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BRASILEIRA
1ª edição
SESES
rio de janeiro 2017
Conselho editorial roberto paes e luciana varga
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida
por quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em
qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora. Copyright seses, 2017.
isbn: 978-85-5548-272-4
Prezados(as) alunos(as),
5
Nossa viagem se encerra no quarto capítulo, com uma visão das principais ten-
dências da Historiografia Brasileira contemporânea. Para isso, vamos apresentar o
debate entre a “Nova História Cultural”, a história política renovada, a história oral
e as relações entre história e memória, e o marxismo no século XIX.
Bons estudos!
6
1
O Brasil em construção,
o nascimento de uma
historiografia: os
primeiros historiadores
do Brasil
O Brasil em construção, o nascimento de
uma historiografia: os primeiros historiadores
do Brasil
OBJETIVOS
• Definir historiografia;
• Reconhecer a necessidade humana de relatar o seu passado histórico e conhecer as diver-
sas formas que essa narrativa pode adquirir;
• Conhecer os primeiros autores e respectivas obras sobre a Historiografia Brasileira;
• Compreender e analisar a formação do pensamento histórico brasileiro no período colonial;
• Compreender e analisar os discursos que formaram a tradição historiográfica brasileira no
decorrer do século XIX sob influência do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB).
Introdução
CONCEITO
Historiografia: Palavra composta por duas raízes, ambas gregas: “histor” ( ), que
significa pesquisa, investigação; e “graphein” ( ), ou seja, escrita. Em suma, historiogra-
fia é toda obra cujo tema é algo relativo ao passado de uma sociedade. Já a palavra Historio-
grafia, começando com letra maiúscula, se refere ao conjunto de obras sobre a história de um
dado grupo humano.
capítulo 1 •8
nenhum conceito, por geral que seja, diz o suficiente para expres-
sar a abrangência e a profundidade do anseio pelo conhecimento
histórico: nem povo, nem Estado, nem espírito, nem cultura, nem
o mundo, nem a humanidade. O conhecimento histórico é uma
necessidade vital, e como tal escapa a uma motivação exata.
capítulo 1 •9
José Honório Rodrigues (1978, p. 21), por sua vez, localiza no sistema jurídico
espanhol medieval, a origem da exigência de prova material para comprovação
dos delitos imputados ao réu. Investigar, isto é, descobrir vestígios. Esse é um
dos exercícios fundamentais do historiador.
AUTOR
Johan Huizinga (Holanda, 1872–1945).
Estudioso da Baixa Idade Média e do Renascimento. Foi um dos precursores da História
Cultural, com seu livro “O outono da Idade Média”, de 1919. Há uma edição brasileira, da
editora paulistana Cosac Naif. Confinado em um campo de concentração alemão em 1942,
morreu pouco antes do final da Segunda Guerra.
CURIOSIDADE
“Bollandistas”, de Jean Bolland (1596-1665), padre jesuíta belga que organizou e coor-
denou uma equipe de religiosos, no início da década de 1640, com a finalidade de localizar
e recuperar os registros históricos sobre a vida e os feitos de santos católicos. Buscava-se
com isso comprovar a veracidade das tradições sobre os mártires católicos, no contexto da
Contra-Reforma. Por esse esforço, os padres “bollandistas” são tidos como precursores do
uso de arquivos documentais consolidados da crítica das fontes.
capítulo 1 • 10
Os primórdios do Brasil e da Historiografia Brasileira
COMENTÁRIO
Paralelamente aos relatos dos “viajantes”, os padres missionários, sobretudo da Companhia
de Jesus, também produziram documentos interessantes sobre os primeiros tempos da nova
colônia. As obras de padres como José de Anchieta, Manuel da Nóbrega e Fernão Cardim nos
trazem informações sobre os primeiros acontecimentos desde a chegada dos europeus.
Esses relatos também nos apresentam situações cotidianas das populações locais, como
seus hábitos, atividades econômicas, e vida conjugal e familiar, por exemplo. Também há infor-
mações importantes sobre as formas de relacionamento com a coroa, com as autoridades a
serviço dela, e com a Igreja. Além dessas descrições, também há relatos sobre as populações
indígenas, sempre envoltos por uma atmosfera ora de admiração, ora de espanto.
“O Brasil é o paraíso terreno, mas o povo...”, ou então, “o povo é bom, honesto e traba-
lhador, quem atrapalha são os políticos”, e muitos outros ditos populares que expres-
sam essa visão ambígua que se tem do Brasil desde os primórdios da colonização.
capítulo 1 • 11
Há de se salientar, com efeito, que era frequente a cópia entre os autores,
o que fazia com que, muitas vezes, os exageros imaginativos de uns, fossem
aumentados por outros.
As formas de escrita utilizadas nesses primeiros relatos do Brasil foram diver-
sas: cartas, crônicas de viagem, diários pessoais, documentos diplomáticos, entre
outros. Inaugurando esse gênero, temos a famosa Carta de Pero Vaz de Caminha,
redigida ao Rei D. Manuel, informando o “achamento” das novas terras, a suposta
Ilha de Vera Cruz.
IMAGEM
Carta de Pero Vaz de Caminha, sob a guarda da Biblioteca Nacional de Portugal. Conside-
rada pela ONU um patrimônio da humanidade.
Ainda que não tenha sido este o objetivo do escrivão da Esquadra de Cabral,
a “Carta” relata os primeiríssimos passos dos portugueses nas terras americanas.
Por isso, ela se converteu em um verdadeiro registro daquilo que, muito tempo
depois, os historiadores chamariam de “História Imediata”. Por isso, sem o saber,
Caminha inaugurou a Historiografia Brasileira.
capítulo 1 • 12
CONCEITO
História Imediata: corrente historiográfica recente, decorrente da “História do Tempo Pre-
sente”, que procura interpretar os fatos contemporâneos à luz de processos históricos mais am-
plos, ampliando assim a compreensão dos mesmos para além do meramente factual e conjuntural.
capítulo 1 • 13
ATENÇÃO
Devido aos esforços missionários, os padres jesuítas eram levados a observar de forma
intensa a vida dos nativos. Nas minuciosas descrições de Cardin, fica clara a sua benevolên-
cia para com os indígenas, não os retratando como “malévolos e cruéis”, como faziam muitos
de seus contemporâneos. Como disse Capistrano de Abreu, “não moralizava, não finalizava,
embebia-se do espetáculo, além do bem e do mal”.
Hans Staden
capítulo 1 • 14
IMAGEM
O livro é dividido em duas partes. Na primeira, Hans Staden enfatiza sua con-
vivência com os tupinambás como prisioneiro, realçando suas estratégias para
adiar o desfecho fatal. Na segunda, o autor descreve de forma objetiva os costu-
mes dos indígenas, além de dar informações sobre a fauna e a flora locais.
MULTIMÍDIA
Filme: “Hans Staden”
Direção e produção de Luis Alberto Pereira (Brasil/Portugal, 1999).
Esta premiada produção cinematográfica luso-brasileira baseia-se na obra do próprio
Hans Staden para nos mostrar de forma realista o período em que ficou preso em uma aldeia
Tupinambá – e quase foi devorado. O elenco é de primeira, e a produção, cuidadosa e capri-
chada, reproduz com fidelidade os desenhos de Hans Staden das cenas cotidianas da aldeia
indígena. Vale a pena assistir.
capítulo 1 • 15
Pero de Magalhães Gândavo
capítulo 1 • 16
CURIOSIDADE
No primeiro, o “Tratado”, Gândavo ocupou-se dos aspectos naturais e geográficos do Bra-
sil. Em “História da Província”, o tema é a vida cotidiana dos primeiros colonos e a descrição
dos povos indígenas.
No seu texto, está presente a mesma ambiguidade que marcava os relatos dos
autores anteriores: o Brasil entre o paraíso terreno e o centro do “pecado”. Há duas
versões de “História da Província de Santa Cruz a que vulgarmente chamamos
Brasil”, escritas no início da década de 1570.
Em “Tratado”, o autor não se cansa de elogiar os aspectos naturais da nova
colônia: clima ameno, terras férteis, água em abundância. Tem-se a sensação de
que a obra foi redigida com o claro intuito de atrair colonos para as novas terras,
como uma espécie de propaganda. Citando-o:
A lingua deste gentio toda pela Costa he, huma: carece de tres
letras —scilicet, não se acha nella F, nem L, nem R, cousa digna de
espanto, porque assi não têm Fé, nem Lei, nem Rei; e desta ma-
neira vivem sem Justiça e desordenadamente (idem, 1573, p. 14).
capítulo 1 • 17
O estranhamento em relação ao outro, o silvícola, é patente. Recriminava-o
por sua nudez, seus rituais e sua aparente falta de fé. É, enfim, para Gândavo, um
povo “sem Fé, sem Lei, sem Rei”, cuja “salvação” das almas estava garantida pela
ação catequética dos padres da Companhia de Jesus.
Em “História”, há claramente um apelo à Coroa para que dedicasse mais
atenção à sua posse americana. Isso porque, na segunda metade do século XVII,
Portugal interessava-se muito mais pelo comércio com o Oriente do que por suas
inóspitas terras na América. Contudo, Gândavo era da opinião de que esta situa-
ção punha em risco a própria manutenção da posse da colônia, assediada intensa-
mente por invasores, sobretudo franceses.
IMAGEM
capítulo 1 • 18
interessados em prosperidade material que viessem para a colônia e, ao Rei, suge-
ria a adoção de escravos africanos para auxílio nas atividades econômicas em geral.
porq h s lhe pescão e cação outros lhe fazem mantim tos e fa-
zenda. E assy pouco a pouco enriqueç ôs hom s e viven honra-
damente na terra com mais descanso q neste Reino (GANDAVO,
1576, p. 15).
Sabe-se que Gândavo havia redigido uma versão de “História” anterior àquela
que foi publicada. Da primeira, o autor extraiu referências a mitos fantásticos e
lendas que circulavam entre os colonos, bem como informações que considerou
duvidosas sobre a história da colônia. Ou seja, o autor procurou dotar seu texto
de objetividade e verossimilhança, o que fez dele um importante relato sobre as
primeiras décadas do Brasil.
ATENÇÃO
Trabalharemos apenas dois desses autores, e a título de exemplo: José Bonifácio de
Andrada e Silva e Visconde de Cairú. Eles foram escolhidos, no caso, devido à relevância que
tiveram no processo político que levou à construção, à independência e ao Império do Brasil.
A história não era o objetivo final desses pensadores, mas eles tiveram que recorrer a ela
para compreenderem melhor o Brasil que queriam mudar.
capítulo 1 • 19
O que deles havia em comum foi que identificaram
como raiz dos problemas nacionais, a raça.
AUTOR
Aos vinte anos, foi estudar na Europa, matriculando-se na Faculdade de Direito da Uni-
versidade de Coimbra, onde frequentou os cursos de Filosofia (que oferecia disciplinas da
área de Ciências Naturais) e Matemática. Posteriormente, dirigiu-se a Paris e matriculou-se
no curso de Mineralogia e Química da Escola Real de Minas. Viajou por vários países euro-
peus, visitando minas e conhecendo in loco as respectivas atividades siderúrgicas.
capítulo 1 • 20
intendente das Minas e Metais do Reino, o que lhe valeu o aprofundamento nas
questões de Economia Política, em especial a Fisiocracia, então em voga.
IMAGEM
Sua volta ao Brasil ocorreu somente em 1819, quando já estava com 56 anos
de idade, para trabalhar como Ministro do Príncipe Regente D. Pedro. Demitiu-
se do cargo em 1823 para assumir uma cadeira de Deputado na Assembleia
Constituinte que então se formava.
Nessa época, José Bonifácio já estava convencido da fundamental necessidade do
Estado intervir na sociedade como forma de estimular e dirigir o desenvolvimento. E
fundamentava suas posições com um profundo conhecimento da História do país.
Em “Apontamentos para a civilização dos Índios do Brasil”, apresentado por
José Bonifácio como projeto de lei à Assembleia Geral Constituinte em 1823,
atacava aquilo que considerava um dos maiores entraves para o Brasil se tornar
um grande país, ou seja:
capítulo 1 • 21
Os índios “bravos”, ou não aculturados, eram tidos pelo autor como arredios ao homem
branco, a quem consideravam “inimigo”, e agiam em relação a ele “de forma desumana”.
Mas, como bom rousseauniano que era, estava convencido de que o meio fazia o homem,
acreditando que a fixação do indígena em vilas poderia “converter esses bárbaros em
homens civilizados” (ANDRADA E SILVA, 89).
