enfadonhos do stalinismo, O Hobbit e O Senhor dos
Anéis são mais envolventes do que compêndios como A história do
século XX para quem tem pressa.
Esse deslumbramento possui uma explicação. No caso de O
Hobbit, tem-se a primeira tentativa de J. R. R. Tolkien de unir várias
facetas de seus escritos – poesia, arte, mitologia, contos de fadas,
além do conhecimento da língua e da literatura medievais – em uma
única história (Tolkien; Anderson, 2021, p. 20).
Essa história “de muito tempo atrás” (Tolkien; Anderson,
2021, p. 41) se passa em um cenário, em linhas gerais, pré-moderno
e rural, como é típico da fantasia. Não há grandes centros urbanos,
automóveis ou eletricidade. Algo imerso “na quietude do mundo,
quando havia menos barulho e mais verde” (Tolkien; Anderson,
2021, p. 46-47), e que foi destruído, entre outras coisas, pela
Revolução Industrial e pela Grande Guerra. Aliás, os sinais dessa
decadência, e de que o mundo está desprovido de valores, como
coragem e encantamento, podem já ser notados nas seguintes
passagens:
os guerreiros estão ocupados lutando uns contra os outros em
terras distantes, e nesta vizinhança os heróis são escassos, ou
simplesmente não existem. As espadas nestas partes em geral estão
sem gume, e os machados são usados em árvores, e os escudos como

135
Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

berços ou coberturas de pratos; e os dragões estão a uma distância


confortável (e, portanto, são lendários). (Tolkien; Anderson, 2021,
p. 63).
Policiais nunca vêm tão longe, e os fazedores de mapas ainda
não chegaram a essa região. Os mapas antigos não prestam: as
coisas mudaram para pior, e a estrada não é protegida. Quase não
chegaram a ouvir falar do rei [de lei e ordem] por aqui e, quanto
menos curioso você for enquanto viaja, menos problemas tende a
encontrar. (Tolkien; Anderson, 2021, p. 75).
A terra à volta deles se fez vazia e sem vida, embora antes […]
tivesse sido verdejante e bela. Havia pouca grama, e não demorou
para que não houvesse nem arbusto nem árvore, mas apenas
tocos destroçados e queimados como recordação dos que haviam
desaparecido muito tempo antes. (Tolkien; Anderson, 2021, p.
233).2

Usando uma metáfora pictórica, está-se diante de uma tela


medievalística, porém as tintas que a preenchem são modernas, por
vezes anacrônicas. Isso pode ficar ainda mais claro ao analisarmos
o protagonista do conto – Bilbo Bolseiro (Bilbo Baggins, no original),
“um indivíduo de meia-idade, nada aventureiro, que veste roupas
sensatas, gosta de cores vivas e comida simples”. (Carpenter, 2018,
p. 114).
A residência desse sujeito lembra o lar de um indivíduo da
classe alta vitoriana (1837-1901) – Tolkien nasceu em 1892, em
uma família inglesa inicialmente abastada. A sua ideia de conforto
e requinte, do que seria uma habitação ideal, é propriamente de sua
época:
paredes com painéis e assoalhos azulejados e acarpetados, com
cadeiras enceradas […], quartos, banheiros, adegas, despensas
(muitas dessas), armários (ele tinha cômodos inteiros dedicados
a roupas), cozinhas, salas de jantar. (Tolkien; Anderson, 2021, p.
45).

Além disso, como apontado por Tom Shippey (Shippey,


2002, p. 5), Bilbo Bolseiro está rodeado por utensílios (cachimbo,
fósforos, relógio, lenço de bolso) e maneirismos (fuma tabaco, come
bacon com ovos, lê as cartas trazidas pelo correio, faz barulho “como
2 A descrição lembra bastante a Terra de Ninguém, o espaço entre uma trincheira e
outra nos fronts da Primeira Guerra: “um caos de crateras de granadas inundadas de água,
tocos de árvores calcinadas, lama e cadáveres abandonados” (Hobsbawm, 1995, p. 27).

136
Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

um apito de trem”, convida pessoas para o chá, conhece códigos de


polidez) próprios da sociedade inglesa do século XIX. A região em
que mora – chamada simplesmente de “a vizinhança d’A Colina”
– é composta por indivíduos ordinários, fechados e, sobretudo,
provincianos (“nunca participavam de aventuras, nem faziam nada
de inesperado”). Por vezes, são sérios, desagradáveis, intrometidos,
e que não medem esforços a fim de leiloar os bens dos vizinhos no
caso do desaparecimento (mesmo que suposto) destes. (Tolkien;
Anderson, 2021, p. 313-314).
Trata-se, pois, de uma pessoa moderna, inglesa, com todo o
conforto (material) e desconforto (social) que essa condição traz.
Quero dizer, Bilbo não poderia desejar um lugar melhor para
viver “sossegado, a ponto de ficar imóvel” (Tolkien; Anderson,
2021, p. 46). No entanto, e apesar disso, trata-se de uma realidade
burocrática, desencantada e, por isso mesmo, incompleta. Falta a
esse indivíduo alguma coisa; há uma inquietude que não o abandona,
“uma coisa esquisita […], algo que estava só esperando uma chance
para aparecer”. (Tolkien; Anderson, 2021, p. 46).
Essa chance é consumada por outro personagem central –
Gandalf, o mago, um espírito verdadeiramente arrebatador. É ele
quem lança o homem estático e banal que a modernidade criou,
em um universo no qual será possível explorar todas as suas
potencialidades: “Estou procurando alguém para tomar parte
numa aventura que estou arranjando e é muito difícil achar gente”
(Tolkien; Anderson, 2021, p. 47). Bilbo, apesar de remotamente,
conhece-o.
Gandalf! Gandalf! Ora viva! Não o camarada que costumava contar
tantas histórias maravilhosas em festas sobre dragões, e gobelins,
e gigantes, e o resgate de princesas, e a sorte inesperada de filhos
de viúvas? Não o homem que costumava fazer fogos de artifício
tão particularmente excelentes! Eu me lembro desses! […] Não o
Gandalf que foi responsável por levar tantos rapazes e raparigas
tranquilos a desaparecer na Lonjura em aventuras desvairadas?
[…] Minha nossa, a vida costumava ser bem interes… digo, você
costumava bagunçar as coisas demais nestas partes tempos atrás.
(Tolkien; Anderson, 2021, p. 49).

137
Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

Em seu ímpeto pela racionalização e pela lógica, o mundo


moderno não deixou espaço para fenômenos extraordinários. O
conhecimento acerca da realidade, quando chega, vem apenas no
“ouvir dizer” ou quando está sistematizado nas enciclopédias: “Bilbo
sabia de tudo isso. Tinha lido sobre um bocado de coisas que nunca
tinha visto ou feito” (Tolkien; Anderson, 2021, p. 77), mais ou
menos como Dom Quixote ou Fausto, dois símbolos máximos da
modernidade.
Gandalf representa esse desejo. Isto é, a certeza de que o
verdadeiro conhecimento não está ali, no mundinho fechado dos
livros ou das conversas informais. É possível, e mais, é imperativo
atravessar a porta para fora da mediocridade e emancipar-se.
Bilbo Bolseiro, assim, ao aceitar por conta própria o desafio de
metamorfosear-se de “burguês” (bourgeois) em “gatuno” (burglar),3
exemplifica essa evolução:
[Disse Gandalf:] Escolhi o Sr. Bolseiro, e isso deveria ser suficiente
para todos vocês. Se digo que ele é um Gatuno, um Gatuno é o
que ele é, ou será, quando a hora chegar. Há muito mais nele do
que vocês acham, e um bocado mais do que ele próprio imagina.
(Tolkien; Anderson, 2021, p. 61).

Viver é sofrer
Desde o Aufklärung kantiano (Kant, 2005), ventilou-se nas
chamadas sociedades ocidentais a crença de que há um ímpeto dentro
de todos nós que nos impulsiona à criatividade e ao desenvolvimento
individual. É possível (e desejável) nos tornarmos pessoas livres,
autônomas, maduras e, por conseguinte, mais felizes. No entanto, as
catástrofes do século XX mostraram da pior maneira possível como
essa ideia, se não passava de um desvario, uma quimera, ao menos
deveria ser tratada com um pouco mais de ceticismo. Em outras
3 Uma questão filológica: Tom Shippey percebeu que Tolkien, propositalmente,
utilizou a palavra burglar (“arrombador”, “gatuno”), e não thief ou robber (termos mais
usuais), para se referir ao papel que Bilbo Bolseiro teria na aventura. Burglar (às vezes,
burgler) vem da raiz germânica burh (“mansão”, “castelo”), da qual também descende
bourgeois (“burguês”). Ou seja, há uma mesma origem para quem “habita em mansões” e
para quem “arromba mansões”. A missão de Gandalf, assim, é impulsionar Bilbo de um
estágio para outro. (Shippey, 2002, p. 10).

138
Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

palavras, o empreendimento humano na busca de seus ideais pode


nos tornar pessoas piores.
Tolkien sabia disso e, portanto, fez questão de que seu
protagonista não estivesse sozinho em seu processo de crescimento,
como seria típico de um herói romântico e solitário. A aventura
é feita em grupo, com treze companheiros, os anãos (no original,
“dwarves”)4. Além do mais, sua origem remota e seu espírito
aventureiro representam o mundo real, maduro, o qual Bilbo,
enfurnado em sua toca burguesa, ignora por completo.
A escolha dos guias não é fortuita. O homem moderno deve
ir muito além do que o progresso material lhe proporcionou. Quer
dizer, Bilbo Bolseiro precisa ter consciência de que a vida é mais
do que boa comida e uma cama macia no fim do dia. Nada melhor
para se adquirir consciência do que um choque de realidade com
base no contraste e na alteridade. Nesse sentido, os anãos são o seu
extremo oposto. Em primeiro lugar, eles são errantes e expatriados,
enquanto Bilbo é sedentário e tem um lar:
há muito [disse Thorin], nossa família foi expulsa do Norte distante,
com toda a sua riqueza e suas ferramentas, a essa montanha no
mapa […] Depois disso fomos embora, e tivemos que ganhar a vida
da melhor maneira que podíamos para lá e para cá pelas terras…
(Tolkien; Anderson, 2021, p. 65-66).

A despeito disso, os anãos já viveram seus dias de glória e


esplendor. Enquanto que Bilbo e seus conterrâneos hobbits são
“gente simples e quieta”, e que “não quer saber de aventuras”:
após esse retorno eles mineraram, e abriram túneis, e fizeram
salões imensos e oficinas maiores […]. De qualquer modo, ficaram
imensamente ricos e famosos, e meu avô se tornou Rei sob a
montanha de novo, sendo tratado com grande reverência pelos
homens mortais. […] Pais imploravam que fizéssemos de seus
filhos nossos aprendizes e nos pagavam regiamente, em especial,
em suprimentos de comida, que nunca nos preocupávamos em
produzir ou achar por nós mesmos. Em resumo, aqueles eram bons
dias para nós, e os mais pobres entre nós tinham dinheiro para
gastar e emprestar. (Tolkien; Anderson, 2021, p. 65).

4 As edições brasileiras mais recentes de O Hobbit, como a que utilizamos nesse


trabalho, optaram por traduzir o plural de dwarves por “anãos” (mais arcaico), e não
“anões” (de uso corrente).

