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HISTÓRIA DA IDADE MÉDIA

OCIDENTAL

autor
BRUNO UCHOA BORGONGINO

1ª edição
SESES
rio de janeiro  2016
Conselho editorial  luis claudio dallier, roberto paes e paola gil de almeida

Autor do original  bruno uchoa borgongino

Projeto editorial  roberto paes

Coordenação de produção  paola gil de almeida, paula r. de a. machado e aline


karina rabello

Projeto gráfico  paulo vitor bastos

Diagramação  bfs media

Revisão linguística  bfs media

Revisão de conteúdo  alex da silveira de oliveira

Imagem de capa  tomasz bidermann | shutterstock.com

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida
por quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em
qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora. Copyright seses, 2016.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)

B732h Borgongino, Bruno Uchoa


História da idade média ocidental / Bruno Uchoa Borgongino.
Rio de Janeiro: SESES, 2016.
112 p: il.

isbn: 978-85-5548-414-8

1. Idade média. 2. Igreja. 3. Feudalismo. I. SESES. II. Estácio.

cdd 940.1

Diretoria de Ensino — Fábrica de Conhecimento


Rua do Bispo, 83, bloco F, Campus João Uchôa
Rio Comprido — Rio de Janeiro — rj — cep 20261-063
Sumário

Prefácio 5

1. Media Tempestas 7
1.1  O conceito de Idade Média do Renascimento à
Contemporaneidade 9
1.1.1 Renascimento 10
1.1.2 Iluminismo 11
1.1.3 Romantismo 12
1.1.4  A Escola dos Annales 13
1.2  A transição da Antiguidade para a Idade Média: Antiguidade Tardia
ou Primeira Idade Média? 15
1.2.1  O “declínio” do Império Romano 17
1.2.2  Antiguidade Tardia 18
1.2.3  Primeira Idade Média 19
1.3  Romanismo, germanismo e cristianismo 21

2. Reinos Germanos e Império Carolíngio 29

2.1  O conceito de reinos germanos 30


2.1.1  Da Germânia ao estabelecimento em territórios imperiais 32
2.1.2  Características gerais dos reinos romano-germânicos 36
2.2  Hérulos e ostrogodos: de soldados a reis 40
2.3  Suevos, vândalos e visigodos: a Península Ibérica 41
2.4  Francos e as relações de poder 42
2.5  Império Carolíngio: cultura e Igreja 42
2.5.1  Renascimento carolíngio 44
2.5.2  A Igreja carolíngia 46
3. Senhorio e feudalidade 51

3.1  O conceito de “feudalismo” 52


3.1.1  Os debates do século XX 54
3.1.2  A ideologia das três ordens 59
3.2  O juramento de fidelidade 62
3.3 Vassalagem 64
3.4 Senhorio 66
3.5  Feudalismo: características e diversidades 67

4. O ano mil e a religiosidade e a política no


século XI-XII 73

4.1  O ano mil: crise? 74


4.1.1  O imaginário clerical 76
4.1.2  O imaginário popular 77
4.2  Organizações políticas 78
4.3  O papado: disputas políticas e reformas 80
4.4  Heresias e as ordens mendicantes 85
4.4.1 Heresias 86
4.4.2  Ordens mendicantes 89

5. Crescimento demográfico e transformações


sociais (séculos XI ao XIII) 95

5.1  Renascimento comercial 96


5.2  Cavaleiros e movimento cruzadista 99
5.2.1  Os nobres cavaleiros 99
5.2.2  A Igreja e a cavalaria 100
5.2.3  Guerra Santa e as Cruzadas 101
5.3  As cidades, a sociedade urbana e a Universidade 102
5.3.1  A religiosidade urbana 104
5.3.2  Os intelectuais e o nascimento das Universidades 105
5.4  Séculos XIV e XV: outono da Idade Média ou primavera dos novos
tempos? 106
Prefácio
Prezados(as) alunos(as),

A Idade Média é um período constantemente referido como “Idade das Tre-


vas”. Ao iniciar os estudos sobre esse momento histórico, é necessário ques-
tionar essa ideia. Criada pela Idade Moderna, a visão negativa do medievo é
uma interpretação equivocada. Porém, não significa cair no mesmo erro dos
românticos do século XIX e construir uma imagem demasiadamente positiva
da época. Seguindo a tendência historiográfica predominante após o advento
da Escola dos Annales, compete ao pesquisador enxergar a Idade Média a partir
dos seus próprios olhos, abdicando de juízos de valor e recorrendo aos instru-
mentos provenientes de outras disciplinas.
Sendo um momento histórico que durou cerca de um milênio, não foi es-
tático a ponto de os contextos inicial e final corresponderem. Pelo contrário:
diversas transformações ocorreram ao longo dos séculos. A periodização pro-
posta por Hilário Franco Jr. tem a virtualidade de sistematizar didaticamente
essas mudanças estruturais complexas.
Na Primeira Idade Média (séculos IV a VII), houve a desestruturação do Im-
pério Romano e a progressiva instalação de grupos oriundos da Germânia no
Ocidente. Aos poucos, a unidade representada pela entidade imperial foi subs-
tituída pela pluralidade política dos reinos romano-germânicos. Concomitan-
temente, o poder da Igreja se consolidou e expandiu, tal como a escravidão e a
vida urbana retrocederam.
Na Alta Idade Média (séculos VIII a IX), quando quase toda a Península Ibé-
rica estava sob domínio muçulmano, no reino franco a família carolíngia as-
sumiu o poder. Carlos Magno, que eventualmente tornou-se também rei dos
lombardos, foi coroado imperador com o apoio da Igreja. A entidade imperial,
entretanto, não subsistiria, prevalecendo a tendência à fragmentação política.
Entre os séculos X e XIII, no momento denominado Idade Média Central,
diversos fenômenos ocorreram. Como resultado da militarização da nobreza
e da ausência de poderes centrais num mundo essencialmente agrário, a ca-
valaria e o feudalismo foram estabelecidos. A Reforma Gregoriana reivindicou
para o papa uma posição destacada no âmbito da Cristandade. As cidades e o
comércio experimentaram expansão, suscitando novas experiências econômi-
cas, sociais, culturais, religiosas e políticas.

5
Ao final do período medieval, o cenário geral era de crise. Problemas no cul-
tivo, mudanças climáticas, peste, guerras, fome e revoltas camponesas ocorre-
ram, resultando em dificuldades econômicas para os senhores e em retração
demográfica.

Bons estudos!

6
1
Media Tempestas
1.  Media Tempestas
A Idade Média está fortemente arraigada no imaginário coletivo. Aspectos da
sociedade medieval fascinam o século XXI: a cavalaria, os castelos, as Cruza-
das, só para citar alguns exemplos. Entretanto, outros repudiamos: a peste, o
combate da Igreja às práticas pagãs, as relações de proximidade entre poder
político e poder religioso, dentre outros. Ao estudarmos o período medieval,
detemo-nos em uma época ao mesmo tempo distante da nossa, mas ainda mui-
to presente; em uma sociedade que nos causa estranheza, mas mesmo assim
nos soa, em certa medida, familiar.
Neste capítulo, discutiremos a própria ideia de “Idade Média”. Se atualmente
temos uma visão do período ora extremamente negativa, ora muito idealizada,
é por conta das visões sobre o medievo que foram sendo construídas na moder-
nidade e na contemporaneidade. Além de abordar essa questão, faremos uma
primeira aproximação à transição da Antiguidade para a Idade Média. Sobre o
tema, destacaremos os modelos explicativos que os estudiosos estabeleceram
acerca desse processo de transformação, tal como analisaremos as contribuições
do romanismo, do germanismo e do cristianismo para a formação da socieda-
de medieval.

OBJETIVOS
•  Compreender as visões de Idade Média construídas no decorrer da modernidade e
da contemporaneidade;
•  Analisar o contexto histórico em que se desenvolveu o preconceito com a Idade Média;
•  Compreender quais as orientações que os especialistas atualmente seguem para o estudo
do período;
•  Comparar os modelos que tentam explicar a transição da Antiguidade para a Idade Média;
•  Apresentar as contribuições do romanismo, do germanismo e do cristianismo para a for-
mação da sociedade medieval.

8• capítulo 1
1.1  O conceito de Idade Média do Renascimento à
Contemporaneidade

Quando as pessoas normalmente pensam em Idade Média, qual a imagem


que frequentemente surge na mente? Provavelmente, uma que não é positiva.
É comum que a Inquisição e a perseguição arbitrária a mulheres tidas como
“bruxas” sejam lembradas. Ou que imaginem uma época em que a Igreja ludi-
briasse as pessoas, mantendo-as propositalmente na ignorância e as assustan-
do com a ameaça do Inferno, visando aumentar seu poder e patrimônio. Ou,
talvez, suponham um ambiente envolto em sujeira e doenças, como a peste.
Para quem não conhece profundamente o período, é normal relacionar a
Idade Média com aquilo que repudiamos por completo: a intolerância religio-
sa, a exploração da fé dos menos favorecidos, o fanatismo religioso, e assim
por diante. Desse modo, a sociedade medieval representaria o oposto daqui-
lo que se espera de uma sociedade dita “livre” e “esclarecida”, tanto que “me-
dieval” é uma palavra utilizada para desqualificar certas formas de crença e
de pensamento.
Tal forma negativa de compreender o medievo é o resultado de certa inte-
pretação do que foram os séculos que se desenrolaram entre a Antiguidade e a
Idade Moderna, que se enraizou no Ocidente a partir do século XVI. A moderni-
dade é marcada pelo desprezo da medievalidade.
Em contrapartida, certos aspectos da Idade Média fascinam o grande pú-
blico. O cinema norte-americano produz diversos filmes ambientados naquela
época que contam com grandes orçamentos e que obtêm sucesso de bilheteria.
Cidades com castelos, sejam eles realmente medievais ou imitações, são desti-
nos turísticos muito procurados. Livros como As Brumas de Avalon, de Marion
Zimmer Bradley, ou romances escritos por Bernard Cornwell não raramente
constam nas listagens de mais vendidos. O medievo fascina.
Para ilustrar o poder de atração que o medievo exerce na cultura popular
contemporânea, poderíamos mencionar as lendas arturianas. Quem nunca viu
um filme ou desenho animado protagonizado pelo rei Arthur e seus cavaleiros
da Távola Redonda? Quem nunca escutou uma história envolvendo a mítica es-
pada Excalibur?

capítulo 1 •9
CURIOSIDADE
No Brasil, o fascínio da Idade Média pode ser observado em duas manifestações culturais:
a literatura de cordel e as cavalhadas. Na primeira, são comuns a presença de personagens
medievais, como Carlos Magno, ou temas da literatura medieval, como a cavalaria ou a luta
entre Deus e o Diabo.
As cavalhadas, por sua vez, consistem numa encenação de uma luta entre cristãos e
mouros na época da Reconquista, reproduzindo vários aspectos dos torneios medievais.
Acontecem durante a festa do Divino em munícipios do Sul, Sudeste e Centro-Oeste. Uma
das mais famosas é a cavalhada de Pirenópolis, em Goiás.

Portanto, coexistem no século XXI duas representações bem distintas da Idade


Média: uma negativa e que nos causa repulsa e outra positiva e que nos encanta.
Para compreender o porquê dessas duas imagens, ambas idealizadas, devemos em-
preender uma análise da origem e desenvolvimento histórico de cada uma delas.

COMENTÁRIO
Os filmes históricos são uma forma lúdica de aproximação com a época retratada. Ainda que
não correspondam ao que defendem os historiadores, caso assistidos de forma crítica podem
contribuir para uma melhor compreensão de certos temas. Tanto é que muitos professores
de História recorrem a exibição e debate de filmes em sala de aula.
A respeito da Idade Média, a lista de filmes existente é muito extensa. Há títulos de todos
os gêneros possíveis: drama, comédia, romance, ação, terror. Recentemente, o Programa
de Estudos Medievais da Universidade Federal do Rio de Janeiro começou a desenvolver
um catálogo comentado de produções cinematográficas sobre o período medieval.
Parte desse material pode ser consultado em: <http://www.pem.historia.ufrj.br/arquivo/
CatalogoFilmico.pdf>.

1.1.1  Renascimento

O Renascimento foi um fenômeno histórico situado entre fins do século XIV


e meados do século XVI. Embora tradicionalmente associado ao contexto das
cidades italianas, que então floresciam graças às atividades comerciais, o movi-
mento repercutiu em todo o Ocidente.

10 • capítulo 1
Naquele momento, artistas e pensadores europeus assumiram como nor-
te o retorno aos saberes e valores da Antiguidade Clássica. A produção inte-
lectual e artística dos gregos e dos romanos era tomada como referência pe-
los renascentistas.
Foi nessa época que o italiano Francesco Petrarca (1304-1374) utilizou pela
primeira vez o termo media tempestas (literalmente, “tempo médio”). Em suas
correspondências, empregava a expressão para se referir à mediocridade dos
seus contemporâneos, que desconheciam as obras gregas e latinas. A palavra
tenebrae (“trevas”) era utilizada no mesmo sentido. Ainda que não tenha inau-
gurado a visão negativa da Idade Média, cunhou o vocabulário que seria pouco
mais tarde usado para sua desqualificação.
Aos poucos, formou-se uma compreensão de que a Idade Média represen-
taria o declínio da esplendorosa sociedade antiga e a perda dos seus conheci-
mentos e apurado senso estético, sucedendo-lhe com barbárie e ignorância. A
produção artística medieval passou, a partir daí, a ser denominada “gótica”,
numa alusão ao seu caráter “grosseiro” e “bárbaro”.

1.1.2  Iluminismo

O Iluminismo, que ganhou força no decorrer do século XVIII, é difícil de con-


ceituar. Houve diversos filósofos que poderíamos categorizar como “iluminis-
tas”: Jean-Jacques Rousseau, Voltaire, Montesquieu, Kant, dentre outros. Cada
pensador tinha suas próprias ideias. Apesar de discordarem a respeito de al-
guns temas, compartilhavam de certos pressupostos e, por isso, convergiam
em certas orientações intelectuais.
Constata-se, entre os autores iluministas, a valorização da razão humana.
Os escritos que produziram destacavam a capacidade do indivíduo de pensar
de forma autônoma e, por meio da crítica, enfrentar tradições e alcançar a ver-
dade. A liberdade seria uma forma de assegurar que todos pudessem expressar
aquilo que pensassem.
Embora não fossem exatamente anticristãos, era recorrente que proferis-
sem argumentos contrários às religiões institucionalizadas – sobretudo a Igreja
Católica. Na interpretação iluminista, o clero impunha aos fiéis uma determi-
nada maneira de entender o mundo, sem necessariamente estabelecer com-
promisso com a verdade. O iluminismo também era favorável à secularização
da sociedade, ou seja, a separação entre as instituições religiosas de qualquer
profissão e a esfera pública.

capítulo 1 • 11
Tendo por base a noção de igualdade, os iluministas atacavam os privilégios
políticos, jurídicos e econômicos que a nobreza detinha na sociedade de Antigo
Regime. Os pensadores do século XVIII avaliaram negativamente o poder aris-
tocrático que prevalecia durante o medievo.
Por essas razões, o Iluminismo foi crítico em relação ao período medieval.
Ora, durante a Idade Média, a Igreja atuava junto a reis e consistia numa ins-
tituição poderosa. Tendo em vista seu poder naqueles tempos, os iluministas
acabaram por interpretar o medievo como período de “trevas”. Ainda que não
inaugurasse a imagem pejorativa da Idade Média, o Iluminismo contribuiu
para sua consolidação e difusão ao apresentar novos argumentos difamadores.

1.1.3  Romantismo

Não há consenso entre os especialistas sobre como caracterizar o Romantismo,


tampouco sobre suas balizas temporais. Geralmente, aceita-se que o período
romântico esteja situado entre as últimas décadas do século XVIIII e meados
do século XIX.
O Romantismo pode ser compreendido como um período de desencanto
com a modernidade, com forte propensão à revolta. O presente, permeado pela
Revolução Industrial, pelos problemas sociais dele decorrentes e pela perda
dos valores tradicionais num mundo cada vez mais urbanizado e dominado
pela burguesia, era algo vivido com angústia. Por isso, a era romântica projetou
utopias: para o futuro, imaginou uma Revolução inevitável, levada a cabo pelo
povo guiado por um líder heroico que concretizaria uma sociedade menos desi-
gual e competitiva; para o passado, vislumbrou as origens da nação numa época
em que o povo se formava e encarnava melhor as suas características e ideais.
Esse sentimento nacionalista desencadeou um interesse pela História e, na
Europa, uma predileção pela Idade Média, onde viveram “heróis nacionais” e
os grandes feitos do espírito do povo. Na França, o reinado de Carlos Magno e
as vitórias militares dos francos, como a Batalha de Poitiers (732), por exemplo,
seriam constantemente lembrados.
Na literatura, houve extensa produção que tomava a Idade Média como
tema. O público da era romântica teve particular interesse em histórias fantás-
ticas do passado medieval, particularmente das lendas arthurianas. O poeta
inglês Alfred Tennyson (1805-1892) se tornaria consagrado pelo seu Idílios do
Rei (1885), um conjunto de poemas sobre o rei Arthur e os Cavaleiros da Távola
Redonda inspirados nos contos medievais de Thomas Malory.

12 • capítulo 1
Dada a valorização da emoção, o misticismo e o fervor religioso foram expe-
rimentados por diversos autores românticos. A transcendência e o sentimento
de conexão com a criação de atributos à vivência da fé era algo procurado por
alguns. O cristianismo católico, nesse sentido, era o mais adotado – aliás, en-
tre os românticos, por vezes predominava uma repulsa ao protestantismo. A
religiosidade do Romantismo muitas vezes buscava na Idade Média inspiração,
uma vez que era entendida como uma época de espiritualidade e de esplendor
da Igreja.
Como resultado, houve uma preocupação na restauração de igrejas e mo-
numentos religiosos medievais. Além disso, desenvolveu-se o neogótico, esti-
lo arquitetônico que fazia alusão às construções góticas medievais, com seus
elementos verticais e pontiagudos que apontam para o céu. Várias construções
católicas do século XIX foram erguidas usando-se o estilo neogótico.
Se o Romantismo, por um lado, reabilitou a Idade Média da sua imagem
negativa, por outro manteve uma visão idealizada, ainda que positiva, desse
passado. Somente no século XX é que viria a surgir uma abordagem crítica a
respeito do período medieval – mais especificamente, a partir da renovação his-
toriográfica proporcionada pela Escola dos Annales.

1.1.4  A Escola dos Annales

No início do século XX, um grupo de historiadores franceses propôs novas


orientações para os estudos históricos que proporcionaram uma renovação ra-
dical da tradição historiográfica até então vigente. A respeito das inovações da
Escola dos Annales, cabe destacar algumas que influíram diretamente na ma-
neira como os especialistas atualmente lidam com a História Medieval.
Primeiramente, houve a adoção da perspectiva de longa duração e da aten-
ção mais detida à História Social, em detrimento da História Política centrada
nos grandes reis e da História Militar focada nas grandes batalhas. O novo enca-
minhamento possibilitou a superação do discurso nacionalista que permeava
as abordagens sobre o período, tal como o desbravamento de novas esferas da
sociedade medieval.
O diálogo com outras disciplinas, particularmente com a Sociologia, a
Antropologia e a Ciência Política, resultou em estudos que problematizavam
aspectos que então passavam despercebidos pelos acadêmicos. Propiciou tam-
bém o desenvolvimento de metodologias adequadas de fontes que até então
não eram exploradas.

capítulo 1 • 13
Cabe salientar que houve muitos medievalistas provenientes da Escola
dos Annales que escreveram trabalhos cuja influência transcendeu o campo
dos estudos medievais. Por exemplo, Marc Bloch (1886-1944), pioneiro da pri-
meira geração, escreveu trabalhos como Os Reis Taumaturgos e A Sociedade
Medieval. Na terceira geração, houve contribuições de Jacques Le Goff (1924-
2014) e Georges Duby (1919-1996), ambos com uma produção acadêmica ex-
tensa, em que perpassavam questões pertinentes e inovadoras, ampliando as
possibilidades de objetos a serem investigados pelos historiadores.

COMENTÁRIO
Jacques Le Goff (1924-2014) foi um importante historiador francês, especializado em His-
tória Medieval. Teve longa atuação universitária, tendo sido diretor da École Pratique de Hau-
tes Études na década de 1960. Suas pesquisas foram importantes para a consolidação da
História das Mentalidades e ressaltaram as diversas representações existentes na cultura
medieval. Da sua vasta obra, destacam-se: Mercadores e banqueiros na Idade Média (1956),
Os intelectuais na Idade Média (1957), O nascimento do purgatório (1981), Por amor às
cidades (1997), O maravilhoso e o quotidiano no Ocidente medieval.
Por sua vez, Georges Duby (1919-1996) foi professor do Collège de France e recebeu
várias homenagens e premiações ao longo da carreira em decorrência das suas reflexões
historiográficas. A partir dos referencias teóricos do marxismo, da antropologia, da geografia
e da História das Mentalidades, pesquisou a vida rural medieval, o imaginário social, as artes
e as mulheres. Da sua vasta obra, destacam-se: O tempo das catedrais (1976), As três or-
dens ou o imaginário do Feudalismo (1978), Guilherme Marechal ou o melhor cavalheiro do
mundo (1984).

Portanto, os novos objetos, temas, problemas e métodos que emergiram


mediante as reflexões dos historiadores da Escola dos Annales propiciaram
que as pesquisas do século XX se desvencilhassem das idealizações até então
vigentes a respeito do medievo. Atualmente, a orientação é evitar os juízos de
valor, seja para condenar, seja para exaltar a Idade Média, tendo como objetivo
compreender como os próprios homens que viviam naquela época percebiam
a si mesmos e o mundo que os cercava.

14 • capítulo 1
1.2  A transição da Antiguidade para a Idade Média: Antiguidade
Tardia ou Primeira Idade Média?

Assim como qualquer outro campo de estudos na disciplina História, quando


abordamos o tema de transição da Antiguidade para a Idade Média, não há
consenso entre os especialistas sobre esse processo. Ao longo do tempo, foram
propostas diversas leituras a respeito do período em que o Ocidente deixava
paulatinamente de ser antigo para, aos poucos, tornar-se medieval.
Evidentemente, o estabelecimento de um marco cronológico seguro para
determinar quando uma era termina e quando outra começa é algo impossível.
Mudanças profundas nas estruturas de uma sociedade ocorrem de forma gra-
dual e lenta, de maneira quase imperceptível para aqueles que vivem nela, não
de modo abrupto.
Em 313, o Império Romano publicava o Édito de Milão, um ano após a con-
versão do imperador Constantino ao cristianismo; em 476, os hérulos saquea-
vam Roma e destituíam o seu último imperador do seu cargo. Qual das duas
datas demarcaria o fim da Antiguidade e o começo da Idade Média? E por que
necessariamente teria de ser uma dessas duas e não outra qualquer?

CONCEITO
O Édito de Milão foi um documento de 313 promulgado pelo imperador Constantino, então
recém-convertido ao cristianismo. O decreto oficializava o fim das perseguições aos cristãos
pelo poder imperial e a devolução dos seus bens confiscados. Teve papel fundamental para
que a religião pudesse se consolidar no território romano.

CURIOSIDADE
Os hérulos foram um dos povos provenientes da Germânia que buscaram se estabelecer no
território romano a partir do século III d.C. Sob a liderança de Odoacro, conseguiram invadir
a cidade de Roma em 476 e destituíram Rômulo Augusto do trono de imperador. A partir de
então, a entidade política do Império Romano, já bastante debilitada, não existiria mais. Os
hérulos permaneceram na Península Itálica até 589, quando foram conquistados por outro
povo germânico: os ostrogodos, na época sob a liderança de Teodorico.

capítulo 1 • 15
Periodizar é sempre algo arbitrário, pois parte de escolhas subjetivas que
dependem do que é priorizado pelo olhar do historiador. Aqui neste livro, ado-
taremos o século IV como início do processo de transição entre a Antiguidade
e o medievo. Optamos por não apontar uma data exata, pois destacar um único
acontecimento simplificaria a nossa compreensão de fenômeno tão complexo.
Por que o século IV? Nele, o Império Romano ainda existia, e os germanos
estavam começando o seu fluxo migratório para o Ocidente. Contudo, ocorre-
ram transformações fundamentais: a associação entre poder político e fé cris-
tã, início da organização institucional da Igreja, começo da transformação das
relações sociais no campo, primeiras demonstrações de uma retração da popu-
lação urbana e das atividades comerciais. Em suma, diversos fenômenos ocor-
reram e contribuíram para a alteração da conjuntura ocidental.
Como limite para essa fase de transição, destacamos o século VIII, época
em que ascende ao poder dos francos a dinastia carolíngia – a qual será estuda-
da em capítulo adiante. O período de Carlos Magno foi caracterizado por uma
série de elementos que já identificamos como propriamente medievais, embo-
ra repercuta algumas características das estruturas romanas.
Ao longo do tempo, estudiosos propuseram diversas leituras para explicar o
que ocorreu entre as duas balizas temporais que apontamos. Numa visão mais
tradicional, seria uma época de “declínio” do Império Romano. A partir do sé-
culo XX, as denominações “Antiguidade Tardia” e “Primeira Idade Média” sur-
giram como alternativas à abordagem decadentista que vigorava até então.
Devemos destacar que a maneira como nomeamos o período não se resume
a preciosismo acadêmico. Optar entre termos como “decadência”, Antiguidade
Tardia ou Primeira Idade Média é adotar certa interpretação sobre o que foi o
processo de transição. Por vezes, o historiador, em seu esforço em compreen-
der determinada época, tem de se valer de um conjunto de conceitos que difi-
cilmente será acatado pelos seus colegas de profissão. Mais do que optar por
uma ou outra designação, cabe ao estudioso compreender o significado do con-
ceito que utiliza e elaborar uma justificativa plausível por empregar esse, e não
aquele termo.
A seguir, analisaremos cada uma das vertentes interpretativas sobre a tran-
sição da Antiguidade para a Idade Média, apontando os principais representan-
tes de cada uma. Salientamos a importância do contexto histórico em que cada
uma teve origem: a conjuntura social e as questões intelectuais então em voga
influíram na maneira como os estudiosos pensavam o período e o processo de
transformação do mundo antigo em medieval.

16 • capítulo 1
1.2.1  O “declínio” do Império Romano

A partir do Renascimento, tendo como época de maior intensidade o Iluminis-


mo, difundiu-se a imagem de que a Idade Média foi um período de trevas, onde
o esplendor do mundo antigo foi perdido. Dessa maneira, os últimos séculos
do Império Romano foram compreendidos como um processo de decadência
de uma civilização. Curiosamente, nem mesmo os românticos, em sua valoriza-
ção do período medieval, propuseram uma interpretação alternativa ao modelo
que indicava a decadência civilizatória.
Durante muito tempo, as reflexões sobre a transição foram centradas nas
causas que resultaram no declínio de Roma. Diversos fatores foram apontados:
elementos internos militares, políticos e religiosos, além da pressão desagre-
gadora dos germanos. O renomado filósofo francês Montesquieu (1689-1755)
escreveu, em 1734, nesse sentido, Considerações sobre as causas da grandeza
dos romanos e de sua decadência.
Contudo, o autor mais influente dessa corrente foi o inglês Edward Gibbon.
(1737-1794). Oriundo de família abastada e com carreira militar, tornou-se fa-
moso pela publicação de História do declínio e queda do Império Romano, em
que aborda a trajetória do Império Romano, tal como o Bizantino e alguns te-
mas referentes à Alta Idade Média ocidental.
A monumental obra de Gibbon foi publicada em seis volumes. O esforço de
pesquisa contou com o levantamento crítico de fontes primárias textuais – a ar-
queologia e o uso de imagens como documento histórico ainda não estava em
voga. Além disso, dialogou e sistematizou as interpretações mais importantes
sobre o processo de transição.
História do declínio e queda do Império Romano centrava sua narrativa nas
causas internas da decadência imperial. Tendo como referência o anticlerica-
lismo iluminista e a crítica às tradições, sua abordagem detinha um teor mora-
lista e que avaliava de forma negativa o processo. Dentre os fatores que apontou
para a queda de Roma, constava a difusão da fé cristã. Além disso, questionava
ousadamente as leituras estabelecidas pela Igreja Católica.
As ideias de Gibbon e seus contemporâneos perduraram por muito tempo.
Mesmo no fim do século XIX e no início do XX, tais perspectivas persistiam.
Historiadores proeminentes, como Rostovzeff e Ferdinand Lot, por volta da dé-
cada de 1920, reproduziam essas hipóteses em seus trabalhos. Em contraparti-
da, marxistas e weberianos sublinhavam os fatores econômicos.

capítulo 1 • 17
1.2.2  Antiguidade Tardia

O termo “Antiguidade Tardia” foi criado após a Segunda Guerra Mundial por
historiadores alemães da arte. Originalmente, a denominação visava caracteri-
zar um período em que a arte já não era essencialmente medieval e preservava
muitos elementos típicos da Antiguidade.
Com as novas preocupações que a Escola dos Annales trazia aos estudos
históricos, as pesquisas sobre a transição do mundo antigo para o medieval
precisavam de novas referências. O diálogo com a demografia, a antropologia
e a sociologia, tal como a emergência da historiografia sobre as mentalidades e
o cotidiano, propiciaram novas possibilidades de compreensão desses séculos
de transformação.
O trabalho de Henry-Irénee narrou Decadência romana ou Antiguidade
Tardia? (1977) refletiu sobre a possibilidade de uso do conceito de Antiguidade
Tardia como alternativa à interpretação decadentista tradicional. Contudo, ca-
beria ao sucesso editorial dos estudos de Peter Brown a divulgação da expressão.
Influenciado pelo historiador italiano Arnaldo Momigliano, segundo o qual
existia um mundo autônomo e repleto de especificidades entre a Antiguidade
e a Idade Média, Peter Brown interessou-se em analisar a dinâmica própria dos
séculos de transição. Seus temas de pesquisa, como a renúncia sexual cristã ou
o advento do culto aos santos, percorriam aspectos inovadores do período.
O renome acadêmico do historiador irlandês Peter Brown iniciou quan-
do tinha 32 anos, com a publicação, em 1967, de um estudo sobre Agostinho
de Hipona que revolucionou o campo. Em 1971, lançou o livro The World of
Late Antiquity, traduzido para o português como O fim do mundo clássico e,
em 1978, The making of Late Antiquity, que segue sem tradução. Nesses dois
textos, definiu as bases do que se compreenderia como “Antiguidade Tardia”,
sendo ainda hoje a principal referência entre os partidários do conceito.
Conforme argumenta, o processo de transição não deveria ser entendido
como a decadência de uma civilização esplendorosa. Pelo contrário, observa-se
a continuidade de diversos elementos da cultura e da sociedade romana. A es-
pecificidade do período estaria na ascensão do cristianismo, que conferiria um
novo estatuto e uma nova dinâmica às estruturas preexistentes.
Tanto Peter Brown quanto seus seguidores optariam por pesquisas voltadas
ao ambiente religioso e cultural dos séculos de transição, sublinhando as no-
vas tonalidades que a fé cristã conferiria aos caracteres antigos que permane-
ciam no Ocidente. Mas e as contribuições dos germanos? Se o fim do Império

18 • capítulo 1
Romano foi marcado pelo gradual estabelecimento de povos provenientes da
Germânia cuja cultura destoava da romana, qual o papel de sua chegada à nova
conjuntura ocidental?

