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Georges Duby

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A Idade_Média na França
(987-1460)
De Hugo Capeta a Joana d'Arc
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Tradução:
II 0/ 9/' •. CLÓVIS MARQUES \.

Revisão técnica e apresentação:


VÂNIA FRÓES
Coordenadora da Pós-graduação
em História da UFF
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( , Jorge Zahar Editor


Rio de Janeiro

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Sumário
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Titulo original:
Le MoyenÁge
De Hugues Capet à Jeanne d'Arc (987-1460) I
Tra~~0.1U1tori7..Qda da primeira edição francesa,
Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7
publieada:em 198TpórlIachêft',,', dêParis, França,
na série "Histoire de France". Prefácio . . . ' , , , , , , , , , . . . . . . . . . . . . . . . li

CopyrightO 1987, Hachette


Copyright <D 1992 da edição em língua portugues!,:
Primeira Parte
Jorge Zahar Editor LIda.
rua México 31 sobreloja A Herança
20031 Rio de Janeiro, RJ

Todos os direitos reservados.


A reprodução não autorizada desta publicação, no todo I o Império ...................... 21
.;j~ ou em parte, constitui violação do copyright. (Lei 5.988) 11. O povo franco. . . . · .............. 29
Edição para o Brasil. III. Os príncipes. . . . . · .............. 39
Editoração eletrônica: Delta Line Cornposições Uda.
IV. Tempo de distúrbios · .............. 48
Impressão: Tavares e Trístão Ltda.

ISBN: 2-01-016606-x (ed. orig.) Segunda Parte


ISBN: 85-7110-244-9 (JZE,RJ)
O Senhorio
CIP·Brasil. Catalogação-ua-fonte
..J Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ
V. ,. A aldeia " ...................... 59
Duby, Georges ,. VI. O castelo ...................... 69
D88i A Idade Média na França (987-1460): de Rugo A Igreja ....................... 100
VII.
.J Capeto a Joana d' Arc/Georges Duby; tradução, Cló-
vis Marques; revisão técnica e apresentação, Vânia VIII. O rei senhor. . , , ,. . . . . . . . . . . . . . . . 123
Fróes. - Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.
J
Tradução de: Le Moyen Âge,
J Bibliografia: Terceira Parte
ISBN 85-7110-244-9
-.J Os Germens da Nação e do Estado
l. França - História - Idade Média, 987-
1460. I. Título.
IX. O grande progresso . . . . . . . . . . . . . . . 157
I 92-0611 ~~-= ~~:'~;924) ·1
X. Luís VII ..................... 181

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a idade média na frança
o grande progresso 159

J vam, cada qual se acabando para quebrar a coesão da outra, forçá-Ia à debandada
fisicamente, provando que sabia manejar a lança e sujeitar seu cavalo, era
e, na desordem da fuga, apoderar-se de cavalos e fazer prisioneiros. Na metade
J norte do reino, os príncipes se entendiam para organizar essas paródias de batalhas admitido nesse corpo, a cavalaria, cujo código moral lhe era inculcado. Desde
ao longo do ano - exceto nos breves períodos em que era imposta com maior os primeiros anos da adolescência ele aprendia suas estipulações na corte onde
rigor a proibição de quaisquer prazeres, por parte da Igreja. Disputavam entre eles se formara, através dos sermões dos clérigos domésticos e dos poemas que
os campeões, pois sua glória e a de sua "pátria" dependeriam do êxito do bando compunham para educar e divertir a juventude.
Cada vez mais bem montados, com seus corpos sempre mais bem protegidos
.J que ostentava as cores de seu escudo (a linguagem da heráldica articulou-se
precisamente nessa época, nos campos de torneios). Quando jovens, os próprios pelo couro e as ferragens, a coragem apoiada na pedagogia cortês, os cavaleiros
duques e condes se arriscavam. Envelhecidos, seusfilhos ou sobrinhos toma- podiam oferecer a seu senhor e ao senhor deste senhor uma ajuda cada vez mais
I~I eficaz nas escaramuças da guerra e nas batalhas que tinham em cada torneio uma
\I vam a frente da equipe. Só o rei, por ser sagrado, não devia aparecer nessas
11 espécie de ensaio geral. Na realidade, entretanto, só excepcionalmente um prineipe
"feiras", como diziam os homens da Igreja, condenando-as por alimentarem o

III
I orgulho e deteriorarem a cavalaria, inicialmente devotada ao serviço de Deus
e à guerra santa.
ousava arriscar, sob o olhar de Deus, todas as suas chances numa batalha. Antes
de Bouvines, em 1119, os capetos só se lançaram a uma, em· Bremule, e a
ml perderam. Não mais que duas batalhas em Flandres, ao longo de um século e
i Mas se o rei não-p!!rticip~va pessoalmeüte dos jogos militares, os locais
escolhidos para sua realização, longe das cidades, nas "marcas" ou fronteiras meio; e quando o conde de Anjou, Fouque Rechin, relata em 1096 as façanhas
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militares que desde a proto-história delimitavam o território das nações, encontra- de seu tio, de seu avô e do bisavô, não é capaz de evocar mais que seis batalhas
vam-se quase sempre na periferia de seu domínio, e os guerreiros provenientes de em quatro gerações. Quanto à guerra, não passava de divertimento, maneira de
todas as partes para conquistar renome e o butim competiam ali com seus próprios o senhor, mediante o prazer e os lucros da pilhagem, divertir seus vassalos e
cevaleíros, os "cavaleiros de França". Unânimes, lorenos, normandos e angevinos demonstrar sua generosidade - e maneira também de forçar o adversário a
consideravam-nos os mais valorosos do mundo. Tanto quanto a excepcional empreender o mais rápido possível negociações de paz. A guerra era o prelúdio
'..J fertilidade dos campos diretamente subordinados a sua coroa, esta excelência obrigatório do entendimento. No jogo político da época, só contava o cerco,
cavaleira contribuiria, chegado o momento, para garantir a superioridade do apoderar-se de uma praça forte. Aí é que vamos constatar aperfeiçoamentos
Cape to. decisivos.
..J De efeito ainda mais profundo na evolução dos poderes públicos foi, em
minha opinião, a consolidação da moral cavaleiresca, simultaneamente ao aper-
feiçoamento dos arreios e das técnicas de ataque e defesa. Para vencer, ou A descoberta no Oriente de sistemas de fortificação menos rudimentares, os
simplesmente evitar a derrota, cada membro do "conroi" devia servir com lealdade progressos alcançados pela arte de construir em pedra, na construção das basílieas
a seus companheiros e ao chefe cuja bandeira seguia. O torneio foi a verdadeira e catedrais, modificaram radicalmente os procedimentos utilizados na defesa de
escola dessa dedicação mútua que a bomenagem e a fidelidade tratavam de castelos e ~idades. Entre 1180 e 1220, verificou-se-uma transformação que privou
estabelecer entre os senhores I': se,!s fiéis. E como os-campeões frequentemente de qualquer eficácia as velhas muralhas de terrae madeira. Para proteger da
passavam de uma equipe a outra, como o jogo tinha necessariamente suas regras, invasão as regiões sob sua tutela, os senhores dos principados, com o aux.íJio de
'..J e portanto seus árbitros, e como acontecia que .a tarefa de entregar o prêmio profissionais, foram levados a conceber uma organização de conjunto. Em locais
incumbisse a nobres damas, os estritos deveres que se impunham no interiordo cuidadosamente escolhidos, instalaram fortalezas mais compactas, de plano geo-
I..J grupo de combate imp1,lseram-se t:.!mbém ao conjunto dos participantes, muito .métrico, construíram muralhas altas, reforçaram as bases da escarpa c da
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conscientes de se distinguirem das outras categorias sociais peIo respeito a um contra-escarpa com um parapeito de pedra no fundo dos fossos, instalaram no
I..J sistema de valores. Na narrativa deGalbert de Bruges, tal sistema já tem um nome: centro do dispositivo um último reduto, ainda mais sólido, reunindo para' a
I..J cavalaria. Em seu apogeu, foram-se estabelecendo. virtudessolidárias. Além da consecução. da obra, quando havia pressa (e os castelos mais fortes e modernos
lealdade, a coragem, uma disposição do corpo e do coração para se atirar sem foram erguidos em questão de poucos meses, ao passo que a construção de uma
f..J gesitação ao perigo, mas sempre jogando limpo, sem recorrer a golpes baixos catedral se arrastava durante décadas), multidões de operários, e, portanto,
ou estratagemas traiçoeiros nem matar outros cavaleiros. Depois, a generosi- desembolsando fabulosas quantias: Château-Gaillard, posição chave da Nor-
dade, pois ao cabo dos encontros esportivos os vencedores nada deviam guardar mandia, custou vinte e uma mil duzentas c três libras esterlinas, o equivalente
de suas presas, distribuindo-as de bom grado. E, finalmente, uma certa maneira ao soldo diário de dois milhões e meio de soldados de infantaria. Nas dimensões
de tratar as mulheres de bom sangue. A essa rede de obrigações misturou-se o que a luta pelo poder assumia, todo príncipe, se quisesse resistir a seus rivais,
(..J sagrado, o que decorria dos preceitos da paz de Deus e do espírito de cruzada, via-se obrigado a soltar dinheiro a rodo. Filipe Augusto não hesitou, conven-
enquanto se ajustavam os ritos de passagem pelos quais o jovem bem-dotado cido - a darmos crédito às Grandes Chroniques de France - de que seus
ancestrais haviam perdido muito por não terem gasto o suficiente. Entre 1203

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c 12 i4, ele espaihou torres redondas por todas as suas possessões. São de- ferido e mais tarde abatido por uma saraivada de balestra. A autoridade eclesiástica
zoito as que conhecemos, todas semelhantes e inspiradas no modelo da torre do tentou proibir o uso dessa máquina mortífera assim que apareceu. Organizando a
Louvre - cuja qualidade arquitetõnica acaba de ser revelada pelas escavações que cruzada, Urbano 11 proibiu que fosse utilizada contra cristãos, mas em vão. Em
lhe desvendaram o envasamento, intacto, mumificado desde o século XVI pelo 1139, o concílio geral de Latrão lançou o anátema, igualmente sem sucesso, contra
enchimento do fosso. O preço de cada construção dessas variou entre mil e os que utilizavam balestreiros. Depois de 1150, tais [nstmrnentos disseminaram-se
duzentas e duas mil libras, o suficiente para pagar mil infantes durante um mês e por toda parte, assim como os terríveis especialistas em seu manejo, operários que
meio, dois meses. Semelhante investimento absorveu muito mais do que o lucro vendiam a quem melhor pagasse seus talentos na arte de. abater as montarias de
anual de todo o domínio real antes das grandes anexações. Simultaneamente, longe ede romper as lorigas.
erguiam-se muralhas urbanas, primeiro em Paris,já em 1190, depois em Sens, Operários da guerra moderna, esses cottereaux ou brabantinos - assim
Compiêgne, Melun; é verdade, cabe assinalar, que nesses casos os encargos chamados porque. vinham dos condados pobres e selvagens; das fronteiras de
recaíam sobre as burguesias. Plandres, da Provença, das montanhas dos Pireneus - também trabalhavam em
No mesmo ritmo que o aparelho da defesa, aperfeiçoou-se também, é claro, equipe, arregirrientados por um patrão que tratava diretamente com os emprega-
o do ataque. Para tentar abalar as muralhas e nelas abrir brechas, os príncipes dores. A route, bando de combatentes a pé, armados de facas, lanças, croques e
dispunham de sapadores mais bem equipados, mais bem orientados;e de máquinas balestras, assemelhava-se à milícia formada pelos homens das comunas, quando
de arrojar pedras, alçapões, capazes de arremessar, com violência sempre maior, era lançado o grito de alerta; assemelhava-se mais ainda aos comboios armados
projéteis sempre mais pesados. A mecânica estabeleceu-se solidamente entre as até os dentes formados pelos mercadores na estação das feiras, unidos por jura-
técnicas militares, cabendo notar que mais uma vez, aqui, os homens da guerra mento para as aventuras do comércio de longo curso. Ela era seguida por carroças,
tiveram o que aprender com os da Igreja. Mas foi no terreno religioso, pela glória e por mulheres. E, na realidade, não se dispersava após a ação. Formação perma-
de Deus, que as formas de talhar e ajustar as pedras, de traçar um plano, de medir nente, contínuava a vagar, devastadora, vivendo na região quando não mais estava
as pressões, obtiveram seus primeiros progressos: todo o equilíbrio do coro de a soldo. Recém-chegada ao teatro dos combates e destinada a não mais deixá-lo,
Saint-Denis, consagrado em 1140, repousa na aplicação racional dos princípios da ela semeava o terror. Conspurcados pelo sangue que derramavam, pelo dinheiro
geometria e da aritmética, cujo estudo ia bastante avançado nas escolas catedrais que ganhavam, pela luxúria de que eram considerados mais adoradores que os
vizinhas. Classificando os caminhos do saber, Hugo de Saint- Victor, em Paris, outros, sacrílegos, bebendo em cálices pilhados em lugares santos, esses soldados,
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julgou de bom alvitre adicionar às "artes liberais" as "artes mecânicas". A eficácia desencaminhados recrutados na nata da marginalidade, da miséria e da bastardia,
dos pesados engenhos que eram arrastados aos solavancos atrás dos bandos de acompanhados dos clérigos aliciados porque tampouco eles podiam dispensar as
cavaleiros derivava diretamente da experiência dos construtores forçados a impro- preces, pareciam uma dessas pestes lançadas por Deus irado, e das quais era
visar guindastes para erguer sempre mais alto as abóbadas das naves e absides. preciso a todo custo livrar a Terra. Em 1179, um novo concílio, em Latrão, exortava
Entretanto, para conceber as máquinas de assédio, para manejá-Ias, para calcular a seu extermínio, confundidos que eram com OS heréticos. Mas como seria
os ângulos de arremesso, eram necessários especialistas, "mestres". E eles não possível, quando se tinha os meios para pagar sem~·serviços, dispensar os bandos
eram encontrados na cavalaria, mas na população das cidades em crescimento, nas errantes, se era preciso defender uma "pátria"? Pois eles eram indispensáveis a
quais o âieliê avizinhava o claustro- quem precisava fazer frente ao inimigo, tomar castelos ou mesmo contrabalançar
I Do povo, mas jâ agora de seus escalões mais baixos, saiam outros técnicos, a excessiva presença da cavalaria. Em 1163, Luís VII e Frederico Barba-Ruiva
11 I os do massacre, artesãos necessários da guerra útil. Château-Gaillard era impene- reuniram-se na fronteira de seu reino para debater a paz no mundo; compromete-
I
trável. Mas foi tomado. Não pelo choque de cargas de cavalaria, mas pela astúcia ram-se a não mais empregar mercenários entre Paris, o Reno e os Alpes. Mas o
I
I desses mercenários pagos por Filipe Augusto, e que haviam penetrado como ratos mui piedoso rei da França não prometeu privar-se desses auxiliares a oeste, junto
I pelo fosso das latrinas. O brutal surgimento de novas e imorais maneiras de atacar ao perigo.
o adversário escandalizou o século XII - sobretudo com a difusão de uma arma Cada vez mais, por sinal, os príncipes utilizavam de outras formas a força
.J ofensiva cuja utilização exclui a coragem, pois age à distância c atinge insidiosa- da gente do povo. No fim do século, certos Msargentos" - cuja coragem era
mente, como a epidemia; sem que a vítima possa prever o golpe, resistir ao altamente celebrada - serviam montados, às vezes equipados com uma balestra.
agressor, nem mesmo identificá-Ia ou percebê-lo. Também aqui intervinha a Como então distinguir, não fosse por esse detalhe, tais cavaleiros de baixa extração
.J mecânica: a balestra é um arco cujo tiro é ajustado por um conjunto de engrena- dos que pretendiam, em virtude do sangue que lhes corria nas veias, reservar-se o
gens, tendo sua força e seu alcance multiplicados; espécie de balista leve e direito e a honra de combater a cavalo? Foi precisamente para afirmar essa
manuseável que não arremessa pedras, mas dardos, e tão vigorosa mente que eles distinção que se desenvolveu o ritual de vestir a armadura. A abertura aos setores
furam as couraças mais espessas. A balestra é capaz de matar os cavaleiros e os populares da prática das armas, em suas formas mais eficazes, rompia o privilégio
j -mais bem protegidos, os príncipes. Ricardo Coração de Leão, rei da Inglaterra, foi maior da cavalaria, levando-a a fechar-se ainda mais em seus títulos e no conjunto
)
I)
162
a idade média na frança
o grande progresso 163