139
Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

Por fim, os anãos são uma comunidade sofrida, e carregam


em seus corpos as marcas da ignomínia e da exploração: “às vezes
descendo tão baixo a ponto de trabalhar como um ferreiro comum,
ou mesmo minerando carvão” (Tolkien; Anderson, 2021, p. 66).
Não é de se admirar que vivam escondidos, receosos, e que guardem
rancor por várias gerações. Longe de receberam algum tipo de
compaixão ou empatia, as pessoas comuns, em geral, os tratam com
desconfiança, quando não com repulsa infundada:
Raça rija, obstinada, secreta, laboriosa, que guarda a lembrança
das injúrias (e dos benefícios), apreciadores da pedra, das gemas
[…]. Poucos jamais serviram ao Inimigo de livre vontade, não
importa o que tenham alegado as histórias dos homens. (Tolkien;
Anderson, 2021, p. 86).

Bem diferente do rico e próspero Sr. Bolseiro, que além de não


ter necessidade de trabalhar, era considerado em muito alta conta
por seus vizinhos. Todavia, a paz e a prosperidade que o personagem
conhece não se encontram em todos os lugares. Longe de representar
a realidade como um todo, são apenas a ponta do iceberg, a frente
do palco. Já no fundo do oceano, nos bastidores, tudo é muito mais
complexo e obscuro. Experienciar a vida pressupõe ficar a par de
tudo isso.
De maneira semelhante, quem esteve, como Tolkien,
na virada do século XIX para o XX, vivenciou um período de
transformações sem precedentes. De um lado, os progressos
técnicos oriundos da Segunda Revolução Industrial, e do uso
cada vez mais frequente da eletricidade, de compostos químicos,
e de equipamentos movidos a combustíveis fósseis: fotografia,
telégrafo, telefone, automóvel, cinema. Pela primeira vez na
história da humanidade, havia mais pessoas a viver em cidades
do que no meio rural. De outro, e de certa forma responsável
direto por esses avanços, o neocolonialismo europeu, que fatiava
África, Ásia e Oceania entre meia-dúzia de impérios poderosos.
Uma época de relativa paz e prosperidade no Velho Continente,
obviamente cimentada na (raramente reconhecida) destruição e
espoliação de uma infinidade de povos.

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Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

A modernidade estacionou o indivíduo burguês. Faz-se


necessária a saída da sua condição de menoridade, na qual só há
contato com quem é semelhante a ele, para níveis mais elevados
de amadurecimento, nos quais será possível ficar frente a frente
com aquilo que é diferente e distante. No entanto, ao contrário
do velho sonho iluminista, transpor-se de um ponto a outro não
trará felicidade, muito pelo contrário. Conhecimento não é virtude.
Afinal, foi por meio dele, por exemplo, que as principais armas de
destruição em massa tomaram forma.
Canhões de alto calibre, navios blindados, submarinos,
aeronaves, tanques de guerra, metralhadoras automáticas, lança-
chamas, os famigerados gases de combate, etc. Tudo isso estava na
ordem do dia. Nas palavras de Araripe:
A Grande Guerra foi travada no ambiente resultante do salto
tecnológico da Revolução Industrial que, da Grã-Bretanha,
se irradiou pela Europa continental e pelos Estados Unidos,
e os meios e os processos de combate de 1914-18 refletem
necessariamente esse fato. […] A estrada de ferro e a telegrafia
sem fio […] são extensivamente utilizadas na Grande Guerra,
permitindo transportar, controlar e abastecer grandes massas de
homens e de materiais. (Araripe, 2006, p. 324-326).

Como se vê, a tecnologia é uma faca de dois gumes. Máquinas


podem ser úteis para auxiliar os homens, ou para dizimar uma
grande quantidade deles. Tolkien, que conviveu com a imundície
das fábricas inglesas durante boa parte de sua vida, e viu-se
de cadáveres até os joelhos nas trincheiras do Somme, sempre
identificou no maquinário algo vil e nocivo por si mesmo. Não
é de se admirar que, em seu conto, tenha associado personagens
malignos e cruéis com a “fabricação de coisas engenhosas”. No
caso, está-se a falar dos gobelins, certo tipo de criatura folclórica e
humanoide.
A captura de Bilbo, Gandalf e dos anãos pelos gobelins, ainda
na primeira metade da obra, é o seu primeiro grande desafio. O
autor se aproveitou de uma criatura fantástica, e já razoavelmente
conhecida de seu público, para colocar em um mesmo patamar
vilania, exploração do trabalho alheio e máquinas:

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Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

Ora, os gobelins são cruéis, perversos e de mau coração. Não


fabricam coisas bonitas, mas fabricam muitas coisas engenhosas.
Conseguem abrir túneis e minas tão bem quanto qualquer um
[…], quando se dão ao trabalho, embora os seus em geral sejam
bagunçados e sujos. […] instrumentos de tortura eles sabem fazer
muito bem, ou forçam outras pessoas a fazer segundo suas ordens,
prisioneiros e escravos que têm de trabalhar até morrer por falta
de ar e luz. Não é improvável que tenham inventado algumas das
máquinas que desde então atormentaram o mundo, especialmente
os aparatos engenhosos para matar grandes números de pessoas
de uma vez, pois engrenagens e motores e explosões sempre os
deleitaram… (Tolkien; Anderson, 2021, p. 110).

Assim, eles são os pais fundadores do arsenal utilizado na


Primeira Guerra Mundial. O raciocínio funciona mais ou menos
assim: os gobelins são malignos, a tecnologia é maligna; logo, os
gobelins produzem tecnologia. E mais, em O Hobbit (e em outras obras
tolkienianas) a maldade sempre está atrelada à sujeira, a ambientes
escuros, enfumaçados e degradados, e, sobretudo, à tentativa de
alterar a realidade mediante aparatos técnicos (ou mágicos). Esse é
o verdadeiro sentido do progresso e da modernização.
Por outro lado, a beleza, a sabedoria e a virtude sempre
associam-se à natureza preservada, à água limpa e à luz (do sol, da
lua ou das estrelas), elementos que, convenhamos, são difíceis de
encontrar na sociedade contemporânea. Ruídos, quando existem,
são oriundos somente de canções e festins. Isso pode ser observado
em uma descrição sumária do vale encantado de Valfenda (Rivendell),
lar dos feéricos elfos, “onde coisas malignas não entravam”:
Viram um vale lá embaixo. Podiam ouvir a voz da água apressada
num leito rochoso no fundo; o perfume das árvores estava no ar;
e havia uma luz na encosta do vale, do outro lado da água. […]
'Hmmmm' Isso me cheira a elfos!', pensou Bilbo, e ele olhou para o
alto, para as estrelas. Elas ardiam luzentes e azuladas. Nesse exato
momento, veio uma explosão de canção semelhante a risos nas
árvores… (Tolkien; Anderson, 2021, p. 95).

Nesse lugar de refúgio, um paraíso perdido em meio a


tantas desgraças, há algo que chama a atenção: a existência de
tempo livre e a possibilidade de autorrealização pessoal. Imerso
em uma rotina alienante de trabalho e obrigações, o indivíduo
moderno está sempre com pressa. Além do mais, o automatismo e

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Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

a repetição de suas atividades culminam em uma vida desprovida


de sentido, angustiante. Não é de estranhar, portanto, que Tolkien
tenha concebido a casa do senhor de Valfenda – Elrond – como um
antídoto para essa condição: “Sua casa era perfeita, não importa se
você gostasse de comer, de dormir, de trabalhar, de contar histórias,
de cantar, ou de apenas se sentar e pensar melhor no que fazer, ou
de uma mistura agradável de tudo isso”. (Tolkien; Anderson, 2021,
p. 98).
É claro que Bilbo fica encantado por estar ali. Ele convive
com pessoas sábias e admiráveis, junto às quais é possível adquirir
um vasto conhecimento ancestral, o que jamais seria possível em
sua vizinhança provinciana. Porém, a experiência é curta e fugaz.
Aliás, é assim também no mundo real do século XX: a beleza e a
bondade são evanescentes, já a decadência e a maldade dão o tom
da existência:
é uma coisa estranha, mas coisas que são boas de aproveitar e
dias que são bons de passar a gente acaba descrevendo rápido
e não é grande coisa ouvir sobre eles; enquanto coisas que são
desconfortáveis, palpitantes, ou mesmo sanguinolentas podem
acabar virando uma boa história e, de qualquer jeito, precisam de
um tempão para serem contadas. (Tolkien; Anderson, 2021, p. 97).

Ao contrário do que pensa o moderno homem burguês, o


mundo no qual ele habita, e o qual ele ajudou a criar, é uma lástima.
Enfim, quanto mais o protagonista amadurece, conhecendo seres
extraordinários e conseguindo escapar da morte diversas vezes
graças às suas próprias habilidades, mais consciente ele se torna
disso.
A jornada segue adiante, e um desses momentos em que
Bilbo escapa da morte por um triz (talvez o capítulo de maior
tensão em toda a obra) se dá quando ele se vê face a face com a
criatura Gollum, um personagem no mínimo peculiar. Ele é um ser
de aparência grotesca, “tão escuro quando a escuridão, […] pequeno
e escorregadio, […] magro e de olhos redondos e pálidos, […] de
dedos compridos” (Tolkien; Anderson, 2021, p. 118), que habitava
as profundezas das Montanhas Nevoentas (Misty Mountains). Vive

143
Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

sozinho e tem hábitos bestiais, como caçar e se alimentar de gobelins.


Além disso, utiliza-se de uma linguagem própria para se comunicar,
repleta de vícios e sons estranhos.
Nos contos de fadas, não é incomum a presença de monstros
obscuros, ardilosos e assustadores (Tatar, 2013), similares a Gollum.
O próprio Tolkien concebera algo assim anteriormente, em histórias
que não chegaram a ser publicadas.5 Porém, o diferencial nesse caso
é que Tolkien quis lhe dar uma origem, um passado. Bem, ninguém
se pergunta como a bruxa má que alimenta os irmãos João e Maria
se tornou uma bruxa, ou quais eram seus hábitos quando ela era
jovem. Não acontece o mesmo com Gollum.
Sabemos que ele nem sempre viveu ali, isolado do mundo e
na escuridão. Ao contrário, conheceu família, amigos e a vida em
comunidade:
adivinhas eram a única coisa em que ele conseguia pensar. Propô-
las e, às vezes, respondê-las, tinha sido o único jogo que ele jogara
com outras criaturas engraçadas sentadas em suas tocas muito,
muito tempo atrás, antes que ele perdesse todos os seus amigos
e fosse expulso, sozinho, e rastejasse para o fundo, para o escuro
sob as montanhas. […] Fazia muito, muito tempo que ele estava
debaixo da terra e já estava esquecendo esse tipo de coisa. Mas,
justo quando Bilbo estava começando a ter esperança de que
o desgraçado não seria capaz de responder, Gollum relembrou
memórias de eras e eras e eras anteriores, quando ele vivia com sua
avó numa toca na encosta de um rio. Mas essas adivinhas comuns
[…] eram cansativas para ele. Também o faziam recordar os dias
quando tinha sido menos solitário e traiçoeiro e nojento, e aquilo
o tirava do sério. (Tolkien; Anderson, 2021, p. 119-121).