1.2.3  Primeira Idade Média

Recentemente, alguns historiadores se levantaram contra a compreensão da


Antiguidade Tardia justamente por sua ênfase excessiva na ideia de “continui-
dade”. Numa análise mais apurada, torna-se evidente a permanência de alguns
aspectos da sociedade romana, mesmo após a destituição do último imperador
romano. Contudo, houve também inovações e rupturas.
Nesse sentido, foi criticado um relativo “esquecimento” do papel desem-
penhado pelos germanos. O caráter belicista da cultura germânica e suas re-
lações pessoais de poder pautadas em juramentos de fidelidade foram in-
corporados no Ocidente. Nos estudos de Antiguidade Tardia, essas questões
foram negligenciadas.
Por fim, a ênfase nos aspectos culturais e religiosos também foi questio-
nada. Ora, a consolidação da Igreja ocorreu principalmente pela apropriação
do aparato institucional legado pelo Império, assumindo essa estrutura na
medida em que foi se aproximando de Roma, após a conversão do imperador
Constantino. Além disso, a pregação cristã buscava convergir a nova fé com as
crenças e práticas religiosas preexistentes. Há apropriação e ressignificação
dos elementos antigos pelos cristãos.
No entanto, perceberíamos de forma tão clara as continuidades se obser-
vássemos, por exemplo, o tema da escravidão ou das propriedades rurais?
Historiadores marxistas, atentos às alterações nos quadros sociais e econômi-
cos, apontaram para a lenta desaparição da escravidão em favor de servidão e
da pequena propriedade independente em benefício da grande propriedade.
Outro campo em que fica evidente a ruptura é o político: a unidade imperial
mediterrânica foi substituída por uma pluralidade de reinos independentes.
Se por um lado o privilégio que os partidários da Antiguidade Tardia confe-
riam às continuidades romanas quase ignorava as descontinuidades, por outro
o retorno à concepção decadentista estava quase totalmente descartada. Qual
seria a alternativa viável a essa leitura?
O historiador francês Jacques Le Goff, já mencionado, sem negar a existên-
cia de uma “Antiguidade Tardia”, propôs um modelo explicativo que possibili-
taria outra leitura. Em seu A civilização do Ocidente medieval, afirmava que o

capítulo 1 • 19
mundo medieval se formou a partir das contribuições de três heranças: o roma-
nismo, o germanismo e o cristianismo.
O historiador brasileiro Hilário Franco Júnior recorreu às reflexões de
Jacques Le Goff para estabelecer outro modelo explicativo a respeito da transi-
ção da Antiguidade para a Idade Média.

CURIOSIDADE
Hilário Franco Júnior (1948-) é um historiador brasileiro especializado em História Medie-
val, além de eventualmente publicar estudos sobre História do Futebol. Realizou seu pós-
doutorado na École des Hautes Ètudes en Sciences Sociales sob a orientação de Jacques
Le Goff. Atualmente, é livre docente na Universidade de São Paulo (USP).
Sua obra é dedicada principalmente à pesquisa das mentalidades e do imaginário medie-
vais, além de eventualmente publicar livros de divulgação científica. Seus principais trabalhos
são: A Eva barbada (1996), Cocanha: a história de um país imaginário (1998) e A Idade
Média: nascimento do Ocidente (2006).

Baseando-se na referência de Jacques Le Goff, cuja influência repercute em


toda a sua produção intelectual, Hilário Franco Júnior destaca a importância
das três grandes tradições na transição. Dessa forma, o período compreendido
entre os séculos IV e VIII pode ser considerado uma época cujas inovações o
aproximam mais do que viria a ser a sociedade medieval do que antiga, ainda
que permaneçam elementos da cultura romana. Logo, a proposta desloca a ên-
fase continuísta dos partidários da Antiguidade Tardia para as descontinuida-
des e mudanças.
A denominação para o período de transição proposta por Hilário Franco
Júnior, Primeira Idade Média, é ainda muito recente, contudo muitas pes-
quisas brasileiras atuais adotam esse conceito – ainda que não haja consenso
entre os historiadores nacionais sobre as virtudes desse novo modelo explica-
tivo. Tendo em vista sua atualidade, ainda não houve críticas contundentes a
essa corrente.
Debates historiográficos são sempre difíceis de serem compreendidos.
Contudo, faz-se necessário compreender as linhas gerais das principais hipó-
teses e argumentações que os especialistas estabeleceram sobre determinado

20 • capítulo 1
tema ao longo do tempo. A interpretação e a avaliação crítica do que foi produ-
zido fazem parte do ofício do historiador.
Para facilitar o entendimento, elaboramos um quadro com o contexto em
que surgiram cada corrente, os pressupostos compartilhados pelos adeptos de
cada uma, os principais temas de estudos, os principais estudiosos que adota-
ram cada modelo e as principais críticas existentes. Confira a seguir:

“DECADÊNCIA” ANTIGUIDADE TARDIA PRIMEIRA IDADE MÉDIA


Crítica à represen-
Renascimento,
CONTEXTO Século XX, Annales tação negativa do
Iluminismo
medievo
Cultura romana Período com
Continuidade do
PRESSUPOSTO positiva x obscu- características já
período romano
rantismo medieval medievais
Contribuições
das três tradi-
Causas da “queda” Religião, espirituali-
TEMAS CARACTERÍSTICOS ções (romanismo,
do Império Romano dade e cultura
germanismo e
cristianismo)
Montesquieu, Henri-Irénée Mar- Hilário Franco
PRINCIPAIS PARTIDÁRIOS
Gibbon rou, Peter Brown Júnior
Diminui a impor-
tância do fim do
Anacronismo, julga- Conceito ainda
PRINCIPAIS CRÍTICAS Império Romano
mentos morais pouco discutido
e da presença
germânica

1.3  Romanismo, germanismo e cristianismo

Evidentemente, o mundo medieval é bastante diferente do mundo anti-


go. As estruturas econômicas, sociais, culturais, religiosas e políticas diferem
em muitos aspectos. As regiões que antes estavam sob o controle do Império
Romano foram romanizadas, portanto possuiriam elementos da romanida-
de que continuariam presentes mesmo após a derrocada imperial. Contudo,
com a conquista dessas áreas por povos germânicos, resultou na adição de no-
vas características às sociedades ocidentais. A despeito das diferenças entre o

capítulo 1 • 21
romanismo e o germanismo, inconciliáveis a uma primeira vista, tenderam a se
fundir e a se tornar uma só, tendo o cristianismo como o elemento aglutinador.

CONCEITO
Durante o período Republicano (509-27 a.C.), Roma experimentou um processo de expan-
são território que assegurou o domínio do mundo mediterrânico. No decorrer da época im-
perial, observa-se a tendência das áreas conquistas a adquirir elementos da cultura romana,
sobretudo nas cidades.

Ao contrário do que foi defendido por uma historiografia tradicional, a cul-


tura romana sobreviveu ao estabelecimento dos germanos no Ocidente e ao fim
do Império Romano. Os grupos que tomavam o controle daquele território bus-
caram acomodar-se às estruturas preexistentes. Nesse sentido, constata-se, em
primeiro lugar, a sobrevivência do Direito Romano, que, inclusive, perduraria
por muito tempo.
Outra continuidade significativa do período romano é o latim. Sendo a língua
oficial do Império e utilizada principalmente pelas elites cultas, o idioma latino
foi preservado principalmente por aqueles que tinham acesso à formação letra-
da. Os segmentos mais populares tenderiam a falar um latim não tão rebusca-
do, que não estaria em conformidade com os padrões cultos. Paulatinamente,
o latim dos segmentos menos privilegiados daquele em uso nos meios mais
favorecidos, sobretudo entre os representantes do clero, distanciam-se.
O recurso aos títulos e dignidades romanas como mecanismo de afirma-
ção de poder foi uma continuidade bem acentuada. Os governantes germanos
identificavam-se como reis (rex), e seus principais servidores, duques (dux),
sendo ambas as nomenclaturas que se originaram da administração romana. A
documentação da época vincula indícios de que os monarcas germanos foram
gradualmente adotando as vestimentas romanas, abandonando suas rústicas
roupas guerreiras.
Embora o mundo mediterrânico não estivesse mais sob a hegemonia da ci-
dade de Roma, a pretensão universalista persistiria. O título imperial seria rei-
vindicado por Carlos Magno no século IX e, depois, pelo Sacro Império Romano-
Germânico. Porém, a promessa de domínio sem fim que alguns imperadores

22 • capítulo 1
romanos anunciaram seria reproduzida, de certa forma, pelo cristianismo. A fé
cristã pretendia abarcar todo o mundo mediterrânico e além.
Apesar de a transição da Antiguidade para a Idade Média ter sido carac-
terizada pela ascensão e fortalecimento da Igreja, os livros dos autores ditos
“pagãos” não foram proibidos nem condenados. A forma medieval de ler os
antigos foi estabelecia por Agostinho de Hipona em seu tratado Da doutrina
cristã. De acordo com esse pensador, o fiel deveria extrair dos textos clássicos o
que fosse verdadeiro e útil à compreensão das Escrituras, ignorando as supers-
tições e as crenças pagãs.

COMENTÁRIO
Agostinho (354-430) foi um importante líder eclesiástico e intelectual cristão no Ocidente,
numa época em que as bases doutrinárias do cristianismo latino não estavam ainda definidas.
Sua obra teológica teve grande importância no desenvolvimento da Igreja e de seus precei-
tos, valendo-lhe o título de Doutor da Igreja e a veneração como santo.
Sua vida foi marcada por uma conversão tardia ao cristianismo niceno, realizada a partir
da atuação do bispo Ambrósio de Milão. Eventualmente, tornou-se bispo da cidade africana
de Hipona, cargo que ocupou pelo restante da sua vida. Sua produção foi extensa, destacan-
do os seguintes livros: Da Doutrina Cristã, A Cidade de Deus e as Confissões.

Desse modo, os saberes clássicos continuaram exercendo influência no


Ocidente. Textos médicos, filosóficos, físicos, dentre outros, continuaram
circulando e eram lidos, principalmente, no meio clerical e nos mosteiros.
Evidentemente, dado o progressivo esquecimento do grego, aquilo que não fos-
se originalmente escrito em latim ou recebesse tradução latina deixou de ser
conhecido. Os tratados escritos por Aristóteles, por exemplo, só voltariam a ser
estudados no Ocidente a partir do século XI, quando a sua obra recebeu suas
primeiras traduções para o latim.

CURIOSIDADE
No Ocidente, tradicionalmente se atribui ao médico grego Hipócrates de Cós o título de “pai
da Medicina”. No mundo antigo, muitas vezes foi considerado descendente do deus curativo

capítulo 1 • 23
Asclépio. Foi um autor muito influente tanto na Grécia Clássica quanto no período helenístico
e no Império Romano, sendo inspirador de diversos tratados médicos escritos nessas épocas.
Tradicionalmente, a historiografia alega que o saber médico clássico declinou com o ad-
vento do cristianismo, uma vez que a Igreja priorizaria o poder milagroso dos santos de curar
enfermidades diversas. Contudo, estudos recentes demonstram que escritos médicos, inclu-
sive traduções para o latim de alguns tratados de Hipócrates, continuaram a ser estudados.
No século VI, por exemplo, o médico cristão Antimo destinaria uma carta ao rei franco
sobre como manter uma alimentação que pudesse preservar a saúde. No decorrer do texto,
alegava que suas prescrições eram embasadas nos “médicos antigos”, comprovando a im-
portância que a medicina antiga ainda preservava no Ocidente. Mas o autor também reco-
nhecia que a possibilidade de uma cura medicinal só existia graças ao poder divino, o que
aponta para uma leitura cristã da medicina clássica.

Como dito anteriormente, embora os germanos tenham se apoiado em ins-


tituições e práticas políticas romanas, também contribuíram com caracteres
de sua própria cultura para a formação da sociedade medieval. A cultura germâ-
nica era pautada na honra militar e no belicismo, valorizando, dessa forma, a
atuação do guerreiro. Constata-se, ao longo da Idade Média, a associação entre
a elite e o ofício combatente, que se cristalizaria, a partir do século XI, na figura
do nobre cavaleiro.
Entre os povos germânicos, o rei era um chefe guerreiro que conduzia seus
homens em batalha. Ao seu lado, havia o comitatus, um séquito composto tam-
bém por um grupo de guerreiros que juravam pessoalmente fidelidade ao seu
líder, a quem serviria em armas. Em retribuição por lutar ao seu lado, os mem-
bros desse séquito recebiam parte do que foi saqueado nas incursões. Dessa
forma de organização sociopolítica, a Idade Média herdaria a pessoalidade e a
patrimonialismo nas relações de poder e a noção de fidelidade entre guerreiros.
A aproximação entre o romanismo e germanismo, num primeiro momen-
to, foi dificultada por diversos fatores. Primeiramente, pela questão religiosa,
embora os germanos, à medida que foram migrando para o Ocidente, conver-
teram-se ao cristianismo, mas professando o arianismo. Em segundo lugar, ha-
via a proibição de casamentos entre romanos e germanos. O cenário começou a
mudar a partir do século VI, com adoção do catolicismo niceno pelos germanos
e com o fim da proibição dos matrimônios mistos.

24 • capítulo 1
CONCEITO
O arianismo consistia numa heresia, ou seja, numa interpretação da doutrina cristã considera-
da “errada” pela Igreja e, por isso, perigosa e nefasta. Os adeptos dessa corrente acreditavam
que entre as três pessoas da Trindade havia uma hierarquia, sendo o Pai superior ao Filho,
que, por sua vez, era superior ao Espírito Santo. A doutrina trinitária da Igreja, estabelecida no
Concílio de Niceia (325), estabeleceu que as três pessoas eram iguais entre si.
Essa diferença, num primeiro olhar, aparenta ser preciosismo filosófico de pouca impor-
tância; porém, a identificação com uma ou outra profissão de fé cristã, mesmo que funda-
mentada numa pequena divergência teológica, era também uma forma de inserção numa
facção política. Dessa forma, ser ariano ou ser católico niceno definia, então, qual seria a sua
base aliada numa eventual disputa de poder.

Tal como observado, o cristianismo proporcionou as condições para que


heranças tão distintas destoantes pudessem fundir-se. A Igreja apropriou-se
do universalismo que antes era associado ao Império, tornando-se hegemôni-
ca em todo o mundo mediterrânico. O discurso cristão adaptou-se às circuns-
tâncias, conferindo legitimidade às realezas que então eram constituídas, ao
belicismo da elite social que se formava, às relações pessoais de poder, aos ju-
ramentos de fidelidade, dentre outros aspectos.
Apesar de a Igreja pretender que o cristianismo fosse universal e que, por-
tanto, revelasse uma verdade que, em última estância, seria única e válida em
qualquer época e local, não era isso que na prática procedia. No momento de
transição entre a Antiguidade e a Idade Média, não havia um centro de poder
eclesiástico capaz de decidir a doutrina, a liturgia ou a organização legítima – o
“papa”, então, não era um líder de fato, mas o bispo de Roma, que tinha proe-
minência por conta do prestígio da cidade, ainda que não governasse a Igreja.
Dessa forma, como seria possível construir uma uniformidade para essa insti-
tuição? Na prática, o que ocorre é uma grande variedade de práticas e crenças
regionais, adaptados aos costumes e interesses locais.
Além disso, devemos atentar para o alcance que o cristianismo tinha naque-
les séculos iniciais da Idade Média. A religião cristã era um fenômeno predomi-
nantemente urbano, tal como as principais autoridades clericais eram figuras
vinculadas às cidades. Contudo, as regiões rurais mais afastadas permanece-
ram relativamente alheias ao processo de cristianização que estava em curso. A

capítulo 1 • 25
penetração da Igreja no campo foi muito lenta e dependeu, em grande parte, da
atuação dos mosteiros para ser bem-sucedida.

CONCEITO
O movimento monástico surgiu no final do século III, florescendo inicialmente nos desertos
das regiões da Síria, da Palestina e do Egito. Nesse primeiro momento, era marcado pela
fuga dos monges da vida social e renúncia ao mundo e aos prazeres da carne, em favor da
contemplação dos desígnios divinos – em suma, uma vida ascética. Com o tempo, os monges
começaram a formar comunidades, denominadas mosteiros, para viverem juntos de forma
ascética. No Ocidente, seria essa modalidade de experiência monástica que prevaleceria.
A partir do século IV, o Ocidente cristão testemunhou uma rápida difusão do movimento
monástico, com mosteiros sendo construídos em diversas localidades. Muitas construções
do gênero eram erguidas em áreas afastadas e tornavam-se, muitas vezes, a única referência
de cristianismo que as comunidades camponesas do entorno conheciam. Por isso, os mostei-
ros foram responsáveis por assegurar a capilaridade do poder da Igreja e do discurso cristão.

Uma estratégia muita utilizada pela Igreja para cooptar fiéis e para trans-
mitir a ideia do que seria uma vida cristã foi a promoção do culto aos santos.
Por meio de relatos hagiográficos, ou seja, que narravam a vida e os milagres
do santo protagonista, o clero difundia modelos de conduta e reforçava o seu
papel de condutor de almas. As relíquias do santo atraíam para a Igreja fiéis
desejosos de que estes intercedessem a seu favor, possibilitando a captação de
recursos por meio das ofertas.

ATIVIDADES
01. Apresente, de maneira sucinta, as diversas visões sobre a Idade Média que foram esta-
belecidas ao longo do tempo pelos estudiosos;

02. Elabore uma tabela que explique as contribuições do romanismo, do germanismo e do


cristianismo para a formação da sociedade medieval.

26 • capítulo 1
EXERCÍCIO RESOLVIDO
03. Neste exercício, o aluno deve destacar as características das interpretações estabele-
cidas pelo Renascimento, Iluminismo, Romantismo e Escola dos Annales. No primeiro caso,
cabe ressaltar a valorização dos saberes e artes greco-romanas, em detrimento da medieval,
considerada “decaída”. No Iluminismo, frisa-se a consolidação da imagem pejorativa da Idade
Média, com críticas ao poder da Igreja e o suposto obscurantismo do período, uma vez que os
iluministas tinham uma postura racionalista e antieclesiástica. No que tange ao Romantismo,
salienta-se uma primeira valorização da Idade Média, ligada ao sentimento nacionalista e mís-
tico típico do início dos oitocentos. Por último, a Escola dos Annales surge com a proposta de
analisar a Idade Média a partir dos seus próprios olhos, recorrendo ao diálogo interdisciplinar
para uma compreensão mais apurada e crítica daquela época e menos idealizada.

04. No que concerne ao romanismo, o aluno deve destacar: latim, a ideia de serviço público,
a noção de Império, o Direito, os saberes etc. Quanto ao germanismo, deve mencionar: as
relações pessoais e patrimoniais de poder, o belicismo e a ideia de juramento de fidelidade
entre guerreiros. Enfim, deve sublinhar o papel de aglutinador que o cristianismo assume,
propiciando a fusão entre essas duas tradições.

REFLEXÃO
Após as discussões expostas neste capítulo, torna-se evidente que definir a Idade Média em
poucas palavras não é tarefa das mais fáceis. Primeiramente, por ser um período em torno
de mil anos de história, com sucessivas mudanças de contexto. Em segundo lugar, porque, a
despeito da crítica historiográfica atual, ainda persistem determinadas imagens idealizadas
do período medieval, que tendem à perspectiva negativa.
Como vimos, existem duas imagens idealizadas recorrentes no imaginário popular quan-
do o assunto é Idade Média: uma por demais negativa, que a caracteriza como um período de
trevas; outra muito positiva, que observa entusiasmada o tema literário das guerras e da cava-
laria. Ambas surgiram em momentos históricos precisos. A primeira emerge no Renascimen-
to e se consolida no Iluminismo; a segunda surge com os valores defendidos no Romantismo.
O movimento de renovação historiográfica da Escola dos Annales, do qual participaram
também medievalistas influentes, descartaram ambas as concepções. Por meio do diálogo
interdisciplinar e por uma nova postura crítica ante as fontes, começou-se a dar maior aten-

capítulo 1 • 27
ção às concepções de mundo dos próprios medievais. Tentou-se, assim, maior distanciamen-
to dos juízos de valor no estudo do período medieval.
A compreensão da transição da Antiguidade para a Idade Média também foi objeto de
debate. Tradicionalmente, autores como Edward Gibbon caracterizaram os últimos séculos
do Império Romano como uma época de decadência civilizacional e que terminaria numa
época de barbárie. No pós-Segunda Guerra Mundial, autores como Marrou e Peter Brown
apresentariam a ideia de Antiguidade Tardia, na qual a transição foi marcada por grande
continuidade da época romana. Por fim, estudos brasileiros a partir de Hilário Franco Júnior
propuseram o modelo explicativo da Primeira Idade Média, em que é sublinhada a existência
de características mais propriamente medievais do que antigas nos séculos de transição.
Cabe indicar a necessidade de se compreender que, na formação da sociedade medie-
val, houve contribuições da cultura já estabelecida no Ocidente (romanismo) e dos povos que
foram migrando e se estabelecendo (germanismo). O cristianismo consistiu justamente na
tradição que possibilitou a fusão coesa entre duas sociedades muito distintas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMALVI, Christian. Idade Média. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. (Orgs.) Dicionário
Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: EDUSC, 2002, 2v. p. 537-551
FRANCO Jr., Hilário. A Idade Média. Nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 1996.
SILVA, Paulo Duarte. O debate historiográfico sobre a passagem da Antiguidade à Idade Média:
considerações sobre as noções de Antiguidade Tardia e Primeira Idade Média. Signum, v. 14, n.1, p.
73-91, 2013.
BROWN, Peter. O Fim do mundo clássico: de Marco Aurélio a Maomé. Lisboa: Verbo, 1972.

28 • capítulo 1
2
Reinos germanos e
império carolíngio
2.  Reinos germanos e império carolíngio
No capítulo anterior, dentre outros aspectos, debateu-se sobre a transição da
Antiguidade para a Idade Média, destacando-se as diversas interpretações
historiográficas a respeito. Além disso, avaliou-se o papel do romanismo, do
germanismo e do cristianismo no decorrer do processo de formação do mun-
do medieval.
Os últimos séculos de existência do Império Romano foram marcados por
uma série de instabilidades, aliadas a um processo de migração de grupos ger-
mânicos para o interior do seu território. No Ocidente, a unidade imperial seria
substituída pela pluralidade de reinos. O objetivo deste capítulo é apresentar
o novo cenário ocidental que se sucede à instalação dos grupos germânicos no
território outrora imperial.

OBJETIVOS
•  Reconhecer os reinos germanos dos séculos VI – VIII;
•  Discutir as relações de poder, relativizando o poder da Igreja e sua união no período;
•  Trabalhar a relação entre os reinos;
•  Discutir o papel das disputas militares no processo histórico que permite a chegada dos
carolíngios ao poder;
•  Apresentar as características socioculturais do Império Carolíngio, associando ao juramen-
to de fidelidade.

2.1  O conceito de reinos germanos

Foi no decorrer do período republicano que Roma começou o seu processo de


expansão territorial. Por meio da anexação de regiões diversas, obteria a hege-
monia e a dominação ao redor do Mediterrâneo. Durante o Alto Império (27
a.C. – século II d.C.), Roma não apresentaria conquistas substanciais; porém,
manteria um domínio estável sobre as diversas áreas sob seu controle, tal como
testemunharia a incorporação de elementos de sua cultura em diversas regiões.
No decorrer do Baixo Império (século III d.C.), Roma experimentou diver-
sos problemas estruturais. Primeiramente, o fim das guerras de conquistas re-
sultou na diminuição do afluxo de escravos, base da economia agrária romana

30 • capítulo 2
– o que se agravou devido ao tratamento severo destinado aos escravos naque-
la sociedade, uma vez que reduzia muito a expectativa de vida dessa camada
da população.
Além disso, progressivamente, as províncias foram adquirindo maior auto-
nomia diante do poder imperial. A concessão da cidadania às elites locais, tal
como a outorga de dignidades imperiais e o reconhecimento de uma estrutura
burocrática e administrativa regionais deram prestígio aos dirigentes das áreas
conquistadas e organização institucional.
O território imperial era vasto demais. Para assegurar a hegemonia no en-
torno do Mediterrâneo, era necessário que Roma mantivesse um exército regu-
lar à disposição – o que, evidentemente, era cada vez mais oneroso ao Império.
O problema principal era a defesa das regiões fronteiriças: dada a sua extensão
geográfica, era muito difícil ao Imperador manter as áreas limítrofes com vigi-
lância e proteção constantes.
Conflitos internos, como as bagaudas, e as sublevações de lideranças mili-
tares contra o poder imperial também foram recorrentes no decorrer dos últi-
mos séculos da sociedade romana. O clima de insegurança propiciada por tais
convulsões e pela ausência de efetivo militar que assegurasse a proteção incita-
ram uma grande migração das cidades para o campo.

CURIOSIDADE
As bagaudas (em latim, bagaudae) foram uma série de revoltas ocorridas entre os séculos
III e V. Seus participantes eram provenientes de segmentos desprivilegiados da população
rural: camponeses, escravos, colonos que fugiram das suas obrigações fiscais e indigentes.
Os registros de que dispomos atualmente apontam para a Gália como primeiro foco de
revolta bagauda. Nos séculos subsequentes, há indícios de sublevações semelhantes na
Península Ibérica.

Observando esse conjunto de fenômenos, constata-se um processo de pau-


latina perda da autoridade imperial, da coesão institucional e da capacidade
romana de defender suas províncias. A divisão do Império em duas porções in-
dependentes – Ocidental e Oriental –, cada qual com o seu próprio imperador,
seria um dos desdobramentos principais desse processo.

capítulo 2 • 31
2.1.1  Da Germânia ao estabelecimento em territórios imperiais

Uma das regiões nas cercanias do Império Romano era a Germânia. O territó-
rio estava situado para além das margens dos rios Reno e Danúbio, alcançan-
do o rio Vístula. A origem do nome é incerta. O geógrafo Estrabão, no século
I, escreveu que adviria da palavra germen; daí, germani indicaria aqueles que
estariam unidos pelo sangue. Autores no início do século XX, como Ferdinand
Lot, Mitré e Musset, desenvolveram teorias a respeito, contudo sem estabelecer
qualquer consenso.

COMENTÁRIO
Estrabão (63-24 a.C.) foi um pensador grego proveniente da cidade de Ponto, na região da
Amásia, hoje pertencente à Turquia. Foi autor da Geografia, monumental tratado em que des-
creve diversas localidades do mundo antigo. Era entusiasta do imperialismo romano, ainda
que admirasse a cultura grega na qual foi formado.

O começo do povoamento da região é incerto, assim como os nossos sabe-


res a respeito da organização social, política, religiosa e cultural dos grupos
humanos ali estabelecidos são muito lacunares. Para o período anterior às mi-
grações da Germânia para o Império Romano do Ocidente, a principal fonte de
conhecimento disponível ainda é o relato A Germânia, escrito por Tácito.