Admitia que a relutância do indígena em relação ao branco se devia à maneira como o
português sempre o tratara, desconsiderando sua humanidade. Sua proposta estipulava
que, gradualmente, os índios fossem integrados à cultura branca, inclusive mestiçando-
-se. Em termos práticos, sugeriu a adoção dos métodos dos Jesuítas missionários.
Quanto aos negros escravos, o mesmo objetivo que o moveu a propor mu-
danças no tratamento do Império em relação às populações indígenas, o levou a
apresentar à Assembleia recém-reunida no Rio de Janeiro uma “Representação à
Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil sobre a Escravatura”.
Nela, Bonifácio propôs a gradual emancipação dos escravos e sua incorporação à eco-
nomia nacional através da concessão, pelo Império, de lotes de terra, para que pudes-
sem trabalhar. Para ele, essa medida seria benéfica, não apenas para os diretamente
interessados, os escravos, mas para toda a sociedade brasileira, posto que os escravos,
capítulo 1 • 22
uma vez libertos, ao trabalharem para o próprio sustento, estariam contribuindo para
a economia nacional como um todo. Isso porque, na sua avaliação, historicamente
falando, a produtividade econômica do escravo era baixíssima.
ATENÇÃO
Ademais, José Bonifácio considerava imperiosa a necessidade de se recuperar a digni-
dade do negro, tornando-o cidadão brasileiro. Portanto, na ótica do autor, a situação em que
se encontrava o negro cativo era de desigualdade civil, e não de diferença racial.
capítulo 1 • 23
Simultaneamente à interiorização do país, José Bonifácio recomendava a urgente
reforma agrária. Isso porque a realidade fundiária brasileira ainda estava calcada
nas antigas sesmarias que, em sua opinião, eram uma funesta herança colonial.
Para ele, essas propriedades rurais imensas, por concentrarem a terra, dificultavam
a multiplicação das lavouras e até mesmo o assentamento populacional. Por essas
razões, Bonifácio as considerava um óbice ao desenvolvimento nacional, e uma
séria ameaça à manutenção da integridade territorial.
Inegavelmente, Cairu teve um forte vínculo com a Família Real e, por exten-
são, foi um importante protagonista dos acontecimentos políticos e econômicos
que marcaram o Período Joanino. É digno de nota que, durante toda a Regência
e Reinado de D. João VI, José Lisboa foi um incansável defensor de suas medidas.
capítulo 1 • 24
IMAGEM
capítulo 1 • 25
O Estado deveria conceder subsídios e incentivos fiscais aos industriais interessa-
dos em investir no Brasil, uma vez que nossa condição de colônia, até muito recen-
temente, impedira que o país tivesse seus próprios recursos financeiros necessá-
rios para esses investimentos. Um dado importante para ilustrar esse pensamento
de Cairu é que, em 1808, a atividade industrial no Brasil correspondia a apenas
1,6% da produção econômica.
ATENÇÃO
A economia, segundo Cairu, também sofreria um impacto negativo. Predominando nos
campos o trabalho rude do escravo, sendo este a maioria da população brasileira, o país não
contava com o menor contingente de mão de obra qualificada para as manufaturas.
capítulo 1 • 26
COMENTÁRIO
Esses eminentes pensadores do Brasil, no exato instante em que ele se constituía
como Estado Nacional autônomo, buscaram no seu passado histórico as explicações
para suas mazelas do presente e, daí, as bases para o projeto de futuro. No exclusivo
colonial, foram encontrar as razões do atraso econômico; na miscigenação das raças, os
motivos dos entraves sociais. Essas teses ganhariam ares de verdades incontestáveis
e, como veremos nos próximos capítulos, atravessariam o século XIX com toda a força,
adentrando pelo século.
REFLEXÃO
Em outras palavras, um Estado só se justificava se representasse o clímax da evolução
política de uma nação que, por sua vez, estivesse assentada sobre uma base territorial. Por
capítulo 1 • 27
isso, a História e a Geografia tornaram-se disciplinas indispensáveis para as pretensões po-
lítico-ideológicas dos grupos interessados na construção do Estado.
CURIOSIDADE
Foi nessa atmosfera que o IHGB, em 1840, promoveu um concurso sobre como se
deveria escrever a história do Brasil. O vencedor foi o jovem naturalista alemão Karl Philipp
von Martius que, em uma longa viagem pelo Brasil poucos anos antes, reunira elementos que
o permitiram participar do concurso. O texto vencedor, cujo título era o mesmo do concurso,
“Como se deve escrever a história do Brasil”, foi publicado na revista do IHGB em janeiro de
1845 (número 24, tomo 6, páginas 381 a 403).
CONEXÃO
O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro está em plena atividade e procura fo-
mentar novas pesquisas e divulgar conhecimento histórico e geográfico através de pu-
blicações, seminários e cursos. Possui um portal eletrônico rico em informações sobre
sua história e atividades presentes. Disponibiliza também acesso às suas revistas, desde
as primeiras edições, ainda no século XIX. O pesquisador também tem acesso a um rico
acervo documental e iconográfico. Sua sede é no Rio de Janeiro, na Av. Augusto Severo,
nº 8, 9º/13º andar, no Bairro da Glória.
Karl Philipp von Martius foi um naturalista alemão que veio ao Brasil acompa-
nhando a comitiva da Princesa Leopoldina, austríaca, que, em 1817, dirigiu-se ao
país para se casar com o príncipe Pedro d’Orleans e Bragança, futuro Imperador.
capítulo 1 • 28
Sua missão era percorrer o Brasil a fim de formar uma coleção de minerais, ani-
mais e vegetais, e regressar com ela para a Europa. Durante três anos, viajou mais
de 10 mil quilômetros pelo interior do Brasil, levantando importantes dados sobre
a vida natural do país.
As três raças que compunham a “nação brasileira”, nas palavras dele, eram:
• A cor de cobre ou americana;
• A branca ou caucasiana e, por fim;
• A preta ou ethiopica”.
capítulo 1 • 29
Em tempo, ele foi o primeiro historiador a falar em
“nação brasileira”.
COMENTÁRIO
Contudo, como já foi dito, o autor não conseguiu se afastar das teses racistas em voga
no século XIX, que já haviam despontado nos estudos sobre o Brasil, a exemplo dos citados
Visconde de Cairu e José Bonifácio.
Por isso, von Martius considerava o português mais apto, física e moralmente,
para ser o “motor” do desenvolvimento nacional. Entretanto, assim como teria
ocorrido em regiões europeias em um passado mais distante, a exemplo da própria
Inglaterra, povos diferentes teriam se mesclado, originando uma grande nação.
Estava, porém, ciente de que sua proposta metodológica de inclusão dos negros e
indígenas na história do país não agradaria aos portugueses.
capítulo 1 • 30
Apesar das avaliações severas dos índios e negros, von Martius propunha que
se buscasse sua efetiva contribuição, pesquisando nas danças, costumes e rituais,
aquilo que forjaram para a nacionalidade. Supunha o autor que os índios bra-
sileiros eram remanescentes de uma grande civilização que havia se perdido. E
acreditava que uma pesquisa arqueológica aprofundada poderia descobrir os ves-
tígios dessa civilização e, daí, possibilitar o conhecimento do verdadeiro espírito
dessa raça.
Aos negros, entretanto, o julgamento de von Martius foi, no mínimo, cético:
capítulo 1 • 31
Francisco Adolfo Varnhagen. Assinalava em suas obras, "natural de Sorocaba".
COMENTÁRIO
Efetivamente, em sua obra mestra, “História Geral”, a riqueza documental surpreende o
leitor. Todos os fatos apresentados por Varnhagen foram cuidadosamente documentados,
e as fontes dos documentos, detalhadamente informadas. O fio condutor da narrativa é a
cronologia, e o grande tema central é o período colonial, do qual o autor não se eximiu de
mostrar as disputas pelo poder, as injustiças e os privilégios da minoria em oposição aos
sofrimentos da maioria. Isso porque sua premissa de trabalho é a “Verdade”, que empresta à
obra um caráter documental, por vezes enfadonho para o leitor dos dias de hoje.
capítulo 1 • 32
Mas, homem de seu tempo, não demonstrava
simpatia às populações empobrecidas, escravos
e indígenas.
A exemplo destes, é visível sua aprovação das ações “punitivas” dos portugue-
ses quando das sublevações dos índios.
Mestiçados, os brasileiros do período colonial receberam de Varnhagen um
tratamento quase como o de uma crônica policial, expondo em minúcias de deta-
lhes a vida “corrompida” dessa gente.
Porém, paralelamente a esses “preconceitos racistas e ideológicos”, Varnhagen
foi responsável pela inauguração da historiografia “científica” no país. Sua obra
marcará decisivamente toda uma geração de estudiosos brasileiros, tanto no aspec-
to do rigor documental, quanto –lamentavelmente – no reforço dos preconceitos
raciais, que irão perdurar nas ciências sociais brasileiras por longas décadas.
COMENTÁRIO
Você Sabia?
A Universidade Federal de Outro Preto (UFOP) abriga a sede da “Sociedade Brasileira
de Teoria e História da Historiografia” (SBTHH), criada em 2009. Trabalhando juntamente
com a ANPUH, ela visa fortalecer as disciplinas de Teoria da História e Historiografia nas
universidades, pois as compreende como essenciais para o aprimoramento da pesquisa his-
tórica no Brasil. Sua atuação se dá, basicamente, através do intercâmbio de pesquisadores
entre as universidades e do apoio a revistas acadêmicas voltadas para as disciplinas. Nesse
sentido, ela mantém uma revista própria, chamada Revista de História da Historiografia, de
periodicidade quadrimestral, e que já está no exemplar nº 18 (2015/1).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CARDIN, Fernão. Tratados da terra e gente do Brasil. Disponível em http://www.
brasiliana.com.br/brasiliana/colecao/obras/111/
CHAUVEAU, Agnès & TÉTART, Philippe (orgs.). Questões para a história do presente.
Baurú: EDUSC, 1999.
GANDAVO, Pero Magalhães. História da Província de Santa Cruz, a que vulgarmente
chamamos Brasil. 1573.
capítulo 1 • 33
GANDAVO, Pero Magalhães. História da Província de Santa Cruz, a que vulgarmen-
te chamamos Brasil. 1573. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/
texto/bv000290.pdf
_________________________ -Tratado da Terra do Brasil. 1576. Disponível em: http://
www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000165.pdf
SILVA, José Bonifácio de Andrada e. Projetos para o Brasil. (organização de Miriam
Dolhnikhoff) São Paulo: Cia. das Letras, 1998.
LISBOA, José da Silva. Visconde de Cairu. Organização e Introdução de Antonio Penal-
ves Rocha. São Paulo: Editora 34, 2001.
MARTIUS, Karl P. von. Como se deve escrever a História do Brasil. (1843) Disponível em:
https://umhistoriador.files.wordpress.com/2012/03/martius-carl-friedrich_como-se-
-deve-escrever-a-histc3b3ria-do-brasil.pdf
VARELA, Flávia; OLIVEIRA, Maria & GONTIJO, Rebecca (orgs.). História e historiado-
res no Brasil: da América Portuguesa ao Império do Brasil (1730 – 1860). Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2015.
VARNHAGEN, Francisco Adolfo. História Geral do Brasil. Rio de Janeiro: E. e H.
Laemmert, 1857. 2 v. Disponível em http://www.brasiliana.usp.br/node/454.
capítulo 1 • 34
2
A historiografia
brasileira do final
do século XIX até a
década de 1930
A historiografia brasileira do final do século
XIX até a década de 1930
OBJETIVOS
• Compreender e analisar os discursos que formaram a tradição historiográfica brasileira no
decorrer do século XIX;
• Conhecer e analisar a influência do pensamento positivista e das teses racionais sobre a
intelectualidade brasileira e suas relações com a historiografia;
• Conhecer as contribuições de Joaquim Nabuco para a historiografia brasileira através de seu
esforço abolicionista;
• Conhecer a obra e as premissas de trabalho de Nina Rodrigues;
• Conhecer as contribuições de Euclides da Cunha e Manuel Bonfim para o pensamento
social brasileiro;
• Conhecer a obra de Capistrano de Abreu e analisar suas contribuições para a historiogra-
fia brasileira.