Assim como no caso dos gobelins, em que Tolkien se utilizou


de algo conhecido para trabalhar um tema que lhe parecia candente
(no caso, os perigos da tecnologia), estamos diante de um quadro
em que outro tipo comum nas histórias infantis, a saber, o monstro
solitário e de aparência medonha, serve a esse propósito. A ênfase
dada no personagem Gollum é em sua solidão, em seu isolamento do
5 “Nos escritos de Tolkien, o antecedente de Gollum era uma criatura viscosa chamada
Glip, que aparece em um poema com tal nome. ‘Glip’ pertence a uma série de poemas
chamada Tales and Songs of Bimble Bay [‘Contos e canções da Baía Bimble’], e embora não
esteja datado, foi provavelmente escrito por volta de 1928” (Tolkien; Anderson, 2021, p.
120).

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Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

mundo, e em como isso o conduziu a um estado de animalidade. Em


outras palavras, ele não é um monstro, tornou-se um. Resta-nos saber
o que isso tem a ver com a época em que viveu o autor.
De acordo com Tobby Widdicombe (2021), um dos temas
mais caros em toda a literatura tolkieniana é precisamente a
sociabilidade. Ela é condição necessária à felicidade. Personagens
solitários, como Gollum e tantos outros mais, quase sempre tomam
o rumo da loucura:
é importante considerar a biografia de Tolkien por um momento.
Tolkien era uma pessoa muito sociável, especialmente com os
homens e os acadêmicos. Ao longo de sua vida, ele fez parte de
muitos clubes […]. Tolkien claramente valorizava a socialização
com outros e pode-se ver isso tanto em O Hobbit quanto em O
Senhor dos Anéis. Ambos começam com festas: uma pode ser
‘inesperada’ e a outra ‘muito esperada’, mas ambas são festas que
o grupo formado […] desfruta completamente […]. Em contraste,
são os solteiros ou solitários que são perigosos […]. É como se o
mal ou a loucura crescesse sem a companhia repressora de outros.
(Widdicombe, 2021, p. 178).

Como dissemos no início deste tópico, nosso autor, como


tantos outros de sua época, via o projeto da modernidade e do
individualismo com repulsa. A crença seja na razão humana seja na
vontade dos gênios apresentam consequências nefastas. Para além
disso, no mundo frenético e acelerado produzido pela burguesia não
há tempo ou espaço para a convivência, isto é, para o cultivo de
relações sociais. Isso já foi possível, hoje não é mais. Todos somos
um pouco como Gollum, perdidos em nossas cavernas domésticas,
vivendo uma vida cheia de nada. Exceto por meio de lembranças
esparsas, nossa condição se resume a respirar, comer e dormir.
Um detalhe interessante: Bilbo vive em uma toca; Gollum, em
tempos remotos, também vivia “em uma toca na encosta de um rio”.
Bilbo conhece o jogo de charadas e sua antiguidade; Gollum da mesma
forma. Logo, pode-se supor que ambos personagens possuem algum
tipo de vínculo: um (Gollum) é o que o outro (Bilbo) já foi. E mais,
um (Bilbo) pode vir a ser o que o outro (Gollum) já é. Quer dizer,
ambos são símbolos da condição humana na modernidade. Por um
lado, o indivíduo inquieto e que deixa seus confortos materiais em

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Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

busca de realização pessoal, e, por outro, os resultados inevitáveis


dessa mesma busca: a desumanidade, marcada primeiro pela perda
do conforto e, ainda mais, da esperança em alcançar qualquer tipo
de realização ou plena felicidade nesse mesmo mundo. Como diz
Corey Olsen, o destino de Gollum deve ser visto como uma “história
admonitória” (Olsen, 2012, p. 80), ou seja, um aviso para Bilbo. E,
por que não, para seus leitores?

Considerações finais
Os seres humanos sempre fizeram literatura. É uma marca que
os torna ímpares diante de outras criaturas, ou melhor, é uma forma
de recordar que são mais divinos do que bestiais em sua condição.
Mais do que um atestado de humanidade (e sim, ele é necessário),
o fazer literário é uma forma de conhecimento acerca do indivíduo
e da realidade que o cerca. Claro que se trata de um conhecimento
bastante peculiar, distinto das ciências ou da filosofia. Peculiar pelos
seus métodos e pelos seus resultados, já que a relação estabelecida
com a realidade é indireta, tangencial, subterrânea, por isso, precisa
ser explorada com cuidado. Seja como for, pode ser encarado como
um documento histórico, uma vez que o ato de imaginar e de
construir ficções é historicamente datado, condicionado por uma
série de contingências sociais, culturais, etc., de quem escreve.
Encarar o texto literário como uma transfiguração da
realidade e não como simples cópia é um caminho salutar. Afinal de
contas, sabe-se que o positivismo é um erro, e que os fatos não falam
por si mesmos. Ao redigir um texto literário, essa pretensa realidade
atravessa uma espécie de Prisma de Newton, sendo decomposta em
muitos tons de real a partir das escolhas (temáticas e estilísticas)
do autor. Como dissemos, o realismo enquanto pretensão é um
paradoxo. Além disso, as múltiplas transformações do mundo
moderno, sua velocidade incontrolável, seus desdobramentos nos
mais diversos campos mostraram uma realidade fluida, dinâmica,
e não estática. Absolutamente impossível de ser apreendida,
quanto mais de ser transmitida. Assim, as catástrofes do século XX

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Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

trouxeram às consciências de que a realidade pode ser inverossímil,


um absurdo.
Que boa parte dos autores do século XX tenham recorrido ao
fantástico, portanto, não é mera coincidência. A fantasia pode ser
mais eficaz do que a prosa realística para, retomando Dostoievski,
aclarar uma realidade nublada. Foi o caso de J. R. R. Tolkien e sua
primeira publicação ficcional – O Hobbit, uma obra ambientada
em um cenário medievalesco, mas cujos personagens e temas,
por diversas vezes, são modernos. Referimo-nos, por primeiro, à
reflexão acerca do conforto e, como consequência, da mediocridade
dos indivíduos paridos pela Belle Époque. É preciso sair da toca no
chão, daquilo que é próximo e semelhante, em uma jornada de
autorrealização e amadurecimento, confrontando-se com aquilo
que é distante e diferente.
Essa jornada, no entanto, é bastante peculiar e até anti-
humanista. Amadurecer e adquirir conhecimento não é o mesmo
que ser feliz. A alteridade é importante pois ela mostra ao burguês
que, ao contrário dele, existem no mesmo mundo que ele, pessoas
desgarradas, sem lar, e que sofrem humilhações. O mesmo pode ser
dito com relação à tecnologia e aos progressos técnicos advindos
da Revolução Industrial, tão louvados nos romances de Julio Verne
(1828-1905). Tolkien, por outro lado, em sua história, associa-as ao
que há de mais perverso e cruel, afinal ele viu com os próprios olhos
sua aplicação nas trincheiras da Grande Guerra.
Por fim, foi-nos contada uma história em que o prazer e a
alegria são breves. Há refúgios, em que isso pode ser obtido aqui e
ali, mas não passam de exceções. A conclusão a que se chega é que
o mundo, tal qual seu autor concebe, é um lugar em que a tristeza
e a guerra são inevitáveis. Mesmo que haja um final feliz, os custos
dessa vitória serão grandes. Isso não quer dizer que a jornada tenha
sido em vão. Bem ou mal, ela deve ser feita. O mundo não é um mar
de rosas, mas é melhor saber disso do que ignorá-lo. A exemplo
da criatura Gollum, o perigo do isolamento pode tornar o homem
moderno não só acomodado e provinciano, mas sobretudo bestial.

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Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

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148
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ZILBERMAN, R. Fundamentos do texto literário. 2. ed. Curitiba:
IESDE, 2013.

149
Desafíos y reflexiones en el escenario
político peruano
Un análisis comparativo entre Gramsci y Benda
Yasmani Esquivel Caballero

Los políticos peruanos son conscientes perfectamente de


cada una de sus acciones y decisiones. Sin embargo, estas prácticas
son cínicas, no hay necesidad de que estén enmascarados, ellos se
presentan tal como son en la realidad. No importa si son de derecha
o de izquierda, todos ellos se hallan del mismo lado y tiran para
el mismo frente, defienden las condiciones materiales del campo
social en el que se hallan envueltos. Eagleton, (1997) afirmó que
“el capitalista que devoró los tres volúmenes de El capital sabe
exactamente lo que está haciendo, pero continúa actuando como
si no lo supiera” (Eagleton, 1997, p. 47).1 Marx (2013) también
señaló en El capital que “ellos no lo saben, pero lo hacen”, mientras
que Engels denominó a esta situación como una “falsa conciencia”.
No obstante, Sloterdijk (2003) teoriza que los personajes que se
hallan involucrados con el poder y el saber utilizan cada uno de
los mecanismos para imponer su hegemonía, “Saben lo que hacen,
pero lo hacen porque las presiones de las cosas y el instinto de
autoconservación, a corto plazo, hablan el mismo lenguaje y les dicen
que así tiene que ser. De lo contrario, otros lo harían en su lugar y,
quizá, peor” (Sloterdijk, 2003, p. 40). Por lo tanto, sus acciones son
cínicas, y están enmarcadas dentro de la “falsa conciencia ilustrada”.
Es importante aclarar que todos los individuos son cínicos, el

1 “O capitalista que devorou todos os três volumes de O capital sabe exatamente o


que está fazendo, mas continua a se comportar como se não o soubesse” (Eagleton, 1997,
p. 47).

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Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

cinismo contaminó todos los niveles de la sociedad peruana,


independientemente si estos son funcionarios públicos o no. En el
área andina, los sujetos otros también presentan comportamientos
cínicos, reproducen patrones vinculados a la corrupción. Es por esto
por lo que existe el vocablo quechua como “qara uyas”, que significa
cínicos, desvergonzados. Žižek (2008) analizó estas afirmaciones en
relación con la cuestión ideológica y señaló que el cinismo de estos
políticos se cataloga como una “posición posideológica”. Según él
“ellos saben que, en su actividad, siguen una ilusión, pero, aun así,
lo hacen” (Žižek, 2008, p. 61). Esta ilusión les mantiene “vivos”,
agrupa a un conjunto de personas que se están involucrados con las
representaciones ilusorias de esta realidad pactada.
Todo lo que es materialmente posible observar es una
quimera, ya que no comen más de lo que sus cuerpos pueden
soportar en un día, duermen las mismas horas permitidas y tienen
los mismos miedos, como el temor de caer en desgracia y perderlo
todo. Viven con inseguridad, resguardados las veinticuatro horas
del día, incluso en sus propias casas se sienten atrincherados. Nadie
les pidió que los vigilaran, ellos autorizaron su propia vigilancia por
seguridad. Se encuentran inmersos en el mismo torbellino que ellos
mismos provocaron.

La invención del artista por parte del hombre de letras


La palabra “intelectual” es un concepto que se ha utilizado
recientemente, para englobar a diversos personajes que antes eran
categorizados de. diferentes formas. Desde el surgimiento de la
Modernidad, quizás mucho antes, existían filósofos, teólogos,
escritores, y científicos. Bourdieu (1995) sostiene que, en el siglo
XVIII, los burgueses eran hombres ricos pero carentes de cultura,
en contraste con los hombres de letras, quienes se acercaban a los
artistas. Estos burgueses patrocinaron abiertamente el espíritu
artístico y se convirtieron en mecenas con el fin de obtener
beneficios y acceder a espacios públicos que probablemente eran
ocupados únicamente por los escritores. Los burgueses querían

152
Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

tener un papel determinante como los literatos, y a través de los


artistas buscaban imponer su visión del mundo y llevar a cabo el
proyecto de la Modernidad.
Para diferenciarse de sus contemporáneos, los hombres de
letras tuvieron que inventar la figura del artista, estableciendo una
clara oposición entre ambos. Los literatos catalogaron a los escritores
como “nobles” y a los artistas como “viles”, e incluso los literatos más
destacados denominaron a los artistas como “bohemios”. En cuanto
a la forma, los artistas se apartaron de lo “verbal” para dedicarse a lo
“icónico”, mientras que los escritores abandonaron lo “pictórico” y
lo “pintoresco” para privilegiar lo “escrito”.