COMENTÁRIO
Caio Cornélio Tácito (55-120 d.C.) foi um orador e político romano que ocupou diver-
sos cargos na hierarquia institucional do funcionalismo público. Além da Germânia, em que
descreve a organização e os costumes dos povos daquela região, foi autor dos Anais e das
Histórias, em que narra a trajetória do Império Romano. Nos Anais constam as primeiras
referências aos boatos de que Nero causou propositalmente o incêndio que devastou Roma,
apesar de os cristãos terem sido culpabilizados.

A despeito da diversidade que figurava entre os diversos agrupamentos ger-


manos, havia um conjunto de características comuns a todos. A sociedade era

32 • capítulo 2
essencialmente patriarcal e patrilinear, sendo as relações de parentesco, de
sangue, um aspecto estruturante primordial – a pertença a um clã era o que
definia seu lugar naquele contexto, sobretudo quando nascido numa estirpe
nobre. Os homens livres e aptos ao manejo de armas consistiam no segmento
social mais elevado, seguido dos semilivres (oriundos dos povos vencidos) e dos
escravos e domésticos.
A sociedade germânica era militarizada. A atividade guerreira exercia uma
função destacada no imaginário e na vida social dos germanos. Em cada gru-
po, havia um chefe guerreiro, que era sempre acompanhado do seu séquito de
guerreiros (comitatus). Em troca do juramento de fidelidade e do serviço em ar-
mas, os membros do comitatus recebiam benefícios, sobretudo na distribuição
do botim de guerra. A esse respeito, lê-se na Germânia de Tácito:

É desonroso para o príncipe ser excedido em bravura no campo de batalha pelos seus
soldados, como é desonra para estes, em igual circunstância, não igualar o príncipe
em valor. É porém, acima de tudo, opróbrio e covardia, sobreviver ao seu chefe morto
na peleja. (...) Os príncipes combatem pela vitória e os que o obedecem, pelo príncipe.
Se a comunidade a que pertencem cai na pasmaceira e no ócio, durante longo tempo,
a mocidade nobre passa, com armas e bagagens, alegremente, para os países que se
acham em guerra (...). Com tal estado de espírito, só é possível mantê-la, pois, sob a
violência das armas. E torna-se impossível aos príncipes sustentar tal comitiva a não
ser por meio de pilhagem e da guerra, portanto (...) (TÁCITO. Germânia. Disponível em:
<http://www.ricardocosta.com/traducoes/textos/germania-98-d-c>. Acessado em
maio de 2016).

Notam-se a fluidez, efemeridade e a instabilidade da formação política ger-


mânica. A despeito dos laços de fidelidade estabelecidos, a unidade do grupo
só era mantida enquanto a liderança carismática conseguia comandar investi-
das militares sucessivas. Do contrário, os guerreiros debandavam. Daí o cons-
tante processo de surgimento e desaparição de determinados grupos.
A economia variava conforme as condições geográficas e climáticas de cada
região. Normalmente, aliavam pecuária, pesca, caça e agricultura. Devido às técni-
cas de plantio e às condições do solo, os recursos da terra logo se esgotavam; con-
sequentemente, havia sempre a demanda por novas áreas para plantação. Dessa
forma, os germanos viviam de maneira seminômade. Desenvolveram também o
comércio, particularmente com o Império Romano a partir do século III d.C.

capítulo 2 • 33
De acordo com estudos, os germanos provavelmente não tinham casta sa-
cerdotal, instituição clerical ou templos. Ao que tudo indica, os cultos ocorriam
em bosques, cumes de montanhas ou próximos a árvores e fontes. Adoravam a
natureza e suas forças. O belicismo dessa cultura também permeava o pensa-
mento religioso: diversas divindades tinham caráter guerreiro.
Os primeiros contatos registrados entre romanos e germanos datam do fi-
nal do século II a.C. As tentativas de conquista da Germânia empreendidas por
Roma, como aquelas realizadas por Augusto e Tibério, fracassaram. No decorrer
do tempo, diversas estratégias foram adotadas em relação aos germanos: fomen-
to de intrigas entre os grupos, diplomacia, ataques preventivos, e assim por dian-
te. O que prevaleceu, no entanto, foi a formação do limes, ou seja, na delimitação
de uma linha estratégica defensiva que acompanhava as fronteiras do império.
Tradicionalmente, os germanos eram vistos como “bárbaros”, tal como os
romanos designavam todos aqueles povos que não conheciam o latim nem par-
tilhavam dos costumes romanos. A categoria era pejorativa e encontrava refe-
rência nas tradições intelectuais gregas e latinas. A ideia de que os germanos
eram “bárbaros” deve ser, portanto, relativizada.
Cabe salientar que o limes não era constituído por muros e fortalezas que
asseguravam uma fronteira intransponível. Muitas vezes, desempenhava mero
papel ideológico, uma vez que demarcava as áreas geográficas em que suposta-
mente ainda persistiria a romanidade, distinguindo-as de onde prevaleceria a
barbárie. Na prática, era difícil identificar quem era romano e quem era germâ-
nico nessas regiões, dada a assimilação cultural que ocorria de ambos os lados,
propiciada pela proximidade e pelas trocas comerciais.
Em algumas ocasiões, alguns germanos eram recrutados como militares
nas tropas romanas. Os primeiros recrutamentos consistiam na convocação
esporádica de indivíduos para trabalharem em missões pontuais, na condição
de mercenários. Com o tempo, alguns guerreiros germânicos se tornaram sol-
dados regulares das legiões romanas – como, por exemplo, Estilicão.

COMENTÁRIO
Estilicão nasceu na região da Germânia, sendo filho de um vândalo que serviu no exército
romano na época do governo de Valente. Sua mãe, em contrapartida, detinha a cidadania
romana. Após ser recrutado nas legiões romanas, teve uma carreira militar ascendente, tendo
recebido missões de grande importância.

34 • capítulo 2
Apesar de sua origem germânica, Estilicão permaneceu subordinado às autoridades im-
periais. Além disso, preferiu os títulos, dignidades e símbolos romanos aos germânicos.

A partir do século III, o cenário se altera na Germânia. As diversas entidades


que existiam começam a confluir para a formação de agrupamentos maiores,
comportando diversas tribos. Dessa maneira, as forças militares germânicas se
tornaram mais poderosas.
Outra modificação contextual significativa naquele contexto foi o cresci-
mento demográfico germânico. Com o aumento da população, a competiti-
vidade dentro da própria Germânia se tornou maior, incitando a atração pela
pilhagem das ricas terras romanas e pela conquista das áreas de cultivo existen-
tes no lado oposto do limes.
O resultado dessas mudanças foi uma série de incursões germânicas ao
Império Romano. As dificuldades em guarnecer com efetivos militares devidos
as regiões fronteiriças do território romano contribuíram para o razoável su-
cesso dessas empreitadas germânicas. Ainda assim, por meio de uma série de
tratados, Roma conseguiu estabelecer um equilíbrio de forças com os germa-
nos – situação que prevaleceu no decorrer do século IV.
Contudo, seria a pressão huna, aliada ao crescimento das dificuldades so-
ciopolíticas imperiais, que precipitariam novamente os germanos para dentro
do Império Romano. Os germanos cada vez mais ocupariam regiões inteiras do
território romano e estabeleceriam governos independentes em relação ao po-
der imperial. Tal processo culminaria com a destituição do último imperador
do Ocidente em 475, pelas tropas hérulas lideradas por Odoacro.

CURIOSIDADE
Os hunos eram provenientes da região da Ásia Central, caracterizada por planícies com
vegetação rasteira – um tipo de relevo conhecido como estepe. Originalmente, eram forma-
dos por pequenos grupos ligados entre si por laços de parentesco sanguíneo e de nature-
za nômade. Eram essencialmente guerreiros e dominavam técnicas avançadas de combate
montado e de arquearia, valendo-se de estratégias de ataque rápido e flexível.
No século V, essas tribos dispersas se uniram sob o comando do chefe guerreiro carismá-
tico Átila e realizaram ofensivas em regiões cada vez mais distantes do seu local de origem.

capítulo 2 • 35
Comumente, incorporavam às suas fileiras guerreiros dos povos conquistados, o que aumentou
consideravelmente o exército dirigido por Átila, além do dotá-lo de um caráter multiétnico.
As tropas hunas exerceram perigo militar para o Império Romano, chegando a atacar
seus territórios. As investidas de Átila contra os romanos fomentaram o Império a firmar
alianças com povos germânicos.
Após a morte de Átila, os guerreiros hunos debandaram. Não havia organização institu-
cional que conferisse coesão maior ao grupo, uma vez que só era unido pelo perfil carismá-
tico da liderança combativa.

Tradicionalmente, o processo de estabelecimento dos povos germânicos no


Ocidente latino é referido como “invasões bárbaras”. Tal noção é muito disse-
minada não apenas por uma historiografia mais antiquada, mas também no
senso comum. Segundo essa ótica, os germanos obtiveram mediante uso da
força e brutalidade as terras antes pertencentes aos romanos.
Contudo, essa ideia seria inapropriada. Primeiramente porque, tal como
vimos, “bárbaro” era uma forma pejorativa de o romano se referir ao germano,
inferiorizando-o; a reprodução acrítica da expressão constituiria na incorpora-
ção da compreensão preconceituosa romana sobre os homens da Germânia.
Em segundo lugar, porque não necessariamente a acomodação dos germa-
nos em determinada área resultaria do embate bélico. Os imperadores roma-
nos, por vezes, firmavam pactos de federação com os germanos, ou seja, ce-
diam regiões dentro do império para eles se fixarem em troca do serviço militar.
Uma vez estabelecidos, os germanos deveriam permanecer naquela região sob
a condição de foederatii.
Por que Roma cederia regiões vastas para que os germanos se fixassem? Na
estratégia geralmente adotada pelos imperadores, aceitar um povo como foede-
ratii consistiria numa forma de obter um aliado militar importante contra um
inimigo mais forte, ou, pelo menos, neutralizar um adversário em potencial.

2.1.2  Características gerais dos reinos romano-germânicos

Em 475, o último imperador romano do Ocidente foi destituído. A partir daí,


o Império Romano enquanto entidade política deixaria de existir, persistindo,
entretanto, certas práticas socioculturais. Conforme exposto no capítulo ante-
rior, a Idade Média adviria da paulatina fusão entre romanismo e germanismo,
tendo o cristianismo como mediador.

36 • capítulo 2
Os reinos romano-germânicos resultam justamente desse processo de as-
sentamento de grupos germânicos em cada vez mais territórios imperiais, até a
completa desaparição do Império Ocidental. No Império Romano do Oriente,
tal fenômeno não ocorreu: a porção oriental subsistiu às conturbações conjun-
turais que perpassaram o Mediterrâneo entre os séculos III e V, dando margem
ao surgimento do que hoje denominamos Império Bizantino.
Houve, então, no Ocidente, uma pluralidade política decorrente da der-
rocada do sistema imperial. Em cada reino, observa-se a constituição de uma
realidade distinta, decorrente das especificidades das estruturas sociais, eco-
nômicas e culturais preexistentes ao estabelecimento germânico naquela área.
Contudo, há certos elementos em comum, cabendo aqui destacá-los.
Primeiramente, os recém-chegados tiveram de manter relações com as po-
pulações já estabelecidas. Inicialmente, houve a tendência à proibição do ma-
trimônio entre romanos e germânicos – que provavelmente devia ser de fato
cumprida apenas nos estratos mais privilegiados da sociedade, passando prati-
camente despercebida entre os segmentos sociais populares.
Havia certa cisão, portanto, entre germanos e romanos. Para além da inter-
dição ao casamento misto, por vezes eram adotadas legislações diferentes para
os romanos e para os germanos.
Com o decorrer do tempo, tal diferenciação ficou nuançada, por vezes im-
perceptíveis. Distinguir entre romano e germano não só se tornou tarefa difícil
de ser empreendida, como também sem funcionalidade prática. As proibições
ao matrimônio entre os dois grupos tenderam a ser abolidas.
Em segundo lugar, deve-se atentar para a preservação de determinados dis-
positivos romanos de poder nos reinos romano-germanos. O próprio título de
rei (rex) vinha de um título honorífico delegado pelo imperador. Há referências
de líderes germanos que, ao se estabelecerem, abandonam suas vestes guer-
reiras e adotam trajes latinos. Em muitos reinos, o Direito Romano e algumas
instituições que já existiam seguiram tendo validade.
Um caso interessante é a continuidade da ideia de império. Nenhum dos
reis germânicos reivindicou para si o título de imperador até finais do século
VIII. Teodorico, rei ostrogodo do século VI, tentou obter hegemonia sobre os
demais reinos por meio de alianças matrimoniais, o que não configurou uma
estratégia para sua elevação à condição de imperador propriamente dita – ain-
da que seu trono estivesse localizado na cidade de Roma. Em contrapartida,
dialogava-se com o Império Bizantino, que cumpria muitas vezes o papel de
legitimador de sucessões ao trono e de mediador de conflitos políticos.

capítulo 2 • 37
Em terceiro lugar, havia uma cooperação entre as monarquias e a Igreja
local, algo vantajoso para ambos os lados. A conversão do imperador romano
Constantino, ainda no século IV, iniciou a tendência à superposição entre a
estrutura eclesiástica e a estrutura administrativa do Império: concediam-se
ao clero funções públicas, tais como os direitos delas provenientes. Os reinos
romano-germânicos deram continuidade a esse encaminhamento, delegan-
do cargos institucionais ao clero. Assim, em algumas regiões, era possível ver
homens da Igreja com autorização para cunhar moedas ou cobrar impostos.
Realizando tais cessões ao corpo eclesiástico, cooptava-se uma instituição ra-
zoavelmente organizada e coesa para o cumprimento de funções necessárias.
Outro motivo que tornava interessante a aliança entre Igreja e realeza: o dis-
curso de legitimidade política que os intelectuais eclesiásticos eram capazes de
prover. A Igreja reivindicava para si o papel de intermediária entre a sociedade
mundana e o além, assegurando para os fiéis os meios para a salvação das suas
almas. Numa sociedade em que progressivamente a compreensão de mundo e
das estruturas socioculturais eram permeadas por referências cristãs, a apro-
ximação do rei em relação ao clero contribuiria para atribuir ao poder político
uma procedência divina, justificando-o.
No pensamento político do período, o rei reinava para cumprir uma missão
delegada por Deus: conduzir seus súditos para a salvação. O rei que não com-
batesse os desvios da doutrina cristã e a disseminação do pecado estaria em
desvio em relação ao seu dever.
Para ser bem-sucedido no zelo pela alma dos seus subordinados, o monarca
deveria ser um exemplo a ser seguido por todos. Portanto, o monarca ideal desem-
penharia uma reta conduta e portaria virtudes. O tirano, por sua vez, seria aquele
que governasse e apenas exibisse vícios e que precipitasse seus homens à danação.
A destituição do monarca tirânico e a sublevação, inclusive em armas, contra o seu
poder seriam consideradas necessárias e justificáveis pelos desígnios divinos.
Um exemplo significativo dessa perspectiva foram os escritos de Isidoro de
Sevilha, célebre bispo da Península Ibérica cuja produção intelectual foi muito
consultada durante todo o período medieval. Leia abaixo uma passagem dos
“Livros das Sentenças”, em que discorre sobre o poder régio:

38 • capítulo 2
Em proveito do Governo dos povos Deus deu aos príncipes a dignidade de chefes e
quis que eles governassem aos que nascem e morrem igual a eles. Logo, a dignidade
do príncipe deve aproveitar os povos, não prejudicá-los; (...) de sorte que seja verda-
deiramente útil a insígnia do poder e que se empregue o dom divino para a segurida-
de dos membros de Cristo.
(ISIDORO DE SEVILHA. El libro 2o y 3o de las Sentencias. Sevilla: Apostolado Maria-
no, 1991. Capítulo XLIX, p. 128)

Essa maneira de pensar o poder régio deixava questões em aberto, que


iriam perpassar o restante do período medieval. Sendo o dever do rei condu-
zir as almas dos que pertenciam ao seu reino, seu papel não seria extensível
também ao clero? No entanto, o monopólio do sagrado ficava a cargo da insti-
tuição eclesiástica, a Igreja buscava assistir ao processo de sucessão ao trono e
de atuação do monarca para garantir que estes procedimentos ocorressem em
conformidade com o que julgava ser os desígnios divinos. Tal quadro nos faz
pensar: como deveria ser a relação entre o poder espiritual e o poder secular no
conjunto da medievalidade?
A questão suscitou diversas respostas no decorrer do tempo. No período
dos reinos romano-germânicos, uma resposta conhecida foi dada pelo bispo
Remígio de Reims, expressa numa carta dirigida ao então recém-convertido
Clóvis, rei dos francos. Segue passagem:

Não há novidade no fato de que o senhor agora está se tornando o que seus pais
sempre foram. Antes de qualquer coisa o senhor deve agir de modo que o julgamen-
to de Deus não o abandone e que seus méritos o mantenham nas alturas a que o
senhor atingiu com sua humildade. Pois, como diz o provérbio, os atos dos homens
são julgados. O senhor deve associar-se com conselheiros capazes de honrar sua
reputação. Seus atos devem ser castos e honestos. Deve ceder aos seus bispos e
sempre recorrer aos seus conselhos. Se o senhor estiver em bons termos com eles,
sua província estará mais bem preparada para permanecer firme.
(REMÍGIO DE REIMS. Carta do bispo Remígio de Reims para Clóvis. Apud HILL-
GARTH, J. N. Cristianismo e Paganismo. 350-750. A conversão da Europa Ociden-
tal. São Paulo: Madras, 2004. p. 90)

capítulo 2 • 39
Em suma, na época de emergência dos reinos romanos-germânicos, polí-
tica e religião não constituíam estruturas separadas da sociedade – a ideia de
um Estado laico e separado de qualquer instituição religiosa só surgiria séculos
mais tarde, com o Iluminismo. As duas esferas se entrelaçariam de tal forma
que seriam indissociáveis e sem fronteiras claras entre si. A política era neces-
sariamente uma questão religiosa; e a religião, necessariamente, uma ques-
tão política.

2.2  Hérulos e ostrogodos: de soldados a reis

As primeiras menções aos hérulos em fontes romanas derivam de meados do


século III. No século V, foram um dos povos dominados pelos hunos sob a li-
derança de Átila. Com a morte do chefe guerreiro, os hérulos se separaram dos
soldados provenientes das estepes e subjugaram outros grupos.
Sob a liderança de Odoacro, penetraram na Península Itálica e conse-
guiram alcançar a cidade de Roma, onde destituíram o imperador Rômulo
Augusto. Odoacro, então, entregou as insígnias imperais a Zenão I, imperador
de Bizâncio, que, por sua vez, não tentou promover alguém à sucessão impe-
rial no Ocidente. Com isso, Odoacro se tornou rei naquela região, e o Império
Romano se dissolveu politicamente.
Os ostrogodos surgiram da cisão dos godos (da qual se originou, ainda, os
visigodos), conforme Jordanes relata na narrativa historiográfica Getica, escrita
no século VI. Presente no Império Romano desde o século IV sabe-se que luta-
ram junto aos hunos até a morte de Átila.
O imperador bizantino Zenão I, receoso com as investidas militares de
Odoacro a outras regiões, decidiu retirar o seu apoio aos hérulos e oferecer seu
suporte aos ostrogodos, na época liderados por Teodorico. No final do século
V, ocorreram diversos embates entre hérulos e ostrogodos, que cessaram ape-
nas com um pacto entre os dois reis de governo conjunto na Península Itálica.
Contudo, efetivamente foi Teodorico que prevaleceu na ação política.
O reinado dos ostrogodos na região perduraria de forma estável até a déca-
da de 540, ou seja, até o imperador bizantino Justiniano alcançar a Península
Itálica durante o seu processo de expansão territorial. Após sucessivas derrotas
militares, os ostrogodos desapareceram.

40 • capítulo 2
2.3  Suevos, vândalos e visigodos: a Península Ibérica

Os suevos foram um povo germânico que se estabeleceu na Península Ibérica


em 409, numa região ao noroeste conhecida como Galícia. A principal cidade
do reino foi Braga, sobretudo em decorrência dos esforços do bispo de proce-
dência húngara Martinho em sua elevação.
Ao longo da sua existência, o reino foi marcado por disputas internas e pela
instabilidade política. Ainda assim, conseguiram resistir às investidas de ou-
tros povos, como os alanos e os vândalos. Seu fim ocorreu em 585, quando fo-
ram conquistados pelos visigodos.
Os vândalos penetraram nos territórios imperiais no começo do século V,
precipitados pelos ataques liderados por Átila, o Huno. Em 409, adentraram na
Península Ibérica, sob o comando de Gunderico.
Sob o comando de Genserico, os vândalos atravessaram o Estreito de
Gibraltar e penetraram no norte da África, onde estabeleceu seu reino. Após
obterem o controle de Cartago, exerceram forte atividade de pirataria, atacan-
do navios que cruzavam o Mediterrâneo. Atacaram regiões costeiras do sul da
Península Itálica, chegando a saquear Roma em 455. O reino vândalo, tal como
o ostrogodo, chegou ao fim em 534 por ocasião da expansão territorial bizanti-
na durante o governo de Justiniano.
Tal como os ostrogodos, os visigodos consistiam numa das divisões do povo
godo. Após sucessivos embates contra o exército romano ocidental, o impera-
dor Teodósio estabeleceu um pacto de federação, cedendo a eles uma região
nos Bálcãs em troca de serviços militares. Entretanto, Alarico, ao ascender à
liderança visigótica, rompeu o acordo com Roma e chegou a saquear a cidade,
em 410 – acontecimento de ampla repercussão na época.
Sob o comando de Ataulfo, o reino visigodo foi estabelecido em 418, no
sul da Gália e da Península Ibérica, tendo Toulouse como centro de poder.
Permaneceram na região até o ano de 509, quando perderam a Batalha de
Vouillé para os francos, resultando na transferência da monarquia visigoda
para a Península Ibérica.
Com tal deslocamento, o novo centro de poder da realeza visigoda pas-
sou ser a cidade de Toledo. Inicialmente, os visigodos professavam a fé aria-
na. Visando ao fortalecimento da sua autoridade por meio do reforço de uma

capítulo 2 • 41
instituição eclesiástica reforçada, o rei Leovigildo tentou promover a unidade
do reino por meio da imposição do credo ariano. Tal iniciativa resultou em re-
sistência por parte da nobreza católica, que, sob a liderança de Hermenegildo,
rebelou-se contra o monarca.
Apesar da vitória sobre a revolta católica, os episódios demonstraram a im-
possibilidade de construção da hegemonia régia sob um projeto de unidade
pelo arianismo. Por isso, o sucessor ao trono, Recaredo, converteu-se ao credo
niceno e, em 589, estabeleceu a religião como única do reino. A partir de en-
tão, todos os monarcas professoram a fé nicena, embora houvesse ainda bispos
arianos em algumas localidades do reino.
Na segunda metade do século VII, o reino visigodo testemunhou uma série
de disputas internas e instabilidade política. Por conta da fragilidade estrutu-
ral decorrente dos sucessivos conflitos, os árabes conquistaram com razoável
facilidade a maior parte da Península Ibérica e depuseram Rodrigo, o último
rei visigodo.

2.4  Francos e as relações de poder

A constituição do povo franco ocorreu provavelmente durante os séculos II e III,


por meio da reunião de vários povos diferentes. O imperador Juliano concedeu
parte considerável da Gália belga aos francos no século IV, instituindo-os como
povo federado. Nessa condição, auxiliaram na proteção das regiões fronteiriças
de invasores. Com o tempo, entretanto, iniciaram uma empreitada expansio-
nista bem-sucedida.
Em 493, o rei franco Clóvis converteu-se ao catolicismo ortodoxo niceno. Tal
acontecimento firmou o compromisso mútuo entre a realeza franca e a Igreja
da Gália. Outro desdobramento importante foi o recurso à profissão comum
como instrumento diplomático para lidar os povos das cercanias.

2.5  Império carolíngio: cultura e Igreja

Desde o início do século V até o ano de 751, os francos foram governados pela
dinastia merovíngia – nome de origem incerta, mas atribuída na época a uma
figura mítica conhecida como Meroveu. Foram os carolíngios que sucederam
os merovíngios no poder.

42 • capítulo 2
O primeiro ancestral carolíngio do qual temos notícia é Pepino, o Velho,
também denominado Pepino de Landen, que viveu em meados do século VII.
Exerceu o cargo de mordomo do palácio. Ao contrário do que a conotação atual
da palavra sugere, o exercício da administração doméstica do palácio era um
cargo importante e de prestígio, tradicionalmente ocupado por membros proe-
minentes da elite franca.
Com o tempo, os carolíngios foram acumulando prestígio e o apoio da no-
breza e do clero do reino franco, à medida que a realeza franca merovíngia pau-
latinamente ia perdendo sua força. Além disso, os mordomos descendentes de
Pepino de Landen começaram a desempenhar também funções militares, o
que lhes assegurou ainda mais poder.
Carlos Martel, mordomo entre 717 e 741, desempenhou papel destacado no
processo de acúmulo de poder pelos carolíngios no contexto franco. Atendendo
a uma requisição da Igreja, lutou contra os muçulmanos na Batalha de Poitiers,
em 732. A sua vitória representou o fim das tentativas do Islã em avançar para
além dos Pirineus, assim como aumentou ainda mais o renome da dinastia.
O seu sucessor no cargo de mordomo foi Pepino, o Breve. Em 748, requisi-
tou consulta ao bispo Zacarias sobre quem deveria governar os francos, rece-
bendo resposta favorável aos carolíngios. Após a deposição do rei Childerico
III, último rei merovíngio, o bispo Bonifácio coroou Pepino (751). Após esses
acontecimentos, atuou apoiando os interesses do episcopado romano.
Contudo, coube a Carlos Magno obter maior estrutura e solidez para o exer-
cício do poder político. Tornou-se rei dos francos em 768 e rei dos lombardos
em 774, após sair vitorioso no confronto a esse povo.
Particularmente importante foi a coroação de Carlos Magno como impera-
dor em Roma, no ano 800, pelo bispo Leão III. Essa elevação do rei à dignidade
imperial foi possibilitada pelo processo de debilitação do Império Bizantino,
decorrente das guerras contra os sassânidas no século VII e, posteriormente, da
perda de vários territórios para os árabes.
O título imperial atribuía a Carlos Magno novas prerrogativas de poder.
Imperador é um cargo de projeção universalista – logo, acima da condição ré-
gia, de natureza regional. Associando o discurso religioso ao intento de maior
projeção política, a coroação foi interpretada como promoção do rei dos fran-
cos e lombardos à condição de imperador de todos os cristãos – inclusive os que
estivessem em regiões afastadas do centro de poder carolíngio. Com isso, podia

capítulo 2 • 43
reivindicar a subordinação de outras monarquias e a interferência em regiões
distantes, sob a alegação de fazê-lo em favor dos fiéis.
Carlos Magno empreendeu incursões militares em outras regiões no decor-
rer do seu reinado: Aquitânia, o reino lombardo, os reinos saxônicos, a região do
vale do Danúbio habitado pelos ávaros, a Frísia Oriental e as áreas dominadas
pelos bretões. Algumas dessas ofensivas resultaram em anexações territoriais.
Luís, o Piedoso, foi coroado em 814, sucedendo, portanto, Carlos Magno
após a sua morte. Ainda que eventualmente tenha tido de lidar com disputas
internas, inclusive a que resultou em sua deposição temporária entre 833 e 834,
conseguiu manter a unidade do território conquistado pelo seu antecessor.
Após a morte de Luís, o Piedoso, em 840, seu filho Lotário assumiu a realeza.
Contudo, seus irmãos Carlos, o Calvo e Luís, o Germânico rebelaram-se contra
Lotário. Os dois se uniram, estabeleceram em 842 o Juramento de Estrasburgo,
em que firmavam o compromisso de ajuda mútua contra o rei. Após derrotas,
Lotário cedeu às pressões dos irmãos, assinando em 843 o Tratado de Verdun,
dividindo o território franco em três reinos independentes.