Introdução
Como vimos no capítulo anterior, a questão racial foi a tônica de boa parte da
historiografia produzida no Brasil ao longo do século XIX, e assim permaneceu até
as décadas iniciais do século seguinte. Se os pressupostos racistas já eram senso co-
mum entre as elites nacionais desde os argumentos típicos do período colonial, as
teorias de Augusto Comte e Herbert Spencer apenas os revestiram com roupagens
pretensamente científicas, consequentemente, reforçando-os.
No decorrer das últimas décadas do século XIX, o país passou por transformações
radicais nos âmbitos político e social. O Império deu lugar a uma República e, final-
mente, a abolição acabou com a infâmia da escravidão. O café começava sua hegemo-
nia, consolidando a transferência do polo econômico nacional para a região sudeste,
em especial para São Paulo, colocando a elite cafeicultora paulista em pé de igualdade
com as elites tradicionais do nordeste na disputa pelo Estado. A imigração europeia,
sobretudo de italianos, mas que também incluiu espanhóis, alemães e poloneses, apro-
fundava o caráter do Brasil enquanto país multicultural. Porém, a jovem República já
tinha sua dívida moral para com a população humilde e mestiça do imenso interior
após o massacre do povoado de Belo Monte, na guerra de Canudos (1897).
capítulo 2 • 36
AUTOR
capítulo 2 • 37
Como se vê, os mais de trezentos anos de escravidão deixaram sua marca. As
relações raciais estavam longe de serem harmoniosas, e o patriarcalismo caminha-
va de mãos dadas com o machismo e o racismo. O Brasil era, e talvez ainda seja,
uma sociedade autoritária. Portanto, como não poderia deixar de ser, os estudos
sobre a sociedade brasileira – produzidos por membros da elite branca europeizada
– refletiam essa atmosfera psicossocial.
Figura 4: O senhor e o seu plantel de escravos. Nota-se o visível desconforto dos escravos
na pose para a foto e o detalhe dos pés descalços, exceto os do senhor.
capítulo 2 • 38
Um exemplo ilustrativo dessa produção acentuadamente elitista pode ser en-
contrado no trabalho de Oliveira Lima. Diplomata de carreira, e seguidor da me-
todologia de Francisco Varnhagen, ocupou-se da história diplomática brasileira,
realizando extensas pesquisas nos arquivos e bibliotecas dos vários países onde
esteve a serviço. Entre as décadas de 1910 e 1920, reuniu uma expressiva docu-
mentação e catalogou documentos que aumentaram significativamente o leque
de fontes da história política e das relações internacionais brasileiras. Pesquisou
também a história das famílias de personalidades ilustres da história brasileira, so-
licitando permissão para averiguar os arquivos particulares das “famílias fidalgas”,
uma vez que, para ele, “não há quase casa fidalga em Portugal, por exemplo, que
não possua papéis brasileiros”, como disse em artigo na Revista do IHGB (tomo
76, vol.2, 1913).
Como se pode perceber, as fontes e as temáticas estavam restritas ao Estado
e aos grupos de influência no poder. Camadas populares e fontes alternativas às
arquivadas pelo Estado não tinham voz.
Mas houve exceções, das quais iremos tratar nas páginas que se seguem.
Euclides da Cunha, com seu belíssimo “Os Sertões”, propôs uma leitura absoluta-
mente inovadora do mestiço do semiárido nordestino. Manuel Bonfim inovou o
pensamento social brasileiro ao buscar, na economia, os fundamentos das mazelas
sociais, não só do Brasil, mas de toda a América Latina. E, finalmente, um dos
grandes mestres da historiografia brasileira, que ocupa uma parte considerável des-
te capítulo, José Honório de Capistrano de Abreu.
capítulo 2 • 39
pouco merecedora de análises mais criteriosas. Com exceção honrosa, claro, de
Capistrano de Abreu.
No período entre as décadas finais do século XIX e as décadas iniciais do
século XX, o ensino da História tinha um acentuado caráter cívico-patriótico. Ao
resgatar as “tradições” nacionais, solidificava os elos e promovia a integração na-
cional. Começaram, então, a surgir estudos que buscavam na fusão das três “raças”
– o negro, o branco e o indígena – a essência da nação brasileira, ainda que sob a
hegemonia dos brancos. Mas a produção historiográfica propriamente dita era de
baixa qualidade e ideologicamente comprometida com as elites dominantes. Nas
palavras de José Roberto do Amaral Lapa:
[...] até pelo menos a década de 20, a Historiografia brasileira é basicamente a mesma
do século XIX, isto é, guarda as mesmas limitações tradicionais, não tomando no seu
conjunto sequer conhecimento do progresso sofrido pelas Ciências Humanas. Carac-
teriza-se pela ausência de uma contribuição das demais Ciências Sociais que ainda
não se haviam desenvolvido no país. [...] A história que predominava tradicionalmente
atingia, de preferência, as áreas políticas e administrativas, a biografia (genealogia)
voltada para os heróis e estadistas, chefes de governo e de manobras militares; uma
História, portanto, das camadas dominantes feita de maneira artesanal e geralmente
reacionária (LAPA, 1976: 70-71).
capítulo 2 • 40
Joaquim Nabuco
capítulo 2 • 41
Figura 5: Lei Áurea, 13/05/1888
capítulo 2 • 42
Era, a rigor, um monarquista. Abolicionista, sim; republicano, jamais.
Conciliava em sua pessoa, sem dramas existenciais, essas patentes ambiguidades.
Após a República, fundou um partido monarquista, o que fez com que fosse rene-
gado ao esquecimento. Passou a escrever obras de análise de conjuntura, a exem-
plo de “A intervenção estrangeira durante a Revolta” (1896), onde, a pretexto da
avaliação da Revolta da Armada de 1896, faz críticas ao comportamento exibicio-
nista dos republicanos e ao seu autoritarismo político de viés positivista.
Em uma longa obra memorialista, “Um estadista do Império”, publicado
entre 1897 e 1899, traça um amplo panorama da história política imperial. Para
isso, recorreu aos documentos que compilou durante sua vida diplomática e no
quadriênio em que fora deputado na capital do Império (1879-1883). É uma rica
exposição de fontes primárias que merece consulta por parte dos estudiosos do
Brasil Império.
capítulo 2 • 43
Figura 6: O médico com pretensões a antropólogo Nina Rodrigues.
Seu livro mais conhecido, “Os africanos no Brasil”, é uma pesquisa de etnografia
histórica, e foi publicado por seus discípulos após sua morte, em 1933. Apesar do
cunho racista, a obra teve o mérito de ser a primeira a conter uma minuciosa pesqui-
sa sobre a trajetória os povos africanos no Brasil, desde os primórdios da colonização
até o período imperial. Nina Rodrigues reuniu dados provenientes de tradições orais
e escritas dessas populações e informações sobre comunidades quilombolas – inclu-
sive Palmares. Há, também, registros das diferenças culturais e linguísticas entre as
várias nações africanas que foram transplantadas para o Brasil. É, pois, o primeiro e
um valioso estudo pormenorizado sobre as etnias africanas no país.
O mapeamento das populações negras no Brasil foi, efetivamente, exaustivo.
Apurou a localização e as diferenças entre os bantos e os sudaneses. Também regis-
trou a presença dos haussás, isto é, negros convertidos ao islamismo, e descreveu
capítulo 2 • 44
suas práticas e tradições, considerando-as superiores às dos demais povos africanos
por serem de religião monoteísta. Identificou membros do grupo dos camitas,
africanos mestiçados convertidos ao islamismo, e buscou compreender suas tradi-
ções originais, anteriores à conversão.
Porém, todo esse esforço visava detectar a capacidade de regeneração de cada
grupo, isto é, conferir as possibilidades de inserção na civilização de cada um des-
ses grupos. Isso porque, para ele:
capítulo 2 • 45
Figura 7: Capa da primeira edição de "Os Sertões", livro clássico dos
capítulo 2 • 46
realidade do sertão o fez, progressivamente, mudar de opinião sobre o homem
do sertão e sua luta. De monarquista reacionário a bravo sertanejo, Euclides da
Cunha percebeu que a realidade sociológica era muito mais complexa do que o
intelectual da capital poderia supor.
No segundo capítulo, “O homem”, ainda estavam presentes, como critérios
de análise de Euclides da Cunha, os condicionantes do “determinismo geográ-
fico”, muito em voga no final do século XIX. Mas, ao contrário de usá-los para
denegrir a imagem do “inimigo da República”, ele os usa para justificar sua forta-
leza. Sobreviver em um ambiente absolutamente desfavorável, sem qualquer tipo
de auxílio do litoral, era uma proeza que somente homens de qualidade poderiam
alcançar. Era o resultado de um processo histórico de ao menos três séculos de
miscigenação e sincretismo entre o colono errante no sertão e o indígena. Eis seu
perfil na pena de Euclides da Cunha:
capítulo 2 • 47
[...] porque ali ficaram, inteiramente divorciados do resto do Brasil e do mundo, murados
a leste pela Serra Geral, tolhidos no ocidente pelos amplos campos gerais, que se
desatam para o Piauí e que ainda hoje o sertanejo acredita sem fins. O meio atraía-o e
guardava-os (Idem, p. 53).
Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a História, resistiu até ao esgotamen-
to completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5,
ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram
quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam
raivosamente cinco mil soldados (Idem, p. 120).
capítulo 2 • 48
brasileira estavam muito além de seu tempo. Ainda levaria décadas para que o
positivismo e o racismo deixassem de ser as matrizes teóricas e as premissas subje-
tivas de trabalho de vários intelectuais. Euclides da Cunha teve a humildade de se
reconhecer incapaz de compreender plenamente o sertanejo.
CONEXÃO
Filme: “Guerra de Canudos” (Brasil. 1997, direção de Sérgio Rezende, 170 min.)
Esmerada produção brasileira, orçada em 6 milhões de dólares, com elenco de estrelas
“Globais”, que levou quatro anos para ficar pronta. O roteiro é uma adaptação livre do san-
grento conflito entre os sertanejos do arraial de Canudos e as forças republicanas. Há, em
cena, um personagem que representa Euclides da Cunha, enviado ao local como correspon-
dente do “Estadão”.
capítulo 2 • 49
libertação dos escravos e o próprio fim do regime imperial, a escravidão continuou
sendo considerada, por alguns estudiosos, uma das causas do “atraso” vivido pelo
Brasil e pelos demais países latino-americanos que a adotaram, em relação aos
países europeus.
Na visão de Manuel Bonfim, a escravidão teria sido descrita, principalmente
na obra “América Latina: males de origem” (1905), como o fator comum aos
países dessa região do globo que impunha obstáculos ao seu desenvolvimento.
Eram sociedades desorganizadas em todos os aspectos, atrasadas, e impregnadas
por um “parasitismo social” herdado do escravismo. Por “parasitismo”, entende-se
a exploração econômica do trabalho escravo impactando de forma tão negativa
a atividade econômica, que impossibilitava a construção de uma sociedade mais
justa. Sim, justa. Ele falava em compreender a “causa efetiva desses males, dentro
dos quais somos todos infelizes, o desejo de subir à civilização, à justiça, a todos os
progressos” (BONFIM, 1993 [1905], p. 35).
Manuel Bonfim recuperou argumentos das lutas dos abolicionistas radicais,
que defendiam que a emancipação dos negros teria, necessariamente, que vir
acompanhada de amplas reformas na esfera econômica, a exemplo de uma “de-
mocratização da terra”.
Por essas razões, o pensamento de Manuel Bonfim permaneceu margina-
lizado pela intelectualidade brasileira durante décadas, tendo sido redescoberto
(ou talvez descoberto) somente na última década do século passado. Isso porque
ele não compartilhava da matriz racista de pensamento nem da tese eugenista
da necessidade de branqueamento da população típicas de Nina Rodrigues, por
exemplo. Em outras palavras, por não comungar do evolucionismo e darwinis-
mo social predominantes em sua época, foi condenado ao esquecimento. Para
Manuel Bonfim:
[...] nunca supôs que a sua obra genial pudesse servir de justificação aos crimes e às
vilanias de negreiros e algozes de índios!... Ao ler-se tais despropósitos, duvida-se até
da sinceridade desses escritores; Darwin nunca pretendeu que a lei da seleção natural
se aplicava à espécie humana, como dizem os teoristas do egoísmo e da rapinagem.