La transformación y reinterpretación constante del


mundo
En el siglo XIX, durante el surgimiento de la sociedad
industrial2, los filósofos mostraron preocupación por el trabajo de
sus contemporáneos. Hasta ese momento, los filósofos se habían
dedicado a interpretar la realidad, influenciados por el idealismo
hegeliano, que consideraba a la conciencia y la razón como
elementos fundamentales que dan forma al entorno. En la Tesis
sobre Feuerbach, Marx (2006), menciona que “Los filósofos no han
hecho más que interpretar de diversos modos el mundo, pero de lo
que se trata es de transformarlo” (Marx; Engels, 2006, p. 59). No es
suficiente con interpretar el mundo y de transformarlo una sola vez,
es necesario cambiarlo y reinterpretarlo constantemente.
Para evitar la construcción de “paradigmas rígidos” que
impidan la plasticidad, es necesario contar con las luchas de los

2 Se había presentado numerosas de leyes, teorías y modelos en los diversos campos de


las ciencias naturales, pero aún no se conocía la especificidad de cada uno de los aspectos
implicados. Además, los científicos, estaban preocupados por desarrollar contribuciones
que impulsaran el desarrollo de la sociedad industrial, la cual requería innovaciones y
nuevos inventos para aumentar la productividad. En ese sentido, los científicos no se
estaban enfocados en trasformar el mundo, sino de satisfacer las demandas del mercado.
En cuanto a las emergentes ciencias sociales, estás surgieron en el siglo XIX, impulsadas
por el mismo propósito, método, y “leyes”, que las ciencias naturales. Sin embargo, la nueva
configuración de la sociedad industrial dio lugar a nuevas formas de control social.

153
Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

movimientos sociales surgidos en el Sur.3 Además de las resistencias,


se requiere una “traducción intercultural” constante.4 A medida
que el mundo se va revolucionando, es necesario actualizar las
categorías conceptuales y sistemas de pensamiento que provengan
de la “pluriversalidad”. Los intelectuales no deben limitarse a
interpretar el mundo desde sus espacios, sino que deben involucrase
en problemas concretos que afectan a la humanidad, y que estos
problemas provengan de diversos ámbitos. De Sousa Santos (2019)
sugiere dirigir las epistemologías del Sur hacia esos propósitos.5
3 De acuerdo con de Sousa Santos (2019) el concepto de “Sur” va más allá de una
concepción meramente geográfica, es una noción epistémica que contrasta con el “Norte”
epistémico. El autor argumenta que no se trata únicamente de un espacio geográficamente
definido como el Sur, sino que existen múltiples “sures” que se encuentran tanto dentro
del Norte geográfico como del Sur geográfico. Por lo tanto, el Sur se convierte en una
“metáfora del sufrimiento” que abarca tanto los desafíos y problemáticas del Norte como
del Sur, que están separados por una “línea abismal”.
4 Las epistemologías del Norte presentan varios problemas en su estructura, los
cuales se reflejan en la forma en que conciben la realidad, basada en principios racionales,
universales, objetivos, lineales y unidireccionales. Los conocimientos eurocéntricos ocupan
un lugar privilegiado en comparación con las epistemologías del Sur, y entre ellas existe
una “línea abismal” que separa estas diferentes formas de conocimiento. La traducción
“monocultural” contribuye a prolongar esta brecha, por lo que es necesario promover la
constitución de una “traducción intercultural” como una alternativa pedagógica. En este
enfoque, se busca establecer un diálogo entre los distintos conocimientos basado en la
pluriversalidad.
El autor de las epistemologías del Sur plantea la pregunta de hasta qué punto es posible
realizar una traducción intercultural entre las narrativas hegemónicas de la Declaración
Universal de los Derechos Humanos y otras éticas practicadas por las comunidades
indígenas en todo el mundo, así como aquellas que guían los movimientos sociales (De
Sousa Santos, 2019).
5 Las epistemologías del Sur surgieron como una alternativa desarrollada desde
los sujetos otros, con el objetivo de repensar posibles soluciones a problemas concretos
que se agrupan en tres grandes categorías: cuestiones epistemológicas, metodológicas
y pedagógicas. Con relación a las cuestiones epistemológicas, se deben superar puntos
importantes como la objetividad en las ciencias, la universalidad y el relativismo, el
problema de la escritura y la oralidad, y la determinación de la autoría. En cuanto a las
cuestiones metodológicas, se propone una experiencia profunda de los sentidos en lugar
de limitarse a la abstracción mental, se promueve la “desmonumentalización” de lo escrito
para fomentar la “oratura” y se busca dejar de lado las metodologías extractivistas en las
ciencias sociales, privilegiando en su lugar las metodologías creadas en el Sur. En cuanto
a las cuestiones pedagógicas, es importante llevar a cabo la “traducción intercultural”
entre las narrativas tanto eurocéntricas como las surgidas en el Sur. Estas traducciones no
serían posibles sin las luchas sociales permanentes. Para ello, se requiere de la educación
popular, y, de hecho, ya existe una red de UPMS (Universidad Popular de los Movimientos
Sociales) que reúne a académicos interesados en temas sociales y a dirigentes sociales.
Además, en el ámbito pedagógico, es necesario descolonizar la universidad, asegurándose
de que los departamentos, cátedras y disciplinas no estén orientados únicamente desde las
epistemologías hegemónicas del Norte epistémico.

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Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

Para transformar y reinterpretar constantemente la realidad


peruana, es fundamental la plena participación de los políticos,
pero esta participación debe ir más allá de la mera ideología y
requerir una formación política pluriversal. En los últimos años,
aquellos en el centro del campo político han seguido instrucciones
que reproducen patrones epistémicos eurocéntricos, utilizando
categorías conceptuales y sistemas de pensamiento surgidos
en otros contextos. Por lo tanto, es importante que los políticos
peruanos repiensen las relaciones de poder basadas en conceptos
interculturales.
Un ejemplo concreto de esto es el concepto de república en
el Perú. Desde la época de la administración colonial española, se
crearon la “república de indios” y la “república de españoles” con el
objetivo de una mejor administración y para controlar la población
y mantener la segregación. Tras la independencia de España, el Perú
se convirtió en una “república de criollos”. Aunque teóricamente
el Perú es una institución democrática, a lo largo de los últimos
doscientos años los peruanos han intentado construir un régimen
republicano sin lograr plenamente su consolidación. No existe
un Estado en el que cada ciudadano se sienta completamente
comprometido. Las causas son múltiples, pero se sabe que el
concepto de república fue desarrollado en el Norte epistémico y
responde a una ontología diferente a la peruana. Es posible que los
individuos nunca se hayan encontrado estructuralmente encajados
en este sistema de gobierno. Además, axiológicamente, los valores
que engloba un sistema republicano difieren de los valores y
contravalores practicados en el territorio peruano.
Históricamente, especialmente en los Andes, no existen
prácticas cotidianas que se relacionen estrictamente con la igualdad,

Las epistemologías del Sur, impulsadas por Boaventura de Sousa Santos, siempre
han tenido como objetivo criticar la tríada dominante del capitalismo, la colonización
y el patriarcado en la humanidad. Sin embargo, es importante aclarar que debido a los
recientes escándalos de acoso sexual en los que el autor se ha visto involucrado, existe
una falta de coherencia entre su postura anti-patriarcal y sus acciones dentro del ámbito
académico. Es importante mencionar que este trabajo ya se había completado antes de
conocerse las noticias sobre estos problemas, por lo que resultó difícil desestructurar las
herramientas teóricas que se habían abordado en este artículo. (De Sousa Santos, 2019).

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Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

la fraternidad y la libertad. Estos valores son prácticamente


funcionales para una región privilegiada de Occidente y han
servido para que esta región posea el derecho natural al control y
dominio del mundo. En cuanto a la igualdad, no es posible buscar
una relación equitativa entre sujetos cuando no se encuentran en
la misma posición dentro del campo social. El sujeto que está en el
centro del escenario tiene el poder de controlar las subjetividades y
singularidades de los sujetos otros, por lo que buscar la igualdad en
condiciones asimétricas coloca a uno de los sujetos en una posición
de desventaja. Otro problema con la igualdad es que los sujetos no
humanos no son inferiores a los humanos, y estos últimos comparten
el mismo espacio geográfico con otras formas de vida.

De los guardianes de la cultura a los intérpretes de la


realidad
El término “intelectual” se origina a inicios del siglo XX,
aplicado a novelistas, poetas, artistas, periodistas, científicos
y figuras públicas, ya que los filósofos y los que pertenecían
a la república de las letras, ya se encontraban divididos en sus
propias disciplinas. Gellner (2001) introduce la metáfora de los
“guardaparques” y los “jardineros”. Los guardaparques representan
a aquellos sujetos que se encuentran en la premodernidad,
simplemente acompañan sin intervenir en la alimentación,
reproducción o manejo de animales y plantas. Representan la
“cultura salvaje” en la que las creencias, conocimientos y saberes se
atribuyen a cuestiones naturales o divinas. Con el establecimiento
de la modernidad como un proyecto racional y universal, surge la
“cultura jardín” y la necesidad de construir la ciencia moderna.
Para esto, aparecen los jardineros, encargados de modelar y
legitimar las instituciones modernas. Siguiendo a Bauman (2010),
La modernidad da paso al surgimiento de los “legisladores”, quienes
tienen la función de ser “árbitros” ante situaciones y problemas
divergentes dentro del campo intelectual, ya sea por obstáculos
epistemológicos o morales, y establecen un marco racional y
universal que debe seguir tanto sus pares como la sociedad en su

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Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

conjunto. También existen otros “meta profesionales” encargados


de formular las reglas y supervisar su aplicación correcta. En la
posmodernidad surgen los “intérpretes”, que no representan una
ruptura con los valores establecidos en la modernidad, sino una
continuidad. La metáfora del “intérprete” consiste en traducir
afirmaciones desarrolladas en otra comunidad y transferirlas
a una realidad diferente, lo que a menudo requiere una doble
traducción.