de suas virtudes. Tal abertura precipitou o movimento que faria desse grupo
social uma verdadeira nobreza. Acicatou, entre seus membros, o temor e em trar meios de pagar seu resgate. O dinheiro era necessário a todo momento. Não
conseqüência o desprezo pela classe rústica. Este desprezo não os impedia, no era por avidez que se tratava de obtê-Ia, mas por necessidade, e esta necessidade
entanto, de vender seu destemor, de servir por dinheiro, como os brabantinos: Só minava os valores tradicionais; a honra, o mérito, a coragem, a fé. Impregnando
que fingindo, para não ficar com a consciência pesada, que o dinheiro não era até as profundezas o corpo social, a circulação monetária o maleabilizava. E
acumulado, desperdiçando-o alegremente em festas. Querendo crer igualmente também o desarticulava.
que seu soldo não diferia do presente com que todo senhor devia recompensar a A figura simples e tranqüilizadora que dividia os homens entre as três
I li fidelidade de seus homens. No século XII, o dinheiro volta a ser o nervo da guerra, funções já não refletia a realidade. Não se podia deixar de reconhecer que os
ou seja, do poder. Penetra em todas as relações de sociedade, e a tudo modifica. "estados do mundo", muito ma is numerosos, já não eram delimitados por barreiras
intransponíveis. Uma outra riqueza, flutuante, impunha-se à riqueza terrena,
imóvel, transmitida por herança. É então que se impõe à consciência coletiva a
Cunhadas desde a época de Carlos Magno, minúsculas moedas de prata circula- imagem da roda da fortuna, girando cada vez mais depressa, elevando, uns e
vam: os dinheiros. Ao se aproximar o ano mil, no despertar da economia de trocas, rebaixando outros. Desestabilização, Emulação. Esperança, em cada um, de "ga-
essas !Je.Ç3.S-'!irc.n!avammais depressa, em liga de pior quaiidade e desvalorizadas, nhar" (palavra que se dissemina ao longo do século XII), ganhar no arroteamento,
já então preocupando os moralistas da Igreja: elas provocavam a cobiça, essa nas feiras, na guerra e até nas disputas da escola.
concupiscência que desvia os homens do bom caminho. Mas o hábito de usá-Ias Ao aproximar-se o ano 1200, as cidades, cuja expansão fora até então
se implantava. Os senhores aceitaram - e provavelmente sugeriram, pois tinham sustentada pelo crescimento agrícola, já levam a melhor sobre o campo, domi-
-.J necessidade cada vez maior de moeda - que os habitantes dos burgos, instalados nando-o. No centro da região mais próspera, no coração do domínio cape to, em
no centro do tráfico e manejando os dinheiros em maior abundância, se desincum- Paris - para onde tendiam a convergir de toda a cristandade os pesquisadores
~ mais ávidos do saber sagrado, atraídos pela maior facilidade de locomoção -,
bissem mediante pagamento em moeda da obrigação de hospedar o mestre; que da
J mesma maneira se dispensassem os camponeses dos dias de trabalho gratuito, dos os mestres que comentam o texto da Escritura para os jovens empenhados em
serviços de transporte e ronda devidos aos senhores; esses mesmos camponeses seguir a carreira eclesiástica esforçam-se por extrair dele uma moral, no
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tiveram de vender seu trabalho, seu gado, o produto dos campos e dos vinhedos. empenho já reconhecido como urgente de levar a palavra ao povo, de educã-lo
..J Tais permutas tornaram-se pouco a pouco a regra, dando maior flexibilidade e organizâ-lo. Pedro, cantor de Notre-Darne, e Estevão Langton questionam-se,
ao sistema fiscal senhorial. Tornou-se comum ver o dinheiro passar das mãos dos sobre o poder profano, dos mercadores e dos príncipes. Questionam-se preci-
..J samente sobre o poder do dinheiro, preocupados com as turbulências provoca-
burgueses e aldeãos para as dos prebostes. Eram todos indivíduos sem honra nem
valor. Mas o dinheiro não demorou a se infiltrar em relações até então baseadas das por sua violenta intrusâo no sistema de valores e nas relações sociais.,
J na gratuidade, na amizade, na dedicação e na devoção. No Noroeste da França, já Eles tinham mesmo motivos para se assustarem, ,assistindo como assistiam
no início do século XII, o cavaleiro podia liberar-se de seus deveres de ajuda à dissociação das partículas de uma estrutura até então coesa, constituída de células
militar mediante determinado montante de dinheiros, fixado em tarifa. Um pouco fechadas.de.núcleo duro. O indivíduo se Iibcra. É. dono de sua própria bolsa. O
mais tarde, passaram a ser comprados também o perdão e os favores de Deus no filho já não espera tudo do pai, nem o clérigo do superior de sua comunidade, nem
outro mundo. Contra rendimento ernnumerario, homens de oração, assalariados, o cavaleiro do patrão que o alimenta. Cada um pode tentar a sorte, arriscar-se
celebravam os serviços de aniversário de morte pela salvação dos defuntos, fora do grupo. A vida transforma-se em aventura. O antigo poder do chefe da
estabelecendo-se toda uma contabifidade.Registrando cuidadosamente os paga- casa se desagrega, desfazem-se as velhas solidariedades. Desarvoramento. Pois
mentos periódicos, calculando o preço da graça, ela extravasava para o além, lançar-se assim para ganhar é livrar-se das obrigações e constrangimentos; é
incitando a situar mais exatamente o lugar da purgação e das compensações também sair da segurança, escolher o perigo, penetrar nesse mundo desejável,
Iiberatórias, introduzindo a medida do tempo no intemporal. Havia muito também aberto às façanhas mas cheio de armadilhas, descrito nos romances de cavalaria
a ciência era vendida. Na Paris de 1116, ao ser castrado, AbeJardo vendia o saber da época sob a forma de floresta, de matagal, do qual os felizardos retomam
aos escolares, e se quisesse podia comprar mulheres. Não foi sem razão que os ricos, mas do qual muitos sequer voltam. Aquele que decide romper as amarras
pregadores chamaram os torneios de feiras. Neles, os cavaleiros não estavam torna-se de certa forma um "forasteiro", um desconhecido, um estrangeiro,
apenas em busca da fama, mas daquilo que ela acarretava: dinheiro. Depois da exposto, ameaçado. Já não pode refugiar-se no costume, acanhado, local, que
luta, entre os alquiladores, taberneiros e prostitutas atraídos aos magotes pela rege a comunidade da qual escapou. Em seus caminhos sem rumo, ele precisaria
certeza de ,enormes lucros, os dinheiros circulavam a rodo _ mais, provavelmente, ter como referência regras aceitas por todos fora da aldeia, do burgo que
que nos mercados mais freqiientados: os vencedores ofereciam os arreios e abandonou, contar com uma força guardiã dos vastos espaços e capaz de impor
cava'Ios ,capturados; os vencidos tentavam reconstituir seu equipamento e encon- o respeito a essas regras comuns. Na realidade, o que ele espera é o fortalecimento
do Estado. Algo que é favorecido pelo movimento do dinheiro.
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.,111 !I o desenvolvimento da circulação monetária aprofunda cada vez mais o fosso _ levou o rico mercador lionês Pedro Valdês a vender tudo que possuía para sair em
[ já bastante pronunciado, aos olhos de Galbertde Bruges - que separa os campo- pregação, exortando em nome de Cristo a que seguissem seu exemplo. Um novo
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neses dos burgueses. A partir de 1180, ele isola duas sociedades completamente poder, de ordem espiritual, instala-se assim no meio do povo, o poder dos "homens
) ~I11 diferentes, aumentando em cada uma delas o poder dos que ganham sobre os que bons" que optaram por viver como viviam os discípulos de Jesus. Eles são ouvidos,
mas os padres os denunciam, pois o monopólio da prédica Ihes pertence; os que o
J. I1
perdem. No campo, a necessidade de conseguir dinheiro para pagar as taxas e
usurpam são, como os brabantinos, heréticos. Logo os "pobres de Lyon" seriam
multas, comprar sementes, renovar o arrendamento do gado, comprar orações e
.11 condenados, perseguidos. Seria necessário que se manifestasse, vinte anos mais
J li comemorar condignamente às festas, segundo os ritos impostos, obriga os
tarde, a grandeza d'alma do papa Inocência I1I, antigo estudante em Paris e autor
menos hábeis e os sem sorte a pedir emprestado ao padre, ao guarda florestal,
.J a vizinhos que sabem produzir melhor e tratar com os corretores. É assim que de um ensaio sobre a pobreza voluntária, para que fossem integrados à ortodoxia
11
\! se dissemina o endividamento, que deixa a maior parte do campesinato na Domingos, Francisco de Assis e os fervorosos discípulos que os seguiam. É bem
dependência cada vez mais acentuada de uma pequena aristocracia rústica. Uma verdade que a heresia, a verdadeira, vinha ganhando terreno com rapidez. A
1i
I' defasagem semelhante mas muito maior entre ricos e pobres vai-se manifestar, heresia minava o poder dos prelados, acusando-os de subtraírem o dinheiro dos
no século XII, nas aglomerações urbanas onde ganha velocidade OJl].()v-!mento pobres. Sua ressurgência e sua rápida e incoercível expansão procediam direta-
i!
.i1 da roda da fortuna. mente da penetração do-ínstrumento-menetãrío e da perturbação que ele propagava
nas consciências.
Uma das novidades mais perturbadoras dessa época foi o surgimento da
indigência nos arredores das cidades, entre os migrantes. É verdade que a expe- A maioria dos homens que lidavam com o dinheiro nas cidades e jovens
11
riência da miséria não era nova. Mas a desgraça chegava em ondas, em crises, aglomerações quÇ, se avolumavam nas encruzilhadas do comércio - cambistas,
íl negociantes, possessores do solo urbano que especulavam com loteamentos,
J li!. trazida pela fome, pelo mal des ardents, epidemia regularmente registrada nas
crônicas da época. Eram flagelos passageiros que convidavam ã penitência. A empregadores que se prevaleciam da fraqueza dos imigrantes em busca do ganha
! 'I pilo - dedicavam apenas uma pequena parte a obras de caridade. O resto, tratavam
) I' essas mortalidades episódicas era fácil que se resignasse aquela gente acostumada
de acumular, e os príncipes favoreciam seu enriquecimento, contando com eles
'I não só à incrível crueldade dos guerreiros, ã atrocidade dos suplícios, mas a ver
•., . para os grandes sacos de moedas, as pesadas partidas de dinheiro que de uma hora

I
} morrerem um quarto das crianças antes de chegarem aos cinco anos, e outro quarto
antes da puberdade. Quanto ao desequihbrio entre os despossuídos e os bem-pro- para outra podiam ser-lhes indispensáveis. A eles é que concediam as "franquias",
-.J confiando-Ihes a tarefa de coletar o dinheirodas taxas nas camadas inferiores da,
vidos, era então atenuado pela solidariedade familiar e pelo próprio senhorio,
população urbana. Cem anos depois, Filipe de Beaumanoir observaria que "os
.J naturalmente fornecedor do alimento, obrigado.a abrir os celeiros para aliviar a
I privação. Os ricos eram forçados à caridade, praticada ritualmente, maquinalmen- ricos detêm a administração dos burgos, e assim descarregam as despesas na
.)
~ te. No decorrer do século XII, tais gestos começam a mudar. Aos de CarIos, o Bom, comunidade dos pobres". Era já o que acontecia no fim do século XII. Pressionados'

..J
.J
I
I,
descritos por Galbert, opõem-se, na geração seguinte, os do conde deChampagne,
que já não se contenta com gestos simbólicos; ele manda vender, para distribuir o
contra a barreira do mundo dos privilegiados, no qual não se usa as mãos para
trabalhar, esses plebeus riquíssimos que são alvo d~ zombaria nas trovas tentavam
penetrar nele, Imitavam canhestramente as maneiras de viver dos homens de boa
I prodUtO entre os miseráveis, a ourivesaria que ornamentava sua mesa, envia pelas
ruas e praças servidores especializados, ~ esmoleiros" encarregados de se informar cepa, os bem-nascidos, os "fidalgos". É verdade que também a antiga aristocracia
I das necessidades mais' prementes e distribuir recursos. É de então que data a militar extraía lucros da expansão agrícola. Não através dos foros habituais, cuja
fundação, em todas as cidades, <jas santas casas, dos hospícios em que uma taxa mantinha-se inalterada, e ainda por cima era paga agora em dinheiros, que,
confraria dedica-se ao 'serviço dos Indigentes. circulando cada vez mais depressa, perdiam seu valor. Em compensação, rendiam
.)
Esses ~onfrades são homens ricos, e se envergonham de sua excessiva cada vez mais ,as antecipações aplicadas diretamente sobre a produção rural, a
riqueza, tendo ouvido o Evangelho e desejando livrar-se do pecado do dinheiro. exploração dos moinhos e fornos, assim como a coleta de uma parte da produção
..J Na hierarquia dos vícios, o orgulho vem em primeiro lugar, mas a avareza não fica dos vinhedos recém-plantados, das novas lavouras, das crias anuais do rebanho.
muito atrás. Desde o fim do século XI, a busca de uma pobreza verdadeira lançara As transações com esse vinho, o trigo e os tosôes assim obtidos não eram feitas
os clérigos mais inquietos na vanguarda da espiritualidade, rumo aos eremitérios pelos próprios senhores, que para isso se socorriam habitualmente de intermediá-
.)
em plena floresta e às aventuras da pregação itinerante; suscitara igualmente, em rios, os colonos. Estes entregavam-Ihes nas mãos muito mais dinheiro que haviam
reação ao fausto de Cluny, a contestação da ordem de Cister: sc o conde de ganho seus pais, muito mais do que jamais haviam visto seus avós.
) Champagne despojou-se de seu luxo, foi porque o comoveram as exortações de E, no entanto, ainda era muito pouco. Era preciso sempre mais para
conseguir armas modernas, substituir os cavalos de combate extenuados ou
.J seu amigo Bernardo de Clairvaux. Depois de 1170,afinna-se e se propaga no
perdidos, partir em cruzada, pagar os resgates, os atrasados das rendas pias ou
patriciado urbano a convicção de que, para entrar no Reino do Céu, é preciso
-.J renunciar aos bens deste mundo, viver como pobre entre os pobres. Foi ela que simplesmente para mostrar-se bem paramcntado nas cortes onde a cavalaria

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166 a idade média na frança o grande progresso 167

[ilmlll ostentava todo O seu luxo. Ela vivia, portanto; em funçãodo dinheiro. Um dos
indícios da penúria é o aparecimento nos documentos, ao se aproximar o
estabelecia mais entre o quarto e o terceiro escalões, como antes, mas entre
o terceiro e o segundo. Desmantelara-se a castelania.
) século XII, e logo a súbita difusão de duas palavras equivalentes: "escudeiro"
lil e "donzel". Elas designavam o aprendiz que ainda não recebera suas armas.
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Eram a partir de então os títulos usados, para garantir a qualidade de seu Em 1200, as velhas fortalezas perderam seu valor estratégico. Seu senhor é incapaz
iJ sangue, pelos filhos homens dos cavaleiros; cada vez mais numerosos, eles de recusar-lhe o acesso ao duque, ao conde, ao barão. Por outro lado, o poder de

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envelheciam à espera de sua oportunidade,' pois os pais, sem dinheiro, não
podiam metê-Ios solenemente em armadura.
comandar e punir a população disseminada entre a torre e todos os terrenos
fragmentou-se, sendo agora exercido naquele mesmo contexto cujo fortalecimento
Acuados por compromissos, também os fidalgos, como os camponeses sem no século XII já demonstramos: a paróquia. Em algumas paróquias, esse poder
1II, sorte, se endividavam. E só com dificuldade encontravam quem lhes emprestasse permanece nas mãos do senhor do castelo. Nas demais, é exercido por um homem
entre os pares. Precisavam assim tomar empréstimo aos burgueses que despreza- que, mesmo sendo cavaleiro, também se intitula senhor, e cuja casa, cercada de
, II vam; ou, pior ainda, a judeus que não se deixavam tolher pelos entraves impostos, fossos, tende a confundir-se, face aos meios modernos de ataque, com os antigos
com muita dificuldade, aos cristãos, e praticavam a usura, sendo por isso castelos. Estes esvaziaram-se das equipes domésticas de cavalaria que aterroriza-
~ odiados. Sem mais ter para onde se voltar, os cavaleiros vendiam oque podiam. vam o campesinato pouco depois do ano mil. Os chefes dessas fortalezas ainda
Em primeiro lugar, sua homenagem. Contra pagamento em dinheiro, reintegra- congregam sob sua bandeira os cavaleiros do distrito, recebendo sua homenagem,
~ vam ao feudo, palmo a palmo, os bens que possuíam em alódio. Assim foi que, mas não ganham muito mais dinheiro que eles, nem Ihes ficam rnuto a dever em
a partir de 1180, feudalizou-se rapidamente o patrimônio cavaleiresco. Ou matéria deendividamento. O~lIvanço das técnicas militares e a difusão da moeda
então, 'buscavam um patrão que os 7conservasse", que os tomasse a penhor, contribuíram para nivelá-I os aos vavasseurs.
concedendo-lhes 'um "feudo de bolsa", uma renda em dinheiro que deixaria de Os documentos disponíveis são demasiado raros e lacôn icos para demonstrar
ser paga uina vez que o senhor não mais lhes merecesse a fidelidade. Entravam, claramente como as convocações para o serviço militar que anteriormente eram
.J assiin, para o serviço de outros. Alienavam-se. Desse modo, a difusão desse proclamadas da torre acabavam por se dispersar na segunda metade do século XII .
valor fluido que é a moeda fez com que se aprisionassem numa rede cada vez Vários fatores entraram em ação. O direito feudal tomou-se suficientemente
mais cerrada de obrigações aqueles homens que cem anos antes representavam rigoroso para acabar com a resistência dos senhores a amputar a senhoria: eles
o que havia de mais tumultuadamente independente na cavalaria. Essa difusão concordaram afinal em cedê-Ia em parte, soh forma de feudos, aos "cavaleiros do
atenuava de outra maneira a turbulência rnilitar. A herança predial perdia sua castelo" que exigiam alguma colocação, a seus filhos caçulas, que queriam casar- -
se. Contribuiu também,e de maneira decisiva, o retraimento da comunidade de
J importância. Era menor a preocupação de preservar-lhe a coesão, proibindo à
maioria dos rapazes de tomarem esposa legítima. Os filhos mais moços que não habitantes. Um retraimento a que afinal se adaptou a distribuição dos poderes. No
entravam para a Igreja podiam fundar sua própria casa. As linhagens se momento em que a Igreja - pelas disposições tomadas em1215 no quarto concílio
dispersaram, enraizando-se agora em bases terrenas mais restritas, o que per- de Latrão, para melhor extirpar os resquícios do ;paganismo e rceneaminhar os
mitiu ao nodcrnrincinesco controlã-las.melhor, E, sohr~uJÔo, foi reabsorvida desvios heréticos - fundava sobre a célula paroquial fortalccida o aparelho de
a "juventude", ~ massa de guerreiros solteiros da qual emanavam as lufadas propaganda e vigilância, base de sua dominação dasalmas, pareceu normal que se
mais fortes de desordem. É assim que se explica em boa parte a paz que se organizasse a justiça, a polícia e a manutenção da ordem civil no contexto da
instala no interior dos Estados no século XIII. paróquia. Coube ao senhor da aldeia cobrar derramas, receber multas, assegurar
a guarda dos caminhos, das colheitas e pastagens, impor o respeito aos costu-
Esses Estados beneficiaram-Se ainda de uma reacomodação dospoderes
no interior da classe dominante, o que ampliou a defasagem entre os graus de mes, fixar o calendário do trabalho agrícola. Na base do sistema de controle,
.J sua hierarquia. Um inventário da ajuda militar 'com que Filipe Augusto sua função principal foi contribuir para a inserção da atividade rural na
economia de mercado. Acima dele, a função propriamente política cabia aos
-.J podia contar, elaborado entre 1203 e 1206 pelos escreventes de sua chance-
barões, condes e duques, cujo papel era pór fim às vinganças particulares
laria, dividia os guerreiros em quatro camadas: a dos duques ecoudes, a dos
- no pov(), pela coerção, a aplicação severa de castigos exemplares; na
barões (título que, disseminando-se no século XII, designa homens tão
poderosos quanto muitos condes, mas que não herdaram as grandes honras cavalaria, pela arbitragem.
-.J I carolíngias), a dos castelãos e a dos vavasseu rs' - ou seja, todo o resto:
Os barões eram efetivamente os senhores da paz, e isso num vasto território,
!! I pois se haviam mostrado mais prudentes na gestão das sucessões. Tomemos o caso
II cavaleiros, escudeiros, donzé is. Na realidade, a distância principal não se
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dos Coucy, cujo baronato se edificara nos interstícios de antigos principados.