2.5.1  Renascimento carolíngio

Por muito tempo, prevaleceu na historiografia a compreensão de que o Renas-


cimento representou uma ruptura com a Idade Média, uma vez que reivindi-
cava novos ideais por meio do resgate dos referenciais clássicos. Ao longo do
século XX, diversos estudos surgiram relativizando essa hipótese. Hoje, muitos
medievalistas argumentam que determinados aspectos culturais e intelectuais
do Renascimento seriam tributários de fenômenos medievais.
O Renascimento Carolíngio seria uma referência às manifestações artís-
ticas, intelectuais e literárias produzidas entre os séculos VIII e IX. O termo
“Renascimento”, empregado nesse conceito, remeteria justamente ao retorno
à literatura antiga, particularmente a latina, mas em conformidade com o am-
biente cristão em que se desenvolveu.
No decorrer do século passado, predominou uma abordagem a respeito do
tema que destacava apenas a produtividade, a variedade e a qualidade da pro-
dução artística e literária. Estudos mais recentes, em contrapartida, cada vez
mais destacam as circunstâncias políticas e institucionais que propiciaram o
fenômeno. Para a compreensão da relação entre essa atividade criativa e o seu

44 • capítulo 2
contexto histórico, cabe antes identificar as principais inovações culturais do
período carolíngio.
Primeiramente, há notável preocupação em relação ao manejo do latim.
Buscavam-se a pureza do latim clássico e a conformidade com as suas sofis-
ticadas regras gramaticais. A capacitação no encadeamento argumentativo
organizado e eficaz, conforme os parâmetros da retórica clássica, foi muito
requisitada.
Dessa maneira, o retorno aos clássicos perpassou o período carolíngio. A
maior demanda pelo acesso aos textos antigos resultou na proliferação de ma-
nuscritos produzidos por monges copistas. Nessa atividade de cópia, ocorre-
ram transformações importantes. Por influência dos monges irlandeses, que
produziam sofisticadas iluminuras nas bordas das páginas e, eventualmente,
páginas inteiras, os copistas do continente começaram a produzir também
esse tipo de arte.

CURIOSIDADE
Iluminuras consistiam em desenhos coloridos realizados nas bordas das páginas. Ao lado
das pinturas feitas diretamente em paredes, constituíam a principal forma de expressão ar-
tística do decorrer da Idade Média. A pintura em tela só seria recorrente a partir do Renas-
cimento Italiano, propiciada principalmente pelo surgimento de inovações, como o cavalete.
Por serem demoradas e dependerem do acesso a materiais de difícil obtenção na época,
as iluminuras resultavam em custos maiores de produção do livro. Isso acentuava o caráter
luxuoso desse item: na época, os livros eram compreendidos antes como bens preciosos a
serem entesourados, com fins de ostentação prestigiosa. Sua disponibilidade, portanto, fica-
va restrita a alguns setores provenientes de estratos sociais mais elevados.

Houve, ainda, mudanças nas técnicas de escrita empregadas na elaboração


de documentos. A caligrafia gótica deu lugar à carolíngia, com letras unifor-
mes, de desenho claro, espaçamento entre as palavras e diferenciações entre
maiúsculas e minúsculas. A minúscula carolina, como também é conhecida,
teve variação em forma cursiva. Além disso, os escritos carolíngios emprega-
vam formas de pontuação.
Tal conjuntura adviria da atenção crescente à clara transmissão de ideias
e informações. O falar correto e preciso, de acordo com a percepção então em

capítulo 2 • 45
voga, implicaria numa mensagem divulgada em total conformidade com a ver-
dade, sem possibilidades de desvios interpretativos. A nova maneira de escre-
ver possibilitava uma forma mais rápida de redação, mas com maior facilidade
de compreensão do texto.
Ainda que constituindo um fenômeno cultural, não se pode ignorar seu de-
senvolvimento num determinado contexto social e político. Afinal, a cultura
não é algo à parte da sociedade, que paira sobre ela transcendendo a realidade
material. Pelo contrário, toda prática cultural é condicionada por outras estru-
turas fundamentais da sociedade, por mais que tal relação não seja evidente à
primeira vista.
No caso do Renascimento Carolíngio, o aumento da produção literária e os
esforços em tornar mais eficiente a transmissão de mensagens foram incenti-
vados pelo próprio imperador Carlos Magno. O projeto político carolíngio, com
pretensões à hegemonia da coroa sobre um vasto território, demandava certas
competências por parte dos seus colaboradores para assegurar a administra-
ção e a manutenção da autoridade de Carlos Magno. A circulação rápida de in-
formações, tal como a formação intelectual de leigos que atuariam no entorno
régio, era imprescindível ao sucesso do sistema institucional pretendido.
Outra demanda seria a boa prédica cristã por parte do clero. Conforme ante-
riormente esclarecido, a legitimidade do poder do Estado no decorrer da Idade
Média adviria do discurso religioso. Carlos Magno, sendo rei e imperador cris-
tão, governaria com o aval de Deus com o propósito de zelar pela fé. Ao impor ao
clero a necessidade de certo nível de instrução para o correto anúncio da doutri-
na ante os fiéis, o poder imperial estaria cumprindo as prerrogativas políticas
que justificavam a sua própria existência.

2.5.2  A Igreja carolíngia

Para além das transformações políticas e culturais que ocorreram no Império


Carolíngio, procederam-se mudanças importantes nas estruturas eclesiásticas,
decorrentes justamente da associação entre o Estado e a Igreja e das expectati-
vas dos grupos de poder naquela conjuntura.
Sendo o papel do Imperador assegurar a boa condução dos assuntos re-
ferentes à fé por meio do combate às possibilidades de desvio, houve o inte-
resse de promoção da uniformização institucional da Igreja. Carlos Magno
regulamentou a cobrança do dízimo, as práticas litúrgicas e promoveu a regra

46 • capítulo 2
beneditina como a única a ser adotada pelos mosteiros. Sobre esses aspectos,
cabe uma atenção mais minuciosa.
Doações à Igreja eram praticadas recorrentemente em todo o Ocidente cris-
tão latino. Alguns locais recebiam muitos peregrinos e fiéis das proximidades
quando possuíam relíquias de santos muito cultuados, gerando uma renda
para a igreja da região. A elite laica também por vezes assumia o papel de patro-
no da igreja local. Contudo, não havia nenhuma indicação de que dar à Igreja
qualquer quantia fosse algo obrigatório. O sínodo de Macon (585) instituiu a
obrigatoriedade do dízimo, prevendo excomunhão a quem não pagasse; contu-
do, o seu alcance era limitado. Com o apoio de Carlos Magno, a exigência dessa
contribuição à Igreja ganhou maior força.
A liturgia, por sua vez, adquiriu um patamar fundamental no imaginário
cristão carolíngio e conferiu respaldo às pretensões eclesiásticas de tutela da
sociedade. Nesse período, o culto era entendido como o cerne da vida cristã,
devendo ser rigorosamente conduzido pelo clero secular. A missa ganhava uma
simbologia complexa, expressa em uma série de ritos repletos de pormenores,
sendo dever de quem ministra seguir perfeitamente esse código.
O aumento do detalhamento do código litúrgico desencadeou o distancia-
mento entre o clero e a massa dos fiéis. Alguns elementos agravavam esse ce-
nário: a insistência do uso do latim clássico, estranho à fala cotidiana popular;
a celebração do culto com o padre de costas para o público e de frente para o
altar; a introdução do canto gregoriano, que exigia uma técnica vocal que não
era dominada pela maioria.
Por fim, outra ação transformadora das estruturas eclesiásticas no contexto
carolíngio foi a imposição da regra beneditina como a única a ser empregada
nos mosteiros. O movimento monástico, difundido no Ocidente latino desde
o século IV, foi promovido em sua modalidade cenobítica – ou seja, baseada
na vida comunitária estável, sob a liderança de um abade. Para garantir o en-
quadramento institucional dos mosteiros, a elite clerical impôs a observância
de uma regra monástica que legislasse cada aspecto do cotidiano no interior
dessas comunidades.
Entre os séculos V e VIII, foram escritas várias regras: “Regra do Macário”,
“Regra dos quatro pais”, “Regra de Paulo e Estefânio”, “Regra de Leandro de
Sevilha”, “Regra de Isidoro de Sevilha”, “Regra de Frutuoso de Braga”, “Regra
de Columbano”, só para citar algumas. A regra beneditina foi, a princípio,
mais um texto desse gênero. Escrita no início do século VI pelo monge Bento

capítulo 2 • 47
de Núrsia, que fundou um mosteiro na Península Itálica, tornou-se muito di-
fundida, sobretudo por conta da sua promoção pelo renomado bispo romano
Gregório Magno.
Bento de Aniane, célebre membro do clero carolíngio, empreendeu um proje-
to de compilação das diversas regras que até então circulavam no mundo cristão.
Sua atuação foi fundamental no processo de proibição da adoção de outras regras
que não a beneditina, sob a alegação de esta ser “perfeita” e por si só suficiente.

ATIVIDADES
01. Explique, de maneira sucinta, o porquê de a expressão “migrações germânicas” ser
preferível à de “invasões bárbaras” para se referir ao processo de estabelecimento dos gru-
pos provenientes da Germânia.

02. Caracterize as estruturas políticas e culturais que prevaleceram durante o perío-


do carolíngio.

EXERCÍCIO RESOLVIDO
03. A ideia de “invasões bárbaras” corresponde a uma perspectiva tradicional e negativa
a respeito do processo de estabelecimento dos grupos oriundos da Germânia em terras
outrora imperiais. “Bárbaro” era uma categoria pejorativa que os romanos empregavam para
aludir aos que não partilhavam dos seus costumes e não falavam o latim. “Invasão”, por sua
vez, seria um termo inadequado por dele se subentender uma forma de ingresso no território,
quando, na verdade, houve pactos em alguns casos. Por isso, a expressão “migrações germâ-
nicas” seria mais apropriada, porque é menos problemática.

04. Sobre o aspecto político, é importante destacar o papel da coroação imperial e de sua
pretensão a projetar seu poder sobre todos os cristãos, ainda que rei apenas dos francos
e lombardos. A associação entre Império e Igreja, num entrelaçamento estrutural que pen-
dia em favor do poder de Carlos Magno, é outro elemento fundamental. No que concerne
à conjuntura cultural, o aluno deve atentar-se às mudanças ocorridas durante o chamado
“Renascimento Carolíngio”, porém de forma crítica, buscando sublinhar os interesses que
permeavam o fomento às transformações da cultura.

48 • capítulo 2
REFLEXÃO
No decorrer do Baixo Império, a manutenção da coesão institucional e da autoridade imperial
sobre aquele vasto território era cada vez mais difícil. Por um lado, a economia era prejudi-
cada pela diminuição do afluxo de escravos pelo fim da guerra de conquistas, além das difi-
culdades na cobrança de impostos; por outro lado, as dificuldades de proteger e guarnecer
militarmente as províncias, cada vez mais autônomas, e o limes acentuaram a crise estrutural
romana.
Enquanto isso, grupos provenientes da Germânia começaram, a partir do século IV, a
adentrar no território romano, ora de forma pactuada, ora por meio de investidas militares.
Eram tidos pelos cidadãos de Roma como “bárbaros”, ou seja, categoria inferior por não co-
nhecerem o latim nem partilhar os costumes romanos.
Se, por um lado, o termo “bárbaro” é inapropriado para se referir ao germano, uma vez
que reproduziria a lógica pejorativa romana, por outro, a ideia disseminada de “invasões” seria
equivocada. O processo de estabelecimento dos germanos no Ocidente ocorreu após nego-
ciações entre as lideranças germânicas e o poder imperial, ou seja, sem necessariamente
advir de um conquista mediante violência. Os pactos de federação, em que o poder imperial
permitia o estabelecimento de um povo germânico em determinada área em troca de aliança
militar, demonstram justamente como algumas vezes o ingresso em terras romanas era em-
preendido a partir do diálogo.
Os diversos reinos romano-germânicos emergiram do paulatino esfacelamento da unida-
de imperial. Com a deposição do último imperador romano pelos hérulos liderados por Odoa-
cro, no Ocidente a estrutura de poder imperial não subsistiu. Entretanto, deve-se lembrar que
determinados aspectos da cultura e da lógica sociopolítica romanas permaneceram.
Nessas monarquias, houve aos poucos a fusão entre as elites já estabelecidas e aquelas
que estavam começando a se fixar, o que se acelerou após o fim da proibição dos casamen-
tos mistos. Títulos honoríficos e formas de prestígio e distinção social foram incorporados
pelas realezas em sua prática política. Além disso, houve uma aproximação entre Estado e
Igreja, vantajosa para ambos os lados.
Dentre os reinos que existiram, no decorrer do capítulo destacamos: hérulos e ostrogo-
dos, que se estabeleceram na Península Itálica; visigodos e suevos, situados na Península
Ibérica; vândalos, que, após sua expulsão da Península Ibérica, fixaram-se no norte da África;
e francos, que detinham o controle da Gália. Cada reino teve trajetória muito própria, repleta
de especificidades.
Um reino que merece atenção particular é o franco. Até o século VIII, o reino foi regido
pela dinastia merovíngia. No entanto, aos poucos os descendentes de Pepino de Landen,

capítulo 2 • 49
nobre que exercia o cargo de mordomo do palácio real, foram angariando prestígio e apoio
da nobreza e do clero. Com Pepino, o Breve, os merovíngios seriam destituídos; com Carlos
Magno, os francos conquistariam diversas regiões e se tornariam um Império. O Ocidente dos
séculos VIII e IX teve sua faceta religiosa, cultural, social e política em grande parte delimitada
pelos interesses da família carolíngia no poder e seus partidários.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FAVIER, Jean. Carlos Magno. São Paulo: Estação Liberdade, 2004.
GUERRAS, Maria Sonsoles. Os povos bárbaros. São Paulo: Ática, 1987.
HILLGARTH, J. N. Cristianismo e Paganismo. 350-750. A conversão da Europa Ocidental. São
Paulo: Madras, 2004
ISIDORO DE SEVILHA. El libro 2o y 3o de las Sentencias. Sevilla: Apostolado Mariano, 1991.
MELLO, José R. O Império de Carlos Magno. São Paulo: Ática, 1990.
TÁCITO. Germânia. Disponível em: http://www.ricardocosta.com/traducoes/textos/germania-98-d-c.
Acessado em maio de 2016.
VAUCHEZ, André. A espiritualidade na Idade Média ocidental (séculos VIII a XIII). Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1995.

50 • capítulo 2
3
Senhorio e
feudalidade
3.  Senhorio e feudalidade
Conforme destacado no primeiro capítulo, a Idade Média é constantemente
representada na cultura popular, estando fortemente arraigada no imaginário
contemporâneo. Quando se pergunta a um leigo sobre aspectos daquela socie-
dade, é muito recorrente que mencione o feudalismo, embora não saiba expli-
car o que de fato significaria esse “feudalismo”.
Neste capítulo, as diversas características do sistema feudal serão debatidas.
Como dito no decorrer desta exposição, o termo não tem uma origem medieval,
sendo, portanto, uma construção historiográfica posterior. O feudalismo com-
preendia dois tipos de relações: as de vassalagem, constituídas entre membros
da nobreza; e as de senhorio, estabelecidas entre nobres e camponeses. Cabe
ainda salientar o modelo de sociedade de ordens, construção ideológica reali-
zada por membros do clero e que contribuíam para consolidar as relações de
dominação vigentes.

OBJETIVOS
•  Entender a transição de reinos germânicos ao estabelecimento do feudalismo europeu;
•  Compreender as continuidades e rupturas do período, além de discutir as polêmi-
cas historiográficas;
•  Abordar os traços econômicos da sociedade feudal.

3.1  O conceito de “feudalismo”

A Idade Média, como já referido em capítulos anteriores, consiste num período


bastante abordado na cultura popular. Diversos filmes, livros, jogos eletrôni-
cos, músicas e histórias em quadrinhos são ambientados no medievo, ou pelo
menos remetem a aspectos da medievalidade.
Apesar de muito diferente da sociedade e da cultura contemporânea, de
certa maneira a Idade Média é familiar às pessoas do século XXI. Dificilmente
alguém não disporia de alguma referência a respeito dessa época, ainda que
fosse pejorativa ou pouco condizente com a sua realidade histórica.
Ainda que não seja o aspecto mais recorrentemente lembrado pelos não es-
pecialistas nesse momento histórico, o feudalismo consiste numa lembrança

52 • capítulo 3
frequente. Mesmo na historiografia, as relações sociais e a organização econô-
mica presentes no sistema feudal são apontadas como os elementos que confe-
ririam ao período seu caráter particular.
Evidentemente, entre o público não acadêmico, o feudalismo é um concei-
to lembrado, porém sem necessariamente ser acompanhado de uma definição
precisa sobre ele. A realidade feudal é pouco conhecida.
Entre os historiadores, o cenário também não é tão simples. Conforme é
recorrente na disciplina História, diversas leituras sobre o passado feudal fo-
ram propostas ao longo do tempo. Os modelos interpretativos divergem entre
si em muitos aspectos, sobretudo por partirem de pressupostos teóricos e ên-
fases distintas.
A começar, o conceito de “feudalismo” é algo razoavelmente recente. Entre
os medievais, não existira um termo equivalente. A expressão latina foedus sig-
nificaria “aliança” ou “juramento” – características fundamentais do que hoje
entenderíamos por “feudalismo”, mas que não se resumiria a isso.
As primeiras utilizações da palavra propriamente dita ocorreram no
Renascimento Italiano, a partir de reflexões de juristas a respeito do direito cos-
tumeiro de propriedade. Giacomo Alvatorroto (1385-1453) escreveu o tratado
De feudis, que influenciou o pensamento jurídico posterior a respeito dos direi-
tos concernentes à posse e ao uso de terras. Naquele momento, “feudalismo” se
referiria ao conjunto de instituições relacionadas com o suporte e serviço dos
vassalos e à exploração das propriedades.
A primeira tentativa de intepretação histórica a respeito do feudalismo
ocorreu no século XVI, por um antiquário francês. François Hotman (1523-
1590) atribuiu os direitos feudais às influências dos costumes das “tribos bár-
baras”, principalmente do povo franco. A perspectiva de abordar a dimensão
histórica do fenômeno se consolidou a partir da edição realizada no século XVI
da documentação lombarda de meados do século XII, conhecida como Liber
Feudorum. Comte de Boulainvilliers, em História dos antigos Parlamentos da
França (1737), foi quem cunhou a expressão “sistema feudal”.
Contudo, foi a partir do processo revolucionário francês que o debate a res-
peito da questão se acirrou. Em 1789, a Assembleia Nacional revogava os “di-
reitos feudais” existentes, uma das principais demandas sociopolíticas requisi-
tadas tanto pelos setores populares quanto pela burguesia. O problema: o que
seriam exatamente esses tais “direitos feudais”? Elaborar uma resposta razoá-
vel não seria, naquele momento, meramente uma questão erudita, mas uma
teorização que perpassava o debate político daqueles tempos tumultuados.

capítulo 3 • 53
Os filósofos iluministas compreendiam por “feudalismo” um sistema de ex-
ploração do campesinato associado com a fragmentação do poder político por
indivíduos. “Feudalidade” denotaria, portanto, os privilégios e prerrogativas
senhoriais, injustificáveis pela razão ou pela justiça. O Barão de Montesquieu,
em seu Do espírito das leis (1748), foi um dos principais postuladores des-
sa posição.
Adam Smith, em seu A riqueza das nações (1776), um clássico do pensa-
mento econômico liberal, empregou o termo “sistema feudal” para descrever
uma forma de produção determinada não pelas forças do mercado, mas pelo
emprego da força e coerção social. Em sua compreensão, o feudalismo seria
constituído pela exploração econômica dos camponeses pelos seus senhores,
pela pobreza, pela brutalidade e pelo acentuado fosso entre pobres e ricos.
O conhecido pensador alemão Karl Marx (1818-1883) postulou o feudalis-
mo em termos muito próximos aos anteriores. Para ele, esse seria um modo
de produção, ou seja, um modo de organização das formas de produção das
condições materiais de existência, em que a aristocracia detentora de terras
exploraria o campesinato. O cerne dessa abordagem seriam os privilégios eco-
nômicos e jurídicos da classe dominante – a nobreza, no caso. A historiografia
marxista posterior se valeria dessas referências para a compreensão da realida-
de feudal medieval.

3.1.1  Os debates do século XX

No decorrer do século XX, o debate a respeito do feudalismo pode ser sistema-


tizado em três correntes historiográficas. Cabe salientar que a organização da
discussão sobre o tema, de que participam muitos autores com perspectivas
particulares e com nuances interpretativas próprias, em apenas três catego-
rias consiste numa proposição didática. Tal modelo privilegia as orientações
de pesquisa compartilhadas por determinados conjuntos de historiadores, a
despeito de discordâncias pontuais que tenham entre si.
Conforme será esclarecido ao longo do presente tópico, o que distancia as
três correntes entre si seria um conjunto de fatores. Primeiramente, o elemen-
to que considerariam como estruturante do sistema feudal em si mesmo. Em
seguida, o tipo de estrutura social (jurídica, econômica e social) privilegiada
na análise do feudalismo. Por fim, como resultado do posicionamento dian-
te das duas questões precedentes, a explicação sobre o processo histórico de

54 • capítulo 3
formação do feudalismo. Como resultando das diferentes posições formuladas
nesses três âmbitos, as críticas que os historiadores realizam nos trabalhos uns
dos outros se pautam nos supostos da corrente à qual estariam filiados.
A primeira vertente consistiria na institucionalista, tributária dos campos
da História do Direito e da História das Instituições. O feudalismo seria carac-
terizado, por esses especialistas, através de seus aspectos jurídicos. Dessa for-
ma, a abordagem normalmente sublinha o conjunto de deveres e direitos que
os participantes de um contrato de vassalagem disporiam. O serviço militar do
vassalo e a obrigação senhorial de assegurar o sustento do seu subordinado se-
riam os fundamentos daquela sociedade. O principal representante dessa cor-
rente seria o historiador belga François Ganshof, autor do manual clássico O
que é o feudalismo – disponível em tradução para o português.
O advento do feudalismo, para esses historiadores, derivaria do complexo
de consequências da dissolução do mundo carolíngio. A perda de autoridade
do poder central teria dado margem à privatização de poderes políticos e ju-
risdicional nas mãos da nobreza, que já detinha terras, imunidades ou direi-
tos banais.
Outra corrente importante seria a marxista. Retomando a obra de Karl Marx,
muitos historiadores tentaram compreender o feudalismo como um modo de
produção que oporia classes distintas. O aspecto valorizado seria o econômico,
sendo importante ressaltar como a classe dominante militarizada expropriaria,
mediante coação, as camadas camponesas de uma parcela da sua produção.
Dentro dessa orientação historiográfica, haveria duas interpretações usuais
para o surgimento do feudalismo. A primeira, conhecida como marxismo clás-
sico, apontaria para uma síntese entre dois modos de produção diferentes en-
tre si: o romano e o germânico. Tal hipótese é defendida por Perry Anderson,
em seu clássico “Passagens da Antiguidade para a Idade Média”, também dis-
ponível em língua portuguesa.
Outra tese é a mutacionista, defendida por autores como Bonassie. Segundo
os partidários dessa visão, houve em torno do ano mil uma “revolução feudal”,
em que as estruturas sociais, políticas e econômicas foram, de forma rápida,
profundamente alteradas.
Tanto a corrente institucionalista quanto a marxista foram amplamente
criticadas ao longo do século passado. Ambas sofreram da mesma limitação:
selecionar apenas um aspecto da complexa realidade do feudalismo ociden-
tal como elemento definidor. Enquanto a primeira atentaria apenas para as

capítulo 3 • 55
interações que perpassavam os estratos sociais elevados, a segunda destacaria
apenas os conflitos que oporiam duas camadas diferentes.
A corrente annalista foi constituída a partir das reflexões inicialmente ex-
postas por Marc Bloch, historiador francês famoso por ser um dos percursores
da Escola dos Annales. Em seu clássico A sociedade feudal (1939), buscou con-
ciliar as duas perspectivas anteriores, afirmando que a discordância derivava
apenas pelo enfoque em dois aspectos característicos do feudalismo – que não
seriam, entre si, excludentes.
Para solucionar o impasse, cunhou dois conceitos: regime feudal e regime
senhorial. Por regime feudal, compreenderia as relações constituídas entre
senhores e vassalos, fundamentadas por direitos e deveres de cessão de terras
e serviço militar. Já regime senhorial remeteria às relações de produção e de-
pendência entre senhor e camponês. Dessa maneira, as orientações tanto da
corrente institucionalista quando da marxista estariam abarcadas, sendo inse-
ridas num modelo explicativo mais amplo que as acomodaria de forma coesa.
Marc Bloch apontaria para a existência de duas idades feudais, cada qual
ocorrida num recorte temporal com propriedades específicas. A Primeira Idade
Feudal corresponderia entre o colapso do Império Carolíngio até a metade do
século XI. Segundo explica, nela teria ocorrido a derrocada do poder central,
sobretudo em decorrência das incursões normandas. Como resultado, caste-
los se proliferariam, assim como os detentores desses castelos e áreas mura-
das e fortificadas passariam a exercer uma autoridade local independente. A
economia seria primordialmente agrária, com um pequeno comércio de longa
distância que disponibilizaria produtos de luxo.

COMENTÁRIO
Os normandos, também conhecidos como vikings, eram povos vindos da região da Escandi-
návia (região que compreenderia hoje países como Dinamarca, Suécia e Noruega). Tinham
uma cultura pautada na atividade guerreira e um sistema politeísta de crenças, em que divin-
dades que controlavam forças da natureza estavam presentes.
A organização social, política e econômica dos povos normandos anteriores ao processo
de cristianização e ao início dos ataques ao Ocidente cristão ainda é um conhecimento muito
lacunar. Afinal, apenas dispunham das runas como forma de escrita, mas que era empregado
unicamente para fins ritualísticos e religiosos; fontes textuais de outras naturezas só cons-
tam em séculos posteriores. Os estudos arqueológicos têm proporcionado conhecimentos

56 • capítulo 3
mais sólidos a respeito desses grupos, contudo algumas questões permanecem demasiada-
mente em aberto.
Os ataques ao Ocidente que ocorreram entre os séculos IX e X são muito referenciados
na documentação cristã. Entretanto, o estudo deve ser realizado de forma crítica e cuidadosa:
esses escritos normalmente retratavam pejorativamente os normandos, atribuindo a eles um
caráter maléfico e demoníaco, tendendo à inclusão de detalhes ou exageros narrativos a fim
de enfatizar a condenação às suas ações. Para um retrato mais fidedigno desses normandos,
é necessária uma atenção em particular para que não se ceda à tentação de reproduzir o
discurso dos cristãos sem as devidas precauções metodológicas.
Os motivos para os ataques normandos ao Ocidente eram diversos. Como já menciona-
do, os normandos dispunham de uma cultura guerreira; assim, o prestígio obtido pela parti-
cipação honrosa em batalha constituía num elemento de distinção social. No imaginário reli-
gioso, aos guerreiros valorosos era dedicado um lugar privilegiado no pós-morte. Além disso,
havia o interesse na obtenção de ouro e prata, que poderiam ser facilmente conseguidos em
edifícios religiosos, como mosteiros e igrejas. Eventuais prisioneiros tendiam a ser escravi-
zados, sendo empregados como mão de obra pelos próprios atacantes ou comercializados.
A despeito de suas investidas militares envolverem apenas algumas poucas centenas de
homens, raramente alcançando a casa do milhar, alguns fatores favoreceram o seu sucesso.
O uso de determinadas táticas e tecnologias militares permitia aos normandos a realização
de ataques rápidos e súbitos – como, por exemplo, o emprego do drakkar, tipo de embar-
cação ágil e facilmente manobrável em rios e que alguns poucos homens poderiam ser fa-
cilmente carregados por terra. A desarticulação militar e a fragmentação política do período
pós-carolíngio, associado ao desmonte das muralhas nas cidades para o uso das pedras na
construção de catedrais, resultaram na falta de condições defensivas ao Ocidente cristão.
O ataque às igrejas e mosteiros merece atenção particular. Os edifícios eclesiásticos
eram beneficiados pelo patronato laico, uma vez que os nobres costumavam realizar doações
a tais instituições. Mosteiros, em especial, tendiam à acumulação de patrimônio, pois todo
aquele que ingressava na comunidade tinha de entregar seus bens, atendendo ao ideal de
renúncia a tudo que fosse mundano. Somado a isso, o clero era proibido de portar armas e
não recebia, obviamente, treinamentos para o combate. Por isso, tornava-se alvo fácil e privi-
legiado para ataques visando à pilhagem. Uma tática muito utilizada era a incursão em dias
considerados santos e domingos, pois era o momento em que os religiosos concentravam-se
num mesmo recinto para o culto.
Por privilegiarem os edifícios religiosos cristãos, os ocidentais muitas vezes atribuíam um
caráter demoníaco aos normandos. Era muito recorrente que fossem descritos como exérci-
tos infernais e profanadores.

capítulo 3 • 57
Na Segunda Idade Feudal, compreendida entre a segunda metade do século
XI e a primeira do XIII, foi o resultado do desenvolvimento econômico europeu.
A revolução agrícola, proporcionada por uma série de inovações técnicas, tal
como o renascimento comercial, garantiu o crescimento das cidades e o ressur-
gimento de uma economia monetária.
Com isso, a natureza das relações feudais e a definição de nobreza muda-
ram. A classe cavaleira tornou-se uma nobreza hereditária por volta do ano
1100. O influxo econômico e a comercialização de artigos de luxo permitiram à
nobreza o consumo para fins de ostentação, transformando sua forma de dis-
tinção social. Por parte dos senhores, isso gerou uma demanda maior por ga-
nhos, resultando numa exploração maior da terra e de seus homens.
As hipóteses e interpretações de Marc Bloch foram muito influentes. A sua
forma de periodização foi particularmente criticada por diversos estudos sobre
regiões específicas do Ocidente cristão. Duby, por exemplo, em sua pesquisa
a respeito da região de Macon, concluiu que deveria ser empregado outro mo-
delo de periodização, mais condizente com a trajetória histórica específica do
local. Assim, deve-se concluir que o ritmo de formação do feudalismo variou
conforme o recorte espacial privilegiado no estudo.
Cabe ressaltar a existência de historiadores que criticam o uso do ter-
mo “feudalismo”. Elizabeth A. R. Brown, em artigo publicado no periódico
American Historical Review em 1974, destacou o conceito de “feudalismo”
como construção historiográfica por demais artificial e simplista. Sob essa óti-
ca, propunha o descarte da noção, por conta da sua limitação. Numa monogra-
fia muito influente, Susan Reynolds, em 1994, ampliaria as críticas e difundiria
entre os especialistas a dúvida sobre a pertinência heurística do conceito de
“feudalismo”.
Como resultado da tese Brown-Reynolds, os historiadores de países de lín-
gua inglesa hoje têm ressalvas em relação a uma aplicação do conceito de “feu-
dalismo” – sendo a sua utilização defendida somente a partir de determinadas
relativizações.
Na França, um autor crítico sobre a maneira como tradicionalmente o feu-
dalismo é abordado, inclusive desconfiando da possibilidade de compreendê
-lo em sua plenitude, é Alain Guerreau, autor do livro “Feudalismo: um horizon-
te teórico”. Para o autor, o século XVIII promoveu uma dupla fratura conceitual,
a partir do qual as estruturas sociais do Ocidente e a percepção de mundo que
delas derivava mudaram radicalmente. Por conta dessas transformações,

58 • capítulo 3
qualquer tentativa de aproximação da realidade feudal seria restrita, uma vez
que não compartilharíamos dos mesmos esquemas mentais de compreen-
são social.
Para Guerreau, essa dupla fratura conceitual corresponderia à implosão das
noções de dominium e ecclesia. O primeiro termo diz respeito à relação social
existente no feudalismo, caracterizado pela simultaneidade e unidade de do-
minação sobre os homens e suas terras. No contexto medieval, a sociedade se
organizava de tal maneira que uma camada expropriava diretamente os agricul-
tores e restringia a produção artesanal, delegando-a a grupos estruturalmente
marginalizados. Em contrapartida, a ecclesia consistiria tanto na comunida-
de cristã quanto no corpo clerical organizado e capaz de estipular normas de
validade geral. Na Idade Média, ambos se relacionavam e asseguravam o fun-
cionamento do sistema. Para o homem contemporâneo, integrado à lógica de
mercado, cujo funcionamento é operado por lógica diferente, a compreensão
do feudalismo seria dificultada.
A partir das reflexões expostas acima, pode-se concluir que o conceito de
feudalismo não é algo simples de ser definido. Diversos modelos explicativos,
que ora enfatizam os aspectos jurídicos, ora as relações sociais, ou ainda que
tentam elaborar uma síntese, propuseram diversas leituras sobre o tema. Aliás,
sequer há consenso sobre a própria pertinência do conceito de “feudalismo”.