Ele reconheceu que os seres vivos lutam pela vida; mas esta expressão ‘luta’ não tem,
na teoria, o sentido estreito a que reduzem os espíritos acanhados; luta pela vida quer
dizer, para ele, tendência a viver, esforço para conservar a vida e propagá-la, e não,
simplesmente, conflito material, agressão cruenta (BOMFIM, 1993 [1905], p. 249).
capítulo 2 • 50
Para ele, as causas do “atraso” latino-americano repousavam no modelo ibé-
rico de exploração mercantil de suas colônias, cujo “princípio motor” era a escra-
vidão, pois possibilitava lucros extraordinários à metrópole. Como consequência,
não se desenvolveu uma cultura de trabalho livre, individual e racional. Não se
sabe se Manuel Bonfim chegou a ter acesso às teses de Max Weber acerca da “ética
protestante”, de 1903, tida como a causa do desenvolvimento econômico das na-
ções de população majoritariamente protestante.
E Manuel Bonfim vai além. Percebeu que o escravismo e as relações sociais e
políticas estabelecidas a partir dele, educaram a população para a subserviência e a
“bajulação”. E, por serem hegemônicas essas relações, ou o indivíduo se adaptava,
ou era excluído.
Lamentavelmente, mesmo após o fim da escravidão e do regime imperial, as
elites dirigentes preservaram essa cultura de pouca valorização do trabalho, que
Manuel Bonfim chamava de “conservantismo sentimental”. Tal cultura não pro-
movia melhorias na preparação dos ex-escravos para o trabalho. Por isso, a solução
apontada pelo autor seria a educação para o trabalho através de uma ampla disse-
minação de institutos escolares de ensino básico.
capítulo 2 • 51
Por isso, podemos considerá-lo o sucessor da escola inaugurada por Francisco
Varnhagen. Isso porque Capistrano de Abreu acreditava que a pesquisa histórica,
em hipótese alguma, poderia prescindir das fontes documentais nem do traba-
lho extensivo do historiador nos arquivos. Por essa razão, após o seu ingresso na
Biblioteca Nacional (1879), passou a compilar e divulgar fontes documentais.
Sua premissa era a de que a qualidade da obra historiográfica estava diretamente
relacionada às fontes utilizadas. Por esse motivo, solicitava a seus colabores no
exterior, sobretudo onde se sabia existir farta documentação sobre o Brasil, que ca-
talogassem e, se possível, compilassem essa documentação. Assim sendo, arquivos
franceses, italianos, ingleses, alemães e, principalmente, espanhóis e portugueses,
foram vasculhados por colaboradores de Capistrano.
AUTOR
capítulo 2 • 52
Aos poucos, ampliou seu conhecimento sobre a documentação armazenada
em outros arquivos brasileiros. Por exemplo, elaborou listas sobre o conteúdo dos
arquivos das bibliotecas do Imperador e do Instituto Histórico e Geográfico.
Esse esforço de catalogação e compilação documental tinha como um dos
principais objetivos a publicação das cartas e crônicas dos Jesuítas do século XVI,
o que, infelizmente, não se concretizou devido às dimensões que a obra tomaria
– estimada em 30 volumes. Por outro lado, seus esforços na pesquisa documental
renderam a redescoberta e a reedição de obras pioneiras da historiografia nacional.
Abaixo, listamos algumas das obras dos séculos XVI e XVII reeditadas e prefa-
ciadas por Capistrano, que são de grande interesse documental e historiográfico:
EXEMPLO
• Fernando Cardim – “Do clima e da terra do Brasil e de algumas coisas notáveis que se
acham assim na terra como no mar” (1881)
• Padre José de Anchieta – “Informações e fragmentos” (1886)
• Frei Vicente do Salvador – “A primeira visitação do Santo Ofício” (1887), “Confissões da
Bahia” (1922) e “Denunciações de Pernambuco” (edição póstuma, 1929)
capítulo 2 • 53
O dono da casa grande, como toda a população masculina, exceto quando viajava, an-
dava de ceroula e camisa, geralmente com rosários, relíquias, orações cuidadosamente
cosidas e escapulários ao pescoço. Nas ocasiões solenes, recebendo visitas, revestia-se
de quimão, timão ou chambre. «Quando um brasileiro põe-se a usar um desses hábitos
talares começa a se considerar personagem importante (gentleman) e com título por-
tanto a muita consideração», informa Koster. A roupa caseira das mulheres constava de
camisa e saia; o casebeque só apareceu mais tarde. As moças solteiras dormiam juntas
num gineceu chamado camarinha. Não apareciam aos estranhos. Era comum verem-se
os noivos pela primeira vez no dia do casamento (ABREU, 1988, p. 128).
Décadas mais tarde, relatos como esse, da rotina diária das populações, seriam
chamados de “história do cotidiano”, uma variação da História Social fortemente
influenciada pela “Nova História” francesa.
Ademais, ele incorporou os imensos territórios do interior do Brasil, não se li-
mitando ao estudo da orla marítima. Por essas razões, Capistrano é tido como uma
“ponte” entre a historiografia da segunda metade do século XIX e do século XX.
Estudiosos de sua obra consideram-no fundador de uma nova historiogra-
fia brasileira, por centralizar seus esforços na compreensão do Brasil “autêntico”,
aquele que se formou não nas franjas da civilização europeia, mas nos seus interio-
res, nas minas, nas estradas. Esse Brasil não estava em Londres, nem mesmo em
Portugal; estava nas vilas de caboclos, nos quilombos, nas aldeias indígenas. Não
que ele desprezasse essas fontes de informação, mas elas, por si só, seriam insufi-
cientes para se conhecer a verdadeira história do Brasil. E esta só era possível ser
encontrada na cabana do sertanejo, e não nos palacetes do Rio de Janeiro.
Mas ele não rejeitou totalmente a produção da geração anterior. Ao contrário,
incorporou dela o que havia de melhor, isto é, o rigor metodológico e a crítica das
fontes. Daí sua admiração quase que reverencial a Francisco Varnhagen, cuja obra
mais importante, “História Geral do Brasil”, reeditou e prefaciou, em 1906.
Ele foi um “revisionista”? Sem dúvida. Abriu sua obra mais importante,
“Capítulos de história colonial” (1907), com a descrição dos costumes indíge-
nas; na sequência, dos negros; somente no terceiro capítulo entrou o português,
sob o título de “conquistador”. A respeito dos índios, vejamos um pequeno
excerto de “Capítulos”:
capítulo 2 • 54
Tinham os sentidos mais apurados, e intensidade de observação da natureza incon-
cebível para o homem civilizado. Não lhes faltava talento artístico, revelado em produtos
cerâmicos, trançados, pinturas de cuia, máscaras, adornos, danças e músicas. Das suas
lendas, que às vezes os conservavam noites inteiras acordados e atentos, muito pouco
sabemos: um dos primeiros cuidados dos missionários consistia e consiste ainda em
apagá-las e substituí-las (Idem, p. 8).
capítulo 2 • 55
Júnior. Já em 1945, Nelson Werneck Sodré o incluiria na sua obra de síntese da
produção intelectual nacional, emblematicamente intitulada “O que se deve ler
para conhecer o Brasil”. Na década de 1950, o igualmente clássico Sérgio Buarque
afirmaria sua “dívida” para com Capistrano de Abreu, a quem considerava pre-
cursor da historiografia que se praticava na década de 1950 e responsável pelo
mais exaustivo levantamento documental sobre a história do Brasil. Em suma, foi
responsável pela síntese dos rigores de uma metodologia ao estilo alemão, com as
temáticas sociais e culturais que despontavam nas décadas iniciais do século XX.
CONEXÃO
capítulo 2 • 56
Figura12: Pôster do filme Policarpo Quaresma: herói do Brasil.
LEITURA
CHAUÍ, Marilena – Mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Editora Fundação
Perseu Abramo, 2000.
Esse livro abre a coleção que visava repensar o Brasil nos seus 500 anos, através de um
olhar crítico, bem distante do ufanismo que permeou as comemorações oficiais. O “mito” de
um país isento de conflitos, abençoado por Deus, perpassa nossa história desde o descobri-
mento. E, em verdade, oculta uma sociedade autoritária e excludente. Esse é o percurso da
filósofa e professora Marilena Chauí.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABREU, José Capistrano de. Capítulos de História Colonial. (1907) Belo Horizonte: Itatiaia,
1988. Também disponível para “download” em <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/
bn000062.pdf>
________. Caminhos antigos e povoamento do Brasil. (1899) AMED, Fernando.
As cartas de Capistrano de Abreu: sociabilidade e vida literária na “belle époque” carioca. São Paulo:
Alameda, 2006.
BOMFIM. Manoel. A América Latina: males de origem. (1905) Rio de Janeiro: Topbooks, 1993.
CUNHA, Euclides da. Os Sertões. (1901) Disponível em <http://www.dominiopublico.gov.br/
download/texto/bn000153.pdf>
capítulo 2 • 57
GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado (org.). Estudos sobre a escrita da história. Rio de Janeiro: 7
Letras, 2006.
GOMES, Angela de Castro. História e historiadores. Rio de Janeiro. FGV, 1996.
LAPA, José Roberto do Amaral. História em questão. Petrópolis: Vozes, 1976.
NABUCO, Joaquim. O abolicionismo. (1883). Petrópolis: Vozes, 1988.
_________. “A intervenção estrangeira durante a Revolta”. (1896) In: Obras completas. Vol. II. São
Paulo: Instituto Progresso, 1949.
RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. (1932) Disponível em <http://www.brasiliana.com.br/
obras/os-africanos-no-brasil>.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil -
1879-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
IMAGENS DO CAPÍTULO
Figura1: https://pt.wikipedia.org/wiki/Auguste_Comte#/media/File:Auguste_Comte.jpg
Figura 2: https://commons.wikimedia.org
Figura 3: https://commons.wikimedia.org
Figura 4: https://pt.wikipedia.org
Figura 8: https://commons.wikimedia.org
Figura 10: Departamento de Correios e Telégrafos
Figura 11: https://commons.wikimedia.org
capítulo 2 • 58
3
A Produção
Historiográfica no
Brasil República a
partir de 1930
A Produção Historiográfica no Brasil
República a partir de 1930
OBJETIVOS
• Conhecer as transformações pelas quais passou a historiografia brasileira a partir da dé-
cada de 1930;
• Compreender as causas das mudanças pelas quais passou a produção do conhecimento
histórico no Brasil desde 1930;
• Analisar a obra de Gilberto Freyre, “Casa-grande e senzala”;
• Conhecer a obra de Sérgio Buarque de Holanda;
• Analisar a influência do marxismo na historiografia brasileira através da obra de Caio Prado
Júnior e Nelson Werneck Sodré.
Introdução
capítulo 3 • 60
e mantinha boa parte da população brasileira na indigência, afetariam a atividade
intelectual do país por inteiro, inclusive a escrita da história.
Se, logo no início do século, Euclides da Cunha fez a aproximação da
Sociologia e da História, a união definitiva se daria na década de 1920, com o
pernambucano Gilberto Freyre.
capítulo 3 • 61
Figura1: Gilberto Freyre, o sociólogo que buscou na história as bases para o entendimento
da sociedade brasileira.
capítulo 3 • 62
A luso-tropicalidade
Neste tópico, vamos explorar aquilo que há de mais original nas formulações
do sociólogo recifense: o advento de uma nova civilização, guiada pela mão do
português, à qual ele chamaria de “luso-tropicalidade”. Suas reflexões originaram-
-se a partir do avanço do nazi-fascismo. Segundo Freyre, tratava-se de uma “guerra
entre culturas”; de uma “guerra essencial e silenciosa de defesa” da nossa cultura
contra os “imperialismos animados pelo ideal de reduzir os considerados por eles
inferiores fisicamente e culturalmente à condição de vassalos, escravos, servos (...)”
(FREYRE, 1940, p. 45 e 46).
Segundo o sociólogo pernambucano, essa guerra entre culturas era efetivamente
mais perigosa do que as guerras entre os Estados, pois estas eram efêmeras e passa-
geiras, enquanto que as “culturais” se prolongavam por séculos a fio. Isso porque os
objetivos e, portanto, os resultados, seriam assaz prejudiciais para a cultura derro-
tada. No caso em questão, a cultura nazista, apoiada nos dogmas da superioridade
ariana, da pureza racial, e da massificação da população, contrastava de forma irre-
dutível com a cultura luso-brasileira. Esta se baseava, segundo Gilberto Freyre, na
“democracia racial”, na mestiçagem e no equilíbrio entre antagonismos. Sua obra,
ao menos nesse lustro da metade inicial do século XX, era concebida pelo próprio
autor como parte do esforço de guerra entre as civilizações, calcado na Sociologia.