Partindo para a Terra Santa em 1190, Raul I trata de preservar-lhe a unidade: em
* Vassalos de um vassalo. (N.T.) seu testamento, lega ao primogénito as três fortalezas que lhe constituem a
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) 168 a idade média na frança


o grande progresso 169

essência; os dois filhos mais moços também recebem sua parte, que se limitava a
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alguns senhorios de aldeia, a serem recebidos do irmão em feudo lígio; se de Deus, esses objetos pertenciam ao domínio do sagrado, pois sustentavam a
morrerem sem deixar filhos, elas retomarão ao primogênito. Tais disposições eram ordem das coisas. Mas o valor das peças era diversificado ao infinito por essa
a regra na camada superior da aristocracia, e impediam que a árvore genealógica dispersão, pela arbitrariedade dos chefes de que dependia a moedagem, e ainda
) se ramificasse. Seu tronco permanecia ereto, mas podia cair de um só golpe. A pelas aparas, a erosão que mal começava a circulação ia adelgaçando ainda
tendência, nesse meio, não era para a dissociação, a fragmentação dos patrimônios, essas peças já miúdas. O papel do cambista, instalado em seu banco perto do
mas para sua atração recíproca. mercado, consistia em aovaliá-Ias, pesá-Ias, calcular equivalências. Do bom
príncipe, o que o comércio reanimado esperava era que proporcionasse espécies
Na extensa área alcançada por seu poder repressivo, os barões governavam
confiáveis, estáveis e aceitas ao longo dos grandes itinerários mercantes. Como
.J o fluxo do povoamento, recebiam os ~hóspedes", autorizavam o arroteamento,
criavam vilas novas. Foram eles os primeiros beneficiátiosdo crescimento derno- circulava sempre mais depressa e mais longe, a moeda propiciava o fortaleci-
gráfico. Mas a atividade de arroteamento lhes interessava menos que as povoações mento das vastas formações políticas. Foi ela o mais forte sustentáculo dessa
tendência. .
e seus mercados, as estradas, os rios e os grandes pedágios. DaI é que vinha, de
.J fato, a moeda que permitia comprar a homenagem e os serviços dos pequenos E, de fato, os príncipes enchiam-se delas em cada uma das etapas em que era
senhores e fidalgotes provincianos, pagar o pessoaLn.ecessário ã-afirmação-de sua mais alto seu valor. Para começar, na própria fonte, tratando de emitir a melhor
) soberania, os escreventes, os sargentos e marechais cujas patrulhas regulares e moeda, aque se imporia e seria disputada, eda qual jase apoderavam em boa parte
rápidas intervenções nos núcleos de desordem garantiam a segurança pública. no próprio local da cunhagem. Em seguida, instalando preceptores nos pontos
Graças ao dinheiro, tomara-se possível estender a proteção a centenas de obrigatórios de confluência, onde se reuniam os filetes dispersos do tráfico.
paróquias. Mas graças, também, aO,progresso das comunicações. As extensões 'Quando Filipe Augusto apoderou-se em 1191-1192 do Artois, em nome de seu
solitárias que lhes serviam de obstáculo, maciços florestais e pântanos, já filho, começou por capturar as fortalezas, mas logo se atiraria sobre o grande posto
.J de pedágio de Bapaume, que controlava, na saída da floresta de Arrouaise, a
estavam esquadrinhados pela colonização. A construção de pontes e aterros, o
intensa circulação entre Flandres e a bacia parisiense; tratou, em seguida, de
.J uso de cavalos melhores e mais bem atrelados, a disseminação de ferrarias e
postos de remonta ttansformaram radicalmente as técnicas de circulação e ajustar-lhe as tarifas. Os príncipes controlavam as cidades mais fortes, e as feiras
..J transporte ao longo do século XII, sobretudo no Norte da França. À morte de sob sua tutela atraíam multidões de negociantes. Se no século XII os senhores
Filipe Augusio, alcançavam-se limites que não seriam superados até o século de Montpellier ampliaram irresistivelmente seu poderio, foi por terem trans-
XVIII, em matéria de velocidade, ou até o início do século XX, em matéria de formado o porto de Laues, perto da simples manse onde o conde de Mauguio
tonelagem. , instalara seu ancestral, numa das principais encruzilhadas do comércio medi-
terrâneo. Os negociantes vindos de longe, os "lombardos", os judeus que
De tal modo que em 1200 o baronato e o condado menor já se haviam tomado
) emprestavam, todos ameaçados porque se sabia que o dinheiro se acumulava
por demais acanhados. Em meio à generalizada abertura dos caminhos, a paz
em sua alforja, nada podiam recusar ao príncipe, seu guardião. Bastava suspei-
pública e o esforço de expansão dependiam de um poderio mais amplamente
estabelecido. O dos príncipes. Cabia a eles, antes de mak.nada,-contro!ar as forças tarem de que ele precisava desembolsar grandes somas para que tomassem a
----TIrlciativa de oferecê-Ias, entregando-as ao mais leve 'gesto, a qualquer prenúncio
naturais. 'Cada um dos cantões do vale do Loire não teria podido por si só proteger
seus terrenos das cheias do rio: era preciso que uma autoridade superior, a do conde depogrom.
de Anjou, coordenasse a construção de diques; e foi sob a orientação do conde de Desse modo, o numerário, que escasseava em toda parte, afluía para as casas
principescas. E não só em dinheiros e soldos, mas em marcos de prata e em libras
Flandres que se empreendeu a reqmquista coletiva dos espaços invadidos pelo
mar. Só os príncipes podiam proteger os mercadores estrangeiros que levavam Ficavam assim essas casas em posição privilegiada, acima dos "cavaleiros, caste-
.J lãos, condes e dos próprios duques", todos - como já observava por volta de 1130
suas cargas às grandes feiras. Foi grande a desorientação desses negociantes
quando souberam em Flandres, em 1127, que já não havia um conde em condições o abade de Cluny, Pedro, o Venerável; cheio de amargura - "atraídos pelo-cheiro
-.J de tomá-Ios sob sua guarda. Só os príncipes eram capazes de remediar, nas . do dinheiro" . Ávidos, logo, dóceis. Em 1179, escrevia Richard Fils Neal, à frente
extensões cada vez maiores cobertas pelos itinerários comerciais, a desorganiza- do tesouro e encarregado de controlar o numerário recolhido por Henrique Plan-
ção das medidas, e particularmente' dessa medida primordial que é a moeda. Numa tageneta: "O dinheiro é necessário não só na guerra como na paz. Na paz, serve
.J época de debilidade das trocas, quando as peças de baixo quilate serviam, sobre-
para a caridade dos príncipes [observemos que a moral obrigava em primeiro lugar
a sacrificá-Io, distribuindo-o aos clérigos e monges cujas preces atraíam para o
tudo, para o cerimonial do poder, para os gestos simbólicos de generosidade pelos
Estado os favores divinos, utilizando-o para ornamentar os santuários, construir
quais sé manifestava a autoridade, disseminaram-se _ assim como os lugares do
as catedrais: num dos tímpanos de Notre-Dame de Paris, a figura do rei Luís VII
poder - os ateliês aonde se levava a prata para cunhar alguns dinheiros quando
se precisava deles. Timbrados com uma cruz, como os asilos colocados sob a paz tem na mão esta igreja que, com suas doações, ajudou a reconstruir para a glória
de Deus, e, portanto, para o lucro e a prosperidade imediatos de seu povo]. Na paz,

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o dinheiro é gasto para fortificar os "Castelos, para pagar os soldados c em muitas


outras ocasiões que dependem da natureza das pessoas pagas para a defesa do
I ourivesaria, tão precioso' que o presenteado morre de alegria - sufocado, na
realidade, por excesso de cobiça. Foi punido: como ao cavaleiro, não convém ao
reino." Richard fala com clareza. O aumento da circulação monetária permitiu que homem da Igreja apegar-se às riquezas do mundo. Enfim, Roberto dá ao plebeu.
os príncipes, contratando companhias de mercenários, erguendo fortalezas inex- Não se trata, na realidade, de qualquer um, mas de um mestre, especialista na arte
pugnáveis, dominassem os barões, os pares de seu "reino", tornando-se senhores
do jogo político.
I de forjar o metal, de fabricar bons facões. Nesse espetáculo alegórico, ele repre-
. senta os armeiros que fornecem ao príncipe os instrumentos de sua superioridade
militar. Este homem de poucas posses, aldeão rústico, é o único dos três que guarda
\ consigo o presente. E,de fato, o poder o autoriza a enriquecer, para taxá-lo. O
Invoco aqui o testemunho não mais de um cronista, mas de um romancista, no ! ensinamento do Roman de Rou é político. Os três personagens que apresenta,
sentido exato da palavra, alguém que escrevia em romance, 11 língua literária das hierarquicamente dispostos, encarnam as três categorias sociais que constituem a
cortes: trata-se de Wace, "funcionãrio leitor" de Henrique Plantageneta, rei da corte do príncipe, sustentáculo do Estado.
Inglaterra, mas antes de tudo príncipe no reino da França, conde de Anjou, duque Na mesma época, João de Salisbury conclui Policraticus, tratado erudito
dos normandos e, em nome de sua mulher, Leonor, duque da Aquitânia. O Roman de exposição em latim da primeiríssima reflexão sobre o poder civil. João
de Rou - ou seja, de Rollon - conta a história dos primeiros chefes normandos, pertence à Igreja. Por enquanto, no entanto, serve a este poder na Inglaterra,
baseando-se especialmente na narrativa 'redigida cem anos antes pelo monge junto ao arcebispo Tomás Becket, chanceler, e mais uma vez sob a proteção de
Guilherme de Jumiêges. Wace traduz, mas também renova e acrescenta anedotas. Henrique Plantageneta, que se apóia, na Normandia, na organização adminis-
De duas delas, valho-me aqui para extrair uma imagem exemplar do príncipe. trativa mais aperfeiçoada possível. João estudou em Paris, e acabará bispo de
Numa delas, vemos Ricardo I trancado há alguns dias na torre de Rouen. Que Chartres. No momento,questiona-se·sobre o Estado. Descreve-o como um
estaria fazendo ali? Em nome de que tatefa indispensável se estaria assim privando corpo do qual os guerreiros são as mãos, os camponeses, os pés, e o príncipe,
por tanto tempo dos prazeres do ar livre, das emboscadas e da caça? Dedicava-se, a cabeça. No coração, agitado, palpitando aos solavancos e do qual vem a
com seus prebostes, à contagem de "seus pagamentos e derramas". Mais adiante, força, o sangue (ele não diz, mas o sangue é o dinheiro), o autor situa o
surge o conde Roberto, cognominado o Magnífico. Vemo-lo a receber presentes "senado", a corte.
e também cobrando taxas, mais precisamente o relevo imposto aos novos feuda- João de Salisbury enxergou longe. No Estado, a corte constituía o órgão
tários (na época em que Wace escreve, este direito senhorial a que os f1amengos central. Para ela convergiam as artérias que veiculavam os dinheiros, para ela
em 1128 ainda resistiam tanto proporciona ao grande príncipe enormes somas de precipitavam-se os homens novos que se haviam elevado graças ao crescimento
dinheiro: logo Filipe Augusto somaria cinco mil marcos, por Flandres, e João sem e que procuravam elevar-se ainda mais - os ganhadores" em suma. Neste
Terra, pOI"seus feudos, vinte mil). De modo que sc imagina Roberto, na narrativa, espaço fechado, tão afastado do populacho quanto as casas fortes dos fidalgotes
recebendo o que na realidade Henrique Plantageneta recebia. Ele retém comidas mais insignificantes, a sociedade cortês não era homogênea, e o príncipe, chefe
e bebidas, para alimentar e alegrar com abundância sua casa e seus hóspedes. dessa casa, cuidava para que não se tornasse, homogênea, justamente para
Como bom ca valeiro, nada guarda do resto. Trata logo de distribuir o que dá prazer preserv.ar a.ordem de que estava encarregado; cuidava para que, em sua corte,
ã vida, cavalos, vasos preciosos, amoeda --'- e também as mulheres, mas disso não como na de Deus, no Paraíso, as hierarquias permanecessem bem marcadas,
se dá conta aqui; as viúvas, as órfãs, as herdeiras ricas eram, no entanto, o presente alimentando a rivalidade entre os diversos "estados". Como demonstra a
que mais desejavam, da parte do rei Henrique, aqueles que lhe haviam servido com narrativa de Waee, cada um desses estados tinha sua moral. Eram "ordens", em
lealdade; eram o presente que ele prometia, para ser ainda mais bem servido, e que número de três;
acabava por proporcionar, distribuindo-as judiciosamente. Eis a moral dessa No nível mais baixo estão os homens de negócio que ganham dinheiro,
historinha. A moeda que recebe de todas as partes e rincões, o príncipe não deve aqueles que;;André, capelão de Filipe Augusto, denomina -plebeus". São novos-
guardá-Ia em seus cofres, mas distribuí-Ia: ela irriga o corpo do Estado,vivifica-o, ricos, rudes e incultos, desprezados: são os mais úteis ao poder, os mais
alimentando o amor dos súditos. Exatamente como a virtude da caritas, da perigosos.. os que sobem mais depressa, e os outros advertem o senhor contra
amizade, da doação de si mesmo, da benevolência recíproca, o dinheiro, circulan- esses maus conselheiros, a que não deve dar ouvidos. Ele os ouve, mas se exime
do, garante a coesão da ordem social. de reprimir o desprezo de que são objeto. Usa-os para melhor controlá-Ios. Face
Wace descreve três doações do conde. Uma doação em dinheiro, para a esses ricos, a inveja mais forte vem naturalmente dos homens devorados pelo
começar, ao cavaleiro que tem ~trás de si, no momento em que avança em direção
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desejo do dinheiro. Estes ganharam nas armas. O príncipe testou sua coragem
ao altar para dar uma esmola. Este cavaleiro nada tem, despossuído, como são .! nos torneios que organiza. Sob seu olhar, eles enfrentam na corte outros
em geral os cavaleiros. Apodera-se sem hesitação do dinheiro que recebe, ofere- aventureiros, que também ganharam, mas na escola: são os escreventes. Tão
cendo-o "li Deus. O segundo presente vai para o clérigo: um belo objeto de úteis quanto os financistas. Pois o príncipe necessita de gente capaz de elaborar
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172 a idade média na frança

I o grande progresso 173

as sentenças, cuidar-dos registros, avaliar a qualquer momento os homens que é


preciso empregar. Agentes de uma última mudança, pela qual se fortalecem as durou muito na Mâconnais. Até por volta de 1020-1030, no campo, os párocos de
estruturas do Estado, os escribas permeiam de maior rigor intelectual o exercício aldeia eram solicitados a redigir contratos de venda ou acordos de casamento em
do poder. fragmentos de pergaminho, retomando os termos de formulários dos mais antigos,
A Igreja era o conservatório de um sistema de governo e administração e naturalmente balbuciando um latim distoreido; mas se tais atos eram guardados
baseado na escrita; e a reforma da instituição eclesiástica repousara na restauração em cofres, era para lê-los em presença dos juizes em caso de necessidade. E já em
desse sistema, numa volta a formas antigas corrompidas pela usura da história -.:. 1070-1080 o conde de Mâcon distribui a justiça acolitado por um jurisperitus,
) num Renascimento. Este Renascimento desabrocha no século XII, notadamente especialista em direito, um escrevente cuja colaboração julga indispensável. Desde
nas práticas judiciárias. Cotejando textos, tratando de resolver suas contradições
pelo método dito escolástico - pois foi forjado nas escolas episcopais, pela i essa época, na Provença e um pouco mais tarde na Narbonnaise, os restos do direito

"distinção", o "questíonamento", o jogo de argumentos pró e contra -, os [' civil, do direito romano, eram reunidos por "mestres nas causas", que tratavam de
classificã-los, improvisando o aparato já agora considerado necessário àqueles
reformadores haviam edificado racionalmente um monumento jurídico, o direito cuja função era manter a ordem na parte profana dos negócios do mundo.
çanônico, ao qual se recorria para julgar os homens da Igreja, mas também os . Nas antigas regiões francas, a justiça leiga deixou por mais tempo de se
leigos, a propósito do que dizia respeito ao sagrado em seucomportametuo;,e
campo tendia a se ampliar'descomedidamente,
c-ste
pois, de acordo com os clérigos, o
casamento e toda sexualidade, assim como os juramentos (e se jurava a propósito
I apoiar em.textos escritos. Mas também acabaria por retorná-los. Já no primeiro
terço do século XII, o duque dos normandos - incumbido de conter a intrusão das
perturbações, da inquietoüo, no corpo social toda vez que um "inquieto" solicitas-
de tudo) estão submetidos à lei divina. se sua proteção - contratava escreventes queprocediam in loco a "reconhecimen-
Onipresente, a jurisdição eclesiástica ampliava a prãtica da inquisitio, da tos", colhendo depoimentos e conduzindo a investigação segundo o receituário da
investigação racionalmente conduzida e desembocando num relatório escrito. inquisição eclesiástica. Alguns anos mais tarde, verifica-se a penetração das
Ela substituía as incertezas dos costumes orais pelo rigor de uma lei escrita, os práticas dos juristas meridionais. Retomando em 1155 de uma peregrinação a
depoimentos pelas provas escritas. Para provar a culpa das esposas, permanen- Santiago de Compostela, o rei Luís VII atravessara o Sul do reino, hospedando-se
temente acusadas, sempre suspeitas de adultério, Yves, bispo de Chartres, em Montpellier. Em 1170, aparece em sua corte um "mestre", um jurisperitus. E
eminente canonista, exortava já no fim do século XI a que não mais se aplicasse em Paris, perante os estudantes das artes, um mestre - que seria talvez o mesmo
a ordália do ferro em brasa, recorrendo-se em vez disso a depoimentos regis- - comentava então este direito novo, o direito civil, distinto do direito canônico.
trados por escrito. Essas formas de julgar aperfeiçoaram-se ao mesmo tempo Entre 1180 e 1220, as jurisdições leigas foram organizadas segundo o
em que melhorava o recrutamento do clero catedral e era reforçado o poder de modelo das oficialidades. Nelas, promoveram-se processos, do requerimento à
controle conferido aos bispos para a manutenção da paz de Deus. Cônegos investigação e ao recurso, e os atos produzidos peIos pleiteantes eram garantidos
especializaram-se na administração da "justiça.de cristandade". Assim, no peIaautoridade de um signo abstrato, o selo. É dessa época que data, nas províncias
..il decorrer do século XII, organizaram-se pouco a pouco nas dioceses os do Norte, a brusca difusão da chumbagem, paralela ã expansão do tabelionato nas
tribunais de oficialidade. O concílio de Latrão de 1215 determinou que províncias d9_Sul. Todo aquele que quisesse proteger seu direito ou ter certeza de
:!
fossem registradas suas sentenças. No mesmo sentido, instituíram-se proce- que um acordo seria cumprido tinha de desembolsar dinheiro, pagar um escriba
dimentos de recurso. que fixava pela escrita as palavras do contrato, pagar a autoridade que autenticava
A Igreja propunha o modelo, um aparelho judiciário articulado, rigoroso, este ato, pagar, mais tarde, o advogado que o utilizaria' para defender sua causa.
eficiente. Os leigos, inclusive os <ijle detinham o mais forte poder temporal (à Assim nasceu e se afirmou de uma hora para outra um novo poder, e um poder
exceção do rei, que, pela sagração, pertencia na realidade à ordem episcopal, e dos lucrativo: o dos homens da lei. .
primeiríssimos príncipes, que se pretendiam iguais a ele, como o duque de Já então, na Provença como na Champagne e em Flandres, as palavras
Aquitânia), eram i1etrados. Para eles, os pergaminhos que lhes punham sob os , .escritas para servir em justiça não eram mais palavras latinas, mas as da língua
olhos, cobertos de sinais exprimindo uma linguagem que não compreendiam, eram comum. E o costume também começava a se fixar através da escrita. Em 1199,
objetos quase mágicos - e que por isso mesmo inspiravam-Ihes respeito. Por esse segundo toda probabilidade, um escrevente do senescal da Normandia, um desses
motivo é que o recurso à escrita manteve-se por longo tempo e logo foi retomado, especialistas que proliferavam junto aos tribunais, incumbiu-se de escrever o que
nas assembléias onde os condes distribuíam a justiça. No Sul da Gália, a interrup- sabia dos usos e costumes. Não passava, ainda, de um aide-memoire. Vinte e cinco
ção é muito breve. Na Catalunha, apenas por uma geração: na corte do conde de anos depois, juntou-se um adendo a este núcleo primitivo. Três ancien coutumier
) Barcelona, deixou-se na década de' 1020 de recorrer à velha lei de Toledo; as de Normandie, e dessa vez o transcritor conhecia bem o direito romano. Por toda
disputas entre os cavaleiros eram resolvidas em batalha ou duelo; mas já na década parte, em Paris, na Touraine, foram sendo elaborados da mesma maneira, nas
de 1050 voltou-se a considerar os textos, novos textos. A interrupção tampouco décadas de 1210 e 1220, oseJementos de um direito consuetudinário, objeto -
como o direito romano, como o direito civil - de reflexões, ajustes e glosas. A
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174 • idade média na frança o grande progresso 175