Entre “clérigos” e “intelectuales orgánicos”


En la década de los veinte del siglo pasado, se publicaron dos
obras que guardan alguna relación en cuanto a sus aseveraciones
sobre los intelectuales y su función social. Una de ellas es “La
traición de los intelectuales”, escrita en 1927 en francés por el
filósofo Julien Benda. Esta obra continúa siendo relevante incluso
después de muchos años. Aunque Julien Benda políticamente se
le cataloga como un “reaccionario de izquierda”, fue crítico del
régimen nazi y fascista, especialmente en cuanto al papel que los
intelectuales desempeñaban al promover prácticas autoritarias y
antisemitas en beneficio de intereses particulares. La traición de
los intelectuales envuelve, “reyes, ministros, toda la especie humana
llamada laica, cuya única función esencial consiste en perseguir
intereses temporales” (Benda, 2008, p. 123). El término “clerc” en
francés, que se traduce al español como “clérigo”, es utilizado por
Benda en su obra para referirse a los “intelectuales” tal como eran
catalogados en la Edad Media. En aquel entonces, la mayoría de
estos individuos dedicados a la producción de pensamiento estaban
vinculados a la iglesia y los claustros eran los espacios designados
para impartir las cátedras.
En el contexto político peruano, las autoridades elegidas
por elección democrática están compuestas por intelectuales
denominados “laicos”, quienes persiguen intereses terrenales. Una
vez ocupan un cargo público, su principal objetivo es salvaguardar
sus propios intereses y los de su círculo cercano, que generalmente

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Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

ocupan puestos estratégicos de confianza. Este fenómeno refleja


prácticas arraigadas en el sistema colonial, como el padrinazgo y el
compadrazgo, que funcionan como mecanismos estratégicos para
obtener puestos de trabajo. Una vez en el poder, las autoridades
electas responden a las expectativas de sus partidarios, amigos y
familiares, en lugar de atender las necesidades de la población a la
que representan.
En Perú, los más de 1800 municipios están liderados por
intelectuales, la mayoría de los cuales son profesores, abogados e
ingenieros. Su formación académica superior les otorga una ventaja
competitiva significativa en comparación con otros ciudadanos.
Sin embargo, presentan características esquizofrénicas en cuanto
a su afán económico, ya que buscan enriquecerse de la manera
más rápida y sencilla posible. Es un secreto a voces que muchas
autoridades municipales, una vez concluido su mandato de cuatro
años, tienen asegurada una vida próspera. Esto se refleja en el
hecho de que muchos de ellos no regresan a sus puestos de trabajo
anteriores a su elección y luchan por ascender a niveles superiores,
como municipios provinciales, gobiernos regionales y el parlamento.
Repiten una y otra vez como candidatos hasta obtener nuevamente
un puesto.
Es importante destacar que la mayoría de estos intelectuales
elegidos para dirigir instituciones gubernamentales provienen de
familias pobres que, a través de grandes esfuerzos, lograron que
sus hijos estudiaran en instituciones de educación superior. Sin
embargo, el sistema educativo peruano ha fallado en promover
buenas prácticas relacionadas con el bienestar social. En primer lugar,
existe un deseo desmedido de satisfacer necesidades individuales
en lugar de promover el bienestar colectivo. La promoción
del individualismo se lleva a cabo en las escuelas en todas sus
dimensiones y modalidades. Además, se fomenta la “meritocracia”
como una estrategia de mercado que impulsa la competencia y se
promueve la autodisciplina como el único camino hacia el éxito.
Se trata al planeta como un mero objeto, sin tomar en cuenta la
importancia de la sostenibilidad de la actividad humana, a pesar

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Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

de que todas las acciones antropogénicas son insostenibles. Estos


enfoques racionales transmitidos en las escuelas peruanas generan
un ideal de ciudadano que nadie quiere quedarse fuera.

Intelectuales peruanos: entre la independencia y la


representación de los subalternos
Benda (2008) critica a los intelectuales por su falta de sacrificio,
inspirándose en la experiencia de vida de los estoicos. Por lo tanto, no
está de acuerdo con el rol de los intelectuales vinculados a pasiones
políticas. Según él, el profesional debe mantener su independencia,
y aquí se encuentra su conexión con los planteamientos del
intelectual tradicional de Gramsci. Ambos autores coinciden en
que los académicos deben mantenerse alejados de situaciones que
pongan en riesgo su papel como representantes sociales, ya que, si se
involucran en proyectos que implican la construcción de algún tipo
de hegemonía, se convierten en cómplices.
Said (1996) también coincide tanto con Gramsci como con
Benda en la importancia de la independencia que debe mantener
un intelectual amateur. Él critica a aquellos que se involucran con
un gobierno, partido político, gremio profesional o corporación.
Said considera a estos intelectuales orgánicos como dependientes
de un sistema hegemónico, lo que vulnera su independencia para
representar plenamente a algún grupo subalterno.
Los profesionales peruanos se encuentran enmarcados dentro
del intelectual orgánico, ya que la mayoría de ellos pertenecen a
organizaciones políticas, gremiales y empresariales. En Perú, las
corporaciones han capturado el Estado como una extensión de su
poder económico. Muchos empresarios en el país, que ya tenían una
posición sólida en el ámbito empresarial, buscaron involucrarse
directamente en asuntos políticos. Los líderes de las corporaciones
peruanas fundaron partidos políticos con la única intención de
capturar el Estado y beneficiarse plenamente de las ventajas que eso
conlleva. Actualmente, controlan diversos sectores económicos, el
parlamento nacional, gobiernos regionales y municipales.

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Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

Los dueños del país creyeron que al dominar el campo


económico podrían transferir su poder simbólico hacia otro campo,
como el político. Sin embargo, en realidad es difícil evidenciar casos
en los que un personaje que ha tenido éxito en el centro del campo
político y ha gozado del control en ese ámbito, pueda tener las
mismas condiciones de éxito en el campo económico. Estos son dos
campos sociales diferentes, y la transición de uno a otro no es tan
sencilla como se creía.
A pesar de esto, los políticos empresarios tuvieron la
determinación de crear partidos políticos y presentarse como
candidatos a cargos de elección popular. Hasta cierto punto,
lograron tener éxito en alcanzar el gobierno central y el congreso
nacional. Sin embargo, su intención no era controlar los siguientes
niveles del Estado, como los gobiernos regionales o municipales.
Su objetivo principal era tener acceso al poder central.
En el desarrollo de estos proyectos empresariales y
políticos, los profesionales desempeñaron un papel fundamental.
Fueron insertados en la maquinaria política y empresarial como
agentes que impulsaron estos proyectos. En el Perú, cuando
surge un profesional con un determinado perfil, es rápidamente
invitado a formar parte de proyectos empresariales o políticos.
Una vez dentro, su rol se convierte en el fortalecimiento de las
estructuras institucionales a las que pertenecen. En este contexto,
la independencia se vuelve un ideal difícil de alcanzar, ya que
el poder económico y simbólico se sobrepone sobre su papel
como agente social. Esto dificulta enfrentar cualquier forma de
hegemonía, pero es una necesidad inmediata para todo intelectual
tradicional e independiente hablar con franqueza al poder y
defender sus valores y principios.
Es cierto que los profesionales, al representar a grupos
subalternos, no deben abandonar sus necesidades humanas. Benda
(2008) sostiene que los intelectuales deben hacer sacrificios que
trasciendan lo mundano, y para ejemplificar esto, menciona a
Jesús y Sócrates, como si los intelectuales no estuvieran aquí en la
realidad enfrentando dificultades y desafíos tanto materiales como

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Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

epistemológicos. Es importante reconocer que los intelectuales


también tienen preocupaciones terrenales y que no deben relegarlas
por completo.
Benda (2008) resalta que los verdaderos intelectuales
deben abrazar el pasaje bíblico “mi reino no este de este mundo”
(Benda, 2008, p. 123). Sin embargo, Said (1996) contradice estas
afirmaciones, argumentando que los académicos deberían ser laicos
en la medida de lo posible. No deberían ser considerados como
un “reducido grupo de reyes-filósofos superdotados y moralmente
capacitados que constituyen la conciencia de la humanidad” (Said,
1996, p. 24). Los intelectuales no deben adoptar la postura ni el
posicionamiento de los “hombres de la iglesia” y no deben correr el
riesgo de ser “quemados en la hoguera” o condenados al “ostracismo”.
En cambio, deben ser personas reales y no meros “símbolos”. Los
intelectuales deben estar conformados por una diversidad de
individuos y no ser exclusivamente un grupo reducido de varones.
(Said, 1996, p. 26).
Los seres humanos, para hacer historia, necesitan satisfacer sus
necesidades humanas; de lo contrario, no será posible enfrentar al
poder y ser representantes sociales. Si no están dadas las condiciones
para vivir dignamente, uno no está en la posibilidad de hacer esfuerzos
denodados por anteponer la existencia intrahumana. Marx y Engels
(2007) enfatizan la importancia de la concepción materialista de la
historia, que destaca cómo las condiciones materiales y económicas
influyen en el desarrollo de la sociedad y las luchas de clases. Es
crucial abordar las condiciones sociales y económicas para permitir
que las personas puedan ser agentes de cambio y enfrentar al poder
como verdaderos representantes sociales.
Debemos comenzar por afirmar el primer presupuesto de toda
existencia humana y también, por tanto, de toda historia, a saber,
el presupuesto de que los hombres deben estar en condiciones de
vivir para poder 'hacer historia'. Para vivir se necesita, ante todo,
comida, bebida, vivienda, vestido y algunas cosas más. El primer
acto histórico es pues la producción de los medios para satisfacer
estas necesidades, la producción de la vida material misma, y esto
es sin duda un acto histórico, una condición fundamental de toda
historia, que aún hoy, como desde hace milenios, ha de cumplirse

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Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

diariamente, cada hora, simplemente para mantener vivos a los


hombres (Marx; Engels, 2007, p. 32-33).6

En el Perú, los intelectuales parecen haber comprendido en


extremo las aseveraciones de Marx y Engels, ya que la mayoría de
ellos se encuentran inmersos en una vorágine consumista, donde
satisfacer las necesidades humanas se aplica en la mayoría de los casos
sin titubear. La relación de producir los medios para satisfacer las
necesidades no guarda relación con la condición de hacer historia, ya
que los intelectuales peruanos no han comprendido la importancia
que conlleva ser agentes históricos. Los políticos que ocupan cargos
de elección popular tienen la privilegiada oportunidad de realizar
cambios sustantivos y significativos para sus comunidades, pero han
olvidado que trascender es un acto histórico que muy pocos seres
humanos tendrán la oportunidad de abrazar.
Lo mismo sucede con la función que conlleva ser intelectual
en algunas comunidades andinas, donde existe un reducido
número de profesionales. Después de denodados esfuerzos, los
integrantes de una familia andina envían a sus hijos a estudiar
educación superior, creyendo que educar es el único camino posible
para que estas comunidades salgan del ostracismo y el abandono
del Estado. Sin embargo, esto también conlleva una especie de
blanqueamiento cultural, ya que en estos hogares se ha sembrado
la errónea concepción de que para sobrevivir es necesario pasar por
el sistema educativo peruano y así garantizar una vida mejor para
sus hijos, con mayores oportunidades que sus antecesores. Aunque
esto se ve reflejado en la vida de sus descendientes, los costos son
muy altos, ya que la mayoría de los profesionales se forman bajo un
único paradigma de conocimiento científico, dejando de lado los
paradigmas otros.
6 “Devemos começar por constatar o primeiro pressuposto de toda a existência
humana e também, portanto, de toda a história, a saber, o pressuposto de que os homens
têm de estar em condições de viver para poder 'fazer história'. Mas, para viver, precisa-
se, antes de tudo, de comida, bebida, moradia, vestimenta e algumas coisas mais. O
primeiro ato histórico é, pois, a produção dos meios para a satisfação dessas necessidades,
a produção da própria vida material, e este é, sem dúvida, um ato histórico, uma condição
fundamental de toda a história, que ainda hoje, assim como há milênios, tem de ser
cumprida diariamente, a cada hora, simplesmente para manter os homens vivos” (Marx;
Engels, 2007, p. 32-33).