Efetivamente, sua luso-tropicalidade exigiu uma interdisciplinaridade sem
igual para as ciências sociais de sua época. O próprio Freyre se considerava um
“dadaísta científico” (FREYRE, 1961, p. 243), tamanha a pluralidade de influên-
cias que sua obra deixava transparecer: botânica, psicológica, histórica, antropoló-
gica e sociológica. Com isso, ele conseguiu quebrar uma série de paradigmas, não
apenas no plano acadêmico-científico, mas, principalmente, na autoimagem de
uma parcela significativa da sociedade brasileira. Por exemplo, os escravos foram
alçados à posição de corresponsáveis pela colonização do país, e as mulheres, con-
sideradas o repositório das tradições.
Os traços positivos do caráter português, maleável e pouco propenso ao au-
toritarismo nas relações pessoais, imprimiram em sua colônia na América do Sul
uma realidade muito diferente daquela verificada nas colônias dos demais países
europeus. Nestas, de domínio inglês, holandês e francês, não houve a simbiose cul-
tural tal qual verificada no Brasil, pois prevaleceu o etnocentrismo do colonizador.
capítulo 3 • 63
A obra-prima: “Casa-Grande e Senzala”
Sua obra seminal, certamente uma das mais importantes das ciências sociais
brasileiras, é “Casa-Grande e Senzala”.
Até mesmo o notório historiador francês Lucien Febvre, um dos luminares da Es-
cola dos “Annales”, não poupou elogios à obra de Freyre por ocasião seu prefácio
à edição francesa de “Casa-Grande e Senzala” .
capítulo 3 • 64
luso-tropical, pois fora forjado nos trópicos, a partir da experiência lusa de coloni-
zação nos demais continentes onde possuíam domínios.
Foi nos terreiros da casa-grande, conforme Freyre, que ocorreu o sincretismo cul-
tural entre o senhor português, o índio amansado e o africano cativo. Para provar a in-
tensidade desse sincretismo, que denominou “simbiose cultural”, ele aludiu a exemplos
da vida cotidiana. A capela doméstica, o cemitério familiar, as receitas culinárias, as
cantigas de ninar. Esses e inúmeros outros exemplos, para Freyre, são reveladores da
“coesão” dos domínios do patriarca. Mas observe que Freyre ressaltou o ambiente fami-
liar, não o indivíduo, tampouco o Estado nem alguma companhia comercial. Isso porque
a família reunia uma grande variedade de funções sociais e econômicas. Por isso, para
ele, a base econômica era a família, que, em suas palavras, “é uma força social que se
desdobra em política” (FREYRE, 2004, p. 81).
capítulo 3 • 65
da fé católica. Esta, para Freyre, funcionou como uma espécie de “elo mágico”,
unindo territórios e culturas absolutamente diferentes. Dessa forma, o catolicis-
mo, usando a expressão do próprio autor, foi o “cimento” da unidade cultural
brasileira (idem, p. 91).
Com efeito, é nessa “unidade na diversidade”, como ele ressaltou, que reside a
singularidade civilizatória brasileira. Portanto, a pluralidade cultural está na base
da sociedade brasileira; daí sua vocação democrática, ao menos no âmbito cultural
e das relações sociais.
Paradoxalmente, o senhor de engenho jamais deixou de ser um escravocrata
e, portanto, de se comportar como tal. Ou seja, as relações entre a casa-grande e a
senzala implicavam duas posições psíquicas antagônicas: o sadismo do senhor e o
masoquismo do escravo. Essa posição masoquista do cativo, para Freyre, transfor-
mou-se, ao longo do tempo, em uma verdadeira cultura do masoquismo, que pode
ser socialmente verificada pela vocação das camadas subalternas da população para
a submissão política. Por essa razão, o povo brasileiro não seria afeito à democracia,
preferindo regimes políticos autoritários. Segundo Gilberto Freyre, “no íntimo, o
que o grosso do que se pode chamar povo brasileiro ainda goza é a pressão sobre ele
de um governo másculo e corajosamente autocrático” (idem, p. 114).
Certamente, esse patrimonialismo característico do Brasil, desde a colônia
até o império, trouxe sérias e profundas implicações para o espaço público na-
cional. Mandonismo, nepotismo e fisiologismo, velhos conhecidos da nossa po-
lítica institucional, sem sombra de dúvida, têm suas raízes na configuração so-
cial patrimonialista.
Considerações Finais
José Carlos Reis (2007) situa Freyre entre os estudiosos que elogiam a coloni-
zação portuguesa, daí o conceito freyreano de “luso-tropicalidade”. Para ele, esse
aspecto seria determinante de um futuro de destaque do Brasil finda a moderni-
dade. Esta, entendida como uma etapa histórica transitória, uma vez ultrapassada
pelos progressos técnicos, possibilitaria ao homem mais tempo livre, o que está
mais de acordo com a apreensão ibérica de tempo. Assim sendo, as raças mestiças
com o ibérico estariam melhor preparadas para o futuro pós-moderno. Nessa tese,
encontra-se também a ideia polêmica da “democracia racial” que teria caracteriza-
do as relações entre os senhores e seus escravos no Brasil colonial.
capítulo 3 • 66
No entanto, essa tese destoa daquilo que a documentação empírica da época,
levantada por outros autores, a exemplo de José Alípio Goulart (1971), revelou.
Tais estudos demonstraram ter ocorrido exatamente o oposto, ou seja, os portu-
gueses eram reconhecidos pela extrema crueldade com que tratavam seus escravos.
Nestes termos, é importante registrar que, apesar de a severidade ter sido uma ca-
racterística intrínseca ao relacionamento entre o senhor de engenho e o escravo ca-
tivo em todas as colônias modernas, os portugueses na América eram tidos como
os mais “perversos” (GOULART, 1971, p. 21). Desde o século XVII, a Coroa
lusitana já recebia denúncias de abusos e tratamentos cruéis (GOULART, 1971,
23). Apesar das sucessivas recomendações reais de abrandamento das punições dos
escravos pelos senhores, os maus-tratos atravessaram toda a colônia e adentraram
o período imperial (FIGUEIREDO FILHO, p. 44).
Há ainda que se ressaltar que a perspectiva freyreana não deixa de ser “senhorial”,
contribuindo, através do mito da “democracia racial”, para a camuflagem das desigual-
dades históricas e nocivas que, desde sempre, caracterizaram a sociedade brasileira.
Outros consideram sua análise superficial, pois não teria levado em conta as seculares
formas de dominação e exploração usadas pelas elites senhoriais. A tese da harmonia
social, que enfatizava aquilo que as “raças” teriam, supostamente, intercambiado, ofus-
cou os conflitos e as diversas formas de resistência popular.
É inegável, portanto, o viés europeizante – no caso, com ênfase no português – das
teses freyreanas. Elas visavam, entre outros objetivos, reabilitar a imagem do coloni-
zador ibérico, secularmente desgastada e, segundo Freyre, “longamente caluniada”.
Havia, pois, racismo implícito? Há quem diga que sim. E há quem diga o contrário.
Em meio a todas essas críticas, para Leandro Konder (1998, p. 359), Gilberto
Freyre foi responsável pela diminuição do preconceito dos intelectuais brasileiros
em torno do tema da escravidão. Contudo, no final dos anos 1940, sua verve
conservadora se manifestou no âmbito da política, quando passou a emprestar seu
nome às causas anticomunistas (ibid.).
capítulo 3 • 67
ou ao menos parte dela, modernizava-se. Por exemplo, entre os dias 11 e 18 de
fevereiro de 1922, ocorreu o evento emblemático da “Semana de Arte Moderna”,
que reuniu artistas de vanguarda da música, escultura, pintura e literatura, além
de intelectuais de diversos campos do conhecimento. Seu impacto foi imediato e
duradouro, dando início ao que se pode chamar de “movimento modernista”. Em
resumo, a intelectualidade estava sinalizando o início de um profundo questiona-
mento das teses racistas que prevaleciam nas obras sobre o Brasil até então. Muito
em breve, teses valorizando o legado colonial brasileiro viriam à tona.
ATENÇÃO
No cenário político, o ano de 1922 também testemunhou o surgimento de um movimen-
to igualmente impactante, o “tenentista”, que reuniu os jovens oficiais das Forças Armadas
que aspiravam por reformas na estrutura sociopolítica nacional. Foi graças à influência dos
“tenentes” que, anos mais tarde, ocorreria a “Revolução de Trinta”.
capítulo 3 • 68
carreira de magistério que duraria quase quarenta anos. Em 1946, assumiu a dire-
ção do Museu Paulista (Museu do Ipiranga), administrado pela USP, onde passou
a lecionar em 1958. Desligou-se da USP e encerrou suas atividades no magistério
em 1969, em protesto pela demissão de colegas da universidade pela ditadura
militar. Com efeito, pode-se afirmar que a cientificização da produção historio-
gráfica brasileira, com a criação de cátedras universitárias de História, começou a
ser sentida nos anos 1940.
Sua vasta obra, que reúne dezenas de livros e artigos, o coloca entre o grupo
dos mais importantes historiadores brasileiros, ao lado de Varnhagen, Capistrano
e Caio Prado Jr. Ela é fortemente marcada pelo momento histórico e pelos debates
intelectuais de sua juventude. Percebe-se, nitidamente, o esforço de décadas para
a compreensão do que é “ser brasileiro”.
CONEXÃO
Boa parte da vasta obra de Sérgio Buarque de Holanda está disponível, através de down-
loads e links, no site Intérpretes do Brasil.
Nesse endereço eletrônico, também estão disponíveis diversos artigos de comentaristas
sobre a obra de Sérgio Buarque. Vale a pena conferir.
Sua obra pode ser caracterizada como uma tentativa de compreensão da psi-
cologia social do brasileiro, contextualizada no panorama político e econômico do
país desde seus primórdios coloniais.
É nessa linha que se situa o clássico “Raízes do Brasil”, no qual Sérgio Buarque de
Holanda apresenta a famosa tese do “homem cordial”: os brasileiros, apesar de indo-
lentes, apresentavam a necessária ousadia dos aventureiros. Essa obra é de 1936, e
nela percebemos uma forte influência das ideias de “mestiçagem positiva” desenvol-
vidas por Gilberto Freyre (“Casa grande & Senzala”, publicado em 1933). Há, nessas
duas obras, uma excelente discussão sobre o povo brasileiro e sua subjetividade, fruto
da injunção das três raças e das condições austeras da colonização.
capítulo 3 • 69
Mas, se o pernambucano Gilberto Freyre centrou suas análises na figura do
senhor de engenho, sedentário por natureza, Sérgio Buarque focalizaria o “des-
bravador”, o “aventureiro” bandeirante e “monçoeiro”. Marcado por sua cultura
original europeia, o bandeirante precisa, necessariamente, se adaptar às novas cir-
cunstâncias da colônia, ao meio ambiente muitas vezes hostil, à distância da terra
natal, e ao índio arredio. Deste, o colonizador incorporou práticas alimentares e
conhecimentos de plantas e raízes, e adotou para si os caminhos fluviais e trilhas
pela mata fechada.
Seguindo essa linha de raciocínio, foi em sua obra “Raízes do Brasil”, de
1936, que ele lançou a tese de que o resultado cultural desse embate civiliza-
cional foi o surgimento do “homem cordial”.
Em suma, abandonado pela coroa, que perdeu o interesse por essa distante
e improdutiva colônia, o paulista se viu na contingência de buscar formas alter-
nativas de vida. Daí a necessidade de adaptação ao meio. Lembremo-nos que foi
graças ao seu esforço que a colônia portuguesa na América se interiorizou.
RESUMO
Concluindo, Sérgio Buarque de Holanda trouxe para o pensamento social brasileiro
contribuições que vão muito além da História. Partiu desta para dialogar com as diferentes
correntes teóricas de seu tempo, e também do século XIX. Destas últimas, reconheceu a
importância da preservação dos documentos – razão pela qual esteve à frente do Museu
Paulista por uma década – e do tratamento crítico dos mesmos. O “homem cordial” é uma
clara inovação das teses weberianas. Nesse sentido, não incorporou as conclusões de Gil-
berto Freyre, tampouco seguiu as trilhas do materialismo histórico-dialético, como fizeram
Caio Prado Jr. e Nelson Werneck Sodré.
capítulo 3 • 70
Nelson Werneck Sodré: entre a caserna e o partido
capítulo 3 • 71
1938, reunia apenas 246 páginas; a última edição trabalhada pelo autor, a décima
(2002), compôs um grosso volume de mais de 700 páginas.