~ cristalização, a uniformização das regras jurídicas tomara-se indispensável, como cozinha do jovem rei Henrique, onde aprendera a calcular manipulando o dinheiro
a do instrumento monetário. A serviço de um príncipe responsável pela paz num para as compras de provisão. Tratava-se, no entanto, de um escrevente: ele devia
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território cada vez mas vasto, o pessoal que pululava nas cortes de justiça _ °
saber escrever, pois dele se esperava que inscrevesse num rolo balanço de lucros
j dispersas, mas ligadas umas às outras pelos procedimentos de recurso - precisava e perdas estabelecido após cada refrega. Na aceleração da circulação monetária,
escorar-se num corpo de costumes homogêneo. passara-se da mesa, do tabuleiro, ao registro. É desses mesmos anos que datam os
Paralalelamente à difusão da escrita, prosseguira a difusão do cálculo. Mas mais antigos vestígios de uma contabilidade regular, provenientes de principados
.J nesse caso os caminhos não haviam sido abertos pelos homens da Igreja. Durante administrados com firmeza, da Normandia, da Catalunha, do condado de Flandres:
muito tempo, os números, carregados de significado místico, serviram, sobretudo foi lá, por exemplo, que se reuniram em 1187, num livro chamado Gros Brief,
nos claustros, de apoio à meditação e aos exercícios espirituais. Aos olhos de Suger todos os brevia, os sumaries apresentados pelos quarenta recebedores condais que
- que apesar disso mostrou-se tão orgulhoso da maneira como administrara as se haviam empenhado em converter em dinheiros, soldos e libras o valor das
coisas temporais em Saint-Denis, além de ter sido responsável por inovações arrecadações ln natura.
..J arquitetônicas necessariamente baseadas no uso do esquadro, do compasso e em Afirma-se que a corte de França demorou a adotar essas práticas. Mas seria
harmonias matemáticas -, aquilo que A. Murray denomina "a emergência de uma mesmo? Não devemos esquecer o incidente bem conhecido: em 1194, o rei Filipe,
mentalidade aritmética" ainda não era muito perceptível-na década de 1140. em guerra contra seu mais temível rival, Ricardó'Ceração de Leão, e derrotado em
Quando o abade compõe a biografia de Luís VI, todos os números superiores a Fréteval, na Nonnandia, foi obrigado, na fuga, a abandonar todas as bagagens, e
cem que utiliza são aproximativos e simbólicos. Acima de dez, só uma vez ele especialmente sua "câmara", seu tesouro, tudo que tinha em moeda, mas também,
fornece um número exato. Tratava-se, é claro, de uma "história", obra de um segundo sabemos pelas crônicas, os pergaminhos onde estavam inscritos seus
gênero literário no qual não parecia necessário, e podia mesmo parecer absurdo, direitos. É possível que deles constasse uma contabilidade. Nunca saberemos. Mas
enumerar com precisão. Contar era coisa vulgar, coisa de criados, plebeus, dos admitamos que o atraso foi real. Por um lado, ele é explicável: segundo T. Bisson,
prebostes encarregados de receber taxas e foros no campo. o principado capeto era tão rico, o dinheiro-chegava em tal abundância às mãos do
Na realidade, uma nova maneira de usar os números e calcular, mais prática, rei, que não era tão grande a preocupação de; -onta-lo. Por outro lado, esse atraso
disseminou-se na Igreja no meado do século XII, dada a necessidade de uma boa logo seria recuperado, durante o reinado de írlipe Augusto. Em 1190, o rei partia
gestão das coisas temporais. Em 1155, investigadores foram enviados aos domí- para a Terra Santa, deixando para trás uma parte de sua corte. Decidiu portanto
nios pelo abade de Cluny, para fazer o inventário preciso dos recursos e estabele- que, durante sua longa ausência, todas as receitas em dinheiro seriam levadas a
cer-Ihes a soma. O mosteiro estava coberto de dívidas; para sanear suas finanças, Paris. Essa transferência obrigava os prebostes dos domínios a prestar contas
era urgente avaliar seus recursos correntes. É mais que evidente, aqui, a relação periodicamente e os responsáveis pelo tesouro a manter tais contas em registro. A
.entre a minuciosa enumeração do que o senhor pode esperar de suas terras e seus medida era provisória, mas quatro anos depois o episódio de Fréteval revelaria o
homens e as dificuldades da tesouraria, a impossibilidade de fazer frente às perigo de expor os instrumentos de um sistema fisclal atento aos riscos das viagens.
despesas comuns - as que se impunham pela necessidade de levar adiante A concentração e a fixação tornaram-se definitivas, forçando à criação de um
----empreitãdas de' construção iniciadas numa época em que-o dinheiro corria menos sistema contabil tanto mais necessário porque na época se estendia descomedida-
depressa e na qual tudo custava menos caro. Não resta dúvida: foi a infiltração .mente a senhoria real e aumentavam seus rendimentos em numerário: a anexação
perturbadora da moeda' no coração de todos os órgãos de poder que obrigou a do Vermandois e do Artois, inicialmente, e mais tarde a conquista da Normandia
contar com exatidão, sobretudo as moedas. e do Anjou, conjugadas ao desenvolvimento nessas regiões do povoamento e da
Tarefa difícil: o sistema monêtário (doze dinheiros equivalem a um soldo; atividade mercantil, aumentaram os rendimentos da coroa em 80% entre 1180 e
vinte soldos, a uma libra) era complexo; os algarismos usados, romanos, não se 1203, e novamente, naquele momento - e de uma só vez - em mais 80%. Os
prestavam ao cálculo escrito; era mais fácil adicionar e subtrair manipulando rústicos métodos de controle suficientes enquanto a extensão do domínio era
marcas - por exemplo, deslocando tentos pelas casas de um tabuleiro. Nesse caso, estável e limitada mostravam-se agora ineficazes; novos métodos, e melhores,
os letrados perdiam sua vantagem, os homens da Igreja mostravam-se menos foram aplicados, inspirados, após a conquista da Nonnandia, nos procedimentos
hábeis que os mercadores, e mesmo os cavaleiros, já que estes praticavam o jogo sofisticados usados havia décadas pelos agentes ducais.
1I de xadrez. Desse modo, o desenvolvimento da contabilidade foi tão precoce nos E por sinal não se tratava apenas de verificar, mas também de prever. O rei
1
burgos e castelos quanto nos estabelecimentos religiosos. Por volta de 1170, queria saber com que podia contar. E exigia, portanto, que seus parentes e
1
11 Guilherme, o Marechal, que treinava.urna equipe de guerreiros de torneio em próximos contassem. Promoveram-se investigações para fazer o levantamento dos
torneio pelos bosques e planícies da França, quis que ficassem registrados os lucros recursos cujo balanço periódico se impunha. A intenção era estimar, "avaliar".
da aventura, tendo previamente integrado ao bando um servidor especializado, Assim foi estabeleci da em 1194 e revista em 1204 a "avafiação dos sargentos", a
encarregado de manter a contabilidade exata do butim. Esse homem vinha da enumeração das carretas e homens armados que deviam ser fornecidos por oitenta
)

o grande progresso 177


a idade anêdia na frança

por eles rn a s também os ajudariam a exercer o poder. Mais de trc zentose vinte
e.,. b quando o rei convocava sua expedição militar, e para
cargos desses foram instituídos na década de 1i50 pelo conded. : Champagne,
ve·-~rio tentavam estabelecer UID preço: sete mil seiscen-
seus parentes e os oficiais de sua casa. A aristocracia, tanto a gr andequanto a
geutos, cento e trinta. e oito c arreeas', o equivalente a onze
pequena, criou seus intelectuais, na medida de suas possibilidac es. E pagou o
e js libras cunhadas elD Paris - números de impressio-
orrta do rápido aperfeiçoamento dos instrumentos intelec- devido preço.
;ra .ça.
Agilidade nos exercícios de cálculo" mas também Cercado de homens de estudo, o senhor devia mostrar-seca
ler nos livros, pelo menos de conhecer-Ihes o conteúdo e utilízã-lc
paz,se não de
paragovernar.
ar - ~ dinheiros. soldos e libras. Ele conduzia da mesma
Disso dependia seu prestígio. No fim do século XII, não há um SÓ barãoque não
bs •.•os feudatários proporcionahnente ao rendimento dos
se sinta obrigado a participar de alguma maneira da cultura ertld1 ta. E todos os
~h ) pudesse raciocinar com base em dados seguros. os
grandes príncipes pretendem-se letrados. Disso dá testemunhoa i nagemque os
usto tarnb-érn levaram a investigação para fora dos limites
divulgar de si mesmos e de seus ancestn is, na segunda
pC'. )das, entre outras, a lista que estabeleceram em 1207 condes de Anjou quiseram
scritoresa seu
a AOS -cavaleiros do reino de França". Chegariam mais lDetade do século. Ela se nos revela nas anedotas relatadas pelose
serviço. Um deles evoca o antiqüíssimo conde Fouque, morto por Y' iltade 960. Os
ltaL)receitas e despesas: a contabilidade de Todos-os-San-
rrorrrerrs do rei de França' zombavam dele, rindo por vê-Io cantaro' )fíciono meio
ler .Jrião de um orçamento.
de seus cônegos. Sua 'resposta foi escrita de próprio punho: "Um re iletrado é um
\ letrados. Eram formados em quantidade pela escola,
loqüência e as
fI, Jas que ag or'a se espalhava por toda parte. Era urna asno coroado".
letras convêm
O soberano teve de reconhecer que "a sapientia, a e
tanto aos condes quanto aos reis", e lodo mundopa: sou a admirar
~r(' )annra 'p~ra o serviço de Deus, ensina~ldo as letras e
ida nas letras,
r, para -deCIfrar as mensagens obscuras enviadas por Deus Fouque: -Embora se tivesse iniciado profundamente e com perspÍc,
nem por isso
'Ia:: »rrnas da criação visível; a escola levava à teologia. nas regras da arte grarn atic.al, no estudo de Aristóteles e CícerO,
deixava de superar os mais vigorosos, melhores e mais corajososCf valeiros." Por
ia f':spaço a disciplinas extretnamente_ úteis para aqueles
volta de l1S0,já parecia necessário associar, às aptidões militaresdO 5 governantes,
Ui.) servindo a outros mestres que o Senhor. Dando as
as do espírito. É o que ensina a história exemplar de Guilherltll: Plantageneta.
n l ) às altas carreiras eclesiásticas, muitos escolares
Quando su brne tia a cerco o castelo de Montreuil-Bcllay, o-conde lei rado" mandou
o estudo das artes liberais ou do direito, a entrar para a
vir da abadia de Marrnourier, segundo os historiadores contratadoS um exemplar
tcyade eclesiástica começou aparentemente no últirno
de Vegécio, cuja leitura ouviu. Em latim? Traduzida? ComentadlJ1' ;eja,comofor,
lebe-r o perigo de tal sangria, e pensou em rorn ar lnedidas
no dia seguinte, após reflexão. pôs em prática o que ouvira e toltl~ iu a fortaleza.
aL..lados para profissões semiprofanas. Bem-'-informado,
Verdadeiro ou mais pro vave.lrnenre inventado, esse episódio rI: feia o que se
ar )os cu ri ale s ; como os chamava, homens da corte, ou
esperava na época de um senhor desse nível na.Touraine: que se inspirasse,
s. _ -
para agir, nos autores clássicos, exatamente como um homen' ia Igreja. De
h )í"alD insinúado - e e rn sua maioria cedo. não tendo
s erne.Ih á'nre inciinação para a ~erudiçao" e a seriedade começav'" 1 a se queixar.
tó+io __ na capcia, na equipe que trabafhavajunto ao
os trovadores, Ia me.uta nclo que os chefes gU(:rn:il'os, de cujll generosidade
r".,.1 progressi varne nrc nos negócios. Auxiliar de Filipe
ã..J - o primeiro dos contadores reais cujo nome é dependiatn, pensassem menos ultimamente "crn proezas e 111' .gria que em
caso, assim oorno André, -o Capelão", e .Guilherme, o justiça e direito privado".
ol~anizii'dor polivalente de todo o aparelho que deu O rrov o urrocíe to do príncipe é apresentado com extrema rI ecisão, pouco
depois· de 1200, pelo apologista dos condes de Guines, Tratava"l precisamente
,t(""nou da cruzada, era hospitaleiro. COIDO a Ordem do
de um daqueles padres domésticos que se vangloriavam de ser _p)e: tres", gradua-
!sp.dtl inc u rrrbd a-zsc das transferéncias de furrdo s para
dos peja escola. 'Amadureoida na colegiada anexa (ksde 1069 à cll .a condal, sua
cc lba,cr, sabia-se contar, e m estreitore]acionamen-' nas cortes. É
rcadores. A pr irn e ir Is.s im a reconstrução do Estado foi obra é o mais daro testemunho da aculturação que se verificavll
IÇ: .) dos rn e s t re s e escolares dos centros de pesquisa e~;crita em latim, cotno os tratados escolares, vergando ao peso 9 a mais pedante
línguavulgar
ar+ fI se agrupar e.rn P'a ri s e Monlpcllicr' no in Ic o cio
í
retóric~, nl~s tarn bérn repcrc\~.,e o eco dos 'p?em:It:,:,''''I npostos e~
p-ara dlverl.llnent:o dos cav ale.i ros. Para definir a~'",·:, I udes que tO, ) boin senhor
s (.-d ajuda rn u t u a , as ,..nn i v e rs icí a de s", luas o fo i rn u ito
deve ostent.ar nas duas etapas de sua existência ,. '" panegíricO: presenta dois
d l'tlvo]vituento desses a m b ie nre s dOlTlésticos que
personagens: o conde Baudoin, o senior; o velho, c ::;."1.1 filho maí5 elho, Arnoul,
en v of v irrrc nt o das colegiadas instaladas nas proximi-
ainda solteiro. Senhor de poderio médio, orgulh"'l.llnIo--se de tef recebido sua
rt4_) Os príncipcs v a Ie r a rri -tse , então, de seus re.c u rs o s f
a rrrrnd ur'a trinta anos antes de Tomas Becket e IUIDlnd" para prese(V r a autonomia
p··--;bcndas, estabelecer' novos cônegos que rc z a rj arn
I','
,..'
178 a ódade média na frança o grande progresso 179
;Ií

) de sua senhoria, espremida entre dois principados fortes, Balduíno permanecera r prudhomme", Segundo Joinville, são Luís o considerava tão saboroso que bastava
illiteratus, mas se esforçava pcr atingir a sapientia, pois bem sabia que com isso pronunciá-lo para ficar com a boca cheia d'água. Ele designava O' cavaleiro
) mantinha-se no znesmo nível que O'Spríncipes, seus rivais. Recebia ccm generosi- perfeito, no qual convivem, equilibradas, a força corporal e a razão. Um século
dade, portamo, ossãbios de passagem, retendo-os por algum tempo junto a si, para antes, a prudência, anteparo contra os excessos, já se estabelecera em posição
) que O' iniciassem na ciência divina; vangloriava-se de ser capaz, corno simples preeminente entre as qualidades que situavam os homens da corte acima dcs
ouvinte, de alcançar a "virtude mística" dos textos sagrados e desempenhar "plebeus", dos rudes.
honrosamente sua parte nos exercícios da "disputa" - sentindo-se no auge da Esse sistema de valores que os contemporâneos de Luís VII e de Filipe
) glória quando porventura perguntassem, ouvindo-o discorrer, "corno podia saber Augusto denominavam cortesia pode ter suas formas iniciais identificadas -
as letras sem nunca tê-Ias aprendido". Enchia seu quarto de livros, e retribuía segundo propõe hoje S. Jaeger - no fim do século X"na corre dos imperadores
)
generosarriente O'Stradutores, em seu deseje de ouvir, numa linguagem que com- otonianos, em sua capela. O modelo mais uma vez teria sido forjado entre os
preendesse, a lei tura do Cântico dos cânticos, de santo Agostinho, da Vida de santo eclesiásticos associados ao poder dos príncipes; também aqui seria um modelo de
Antônio O'udos tratados em que se resumia O'que então era conhecido da física. natureza "renascentista'', visando O' retorno aos princípios e costumes de uma
) De sua parte, Arnoul, que representava nos torneios a glória da família, ainda época de ouro; derivaria de uma rcleitura dos autores clássicos comO' Cícero e
não. tinh~ qualquer CC:H3tC com a escrita: para Seu simples prazer, para entre- Sêneca, convidando O'homem bem formado à afabilidade, ao autocontrole. Seja
ter-se nos raros interhidios de sua agitação militar, pedia que lhe fossem como for, é certo que esse sistema de valores encorpou-se e se desenvolveu
contadas as histórias que O'Scavaleiros de seu bando guardavam na memória, decisivamente na França do século XII, no auge de um novo Renascimento, e que
os feitos dos cruzados, os de Carlos Magno e do rei Artur, e ainda os dos seu princípio básico é a idéia de "amizade". Acima de tudo, a cortesia.é comedi-
ancestrais. Aventuras e oralidade. ; monto. Ela reprime as lufadas de agressividade, de desejo incontrolável, da parte
Na realidade, esperava-se do "jovem" cavaleiro que soubesse fazer uso . carnal do ser, do sensível, cuja manifestação pode destruir a concórdia e que deve
perfeito apenas da palavra. É C que demonstra uma outra anedota, protagonizada ser controlada pelo intelecto. As regras desse sistema constituíram um instrumento
) por Godofredo Plantageneta: quando foirecebido na véspera do casamento por político para O'Spríncipes que estimulavam então a circulação de seu dinheiro. A
seu futuro sogro, O'duque Henrique da Normandia, este O' submeteu a um teste de cortesia também contribuiu, e muito, para O' fortalecimento do Estado. De tal
'" linguagem. O poder era conquistado e preservado, de Iato, pela coragem e O' maneira que qualquer reflexão sobre a progressiva racionalização dO'poder deve
destemor em combate, mas também pelas discussões, o bom conselho, O'confronto levar em consideração essa forma de sociabilidade que só é conhecida, então,
de opiniões convenientemente expressas. De longa data, portanto, a memória e a através de expressões literárias, O'amor que as pessoas da época denominavam
arte de raciocinar vinham sendo afiadas na aristocracia leiga, aO'saber das inter- . "fino", refinado, e que hoje qualificamos de cortês - não sem razão, pois ele
mináveis audiências em que se tratava de determinar O'direito deste O'Udaquele, diferenciava da vulgaridade plebéia.
com base no costume, Na realidade, foi muito lentamente, ao longo de todo o O amor cortês é um jogo, como o tomei\?, mas um jogo estritamente
século XII, que se operou essa espécie de osrnose entre a cultura das escolase a regulamentado, com prescrições muito semelhantes às dO'direito matrimonial. Já
das assembliias_gnt"-t:re!rf!s) Ct!j2 cU)r:!:!::!nci~será, na época de Filipe Augusto, a no século XI, a igreja da reforma, empenhada em -govcrnar a sexualidade para