162
Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

Muchos de ellos no regresan a sus comunidades y trabajan


para el Estado o empresas privadas, donde en la mayoría de los
casos, lo único que importa es tener un trabajo, sin discutir las
condiciones laborales a las que están expuestos. Si se realizara un
sondeo de opinión a los padres de familia de las escuelas peruanas,
seguramente la mayoría señalaría que lo único que buscan para sus
hijos es que se conviertan en profesionales, sin esperar que el sistema
educativo los forme como ciudadanos responsables y con valores
interculturales, ni mucho menos como profesionales exitosos. Es
por ello que en el Perú existe un mayor número de universidades
privadas, que están de acuerdo con estas exigencias del mercado
laboral y cubren las expectativas de familias deseosas de encaminar
a sus hijos hacia el éxito profesional.
En la sociedad, todos son potencialmente intelectuales, pero
no todos cumplen la función de intelectuales, incluso en actividades
manuales y técnicas en las que están involucrados, se requiere algún
tipo de intelectualidad. Por lo tanto, no existen “no intelectuales”
en la postura de Gramsci (2014) quien señala al respecto
por lo tanto, se podría decir que todos los hombres son
intelectuales, pero no todos los hombres en la sociedad tienen la
función de intelectuales (así, el hecho de que alguien pueda, en
un momento dado, freír dos huevos o coser una rasgadura de su
chaqueta no significa que todo el mundo sea cocinero o sastre).
Así, históricamente, se formaron categorías especializadas para el
ejercicio de la función intelectual; se forman en relación con todos
los grupos sociales, pero sobre todo en relación con los grupos
sociales más importantes, y sufren elaboraciones más amplias y
complejas en relación con el grupo social dominante (Gramsci,
2014, p. 18-19).7

Los intelectuales peruanos, lejos de ser representantes de


los sujetos otros, algunos se hallan envueltos en el cientificismo,

7 “Por isso, seria possível dizer que todos os homens são intelectuais, mas nem todos
os homens têm na sociedade a função de intelectuais (assim, o fato de que alguém possa,
em determinado momento, fritar dois ovos ou costurar um rasgão no paletó não significa
que todos sejam cozinheiros ou alfaiates). Formam-se assim, historicamente, categorias
especializadas para o exercício da função intelectual; formam-se em conexão com todos
os grupos sociais, mas sobretudo em conexão com os grupos sociais mais importantes, e
sofrem elaborações mais amplas e complexas em ligação com o grupo social dominante”
(Gramsci, 2014, pág., 18-19)

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Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

respondiendo metódicamente a los cánones de sus laboratorios


e instituciones auspiciadoras, mientras que otros se encuentran
enmarcados en una torre de marfil. Existen diversas formas de
representar, ya sea a través de la escritura, la enseñanza, el habla en
público, la aparición en televisión o en las redes sociales; por lo que,
como menciona Said (Said ,1996, p. 16) “naturalmente, la idea de
que todos los intelectuales representan algo para sus audiencias, y al
hacerlo así se representan a sí mismos para sí mismos”.
El autor citado anteriormente menciona como ejemplos de
intelectuales osados y comprometidos con los problemas mundiales
a Jean-Paul Sartre y Bertrand Russell. Hace referencia al “intelectual
universal” de Foucault y coincide en sus valoraciones sobre cómo Jean-
Paul Sartre se posicionó ante la colonización francesa en Argelia y en
Vietnam de manera consistente. Además, en sus recomendaciones,
aclara que los intelectuales deberían guardar independencia, siendo
preferible ser un intelectual aficionado en lugar de un intelectual
profesional. Sus afirmaciones no deben entenderse como que los
intelectuales sean “amargados” ni “plañideras”, sino que deberían
adoptar una postura enérgica para representar y hablarle de frente
al poder. Como ejemplos de ello, menciona a dos intelectuales:
Noam Chomsky y Gore Vidal.

Consideraciones finales
Se insta a los políticos y a la sociedad en su conjunto a superar
el cinismo y la falsa conciencia que perpetúan prácticas corruptas
y deshonestas. Es necesario que los actores políticos asuman
la responsabilidad de sus acciones y actúen con integridad en
beneficio del bien común. el análisis comparativo de las perspectivas
de Gramsci y Benda sobre el papel de los intelectuales en la
política, junto con la identificación de los desafíos en el escenario
político peruano, resalta la urgente necesidad de descolonizar las
instituciones arraigadas en patrones eurocéntricos para lograr una
visión más pluriversal y justa de la realidad peruana. Es fundamental
que los intelectuales que ocupan cargos políticos mantengan su

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Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

independencia y compromiso social para representar genuinamente


las necesidades de la población y superar la crisis de representación.
Asimismo, se requiere una transformación en el sistema educativo
para ofrecer una formación política intercultural que empodere
a los líderes políticos a abordar los problemas sociales de manera
inclusiva. La búsqueda constante por reinterpretar la realidad y
fomentar una sociedad más inclusiva será esencial para enfrentar
los desafíos y construir un futuro más esperanzador para el Perú.

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Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

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166
Terror à negritude, amor ao seu sangue:
Diop e o Senegal na Primeira Guerra
Mundial
Hiasmim da Silva Do Espírito Santo1

Introdução
Este trabalho visa discutir a obra literária de ficção baseada
na história senegalesa, Irmão de Alma de David Diop e sua relação
com o complexo de inferioridade descrito por Frantz Fanon. Nesse
sentido, o trabalho tem três pontos a serem examinados: o primeiro
é entender como a França atuava no território do Senegal; o segundo
é analisar como essa obra literária se relaciona com a administração
da França, ou seja, destacar as proximidades históricas exploradas
pelo autor e as possíveis distâncias entre elas. Além disso, o
terceiro ponto visa compreender se há a presença do complexo de
inferioridade na relação do senegalês com as tropas francesas, à luz
do pensamento de Frantz Fanon.
Acredito que ao discutir a condição de trabalho e o
reconhecimento do trabalho realizado por pessoas racializadas,
o campo dos estudos anticoloniais pode ser uma ferramenta
imprescindível para se compreender dinâmicas e tensões sociais em
uma sociedade polarizada entre metropolitanos e colonizados, pois
viabiliza o destaque que nem todos estavam igualmente protegidos
de forma ratificada legalmente. Nesse sentido, a promessa francesa
era de que os soldados vitoriosos seriam laureados com a cidadania
francesa, e a história escrita por Diop narra essa trajetória do
1 Graduanda no curso de História - UFES. Participante do Núcleo de
Estudos e Pesquisas em Educação, Filosofia e Linguagem (NEPEFIL) e integrante
do Laboratório de Teoria da História e História da Historiografia (LETHIS).

167
Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

colonizado em sua busca por direitos. O protagonista é um homem


que parte em busca da civilização francesa e se dirige ao campo de
batalha no continente europeu para realizar o sonho de seu amigo,
Mademba Diop.
A França impôs sobre um conjunto de pessoas um obstáculo,
de difícil transposição tendo em vista que ele separava aqueles
que poderiam ser chamados de franceses e aqueles que ainda
necessitavam lutar para construir um senso de humanidade aos
padrões infligidos pelo referencial dos franceses. Afinal, o método
racional utilizado pelos franceses foi o “Code de l’Indigénat”2, no
entanto, acredito que seja válido lembrar que já havia existido antes
o Code Noir3. Segundo Bampoky (2019), o Código dos Indígenas ou
Indigenato recebe esse nome, por estar atrelado à perspectiva que
os supostos indígenas (inclui-se todos os que estavam sob o domínio
da França) eram considerados preguiçosos e, portanto, precisavam
ser moldados para se tornarem mais semelhantes aos europeus, no
sentido de se aproximarem cidadãos franceses em termos culturais
e sociais, a fim de fazerem jus aos mesmos direitos. O Code de
l’Indigenat estabelece uma série de critérios que ratificam o direito de
dominação e expropriação das terras dos colonizados, tratando-os
como mercadorias ou objetos e negando-lhes a atribuição humana
de pessoas.
As relações entre colonizados e colonizadores, sempre foram
alvos de estudos e debate, seja no campo psiquiátrico e sociológico
com Frantz Fanon4; seja no campo da vivência como expressa
Albert Memmi5; seja no campo da análise do discurso colonizador

2 Segundo FAUVE-CHAMOUX (2013), esse código foi estabelecido em 1881.


3 O código Noir ou Code Noir, foi ratificado em 1685 através do rei da
França Luís XIV. Isso é relevante ao nosso trabalho, enquanto demonstra como
a França já se articula juridicamente em relação aos escravizados devido à
expansão territorial. Um pouco mais sobre o código Noir pode ser encontrado
aqui: LEOPOLDO, Rafael. Hegel e o vodu. Sapere Aude, v. 8, n. 16, p. 564 – 572,
2017. Disponível em: < http://periodicos.pucminas.br/index.php/SapereAude/
article/download/12377/12771/>. Data de acesso: 23/04/2023.
4 Refiro-me aos seus estudos que se tornaram livros: Pele negra, máscaras
brancas e Os Condenados da Terra.
5 Destaco o livro Retrato do colonizador precedido ao retrato do colonizado.

168
Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

introduzido por Aimé Césaire6. Deve-se lembrar que todos


esses estudiosos que citei estavam sob a estrutura de dominação
francesa, aliás, Fanon lutou na Segunda Guerra Mundial pelos
franceses na África do Norte e aos 20 anos recebeu condecoração
de veterano de guerra7. Portanto, o estudo de como as engrenagens
político-administrativas francesas e as narrativas reagem àquele
conflito e aquela sociedade multicultural é um importante marco
para se compreender a disparidade histórica entre esses atores.
Há apagamentos históricos feitos com base nessa disparidade,
promovendo assimetrias sensíveis. Césaire, por exemplo, dirá:
O que não perdoa a Hitler, não é o crime em si, o crime contra o
homem, não é a humilhação do homem em si, é o crime contra o
homem branco, a humilhação do homem branco e o ter aplicado
à Europa processos colonialistas a que até aqui só os árabes da
Argélia, os <<coolies>> da Índia e os negros de África estavam
submetidos (CÉSAIRE, p. 18)

O esvaziamento do sentido histórico da projeção global do


conceito de humanidade (conjunto de valores que tornam alguém
humano e permitem o reconhecimento do outro como semelhante)
foi diminuído, resultando no apagamento histórico que submetia
um povo ao domínio da linguagem e da narrativa de outro. O crime
só é considerado crime quando a história europeia do homem
branco é afetada, seguindo o pensamento de Aimé Césaire.
O propósito deste estudo é oferecer a visão do colonizado
sobre o colonizador durante a Primeira Guerra Mundial, tratando
da problemática relação sobre como ele (o colonizado) se sente e
como é realmente reconhecido. Optei por focar em um recorte
de tempo e espaço bem delimitados, voltados para a dominação
francesa sobre a África, mais especificamente acerca do controle da
costa ocidental africana, também conhecida como África Negra, no
futuro país conhecido por Senegal:

6 Menciono o livro Discurso sobre o colonialismo.


7 Informação retirada do dicionário latino-americano. Disponível
em:<https://latinoamericana.wiki.br/verbetes/f/fanon-frantz>. Data de
acesso:10/05/2023.