3.1.2  A ideologia das três ordens

Georges Dumézil (1898-1986) foi um renomado filólogo e historiador francês.


Teve uma longa e bem-sucedida trajetória acadêmica, chegando a ser docente
do influente Collège de France.
Dentre os seus trabalhos mais famosos, consta o L’Idéologie tripartite des
Indo-Européens, publicado em 1958. Por meio do emprego do método compa-
rado, Dumézil constatou que, na mitologia de diversos povos indo-europeus,
constam um esquema de organização da sociedade de caráter tripartite. Por tal
visão, estabelecida sob o discurso de ser divina, os homens estariam divididos
em três categorias, cada qual com um dever a cumprir: os sacerdotes, os guer-
reiros e os produtores.
Dumézil reconheceria essa mesma estruturação na mitologia indiana que
legitimaria o sistema de castas, tal como nas narrativas acerca da fundação de
Roma e no Antigo Regime. Em 1955, Boyancé questionaria a existência de tal

capítulo 3 • 59
tripartição no mundo romano. Vasilji Abravaev, em 1963, argumentou que esse
esquema surgiria apenas em algumas sociedades e em determinados momen-
tos históricos, sem que isso significasse necessariamente redes de influência
entre os vários agrupamentos humanos.
Ou seja, houve estudiosos que questionaram as generalizações de Dumézil,
alegando que estas não contemplariam todas as formas de sistematização so-
cial presentes nas culturas indo-europeias. No entanto, tais ponderações não
invalidariam, de todo modo, as hipóteses de Dumézil, que prosseguiriam tendo
seu valor heurístico.
O historiador francês Georges Duby (1919-1996), expoente da História das
Mentalidades e da terceira geração da Escola dos Annales, foi o primeiro a em-
preender uma análise aprofundada da questão em As três ordens ou o imaginá-
rio do Feudalismo, lançado originalmente em 1978.
No livro referido, o autor parte das hipóteses de Dumézil e avalia sua apli-
cabilidade na sociedade feudal ocidental. Constatou eventuais referências ao
imaginário tripartite na historiografia, mas sublinhou a abordagem rasa da
questão. Segundo sua demonstração, existiriam três categorias no sistema me-
dieval: os oratores, os bellatores e os laboratores.
De acordo com Duby, o modelo surgiu no Ocidente cristão latino por volta
do ano 1030, nos textos de dois bispos do norte da Gália: Adalberão de Laon e
Gerardo de Cambrai. O medievalista apontou a existência de disposições ante-
riores no pensamento eclesiástico em que eram delimitados os setores da so-
ciedade, ainda que de maneira mais simples. A partir dessa observação, deve-se
desvencilhar da ideia de que o modelo proposto por Adalberão e Gerardo cons-
tituía algo totalmente inovador, sem nenhum precedente intelectual.
O modelo tripartite cristão propunha que a sociedade foi estabelecida e
estrutura por Deus, que delegou tarefas aos homens. A uns competiria o tra-
balho da oração – no caso, os oratores, representados pelo clero. A outros, os
bellatores, categoria composta pelos nobres, caberia o exercício das armas para
proteção dos fiéis, dos homens da Igreja e do patrimônio eclesiástico. À massa
camponesa, contemplada pelo termo laboratores, restaria o trabalho produti-
vo, a fim de assegurar o sustento de todos.
Todas as tarefas seriam indispensáveis ao bom funcionamento da socieda-
de cristã. Caso um determinado segmento descumprisse com a sua tarefa, a or-
dem social poderia ser comprometida. Aliás, a ordenação teria aquela determi-
nada feição porque assim teria sido instituída por Deus, logo o questionamento
do modelo tripartite seria algo equivalente a uma heresia.

60 • capítulo 3
O esquema de ordens, além do mais, teria correspondência celestial. A es-
trutura seria tripartite porque Deus era três pessoas na Santíssima Trindade: o
Pai, o Filho e o Espírito Santo. Mas a exemplaridade trinitária não acarretaria
necessariamente numa ideia de equivalência entre as ordens, sobretudo numa
sociedade de mentalidade tão hierarquizante quanto a medieval. Existiria uma
desigualdade de méritos entre as ordens, decorrente da natureza do seu dever,
que, por sua vez, traduziria numa hierarquia social necessária.
Nesse sentido, o clero estaria numa posição de destaque e de forma supe-
rior às demais. Logo em seguida, a nobreza estaria situada num patamar em
que ainda teria certo poder e status. Aos trabalhadores, caberia uma posição
subalterna. Considerando que o esquema tripartite foi proposto e difundido
por membros do clero, podemos considerar que atendia às pretensões eclesiás-
ticas de ser a camada dirigente daquela sociedade.
Outro propósito da Igreja para propagar tal esquematização dizia respeito
ao interesse em domesticação da nobreza. Naquele contexto, não havia um po-
der centralizado que mantivesse um exército regular sob seu comando; aliás,
a tendência que prevaleceria era a da pulverização política. As camadas domi-
nantes, detentoras do poder bélico, perpetravam guerras constantes entre si,
por vezes acabando por atacar homens do clero e pilhar bens de igrejas em suas
pelejas. De certa maneira, atribuir à nobreza o papel da defesa da comunidade
cristã consistiria numa legitimação do seu direito ao uso da violência, porém,
atribuindo um propósito em consonância com os interesses da Igreja.
Um elemento importante foi frisado por Georges Duby no decorrer de suas
reflexões sobre o feudalismo: a tripartição social consistiria numa construção
ideológica que legitimaria as relações de dominação que atravessariam a Idade
Média. A maior parte dos especialistas posteriores tendeu a acatar tal hipótese,
constituindo uma espécie de consenso historiográfico.
Diversos estudos hoje demonstram como os desnivelamentos sociais pre-
tendidos entre as três ordens eram reforçados por meio de determinadas prá-
ticas de distinção. Por exemplo, a alimentação: a ingestão de carne de caça era
algo característico da nobreza, uma vez que, na época, acreditava-se que esse
prato proveria a força física necessária à atividade guerreira. As vestes eclesiás-
ticas eram algo que distinguia os homens da Igreja dos seculares.
Evidentemente, o modelo tripartite tinha seus limites. Georges Duby argu-
mentou que, dentre outras elaborações, os movimentos heréticos propunham
construções sociais concorrentes. O influente historiador marxista espanhol

capítulo 3 • 61
Jorge Luís Romero, por sua vez, alertou para o declínio da explicação das três
ordens provocado pela ascensão de grupos ligados às atividades comerciais.

3.2  O juramento de fidelidade

O sistema feudal é composto por dois tipos de relação: os de caráter horizontal,


estabelecidos entre iguais; e os de caráter vertical, em que interagiam sujeitos
oriundos de camadas sociais desiguais. Em ambos os tipos de relação, direitos
e deveres de cada parte eram evocados.
Neste tópico, interessa contemplar a modalidade vertical de relação social,
constituída entre elementos da nobreza. Mais precisamente, o objeto de dis-
cussão consiste no juramento de fidelidade.
No âmbito da classe nobre, o sistema funcional mantinha uma lógica em
que um sujeito declarava subordinação a outro, reconhecendo seu patamar de
superioridade. Esse era o cerne da relação de vassalagem, a ser debatida num
próximo tópico.
O juramento de fidelidade seria o ritual a partir do qual a relação de vassa-
lagem seria estabelecida. Os especialistas da corrente institucionalista se dedi-
caram sobre o tema, empenhando-se em esmiuçar os pormenores dos proce-
dimentos postos em prática no decorrer desse rito. François Ganshof, em “O
que é o feudalismo?”, apesar de todas as críticas realizadas, constitui ainda em
importante referência para o tratamento do tema.
O historiador francês Jacques Le Goff, medievalista com importantes con-
tribuições para o campo da História das Mentalidades, sublinhou que o jura-
mento de fidelidade era um rito permeado de significados simbólicos, para
além dos aspectos formais. Alguns historiadores, seguindo suas ponderações,
basearam-se nos preceitos teóricos proporcionados pelo antropólogo Marcel
Maus de dom e contra dom, presentes em seu artigo clássico “Ensaio sobre
a dádiva”.
O ritual seria composto por três partes, cada uma com seu conjunto de ações
características e sentido simbólico correspondente. Cabe salientar que cada re-
gião adotava elementos próprios, não havendo um roteiro para ser seguido à
risca. A despeito das variações, os elementos principais desse ritual eram sem-
pre os mesmos, independentemente do local.
A primeira etapa do ritual consiste na homenagem. Nessa etapa, ocorre a
declaração voluntária por parte do futuro vassalo de que quer se subordinar a

62 • capítulo 3
um determinado senhor. Tal ato ocorria com o declarante ajoelhado. Em se-
guida, o senhor segurava as mãos do seu vassalo e o fazia se levantar, reconhe-
cendo-o como seu homem. Esse momento do rito representaria a desigualdade
existente entre eles, uma vez que uma parte se punha ajoelhado ante a outra.
Em seguida, era realizada a fidelidade. Nela, ocorria um juramento em que
ambas as partes declaravam que cumpririam os deveres implicados nessa rela-
ção, tendo suas mãos sobre a Bíblia, relíquia de santo ou qualquer outro objeto
de caráter sagrado. Por fim, faziam o osculum, em que os dois se beijavam na
boca. Preferencialmente, um fio de saliva deveria ligar uma boca à outra após
o ato, remetendo à aliança existente entre ambos. Essa segunda etapa do ritual
simbolizaria a igualdade dos dois envolvidos. O emprego de elementos religio-
sos remeteria, por sua vez, à ideia de que o contrato de vassalagem seria de na-
tureza sacra, não podendo ser rompido sob nenhuma circunstância.
A última etapa seria a investidura. Esse seria o momento em que o se-
nhor entregava ao seu vassalo um objeto que representaria o feudo cedido.
Normalmente, utilizava-se um punhado de terra ou um ramo. O ritual conclui-
ria, portanto, com uma ideia de reciprocidade, uma vez que a subordinação ini-
cial seria compensada com algo que asseguraria o sustento do vassalo.
Diversos documentos do período relatavam a realização desses ritos. Ainda
que a Idade Média caracterizavam-se pelo predomínio da oralidade, o registro
escrito já cumpria o papel de assegurar um indício que comprovaria a existên-
cia de um acordo, dando sustentação às reivindicações de direitos e deveres de
um homem para com o outro. Por exemplo, a narrativa por Galbert de Bruges
de um rito de fidelidade cujo testemunho, provavelmente composto para esse
fim, contribuiu para os conhecimentos dos procedimentos e simbolismos con-
cernentes à ocasião cerimonial.

Primeiro prestaram homenagem dessa maneira: o conde perguntou (ao vassalo)


se ele desejava tornar-se o seu homem, sem reservas, ele respondeu: “quero”; então,
tendo juntas as mãos, colocou-as entre as mãos do conde e aliaram-se por beijo. Em
segundo lugar, aquele que havia prestado homenagem jurou fidelidade ao porta-voz
do conde, com estas palavras: “Comprometo-me por minha fé a ser fiel daqui por
diante ao Conde Guilherme (...)”; e, em terceiro lugar, jurou o mesmo sobre as relíquias

capítulo 3 • 63
dos santos. Finalmente, com uma varinha que segurava na mão, o conde deu a in-
vestidura a todos aqueles que por esse fato tinham prestado lealdade, homenagem
e juramento.
(GALBERT DE BRUGES. Vassalagem e investidura (s. XII e XIII). In: PEDRERO-SÁN-
CHEZ, Maria Guadalupe. História da Idade Média. Textos e testemunhas. São Paulo:
UNESP, 2000. p. 96. Grifos meus)

3.3  Vassalagem

As relações de vassalagem eram o essencial das interações entre nobres no de-


correr da Idade Média. Num contexto baseado na fragmentação política e na
constante disputa entre senhores, a contratação de laços de vassalagem era im-
portante para garantir uma rede de apoio diante de ameaças.
A principal metáfora utilizada para se referir à relação vassálica era a da fi-
liação parental. O senhor seria uma espécie de “pai espiritual”, que zelaria pela
segurança e bem-estar de seu “filho”, o vassalo. Assim, seria necessário o res-
peito entre os dois. Outra metáfora empregada era de caráter etário: o senhor
era um “ancião” e o vassalo, “um moço”, representando a superioridade e auto-
ridade do senhor sobre seu vassalo.
Entre ambos, haveria direitos e deveres. Por parte do vassalo, havia a obri-
gatoriedade de auxilium e consilium. A primeira obrigação consistia na ajuda
econômico-militar ao senhor quando este requisitasse, dentro de determina-
das situações. Seria direito do senhor pedir apoio financeiro para o pagamento
do resgate quando capturado em batalha, para custear o casamento da sua filha
mais velha, para o custeio da cerimônia em que o seu primogênito fosse arma-
do cavaleiro e para contribuir para a sua ida a uma cruzada. Do ponto de vista
militar, o vassalo deveria servir em armas para o seu senhor, contanto que não
ultrapassasse um certo número de dias por ano – havia, portanto, um limite
para esse tipo de apoio. No caso do serviço militar, a requisição de mais dias a
serem prestados poderia ser realizada, porém necessitaria de pagamento.
O consilium, por sua vez, dizia respeito à participação do vassalo no conse-
lho senhorial. Assim, por determinada quantidade de dias por ano, o senhor po-
deria convocar seu homem para opinar, dar conselhos e atuar em seu tribunal.

64 • capítulo 3
Fulbert de Chartres, em uma carta ao duque da Aquitânia, fez uma sistema-
tização pertinente dos princípios que deveriam nortear a conduta do vassalo
em relação ao seu senhor:

Aquele que jura fidelidade ao seu senhor deve ter sempre presente na memória essas
palavras: incólume, seguro, honesto, útil, fácil e possível. Incólume, na medida em que
não deve causar prejuízos corpóreos ao seu senhor; seguro, para que não traia os
seus segredos ou as armas pelas quais ele se possa manter em segurança; hones-
to, para que não enfraqueça os seus direitos de justiça ou de outras matérias que
pertençam à sua honra; útil, para que não cause prejuízo às suas possessões; fácil ou
possível, visto que não deverá tornar difícil ao seu senhor o bem que ele facilmente
poderia fazer, nem tornar impossível o que para ele seria possível.
(FULBERT DE CHARTRES. De Fulbert de Chartres ao Duque de Aquitânia Guilher-
me V (1020). In: PEDRERO-SÁNCHEZ, Maria Guadalupe. História da Idade Média.
Textos e testemunhas. São Paulo: UNESP, 2000. p. 94).

Nesse sentido, nota-se o imperativo de que o vassalo deveria agir de modo a


nunca prejudicar ou trair seu senhor.
Por parte do senhor, havia, primeiramente, a obrigação de proteger o seu
vassalo. A defesa poderia ser militar, mas também judicial: sempre que o vas-
salo estivesse em julgamento, o seu senhor deveria testemunhar em seu favor.
Além disso, havia o dever de sustento. Em alguns casos, o senhor permitia que o
seu homem vivesse em seu castelo. Mas, na maioria das vezes, concedia-se um
feudo, geralmente um pedaço de terra, o qual o vassalo poderia explorar para
assegurar sua subsistência.
O pacto estabelecido entre as duas partes seria vitalício, ou seja, só seria
rompido em caso de morte ou traição (se o traidor fosse o vassalo, a concessão
do feudo seria cancelada). A aliança suposta numa relação de vassalagem era
pessoal; assim, a continuidade da associação entre famílias só poderia ocorrer
com a renovação do trato a cada geração. Embora os filhos de um vassalo ou de
um senhor não tivessem direito de reivindicar o acordo firmado pelo seu ante-
cessor, na prática a vassalagem tendia à hereditariedade.
Uma vez que o vassalo recebia um feudo, este poderia reparti-lo a fim de
contrair seus próprios vassalos. Essa prática era comum na Idade Média, daí
a constatação de que todo nobre seria necessariamente vassalo e senhor de

capítulo 3 • 65
outras pessoas. Evidentemente, ninguém poderia ter mais de um senhor; en-
tretanto, ter mais de um vassalo era algo comum.

3.4  Senhorio

O senhorio correspondia às relações sociais de poder, ou seja, à dinâmica es-


tabelecida entre a nobreza e aqueles que trabalham nas terras. Sua dinâmica,
portanto, compreendia a maneira como as forças produtivas eram organizadas.
Antes de adentrar no modo de funcionamento do regime senhorial propria-
mente dito, cabe atenção à natureza da mão de obra que trabalhava nas terras.
A escravidão, característica marcante da economia romana, já não era muito
comum entre os séculos XI e XIII. Após o fim do Império Romano, os laços de
dependência entre os camponeses e os grandes senhores de terras foram refor-
çados, tal como as pequenas propriedades de homens livres tenderam a sumir.
Concomitantemente, o número de escravos disponíveis decresceu. A perspec-
tiva que perpassou os séculos iniciais da Idade Média era de que as condições
de vida do campesinato dependente tenderam a se igualar às do escravo, sendo
a distinção uma formalidade de pouco efeito prático. No momento em análise,
os trabalhadores rurais eram essencialmente servos.
No sistema senhorial, os camponeses recebiam dos senhores pequenos lo-
tes de terra. Inicialmente, esses lotes eram maiores e eram designados mansos
(mansus). Com o tempo, em decorrência do aumento demográfico, os lotes
foram progressivamente sendo repartidos em porções menores, tornando-se
tenências (tenures). Essas poderiam ser censive, quando o camponês pagava
um pequeno tributo fixo em espécie ou trabalho pela concessão, ou champart,
quando o camponês deveria entregar uma parcela do que produziu ao senhor –
sendo, portanto, variável.
Além das terras campesinas, o senhorio dispunha, ainda, da reserva se-
nhorial, que era explorada diretamente pelo senhor. Essa tendeu a diminuir
também por conta do aumento demográfico, uma vez que houve uma demanda
maior por mansos e pelo aumento da capacidade produtiva por área de terreno.
Outro motivo para a contração do tamanho das reservas senhoriais foi o cresci-
mento da cessão de feudos para o estabelecimento de relações vassálicas.
O senhorio e o feudo não devem ser confundidos. Enquanto o primeiro
consiste numa entidade econômica, o segundo era um manifestação político-
militar. O senhorio compreendia um território em que o seu detentor possuía

66 • capítulo 3
direitos econômicos (senhorio fundiário) e jurídico-fiscais (senhorio banal). O
feudo, por sua vez, era uma cessão de direitos de um senhor em favor do seu
vassalo. Todo terreno feudalizado era necessariamente senhoralizado, mas
nem todo senhorio consistiria num feudo, nesse sentido.
A natureza das prestações que o camponês devia ao seu senhor era diversa.
A principal era a corveia, na qual o servo trabalhava gratuitamente na reserva
em uma determinada quantidade de vezes por semana. Havia, ainda, as banali-
dades: taxas pelo uso do moinho, do forno, do lagar e dos bosques, albergagem
ou requisição de alojamento, talha (cobrança para a proteção militar quando
necessitasse), dentre outras.
Nesse momento, houve um aumento da produção agrícola. Essa foi propor-
cionada pelo aumento demográfico, que fornecia mais mão de obra para as ta-
refas produtivas. Além disso, inovações técnicas, como o rodízio trienal e a adu-
bação mineral, aliadas a inovações tecnológicas, como a charrua e os moinhos,
possibilitaram a superação dos limites produtivos impostos pela natureza.
Essa expansão agrícola favoreceria uma série de processos de transformação
histórica profunda, que serão contempladas nos próximos capítulos.

3.5  Feudalismo: características e diversidades

Tradicionalmente, os livros didáticos e manuais, ao abordarem a realidade do


feudalismo no Ocidente, tendem a privilegiar a experiência francesa – ou me-
lhor, de determinada região da França, porque nem mesmo naquela área havia
homogeneidade. As razões para tal favorecimento são várias: a historiografia
brasileira foi formada a partir da tradição intelectual francesa; e, ainda hoje,
o mercado editorial nacional privilegia as publicações na área de História es-
critas na França; autores como Jacques Le Goff, Guy Forquin, Georges Duby,
dentre outros historiadores franceses, ainda exercem grande influência no me-
dievalismo brasileiro.
O emprego do modelo tradicional francês para a apresentação das carac-
terísticas do feudalismo ocidental tem diversas vantagens, sobretudo por pos-
sibilitar uma síntese didática. No entanto, cabe apontar que isso não esgota a
diversidade de experiências feudais que existiram no decorrer da Idade Média.
Em cada localidade, o feudalismo foi expresso em termos peculiares, que es-
tavam em conformidade com as estruturas sociais, econômicas, políticas e

capítulo 3 • 67
culturais daquela região. A fim de ilustrar essa diversidade, devem-se expor al-
guns casos e suas especificidades.
Na França, dois modelos vigoravam: o sudoeste e o da Normandia. No su-
doeste, o feudo não tinha uma expressão muito definida, sendo as relações de
dependência pouco claras. Na Normandia, apesar de poucas referências próxi-
mas em sua cultura originária, os vikings, que se estabeleceram na região em
quantidade razoável, adaptaram-se às estruturas sociais vigentes.
Na Península Itálica, principalmente no norte, a presença dos lombardos,
que valorizavam os laços de companheirismo entre guerreiros e, sob Carlos
Magno, dos francos, favoreceram estruturas feudais mais próximas daquele
modelo geral. Parte do direito feudal foi sistematizada e escrita nessa região,
compondo fontes históricas pertinentes para o atual estudo da economia rural
do período.
Na região da Germânia, as relações de vassalagem se alastraram, porém
com forte tendência à subordinação do vassalo diante do seu senhor. Nos ritos
do período, geralmente não havia homenagem; assim, a ideia de reciprocidade
não encontrava expressão. O monopólio das armas por um grupo de elite, que
asseguraria a exploração sobre o campesinato, foi algo constituído tardiamente
nessa localidade. Eram comuns as referências aos agrarii milites, ou seja, ho-
mens que trabalhavam na terra e que prestavam serviço em armas para os seus
respectivos senhores.
Na Península Ibérica, as tradições implementadas pelos visigodos favorece-
ram o desenvolvimento das dependências pessoais, tal como a relativa influên-
cia franca na região. Embora dispusesse de particularidades em seus procedi-
mentos, o ritual ibérico seguia as mesmas etapas do francês. A concessão de
terras, revogável em caso de não cumprimento dos termos do contrato vassá-
lico, era prática fortemente enraizada. Contudo, não houve o desenvolvimento
de uma rede forte e bem organizada de redes feudo-vassálicas.
A Reconquista, movimento cruzadístico ibérico que tinha por objetivo res-
gatar para a Cristandade as terras da Península sob domínio muçulmano, teve
suas características derivadas dessas peculiaridades. Nas regiões retomadas,
camponeses eram deslocados para viverem como colonos, escapando muitas
vezes dos rigores do regime senhorial. Como resultado, tornava-se comum que
os camponeses enriquecidos exercessem o ofício das armas, inclusive dispon-
do de montaria para uso em batalha.

68 • capítulo 3
ATIVIDADES
01. Apresente as três principais correntes historiográficas do século XX a respeito
do feudalismo.

02. Apresente o modelo tripartite feudal, destacando a função de cada ordem, tal como o
setor social que representa.

03. Identifique os deveres que os vassalos deveriam cumprir para com o seu senhor.

EXERCÍCIO RESOLVIDO
04. A corrente institucionalista, que enfatizava os aspectos jurídicos e institucionais, centra-
va sua análise nas relações entre senhores e vassalos e nos deveres mútuos entre as partes
envolvidas. A concessão do feudo e o serviço em armas seriam elementos destacados. A
corrente marxista, por sua vez, enfatizaria a apropriação de parcelas da produção agrícola
camponesa por parte de uma nobreza militarizada mediante coação. Por fim, a corrente an-
nalista tentaria realizar uma conciliação entre as duas orientações. Conforme expresso por
Marc Bloch, o feudalismo seria compreendido tanto por um regime feudal quanto por um
regime senhorial. Vale lembrar, ainda, as críticas apresentadas por Brown e Reynolds sobre
a viabilidade da aplicação do conceito de feudalismo, assim como as reflexões críticas de
Guerreau sobre as limitações metodológicas de compreensão do período.

05. Eram três as ordens sociais existentes no imaginário medieval: oratores, responsáveis
por zelar pelas almas dos fiéis; bellatores, os guerreiros, que deveriam proteger os fiéis, o
clero e o patrimônio eclesiástico; laboratores, os trabalhadores, que proveriam o sustento de
toda a sociedade. O primeiro grupo seria representado pelo clero; o segundo, pela nobreza;
o terceiro, pelo campesinato.