Ii
I adoção das atitudes da "academia" pela "cavalaria", impor a ordem ao gênero humano, impusera aos leigos o casamento que proibia
aos clérigos, e construiu um ediflcio jurídico extremamente sólido, definindo a boa
Já na Canção de Rolando, junto ao herói que encarna a virtude da força,
I! surge um papel secundário, é verdade, mas necessãrio: o de Olivier, encarnando a conduta conjugal. Pouco tempo depois seria estabelecido no coração dos princi-
pados temporais um código análogo e complementar, destinado à parte preponde-

i'I;
outra virtude cardeal, a prudência, Desde 1090, multiplicam-se O'Scasos de meni-
nos que, mesmo não pertencendo à alta nobreza nem estando destinados ao estado rante da cavalaria que não estava enquadrada no contexto matrimO'nial - a enorme
1 eclesiástico, recebem ensino de preceptores na casa paterna ou são enviados às massa de machos que eram mantidos em celibato, corno os clérigos, pela estratégia
escolas, aprendendo a ler e a compreender um pouco de latim; começa então a das linhagens. A regulamentação tinha o objetivo de refrear a turbulência da
surgir, no vocabulário do elogio, O' qualificativo prudens. O termo dissemina-se, "juventude", conter um dos fatores dessa .turbulência, O'apetite sexual. O amor
li
I, logo superando O'Soutros epítetos - fortis, STrelllll/s'-:'" que dão ênfase ao desternor cortês é exercício de prudência proposto aos jovens desejosos de aumentar seu
, '
ffsico, Pela prudência, O'homem identifica cs caminhos que levam a Deus. Ela valor, e também às damas, que deviam mostrar-se, não afetadamente pudicas, mas
,I i permite-lhe também controlar os impulsos afctivos, agir com lucidez, à luz de sua prudentes. O amor cortôs induz a dominar pelo espírito as intcmperanças do corpo,
inteligência. Ela convém, parecendo cõnvir cada vez mais, aos bravos, aos homens a exaltar O' prazer retardando-lhe a satisfação. Tendendo a reduzir a agressividade
·1
que, tendo recebido de Deus O'glãdio, estão incumbidos de manter sua ordem neste entre os sexos, a estabelecer entre eles algo semelhante à amizade da vassalagcm,
"I'i
mundo p~la força e se encontram permanentemente sob ameaça de se deixarem o amor cortês consiste antes de tudo em conquistar O' amor de seu senhor,
1::
'I
levar pela violência. Já vimos como se difundiu no meado do século xm O'termo cortejando sua mulher conforme as regras do jogo. Instrumento de rcgulação social
'i
1. 'I
II
')
)

180 a idade média na frança

I
dos mais eficientes, esse código do comportamento amoroso acabou sendo.fixado
em escrita, ao mesmo tempo que os costumes e o direito dos feudos. A obra em I!
que esses preceitos foram reunidos e organizados e que teve sucesso imediato,
) escrita em latim, na linguagem dos cânones conciliares e do direito romano, I
I
segundo as regras da lógica escolãstica, impondo o respeito à distância entre os
não-nobres, os menos nobres e os mais nobres nessa pequena sociedade fechada
e hierarquizada que era a corte, essa obra é a única peça literária profana que se x
encontra nos registros da chancelaria de Filipe Augusto, junto' aos livros que
,conservam o resultado das investigações e recenseamentos. Esse tratado do amor
- como amar com honra, ou seja, dentro dos parâmetrosda razão - foi composto
em 1186 por um dos domésticos do capeta, André, capelão do rei de França. Luís VII
)

No decorrer do século XII, a reconstrução do Estado acelerou-se ao sabor de


.J , avanços de que os homens de ciência, da cultura escrita e das idéias tinham clara
consciência. O mundo transformava-se diante de seus olhos. Eles já não descon-
fiavam tanto da Natureza, começavam a considerar que o homem era solicitado
por Deus a' cooperar com ele na Criação, que já agora concebiam como uma
'.-:'.~' operação contínua. Amadurecia em seu espírito a idéia de que a civilização cresce
como uma planta, de que cada geração recebe a tarefa das mãos' da anterior,
devendo levá-Ia adiante. Inverteu-se, assim, o sentido que se dava à história
humana, cuja marcha já não parecia levar implacavelmente à queda. Inverteu-se
simultaneamente o sentido da palavra renovatio: renovar era; antes, exumar,
arrancar à corrupção e restaurar; a partir desse momento, todo Rcnascimento .
passou a ser co.nsiderado gerador. Os primeiros a ~e convencerem disso, a pensa-
rem também que' a verdadeira paz (vera pax), cujo 'exemplo está.no Céu, repousa
"na razão, trabalhavam nos centros de investigação intelectual implantados no
Norte do Loire, e o mais ativo deles prosperava então em Paris, a cidade onde o
rei, na mesma época; decidiu fixar residência. Foi ali que se precisaram durante o
reino de Luís VII (1137-1180) os traços característicos de uma nova imagem do
~ poder monarquico.

Já começamos a nos convencer de que esse rei não foi o monarca fraco cuja
debilidade era exagerada pela história tradicional para ressaltar o valor de seu pai,
protetor das cornunas, e de seu filho, vencedor dos gennanos. É bem verdade que
a maioria dos cronistas referiu-se a Luís como um "jovern", imaturo, inflamado,
aviltado por excessivo amor à esposa, que dele zombava. Sua reputação foi
seriamente afetada pelo fato de Leonor, que lhe trouxera como dote de casamento
a Aquitânia, acabar por abandonã-lo, levando consigo o ducado. Não é menos
verdade que Leonor tomou a iniciativa do rompimento, alegando que era primado
marido, num grau que tornava a união matrimonial incestuosa e proibida, anulan-

181
182 a idade média na f rança luísvií t83

do-a. Ninguém saberá jamais se seu tio, o conde de Antióquia, seduziu-a efetiva- Rotand; atribuída ao hispo Turpin, e a um diploma falso que. taia si&J,fiiimlm.ado,
por
mente na Terra Santa e a possuiu, como dizia um boato espalhado com rapidez. Carlos Magno. Esses documentos falsos, cuja autenticidade não'er,a.c.~Ild'a por
Mas cabe imaginar no mínimo que esse homem, chefe da linhagem aquitânia, ninguém, pretendiam disseminar a crença de que Carlos Magm:o,oferecera sua
) virou-lhe a cabeça, convencendo-a a reconquistar a liberdade, para poder despo- coroa a são Dênis e depositara no altar quatro moedas de ouro" -ímplicande;a: seus
sá-Ia. Foi o que conseguiu, sem dificuldade: os costumes do Sul da França eram sucessores que fizessem o mesmo todo ano, que oferecessem esse5i'lllilatoo.besantes
na ocasião tão diferentes dos do Norte que a esposa sentia-se muito mal no lar inclinando a cabeça e se prosternando". Atendendo a esse pedido, o, Capeto do
conjugal, cheia de eclesiásticos austeros que ficavam chocados com sua ma- século. XII por um lado se valia de tais gestos para afirmar-se como o herdeiro'
neira de viver. Mas cabe perguntar se seria mesmo o caso de atribuir intenções direto do imperador lendário; por outro, aceitando essa espécie de molde, torna-
políticas, por trás da decisão de se divorciar, a essa mulher já madura, e que se va-se uma espécie de servo de são' Dênis, mas também garantia para si mesmo,
tornaria em seguida, como todas as outras nessa época, simples objeto nas mãos corno delegado do poder que Carlos Magno conferia a seu patrono, o. dorrrfnio de
brutais de seu jovem segundo marido, que não se cansou de aviltá-Ia. Luís VII toda "a terra que se chamava Gália e que agora se chama França" -, pois, segundo
é acusado de havê-Ia deixado partir, como se se tratasse de grave erro. Esque-
ce-se o óbvio: para começar, que o rei - não obstante o papa, empenhado na
volta da viagem a Jerusalém em reforçar a unidade do casal ~ aceitou em 1152
J especifica o texto, ela é franca, "livre de qualquer servidão proveniente de outros
povos". Por essas palavras inventadas, assegurava-se a franquia de todo o reino -
um reino que não se limitava mais à velha Francônia.Jdentificando-se com toda a
que os bispos desfizessem solenemente o vínculo matrimonial, pois razões Gália, pois a fronteira que o limitava a leste ainda não havia sido traçada em vida
serifssimas o levavam a agir assim. Ele estava envelhecendo. E Leonor só lhe de .Carlos Magno. Além disso, como esses escritos afirmavam também que o
dava filhas. O futuro da dinastia estava em jogo. Em tais circunstâncias, era imperador fizera da abadia de Saint-Denis a "cabeça de todas as igrejas do reino",
comum que os senhores se livrassem da mulher, para tomar outra de melhor o rei -:- por seu ato de obediência ao santo cujos direitos estava' encarregado de
fecundidade. .
exercer na Terra, envergando-lhe a auriflama que diziam ser a própria bandeira de
Além disso, e supondo que Luís VII tivesse mantido o casamento, o certo é Carlos Magno, milagrosamente conservada - podia ambicionar o controle do
que na época os meios de governar à distância não eram suficientemente desen- episcopado.
volvidos, nem os costumes sucessórios'flexíveis o bastante para que se pudesse Acontece que havia algumas décadas se acentuava o recuo do monasticismo
anexar a Aquitânia sem demora ao domínio real. Ela ieria ido para um dos filhos à moda antiga; cuja devoção de Luís VII foi-se desviando aos poucos, para se voltar
do casal, e no caso de uma filha para um genro cuja fidelidade à coroa não seria para a outra família beneditina que agora tomava a frente, com suas abstinências
necessariamente maior que a de Henrique Plantageneta: quando este, mais bem- e sua renúncia à pompa: a ordem de Cister. Como seu avô Filipe I, o único outro
sucedido que outros pretendentes que não conseguiram desposar Leonor, apode- a tomar igual decisão em sua linhagem, ele decidiu não ser sepultado perto do
rou-se enflm da divorciada, estava na realidade, como seu pai, e depois de havê-lo túmulo de são Dênis, optando por repousar na abadia que fundara, e que era
recusado por longo tempo, prestando homenagem ao Cape to pela Normandia. cisterciense. Os cistercienses serviam aos bispos. Pois o rei teve a inteligência de
Finalmente, essa separação permitiu a Luís VII tomar mulher na casa de Cham- servi-Ios, também. As regras instituídas pelos.reforrhadores em matéria de eleição
pagne, rival da de Anjou, concluindo uma aliança da qual a casa de França extrairia episcopal foram fielmente aplicadas. O rei só intervinha agora para dar a conhecer
h~ca!cu!2veis vautagens. Do caso dó divórcio, portanto, lembremos apenas que a o candidato que preferia einvestir o eleitodoselementos.temporais de sua igreja .. '
rainha, insaciável, queixava-se de ter-se casado em primeiras núpcias com um Esse respeito e a devoção que evidenciava valeram-lhe a afeição do corpo episco-
monge - segundo relatam os cronistas. Aí está o principal, cabendo congratular pal, força de primeiríssima importância. A sorte da dinastia foi precisamente ser
Luís VII pela escolha que fez, sera dúvida involuntariamente, levado por seu representada, no momento mais favorável, por um homem que era objeto de
temperamento e pela educação que lhe dera o pai: a decisão, fundamental para a zombaria nas assembléias cavalcirescas, acusado de preocupar-se demais com a
evolução do poder na França, de enraizar ainda mais_profundamente a monarquia tirurgia.
na instituição eclesiástica. , Ele também sabia receber de braços abertos todos os prelados exteriores que,
Sob o soberano anterior, a realeza enraizara-se sobretudo entre 'OS monges, refugiados no reino, davam prosseguimento ao combate contra soberanos menos
em Saint-Denis. Foi onde permaneceu por algum tempo. O abade Suger foi o hábeis quando se tratava de tirar partido de seu poder sobre a Igreja: Tomás Bccket,
verdadeiro tutor do novo rei; este, três anos após seu casamento e a morte de seu expulso de Canterbury, o papa Alexandre, expulso de Roma. Apoiando-se nesses
pai, presidia a consagração docoro recém-cc>I1slruído, no meio de llumerosos exilados, Luís VII ficava em melhor posição para fazer frente, a oeste e a leste,
" prelados. Assim consolidou-se eS&1 ideologia da realeza que 8(0 inspi rava n05 aos dois príncipes cujo poderio podia sufocar o seu - Hcnrique Plantagencta, rei
escritos de Dênis, o Aeropagit.a. Ela se apoiou ainda mais soiidarnenu, em textos da Inglaterra, e Frederico Barba-Ruiva, rei da Alemanha. Este último, escorando-
recém-escritos no mosteiro. Refiro-me naturalmente a esse modelo do bom mo- se em juristas de Bolonha e nos preceitos recuperados do direito romano,prelcnclia
narca que é a biografia de Luís VI. E também à Histoire du roi Charles et de reduzir a franquia gaulesa proclamada em Saint-Denis, sob o argumento da
185
luis vii
184 • idade média na França

Isso permitia, para realçar ainda mais a glória do soberano, confiar os ofícios
superioridade imperial. Carlos Magno agora era ele; fez com que fosse canonizado,
domésticos aos maiores príncipes. O que não deixava de apresentar riscos: é
mantendo uma dieta em Besançon, no reino da Borgonha, envergando solenemente possível que o conde de Anjou, Godofredo Plantageneta, que ambicionava o cargo
na catedral de Arles a coroa dos reis da Provença, financiando às margens do Saona
de senescal, tenha-se valido dele - é pelo menos o que dizia abertamente -
bandos ameaçadores de brabantinos. Luís VII resistia Como podia; se Frederico
para violar a jovem rainha no quarto real. Mas, em 1179, quando seu neto,
concedia uma bula de ouro ao arcebispo de Lyon, ele dava outra ao bispo de
Henrique, o Jovem, servia o rei à mesa, cortando as carnes, nada mais fazia
Mende. E em 1162, quando se dirigia a Saint-Jean-de-Losne, na fronteira dos
senão figuração nas cerimônias do poder. Este estava agora, de fato, nas mãos
quatro rios, com a intenção de tratar diretamente com seu arrogante e temível rival,
dos ~fainiliares", dos ~conselhciros", de clérigos e cavaleiros tão leais à coroa
tinha em mãos o trunfo mais sólido, aquela mesma submissão frente à Igreja que
quanto os bons amigos de que se cercara Luís VI. Em meio ao progresso das
lhe conquistara a amizade do verdadeiro papa, cujas pretensões à dominação
técnicas administrativas, eles se mostravam cada vez mais capazes de se
universal iam de encontro às do imperador. No ano seguinte, o papa instalava a
encarregar dos negócios no dia-a-dia, sem estardalhaço. Esses homens fidelís-
cúria romana em Sens e atribuía a Luís, do alto de sua autoridade, a rosa de ouro
simos, já envelhecendo, dariam um pouco mais tarde a ajuda de sua eficaz
"pela qual reinam os reis e a justiça'.'.
Nem tudo fora tão bem para Luís VIl no inicio. Em 1147, ele insistira - em experiência ao jovem Filipe Augusto.
. 'No Oriente, os exércitos francos fracassaram. As mulheres que acompanha-
vão.s-cpara-que fosse reconhecido como arcebispo de Bourges um clérigo de sua
vam os cruzados - Luís VII dera o mau exemplo - traíam-nos. Deus recusava-
capela, seu chanceler, em oposição ao eleito dos cônegos; desprezando as leis do
Ihes a vitória. Mas quando o rei da França retomou, atravessando Roma, onde o
casamento cujo respeito a Igreja pregava, exortara seu senescal, Raul de Verman- papa o recebeu como um filho, estava engrandecido pelo sacrifício que oferecera
dois, a repudiar a mulher, para uni-lo à irmã da rainha, no interesse de sua casa. com o corpo e seus sofrimentos. Logo, deixando de viver incestuosamente, ele
Acontece que a irmã de Raul era a ,sobrinha do conde de Champagne. Como os
seria inteiramente purificado. E, além disso, pela primeira vez um capeto se
condes de Plandres e Anjou, este príncipe sustentava sua própria política, refor-
mostrara forte longe de casa. Outras peregrinações - à Grande Chartreuse, a
çando de maneira perfeitamente autônoma o Estado que dirigia e ao qual incomo- Santiago de Compostela _ conduziriam-no novamente para além das fronteiras
dava a expansão capetíngia; assim é que ajudara o arcebispo de Reims e seu
do reino. Ao sabor dessas viagens de devoção, os súditos puderam ver, ouvir e
capítulo a destruir a com una que o rei instituíra dois anos antes na cidade para nela
tocar o rei, em províncias onde ele não aparecia havia séculos. Acumulando graças
firmar pé, graças à amizade dos burgueses. Defendendo a honra de sua linhagem,
pelo próprio excesso de suas devoções, seu poder tutelar era reconhecido no
Thibaut de Champagne levantou-se contra seu senhor, encorajado pela palavra
imenso território cuja unidade, graças.à intercessão de são Dênis, era sacralizada
veemente de seu amigo cisterciense Bernardo. O rei reagiu duramente, empreen-
dendo uma guerra vitoriosa. Só que, violando a paz de Deus, incendiara desgraça- pelos favores divinos.
Roberto,' abade do monte Saint-Michel, repete: a Normandia pertence ao
damente a igreja de Vitry, com a multidão de pobres que nela se haviam abrigado. reino da França; "Já não' é apenas a Francônia qpe é vosso reino, embora o título
Sacrilégio. Com as mãos sujas, o ungido do Senhor revelou-se por um momento
real a mencione especificamente. Também a Borgonha é vossa": é o que escreve
corno um "tirano" cujos adversários tinham razão de clamar: traindo o juramento li Luís VII, em 116.6,.0abade de Cluny, Eudes, cujo antecessor, Pedro, o Venerável,
da sagração, ele rompera a aliança com seu povo.
afirmava poucos anos antes que essa região estava "sem rei". Eudes acrescenta:
Mas tudo mudara quando Lirís VH, naturalmente com a intenção de se lavar
"Considerei todo o vosso reino como um corpo inteiro ..." Nesses anos, o capeto
de seu pecado, decidiu ir em socorro dos estabelecimentos d'além-mar, que
toma como símbolo as f1ores-de-lis. São douradas sobre fundo azul, como as
começavam a se curvar à pressão do islamismo. Na corte de Natal que reuniu em
constelações na capa dos cardeais, imagem da ordem cósmica de que o imperador
Bourges em 1145, ele fizera a pro~essa de tomar a cruz: chefiaria pessoalmente Henrique Il revestia sua pessoa no limiar do século XI. Com esse signo
uma segunda expedição geral. Nenhum rei participara até então de uma cruzada.
heráldico, o soberano pretendia deixar claro que se estabelecia na junção do
Pois o rei da França tomaria a frente desta, cuja necessidade era pregada por são
terrestre e do celeste, que ocupava, acima de todos os mortais, o lugar reivin-
Bernardo em V ézelay. Ele comandaria o exército do Cristo rumo às miragens, pela dicado 100 anos antes pelos abades do monasticismo então triunfante. Quanto
salvação da cristandade. Para preparar a grande aventura, os bispos e condes à coroa, cada um de seus florões, segundo dissera Suger, representava um
reuniram-se em torno dele, como outrora ao .redor de Carlos Magno; a corte feudo; figuravam, assim, a reunião de todas as províncias do reino. Quando o
real recuperou de uma hora .para outra o brilho que perdera desde a época de rei, no auge das hierarquias descritas por Dénis, o Areopagita, colocava esse
Roberto, o Piedoso. Na ausência do rei, seu bem - ou seja, todo o reino - objeto na cabeça, nas cortes solenes, estava afirmando seu dever de manter toda
ficaria sob a proteção de Deus, segundo as garantias oferecidas aos peregrinos
de Jerusalém. Durante os dois anos da viagem, a missão da regência foi a França em paz.
Esta paz geral foi instaurada por Luis VII por dez anos em Soissons, em
assumida por são Dênis, vale dizer, o abade Suger. E não pelos grandes oficiais junho de 1155, "a pedido dos homens da Igreja e a conselho de seus barões, para
da casa capetíngia. Estes ficavam reduzidos a funções meramente honoríficas.
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l'l! 1,I 1'11