Do ponto de vista historiográfico, que é o que mais nos interessa neste momen-
to, sua relevância se deve ao fato de ter proposto e realizado uma profunda revisão
teórico-metodológica nos fundamentos das análises sobre o Brasil. Acreditava que a
historiografia brasileira era produzida de forma não metódica, o que resultava em análi-
ses superficiais e pouco conclusivas. Além disso, contrariamente à produção de então,
defendia que a história do Brasil não poderia ser desvinculada dos eventos além-mar,
pois o Brasil estava visceralmente subordinado a potências estrangeiras desde seu
surgimento. Por fim, criticava o fato de os autores limitarem-se ao período colonial,
não abordando temas relativos à história contemporânea, a exemplo da Revolução de
1930, que considerava divisora de águas na realidade político-econômica brasileira.
capítulo 3 • 72
COMENTÁRIO
Segundo o materialismo histórico-dialético, formulado por Karl Marx e Friedrich Engels,
a história é resultado dos conflitos sociais, ou seja, fruto da própria ação humana em sua luta
por melhores condições de vida, contra a opressão ou pelo poder. É por essa razão que eles
abrem o texto do “Manifesto do Partido Comunista” (1848), obra seminal do materialismo
histórico-dialético, com a frase epigráfica: “A história de todas as sociedades que existiram
até nossos dias tem sido a história da luta de classes”.
Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, mestre de corporação e com-
panheiro, numa palavra, opressores e oprimidos, em constante oposição, têm vivido
numa guerra ininterrupta, ora franca, ora disfarçada; uma guerra que terminou sempre,
ou por uma transformação revolucionária, da sociedade inteira, ou pela destruição das
duas classes em luta.
capítulo 3 • 73
Formação Histórica do Brasil (1962)
capítulo 3 • 74
isso, foi obrigado a forjar um novo conceito, o de “modo de produção escravista
colonial”. Isso porque, segundo ele, não se poderia chamar o grupo mercantil
português de burguesia propriamente dita, uma vez que capital comercial era dife-
rente de capitalismo. Havia, pois, na opinião de Sodré, uma lamentável confusão
teórica entre capitalismo e mercantilismo.
capítulo 3 • 75
portanto, feudalismo no Brasil. Ademais, a produção visava um excedente comer-
cializável, tanto nos mercados próximos, quanto para exportação para a capital e
outras regiões das respectivas províncias/estados (REIS, 1999).
capítulo 3 • 76
COMENTÁRIO
Nelson Werneck Sodré teve o mérito de não considerar o período do capitalismo comer-
cial como uma fase de transição, o que é muito comum entre os autores economicistas que
vislumbram o capitalismo industrial como um fim teleológico predefinido, sendo, portanto,
a-histórico. Ao perceber, no Brasil dos séculos XIX e XX, contradições seculares convivendo
com aspectos modernos, demonstrou ser o autor, ao lado de Celso Furtado, que melhor
opera o raciocínio dialético. Por outro lado, entendemos que se equivocou ao preservar o for-
malismo da tipologia dos modos de produção, considerando “feudais” relações de produção.
Caio Prado Júnior nasceu em São Paulo, em 1907, em uma família aristocrá-
tica vinculada à cafeicultura. Bacharel em Direito pela tradicional Faculdade do
Largo São Francisco, também se formou em Geografia, o que explica seus amplos
conhecimentos sobre as condições econômicas das diferentes regiões brasileiras.
Intelectual eclético, além de História, interessava-se também por Política, Filosofia
e Economia. Destacou-se como um dos mais importantes editores do país, sendo
um dos fundadores e responsáveis pela Editora Brasiliense.
ATENÇÃO
Apesar de ter sido militante no Partido Comunista desde a juventude, suas obras, ao con-
trário de boa parte daquelas assinadas por Nelson Werneck Sodré, não reproduziam a ideo-
logia oficial do partido. Livre-pensador, sua inteligência não aceitaria ser guiada por amarras
conceituais. Viajou pelo Brasil a fim de conhecer de perto as mazelas do povo brasileiro, o
que lhe proporcionou uma visão realista das condições socioeconômicas do país.
capítulo 3 • 77
Figura 4: Caio Prado Jr., precursor das análises marxistas sobre o Brasil
No cenário da Historiografia, que é o que mais nos interessa, foi autor de qua-
tro obras seminais que, como veremos, malgrado problemas conceituais, conti-
nuam a ser leitura fundamental para os interessados no conhecimento do passado
brasileiro, bem como na história do nosso pensamento historiográfico.
Apenas três anos mais tarde, Caio Prado Jr. publicou o vigoroso
1945 “História Econômica do Brasil”.
capítulo 3 • 78
Formação do Brasil Contemporâneo (1942)
Com efeito, ao propor esse objetivo para o seu texto, Caio Prado Jr. revelava,
de pronto, ter uma visão utilitarista e pragmática da História. Por exemplo, dis-
pensava os “devaneios” e privilegiava o “útil”. Ao mesmo tempo, podemos ler nas
entrelinhas dos seus objetivos uma concepção de História enquanto a ciência que
explicaria o presente através do passado.
Ele estava convencido de haver um “sentido” na história de um povo quan-
do observada à devida distância cronológica: “este se percebe no conjunto de fatos
e acontecimentos que a constituem num largo período de tempo” (idem, p. 19).
Trata-se de “uma linha mestra e ininterrupta de acontecimentos que se sucedem
em ordem rigorosa, e dirigida sempre numa determinada orientação” (idem, p. 19).
Para alcançar o objetivo proposto e desvelar o “sentido” da História brasileira,
Caio Prado sentiu necessidade de articular a geografia, a economia, a sociedade
capítulo 3 • 79
e a política coloniais. Seu projeto se revelou, pois, um projeto de “história total”,
típico dos historiadores marxistas, por pretender abarcar todas as esferas da vida
social e econômica.
Em todo o período colonial, a base da mão de obra foi a do escravo, sobretudo o ne-
gro africano. O trabalho branco nas colônias portuguesas era praticamente incipiente,
sendo restrito a alguns poucos mestres de ofício (ourives, carpinteiros, engenheiros,
alguns médicos etc.) indispensáveis para a grande produção econômica. Coerente
com seu entendimento de que a colonização era, antes de tudo, um grande empreen-
dimento, Prado Jr. afirmava que a escravidão do africano não passava de um “negócio,
puramente a realização de uma empresa de comércio (...)”(idem, p. 271).
capítulo 3 • 80
Finalmente, Caio Prado inovou em relação à historiografia da época ao adotar
a vinda da Família Real ao Brasil (1808) como o marco cronológico que separa o
período colonial do Brasil contemporâneo. Nessa época – início do século XIX - o
sistema colonial encontrava-se esgotado, e o país exigia ao menos alguma moderni-
zação para acompanhar as rápidas transformações da economia europeia. Insistindo
na tese das “permanências”, Caio Prado considerava que os três séculos de coloni-
zação calaram fundo na estrutura econômica brasileira, pois as sucessivas mudanças
de regimes políticos – Império e República, respectivamente - em nada alteraram as
“linhas gerais e caracteres fundamentais” da organização produtiva nacional.
COMENTÁRIO
Há, ainda hoje, uma espécie de idolatria em torno do nome e da obra de Caio Prado Jr.,
o que impede uma aproximação neutra e objetiva do seu legado. Mas, uma leitura atenta do
próprio “Formação do Brasil Contemporâneo”, revela problemas seríssimos.
Por exemplo, chegam a ser surpreendentes as opiniões de Caio Prado Jr. acerca
das características culturais das populações pré-cabralinas e africanas que foram
submetidas ao trabalho escravo pelos europeus. Nesse aspecto, o marxista paulista
demonstrou ser fortemente influenciado pela sociologia evolucionista de Comte
e Spencer. Para ele, os africanos eram “povos bárbaros e semibárbaros arrancados
de seu habitat natural” (idem, p. 272). Negros e índios eram “raças que beira-
vam ainda o estado de barbárie, e que no contato com a cultura superior de seus
dominadores, se abastardaram por completo” (idem, p. 275). Isso levou o Brasil
colonial a ter uma composição social que, para ele, não passava de um “aglome-
rado incoerente e desconexo, mal amalgamado e repousando em bases precárias”.
Essas “raças” - “pretos boçais e índios apáticos” (idem, p. 277) – estavam sendo
absorvidas pela cultura do colonizador:
capítulo 3 • 81
As raças escravizadas e assim incluídas na sociedade colonial, mal preparadas e adap-
tadas, vão formar nela um corpo estranho e incômodo. O processo de sua absorção se
prolongará até nossos dias, e está longe de ter terminado (idem, p. 276).
O resultado foi uma contribuição cultural, para ele, “passiva”, agindo mais
como “fermento corruptor da outra cultura, a do senhor branco que se lhe sobre-
põe” (idem, p. 272).
Além dessas espantosas opiniões sobre as etnias que compuseram a população
brasileira, Caio Prado Jr. revelou ter um manejo surpreendentemente insuficiente
da dialética. Por exemplo, é impensável para um intelectual que se pretende mar-
xista emitir juízos como aquele acerca da escravidão moderna, para ele, um:
Todo marxista mediano sabe que o capitalismo não exclui outras formas de or-
ganização econômica, mas pode coexistir pacificamente com elas, até mesmo subor-
dinando-as aos seus interesses. Além disso, Caio Prado equivocou-se ao considerar
que padrões eruditos de cultura, como aqueles que julgou predominarem na Europa
Moderna, não convivem satisfatoriamente bem com a barbárie. De fato, uma gran-
de ingenuidade para quem se considerava materialista-histórico e que, pessoalmen-
te, conheceu a violência inaudita das duas Guerras Mundiais e do nazismo.
COMENTÁRIO
Para Carlos Nelson Coutinho (1990), estudioso do marxismo brasileiro, Caio Prado Jr.
dominava mal os conceitos marxistas, e isso se devia ao seu pioneirismo, por ser uma espécie
de precursor no Brasil do uso científico-acadêmico do legado de Marx e Engels. Outros es-
tudiosos afirmam que ele teve influências do neopositivismo do Círculo de Viena, que se re-
fletiam nas suas considerações preconceituosas sobre a população brasileira (REIS, 1999).
capítulo 3 • 82
O Futuro
Divergindo da grande corrente marxista de sua época, Caio Prado Jr. rejeitava
a tese da III Internacional e do PCB do passado feudal brasileiro, e também do seu
projeto revolucionário democrático-burguês. Como dissemos, para ele, o Brasil é
capitalista desde colônia, aliás, padece de um subcapitalismo, ou capitalismo sub-
desenvolvido. E, sendo o Brasil capitalista, não cabe falar em revolução burguesa,
mas em desenvolvimento das forças produtivas, de modo que o país rompa com
seu passado colonial e promova as transformações estruturais necessárias para ele-
var o padrão de vida da população. Esse processo deve ser conduzido pelo Estado,
pois a burguesia, regida pela lógica do lucro, não objetiva a satisfação das necessi-
dades elementares da população.
Além disso, a classe dominante no Brasil, para Caio Prado, é um mosaico
composto por industriais, financistas, estancieiros, latifundiários, capital in-
ternacional, em suma, é extremamente diversa. Porém, diversidade não significa
antagonismo. Para ele, o setor urbano da burguesia não se opõe, como queria
o PCB, ao rural, muito menos ao imperialismo. Esses diferentes segmentos da
burguesia brasileira se subordinam ao todo do capitalismo internacional como
engrenagens de um poderoso sistema que se alimenta deles, e vice-versa.
REFLEXÃO
Assim, ao falar em “revolução” no Brasil, Caio Prado Jr. se refere a transformações na
estrutura socioeconômica do país, e não a uma transição imediata para o socialismo. Essas
transformações urgentes correspondem à efetiva independência do país, ou seja, à constru-
ção de uma economia voltada para o mercado nacional que retire da miséria os milhões de
brasileiros que nela se encontram.
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capítulo 3 • 83
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de Livros, 1990.