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Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

A França tinha criado em 1894 um Ministério das Colónias,


com responsabilidades tutelares sobre a África ocidental,
África Equatorial, Somália francesa e Madagáscar, deixando a
administração da Tunísia e de Marrocos a cargo do ministério dos
Negócios Estrangeiros, e a da Argélia entregue ao Ministério do
Interior (PIRES; FOGARTY, p.1)

O governo francês também instituiu no Senegal, as “Quatre


communes du Sénégal” que eram regiões coordenadas diretamente
pela administração francesa, ou seja, não havia representação dos
povos locais na tomada de decisão, pois essas cidades estavam sob
as leis diretas do comando francês. As cidades eram: Saint-Louis,
Gorée, Rufisque e Dakar. Outra forma de governabilidade em que
era realizada no restante do Senegal foi por meio de representações
locais que serviam também aos interesses franceses, todavia, de
algum modo, expressavam certa autonomia.
Toda região de Saint-Louis foi estruturada para dar apoio
direto aos franceses. Nesse sentido, havia o interesse de oferecer
educação colonial já em 1816, com duas línguas: o uolofe (pela
primeira vez nesse contexto seria aceito um idioma local) e o
francês. No entanto, esse processo foi interrompido em 1829
pela administração francesa, conforme apontado por Bampoky
(2019). O nascimento de Blaise Diagne, nessa área, sob o comando
francês é um fato importante, pois ele nasceu em Gorée, uma ilha
pertencente a Dakar, e se tornou o primeiro representante negro
em território francês na Câmara dos Deputados na Assembleia
Geral Francesa. É importante lembrar que as áreas mencionadas,
sob administração direta francesa, podiam escolher um membro
para ser seu representante no Parlamento. No ano de 1915, Blaise
Diagne é o primeiro escolhido devido ao seu prestígio escolar e
habilidade política8. Acredito que seja válido mencionar que ele
havia criado um conjunto de leis entre 1915 e 1916, posteriormente
reconhecidas como leis Blaise Diagne. Essas leis permitiam que

8 Acredito que seja válido lembrar que essa habilidade política não estava
associada a querer bem os colonizados. Menciono aqui uma reportagem em
francês que inclusive, o chama de cão dos franceses. Disponível em:<https://www.
nofi.media/2023/01/lenrolement-force-tirailleurs-senegalais-trahison-de-blaise-
diagne/32488>. Data de acesso: 30/04/2023.

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Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

apenas as pessoas residentes nas áreas de Saint-Louis, Gorée,


Rufisque e Dakar tivessem acesso a todos os direitos de um cidadão
francês ao nascer, de acordo com Bampoky (2017).
Inclusive, segundo Gustavo Durão (2012), foi Diagne quem
dirigiu o primeiro congresso Pan-africanista, ocorrido na França,
em 1919, em Paris. É importante mencionar que, de acordo com
Majhemout Diop (2010), Diagne demonstrava interesse apenas em
defender as áreas que faziam parte das “Quatre communes du Sénégal”
e não demonstrava interesse em apoiar outras causas da população
colonizada, agindo, em alguns pontos de vista, como um lacaio
nativo obedecendo às ordens francesas. É curioso, pois em 1918,
Diagne foi nomeado comissário-geral do recrutamento das tropas
negras e foi encarregado de recrutar 40 mil atiradores, mas, segundo
Michael Crowder (2010), ele conseguiu recrutar um número ainda
maior, chegando a 63.378 soldados.
No entanto, também existiam fortes opositores às ações de
Diagne em relação aos colonizados. Cito o exemplo de Lamine
Senghor, que simpatizava com o marxismo, mas não com o Partido
Comunista Francês (PCF), pois, segundo ele, o partido negligenciava
a questão racial e os problemas coloniais iminentes. O ex-soldado
francês Senghor, então, ajudou na fundação do Comité de Défense
de la Race Nègre (CDRN) em 1926, conforme afirmam Hakim Adi
e Selim Nadi (2021). Senghor lutou na Primeira Guerra Mundial
de 1915 até 1919 e foi um dos primeiros nacionalistas senegaleses.
Quando convidado a relatar sua experiência de guerra, ele se
expressou da seguinte maneira:
Em vez de tentar provar com precisão quanto o grande traficante
de escravos [Diagne] recebeu por cada senegalês que ele recrutou,
eles deveriam ter trazido diante dele toda uma procissão de cegos
e mutilados na guerra… Todas essas vítimas teriam cuspido em
seu rosto a infâmia da missão que ele empreendeu (SENGHOR,
19249)

9 Extraído diretamente do artigo “Quando o comunismo encontrou


o anticolonialismo negro na França”. Disponível em:<https://jacobin.com.
br/2022/08/quando-o-comunismo-encontrou-o-anticolonialismo-negro-na-
franca/>. Data de acesso:20/05/2023.

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Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

Lamine Senghor escolheu não retornar ao Senegal, pois


acreditava ser necessário estar na Europa para expor e lutar pelas
questões raciais. A decisão de permanecer no continente europeu
pode ser compreendida levando em consideração que Lamine não
nasceu nas “Quatre communes du Sénégal”. Portanto, se ele regressasse à
terra natal, seu trabalho seria ainda mais complexo, uma vez que, sem
a nacionalidade francesa, não poderia mobilizar-se politicamente
ou exercer seu compromisso, já que não seria um cidadão da França.
Um dos últimos atos de sua vida foi participar da luta contra o
imperialismo na conferência A Liga contra o Imperialismo e a
Opressão Colonial; Ligue contre l’impérialisme et l’oppression ou Liga
gegen Kolonialgreuel und Unterdrückung, realizada em Bruxelas,
na Bélgica, em 10 de fevereiro de 1927. O discurso de Lamine
Senghor na capital Belga foi extremamente revelador, ao relatar
sua condição como soldado francês na Primeira Guerra Mundial
e demonstrar a disparidade salarial entre os soldados negros e os
soldados brancos.
O livro Irmão de Alma, de David Diop, foi escolhido por
retratar a história de um soldado senegalês de nome Alfa Ndiaye
enquanto atirador na trincheira de batalha, no continente europeu,
em defesa da França. É sabido que durante a I Guerra Mundial
algumas potências mobilizaram o continente africano buscando ou
coagindo pessoas para lutar por elas no conflito:
Cerca de dois milhões e meio de africanos foram mobilizados, como
soldados, trabalhadores ou carregadores, valor que corresponde
a, aproximadamente, 1% do total da população do continente
(PIRES; FOGARTY, p.1)

Dito isso, creio que se necessita saber quem é David Diop?


Diop nasceu em 26 de fevereiro de 1966, é um romancista
e acadêmico, nascido em Paris, mas criado no Senegal. Sua
especialização acadêmica se deu em torno de buscar compreender
as relações entre a África e a França, sendo também professor na
Universidade de Pau e Pays de l’Adour10. Um autor criado desde
a infância em território senegalês e academicamente estudioso das
10 Essas informações podem ser obtidas na Wikipedia inglesa: <https://
en.m.wikipedia.org/wiki/David_Diop_(novelist)>. Data de acesso: 20/04/2023.

172
Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

relações africanas que foram projetadas e construídas, justificam


ainda mais o recorte proposto, pois é David Diop que lança pela
primeira vez uma visão senegalesa ainda que em forma de romance,
sobre a Primeira Guerra Mundial, no universo literário brasileiro.
É preciso lembrar que quando a guerra eclode há na França
uma força de 15 mil soldados africanos, pois o serviço militar já
havia sido implementado antes dela surgir em 1857, todavia a
França ainda tornará o serviço militar obrigatório com pessoas
que têm em média 20 a 28 anos, do gênero masculino. No entanto,
entre 1915 e 1916 no auge da guerra, a França tinha necessidade
de mais soldados e começa uma caçada em território africano,
estima-se segundo PIRES e FOGARTY (2014) que o número tenha
chegado em 483 mil soldados dos territórios coloniais na Àfrica11.
No Senegal, havia uma promessa de que eles ganhariam cidadania
francesa e também não lhes ocorreria mais o trabalho forçado,
independente da área de nascimento.
Portanto, a leitura do livro Irmão de alma traz consigo uma
série de provocações que a gente precisa se debruçar, e de todas
elas, a melhor talvez seja o questionamento: como um colonizado
é visto de fato pelos seus algozes e os adversários de seus algozes
nos campos de batalha da Primeira Guerra Mundial? Receio que
ao se fazer uma pergunta como essa ao obter a resposta, se está
conseguindo observar como uma estrutura de dominação trabalha
e projeta futuros.

O pensamento como uma forma de poder


“Eu sei, entendi, eu não deveria. Eu, Alfa Ndiaye, filho do
velho homem, entendi, eu não deveria. Pela verdade de Deus, agora
eu sei”(DIOP, 2020, p.7). Observa-se com incrível curiosidade o que
segue e se espera uma revelação enorme ou a descoberta de algo que
possa mudar a história, no entanto, ao receber como continuidade
às seguintes palavras “Meus pensamentos pertencem apenas a mim,

11 Essas informações estão no artigo de Pires e Fogarty que cito em minhas


referências.

173
Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

posso pensar o que quiser” (DIOP, 2020, p.7). A curiosidade leva


a cogitar sobre qual homem que não pode pensar e como alguém
conseguiu controlá-lo e subjulgá-lo nesse nível ?
Para o psiquiatra Frantz Fanon (2019), o racismo é um
elemento culturalmente construído. Em seu artigo “Racismo e
Cultura”, aquele autor responde a essa pergunta afirmando que,
para dominar, é preciso diminuir e inferiorizar a linguagem do
outro, fazendo-o sentir-se invasor e inadequado. No entanto, é
impossível controlar os imprevistos, que às vezes levam a momentos
de consciência, ou seja, situações traumáticas que revelam ao
indivíduo sua verdadeira condição. A contradição observada nesse
primeiro momento é que Alfa Ndiaye percebe que pode pensar
sem que os outros saibam, sendo o trauma a morte de seu amigo
Mademba Diop.
A morte de Mademba Diop é o trauma pelo qual Alfa Ndiaye
não consegue absorver a estrutura colonial e percebe-se como
integrante dela. Pois, “Foi somente com a sua morte no crepúsculo,
que soube, entendi que eu não escutaria mais a voz do dever, a voz
que ordena, a voz que impõe o caminho” (DIOP, 2020, p.9). Nesse
momento, o personagem principal se reconhece emancipado em sua
mente e percebe que seus pensamentos são ocultos para todos os
outros. A ideia de raciocinar pode ser contraditória ao ato de ser
submisso.
No decorrer da obra, pode-se observar a figura de Alfa Ndiaye
questionando o sentido de pensar. Esse fato, longe de ser somente
curioso, possui a força de revelar como um sujeito passivo é mais
interessante para ser manipulado. Para ele, existe uma diferença
entre aqueles que possuem imaginação e questionamento, e os que
não despertam para isso. Ndiaye
os achava bobos, os achava idiotas porque eles não pensam em nada.
Soldados brancos ou negros, eles dizem sempre “sim”. Quando lhes
dão a ordem de sair da trincheira protetora para atacar o inimigo
descoberto, é “sim”. Quando lhes pedem para bancar o selvagem a
fim de assustar o inimigo, é “sim” (DIOP, 2020, p.15)

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Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

Possivelmente, muitos desses soldados só foram levados


para guerra e nem possuíam conhecimento sobre as suas causas e
os interesses dos países beligerantes. Acredito que seja relevante
descartarmos a ideia de ingenuidade de nosso personagem em
relação ao conflito, porém compreender que sua fala é direcionada
ao subjetivo desses soldados: por qual razão demonstrar tamanho
interesse e vitalidade em morrer por ordens? Essa é a pergunta que
nosso personagem impõe aos seus colegas de batalha em sua cabeça.