186 a i<fade média >Ia (ran.ça

reprimir O ardor dos maus. e conter 11 vioiência dos que pilham". Os arcebispos de
Reíms e Sens, seus sufraganres, os abades dos grandes mosteiros: (oelos:estavam
lá. Juraram a paz um após o outro, sendo seguidos pelo duque de Borgonha, o
monge de Saint-Germain-des-Prés
Iuís vii 187

redigiu a Histoire du três glorieux roi Louis,


dando prosseguimento à obra que Suger iniciara em Saint-Denis. Ele descreve a

I:
111
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li,
conde de Flandres, o de Champagne, o de Nevers e Soissons, e todo o baronato
presente. O próprio rei jurou: "Bm pleno concilio, e diante de todos, pelo verbo
espera ansiosa, o nascimento, o batismo, a explosão de alegria em Paris, cidade já
então capital, para onde afluíam de todas as partes os clérigos em busca do saber,
'I !l real, dy;semos que manteremos inviolavelmenteesta paz, e que, segundo nosso Não se conhece o papel representado pelo rei na reunião em sua cidade dos

!f
"

poder, faremos. justiça a todos que violarem esta ordem." Tratava-se de uma
';1',"
melhores mestres em ciência sagrada. Mas cabe perguntar se terá sido por acaso
conjuração muito semelhante às que se haviam tramado no ano mil nas assem- que decidiram estabelecer-se perto da residência real e não em Laon, por exemplo,
~ II bléias reunidas junto aos relicários. Tratava-se da paz de Deus. Mas a tarefa de
I• .t.,
onde eram conservados os livros utilizados pelos pensadores reunidos por
'111 Carlos, o Calvo, em seu palácio de Compiêgne, Sabe-se ao menos que com suas
preservar essa paz já não era confiada aos bispos, diocese por diocese. Era o
" oferendas Luís VII contribuiu para a reforma da catedral em Paris. Indo de
rei, sagrado como eles, vigário de Deus, que devia fazer-se o guardião dela,
11: pelo conjunto do reino. . encontro à posição de Pedro, o Cantor, e dos defensores da austeridade, que
I~ condenavam o orgulho e o gasto do dinheiro dos pobres em construções de
r
prestígio, ele apoiava o bispo Maurício de Sully, estimulando-o a reconstruir
,llj Nos últimos anos do-reinado, ele empenhou todo o seu zelo e o que lhe restava de .completamente Notre-Dame.
I forças no esforço de fazê-Ia reinar em toda parte. E o conseguiu. Em 1166 e em
,I
J J 71, o bispo de Mâcon e o abade de Cluny recorreram a ele. Estavam sendo
f É em seu reinado que começa, de fato, a floração de catedrais construídas segundo
importunados por bandos de salteadores, a soldo de maus senhores. Da abadia de
Vézelay, que outrora protegera contra o conde de Nevers, o 'rei apressou-se a ir em i os princípios de uma estética que denominamos gótica, mas que para os contem-
seu socorro. Bastou que suas tropas se aproximassem para que tudo entrasse nos porâneos era "a obra de origem francesa". Opus francigenum: esta expressão
eixos. No preâmbulo das cartas de concórdia lidas nas sessões que presidia, situàva com toda precisão o lugar onde se originava a nova maneira de construir
r ,
explicava-se o rei: "Viemos porque a terra da Borgonha ficou muito tempo, pela ! os prédios sagrados: no coração da velha Francônia, Saint-Denis-en-France. Suger
,
ausência dos reis, sem o freio de uma direção justa. Os que tinham nesta região encarregara-se de estabelecer-lhe o modelo: como Deus é luz; segundo são João e
alguma força podiam atacar uns aos outros, oprimir os fracos, devastar os bens da o Areópagita, a igreja deve ser translúcida, demonstrando por suas rosáceas e
Igreja." Já não o podem, pois o rei está presente. "Por causa de tanta maldade, janelas altas que toda a criação, assim como essa expansão que é a graça, derivam
movido pelo zelo de Deus, entramos com o exército na Borgonha para conduzir da irradiação do amor divino; como Deus encarnou, convém dispor na fachada,
as vinganças, para reformar a paz e a região." Depois dessas expedições, um altar- sobre a entrada e voltado para o povo, como em permanente prédica, um conjunto
foi esculpido para a igreja de Avenas-en-Beaujolais. Nele, vemos a efígie do Cristo de imagens proclamando que o Deus feito homem é um irmão e que o homem deve
glorificado em meio aos apóstolos, e do outro lado do monumento, em perfeita conduzir sua vida ouvindo Sua palavra. O exemplo foi seguido, depois de 1140,
simetria e como se fosse seu reflexo exato projetado no mundo visível..a effgie do pelos bispos da província capetíngia, que recorreram às equipes de artesãos
11

rex pacificus. Em sua mão protetora, ele traz a imagem da igrejinha: Mas é na . empregadas por Suger: o ateliê de escultores transportou-se para Chartres para
.,11 verdade a imagem de toda a Igreja, da qual é membro pela sagração, mas também, decorar a fachada real, o ateliê dos vidraceiros veio a Paris ornamentar com um
em posição dominante, protetor supremo nessa parte da Terra que lhe foi confiada vitral a antiga igreja de Notre-Dame. A partir de então, os canteiros de obras mais
por Deus. O rei da França já não é, como Carlos Magno, um novo David; é um ativos não eram os das basílicas monásticas, mas os das catedrais.
I j novo Melquisedeque, que era ao meimo tempo rei de Salem e padre; prefigurando
o Cristo, oferecera ao Senhor o sacrifício do pão e do vinho, Luís VII, o piedosís-
Essa transferência é a manifestação de uma tripla mudança na distribuição
dos poderes. Exprime, em primeiro lugar, a conclusão da reforma da Igreja,
simo, espécie de monge, também se pretendia ao mesmo tempo rei e padre, como subordinando decididamente o monasticismo ao' episcopado" mas também uma
11,11
só o papa, desde Leão IX, pretendera até então. < '
evolução mais profunda pela qual os ritos organizados em função das relíquias
!~ De volta da operação de pacificação que chefiara em 1166 nos limites milagrosas eram substituídos insensivelmente por um cristianismo vivido na
'li extremos de seu reino, Deus recompensou.n generosamente, decidindo-se a con- observância de uma moral cujos preceitos deviam ser ensinados a cada fiel. Este
I"
I ti
ceder-lhe a graça há tanto tempo pedida/Nasceu-lhe um filho, que recebeu o nome ensino cabia ao clero, e para começar ao bispo. A catedral devia disserninã-lo,
11
difundir a representação visual do saber que era elaborado na escola. Por outro
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,1
de seu antepassado, Filipe. Mais tarde, um sonho premonitório seria atribuído a
Luís VU. Ele teria visto este menino "dado por Deus", outro Melquisedcque, lado, tal transferência resulta diretamente do novo poder das cidades, sobre o qual
j,1 "tendo na mão um cálice de ouro cheio de sangue humano, que oferecia a todos pesavam as senhorias do bispo e do capítulo da catedral. Ambas exploravam seu
os prínci pes do reino, e todos bebiam com ele", Para festejar o acontecimento, um enriquecimento, valendo-se da prosperidade urbana principalmente para recons-
truir a igreja mãe, e com tanto rigor que a burguesia às vezes resistia, Foi o que
')

luis vii 189


188 a idade média na trança

sucedeu em Reims, onde a revolta obrigou à suspensão temporária da obra. Mas da cristandade latina, enquanto os abades, vindos de todos os mosteiros cistercien-
.os muros e campanários que dominavam a aglomeração de casebres também ses espalhados às centenas de uma ponta a outra da Europa, reuniam-se todo ano
celebravam a força e a glória da cidade. Os negociantes das feiras que se subme- em capítulo geral na casa-mãe para tratar das questões da ordem e compartilhar
tiam à proteção episcopal reclamavam, por orgulho, mas pagavam. Mas exigiam sua experiência espiritual, os clérigos - os melhores dentre os quais haviam
que as doações fossem personalizadas, que ficasse bem registrado que tal corpo- estudado lado a lado em Paris - oravam para que o povo de Deus fosse enfim
ração oferecera tal vidraça. Esses pequenos sinais de apropriação que hoje identi- reunido sob um mesmo poder. A salvação da Terra Santa o exigia: em Jerusalém
ficamos demonstram que o povo citadino associou-se à obra do clero, dessa forma reinava um adolescente leproso; por toda parte Saladin tentava sublevar os infiéis,
consa~rando, para purgar-se do pecado do lucro, uma boa parte do dinheiro mal exortando-os à jihad; era de se temer que viesse um dia a se apoderar do túmulo
ganho que suas diligentes atividades drenavam dos campos vizinhos. do Cristo. Era urgente que os príncipes - cuja efígie exprimia toda a força no
Finalmente, os edifícios que começaram a ornamentar suntuosamente o sinete, mas uma força tumultuada que podia gerar desordem, se não fosse disci-
domínio capetfngio refletem um renascimento da monarquia. Desde o estabeleci- plinada pela sabedoria - fossem postos sob controle dos reis, que aparecem em
mento das catedrais nas cidades fundadas por Roma na Gália, após a cristianização seus sinetes sentados majestosamente na estabilidade da paz celestial. Opondo-se
do Império, todos os atributos do poder público se haviam concentrado nesses aos principados, a Igreja apoiava as monarquias. Queria que fossem poderosas,
monumentos. De uma-forma-sublimada: pela retidão de suas paredes. e muros de sob a autoridade unificadora do sucessor de são Pedro.
pedra, pelas torres que a transformavam em cidadela inexpugnável, pelo pórtico Estedefrontava-se duramente com o rei da Alemanha, tentando conter suas
que, â semelhança da porta das cidades, abria para um espaço mais rigorosamente ambições açambarcadoras; hesitava em se reconciliar com o rei da Inglaterra,
ordenado, a catedral - que se apresentava como prenúncio da Jerusalém celeste excomungado por ter chegado um dia, em sua vontade cega de servir à Igreja, a
- representava o modelo do Estado em sua perfeição intemporal. Pois no meado mandar assassinar o primado, em pleno altar da catedral de Canterbury. Os favores
do século XII, dentre todos os Estados que se fortaleciam, era o que Luís tinha sob pontificais voltavam-se em conseqüência para o chefe do povo eleito, o rei dos
seu controle o que mais se aproximava desse modelo. Desde seu retorno da Terra francos, dócil e já agora implantado em sólidas bases, na exuberante riqueza da
Santa, onde visitara devotadamente todos os santuários que conservavam traços Ile-de-France e naquela cidade que era então, depois da Grécia e de Roma, ao cabo
da vida de Jesus, o rei das flores-de-lis sentava-se em seu trono em meio aos bispos. de lenta translação,o centro da mais alta cultura. Nela, o monarca usava o
Na abside de cada uma das catedrais de seu reino, todos sentiam-se tentados a imperium para a paz e a justiça. Reforçado, o vínculo feudal unia os altos senhores
confundir o trono episcopal com o seu. do reino cada vez mais estreitamente a sua pessoa. Já não pareceria quimérico vê-Io
Além disso, as virtudes de que fora impregnado pela unção da sagração assistido - como Jesus, como o Carlos Magno das epopéias -, para melhor
destinavam-no a tomar a frente do trabalho dos construtores. Um século e meio cumprir sua missão de concórdia, por doze acólitos, iguais entre eles sob sua
antes, o bispo de Laon lembrara ao rei de França: "Recorda-te da grande glória de proteção: os pares da coroa. Tal papel já' era exercido pelos seis bispos
que te cobriu o rei dos reis. Eill sua clemência, ele te concedeu um dom mais precioso investidos do poder condal nas cidades do Nordeste. Cabia esperar que logo se
que todos os outros ... Estás destinado a conhecer a Jerusalém celeste com suas pedras, juntariam a eles, nessa posição deferente, seis príncipes leigos, três duques (de
seus muros, suas.portas, toda a sua arq~itetura ..." Único-entre os prfncipes a ser dotado Borgonha, da Ãquitânia e da Normanáiã)e três condes (de. Flandres, Champag-
de tal visão, o soberano devia colaborar, por sua generosidade, com a obra de ne e Toulouse).· .
renovação contínua dos edifícios episcopais. Luiz VII conscientizou-se disso. As Mas a realidade opunha-se a esse sonho. A França continuava sendo um
duzentas libras de prata que ofereceu ao bispo de Paris serviram para cobrir o coro agregado de formas políticas concorrentes. É verdade que o poder real infiltrava-se
de Notre-Dame com uma abóbada mãls alta que qualquer outra até então construí- pelos interstícios desse tecido áspero. Em troca da guarda efica z que estendia sobre
iji da. Essa obra ele pôde ver concluída. Mas não assistiu, em ll80, à consagração esse bispado ou aquele mosteiro, o soberano conquistava o direito de participar do
I solene do ai tar-mor pelo enviado do papa. Na abadia de Barbeaux, os cistercienses poder em determinada senhoria; prevalecia-se, então, desses contratos de autori-
:1 velavam seu' derradeiro sono. Junto a seu corpo haviam sido dispostas, pela zação para instalar seus prebostes em certos pontos afastados do velho domínio
.J 'I
primeira vez, as insígnias que elevavam.o.soberanoacima de todos os homens: a dos cape tos. Mas eram estes apenas os marcos iniciais de uma extensão
~i coroa, o cetro e o sinete que ele mandara aplicar nos decretos de paz geral. E pelo problemática e difícil. Ela ia de encontro a Estados que se fortaleciam parale-
",I menos a cerimônia foi presidida pelo filho com que Deus o recompensara, pela lamente ao fortalecimento do Estado monárquico, como ele escorados no
íi maneira justa e escrupulosa como se desincumbiria de suas funções reais. dinheiro, no aperfeiçoamento das técnicas administrativas e na utilização dos
direitos dos feudos.'
i: De todos os vassalos do eapeto, o mais temível era o plantageneta. Henrique,
j!
para começar, era rei, na Inglaterra. Mas se esquece muitas vezes que ele se
Então mais que nunca, sonhava-se com a unidade nos mais altos escalões da Igreja.
considerava acima de tudo conde de Anjou. É e";1 Anjou, na região que seus
Enquanto o bispo de Roma, por seus legados, enviava sua palavra até os confins

)
-;

) 190 a idade media na frança Iuís vií 191

ancestrais haviam dominado, que ele repousa na abadia de Fontevrault, perto da trama das obrigações feudais era mais cerrada que em qualquer outra parte.
esposa, Leonor, e do filho, Ricardo Coração de Leão. É lá, entre Chinon, Loches A falha estava no Sul, na Aquitânia, sempre indócil, insubmissa.
e Angers, que se plantaram as raizes de todo poder que Henrique - graças a seu Para suprimir as rebeliões, o poder ducal apoiava-se nas cidades, na medida
vigor e a uma série de acasos felizes - estendia na época de Luís VII por quase do possível. E em especial em La Rochelle, recém-fundada e solidamente fortifi-
metade do reino da França. Ele mesmo estava convencido disso, o que fica mais );
cada, sem demora opulenta: vindas dos mares do Norte, pesadas embarcações
que comprovado pela imagem de seu pai que gostava de contemplar (o conde chegavam em comboio para carregar-se de vinho em seu porto; a amplitude desse
Godofredo majestosamente figurado na placa de esmalte que decora o túmulo do tráfico pode ser avaliada pelo lastro que deixavam, pelos amontoados de cascalho
falecidp na catedral de Mans) e pela biografia escrita em Tours na década de 1180, , que ainda hoje são encontrados nos baixios. Na esperança de dominar o baronato
j-."
outro monumento da memória dinástica. O herói desse panegírico é mostrado '\::,.:.'.' ,:'"
••
aquitânio como controlava o da Inglaterra e o da Normandia, o duque também
.'.'-'
triunf~ndo nas armas, logo depois de receber a armadura e casar. Mas não, vale tentava implantar os rigores do direito feudal do Sul do Loire. Mas era contrariar
notar, triunfando na guerra, e sim num torneio, organizado na praia, nos confins muito acintosamente os hábitos. A feudalização forçada suscitou infinitas revoltas,
normandos e bretões, ante o monte Saint-Michel, De um lado a equipe da Bretanha, reprimidas pelo terror por algum tempo, mas sempre ressurgindo. Outra fraqueza:
(
do outro, a da Normandia, que não era dirigida pessoalmente pelo duque, mas por '~:',",.,',' Henrique tinha filhos, e muitos mesmo. Já na adolescência eles exigiam sua parte
"
seus tr~s sobrinhos, os condes de Mortain, F1andres e Rlois .'Gcdofredo.decidiu da herança. um pedaço de Estado - e sobretudo, é claro, na parte que vinha da
'juntar-se ao campo bretão. Mostrá-Io logo 'de saída a tomar partido pela mãe, a Aquitânia. Leonor os apoiava, e atrás deles congregava-se todo o descon-
Bretanha, a Bretanha do rei Artur, era algo que satisfaria seu filho - e mais tentamento, toda a avidez; o próprio rei da França, por direito seu protetor, já que
adiante veremos melhor por quê. O confronto, indeciso, deu lugar a um . era o senhor de seu pai, não se eximia de explorar-lhes a insubmissão. Face ao rei,
combate corpo a corpo. Os normandos escolheram como campeão um saxão, Henrique Plantageneta via-se prisioneiro da homenagem que prestara: não podia
um inglês, um cavaleiro gigantesco. Godofredodesorientou-o e, como um novo dar a seus próprios feudatários o exemplo da Ielonia. Morreu aflito e ínconforma-
David, decapitou o monstro. Triunfo simbólico. Ele fornecia com isso a prova do, vendo-se traído pelo filho - Ricardo - que julgara mais fiel. Acontecesse o
incontestável da superioridade angevina: vitorioso, o conde de Anjou já tinha que 'acontecesse, a constelação de principados que por acaso reunira sob seu poder
em seu leito a esposa da' qual seu filho herdaria a Normandia; sua vitória pessoal estava fadada a se dissociar. Não devemos dar crédito aos mapas que se
prefigurava a que esse mesmo filho conquistaria sobre Estêvão de Blois, e a pretendeu estabelecer da França feudal, Neles, os domínios franceses de Henrique
submissão da Inglaterra. II da Inglaterra são extensíssimos, parecendo esmagar com seu peso o domínio
Em 1151, de fato, Henrique, sucedendo a seu pai, tomara posse dos direitos real. A ameaça que se erigia contra ele a oeste era grave, mas menos do que parece.
de sua mãe sobre o ducado nonnando; no ano seguinte, tornou-se duque da Uma outra reunião de condados também comprimia duramente a senhoria
Aquitânia, em nome de sua esposa; sagrado rei da Inglaterra em 1154, introduziu- capetfngia, para leste e para sul: no início do reinado de Luis VII, Thibaut era ao
se na Bretanha através de seu filho Godofredo. Espantosa trajetória de êxitos. Mas mesmo tempo - como seu antepassado Eudes -. conde de Meaux e de Troyes,
é preciso lembrar que tudo isso que assim foi reunido nutria quinzena de anos sob conde de Blois, de Chartres e de Châteaudun; também ele teria podido reivindicar
o poder de.Henrique, isso que os historiadores às vezes denominam "império" a Nonnandia e a Inglaterra como herança do chefe de sua mãe; permitira que seu
plantageneta nunca foium Estado, mas uma coleção de Estados. Cada um conser- irmão Estêvão exigisse e obtivesse a sucessão. Mas ao sobrevir sua morte em 1152
vava sua própria corte, seu pelotão de administradores. Para mostrar que os tinha _ e já vimos o peso e o efeito que os acontecimentos familiares tinham então na
,a todos sob seu poder, o príncipe precisava estar constantemente a percorrê-los. A história política - foram decisivos os costumes quç tornavam efêmeras tais
imagem que dele têm os contemporâ~eos é de uma permanente agitação. É o caso aglomerações de homenagens, a obrigação consuetudinária a partilhar igualmente
de Pedro de Blois, seu tabelião: "Da manhã à noite, ele está sempre de pé, e muito a herança entre os filhos do falecido. Thibaut tinha dois: o segundo recebeu Blois,
embora suas tíbias estejam gravemente feridas, cobertas de contusões por causa e o mais velho, o Estado mais sólido, a Champagne. Esta começava a tornar-se
dos repetidos golpes que dá nos cavalos recalcitrantes, ele nunca está sentado extremamente rica graças ao progresso dos arroteamentos em Brie e sobretudo ao
[como convém aos reis], exccto a cavalo ou à mesa. Num só dia, se necessário, sucesso das feiras de Troyes, Provins, Lagny e Bar-sur-Aube. Havia cerca de vinte
,Iil! é capaz de percorrer quatro ou cinco léguas." Assim foi que ele se esgotou ao anos vinha sendo lentamente organizado um sistema de proteção e garantias que
, longo da vida no exercício de seu poderio disseminado, Sempre ausente, um afastav.a os negociantes de longo curso das antiqüíssimas feiras episcopais de
il senescal ocupava seu lugar nesta ou naquela instituição política à frente da.qual Reims e Châlons, atraindo-os para Provins ou Lagny, cidades próximas da encru-
li!,'i se encontrava, É verdade que quase todas evidenciavam estruturas bastante zilhada parisiense, então em pleno crescimento. Preparava-se assim a espantosa
firmes. Para começar, a Normandia: as viagens dos juizes mantinham-na numa prosperidade das reuniões comerciais da Champagne, que no século XIII se
'1!
paz semelhante à que o monge Raul de Cluny admirava no meado do século tornariam o principal ponto de encontro entre os negociantes do Norte e os do Sul;
li XI; seus recursos eram explorados por prebostes estritamente vigiados; lá a já aí, elas se haviam organizado em ciclos regulares, enquanto se estendia a
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192 a idade média na frança
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A transmissão do condado de Anjou
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duoue dos bretões 1084·1112