___________. Formação Histórica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1968.
capítulo 3 • 84
4
As principais
tendências
historiográficas
brasileiras
contemporâneas
As principais tendências historiográficas
brasileiras contemporâneas
OBJETIVOS
• Conhecer as influências da Nova História francesa, da “New History” inglesa e do estrutu-
ralismo na produção historiográfica brasileira;
• Conhecer e analisar os desdobramentos das influências das tendências historiográficas
dos principais autores do marxismo do século XX na produção historiográfica brasileira;
• Discutir como se situa a produção do saber histórico contemporâneo entre a narrativa
e a cientificidade.
capítulo 4 • 86
ATENÇÃO
Lembrete do professor Hilário Franco Jr., importante medievalista da Universidade de
São Paulo: “a historiografia é um produto cultural que, como qualquer outro, resulta de um
complexo conjunto de condições materiais e psicológicas do ambiente individual e coletivo
que a vê nascer. Daí a história política ter-se desenvolvido nas cidades-Estado gregas, a
história de hagiografias, nos mosteiros medievais, a história dinástica e nacional, nas cortes
monárquicas modernas, a história econômica, no ambiente da industrialização dos séculos
XIX-XX, a história das mentalidades, no contexto das inquietações e esperanças da segunda
metade do século XX.” Conf. FRANCO JR., H. A Idade Média: nascimento do ocidente. 2. ed.
São Paulo: Brasiliense, 2001, p. 14.
Por essa razão, historiadores como Georges Duby, Jacques Le Goff e Pierre
Nora, entre outros, estão entre os “reis do sucesso” nos estudos universitários de
História no país. Eles são herdeiros das inovações introduzidas por Marc Bloch
e Lucien Febvre, quando da criação da revista acadêmica de História chamada
“Analles de Histoire économique et sociale’’, ligada à Universidade de Estrasburgo,
na França, em 1929. A revista existe até hoje e, ao longo dessa trajetória de dé-
cadas, passou por reformulações em sua linha editorial, mas sempre mantendo o
caráter inovador. Por isso a expressão “Escola dos Annales’’.
Com forte influência de outras ciências sociais, como a Sociologia, a Antropologia
e a Psicologia, a revista logo se especializou na publicação de pesquisas e artigos
que fugiam ao modelo convencional da historiografia positivista, muito em voga na
França na década de 1920. Fernando Braudel, um dos jovens professores franceses
contratados quando da inauguração da USP, acabaria por se tornar, nos anos 1950,
um dos mais importantes historiadores do grupo dos “Annales’’.
Segundo levantamento feito por Capelato, Glezer e Ferlini (1994), as princi-
pais teses defendidas na USP sob orientação dos professores da “missão francesa”
revelam preocupação “com a orientação metodológica e com o rigor da análise
documental, iniciando uma relação com temas da historiografia francesa, especial-
mente a dos Annales, vanguarda na época’’. Ainda segundo as autoras:
capítulo 4 • 87
A tese de doutorado de Eurípedes Simões de Paula, “O Comércio Varegue e o Grão
principado de Kiev”, defendida em 1942, orientada por Jean Gagé, expressava influên-
cias das obras de Marc Bloch e das preocupações de Braudel, estudando aspectos
de História Medieval, na ótica de cruzamento de espaços com a análise de relações
político-econômicas. A tese de Pedro Moacir Campos, “Alguns aspectos da Germânia
Antiga, através dos autores clássicos” (1945) e a de Eduardo d'Oliveira França, “A
realeza em Portugal e as origens do absolutismo” (1945), reafirmaram o diálogo com
os Annales (1994, p. 351).
capítulo 4 • 88
de forma indagativa, interrogando-o e problematizando-o. Como resultado, a já
citada história política, por exemplo, passou a incorporar as demais camadas da
sociedade, até então preteridas nesse tipo de estudo, e também passou a ser fonte
de pesquisa das ideologias e do imaginário de sua respectiva época.
Rapidamente, as influências da Nova História no Brasil começaram a ser
sentidas, sobretudo através da ampliação de temas pesquisados, a exemplo de
questões referentes ao cotidiano e às mentalidades. Desse modo, surgiram estudos
sobre o sentimento diante da morte, as transformações na sexualidade, a família,
as visões acerca do corpo e da natureza, entre outros. Ao mesmo tempo, novas
fontes primárias passaram a ser utilizadas, a exemplo dos rituais religiosos, dos mi-
tos, da imprensa e das artes de forma geral. Em suma, essa moderna historiografia
focaliza temas emergentes, como: história da família, das mulheres, gênero e etnia,
buscando outras experiências e tensões na sociedade brasileira dos mais diferentes
períodos, regiões e grupos de convívio.
Figura1: Coleção em quatro volumes sobre a vida privada no Brasil. Segue os moldes da
coleção similar francesa, obra paradigmática da corrente da Nova História.
capítulo 4 • 89
tempo é variável entre os diferentes grupos humanos e entre as diferentes camadas
de uma mesma sociedade.
A historiografia dos Annales, em grande parte dedicada à Idade Média, fez
crescer o interesse por esse período da História, levando ao aparecimento no Brasil
de pesquisadores dedicados aos estudos sobre o medievo. Tudo indica que não se
tratou de um interesse passageiro, pois centros de estudos sobre o período medie-
val foram criados em diversas universidades brasileiras. Foram justamente os estu-
dos sobre a Idade Média, sob a rubrica da Escola dos Annales, que mais buscaram
dialogar com outras ciências sociais, a exemplo da Antropologia e da Psicologia.
Dentre as várias inovações trazidas pela Nova História que se fizeram sentir na
produção historiográfica brasileira, se encontram a incorporação de temas referen-
tes à História do “Tempo Presente” (HTP), e a crescente prática da História Oral.
Sobre elas, faremos uma breve digressão.
Sabidamente, as balizas cronológicas adotadas como inauguradoras de “eras
históricas” resultam de convenções adotadas a posteriori dos acontecimentos aos
quais elas se referem. Na maioria absoluta das vezes, esses “marcos” cronológicos
contemplam as visões de mundo e as aspirações da posteridade que as instituiu.
Aliado a isso, cabe salientar que cada grupo humano tem sua própria visão re-
trospectiva, de forma que, como observou Eric Hobsbawm, “é provável que não
existam mais do que meia dúzia de datas que são marcos simultâneos nas distintas
histórias de todas as regiões do mundo”.(HOBSBAWM, Eric. Sobre a História.
São Paulo: Cia. das Letras, 1998, p. 244.)
Por exemplo, os norte-americanos consideram como História Contemporânea
apenas o século XX, tendo dificuldades em se reconhecerem nos seus compatriotas
do século XVIII. Os franceses, pelo contrário, se orgulham do seu passado revolu-
cionário setecentista, até hoje buscando nele referências sociais importantes.
Esses marcos cronológicos, dentre vários outros aspectos, cumprem uma im-
portante função social: são responsáveis pelo reconhecimento da ocorrência de
momentos fundadores de novas sociabilidades, de novos arranjos sociais. Eles de-
marcam o “antes” e o “depois”. O Brasil nunca mais foi o mesmo depois do Golpe
de 1964 e da ditadura. Por essa razão, a discussão acerca dos limites cronológicos,
para o trabalho do historiador acadêmico, é extremamente contemporânea, e está
cada vez mais presente nos debates historiográficos.
capítulo 4 • 90
Nesse contexto, se inserem as discussões acerca da “história do tempo presen-
te”. Esse debate é decorrente, sobretudo, da experiência francesa do imediato pós-
-guerra, quando foi fundado o “Comitê de História da Segunda Guerra Mundial”,
em 1951, resultado da fusão entre a “Comissão de História da Ocupação e da
Libertação da França” e o “Comitê de História da Guerra”. Sua prática histo-
riográfica levou os especialistas a procurarem expandi-la para outros campos da
História recente, o que culminou na criação do “Instituto de História do Tempo
Presente”, em 1978.
A rigor, os historiadores brasileiros nunca demonstraram dificuldades teó-
rico-metodológicas em relação a pesquisas sobre temas daquilo que seria uma
História do presente. No entanto, o debate levantado pelos acadêmicos franceses
fez com que, no Brasil, esses temas fossem melhor embasados do ponto de vista
teórico, o que levou ao surgimento de centros de estudos destinados à História
do presente, a exemplo do “Laboratório de Estudos do Tempo Presente”, ligado
à Universidade Federal do Rio de Janeiro, e o “Grupo do Estudos do Tempo
Presente”, da Universidade Federal de Sergipe.
Pelas características dos objetos aos quais se dedica, a HTP recorre, frequen-
temente, às “fontes orais”. Criticadas por sua subjetividade intrínseca, contudo,
estas fontes não dispensam os mesmos tratamentos dados pelo historiador a todos
os demais tipos de fontes. Dentro desse contexto de rigor metodológico, o de-
poimento, o testemunho, não é nem mais, nem menos confiável do que quais-
quer outros documentos. A vantagem para o historiador do tempo presente na
utilização desse tipo de fonte, é que ela pode revelar as motivações pessoais dos
protagonistas, explicitar as pressões às quais estavam submetidos e que os levaram
a tomar tal decisão e, por fim, aferir como são apreendidas as informações pelas
mais diferentes camadas da sociedade.
Todas as fontes são marcadas pela temporalidade que as produziu. Portanto,
não há fontes mais ou menos isentas, o que responde às críticas de que a HTP
recorre a fontes demasiadamente marcadas pelo presente. Ora, todas as fontes são
fruto do seu presente e marcadas por uma subjetividade, seja psicológica, ideológi-
ca ou ambas (o que é mais provável). Por essa razão, a fonte oral não é associada –
assim como qualquer outro tipo de fonte - à “verdade”, mas à experiência histórica
pessoal do depoente, como rebatem seus defensores.
A polêmica em torno da História Oral é enorme e, obviamente, foge ao es-
copo deste texto. Quero apenas registrar que, dentre as três possibilidades de pro-
dução de pesquisas em História Oral apontadas por Janaína Amado e Marieta
capítulo 4 • 91
Ferreira, a presente pesquisa recorreu a ela enquanto uma metodologia que se
utiliza de fontes orais.²
Estas, enquanto fontes, não têm estatuto diferenciado em relação aos demais
tipos de fontes, recebendo, pois, o mesmo tratamento crítico. As autoras ainda
salientam que a “denominação ‘História Oral’ é ambígua, pois adjetiva a história,
e não as fontes, estas sim orais”. Ainda conforme as autoras:
NOTA
²Conf. AMADO, Janaína & FERREIRA, Marieta (orgs.). Usos & Abusos da História
Oral. 8. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p. 11 e segs.
³ Idem, p. 54.
4 Idem, p. 14
Uma das críticas mais contundentes ao uso dessa metodologia se apoia no fato
de que, na História Oral, o pesquisador cria suas próprias fontes. Tal crítica parte
capítulo 4 • 92
da presunção de que o depoente, no momento da entrevista, está totalmente à
mercê do historiador, e que este poderia “manipular” a fonte ao seu “bel-prazer”.
O oralista – praticante de História Oral – é orientado por princípios éticos
rigorosíssimos. Nesse sentido, o depoente é encarado como um ator social pro-
priamente dito ao qual o pesquisador não pode ignorar. E, ressalva necessária, isso
não quer dizer que o depoente esteja sendo visto como portador da veracidade e
da infalibilidade, mas sim como portador de experiências e memória.
A memória, por sua vez, é um dos pilares da História Oral, uma vez que os te-
mas trabalhados pelos oralistas (os praticantes de História Oral) são temas atuais,
que os franceses denominariam de “História do Tempo Presente”. Por essa caracte-
rística de atualidade, com muitos atores ainda vivos, outras versões do passado po-
dem entrar em concorrência com o discurso oficial e com a memória hegemônica.
CONEXÃO
A ABHO possui uma revista especializada semestral, que já se encontra no seu 15º exem-
plar. Ela recebe artigos no esquema de “dossiês”. O site da revista é: revista.historiaoral.org.br
capítulo 4 • 93
MULTIMÍDIA
Conta a interessante história, fictícia, mas que poderia ser verdadeira, de uma pequena
cidade no nordeste brasileiro que, para evitar o alagamento pelo lago de uma barragem a ser
construída, precisa provar deter algum valor histórico. E, o que os habitantes encontram é sua
própria história pessoal. É uma aula de História Oral.
capítulo 4 • 94
A produção desse primeiro grupo de “formadores” não é homogênea. Pelo contrário,
diversas tendências teóricas se fazem sentir, a exemplo dos Annales, do marxismo e
do weberianismo. Contudo, todos esses historiadores estão profundamente marcados
pela obra de Capistrano de Abreu e de outros pioneiros da historiografia brasileira.
capítulo 4 • 95
recorte temporal. Elas inovam a tradicional abordagem da História Econômica e
da História Administrativa. Essas pesquisas se ocupam, por exemplo, do cotidiano
de homens e mulheres nas diferentes capitanias. Também dão destaque aos negros
e aos mestiços, além da instabilidade geral da sociedade. As fontes utilizadas são as
mais diversas, como por exemplo, os livros de batismo, a iconografia, os ex-votos,
cartas e diários pessoais.