06. Os vassalos eram obrigados a prestar o auxilium e o consilium. O primeiro correspondia


ao dever de prestar apoio militar e econômico sob determinadas condições, e o segundo, de
participar do conselho senhorial quando convocado.

capítulo 3 • 69
REFLEXÃO
O feudalismo é um conceito problemático. A expressão não existia na Idade Média, sendo
cunhada posteriormente ao período. Surgiu durante o Renascimento, tendo o seu debate
intensificado a partir do século XVIII, quando os filósofos iluministas criticavam a nobreza
e seus privilégios e a Assembleia Nacional decretou o fim de todos os “privilégios feudais”,
durante o processo revolucionário francês.
Existem, hoje, diversas tendências interpretativas, cada qual caracterizando esse modo
de organização social a partir de determinados pressupostos teóricos. Existem três correntes
teóricas principais: a institucionalista, que privilegia os aspectos jurídicos-institucionais, tendo
François Ganshof como expoente; a marxista, que enfatiza as relações econômicas e de domi-
nação social, na qual constam estudiosos como Perry Anderson; e a annalista, que, desde Marc
Bloch, busca a síntese entre as duas correntes, reconhecendo a contribuição das duas outras.
Existem também historiadores que negam a pertinência do conceito. Brown e Reynolds
foram duas historiadoras que criticaram a insistência da historiografia em se referir ao “feu-
dalismo”, uma vez que as estruturas socioeconômicas seriam heterogêneas no período me-
dieval. Afirmar um “sistema feudal”, portanto, consistiria numa simplificação didática que sa-
crificaria uma percepção adequada daquela realidade.
Alain Guerreau, sem recusar a ideia de “feudalismo” em si mesma, apontou para as difi-
culdades na caracterização do período. Conforme afirma, o advento do liberalismo e da eco-
nomia de mercado promoveu, em fins do século XVIII, uma dupla fratura conceitual. Se antes
as estruturas socioeconômicas eram compreendidas e pautadas nas ideias de dominium e
ecclesia, os quadros mentais a partir dos quais o mundo ocidental passou a operar seriam
outros. Dessa forma, a implosão das noções de dominium e ecclesia prejudica as nossas
possibilidades de compreensão de uma realidade tão distinta.
A respeito da sociedade feudal, cabe salientar os apontamentos de Georges Duby sobre
o imaginário social, pautado na tripartição social. Partindo dos estudos de Dumézil, Duby
demonstrou a existência de um modelo segundo o qual a sociedade humana era dividida em
três ordens com funções específicas: os oradores, responsáveis pela mediação com o divino;
os bellatores, que se valiam das armas para a proteção dos fiéis, do clero e do patrimônio
eclesiástico; e os laboratores, que, por meio do seu trabalho, proviriam o sustento das demais
ordens. Essas ordens seriam representadas pelo clero, pela nobreza e pelos camponeses,
respectivamente.
Entre as três ordens haveria uma desigualdade de méritos, resultando numa hierarquia.
O clero, de acordo com esse modelo, firmava-se como o condutor de todo o conjunto da

70 • capítulo 3
comunidade cristã. Tal organização seria necessária para assegurar a ordem e a estabilidade,
tendo sido estabelecida por Deus. O questionamento de tal sistematização não seria viável.
O modelo tripartite, portanto, consistiria numa construção ideológica que legitimaria o
modo de produção feudal. Ao sacralizar e justificar a ordenação da sociedade, o imaginário
de ordens estabelecia uma compreensão em que os esquemas vigentes de dominação social
seriam aceitáveis.
O sistema feudal era baseado em relações horizontais e verticais de poder. As horizon-
tais estariam pautadas nos vínculos pessoais estabelecidos entre nobres – portanto, a elite
social. As verticais, entre nobres e sujeitos de segmento social inferior, o campesinato.
No que tange às horizontais, cabe salientar a existência de duas partes: o senhor e o
vassalo. Por meio de uma ritualística em três atos (homenagem, fidelidade e investidura),
o vassalo tornava-se subordinado perpetuamente ao seu senhor. O encaminhamento e os
procedimentos característicos do ritual remetiam a uma simbologia em que constariam, entre
senhor e vassalo, igualdade, desigualdade e reciprocidade.
Entre senhor e vassalo, existiria uma série de obrigações mútuas. Da parte do vassalo,
havia os deveres de auxilium, ou seja, ajuda econômica e militar em determinadas condições,
e de consilium, isto é, de participação no conselho senhorial. Tal relação seria vitalícia, perdu-
rando até a morte de uma das partes.
Outro elemento importante do feudalismo é o regime senhorial, constituído pela dinâmica
entre senhor e servo. O servo, que dispunha de direitos jurídicos e econômicos sobre suas
terras, cedia porções de terras (mansos ou tenências) aos seus camponeses. Em troca, os
beneficiários deveriam prestar tributos ao senhor de natureza diversa, como, por exemplo, a
corveia, em que o servo trabalhava certa quantidade de dias na reserva senhorial, e as bana-
lidades, conjunto de tributações específicas cuja cobrança seria direito do senhor.
O modelo geralmente apresentado de feudalismo só era encontrado de forma tão bem
delimitada em determinadas regiões francesas. Mesmo em regiões da França, como o su-
doeste e na Normandia, dificilmente as características habitualmente apontadas para carac-
terizar o sistema feudal são tão claramente perceptíveis. Dessa forma, é necessário destacar
que a sociedade rural da Idade Média Central deve ser considerada como algo heterogêneo,
havendo diversas expressões regionais, cada qual com as suas peculiaridades, sendo o es-
quema geral apenas uma síntese didática.

capítulo 3 • 71
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BROWN, Elizabeth A. R. The tyranny of a construct: feudalism and Historians of Medieval Europe.
The American Historical Review, v. 79, n. 4, p. 1063-1088, 1974.
D´HAENENS, Albert. As invasões normandas: uma catástrofe? São Paulo: Perspectiva, 1997.
FULBERT DE CHARTRES. De Fulbert de Chartres ao Duque de Aquitânia Guilherme V (1020). In:
PEDRERO-SÁNCHEZ, Maria Guadalupe. História da Idade Média. Textos e testemunhas. São
Paulo: UNESP, 2000.
GALBERT DE BRUGES. Vassalagem e investidura (s. XII e XIII). In: PEDRERO-SÁNCHEZ, Maria
Guadalupe. História da Idade Média. Textos e testemunhas. São Paulo: UNESP, 2000.

72 • capítulo 3
4
O ano mil e a
religiosidade e a
política no século
XI-XII
4.  O ano mil e a religiosidade e a política no
século XI-XII

O mundo pós-carolíngio foi marcado por um processo acentuado de fragmen-


tação política, em que os poderes senhoriais locais e as redes pessoais de de-
pendência tenderam a prevalecer. Nesse ambiente, a nobreza inclinava-se à
militarização e ao emprego da força como forma de reforço da sua posição no
mundo, incorrendo em constantes conflitos bélicos com outros nobres. A Igre-
ja estava subordinada à ingerência desse laicato e propensa a ataques e saques
dos senhores envolvidos em guerras. Ataques de normandos, sarracenos e ma-
giares contribuíam com a tendência generalizada.
Robert S. Lopez disse que o cenário adverso do século X compreende as “dores
de parto da Europa”. Para além do caráter anacrônico e politicamente orientado de
tal afirmativa, deve-se atentar como a conjuntura complexa do ano mil favoreceu
as transformações que se sucederam nos séculos subsequentes da Idade Média.
No presente capítulo, serão analisados os elementos religiosos e políticos
que perpassaram os séculos X, XI e XII. O enfoque recai sobre as consequências
imediatas da fragmentação política carolíngia, tal como a reconfiguração reli-
giosa e política do Ocidente ante as transformações estruturais.

OBJETIVOS
•  Compreender a crise do ano mil;
•  Entender que o fim da estrutura política do Império Romano do Ocidente não significou
seu fim ideológico;
•  Explicar as relações de poder e a cultura eclesiástica, em especial entendendo a existência de
projetos universalistas, que podem ser observados pela compreensão da crise das investiduras;
•  Entender o que é uma heresia e seu papel na sociedade medieval.

4.1  O ano mil: crise?

Por volta do ano mil, as estruturas sociopolíticas ocidentais eram caracteriza-


das pelo cenário oriundo da fragmentação de poder decorrente do desmem-
bramento do Império Carolíngio. A ausência de autoridades centrais efetivas

74 • capítulo 4
num mundo ainda ruralizado e com tendência aos vínculos de dependência de
natureza pessoalizada foram fatores que favoreceram a militarização da nobre-
za. Naquela conjuntura em que a posição do mundo era demarcada pela capa-
cidade de manter o domínio sobre terras e homens, por sua vez assegurado pela
força, os conflitos entre senhores eram constantes, o que favorecia o ataque ao
patrimônio e os homens da Igreja.
A tutela laica sobre o clero também era algo comum. Os membros da elite
erguiam igrejas e mosteiros sem a permissão das autoridades eclesiásticas. Em
contrapartida, os próprios membros do clero tendiam à indistinção entre a sua
condição como membro do clero e a vida secular. Havia uma tendência gene-
ralizada do abrandamento disciplinar dos membros do clero, mesmo entre os
monges. Tornaram-se comum, por exemplo, o nicolaísmo (casamento de cléri-
gos) e a simonia (compra e venda de cargos eclesiásticos por leigos).
O reforço carolíngio ao retorno artificial do latim clássico não resultou no
uso cotidiano; pelo contrário, a tendência de surgimento de formas locais de
comunicação foi acentuada. Por conta do cenário de diversidade linguística em
oposição a qualquer unidade viável, criou-se um ambiente em que o latim era
paulatinamente esquecido pelo laicato e se restringia aos círculos clericais – e,
ainda assim, com cessões aos idiomas vulgares.
Para agravar esse panorama, o século X também foi marcado por novas in-
cursões de povos externos. Primeiramente, os normandos, que chegavam ao
Ocidente navegando por mares e rios em suas ágeis embarcações, tal como
apontado no capítulo anterior. Havia ainda os sarracenos, piratas de origem
muçulmana que atacavam principalmente o litoral mediterrânico e captura-
vam cristãos para depois venderem como escravos. Por fim, os magiares, guer-
reiros montados vindos das planícies da Panônia, na Ásia Central. Tais ataques
eram retratados pelas fontes cristãs ocidentais como investidas demoníacas,
assim como esses povos eram caracterizados de forma pejorativa.
Esse conjunto de adversidades levou o historiador Robert S. Lopez a carac-
terizar o ano mil como “as dores de parto da Europa”. Evidentemente, essa afir-
mação seria politicamente orientada: desde meados do século XX, vigora na
Europa uma preocupação em perceber na Idade Média as origens de uma “ci-
vilização europeia”, que legitimaria as pretensões unificadoras desses países.
Para além dessas questões, deve-se considerar a pertinência da colocação, uma
vez que o complexo ambiente do ano mil desencadeou os processos históricos
que caracterizaram os séculos subsequentes.

capítulo 4 • 75
No nível das mentalidades, diz-se que o ano mil foi um período de temo-
res. A afirmação que percorre os estudos medievais desde o século XVI é bas-
tante controversa. Alguns historiadores alegam que essa época foi perpassada
por um grande medo coletivo devido à perspectiva de proximidade do fim do
mundo. Outros, porém, argumentam que tal hipótese derivaria de um exagero
interpretativo. A historiografia oscila, portanto, entre a aceitação e a negação da
tese dos “temores do ano mil”.
A ausência de documentação farta, aliada aos problemas de natureza meto-
dológica e conceitual, contribui para a inexistência de uma solução adequada
à polêmica. Cabe aqui, portanto, analisar as categorias do imaginário clerical
e popular daquela época, sem ter em vista o fortalecimento de uma ou ou-
tra abordagem.
Antes, entretanto, de abordar os dois tópicos, um adendo é necessário. A
divisão entre imaginário popular e clerical é, obviamente, uma delimitação di-
dática que visa a dar inteligibilidade a uma dinâmica cultural complexa. É re-
corrente que historiadores utilizem tais artifícios com o fim de se fazerem com-
preendidos pelo seu público. Cabe lembrar sempre que, numa sociedade, as
formas de perceber o mundo das diferentes camadas sociais não se distinguem
de maneira clara – até porque, como bem perceberam Bakhtin e Ginzburg,
existe sempre circularidade, ou seja, apropriações da cultura de um segmento
por outro.

4.1.1  O imaginário clerical

Para os pensadores da Igreja, o tempo era considerado uma marcha que se ini-
ciou a partir da Criação e da expulsão do homem do Paraíso e que inevitavel-
mente rumava para o Apocalipse. Tal encaminhamento histórico não era algo
que poderia ser controlado pelo gênio humano, uma vez que foi estabelecido e
planejado por Deus.
O poder eclesiástico estava associado justamente ao controle do tempo.
Desde o início do período medieval, houve tentativas de composição de calen-
dários permeados por festividades cristianizadas, como a Páscoa ou os dias de
santos. O cômputo do tempo era realizado pelo clero, autoridades que, acredi-
tava-se, compreendiam os complexos cálculos astronômicos e sequências cro-
nológicas necessárias para se situar temporalmente.
Naquela época, cria-se existir uma relação intrínseca entre microcosmos
e macrocosmos, ou seja, entre a pequena dimensão humana e a vastidão do

76 • capítulo 4
universo. De algum modo, a particularidade do homem trazia em si a complexi-
dade geral da Criação – e vice-versa. Então, se o ser humano envelhece, o mun-
do também deveria envelhecer. Ou melhor, o mundo já era ancião e, portanto,
estaríamos nos aproximando do seu fim. O dia do Juízo Final seria algo impre-
visível, pois sua datação precisa seria algo possível apenas para a onisciência
divina. Ainda assim, perpassaria no imaginário coletivo uma sensação de que
este ocorreria em breve.
Tornou-se muito comum a produção literária e iconográfica com temas
apocalípticos, além da reprodução do livro Apocalipse de João e apócrifos si-
milares. Uma figura mencionada apenas quatro vezes no Novo Testamento e,
ainda assim, de forma genérica, começou a despontar na produção clerical: o
Anticristo. Construiu-se para esse personagem uma biografia baseada em nar-
rativas orientais, judaicas e do Antigo Testamento.
O Anticristo seria o oposto de Cristo, mas que tentaria copiá-lo para enga-
nar os homens. Segundo lendas, nasceria de uma virgem ou, como defenderam
alguns autores eclesiásticos, seria fruto de uma relação sexual entre o Diabo e
uma donzela. Sua cidade natal seria a Babilônia, local do pecado, em oposição
a Belém, onde nasceu Jesus. Após sua concepção e parto, o Anticristo seria acei-
to como messias e reinaria por três anos e meio, até que o próprio Cristo ou o
arcanjo Miguel o derrotasse. O Anticristo contaria com um exército, composto
pelos povos de Gog e Magog, que travaria combate contra as tropas de santos
e mártires. O Juízo Final, na literatura apocalíptica cristã do ano mil, chegaria
quarenta dias depois da morte do Anticristo.
Frequentemente, a perspectiva de proximidade do Anticristo e do Juízo
Final era retomada. Essa tensão seria evocada pelo clero como forma de lidar
com infortúnios, calamidades e com povos não cristãos que porventura vies-
sem a atacar. Consistia, portanto, numa categoria do pensamento clerical
constantemente evocada e instrumentalizada. Mediante o anúncio do fim dos
tempos, reforçava a necessidade de aceitação da revelação cristã, portanto da
subordinação ao clero.

4.1.2  O imaginário popular

A iminência dos últimos dias era algo que alardeava os leigos. Se, para o clero, a
datação exata do Juízo Final era indeterminável, para os populares o Apocalipse
certamente já estava em curso.

capítulo 4 • 77
Como resposta, desenvolveu-se uma sensibilidade puritana na cultura lai-
ca. Houve ênfase maior no comportamento irrepreensível do homem e na ne-
gação dos pecados. O ideal da ascese monástica exerceu grande fascínio sobre
os homens comuns, resultando em formas de espiritualidade leiga que incor-
poravam certas práticas de renúncia antes restritas ao espaço do mosteiro.
A prática da penitência, que visava à redenção dos pecados, também foi
difundida. A vida religiosa era compreendida a partir de metáforas militares,
sendo definida em termos de “combate ao antigo inimigo”. A violência do mun-
do carolíngio e as expectativas milenaristas favoreceram a transposição dessas
ideias de combate espiritual para a realidade leiga. A penitência, nesse senti-
do, seria uma das principais armas à disposição do homem secular em sua luta
contra os pecados.
Constata-se o crescimento das referências às práticas de mortificações cor-
porais extremas por parte dos leigos nas fontes escritas por volta do ano mil.
O sofrimento físico, o castigo infligido em si mesmo e o jejum aplicados com
severidade integravam a conduta penitencial. Identificam-se, ainda, menções
ao uso de cilícios de crina e do chicote para o autoflagelo.
Em consonância com a cultura dessa época, emergem duas formas de prá-
tica penitencial entre os leigos: o eremitismo e a peregrinação. No primeiro
caso, seculares isolavam-se do restante da sociedade para uma vivência cristã
rigorosa. No segundo, massas deslocavam-se em busca de lugares com célebres
relíquias de santos ou com destacado significado simbólico e religioso. Em
ambos, os obstáculos e as dificuldades da escolha eram interpretados como
oportunidades de experimentação da fé perseverante e de se redimir com Deus
pelas faltas.

4.2  Organizações políticas

O mundo do imediato pós-carolíngio tendeu à pulverização política, em que


cada vez mais os senhores locais dispunham de independência e poder dian-
te dos poderes centrais. Ainda que a figura do rei continuasse a existir, suas
possibilidades de atuação eram bastante restritas. Os ataques de normandos,
sarracenos e magiares aceleraram esse processo, na medida em que tornaram
necessária a mobilização de forças regionais e de redes pessoais de aliança para
resistir às incursões.

78 • capítulo 4
O Tratado de Verdun, de 843, firmado entre os netos de Carlos Magno, de-
correu das disputas no âmbito da família carolíngia acirradas pelo processo já
latente de fragmentação política. A partir de então, o título imperial perderia
seu sentido simbólico e prático na ordem política, até 962, quando o rei alemão
Oto I promoveu a “segunda renovação do Império”.
Oto I adotou uma série de táticas para obter prestígio cada vez maior e fazer
prevalecer a posição do seu reino no contexto ocidental. Repeliu eslavos e ma-
giares, assegurando a pacificação da região que governava. Por meio de aliança
matrimonial, obteve o título de rei na Península Itálica também. Deu apoio ao
bispado romano em querelas locais. Dessa forma, alicerçou as condições que
propiciariam sua reivindicação pela dignidade imperial.
Com a coroação de Oto I, ressurgia o Império Franco, que adotaria outras
nomenclaturas posteriormente: passaria a ser denominado Santo Império, em
1157, e Santo Império Romano Germânico, em 1254. Tal entidade seria pre-
ponderante na política ocidental até meados da Idade Moderna, quando os di-
versos Estados reclamariam por soberania.

COMENTÁRIO
O conceito de soberania foi cunhado pelo jurista francês Jean Bodin (1530-1596), em sua
obra clássica Os seis livros da República (1576). Até aquele momento, existia a palavra “so-
berano”, que concernia apenas a quem ocupava um patamar de proeminência na hierarquia
sociopolítica. Nas reflexões inovadoras de Bodin, a soberania consistiria num poder absoluto,
perpétuo e indivisível existente numa República com vistas a mantê-la unida. Tal poder não
poderia ser partilhado com outros dentro de um território ou subordinado a uma instância
externa. Na reflexão de Bodin, a soberania seria prerrogativa do rei. Posteriormente, o filóso-
fo iluminista Jean-Jacques Rousseau proporia um deslocamento da definição conceitual: a
soberania seria atribuída ao povo.
De forma sucinta, o verbete “Soberania” do “Dicionário de Política”, organizado pelo cien-
tista político Noberto Bobbio, Nicola Mantieucci e Gianfranco Pasquino, define o termo em
questão da seguinte maneira: “o conceito político-jurídico de Soberania indica o poder de
mando de última instância, numa sociedade politica” (p. 1180). No mundo moderno, esse
poder seria delegado ao rei, que monopolizaria a força militar, o sistema de tributação e
a atividade legislativa. Internamente, nenhum senhor poderia reivindicar a constituição de
exército privado, a cobrança de impostos ou leis; externamente, não haveria instâncias com
competência para incidir sobre um determinado reino. O poder soberano do rei, portanto,

capítulo 4 • 79
implicava no domínio pleno de um território e de uma população. Para além das fronteiras do
seu Estado, haveria outro poder soberano de natureza igual e, por isso, não tinha nenhuma
legitimidade de mando nessa outra região.
Por meio da multiplicidade de Estados europeus ocidentais que reclamavam suas sobe-
ranias na modernidade, aliada a outros fatores, a ordem política medieval foi rompida. A partir
de então, a pessoalidade do poder, tal como as pretensões universalistas do Império e do
Papado, deixariam constituir o cerne da dinâmica entre as diversas monarquias.

O poder imperial era resultado da junção de três reinos, todos governados


por uma monarquia franca: Alemanha, Itália e Borgonha. Contudo, havia difi-
culdades por parte da realeza em assegurar o controle efetivo desses territórios,
cada qual com as suas especificidades. O recurso ao título imperial consistia
num subterfúgio para manter a coesão do domínio.
Conforme já explorado em capítulos anteriores, o título de Imperador im-
plicaria em pretensões universalistas por parte de quem o detivesse. No caso do
Santo Império, declarava-se ser este herdeiro do Império Romano e designado
divinamente para tutelar a Cristandade. As demais monarquias contavam com
reis, entre os quais Deus distribuiu o fardo de governar a determinado conjunto
de homens, mas não de forma alheia aos princípios cristãos e às hierarquias
que prevaleciam sobre toda a comunidade dos fiéis. Dessa forma, reivindicava-
se para o Império a prerrogativa de se sobrepor às demais monarquias ociden-
tais cristãs.
Concomitantemente, a Igreja tendia à consolidação do papado. Desta for-
ma, se por um lado o Império pretendia prevalecer sobre as demais entidades
políticas então existentes, por outro o poder do pontífice católico ascendia e
anunciava para si a primazia sobre a Cristandade. O conflito entre dois poderes
universalistas concorrentes perpassaria toda a Idade Média Central e a Baixa
Idade Média. O resultado do processo, na longa duração, foi o enfraquecimento
mútuo, dando marguem à posterior emergência das monarquias modernas e
autônomas.

4.3  O papado: disputas políticas e reformas

Conforme demonstrado, a fragmentação do mundo carolíngio e a consequente


tendência à militarização e independência da nobreza resultaram em condi-
ções desfavoráveis à coesão e ao poder da Igreja. Os senhores intervinham nos

80 • capítulo 4
assuntos eclesiásticos, tal como atacavam homens e bens da Igreja; em contra-
partida, o modo de vida clerical, na prática, não se distinguia do laico. A prática
da simonia e do nicolaísmo havia se tornado comum.
Deve-se ressaltar que a situação da Igreja nos primeiros tempos após a dis-
solução do Império Carolíngio consistia num aprofundamento das estrutu-
ras estabelecidas no Ocidente no início da consolidação do cristianismo, não
numa ruptura com o contexto anterior. Era comum a intervenção por parte dos
leigos na dinâmica eclesiástica, sobretudo por parte de reis e nobres. O próprio
estilo de vida do clero, mesmo dos bispos, em vários aspectos eram semelhan-
tes aos da elite secular, a despeito das tentativas de imputar aos homens da
Igreja formas de distinção social.
A partir do século X, uma série de iniciativas reivindicava a implementação
de uma delimitação mais clara entre o clero e os leigos. O movimento monás-
tico cumpriu papel destacado nesse processo. Naquele momento, os mostei-
ros não eram exceção à lógica que atingia o restante da Igreja: muitos abades
não haviam se convertido à vida religiosa, permanecendo leigos, assim como
a ingerência laica sobre as comunidades ascéticas era recorrente. A fundação
do mosteiro de Cluny seria a primeira expressão notável de uma contestação a
essa conjuntura.
Erguido na região da Borgonha em 910 pelo abade Bernon, o mosteiro de
Cluny afirmava a sua não subordinação a qualquer tipo de jugo leigo desde o
primeiro momento. Para tanto, buscou a filiação direta à autoridade do bispo
de Roma, escapando, assim, a qualquer pretensão do episcopado ou da nobre-
za locais de intervirem na comunidade. Além disso, Cluny consistia numa espé-
cie de federação monástica, em que diversas comunidades governadas por um
prior respondia ao abade de Cluny.
Nesse período, a maior parte dos monges ocidentais adotava a regra benedi-
tina como instrumento normativo. Cluny seguiu essa orientação geral, porém,
interpretando as diretrizes definidas por Bento de Núrsia a partir de uma ótica
particular. O opus Dei, que compreendia a leitura das Escrituras e de autores
cristãos consagrados (lectio divina) e a liturgia, tornou-se central no cotidiano
monacal.
O trabalho diário obrigatório, por sua vez, teve sua carga horária reduzida e
seu papel se tornou mais simbólico. Isso não significa que não houvesse quem
se envolvesse nas atividades econômicas que asseguravam o sustento do mos-
teiro: estas eram delegadas aos servos que habitavam nas propriedades da co-
munidade. Afinal, os mosteiros ocidentais dispunham de grandes parcelas de

capítulo 4 • 81
terra, uma vez que todo aquele que se convertia à vida monacal tinha de ceder
todos os seus bens ao coletivo. O modo de organização da produção não diferia
tanto nos domínios monásticos daquele existente nos laicos.
As ocasiões litúrgicas eram momento de encenações e gestuais de forte car-
ga dramática, que reforçavam a dimensão simbólica do acontecimento. Os sal-
mos, por exemplo, eram recitados com os membros da comunidade prostrados
ao chão, enquanto o evangelho da Paixão era lido na sexta-feira santa com dois
monges tomando panos depositados no altar e os rasgando. Também se torna-
ram recorrentes as procissões solenes, em que os monges seguiam em cortejo
de uma igreja monasterial para outra.
O rigor litúrgico era compreendido a partir de um discurso que atribuía ao
espaço monástico o papel de lugar privilegiado de luta contra o pecado e as for-
ças demoníacas. Defendia-se a ideia de que o monge prestava serviço e fideli-
dade a Deus, numa comunhão com o divino que anteciparia a vida posterior ao
Juízo Final. Logo, os monges de Cluny se consideravam uma elite espiritual no
seio da sociedade cristã, sendo seu estado superior a qualquer outro – inclusive,
aos do clero secular.
Provavelmente, as práticas litúrgicas que vigoravam em Cluny não foram
inventadas ali. Entretanto, o aprofundamento do seu caráter simbólico e sua
ampla implantação na vida comunal, associados a um discurso que estabelecia
uma clivagem mais rígida entre o monge e o secular, consistem numa especifi-
cidade de Cluny. Torna-se instigante a constatação de que as primeiras elabo-
rações do esquema social tripartite medieval das quais temos notícias tenham
provindo de Cluny: ao apartar os oratores dos outros segmentos da comunida-
de cristã, a distinção da vida clerical em relação à laica, tal como a sua posição
adiante das demais.
A renovação espiritual promovida pelos monges de Cluny foi referência no
ideário que justificava o processo conhecido como Reforma Gregoriana. Outro
fenômeno importante do período que contribuiu para esse desenvolvimento
foram os movimentos de paz, que serão contemplados em outro capítulo.
A Reforma Gregoriana tem essa designação por conta de Gregório VII, que
ocupou o cargo de bispo de Roma entre 1073 e 1085, pois foi o principal arti-
culador das transformações eclesiásticas do século XI. Para além da exaltação
apologética realizada pela historiografia tradicional, sobretudo a que foi pro-
duzida por membros da Igreja Católica, deve-se entender a ação desse prelado
atentando para o respaldo às aspirações sociais que atravessavam diversos se-
tores da Cristandade.

82 • capítulo 4
Durante o período de Carlos Magno, a tendência era a primazia do Império
sobre a Igreja. Oto I, ao empreender sua reconstrução da dignidade imperial,
iniciou uma tradição em que o imperador indicava quem assumiria o papado.
A elite das cercanias de Roma também intervinha nessa sucessão. Nicolau II, à
frente da sé eclesiástica romana, reservou ao colegiado de cardeais o direito de
escolher quem deteria o cargo de papa.
Outras mudanças relevantes ocorreram a partir de então. Nicolau II com-
bateu o nicolaísmo, punindo os envolvidos com a excomunhão e proibindo os
leigos de ouvir a missa realizada pelo clero que possuía vida conjugal. Proibiu
a fundação de igrejas por leigos em qualquer circunstância. Por fim, reforçou a
obrigatoriedade do pagamento do dízimo, que ficaria à disposição dos bispos.
Com Gregório VII, a reforma se consolidaria, reforçando o poder sustenta-
do pela figura do papa. Adotou como diretriz para a sua atuação o mote libertas
Ecclesia, ou seja, liberdade da Igreja. Com isso, fazia alusão à perspectiva de
combater qualquer forma de intervenção laica sobre o clero, tal como delimitar
de forma precisa as fronteiras entre a vida secular e a eclesiástica. A partir de tais
princípios norteadores, buscou a aplicação de medidas para impedir a inter-
venção imperial em Roma e para coibir as práticas do nicolaísmo e da simonia.
Tendo a proeminência no processo de moralização do clero e de coibição
da tutela leiga sobre os assuntos eclesiásticos, o papado assumiu a dianteira
dos encaminhamentos políticos da Igreja como um todo. Se antes o prelado
romano era apenas mais um bispo como qualquer outro, ainda que tendo pres-
tígio reforçado por estar situado numa sé renomada, a partir do pontificado de
Gregório VII desempenharia papel fundamental no mundo eclesiástico.
Ao longo da sua trajetória, Gregório VII atacaria bispos dissidentes, nobres
adversários e o imperador. A retórica empregada em seus escritos contra seus
oponentes sublinhava as responsabilidades delegadas por Deus ao papado no
âmbito da Cristandade: ao pontífice caberia a liderança na luta contra as in-
vestidas do Inimigo, que tendiam a atacar a própria Igreja e desvirtuar os fiéis.

CURIOSIDADE
O Dictatus papae consistiu num conjunto de 27 sentenças promulgadas pelo papa Gregório
VII, provavelmente no ano de 1075. A historiografia destaca a importância do documento,
uma vez que apresentaria o conjunto de orientações que permeariam a reforma encabeçada
pelo pontífice.

capítulo 4 • 83
Leia, abaixo, as sentenças presentes nessa fonte:

1 – A Igreja romana foi fundada somente pelo Senhor.