Terror à negritude, amor ao seu sangue


Um corpo negro em uma guerra branca é uma imersão profunda
em problemas complexos. Um drama existencial paradoxal. Para que
se possa imaginar, não era comum, após o intenso tráfico de pessoas
escravizadas no século XVIII, observar pessoas negras na Europa
ou em grandes comunidades. Quero dizer com isso que, desde o
processo de escravização das pessoas africanas, não havia pessoas
africanas visitando e morando na Europa em grande quantidade,
ou seja, eram pouquíssimas as pessoas livres racializadas que
possuíam direito à cidade e a vida na Europa em comparação com o
contingente escravizado e desumanizado enviado para o continente
americano. Um corpo negro era o inesperado; nesse sentido, até
pode-se dizer, um terror.
A introdução feita acima pode ser conferida no questionamento
de nosso personagem Alfa Ndiaye. Quando indaga sobre a relação
do capitão com seus amigos negros e expõe que eles imitam uma
imagem de loucura que não possuem.
O capitão lhes disse que os inimigos tinham medo dos negros, dos
canibais, dos zulus, e eles riram. Estão felizes porque o inimigo do
lado de lá tem medo deles. Estão felizes em esquecer seu próprio
medo. Assim, quando eles surgem da trincheira, o rifle na mão
esquerda e o facão na mão direita, projetam-se para fora do ventre
da terra e colocam no rosto olhos de loucos (DIOP, 2020, p. 15)

Porém, não se pode admitir que nosso personagem é desconexo


de sua história colonizada. Ele sabe que necessita emergir de em um
colonizado a condição de pensamento e que precisa ser revelado

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Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

os motivos pelo qual luta, pois “a França do capitão precisa que


banquemos os selvagens quando lhe é conveniente” (DIOP, 2020,
p.16). A França podia até indicar para o negro colonizado que os
outros europeus tinham medo e o terror do negro era algo que eles
temiam. Nesse sentido, a França mobilizou um volume altíssimo
de pessoas colonizadas para a guerra. Era conveniente uma pessoa
colonizada morrer pela França e era conveniente fomentar esse
medo para os outros.

Do trauma à loucura e vice versa


A morte no campo de batalha que sofreu seu grande amigo de
infância Mademba Diop se tornou um colapso mental, pois Ndiaye
viveu junto com ele na cidade de Gandiol no Senegal, a vida inteira
e os dois se alistaram no exército francês juntos. Nesse sentido,
ao ver o amigo morrer na sua frente, suplicando-lhe para o matar
humanamente, enquanto Alfa se recusava por seguir ordens do
capitão francês de levar os feridos ao médico, há um trauma que não
consegue superar. Alfa Ndiaye nunca suportará o peso de não ter
matado seu amigo, pois ele não podia pensar somente em cumprir
ordens.
Dito isso, Alfa Ndiaye encontra-se envolvido em uma espécie
de ritual para reviver o momento trágico em que viu a vida de seu
amigo esvair-se de seu corpo. Em todos os momentos em que ele
vai às trincheiras, Alfa reconstitui a morte de Mademba Diop. Ele
se posiciona próximo aos inimigos e finge estar morto. Quando
alguém se aproxima para verificar, ele retira a arma do seu corpo e
expõe suas vísceras, iniciando assim um ato de tortura. Ao finalizar
a tortura, Alfa Ndiaye corta a mão do soldado que sempre está
armado e leva tanto a arma quanto a mão decepada para seu capitão.
Pela verdade de Deus, eu fui desumano. Eu não escutei meu amigo,
escutei meu inimigo. Então eu capturo o inimigo do lado de lá,
quando leio em seus olhos azuis os gritos que sua boca não pode
lançar ao céu da guerra, quando o seu ventre aberto não passa
de uma gosma de carne crua, eu recupero o tempo perdido, eu
mato o inimigo. Na sua segunda súplica com os olhos, eu corto sua
garganta como se cortam os cordeiros de sacrifício. O que eu não

176
Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

fiz por Mademba Diop, faço por meu inimigo de olhos azuis. Por
humanidade reencontrada (DIOP, 2020, p.47)

Alfa Ndiaye entra em um frenesi procurando matar todos


os seus inimigos de olhos azuis, pois olhos azuis eram a única
característica física que Mademba Diop conseguiu exprimir além do
método (como o soldado planejou matá-lo) como foi morto. Ndiaye,
se tornou um colecionador de mãos humanas e sabia salgá-las como
se fazia com alguns alimentos em sua comunidade em Gandiol, pois
apesar de nunca observar essa brutalidade em Gandiol e os registros
que aqui mencionamos não apontarem esse comportamento como
padrão, o trauma da guerra afetou seu psicológico e ele se lembrava
somente de como a carne era salgada para durar mais tempo e esse
fato é destacado no livro de David Diop. O método fez com que
as mãos inimigas que ele decepou se tornassem seus troféus. Ele é
convidado para se retirar daquele batalhão, pois seu quadro mental
era grave e seu capitão queria achar as mãos para prendê-lo.

A força colonizada, o lucro desumano e a colheita do horror


Na ordem financeira, os grandes personagens Alfa Ndiaye
e Mademba Diop se colocaram para ir à guerra por uma questão
de sobrevivência e por obediência as leis de recrutamento da
metrópole. Eles nasceram fora das “Quatre communes du Sénégal”,
ou seja, eles não nasceram cidadãos da França e, portanto, não
podiam estabelecer nenhum comércio reconhecido pelos franceses,
por exemplo. Gandiol, tinha um líder local orientado pela França,
mas ainda era líder. Mademba Diop recebeu educação francesa e
desenvolveu um amor por aquele país. Ele recusou-se a aceitar a
vida como era e ansiava por algo mais, com um grande apego ao
país europeu. Por outro lado, Alfa Ndiaye não apreciava a França e
nunca desejou a guerra. Ele preferia estar no campo e viver sua vida
em torno de sua comunidade em Gandiol. O único desejo de Ndiaye
era encontrar sua mãe. Eram sonhos opostos.
Quando entramos na idade dos vinte, Mademba quis ir à guerra.
O colégio lhe colocou na cabeça a ideia de salvar a pátria-mãe, a
França. Mademba queria se tornar alguém de respeito em Saint-

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Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

Louis, um cidadão francês: “Alfa, o mundo é vasto, quero percorrê-


lo. A guerra é uma oportunidade de sair de Gandiol. Se Deus quiser,
voltaremos sãos e salvos. Quando tivermos nos tornado cidadãos
franceses, nos instalaremos em Saint-Louis. Faremos comércio […]
(DIOP, 2020, p.99)

A verdade é que esse sonho, foi o sonho de muitos, a ideia


de vencer e tornar-se cidadão. O complexo de inferioridade, se
existe, para Frantz Fanon (2020b), é primeiro estabelecido de
maneira econômica e depois por processo de inferiorização ou
epidermização desse pensamento. Acredito que esse complexo
pode ser observado aqui, pois nada se podia fazer fora das áreas
protegidas por Blaise Diagne, o negro era submetido ao mundo do
branco forçadamente.
Mademba Diop e Alfa Ndiaye não teriam que ir para a guerra
se todos fossem iguais no Senegal, se não existisse distinção de área
de nascimento e isso não fosse um fator determinante para exercer
atividade de trabalho remunerada e reconhecida por franceses.
Porém, como dito por Noberto Ferreras (2016) o trabalho dos
colonizados não era uma discussão urgente e tampouco com regras
mínimas após Primeira Guerra Mundial, imagine no período que
antecede. Sem nenhum mecanismo de defesa dos trabalhadores
colonizados e pagando muito mal, como menciona Senghor (2022).
O complexo de inferioridade é completamente exemplificado aí, na
condição de que para ser uma pessoa e ser reconhecido em sociedade
era preciso arriscar a vida e por vezes, até morrer, pela França, pois
não havia outra forma de crescer socialmente.
Segundo Frantz Fanon (2020a), o louco é aquele que foge
dos padrões estabelecidos como normais em sua sociedade. A
ideia de loucura também é associada a todos os indivíduos que
não são o que a sociedade projeta como ideal, ou seja, Alfa Ndiaye
ficou louco. Ele é um sujeito que pensa, porém ele não é mais o
comum da sociedade daquele tempo e espaço. Ele sabe que banca
o selvagem para que um branco se beneficie e sabe que a França
faz isso com ele e seu povo, mas ele não vê saída para ele ou para
seu povo. As mãos de soldados mortos por Ndiaye são o único
consolo que é sua única forma de buscar a humanidade que lhe foi

178
Camila Massi, Julio Bentivoglio & Lucas Fiorezi

roubada. Os outros o observam como um monstro, um soldado


feiticeiro ou até mesmo a própria encarnação da morte, mas nunca
como alguém que precisava de ajuda após perder seu companheiro
de vida Mademba Diop.
O colonialismo conduziu à colheita do horror; a todos aqueles
que viam Alfa Ndiaye chegar com mãos inimigas nos acampamentos
de guerra. Não era possível fugir, não era possível não olhar, não era
possível virar o rosto quando a quantidade de mãos aumentava. Essa
é a exposição de um horror pelo qual vislumbrava-se um limite para
o imperativo de que os soldados negros bancassem o selvagem, pois
essa selvageria deveria ser canalizada para os inimigos da França
e nunca para a própria a França. Todavia, mesmo na condição de
inimigos ainda são seus pares e isso faz com que Alfa Ndiaye seja
retirado daquele front, pois era desumano aos olhos de todos o
quanto ele voltava vivo após retirar tantas vidas de homens brancos
de forma brutal. Memmi (1977) irá dizer que isso é parte do acordo
dos colonizadores enquanto ocupam um território, o de beneficiar,
auxiliar e assegurar o bem-estar.

Considerações Finais
Alfa Ndiaye e Mademba Diop não mereciam apoio? Eles
não precisavam que a França os reconhecesse como cidadãos antes
de irem à guerra, para viverem no campo ou terem liberdade de
comércio? O apoio custava a exploração da força de trabalho
e do sangue que eles estavam dispostos a oferecer à França. Os
cidadãos franceses e a França colonial tinham certeza disso. Fazer
mal aos inimigos de olhos azuis era para Ndiaye recuperar o que
lhe foi tirado, algo que nunca lhe foi oferecido: o direito de ser
um cidadão, de pensar e agir por si. Ndiaye só foi levado para um
hospital porque os inimigos mortos, brutalmente, tinham olhos
azuis.
O complexo de inferioridade está infiltrado em todos os
aspectos nesse cenário dado que ele se alavanca com a situação
econômica provocada pela França nas comunidades do Senegal. O

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Passados em Transe: meta-história e o Brasil 50 anos depois

povo senegalês é forçado entrar em um conflito europeu para ser


considerado humano e digno de possuir bens, sendo que não pode
recusar. Viver é lutar, lutar é viver.
O soldado africano foi levado ao limite psicológico de exaustão
e sabia que uma revolta dos seus companheiros seria impossível.
Alfa Ndiaye, passa a conversar consigo mesmo em uma espécie de
tristeza e ressentimento dado que ninguém poderá auxiliá-lo a fugir
dos algozes e ele não confia a sua liberdade em outros. No fundo,
ele vê o colonizador e quer matá-lo para encontrar sua própria
liberdade.

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