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Ermengalda de 8ourbOn 1103-1106

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(li Orengar::! a
Fouque V, o Jovem Godofreoo V o Belo
Bei'trade de Montloll conde de Anjou 1 \09-1123 ~Plantagenela)
depois rei da Jerusalém 1131 conde de AnJou 1129
t 1143 duque da Normandia 1144·1150
t 1151
~alilde I :-I~~~i~Ue 11ptantaçeneta rJ ,. 54

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Leonor da Aouuêr-ta

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Malilde
abadessa de r ontevtautt 1150 I 1159
I c. 1155
Guilherme

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Thierry
Filipe
conde de etandres 1168
conde de Ptand-es 1128 I 1191
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. luis vii 195

, jurisdição das guardas estabe\ccidas pelos condes, e os comerciantes italianos e mente do pensamento científico, no latim das liturgias - quiseram que se disse-
provençais que as freqüentavam constituíam associações de defesa mútua. Mas minasse a seu redor a alegria profana, nas linguagens da cavalaria. Desse modo é
também na Champagne o sustentáculo inicial da reconstrução do Estado foi o que, já no inicio do século XII, Guilherme IX, conde de Poitou. e duque dos
) aquitânios, avô de Leonor - empenhado em frisar a singularidade de sua casa face
direito feudal. O conde possuía um vasto domínio, administrado por uns vinte
) prebostes, e quase metade das fortalezas; pouco a pouco, foi tomando conta das ao capeLo, e sobretudo face aos chefes francos, os condes de Anjou, cujo poder
outras, graças a obrigações de vassalagcm que seus agentes tratariam de registrar ameaçava mais diretamente o seu -, fez com que cantassem a seu redor, abordan-
cuidadosamente na época de Filipe Augusto. Ele próprio prestava homenagem ao do temas diferentes e numa língua diferente, poemas semelhantes aos que eram
rei de~rança, mas não por todo o principado. A homenagem era o que mobilizava compostos então em rimas latinas extremamente refinadas pelos bispos e abades
em parte outros senhores, particularmente o rei da Alemanha; apegar-se ao Império das regiões do Loire. Para isso, recorrera à riqueza cultural do Limousin, que era,
) era mais uma forma de fazer frente ao capeto. Assim foi que; na década de 1160, dentre as regiões sob seu domínio, a menos permeável às influências do Norte.
Henrique, o Liberal, arriscou-se a um jogo pessoal entre Luís VII e Frederico Valendo-se do modelo dos tropos, vocalizes adaptadas às melodias gregorianas
Barba-Ruiva. Enquanto isso, os bispos esquivavam-se para o Champenois - pelos monges de Saint-Martial de Limoges, os trovadores que mantinha em sua
exceto o de Troyes, onde já se insinuava a influência real: eis, muito concreta-
mente, i) que mais contribuía pata.a inferioridade das príncipes face à coroa,
I corte, e que como ele eram cavaleiros, e talvez mesmo ele próprio - se é
verdadeiro que é o 'autor das canções que mais tarde lhe seriam atribuídas -
,-, juntamente com o direito sucessório. Mas pelo menos o príncipe podia contar compuseram no dialeto da região obras que celebram, contra as penitências de
com os monges e cônegos que, cada vez mais numerosos, oravam por sua Pontevrault,: o prazer proporcionado pelas mulheres e os valores da cortesia.
salvação e pelo êxito de suas armas nas colegiadas que se espalhavam por todo Através dos jogos do "fino amor", no espaço de paz formado em pleno tumulto
o principado. Os melhores dentre esses clérigos ajudavam-no em sua própria militar pelas assembléias cortesãs, o duque da Aquitânia esperava conter melhor
)
casa a explorar sempre melhor suas prerrogativas. os guerreiros - com mais eficiência que a permitida pelos incertos compromissos
Prestava-Ihes também outros serviços, ainda mais úteis para a afirmação de a que eram obrigados pela homenagem.
seu prestígio. Atraídos por sua mulher, Maria - filha de Leonor, que presidiu em Henrique Plantageneta, que o sucedeu em sua homenagem, seguiu-lhe o
seu lugar os divertimentos de cortesia e encomendou o Lancelot ao romancista - exemplo. Deu acolhida aos poetas cortesãos, todos os poetas - os do Sul,
Chrétien de Troyes -, esses letrados poliam as expressões da jovem cultura que cavaleiros de Limoges, mas também os homens da Igreja cujos talentos para a
desabrochava no fim do século XII, a cultura cavaleiresca. A corte de Champagne escrita começavam a elevaras dialetos aristocráticos de Anjoue da Normandia à
serviu-lhe como um dos centros de irradiação mais ativos. categoria de língua literária. Todos eles, dedicando seus poemasà rainha Leonor,
fingiam estar trahalhando para ela. Na realidade, era ao marido que serviam e que
lhes dava de que viver. Os "escreventes ledores" elaboravam de maneira que lhe
E era, de fato, no terreno cultural que os príncipes encetavam então os combates agradasse a "matéria de França", mas cantando nã\> as façanhas de CarIos Magno,
mais ardorosos para afirmar uma-identidade nacional de encontro ao domínio e sim asde Guilherme de Orange, o bom vassalo sem o qual o rei teria afundado
,capetíngio. Era o.que fazia ao fomeçerem dinheiro para que os homens da Igreja na própria -debilidade. Osfnais habilidosos exploravam os grandes textos da
reconstruíssem os santuários. Em Anjou e Poitou, na Borgonha, em Lyon, a Antigüidade clássica, transpondo para o "romance" Estacio, a Eneida, o que era
"~i "maneira francesa" era admirada e servia de inspiração, pois se desejava que a luz conhecido da história de Tróía, Mas sua preferência - e naturalmente a de seu
) penetrasse nas catedrais e basílicas, exatamente como fazia em Noyon, Laoú ou senhor - ia para a "matéria da Bretanha", as lendas transmitidas pelos bardos
Paris. Mas os príncipes e prelados, senhores dessas obras, quiseram que os novos provenientes das regiões célticas, igualmente acolhidos pelo rei Henrique. Nos
:n edifícios manifestassem por claras lnflexões estilísticas a fidelidade às tradições confins nebulosos do espaço gigantesco que ele controlava com dificuldade, a
locais. Mais adiante, em direção a~ul, tais tradições foram suficientemente fortes Armórica, a Cornualha, o País de Gales e a Irlanda, última a ser conquistada,
para conter a expansão da estética gótica e impedi-Ia de reca\car as formas que formavam uma espécie de terra de mistérios na qual a cavalaria podia projetar seus
denominamos romanas, Cerca de um século depois, quando igrejas à francesa sonhos e desejos de liberdade. Encamavam-nos paladinos cujas aventuras mara-
i vilhosas eclipsavam as dos bravos da época carolíngia. Esses heróis, cuja fama
foram construídas em Clermont d' Auvcrgne, Narbonnc e Saint-Maximin de Pro-
fil i vence, foram vistas como um sinal de apropriação, a marca de uma potência esperava o plantageneta repercutisse em sua pessoa, eram cavaleiros, e cavaleiros
colonial, espécie de sinctc aplicado pelo capeto em províncias cuja resistência errantes; vagando pelos perigos dos matagais, eles submetiam guerreiros masca-
l1'11
afinal vencera, pela força das armas. rados, conquistavam o amor das herdeiras em fabulosos castelos, e as fadas que
) 11:1
Entretanto, como as lembranças carolíngias e mais ainda sua inserção no encontravam, banhando-se nuas junto às fontes, apanhavam-nos em seus fugazes
sagrado é que faziam a força da realeza, os príncipes rivais - preocupados em encantos; exaustos e cobertos de glórias, eles retomavam à corte para refazer as

Ili compensara ascendência da corte parisiense, austera e escorada no desenvolvi- e


forças sentar-se, todos iguais, à Távola Redonda, "que gira como o mundo", sob

"I
t96 a idade média na frança luis vii 197

a presidência do rei Artur. Deste, Henrique apresentava-se como herdeiro, contra exata das tarefas e a troca equânime dos serviços mútuos. Finalmente, os clérigos
o rei da França, que se dizia herdeiro de Carlos Magno. No momento em que se já não ocupam o primeiro posto. Vêm atrás dos cavaleiros. Pois nestes é que
instalava no trono da Inglaterra, Henrique encarregou Wace, um de seus escreven- Henrique queria mostrar que se apoiava, e não na Igreja, como o rei de França.
tes, de retomar o que havia sido escrito a respeito por Godofredo de Morunouth e Para fazer frente a esse rival, ele queria mostrar-se dotado das virtudes e atributos
lembrar que os bretões descendiam dos troianos, como os francos e os nonnandos .. da cavalaria. Assim é que o mais poderoso dos barões de França constitui-se, no
O angevino vencera os normandos e em seguida os saxões; contra estes, vingava último quartel do século XII, numa fase decisiva da evolução dos poderes públicos,
-.
Artur.lo rei civilizador cujo retorno era esperado pelos povos celtas. Pretendia ",1 '~' no instigador dessa reviravolta que dava precedência aos homens da guerra sobre
estab«lecer-se em seu lugar. Para que ninguém duvidasse, para convencer de que os da oração. à proeza e ao prazer sobre a caridade e a penitência, ao poder profano
Artur não voltaria, mandou descobrir seu túmulo e o da rainha Gueniêvre na abadia
galesa de Glastonbury. Envolto nas lendas, ele desafiava orei de Paris com sua
glória mundana.
Desafiava-o sobretudo por ressaltar os valores da cavalaria em detrimento
dos da academia, através dos poemas que para ele escreviam. Exaltar a proeza
1 I.
sobre o que emanava das liturgias da sagração. Esse modelo logo seria propagado
pelos poetas em todas as cortes do reino. Chrétien de Troyes, passando do serviço
do conde de Champagne ao de um outro importante príncipe, Filipe da Alsácia,
conde de Flandres, proclamava em alto e bom som em Perceval, dez anos depois
de Bento de Sainte-Maure: ~A mais alta ordem com a espada, feita e ordenada por
-cavaleiresca, à maneira bretã, mostrar-as virtudes da cavaiaria a desabrocharem Deus, é a ordem da cavalaria."
em meio aos perigos da magia pagã e nas alegrias da cortesia era o mesmo que'
espicaçar o espírito de independência face ao cape to e seus padres. Em 1159, João
.J de Salisbury - que na época servia ao rei da Inglaterra na casa de seu chanceler Reunidos em equipes maiores para os torneios, os cavaleiros se apresentavam
- demonstrara como a cavalaria "organizada" podia ser incorporada ao Estado todos como sendo de uma região, de uma "pátria" de que se orgulhavam. Os
pelo "juramento militar" (cujo modelo na Roma antiga era mostrado pelos histo- invejosos que acusaram Guilherme, o Marechal, de prevaricar com a mulher de
riadores latinos redescobertos) que obrigava ao serviço público, "a proteger os seu senhor, membros do esquadrão que ele comandava como capitão, eram
pobres da injustiça, a pacificar o país e dar, se necessário. o próprio sangue pelos nonnandos; não suportavam mais que um inglês lhes atirasse em rosto seus
irmãos". Por volta de 1175, quando' o Plantageneta via-se enfraquecido pelas sucessos e fanfarronadas. Para resistir às pretensões unificadoras da realeza, os
rebeliões aquitânias e a repercussão além-Mancha da canonização de Tomás príncipes do fim do século XII ainda podiam, portanto, recorrer a um sentimento
Becket, Bento de Sainte-Maure, de Tours, rimava por ordem sua uma Estoire des que podemos dizer nacional. -
ducs de Normandie, retomando a obra deWace, Bom servidor, preocupado em Natio: esta palavra latina não aparece com freqüência nos escritos da época.
satisfazer seu senhor, ele reescreveu, a propósito.de Guilherme Longa Espada, o Foi empregada nas escolas de Paris para designar os agrupamentos de ajuda
diálogo outrora imaginado por Dudon de Saint-Quentin entre este duque do século recíproca em que os clérigos, jovens e menos jovens, viam-se no meio de naturais
X e o abade Martinho de Jumiêges, mostrando-os a debater as estruturas da da mesma região, falando dialetos vizinhos. O termo é, no entanto, encontrado
sociedade cristã e os deveres impostos a cada uma das três categorias em.que num elogio da Touraine composto na época de FiNpe Augusto; ele é empregado a
os homens são repartidos pela-vontade. d-i-vina.-Bento-inverte para-começar a propósito-de Paris: esta cidade, afirma-se, situa-se acima de todas as outras "pelos
posição dos interlocutores: o discurso que Dudon pusera na boca do homem da trabalhos de Marte e porque domina as nações". Ta1v~z a palavra tenha saído com
Igreja, respondendo às perguntas do leigo e expondo-lhe o que os servidores naturalidade da pena do cônego de Tours, autor desta mui lúcida "apresentação da
de Deus sabem de seus desígnios, é agora atribuído ao príncipe. Que diz ele? província de Tours", ciente como estava da existência dessas comunidades estu-
r Existem três ordens: "cavaleiros, ;Clérigos e plebeus". Retoma-se, portanto, o I dantis na capital dos estudos. Mas se ele a utiliza para falar de uma cidade que
velho esquema das três funções. Mas não, a rigor, o que fora utilizado por j' ' considera a "sede real", não estaria também querendo evocar a congregação dos
Dudon: aquele que os bispos francos do ano mil haviam adiantado para tirar povos do reino sob a égide desse monarca que em 1155 tomara a frente de uma
a realeza de sua prostração. Todavia, a figura é radicalmente modificada. conjuração de pai geral? Naquele mesmo ano, um outro originário de Tours (se é
Dessacralizada, - que não era o mesmo) redigia num latim refinado um texto sobre 'O qual me deterei
Já não convinha situar o duque da Normandia, como seu fongínquo ancestral, um pouco, pois permite apreender a consciência que um dos povos da Gália tinha
numa das três categorias funcionais. Era preciso situá-lo à parte, acima, pois ele de sua história e de sua identidade.
pretendia dominar em sua casa os homens de diferentes condições que a integra- O destinatário desse escrito é mais uma vez Henrique, que acabava de ser
vam, jogando com essas diferenças. Por outro lado, não mais é Deus que fala por coroado rei da Inglaterra. Mas o autor não integrava seu círculo doméstico; servia
intermédio daqueles que Ele impregna de sua sabedoria. É o príncipe, que no a pequenos órfãos, os filhos do sire de Amboise, que como bom vassalo combatera
entanto não é sagrado. Cabe-lhe dizer o direito, terrestre, sustentáculo da paz social bravamente pelo conde de Anjou, mas que, traído e vencido, acabara de morrer
nos territórios que governa. Cabe-lhe velar, em nome do bem comum, pela divisão cativo do conde de Blois. Graves ameaças pairavam sobre seus descendentes. Iriam
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1I 198 a idade média na frança
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os inimigos despojá-Ios da herança ancestral? O senhor desse feudo, o plantage-
neta, tinha a obrigação de defendê-Ios a Lodo custo, e para convoca-lo a intervir e satélite. É verdade que também "amicíssimo" - o que é mais que importante,
com urgência um letrado de grande experiência, certamente um parente, foi nesse elogio da amizade. Seja como for, foram os francos, depois da partida dos
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instruído a rememorar-Ihe a história dessa pequena região subalterna, integrante bretões, que deram prosseguimento à guerra de liberação contra os romanos.
)
do principado de que Henrique era o chefe. Ele relatou os feitos dos valorosos Levaram-na para os lados de Angers, destruindo a "casa dos romanos"; levaram-na
1,1
guerreiros que protegeram a região ao longo dos tempos. Descreveu para o novo também para Amboise. Lá vivia uma mulher que descendia, pelo pai, dos guerrei-
rei "a linhagem dos sires de Amboise", mostrando "em que época e por qual ros de Artur, mas que pelas mulheres era herdeira do primeiro proprietário romano,
)
../
condej. seu próprio ancestral, "haviam sido instalados nessa terra, em razão de uma viúva, devota de são Martinho. Depois da morte de seus dois filhos, ela adotou
seu mérito", e enfatizando o que vinculava estreitamente esta linhagem à linhagem Clóvis, cedendo-lhe seus direitos, e assim foi que "desde então e até Carlos, o
) ••• 1 til Calvo, o oppidium coube ao rei dos francos". É este, portanto, o lugar que cabe ao
angevina, assim como as obrigações recíprocas decorrentes dessa ligação secular.
O relato estabelece, portanto, umparalelo entre a história dos vassalos e a de seus povo franco, filho dos troianos, na memória coletiva, frente aos romanos e aos
I1
!' sucessivos senhores. Frisa o valor que outrora tiveram, e que conservavam, para bretões.
~ os senhores do condado de Anjou, tanto o castelo quanto a comunidade reunida a Nessa altura da narrativa é inserida a genealogia desses reis, conduzindo dos
,
1 -sgu-r.edo!". ~n!u..'lG~ de citações- de--€íeero, o texto é antes de mais nada-uma rnerovíngios e carolíngios aos capetos, a Luís VII, e concluindo com umjulgamen-
apologia da "amizade" na relação de vassalagem, que pelo bem do país associava to sobre a cruzada que acabava de fracassar - pérfida alusão a Raimundo de.

~ Ilj a virtus, a força dos condes, à fidelidade dos sires.