2 – Somente o Romano Pontífice pode ser chamado de direito, de bispo de Roma.
3 – Somente ele pode depor ou restabelecer bispos.
4 – Seu enviado precede todos os bispos no Concílio, mesmo se for de grau inferior, e
pode pronunciar sentença de deposição de um bispo.
5 – O papa pode depor os ausentes.
6 – Não se deve residir na mesma casa onde moram pessoas que ele excomungou.
7 – Somente ele pode promulgar novas leis, atendendo às exigências dos tempos, formar
novas comunidades religiosas, transformar um cabido de cônegos em abadia, ou vice-versa,
dividir uma diocese rica ou unir dioceses pobres.
8 – Somente ele pode usar as insígnias imperiais
9 – Somente dos papas os príncipes devem beijar os pés.
10 – Somente o seu nome pode ser citado nas igrejas.
11 – Este nome é único no mundo.
12 – A ele é lícito depor o imperador.
13 – A ele é lícito, se houver necessidade, transferir um bispo de uma sé para outra.
14 – Pode enviar um clérigo de qualquer igreja, lá onde estiver.
15 – Aquele que foi ordenado por ele pode presidir sobre outra igreja, mas não deve man-
ter uma posição subordinada; e tal não deve receber uma posição maior de nenhum bispo.
16 – Nenhum sínodo pode ser chamado geral sem o consentimento do Papa.
17 – Nenhuma norma e nenhum livro podem ser considerados canônicos sem a apro-
vação dele.
18 – A decisão dele não pode ser questionada por ninguém, somente ele pode rejeitar
a sentença de qualquer um.
19 – Somente ele não pode ser julgado por ninguém.
20 – Ninguém pode condenar aquele que apela para a Santa Sé.
21 – Toda causa de maior relevo de qualquer igreja, deve ser remetida à Santa Sé.
22 – A Igreja romana nunca errou, e segundo o testemunho das Escrituras nunca cairá
no erro.
23 – O Pontífice romano, desde que sua eleição tenha sido realizada segundo as regras
canônicas, é sem dúvida, santificado, graças aos méritos do bem-aventurado Pedro, assim
testemunha S. Enódio, bispo de Pádua (†521); à sua voz se unem a muitos santos Padres,
assim como se pode ver nas decretais do bem-aventurado papa Símaco (†514).

84 • capítulo 4
24 – Depois de sua decisão, e com sua autorização, é permitido ao súdito apresentar
uma queixa.
25 – Mesmo sem recorrer a um sínodo, pode depor um bispo ou receber de novo na
igreja aqueles que tenham sido excomungados.
26 – Ninguém deve ser considerado católico se não estiver de pleno acordo com a
Igreja Católica.
27 – Ele pode liberar os súditos do juramento de fidelidade ao Soberano, em caso
de injustiça.”
Disponível em: http://www.deuslovult.org/2011/04/16/dictatus-papae-gregorio-vii/.
Acessado em junho de 2016.

No decorrer das reformas do século XI, figurou-se a tendência de centrali-


zação das principais decisões eclesiásticas na figura do papa. O surgimento do
processo de canonização foi um dos mais conhecidos desdobramentos desse
fenômeno. O culto aos santos havia surgido ainda no período romano e, no iní-
cio da época feudal, já era uma manifestação religiosa consolidada. Até então, a
santidade de uma pessoa surgia de forma razoavelmente espontânea por parte
dos fiéis de uma determinada região, ou, no máximo, estimulada pelas autori-
dades eclesiásticas locais. A partir da reforma gregoriana, a legitimidade de um
santo teria de advir de um ritual burocrático dirigido pelo pontífice.

4.4  Heresias e as ordens mendicantes

A Idade Média Central teve seus elementos fundamentais desenvolvidos a par-


tir do contexto conturbado do mundo imediatamente posterior à dissolução
do Império Carolíngio. A revolução agrícola e a expansão comercial dos sécu-
los XI e XII possibilitaram a revitalização das cidades na Idade Média Central.
Em contrapartida, a mundanização do clero e a tutela laica sobre os assuntos
eclesiásticos favoreceriam o processo de renovação da Igreja, culminando na
Reforma Gregoriana.
Duas expressões religiosas desses processos históricos seriam a prolifera-
ção de heresias e o surgimento das ordens mendicantes. Enquanto o primei-
ro fenômeno era constituído por movimentos que não se subordinariam ao
poder papal, o segundo possibilitou a inserção da Igreja no cenário urbano
em expansão.

capítulo 4 • 85
4.4.1  Heresias

O termo ecclesia dizia respeito, dentre outros aspectos, à comunidade dos fiéis.
Sendo empregado para se referir ao conjunto dos que professam a fé cristã, era
também um construto ideológico: o pertencimento ou não à ecclesia, por meio
da adesão ao cristianismo, determinava a condição social e política do sujeito.
Ser judeu, por exemplo, num ambiente cristão significaria estar numa situação
de pesadas sanções e restrições.
Durante a Idade Média, a produção intelectual eclesiástica constantemen-
te associou a mensagem cristã à verdade, postulando que qualquer forma de
entendimento do mundo que diferisse da doutrina do cristianismo seria falsa.
A figura do Diabo contribuía para a condenação dos adeptos de outras formas
de religiosidade: qualquer ideia, conceito ou prática que não condissesse com
o estipulado pelo clero era anunciado como algo criado por forças demoníacas
para distanciar os homens da verdade revelada.
Por meio da Igreja, instituição responsável por assegurar a salvação das al-
mas, os homens teriam acesso à doutrina verdadeira, tal e qual anunciada por
Deus e pelas Escrituras. Um conceito importante é o de ortodoxia: toda posição
que estivesse em conformidade com o discurso oficial da Igreja seria conside-
rado ortodoxo.
Mas ser cristão não significava necessariamente estar de acordo com o
que era defendido pela Igreja. Existiam grupos que, embora se identificassem
como cristãos, incorriam posturas que divergiam da ortodoxia e que eram, por
isso, condenados pela Igreja. Esses segmentos são denominados heterodoxos.
Evidentemente, havia no âmbito da instituição alguma margem para
opiniões dissonantes, afinal o clero precisaria de certa flexibilidade para se
adaptar às especificidades das suas áreas de atuação e às transformações das
conjunturas políticas. A sobrevivência da Igreja a despeito das mudanças estru-
turais ocorridas ao longo da História e o poder que conseguiu obter e preservar
em ambientes diversos decorrem dessa relativa maleabilidade e desse razoá-
vel espaço de dissenção. Entretanto, frequentemente surgiram interpretações
doutrinais e experiências religiosas incompatíveis com o discurso oficial e com
os interesses eclesiásticos, daí a inviabilidade da aceitação de toda e qualquer
corrente teológica.
A condenação explícita de certos movimentos cristãos e a sua exclusão da
comunidade dos fiéis delimitada pela Igreja estariam associadas às estratégias

86 • capítulo 4
adotadas pelo clero em cada momento histórico. Entre os séculos IV e VI, por
exemplo, era comum que posições divergentes a respeito da Trindade e da na-
tureza divina e humana de Cristo fossem combatidas pela Igreja. Isso ocorria
porque se vivia um momento em que a unidade dos pormenores doutrinais era
crucial para preservar a coesão da Igreja ainda em vias de consolidação.
No decorrer da Idade Média, os movimentos heterodoxos eram designa-
dos como heresias. A expressão deriva da palavra grega e latina haeresis, que
significa “erro”. Normalmente, as autoridades eclesiásticas, visando ao des-
crédito dessas correntes, apontavam que o desvio decorria de um equívoco
interpretativo da mensagem do Evangelho induzido pelas forças infernais.
Recorrentemente, o herético era retratado de forma caricata, com seus argu-
mentos apresentados de maneira simplória. Também eram imputados aos di-
tos heréticos comportamentos moralmente escandalosos, como a sodomia ou
superstições.
Entre os séculos XI e XIII, a maioria dos movimentos considerados heréticos
consistia em experiências de religiosidade laica espontânea e sem o consenti-
mento papal. Ao contrário dos séculos precedentes, esses grupos habitualmen-
te não tinham formulações teológicas alheias à ortodoxia, sendo sua heresia
essencialmente a não aceitação das determinações vindas de Roma. Nota-se,
ainda, a enunciação de severas críticas à hierarquia eclesiástica como um todo
e ao enriquecimento da Igreja, cuja ostentação material divergia dos princípios
apostólicos de pobreza e humildade.

CURIOSIDADE
Algumas das posições defendidas pelos movimentos heréticos dos séculos XII e XIII foram
compartilhadas pelo monge italiano Arnaldo da Brescia. Por sua postura crítica em relação à
situação da Igreja em sua época, foi condenado pelo Segundo Concílio de Latrão, em 1139,
e queimado em 1155.
Nenhum dos seus escritos sobreviveu até os dias de hoje. Contudo, dispomos de alguns
relatos de autores contemporâneos, que revelam algumas das suas ideias. Leia abaixo pas-
sagem do Historia Pontificalis, redigido por João de Salisbury, em que identifica os principais
elementos do pensamento de Arnaldo da Brescia:
Falava mal dos cardeais, dizendo que sua soberba, avareza, hipocrisia e toda classe de
torpezas não eram da Igreja de Deus, senão casa de negócios e covil de ladrões, sucessores
dos escribas e fariseus dentre o povo cristão; que o papa não era o que o seu nome signifi-

capítulo 4 • 87
cava, varão apostólico e pastor das almas, senão varão sanguinário, que se faz respeitar por
meio de incêndios e homicídios, verdugo das igrejas, atormentador da inocência, que não
faz no mundo mais do que apascentar sua carne, encher seus bolsos e esvaziar os alheios.
JOÃO DE SALIBURY. Documento 3. In: FALBEL, Nachman. Heresias medievais. São
Paulo: Perspectiva, 1999. p. 88.

Dentre as principais características dessa nova onda herética destaca-se o


seu recorte social. Nos primeiros séculos do cristianismo, os embates entre or-
todoxos e heterodoxos eram travados entre autores que ocupavam importantes
cargos na hierarquia eclesiástica e evocavam questões filosóficas e doutrinais
complexas. Na Idade Média Central, o fenômeno herético encontrava grande
repercussão entre pessoas de segmentos menos privilegiados. Era, ainda, um
movimento fundamentalmente urbano, tendo pouco respaldo no meio rural.
Assim, devem-se compreender os movimentos cristãos de contestação reli-
giosa como resultante das novas estruturas que modelavam aquela conjuntura:
o ressurgimento urbano, a Reforma Gregoriana, a participação mais ativa dos
leigos na vida religiosa.
Exemplo destacado de heresia do período foi a cátara. Os adeptos desse
movimento retomavam ideias maniqueístas de forte oposição entre matéria e
espírito, resultando na defesa de uma renúncia ascética extremada. Além de
negarem os sacramentos católicos, adotavam uma postura contrária ao clero
ortodoxo. Como resposta à difusão do catarismo no sul da França, a Igreja orga-
nizou a Cruzada Albigense no século XIII.
Outra heresia de caráter dualista presente no Ocidente foi o bogomilismo.
Oriunda do Império Búlgaro do século X, difundiu-se rapidamente na região
dos Bálcãs e alcançou o Ocidente no século XIII. Inclusive, há a possibilidade
de que os cátaros tenham sido influenciados pelas ideias bogomilas.
O movimento valdense foi iniciado a partir da atuação de Pedro Valdo no fi-
nal do século XII. Segundo a tradição, Pedro Valdo era um rico comerciante que,
após a leitura das Escrituras, optou por abandonar a vida mundana. Tornou-se,
então, pregador itinerante, angariando seguidores. Após várias condenações e
atritos com autoridades eclesiásticas locais, Pedro Valdo foi definitivamente
excomungado pelo papa Lúcio III, no sínodo de Verona de 1184.

88 • capítulo 4
4.4.2  Ordens mendicantes

Durante todo o período medieval, o movimento monástico deteve grande pres-


tígio no Ocidente. O monge figurava como o ideal de homem cristão: abando-
nando a vida secular e renunciando aos bens e aos prazeres da carne, isolava-se
do mundo para se dedicar exclusivamente à contemplação do sagrado. Nesse
sentido, o mosteiro era frequentemente caracterizado como o ambiente em
que se chegaria o mais próximo possível da perfeição cristã.
A diretriz monástica consistia, nesse sentido, num distanciamento do
mundo. Por essa razão, indicava-se que os mosteiros fossem fundados prefe-
rencialmente longe de centros urbanos. A fundação de mosteiros era prática
recorrente por parte de nobres durante os primeiros séculos medievais. Deve-se
compreender o sucesso do empreendimento monástico durante séculos ser-
vindo aos interesses eclesiásticos num Ocidente ruralizado e com dificuldades
para assegurar a capilaridade do poder episcopal.
A maior parte das comunidades monacais adotava a regra beneditina como
documento normativo para a vida nesses espaços. O cotidiano dos monges era
orientado pelo mote “ora et labora”, ou seja, orar e trabalhar. De acordo com
tal perspectiva, o dia para quem ingressou num mosteiro era permeado pela
oração constante e pelo envolvimento em atividades manuais.
A partir do século XI, com o crescimento das cidades, novas demandas co-
meçaram a surgir. Os fatores para o renascimento urbano serão trabalhados
em outro capítulo, cabendo aqui apenas apontar, de maneira sucinta, os ele-
mentos pertinentes à compreensão do advento dos movimentos mendicantes.
Um dos elementos característicos do ambiente urbano consiste na concen-
tração demográfica. A cidade é um lugar onde convivem muitas pessoas. Dessa
forma, o perfil heterogêneo dos grupos e sujeitos desse tipo de local é mais evi-
dente do que entre os habitantes de pequenas comunidades rurais. Com isso,
setores da população historicamente relegados às margens da sociedade ficam
em evidência. É o caso, por exemplo, dos extremamente pobres. Além disso, a
falta de saneamento e de circulação de ar nas cidades medievais propiciaria a
proliferação de doenças, como a lepra. Alguns movimentos leigos de caridade
surgiram, nesse contexto, para prestar assistência a esses marginalizados.
As ordens mendicantes consistiam em instituições religiosas urbanas,
sendo baseadas no voto de pobreza e no envolvimento em atividades evange-
lizadoras e caritativas. Seus integrantes anunciavam que seguiam o modelo

capítulo 4 • 89
apostólico, porém numa via interpretativa distinta daquela do monacato: nas
regras adotadas pelos mosteiros no início do cristianismo latino, a vida apos-
tólica consistiria essencialmente em renunciar à posse individual de bens, dis-
ponibilizando seu patrimônio à comunidade; nos grupos mendicantes, seguir
o modelo apostólico consistiria numa vida ativa de pregação.
Por atenderem às necessidades da Igreja de inserção nas cidades em cres-
cimento, eventualmente obtiveram apoio e reconhecimento papal. A despeito
da razoável convergência entre diversos aspectos dos ideários mendicantes e
heréticos, a aceitação da autoridade pontifícia constituiu crivo importante para
que os movimentos mendicantes fossem permitidos pelo papa.
O iniciador do movimento mendicante foi Francisco de Assis, filho de um
mercador influente que adotou a pobreza nos primeiros anos do século XIII.
Em 1209, fundou a fraternidade dos Irmãos Menores. O papa Inocêncio III
optou pelo reconhecimento da comunidade, mediante duas condições: a ado-
ção da tonsura clerical para que tivessem autorização para pregar e obediên-
cia ao pontífice. Dessa forma, o enquadramento institucional do movimento
foi assegurado.
O ideário franciscano era centrado na pobreza apostólica. Na pregação inicial
de Francisco de Assis, defendia-se que a renúncia deveria não apenas ser indivi-
dual, como também coletiva. Contudo, com o sucesso da Ordem Franciscana e
a angariação de novos adeptos, houve a tendência à acumulação patrimonial e
à organização hierárquica, resultando em vários conflitos internos.
Os dominicanos, por sua vez, resultam de um movimento iniciado por
Domingos de Gusmão, que nascera numa família nobre do Reino de Castela.
Os Irmãos Pregadores, como eram conhecidos, estabeleceram-se num pri-
meiro momento na região do Languedoc, onde os cátaros estavam situados,
no intuito de exercer atividades missionárias. Com o crescimento da violência
naquela localidade, tiveram que dispersar. Domingos de Gusmão, então, resol-
veu cooptar adeptos nas cidades universitárias de Paris e Bolonha. O reconheci-
mento da Ordem ocorreu logo após começarem suas atividades.
A ênfase das orientações dominicanas recaía sobre os estudos. A Ordem dos
Pregadores valorizava a boa prédica cristã, para a qual, segundo acreditavam, a
erudição era indispensável para o seu exercício adequado. Dessa maneira, os
dominicanos priorizavam a vida intelectual à litúrgica e conventual.
A diretriz da pobreza era defendida pelos dominicanos, mas por viés di-
ferente do movimento franciscano. Para Domingos de Gusmão, a opção pela

90 • capítulo 4
pobreza era uma forma de possibilitar a aproximação com hereges e outros
grupos que se pretendiam converter. Tendo em vista esse posicionamento con-
cernente aos bens materiais, os eventuais crescimento e enriquecimento da
Ordem acarretaram menos conflitos e debates internos do que ocorreu entre
os Irmãos Menores.

ATIVIDADES
01. Explique a ideia de “temores do ano mil”, destacando seus principais desdobramentos
na cultura leiga e clerical.

02. Identifique e narre a constituição dos poderes universalistas em disputa no decorrer da


Idade Média Central.

EXERCÍCIO RESOLVIDO
03. Por volta do ano mil, a sociedade cristã teria experimentado um sentimento generalizado
de medo pela expectativa de proximidade com o Fim dos Tempos. O clero, que controlava o
cômputo do tempo tal como sua significação religiosa e litúrgica, anunciava que a trajetória
histórica do homem iniciava com a Queda do Paraíso e inevitavelmente encerraria no Apoca-
lipse. Se a vida humana era marcada pelo envelhecimento, o mundo também envelhecia – e
já estava demasiadamente velho! –, pois o microcosmo individual estava em consonância
com o macrocosmo da Criação. A tópica apocalítica e a definição mais apurada do Anticristo
ascendem nesse período. Também é importante destacar que o discurso clerical que aten-
tava à preparação necessária ao Juízo Final próximo alertava para a subordinação dos fiéis
à Igreja. Por parte do laicato, o Apocalipse não ocorreria em breve, mas já estava em curso.
Esse sentimento teve como consequência uma busca por parte dos leigos em combater o
pecado, resultando em práticas penitenciais por vezes extremas e na difusão do eremitismo.

04. Os poderes universalistas consistem no Império e no Papado. Ao ser coroado imperador


após longo período em que o título caíra em desuso no Ocidente, Oto I e seus sucessores
reivindicaram a tutela sobre toda a Cristandade, dada a natureza de seu poder. O Papado, em
contrapartida, seria o resultado de processos de renovação eclesiástica que culminariam nas
reformas de Gregório VII. A partir de então, o poder na Igreja estaria centralizado na figura do
pontífice romano, que afirmaria seu direito de condução da comunidade dos fiéis.

capítulo 4 • 91
REFLEXÃO
O ano mil foi um período em que perpassavam várias conturbações decorrentes da dissolu-
ção da unidade carolíngia. Num ambiente em que inexistiam poderes políticos centralizados,
a tendência predominante seria a da fragmentação do poder nas mãos da nobreza. Assim,
esta cada vez mais se militarizava. A Igreja, por sua vez, eventualmente era prejudicada nas
constantes guerras senhoriais, tal como experimentava a tutela nobre sobre seus assuntos e
a indistinção prática entre vida clerical e leiga. Muitos eclesiásticos estavam envolvidos com
práticas como a simonia e o nicolaísmo. O clima de insegurança, tal como o fortalecimento
bélico da nobreza, foram aprofundados pelos ataques de normandos, sarracenos e magiares.
Naquele momento, percorria no imaginário coletivo a ideia de que o Juízo Final estava
próximo. Ainda que sem fixar uma previsão de data, alegando que tal certeza apenas Deus
poderia ter, o clero estava em consonância com tal perspectiva apocalíptica. A figura do An-
ticristo começou, a partir de então, a ganhar contornos mais claros na literatura eclesiástica.
Por sua vez, os leigos atemorizados começaram a adotar práticas religiosas que acreditavam
serem preparatórios para o Fim dos Tempos. O rigor ascético, as penitências severas e as
grandes peregrinações marcaram a proximidade com o ano mil.
A ordem política dos séculos posteriores à virada do primeiro milênio seria caracteri-
zada pela disputa entre dois poderes com pretensões universalistas. O primeiro deles seria
o Império. A despeito do uso da dignidade imperial ter tendido ao desuso após o Tratado
de Verdun, Oto I reivindicou ser coroado imperador. Apropriando-se dos valores simbólicos
imbuídos em tal título, Oto I e seus sucessores afirmavam a legitimidade de sua tutela sobre
toda a Cristandade.
O outro poder universalista seria o do papado. Sobretudo a partir da atuação de Gregório
VII, o bispo de Roma, até então prelado com proeminência meramente moral, tendeu a acu-
mular poder. A Idade Média Central seria caracterizada, nesse sentido, pela centralização dos
assuntos eclesiásticos na figura do papa. Esse movimento decorria de fatores complexos: o
espírito de reforma da vida religiosa iniciada pelo monacato de Cluny; a tentativa, inclusive
por meio da ideologia tripartite, de delimitação mais precisa entre o estado leigo e o clerical;
e as pretensões por setores da Igreja em combater a interferência dos poderes seculares
sobre os assuntos eclesiásticos. Anunciando a Libertas ecclesia, Gregório VII empreendeu
medidas para a renovação moral do clero e para cessar a tutela mundana na Igreja.
As transformações sociais, políticas e econômicas que perpassaram a Idade Média Cen-
tral favoreceram a aparição de novos movimentos religiosos, com particular apelo junto ao lai-
cato. Primeiramente, as heresias. Nos primeiros séculos do cristianismo, a contestação cristã
à Igreja institucionalizada era promovida por pessoas com importantes cargos eclesiásticos

92 • capítulo 4
e era permeada por divergências doutrinais intelectualizadas; na Idade Média Central, cons-
tituía um fenômeno composto essencialmente pelo laicato urbano de origem social inferior,
que contestava a hierarquia constituída e a riqueza material do clero.
Outro desdobramento importante foi o surgimento das Ordens Mendicantes. Atendendo
às pretensões eclesiásticas de inserção no ambiente urbano, angariaram apoio papal e pres-
tígio social. Embora algumas das posições dos mendicantes estivessem próximas daquelas
defendidas por alguns grupos heréticos, sua explícita subordinação à hierarquia instituída
assegurou que sua existência fosse autorizada pelo pontífice romano. Os pilares desses
grupos consistiam na pobreza, na pregação, na defesa do evangelho e na ação assistencial.
Os dois principais movimentos foram os franciscanos e os dominicanos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOLTON, Brenda. A reforma na Idade Média. Lisboa: 70, 1983.
FALBEL, Nachman. Heresias medievais. São Paulo: Perspectiva, 1999.
FRANCO JÚNIOR, Hilário. O ano 1000. Tempo de medo ou de esperança? São Paulo: Companhia
das Letras, 1999.
VAUCHEZ, André. A espiritualidade na Idade Média ocidental (séculos VIII a XIII). Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1995.

capítulo 4 • 93
94 • capítulo 4
5
Crescimento
demográfico e
transformações
sociais (séculos XI
ao XIII)
5.  Crescimento demográfico e
transformações sociais (séculos XI ao XIII)

Entre os séculos XI e XIII, mudanças estruturais profundas ocorreram no


Ocidente. O processo de paulatina militarização da elite socioeconômica pre-
cipitou o advento da Cavalaria, fenômeno que a Igreja tentou modelar em
conformidade com seus interesses. Houve ainda crescimento demográfico
acompanhado do aumento da produção agrícola, fundamentais para o revigo-
ramento das cidades e do comércio. Novos fenômenos culturais e religiosos de-
correram desse cenário.
Contudo, as condições para o crescimento econômico do Ocidente, com
base num tênue equilíbrio entre a produção e o mercado consumidor, propi-
ciaram também as instabilidades que perpassaram o século XV. Más colheitas,
fome, peste e conflitos bélicos resultaram em problemas para a manutenção
da posição da nobreza e em retração populacional. Das instabilidades da Baixa
Idade Média, por meio da reorganização social e política, seriam estabelecidos
os alicerces para a formação do mundo moderno. Neste capítulo, serão con-
templados tanto o apogeu que caracterizou a Idade Média Central quanto as
dificuldades que acompanharam o fim do período medieval.

OBJETIVOS
•  Discutir o surgimento do cavaleiro no sistema feudal e seu papel nas Cruzadas;
•  Discutir o que foi chamado de Renascimento Comercial;
•  Explicar como as transformações sociais criam e fortalecem as cidades;
•  Discutir as formas de religiosidade desenvolvidas no ambiente citadino;
•  Explicar a interação dos clássicos fatores, fome, peste e guerra para os séculos XIV e XV.

5.1  Renascimento comercial

O período compreendido entre os séculos XI e XIII foi caracterizado pelo au-


mento demográfico. Os conflitos militares nessa época vitimavam pouco: não
houve grandes incursões de grupos externos à Cristandade latina, enquanto os
conflitos senhoriais, ainda que constantes, não eram tão violentos por conta

96 • capítulo 5
dos interesses envolvidos na investida bélica. Também não ocorreram episó-
dios significativos de epidemias. Por fim, um fator determinante ao crescimen-
to populacional foi a expansão agrícola, que assegurou a oferta de alimentos
necessária à manutenção dessa quantidade de pessoas.
Os motivos que propiciaram essa revolução na produção agrícola foram va-
riados. A melhoria das condições climáticas, tornando o ambiente mais pro-
pício ao cultivo, foi um fator importante. Contudo, por si só não fornece expli-
cação suficiente. Deve-se considerar ainda o papel das inovações técnicas e do
avanço sobre as terras não cultivadas nesse fenômeno.
Tanto a geração de excedentes alimentícios quanto o aumento populacional
propiciaram o revigoramento das cidades. No mundo romano, as cidades cons-
tituíam o centro nevrálgico da vida econômica, social e política, papel compro-
metido no cenário de instabilidade nos séculos finais do Império. Desde então,
a tendência era de ruralização, acompanhada de retração da vida urbana. Na
Idade Média Central, o quadro se reverteu, sobretudo em decorrência do gran-
de afluxo de trabalhadores rurais que escapavam dos seus laços de servidão.
A existência de sujeitos sem relações de dependência no campo e em con-
dições de consumir alimentos sem necessariamente participar de atividades
agrícolas possibilitaram a expansão comercial. O percentual de indivíduos en-
volvidos nesse setor da economia foi relativamente baixo, mas suficiente para
suscitar transformações na sociedade medieval.
Primeiramente, houve tendência de enriquecimento de determinados mer-
cadores. O comércio local, de baixo risco e pouco rentável, restringia-se a pro-
porcionar produtos locais pouco diversificados e com elevados custos de trans-
porte. Em contrapartida, o comércio de longa distância e que trazia ao Ocidente
artigos de difícil acesso aos cristãos, sobretudo quando realizado por via marí-
tima, era bastante rentável. No eixo mediterrânico, cidades italianas, principal-
mente Gênova e Veneza, obtiveram ganhos consideráveis; no eixo nórdico, des-
tacou-se o circuito composto por Londres, Novgorod, Reval, Lübeck, Hamburgo
e Bruges, tal como os mercadores alemães organizados na Liga Hanseática.
A região francesa de Champagne desempenhou, no decorrer desse perío-
do, o papel de conectar as atividades comerciais do Mediterrâneo e do Mar do
Norte, possibilitando o intercâmbio de produtos. Dessa movimentação, surgi-
ram as feiras, encontros periódicos de mercadores em determinadas cidades
para a venda de seus produtos.

capítulo 5 • 97
As feiras atraíam não apenas comerciantes, mas também consumidores
que habitavam a cidade e suas redondezas. Esses eventos interessavam à popu-
lação local por diversas razões. Ao receberem indivíduos que vinham de regiões
distantes, obtinham informações para além das cercanias do espaço em que vi-
viam. Também era oportunidade de obtenção de produtos diferenciados, o que
despertava interesse particularmente das elites locais. Por fim, a regularidade
de feiras bem-sucedidas garantia prestígio e oportunidades de prosperidade
econômica para a cidade.
No intuito de estimular a circulação de comerciantes e o estabelecimento
de feiras, senhores e, em alguns casos, reis proporcionavam proteção às carava-
nas mercantis. Além dos salvo-condutos, permitindo o livre trânsito de merca-
dores, a “paz da feira”, estipulada pelas autoridades citadinas, proibia represá-
lias, fornecia alojamentos e condições de armazenamento de mercadorias e a
redução ou isenção das taxas.
Deve-se salientar que o escoamento dos itens para que alcançasse o públi-
co consumidor constituía em atividade distinta da sua produção. O mercado
medieval era muito distinto do burguês da Primeira Revolução Industrial, que
detinha a propriedade dos meios de produção e também era responsável por
disponibilizar para comercialização os bens que fabricavam. A produção era
operacionalizada por grupos fixos e que dominavam as técnicas e as tecnolo-
gias necessárias, sendo o mercador um intermediário entre o produtor e o con-
sumidor. Dessa maneira, estava subordinado às condições e restrições impos-
tas pelos setores produtivos.
A produção artesanal nos ambientes urbanos era dominada pelas guildas,
também conhecidas como corporações. De acordo com a prática recorrente na
Idade Média Central, os profissionais de determinado segmento se associavam
a fim de estipular regras para a participação nos negócios. Estabelecia-se, dessa
maneira, a quantidade que cada oficina poderia produzir, tal como a matéria
-prima a ser empregada, a qualidade final do produto e o preço de venda. Além
disso, o ingresso de um novo agente num ofício deveria ser autorizado pela as-
sociação adequada.
Portanto, a lógica desse sistema de produção era muito diferente daquilo
que conhecemos em nosso contexto capitalista. O nosso modelo econômico é
fundamentado na livre iniciativa e na concorrência dos agentes econômicos,
orientações inexistentes para os homens da Idade Média. O fenômeno das cor-
porações ilustra esse distanciamento: era mais razoável ao contexto medieval o

98 • capítulo 5
firmamento de um acordo que assegurasse os interesses de todos os envolvidos
numa determinada atividade econômica.