A história ambiental é um tema que vem suscitando crescente interesse desde
que as questões relacionadas à ecologia tornaram-se vitais para a sobrevivência no
planeta. Trata-se, portanto, de uma nova área de pesquisa, que tem trazido interes-
santes informações e revelações. A natureza no Brasil desperta, desde sua “desco-
berta”, o interesse de inúmeros naturalistas e viajantes europeus. As descrições de
sua fauna e flora, das formações do relevo e das características climáticas ocupam,
certamente, milhares de páginas nos relatos desses curiosos estudiosos. A caatinga,
o cerrado, a mata atlântica e a floresta amazônica são descritas com riqueza de
detalhes, revelando o espanto do estrangeiro frente a essa natureza tão exuberante.
Marxismo
capítulo 4 • 96
dinâmica das classes trabalhadoras e da própria luta de classes. Passou-se a buscar
compreender os costumes e as regras de sobrevivência, além dos elementos psi-
cossociais que contribuem para a identidade de classe. Nesse processo, foi dada
especial atenção aos códigos morais e linguísticos estabelecidos entre os membros
das camadas trabalhadoras.
Essa inovação foi especialmente forte na chamada Escola Marxista Inglesa,
reunida em torno da “New Left Review” (traduzindo ao pé da letra, “Revista
da Nova Esquerda”). Vários desses historiadores eram oriundos da militância no
Partido Comunista Britânico, a exemplo de Eric Hobsbawm, Christopher Hill,
E.P.Thompson e Maurice Dobb, e acabaram se tornando alguns dos mais renoma-
dos e influentes historiadores do século XX.
Dentre todos, certamente o livro que teve maior repercussão foi “The making of
the English working class” (1963), de E. P. Thompson. O autor recorreu a fontes do-
cumentais inusitadas, que reproduziam os valores morais e a subjetividade dos traba-
lhadores ingleses no processo da Revolução Industrial. Ou seja, a classe trabalhadora
não se faz apenas em função da posição econômica ocupada na estrutura produtiva,
mas, sobretudo, a partir das experiências e da mentalidade compartilhados.
Essa corrente foi especialmente influente no Brasil, e levou vários historiado-
res a adotarem a perspectiva de uma “história vista de baixo”, contribuindo deci-
sivamente para a expansão da História do Tempo Presente e da História Oral em
nosso país. Dentro dessa perspectiva, passaram a ser feitas pesquisas no país sobre
temas até então praticamente ignorados, como movimentos sociais, sindicalismo
e militância política. São temas relevantes para a compreensão das dificuldades
históricas na conquista de direitos sociais e na ampliação da democracia no Brasil
e que, até o surgimento do marxismo renovado, eram trabalhados dentro de uma
perspectiva estritamente partidária, ou seja, dogmática.
COMENTÁRIO
É claro que essa corrente recebe críticas, tanto da direita quanto da esquerda. A primeira
tenta desqualificá-la, atribuindo-lhe a velha e rançosa pecha de “comunista”. A esquerda de
extração stalinista e de outras vertentes a considera “revisionista”, um “desvio pequeno-bur-
guês” que deve ser combatido com tanta força quanto a própria burguesia. Clivagens sociais,
como não poderia deixar de ser, se refletem na Ciência da História através das eternas “ba-
talhas” historiográficas e lutas pela hegemonia na memória social.
capítulo 4 • 97
A principal matriz teórica dessa renovação no marxismo provém do italiano
Antonio Gramsci, duramente perseguido pelo regime fascista italiano e morto na
década de 1930. Segundo ele, a classe supõe a formação de um modo de pensar,
sentir e interpretar a realidade, um conjunto de significações e valores que se inte-
riorizam e expressam o sentido da realidade para a maioria dos seus membros. Em
outras palavras, classe é onde os indivíduos elaboram suas representações de si mes-
mos e das relações sociais, interpretam os acontecimentos e atuam na sociedade.
Uma importante manifestação contemporânea desse modelo de marxismo na
historiografia brasileira é o livro de Pedro de Moraes, “1968: a paixão de uma
utopia” e, da coleção “Descobrindo o Brasil”, o livro “Ditadura militar, esquerdas
e sociedade”. Outro autor, falecido recentemente, que merece ser citado é Jacob
Gorender, com “Combate nas trevas”, que se tornou uma espécie de “clássico”
sobre a história das esquerdas no Brasil durante a ditadura.
A História Oral também tem apresentado interessantes contribuições, inclu-
sive sobre a história da esquerda brasileira, através da recuperação da memória de
ex-militantes das organizações comunistas. Por exemplo, a obra de Dulce Pandolfi,
“Camaradas e companheiros: história e memória do PCB”, e a pesquisa de Alzira
Abreu, “Intelectuais e guerreiros”, sobre a militância estudantil secundarista.
Também vale a pena citar o livro de Elizabeth Xavier Ferreira, “Mulheres, militân-
cia e memória”, que aborda a questão da militância política pelo viés de gênero,
aprofundando os relatos das experiências, inclusive sobre as situações de tortura.
COMENTÁRIO
Em relação às obras de síntese das ideias e dos movimentos de cunho marxista no Brasil,
as últimas décadas trouxeram importantes obras. Entre elas, destacamos uma do cientista
político Emir Sader, o livro introdutório ao tema: “O anjo torto: esquerda (e direita) no Brasil”.
Além desse, merece menção um livro de Michel Lowy que amplia o horizonte para o conti-
nente: “O marxismo na América Latina”. Finalmente, citamos a coleção organizada e dirigida,
entre outros, por João Quartim de Moraes, “História do Marxismo no Brasil”, que reúne ex-
celentes artigos que contemplam toda a trajetória da esquerda brasileira, desde o começo
do século XX.
capítulo 4 • 98
forma satisfatória. Trata-se das organizações de esquerda independentes, ou dissi-
dentes das grandes organizações da esquerda, que se autonomeiam “alternativas”.
Também há pesquisas sobre movimentos de minorias, a exemplo de quilombolas,
homossexuais, afrodescendentes e indígenas. Grupos artísticos e de preservação da
cultura popular também estão sendo pesquisados, bem como associações de bairro
e grupos populares. Percebe-se um esforço por parte da historiografia acadêmica em
recuperar determinadas vivências políticas, até então marginalizadas ou ignoradas.
Teoria e Historiografia
Nas últimas décadas, têm crescido as reflexões feitas por historiadores brasilei-
ros acerca de sua própria atividade, isto é, pelas questões teóricas que ela envolve.
Ao mesmo tempo, discutem-se os resultados da nossa produção, ou seja, a histo-
riografia. Assim sendo, a Teoria da História e a Historiografia estão se convertendo
em importantes áreas de atuação, pois são responsáveis pelo balizamento teórico-
-metodológico das pesquisas. Creio estar sendo superada aquela antiga opinião
que prevalecia entre os historiadores, de que a Teoria da História não teria funcio-
nalidade, limitando-se à mera especulação.
Contudo, é cada vez maior a percepção entre os cultores da arte de Clio de que
a Teoria da História e a análise da produção historiográfica de um período buscam
aproximar a própria Ciência da História, em suas transformações internas às veri-
ficadas no âmbito maior da sociedade. Trata-se de refletir sobre o próprio fazer do
historiador; uma reflexão sobre o seu ofício; as mudanças pelas quais a produção
da História passou nas últimas décadas.
No centro dessas discussões e reflexões recentíssimas, encontra-se o papel da
narrativa histórica. Ou seja, como se dá a escrita da História? O que o historiador
leva em conta quando produz historiografia? Nesse sentido, vale a pena lembrar
da extrema importância da narrativa na formação do pensamento dito ocidental.
Contudo, há que se ressalvar que, quando falamos em narrativa, não estamos fa-
lando de ficção. Se há semelhanças entre a narrativa histórica e a ficcional, elas se
limitam aos aspectos estilísticos e literários propriamente ditos. As diferenças, no
entanto, são gritantes, posto que a História enquanto ciência tem um compromis-
so insuperável com a verdade. Discussões aprofundadas acerca dos aspectos teóri-
cos da escrita da História estão sendo desenvolvidas pelo ativo grupo de estudos
de Teoria da História e Historiografia ligado à Universidade Federal de Goiás, que
produz a Revista “Teoria da História”.
capítulo 4 • 99
Figura 4: Capa da Revista de "Teoria da História", da Universidade de Goiás, publicada
desde 2009.
CURIOSIDADE
Os “Brazilianistas”
Os anos 1960 e 1970 registraram uma volumosa produção de obras de historiadores
norte-americanos dedicados aos estudos sobre o Brasil. Cerca de 600 profissionais foram
formados nessa especialidade. Certamente, a qualidade não era homogênea, mas análises
extremamente interessantes foram feitas nessa conjuntura. Essas décadas foram particu-
larmente pródigas em estudos o sobre mundo subdesenvolvido e sobre a América Latina,
em particular devido ao crescimento dos movimentos nacionalistas nessas regiões do globo.
Desde o início do século XX, os EUA, através dos seus arquivos e bibliotecas, concentravam
o maior volume de livros referentes aos Brasil e documentos brasileiros. Dentre esses histo-
riadores, os mais conhecidos no Brasil são Thomas Skidmore e John Foster Dulles.
capítulo 4 • 100
Centros de Documentação e Arquivos
capítulo 4 • 101
Arquivo Público Mineiro. Neles encontram-se, além das “fichas” policiais dos mi-
litantes detidos para interrogatórios, relatórios de agentes policiais sobre as ativi-
dades das organizações. Essa documentação consiste em recortes de periódicos,
correspondências policiais, listas de nomes, depoimentos, relatórios policiais, do-
cumentos processuais, listas de objetos sobre investigações do processo de forma-
ção de uma célula partidária e das relações estabelecidas por esta com outras orga-
nizações políticas e com o movimento estudantil. Além disso, todo esse material
nos permite coletar informações sobre a estrutura organizacional dos partidos e
sobre a atuação dos respectivos dirigentes e militantes de base.
Além dos arquivos dos centros acima mencionados, vários outros por todo
o território nacional buscam estimular a doação de documentos e arquivos pes-
soais, com o intuito de assegurar a mais ampla recuperação da memória nacional.
Trata-se da ampliação da capacidade de acesso de todos os interessados ao maior
volume possível de vestígios do nosso passado, alçados, dessa forma, à condição de
“patrimônio histórico”.
Um exemplo notório desse esforço de captação de arquivos privados é o
Arquivo Nacional. A rigor, essa atividade é realizada pelo Arquivo desde sua cria-
ção, no século XIX. Por exemplo, o Arquivo Nacional recebeu, em 1974, a doação
do arquivo do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e, em janeiro de
2012, o fundo Luiz Carlos Prestes.
Vale a pena frisar que o patrimônio documental deve ser compreendido como
um elemento a serviço da contemporaneidade que irá pesquisá-lo e consultá-lo.
Não pode ser interpretado como expressão da verdade, uma vez que a própria in-
tenção de quem o preservou para servir de base para futuras narrativas históricas,
revela vontades políticas.
Considerações Finais
capítulo 4 • 102
ao trabalho empírico. Em tempo, isso se deve também à crescente preocupação
com a preservação documental e patrimonial, o que está levando ao progressivo
aperfeiçoamento dos arquivos e centros de documentação, e a um esforço crescen-
te por parte das autoridades para preservação do patrimônio histórico.
Grosso modo, nos primeiros quinze anos do século XXI, a produção historio-
gráfica brasileira pode ser assim distribuída em termos percentuais:
CURIOSIDADE
capítulo 4 • 103
Entidade representativa dos historiadores brasileiros. Sediada no campus da USP, na
“Cidade Universitária”. Realiza simpósios nacionais a cada dois anos, intercalados com en-
contros regionais organizados por suas filiais estaduais. Organiza também grupos de trabalho
e de estudo, que discutem temas relativos ao desenvolvimento e fortalecimento da pesquisa
e ensino de História em suas diferentes áreas. O site é: <http:>http://site.anpuh.org</http>
capítulo 4 • 104
Contudo, a produção em geral vem crescendo, mas ainda concentrada nos
grandes centros. É imprescindível que a Ciência da História se fortaleça, pois sua
contribuição é fundamental para a consolidação do Estado de Direito. Diferentes
versões, abordagens variadas, metodologias continuamente renovadas: aqui reside
o esforço do historiador para com a ética e a verdade.
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