5.2  Cavaleiros e movimento cruzadista

Frequentemente, quando se pensa em Idade Média, lembra-se de imediato da


cavalaria e das Cruzadas – ainda que geralmente os leigos tenham uma ideia
um pouco vaga do que foram esses fenômenos. Tanto os guerreiros montados
quanto os movimentos cruzadistas foram manifestações históricas que ocorre-
ram num momento específico do medievo, em circunstâncias específicas. Des-
sa maneira, seria errôneo supor que ambos estiveram presentes no decorrer
dos quase mil anos do período medieval.

5.2.1  Os nobres cavaleiros

A cavalaria, fenômeno que se consolidou nos séculos XI e XII, é de difícil deli-


mitação. Os guerreiros montados a cavalo nesse período devem ser compreen-
didos para além dos seus aspectos militares, tendo em vista a complexidade do
contexto político-social em que se originou. Nesse sentido, cabe destacar que
a cavalaria constituía um grupo fechado aos não nobres, dotado de uma ética e
que justificava sua posição social evocando valores religiosos e aristocráticos.
As condições de nobre e de cavaleiro tendiam a estar de tal maneira associadas
que os termos que as designava – nobilis e miles, respectivamente – eram por
vezes intercambiáveis.
Observa-se, desde o final do período carolíngio, o encarecimento do equi-
pamento militar, devido à sua sofisticação. Tornava-se comum no Ocidente o
estribo, que proporcionava maior estabilidade sobre o cavalo, a cota de malha
(liga de anéis metálicos entrelaçados vestida por cima da proteção de couro),
armamento mais pesado, e assim por diante. Por conta do preço elevado desses
itens, apenas setores economicamente privilegiados teriam condições de arcar
com os custos de preparação para a guerra.
Os processos ocorridos no decorrer dos séculos IX e X também consistiram
em fatores importantes para o advento da cavalaria. Por um lado, a fragmenta-
ção política subsequente ao desmantelamento do Império Carolíngio favore-
ceu o aumento do poder e da autonomia da nobreza; por outro, as incursões de

capítulo 5 • 99
normandos, magiares e sarracenos fomentaram a militarização dos senhores
locais, buscando proteção.
Por fim, cabe sublinhar o papel desempenhado pelas relações de vassala-
gem para o desenvolvimento da cavalaria. Por parte do vassalo, havia os deveres
militares decorrentes da sua obrigação de auxilium. A despeito das especifici-
dades regionais, o cerne desse serviço consistia em proporcionar assistência
militar dentro de um período pré-delimitado. No que concerne ao senhor, este
era obrigado a responder ao apelo do seu vassalo quando injustamente atacado
e defendê-lo dos seus inimigos. A possibilidade de apoio militar quando neces-
sário era o que motivava sujeitos da elite à contração de laços de vassalagem.
Nos séculos XI e XII, pequenos conflitos entre senhores eram frequentes.
Na maioria das vezes, o intento ao deflagrar a batalha era obter a submissão de
um vizinho revoltado, ameaçador ou inclinado a uma aliança com um inimigo.
Todavia, os potenciais ganhos econômicos eram um dos principais atrativos
da participação na guerra: havia o butim decorrente de pilhagens, dos quais
as igrejas e mosteiros nem sempre eram poupados, o valioso equipamento do
derrotado, passível de ser tomado do adversário, e a captura do vencido, cuja
liberação poderia ocorrer mediante pagamento de resgate.

5.2.2  A Igreja e a cavalaria

Por volta do ano mil, a violência da nobreza militarizada causava preocupação à


Igreja, uma vez que era por vezes prejudicada nesses conflitos. A proposição do
modelo tripartite, abordada em capítulo anterior, correspondia, dentre outros
aspectos, aos interesses do clero em normatizar a atividade bélica. Ao reservar
a ordem dos bellatores aos guerreiros nobres, atribuía-se a eles uma função so-
cial que justificava seu ímpeto militar e o direcionava em favor da comunida-
de cristã.
Nessa época, ocorreram os movimentos de paz, que prosseguia com o em-
preendimento clerical de normatização da guerra. A primeira iniciativa nesse
sentido foi a Paz de Deus, cujo objetivo era assegurar a proteção eclesiástica
a determinadas categorias de pessoas, como o clero e os pobres, e a certos ti-
pos de bens materiais, como os prédios e o patrimônio da Igreja. Em séculos
anteriores, membros do clero já haviam agido para restringir a violência dos
poderosos. Porém, até o século IX, o dever de defender certos grupos e bens de
eventuais ataques era do rei; a partir dos concílios do último quarto do século

100 • capítulo 5
X, a atribuição foi transferida aos bispos e conferia-lhes o poder de excomungar
quem invadisse propriedade eclesiástica.
Outra iniciativa foi a Trégua de Deus, que teve início no concílio de Elne, de
1027. Esse empreendimento clerical interditava todo ato de guerra e mesmo
todo constrangimento judiciário nas principais datas do calendário cristão: o
Advento, a Quaresma e os Pentecostes. Além disso, também proibia os embates
militares entre quinta-feira e domingo de cada semana. Geralmente acompa-
nhava essa perspectiva de trégua a reprovação do homicídio entre cristãos e a
indicação do pagamento de uma retratação para quem cometesse esse delito.
Portanto, entre o final do século X e meados do século XI, representantes da
Igreja tentaram imprimir à cavalaria uma configuração que convergisse com
seus interesses. Nesse momento, nem mesmo as restrições às atividades béli-
cas implicavam num repúdio religioso completo à violência. Pelo contrário: o
intuito era atribuir ao guerreiro um papel social e um perfil cristão favorável à
instituição eclesiástica.
A partir de fins do século XI, já havia uma ideologia cavaleiresca propria-
mente dita, na qual a Igreja desempenhava papel fundamental. O adubamen-
to, rito de passagem com entrega solene de espada no qual jovem nobre se
tornava cavaleiro, era permeado por práticas religiosas. Há referências na do-
cumentação da época a atos penitenciais da parte do pretendente e sagração
das armas nessa ocasião. Além disso, exigia-se do guerreiro o respeito a uma
série de valores cristãos.

5.2.3  Guerra Santa e as Cruzadas

O conceito de guerra que esteve presente na Idade Média Central era tributário
da definição de Guerra Justa, cujos primórdios remontavam ao período roma-
no. Marco Túlio Cícero, em seu tratado De officcis, ainda que fosse favorável
aos embates travados em favor da honra imperial, privilegiava as incursões mo-
tivadas por razões justas. Nesse sentido, a causa justa seria reparar e evitar a
repetição de uma injúria quando a solução pelo debate não fosse possível, e
mesmo com a necessidade do recurso à força militar, a paz deveria ser o obje-
tivo final da guerra. Cícero defendia o uso da violência apenas em condições
específicas: em favor da autodefesa e da manutenção da lei e da ordem.
Agostinho de Hipona foi um dos responsáveis pela cristianização da noção
clássica de Guerra Justa. Concordando que a existência de uma causa justa fosse

capítulo 5 • 101
prerrogativa para a eclosão de um conflito bélico, o bispo de Hipona acrescen-
tou motivações morais às razões elencadas por Cícero: a punição às violações
contra as leis divinas, ocorrida sob a autorização de Deus. Assim, as reflexões
agostinianas previam justificativas religiosas para as guerras, possibilitando o
reconhecimento da profissão cristã de um soldado.
No decorrer dos séculos subsequentes, as mudanças conjunturais contri-
buíram para a transformação da ideia de Guerra Justa em Guerra Santa. Dentre
elas, destacam-se o discurso de legitimação das investidas militares de Carlos
Magno, a defesa contra as incursões normandas e a associação entre não cris-
tãos e o Demônio no discurso eclesiástico. Com o desenvolvimento da noção de
Guerra Santa, considerava-se que algumas empreitadas militares eram ordena-
das por Deus e triunfavam mediante auxílio divino. Nesse sentido, nota-se que
as autoridades eclesiásticas não repudiavam o uso da violência, contanto que
utilizassem esse recurso em determinadas circunstâncias.
A convocação para a Cruzada evocava essa noção de Guerra Santa. O movi-
mento era caracterizado numa reconquista de terras cristãs sob o jugo dos in-
fiéis. Jerusalém e lugares santos constituíam elementos fundamentais na pré-
dica convocatória e na mentalidade coletiva daqueles que respondiam ao apelo.
O discurso de Urbano II no Concílio de Clermont (1095), em que requisitava a
concórdia dos guerreiros cristãos em favor de uma empreitada penitencial de
retomada da Terra Santa, aludia a essas topoi. Cabe salientar que tal aborda-
gem correspondia às preocupações por parte da Igreja em direcionar o ímpe-
to bélico da nobreza numa forma que pudesse favorecer a instituição – ou, ao
menos, minimizar o risco de prejuízos com os constantes embates senhoriais.
Para além dos aspectos ideológicos e dos interesses eclesiásticos, os leigos
participaram das Cruzadas motivados por perspectivas materiais. Os interes-
ses comerciais no Oriente de cidades como Gênova e Veneza, as dificuldades
de subsistência de parcelas menos privilegiadas da população e a tradicional
exclusão da herança dos secundogênitos da nobreza também consistiram em
fatores que contribuíram para a partida às Cruzadas.

5.3  As cidades, a sociedade urbana e a Universidade

Conforme referido anteriormente, até o ano mil, houve tendência à retração ur-
bana no Ocidente, fenômeno que se reverteu na Baixa Idade Média. O aumento

102 • capítulo 5
demográfico, a produção de excedentes no campo e a fuga de indivíduos das
suas relações tradicionais de dependência contribuíram para tal transformação.
A vida no ambiente urbano difere muito daquela existente nas áreas ru-
rais, uma vez que a dinâmica do cotidiano, as modalidades de organização
sociopolítica e as estratégias de subsistência são distintas. Na medida em que
as cidades se expandem, transformações estruturais profundas são operadas
na Cristandade.
Cabe, entretanto, a precaução de não superestimar o fenômeno da expan-
são urbana. A população superou os 100 mil habitantes apenas nas principais
cidades italianas e em Paris, de acordo com estimativas especializadas; poucas
cidades dispunham de população equivalente a 10 mil habitantes. Além disso,
o mundo ocidental prosseguia essencialmente rural, concentrando cerca de
80% das pessoas existentes. Ainda assim, a expansão urbana, embora modesta
para as nossas referências contemporâneas, foi suficiente para impactar na-
quela conjuntura.
A muralha constituía elemento fundamental da identidade urbana, a des-
peito de algumas cidades só se fortificarem em meados do século XIV, em de-
corrência da Guerra dos Cem Anos. Construídas geralmente com o propósito
de defesa militar, a muralha delimitava o espaço interno e o externo da cida-
de. Por vezes, alguns núcleos de povoamento murados se reuniam para formar
uma cidade, ou muralhas eram erguidas para a proteção de áreas de ocupação
posterior ao núcleo original.
As portas também detinham valor simbólico importante. Por meio dela,
realizava-se a interação entre o espaço interno da cidade com o mundo exte-
rior. Algumas cidades menores dispunham de número reduzido de portas – em
Carcassone, por exemplo, havia só duas. Outras, mais poderosas e mais bem
localizadas, continham várias. Quando o número de portas era maior, havia a
tendência de umas serem mais importantes que outras. Em Paris, a porta Saint-
Denis era a mais destacada, sendo utilizada pela realeza.
O desenvolvimento da organização política citadina derivou de uma trajetó-
ria de lutas entre os moradores dos centros urbanos contra os poderes senho-
riais locais. Nos séculos XI e XII, houve a oposição urbana contra as pretensões
de coações feudais por parte dos senhores. Reivindicavam, para aquele am-
biente, a implementação de uma comuna, ou seja, um sistema que não fosse
pautado na hierarquização. O grau de autonomia e as estruturas políticas varia-
vam conforme as realidades regionais.

capítulo 5 • 103
5.3.1  A religiosidade urbana

Com a expansão comercial, o aparecimento das guildas e o movimento comu-


nal, houve a aparição e fortalecimento de novos grupos sociais, acompanhados
de novas modalidades de relações sociais. Tais experiências manifestaram no-
vas formas de religiosidade nos ambientes urbanos, geralmente protagoniza-
das pelos leigos. Alguns movimentos religiosos foram combatidos pela sua in-
subordinação às hierarquias instituídas, como foi o caso dos hereges; outros se
institucionalizaram, sendo esta a situação dos medicantes. Esses dois tipos de
experiência foram debatidos em capítulo anterior. Neste, compete identificar
outras modalidades de religiosidade citadina.
Por volta do século XII, difunde-se a prática da caridade. Os ambientes ur-
banos tenderam a concentrar massas de indigentes, mas também favoreceram
a ascensão econômica de determinados setores. A esmola se tornou algo ri-
tual, passando a ser exaltado como uma obrigatoriedade aos mais abastados.
Modalidades de assistência também se tornaram comuns. Nessa época, o auxí-
lio aos leprosos e aos enfermos em geral tornou-se comum.
A ênfase no exercício cristão da caridade foi tanta que influiu mesmo no dis-
curso de legitimação das Cruzadas. O infiel era retratado como opressor, que
castigava o cristão no local em que governava. Nesse sentido, retomar as terras
corresponderia ao atendimento de um chamado de socorro dos fiéis subjuga-
dos por forças alheias à fé supostamente verdadeira.
As confrarias também seriam outra expressão da religiosidade urbana.
Estas tomavam como modelo organizativo as guildas, promovendo a ajuda mú-
tua entre seus membros e a responsabilidade pelo funeral de um eventual com-
panheiro falecido. Por ocasião dos banquetes coletivos, sublinhava-se a ideia
de igualdade e de harmonia que deveriam reger as relações entre os confrades.
O caso dos flagelantes ilustra como as experimentações religiosas leigas
poderiam resultar em formas mais exaltadas de manifestação. Buscando pe-
nitência pelas faltas cometidas, os flagelantes impingiam castigos corporais
severos a si mesmos, como chibatadas. Isso ocorria publicamente em procis-
sões, em que vários fiéis tomavam as ruas para perpetrarem castigos severos
em seu corpo.
Um dos elementos que ilustram o avanço da religiosidade leiga foi o ad-
vento dos santos de origem secular. Até então, a santidade era reservada aos
que haviam exercido ofícios eclesiásticos, preferencialmente aqueles que em

104 • capítulo 5
algum momento da trajetória obtiveram formação monástica. A partir do fim
do século XII, santos leigos, geralmente oriundos da nobreza e das novas elites
urbanas, começaram a ser cultuados.

5.3.2  Os intelectuais e o nascimento das Universidades

A cidade promoveu uma nova relação entre os homens e o saber. Com a ascen-
são de novos segmentos sociais e a busca por parte de elementos vindos da
zona rural, a formação educacional na cidade era uma estratégia apropriada
à conjuntura.
O século XII é apontado por especialistas como a época de surgimento do
intelectual urbano, ou seja, profissionais que se sustentam pelo ensino e pela
pesquisa. Nesse momento, os mestres recebiam do bispo local a autorização
para ensinar – a licentia docenti – e atraíam ao seu redor grupos de estudantes.
Cidades como Paris, que ganhara prestígio pela educação que disponibilizava,
atraíam jovens alunos que causavam transtornos aos moradores e eram critica-
dos pelo clero, por conta do consumo de vinho, das brigas e das arruaças.
Os goliardos constituíam caso ilustrativo dessa nova realidade. Esses inte-
lectuais escreviam poesias anônimas, que faziam apologia ao vinho, ao jogo e
às aventuras amorosas, além de tecerem críticas ao clero, à cavalaria e às eli-
tes urbanas.

CURIOSIDADE
O mais famoso conjunto de poesias goliardas hoje disponível é a Carmina Burana. O códice,
datado do século XIII, foi encontrado na cidade alemã de Benediktbeuern. A maior parte dos
textos está em latim, embora alguns estejam em médio-alto-alemão ou com elementos do
francês provençal.
Em 1936, o compositor Carl Off (1895-1982) tornou-se famoso por ter criado uma can-
tata a partir de alguns dos poemas. A sua versão de Fortuna ganhou visibilidade destacada.

A renovação representada pelos intelectuais urbanos do século XII foi sus-


tentada por duas transformações ocorridas no período. Primeiramente, a apa-
rição de livros mais baratos e de fácil transporte e manuseio. Durante a Alta
Idade Média, os livros eram de grandes dimensões e pesados, e suas páginas

capítulo 5 • 105
eram ricamente decoradas com iluminuras. Eram artigos de prestígio, sendo
entesourados em mosteiros e ambientes privilegiados. Ao se tornarem objeto
de interesse por parte dos grupos urbanos, livros compactos, com textos abre-
viados e sem ilustrações começaram a ser produzidos, visando justamente à
aquisição por esse público.
Em segundo lugar, houve a redescoberta pelo Ocidente da obra de
Aristóteles. Mesmo que seu nome fosse conhecido dos autores dos séculos pre-
cedentes, seus escritos não estavam disponíveis em língua latina. Entretanto,
os árabes liam Aristóteles e reproduziam manuscritos do filósofo grego. No sé-
culo XI, por meio do contato com os muçulmanos na Península Ibérica e no sul
da Península Itálica, os manuscritos ficaram acessíveis à Cristandade. A partir
de então, houve a empreitada pela tradução desse corpus documental. Além de
Aristóteles, tratados de medicina, matemática, geografia, dentre outros, foram
traduzidos e disponibilizados em versões em latim.
No século XIII, o trabalho intelectual se desenvolveu e atingiu um novo pa-
tamar. Surgiram, então, as Universidades – naquele momento, compreendidas
como uma corporação de ofício formada por intelectuais. As corporações uni-
versitárias conflitavam com as autoridades clericais e leigas locais, reivindi-
cando para si a autonomia. Essa foi conquistada graças ao apoio papal, o que,
em contrapartida, resultou em sua subserviência aos interesses pontifícios.
De todo modo, exercendo poder de atração de estudantes para a cidade, dis-
punham de dois instrumentos de luta política que impactavam na economia
urbana: a greve e a secessão.
Além da autonomia jurisdicional, com direito de apelação ao papa, as corpo-
rações universitárias detinham o monopólio da colação de graus universitários.
Para se tornar mestre, era necessária a obtenção de título outorgado por uma
Universidade por meio de aprovação em seus exames. Sendo a Universidade
uma corporação que pretendia associar todos os docentes da Cristandade, o
grau emitido em qualquer cidade seria válido em outras regiões.

5.4  Séculos XIV e XV: outono da Idade Média ou primavera dos


novos tempos?

As conturbações sociais e econômicas ocorridas ao longo do século XIV deri-


vavam das condições frágeis do crescimento da Idade Média Central. Entre os
séculos XI e XIII, a expansão da produção foi acompanhada de um aumento

106 • capítulo 5
populacional, assegurando a demanda por excedentes agrícolas e evitando a
mortandade por fome. Nesse contexto, a nobreza empregava suas rendas em
consumo de artigos luxuosos adquiridos por conta da expansão comercial,
não buscando o aprimoramento do processo produtivo. Dessa forma, uma sé-
rie de eventos resultou no desequilíbrio desse sistema e, consequentemente,
sua crise.
O primeiro problema foram as más condições meteorológicas entre os anos
de 1315 e 1317, que prejudicaram as colheitas que seriam realizadas naquele
ano. As perdas no cultivo resultaram em diminuição na oferta de alimentos,
ocasionando fome generalizada.
Outro fator importante nesse contexto foram as epidemias, que elevaram
as taxas de mortandades. A principal delas foi a da peste bubônica, também
conhecida como peste negra. A doença já era conhecida do Ocidente desde a
Antiguidade, havendo a eclosão de pequenos surtos localizados de tempos em
tempos. Contudo, por meio da chegada de navios mercantis infectados no ano
de 1347, a peste se alastrou no continente europeu em decorrência das movi-
mentações de longa distância e das condições insalubres das cidades.

CURIOSIDADE
A peste bubônica consiste numa doença infectocontagiosa que tem nas pulgas dos ratos
o seu principal vetor de transmissão. O contágio também pode ocorrer pelo contato com os
pingos da tosse ou do espirro de alguém infectado. Durante o período medieval, os médicos
defendiam a ideia de que a difusão da peste era devida ao ar corrompido. Além disso, era
comum a crença de que a epidemia consistisse numa punição divina pelos pecados.
Os sintomas compreendem febre alta, calafrios, dores musculares, dificuldades respira-
tórias, tosse e aparecimento de bulbos na pele – daí a designação popular de “peste negra”.
Hoje em dia já há tratamentos com antibióticos que possibilitam o controle da doença. Como
na Idade Média ainda não se conheciam medicamentos adequados, era impossível evitar
o óbito.

Por fim, houve o impacto demográfico da Guerra dos Cem Anos, em que se
opuseram as dinastias régias da Inglaterra e da França. A despeito do nome, o
conflito perdurou por mais de cem anos, indo de 1300 a 1453, entremeados por
período razoáveis de trégua.

capítulo 5 • 107
Os trabalhadores rurais que sobreviveram às adversidades daqueles tempos
experimentaram melhorias em suas condições de vida. Muitas famílias nobres,
quando não resistiram aos infortúnios, obtiveram perdas econômicas signifi-
cativas, alcançando a ruína. Em decorrência desses fatores, houve retrocesso
da servidão e, inclusive, o enriquecimento de alguns camponeses livres. A de-
manda por mão de obra possibilitou aos trabalhadores rurais a negociação e a
busca de relações econômicas mais favoráveis.
Em diversos momentos, a nobreza tentou restabelecer-se das dificuldades
por meio do aumento das taxas e parcelas de trabalho que exigiam dos que
viviam em suas terras, num processo conhecido como “reação senhorial”. As
tentativas de recuperação pelo reforço da coação econômica desencadearam
diversas revoltas no campo, sendo a mais famosa delas a Jacquerie (1358), no
norte da França.
Para além das conturbações que perpassaram o final da Idade Média, cabe
salientar que o contexto de crise do feudalismo contribuiu para o advento do
mundo moderno. A centralização política por parte das monarquias derivava
dos temores da nobreza ante o cenário adverso. O medo causado pela iminência
do Fim dos Tempos e do castigo divino pelos vícios provocou vivências religio-
sas individuais, que se opunham às pretensões do clero de ser o intermediário
necessário entre os homens e Deus. Completando o quadro de transformações,
a burguesia começava a ascender economicamente e a desenvolver melhores
técnicas para os seus negócios.

ATIVIDADES
01. Caracterize os posicionamentos da Igreja em relação às atividades militares da nobreza.

02. Exponha os elementos que compunham o quadro geral de crise nos séculos XIV e XV.

EXERCÍCIO RESOLVIDO
03. Desde fins do século IX, a Igreja tentou direcionar o ímpeto bélico da nobreza para que
se manifestasse de forma favorável aos seus interesses. Os movimentos de paz (Paz de Deus
e Trégua de Deus) impunham limites às ações dos guerreiros em conflito. A ideologia da tri-
partição da sociedade reservava aos nobres a função de guerrear na ordem estabelecida por

108 • capítulo 5
Deus, mas num patamar hierárquico inferior ao clero. A partir do século XI, o rito de aduba-
mento e a conduta esperada dos cavaleiros eram permeados por significações religiosas.

04. As instabilidades decorreram da quebra do equilíbrio entre demografia e produção agrí-


cola, precipitada pelas más colheitas por conta do mau tempo e pela mortandade causada
pela fome, pela peste e pelas guerras.

REFLEXÃO
Após o ano mil, figurou-se a tendência à expansão da produção agrícola, em decorrência de
inovações técnicas, do aumento da área cultivada e da melhora das condições climáticas.
Houve, ainda, um crescimento demográfico, que assegurou a existência de consumidores
para os excedentes alimentícios produzidos no campo. A nova realidade fomentou transfor-
mações profundas no Ocidente.
O renascimento do comércio ocorreu a partir do século XI. Naquele momento, o mer-
cador era o intermediário entre o produtor e o consumidor, garantindo que a produção local
escoasse e alcançasse os interessados em adquirir. O comércio de longa distância era o que
proporcionava melhor retorno econômico, apesar dos seus riscos, sendo o responsável pela
disponibilização na Cristandade de artigos de difícil acesso.
Havia duas rotas comerciais importantes: a do Mar do Norte e a do Mediterrâneo. O
intercâmbio entre ambas beneficiou a região francesa de Champanhe, onde se encontravam
as principais feiras medievais.
Outro fenômeno urbano importante foram as corporações de ofício, que consistiam em
associações de profissionais de determinado setor numa cidade. Essas organizações regu-
lamentavam o preço, a quantidade e a qualidade do que era produzido nas oficinas locais,
evitando a competição. Além disso, impedia que artesãos ou oficinas não autorizadas se
instalassem, pondo em risco a sobrevivência dos agentes produtores já estabelecidos.
A Idade Média Central foi o período em que, após as experiências dos movimentos de
paz e da formulação do esquema tripartite, a Igreja contribuiu para a consolidação de uma
ideologia para a cavalaria. A nobreza militarizada ganhava, então, funções e simbolismos cris-
tãos, reforçados pela ritualística da investidura e pela conduta moral exigida dos guerreiros.
Dessa maneira, a Igreja buscava, senão conter, ao menos orientar o ímpeto bélico da nobreza
para fins que lhe convinha.
As Cruzadas constituíram outro desdobramento da evolução das posições eclesiásticas
sobre o papel do guerreiro e da guerra numa sociedade cristã. Desde a releitura da teoria

capítulo 5 • 109
ciceroniana da Guerra Justa por Agostinho de Hipona, formas religiosas de legitimação de
empreitadas militares foram tecidas, desembocando na noção de Guerra Santa. Assim, for-
neceram-se os fundamentos teóricos para a ideia de participação penitencial numa investida
bélica arquitetada por Deus para a retomada de um lugar sagrado conquistado por infiéis.
Retomando a questão urbana, a organização política das cidades foi construída a partir
de lutas sociais pela sua autonomia diante dos poderes senhoriais. Assim, surgiu a ideia da
comuna, uma associação entre homens pautada não na hierarquização, mas no igualitarismo
entre os envolvidos. A operacionalização dessa noção num regime de governo variou confor-
me as especificidades de cada região.
Nesse ambiente, duas manifestações culturais importantes ocorreram. Primeiramente,
a participação ativa de setores leigos na vida religiosa, fosse por meio de confrarias, de prá-
ticas caritativas ou de adesão às procissões flagelantes. A difusão de santos leigos estaria
associada a essa conjuntura. Em segundo lugar, o aparecimento dos intelectuais urbanos,
inicialmente na figura de mestres carismáticos e, posteriormente, institucionalizados em cor-
porações universitárias que monopolizavam a outorga de graus.
O crescimento econômico e demográfico que prevaleceu entre os séculos XI e XIII foi re-
vertido em retrocesso nos séculos XIV e XV. A crise da Baixa Idade Média decorreu das con-
dições frágeis que sustentaram a expansão dos séculos precedentes: a produção agrícola
dependia da mão de obra e dos consumidores para escoar os excedentes; em contrapartida,
as altas taxas populacionais dependiam dos excedentes agrícolas para se alimentarem. Uma
série de catástrofes, como problemas nas colheitas pelas mudanças climáticas, episódios de
peste, guerras e fome elevaram as taxas de mortalidade e impuseram dificuldades à nobreza.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BARTHÉLEMY, Dominique. A Cavalaria: da Germânia antiga à França do século XII. Campinas:
Unicamp, 2010.
FLORI, Jean. A cavalaria: a origem dos nobres guerreiros da Idade Média. São Paulo: Madras,
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FLORI, Jean. Guerra santa: a formação da ideia de cruzada no Ocidente cristão. Campinas:
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FRANCO JR., Hilário. As Cruzadas. São Paulo: Brasiliense, 1989.

110 • capítulo 5
LE GOFF, Jacques. O apogeu da cidade medieval. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
VAUCHEZ, André. A espiritualidade na Idade Média ocidental (séculos VIII a XIII). Rio de Janeiro:
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LE GOFF, Jacques. Os intelectuais na Idade Média. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006.

capítulo 5 • 111
ANOTAÇÕES

112 • capítulo 5

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