O autor anônimo decidiu ~começar brevemente pela situação do oppldum de
Amboise", Para isso, vale-se do que; encontrou nos livros de uma riquíssima
biblioteca de Tours: a Vie de saint Martin, Ratbode, as Gestes des Romains,
Antióquia e a sua sobrinha Leonor, sobre os quais o autor, hipocritamente, "se
proíbe de falar mais", pois causaram tanta aflição aos cristãos. "O funesto acon-
tecimento decorreu da habitual arrogância dos francos", acrescenta. Saibamos que
no Amboise do meado do século XII os inimigos principais, o conde de Blois e
)
Godofredo de Monmouth, uma ,história dos francos que fora utilizada por Hugo atrás dele o rei, pareciam mais francos que os outros, e francos desencaminhados.
) de Fleury. Mas também interpreta o que vê na região, os vestígios antigos, pedaços Nesse resumo da história real, de fato, uma clara ruptura é assinalada no fim do
de muros, pedras esculpidas e os topônimos nelas inscritos, prolongando a lem- reinado de Carlos, o Calvo: logo depois dele é que começou a decadência, afirina
)
;."l brança de Roma. Na origem de toda a história .que escreve, portanto, ele situa o autor; Luís, "o Indolente", cedeu ante os normandos. Até Carlos, o Calvo, os
Roma. Foi César, afirma, que decidiu basear naquele talude que dominava o Loire francos foram admiráveis; seus sucessores são dignos de desprezo. Ora, essa
as operações de conquista que empreendia, no Oeste da Gália, contra Tours, Le ruptura é apresentada como efeito direto do que chamamos hoje feudalização: nos
Mans, Angers, a Annórica. César é imaginado a edificar uma espécie de prefigu- últimos anos do século IX, nesse território cujo destino é relatado no texto,
ração da paisagem atual, uma ponte de madeira, alguns casebres para os serviçais implantou-se a dinastia dos condes de Anjou, que em seguida implantaria a dos
) senhores de Amboise. Assim, é que se dividiu a "pátria franca": um feudo, um
ao pé da colina e o palácio, semelhante aos dos príncipes do século XI: uma morada
construída em madeira, uma sala de pedra para a parada, uma torre, e no alto desta, subfeudo, uma sobreposição de poderes à qual ~orrespondeu uma espécie de
j
à guisa de bandeira, utIL1dQlo, a estétua do del.'-SMarte que mais tarde seria confusão da consciência nacional.
destruída por são Martinho. Desse primeiro arranjo, confinado à época de ouro de Note-se, entretanto, que ainda era motivo de orgulho ser franco em Amboise.
uma Antigüidade pagã e conquistadora, nada ficou, segundo ele. Novos invasores Toda vez que se fala de glória ou de alta cultura na obra que utilizo, faz-se
fizeram tábula rasa de Arnboise. Mas ao cabo desses desastres o autor situa um referência ao populus francorum, resistindo com seu velar a todas as agressões. O
segundo herói fundador: é o mui li1x;ral e mui piedoso rei Artur (pois não era cônego de Tours - Martinopolis, a cidade de Martinho, primeiro patrono dos
necessário cair nas boas graças de Henrique lI?). Artur entra em cena quarenta e francos e rivaf de são Dênis - mostra de passagem, em traços gerais, como a
sete anos depois da migração que instalou osbretões na península da Armórica. .história dividiu a Gália entre as etnias. Distingue três povos, à parte os bretões.
;1 ~' Ele vem liberar do jugo romano os povos da Gália que sé submetem alegremente Escreve o erudito: "Os romanos, como' atestam os relatos, foram expulsos desse
a sua proteção. Em combate corpo a corpo, mala o comandante das legiões diante reino pela virtude dos godos, por um lado, e por outro, dos francos. Todos os nobres
;' de Paris. Apodera-se então desta cidade, também aqui - como no texto anterior- deste reino originaram-se dos francos e em seguida dos dácios e suevos que, após
".11 mente citado - reputada como capital. Nela é que comemora seu triunfo, nela é a expulsão dos francos, apoderaram-se da Normandia e da maior parte das regiões
" coroado, nela reparte entre seus companheiros. toda a terra de que se tornou entre o Sena e o Loire. Depois de vencerem e destruírem o rei dos godos, os francos
possuidor pela força das armas. Entrega Angers e a Touraine a seu senescal _ permitiram, que muitos grandes de raça gótica, depois de estabelecerem com eles
) a paz e a concórdia, dominassem na Aquitânia sob seu jugo e senhoria, e a eles se
mais um motivo de satisfação para o Plantageneta, que ambicionava este cargo de
importância na-cone parisiense, E deve tê-lo deixado satisfeito igualmente o fato misturaram pelos casamentos." Assim é que se afirma a primazia dos francos que
de ver o rei dos francos em posição subordinada ao lado do rei Artur, seu auxiliar ocupam a Touraine sobre os habitantes do Poitou: a fronteira encontra-se a poucas
léguas em direção ao Sul, marcada por uma linha de uimulos; eram segundo se

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,) luis vii
201
200 a idade média na frança
I)
pado angevino, entre os quais ainda se destacava o pequeno grupo dos Ambazien-
I) dizia, os marcos plantados por Childerico no limite dos dois povos. Mas os francos
"
-;'/: ses, aqueles que o senhor da fortaleza de Amboise protegia e conduzia ao combate.
afirmam com igual força sua particularidade face aos outros francos encontrados
() assim que se deixa Tours em direção a Orléans.
Podemos ver na maneira como é contada a história desse cantão e de seus
senhores a expressão de um sentimento muito disseminado na França dessa época;
( Os letrados das margens do Loire não haviam esquecido que Carlos, o Calvo,
cabe também pensar que da mesma maneira cristalizou-se por toda, parte, como
()
fizera da Touraine e de Anjou um bastião contra os povos que o incomodavam,
contra os aquitânios, esses mestiços, por isso mesmo traiçoeiros e covardes, contra
·1 prolongamento da .dissocíação feudal, a consciência de pertencer a uma pátria que
por dever e honra todos deviam servir e pela qual os bons cavaleiros deviam
( )
os bretões e contra os recém-chegados, os piratas, pagãos do Norte. Por isso,
povoara essas regiões com francos do melhor sangue: Quando buscava a origem r
I',
derramar seu sangue, como dizia João de Salisbury. Em certas regiões - no Sul
do reino, no Rouergue, no Gévaudan -, essa pátria identificava-se, sem dúvida,
() de sua linhagem, o conde de Anjou voltava-se, portanto, para Carlos, o Calvo: já
em 1096, ao ditar a seu tabelião sua própria memória ancestral, Fouque Rechin
I: com a diocese, no interior da qual entteteciam-se vigorosos elos de solidariedade
face às depredações dos bandos de soldados aventureiros, como herança das
(
recuava até esse Engelgério "que foi o primeiro a receber esta honra do rei dos "~ instituições pela paz de Deus. Em outros lugares, a pátria confundia-se com o
(
francos"; um bom, explicava, "que não era da raça de Filipe, o Ímpio, mas da raça
baronato, e sua raiz era a fortaleza principal a que estavam ligados os feudos, e
de Carlos, o Calvo", Quanto à genealogia condal incorporada à narrativa que me
que era comandada pelo último rebento de uma longa linhagem de defensores.
{..J -orienta, acrescenta que esse primeiro feudatãrio foratransplantadci do coração da
Havia algo ao mesmo tempo de militar e de dinástico nesses embriões do senti-
Francônía, da região do Orléanais, e que, por um feliz casamento, e não por
() mento nacional: eles-se escoravam numa dupla memória, a memória das vitórias
presente de seu senhor, tomara posse da torre de pedra em Amboise. Entretanto,
obtidas, de agressões rechaçadas através dos tempos sob a mesma bandeira hoje
(
o bom historiador que estabelece essa genealogia, ansioso por chegar ao século IX
brandida pelo senhor, ea memória de todos os homens que haviam passado essa
e a Carlos, o Calvo, projeta duas gerações atrás a fundação da linhagem. Dá a
bandeira de pai para filho, de tio para sobrinho. Essa última memória era cultivada
( Engelgério um avô, e é ele um autóctone, descendente dos homens da Armórica
pelas narrativas genealógicas recitadas junto à sepultura dos antepassados.
confinados nos brejos e matagais pela invasão bretã. Carlos, o Calvo, fizera desse
(.J homem dos bosques seu guarda florestal, "no ano em que expulsou os nonnandos
( de Angers", Ele teve um filho, um aventureiro - e toda vez que surge algum traço
No decorrer do século XII, criou-se na alta aristocracia o hábito de reunir esses
.. ~..
,
da lembrança que os príncipes do fim do século XII, defendendo sua autonomia,
túmulos, como os dos reis em Saint-Denis. Em 1096, Fouque Rechin confessava
guardavam de seus antepassados, encontramos lá no fundo, nas brumas do imagi-
não saber onde repousavam seus ancestrais mais afastados; quanto aos túmulos
nário, a figura de um cavaleiro errante, desafiando a ideologia capetíngia. Esse
dos mais próximos, ainda estavam dispersados. Ora, o fortalecimento das estrutu-
cavaleiro é mostrado a integrar-se aos bandos que o rei dos francos reunia contra
ras de Estado com base num modelo real, e portanto dinástico, propiciou um pouco
os nonnandos; ele se entrega ao rei, por ele é casado e estabelecido no Orléanais.
(J Através e graças a esse texto que se empenhava ernseduzi-lo, Henrique Plantage-
mais tarde o desenvolvimento de liturgias fúneb[es em torno de panteões senho-
riais. Depois de 1119, estabeleceu-se na abadia de Saint-Bertin a necrópole dos
neta, conde de Anjou, podia sentir-se um franco, mas por migração, ligado por seu
condes de Plandres; depois de 1133, foi a vez de 'surgir a dos condes de Hainaut
•. mais antigoancestral à terra da -Armórica e investido do direito de lá submeter os
na colegiada de Mons. Em 1157, pensando em seu próprio sepultamento, o conde
bretões.
de Champagne decidiu transfonnar o oratório de seu palácio em Troyes numa
Tornando-se senhores de um território que segundo Fouque Rechin haviam
colegiada consagrada a santo Estêvão, cujo nome havia sido adotado por vários de
"arrancado às mãos pagãs e defendido contra os condes cristãos", os condes de
I..) seus parentes falecidos, especialmente o mais glorioso de todos, que se tomara rei
Anjou combaterem a partir de entãO; e v~lorosamente, em três frentes, sempre fiéis
da Inglaterra. Seus descendentes foram sepultados nesse lugar. Nas sepulturas dos
ao rei dos francos. Mas também, e.pfecisamente por causa desse valor; numa
ancestrais ali reunidas, começaram a aparecer por essa época uma série de sinais
posição de superioridade condescendente em relação a este, quando começou a
destinados a perpetuar a glória da casa. Até então, os túmulos eram monumentos
degenerar. É nessa posição que aparece Godofredo Grisegonelle, senescal, prote-
de humildade. Em'Saint-Denis; Luís VI repousava sob uma simples laje. Mas na
tor de seu senhor debilitado, como o Guilherme do Coroamenio de Luís. A essa laje que cobria os despojos de Godofredo Plantageneta foi depositada uma placa
altura, casando-o com uma rica herdeira, como havia sido casado por seu senhor,
de esmalte de cores vivas, mostrando o pai do rei Henrique de pé, vivo, segurando
os condes de Anjou instalavam no castelo de Amboise o ancestral dos sires, um
{-.J 11 li a espada da justiça. A viúva de Luís VII mandou ornar o túmulo de seu esposo
franco, nativo também da boa região, a de Orléans.Cabe notar, no entanto, que ao
com uma decoração de ouro, prata e pedras preciosas; essa ornamentação suntuosa,
I.J chegar ao limiar do século XI - e introduzindo em cena um quarto inimigo do
cujo brilho contrastava com a austeridade do prédio cislerciense que a abrigava,
conde de Anjou, o conde de Blois - o autor dessa apologia não mais utiliza a transferia a pessoa do piedoso rei para os esplendores da Jerusalém celeste, em
( ..J palavra gollus, senão para designar esse adversário. Perante ele constituíram-se plena concordância com a ideologia da realeza recém-desabrochada. Nessa época
em comunidade nacional mais restrita os Andegavenses, os cavaleiros do princi-
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)
luis vii 203
202 a idade média na frança

da profecia de são Valério. A história surgira por volta de 1040 em Montreuil-sur-


é que aparecem as primeiras estátuas jacentes a exaltar os príncipes falecidos, Mer, aonde Hugo Capeto, então duque dos francos, trouxera a pedido do santo suas
oferecendo à contemplação geral a imagem sublimada de seus corpos perecíveis; relíquias que se encontravam em Saint-Bertin. Para isso, Valério prometera-lhe
imagem semelhante à dos santos, profetas e reis do Antigo Testamento ostentada que se tornaria rei, e que a realeza permaneceria em sua descendência até a sétima
no pórtico das catedrais, só que deitada, como estivera o cadáver no leito exibido geração _ ou seja, para sempre, pois no simbolismo dos números, sete é o do
publicamente em pompa fúnebre, exatamente como ele ropousava adormecido à infinito. Os príncipes concorrentes, no entanto, começaram a contar atentamente
espera do Juízo Final. Assim é que se podia ver a efígie do conde Henrique, os anos e gerações. Ordericus Vitalis observara, na época de Luís VI, que "quatro
. cognominado o Liberal e falecido em 1181, em Saint-Étienne de Troyes, através reis já haviam reinado" antes dele. Depois, como a lenda se transferisse do
das br~has abertas num sarcófago de prata e bronze dourado, tão esplendoroso personagem de Capeto ao de seu pai Hugo, o Grande, Luís VII foi designado como
quanto o túmulo do rei de França, seu cunhado e seu sogro. Deitado sobre a o sétimo. Quando morreu, ó prazo portanto se esgotara, a usurpação teria fim e a
plataf rma de uma tumba elevada, via-se a efígie de seu sucessor, Tribaut, morto coroa voltaria a seus herdeiros de direito, os descendentes de Carlos Magno. O
vinte anos depois no momento em que se preparava, em postura real, para chefiar filho deixado pelo rei de França era o principal interessado. Ou então - o que
a quarta cruzada rumo à Terra Santa; a efígie dir-se-ia suportada pela glória de sua pode ter pensado por um momento o conde de Flandres, Filipe da Alsácia - teria
linhagem: nas faces laterais do sepulcro, onze estatuetas de prata representavam de ceder o lugar, ou apresentar-se como o novo Carlos Magno, o que certamente
os parentes próximos do falecido; entre eles, três reis: o cunhado, de Navarra, o passava pela cabeça de um outro carólida, Balduíno de Hainaut, seu sogro. No
antepassado, da França.'e o-tio-avô, da Inglaterra. Prestígio inconteste da institui- relato que escreveu em 1196, André, monge da abadia de Marchiennes, da qual
ção real, que nunca chegou a ser posto em cheque pela feudalidade, nem mesmo era patrono Balduíno, exaltava-o por ter dado à dinastia um novo fôlego, conce-
no auge de sua força dissolvente. Entretanto, se se cultivava tão cuidadosamente dendo sua filha em casamento ao jovem rei Filipe.
a memória dos ancestrais coroados, ~ra para melhor preservar os direitos das
dinastias principais face àquele que então ostentava a coroa.
Na segunda metade do século XII, floresce na alta aristocracia do Norte da
França uma abundante literatura familiar, de que hoje só restam vestígios. Tais
escritos relatavam o que não era dito pela imagística dos túmulos. Ultrapassando
os limites da memória, os eruditos, incumbidos de preservá-Ia, erigindo no latim
."<, das liturgias e da ciência sagrada esses monumentos da lembrança, não hesitavam
em situar na origem da linhagem a figura imaginária de um herói fundador, a figura
de um jovem aventureiro que, na época em que se inaugurava o processo de
feudalização, havia desposado a terra, apossando-se de uma mulher. Por esta
mulher é que viera ~o sangue dos reis", sendo necessário provar que ele corria nas \.
veias do atual senhor. Na realidade, todas as linhagens nobres do reino, ou quase,
reunidas pelas alianças matrimoniais numa vasta parentela, não obstante o tabu da.
incesto..podiarn vangloriar-se ~. a começarpela linhagem dos Capeto - de ter
Carlos Magno entre seus ancestrais. O importante é que estejam reivindicando essa I
I
ascendência precisamente nessa época, no momento em que se sentem ameaçadas
pela expansão da monarquia. ,. ,j
.)'

Balduíno, conde de Hainaut, niandou que se procurasse nas bibliotecas de


Saint-Denis, Troyes e Cluny uma cópia-di' história de Carlos Magno atribuída ao
bispo Turpin. G. Spiege1 localizou seis traduções desse texto latino.relaboradas
entre 1200 e 1230, nas fronteiras do .Império, para a condessa de Saint-Pol, irmã
do conde Balduíno, para o grande justiceiro de Flandres, para o sire de Béthune,
para Renaud de Dammartin, conde de Boulogne. No prólogo dessas obras, Carlos
Magno, lido pelo patrocinador como seu ancestral, aparece coberto de todas as
virtudes ela cavalaria, apresentando-as exemplarmente àqueles que lhe deploram
o declínio. E foi durante o século XII, enquanto se fortalecia o poderio capetíngio,
que os estudiosos a serviço dos príncipes começaram, para agradã-los, a lembrar
que Hugo Capeto usurpara a coroa, enquanto por toda parte, nas cortes, falava-se

J
')

)
) filipe augusto 205

o flamengo, Filipe da Alsácia, que não tinha filhos, apressou-se a dar-lhe em


casamento sua sobrinha, Elisabeth, rompendo um pacto de esponsais fechado
anteriormente com a casa de Champagne.
Essa política, no entanto, jogava os grandes uns contra os outros. E logo eles
) se deram conta de que Filipe não era de se deixar conduzir facilmente. Logo depois
XI de coroado, mostrara sua resolução apoderando-se dos castelos do dote de sua mãe.
)
\ \
Hábil, jogava os de Champagne contra o conde de Flandres. Foi o que aconteceu
em 1184, quando convocou um concílio em Senlis para romper, sob pretexto de
consangüinidade, a união matrimonial que não se consumara. Simples manobra de
Filipe Augusto intimidação, pois manteve consigo ajovem rainha. Ela seria útil. Três anos depois,
dar-lhe-ia um herdeiro indispensável. Em nome desse filho, após a morte de
Elisabeth, ele tomou posse do riquíssimo "casamento" de que seu tio e sua tia
haviam dotado a esposa - o Artois, o Vermandois, Amiens. Tendo com isso
••aumentado .acoise.püblica", enfrentou os feudais contra ele coligados.
'Este Filipe, Filipe 11,para nós é Filipe Augusto. O epíteto foi aplicado a seu nome,
Contava com' dois trunfos. Em primeiro lugar; prevalecia-se do recente
ainda em vida, por Rigord, um monge que veio do Sul do reino para concluir na
',11 fortalecimento da moral cavaleiresca, cujo pilar central era a lealdade. Bom
abadia de Saint-Denis, em 1196, a história do novo reino que havia encetado.
J cavaleiro, o velho rei Henrique Plantageneta mostrou-se leal a seu jovem senhor,
Chamá-Io de augusto era identificá-Io a César, mas sobretudo celebrá-lo por ter
recusando a colaboração de suas forças às dos príncipes empenhados numa
ampliado o Estado - augebat rem publicam. Filipe acabava, de fato, de adicionar
investida contra o capeto que com sua adesão sairia vencedora. Filipe podia contar
o Vermandoisao domínio real. Ainda o ampliaria muito mais, dobrando definiti-
com a lealdade muito mais sólida, indefectível, dos guerreiros de sua casa. O
vamente, antes-de morrer, todas as resistências feudais.
segundo e melhor apoio que lhe permitiu contornar os primeiros obstáculos foi
Na festa de Todos-os-Santos de 1179, foi ele sagrado, com apenas quatorze precisamente a "família", a casa que lhe era legada pelo pai, muito diferente
f..J
...~, anos. Se~ pai não tivera outros filhos. Havia sete anos os homens da Igreja o daquele bando disparatado de fanfarrões e histriões que era a corte do marido de
exortavam a associar o herdeiro ao trono. Finalmente ele se decidira, anunciando Leonor: alguns homens sólidos, hábeis, cujos filhos serviam depois deles, Roberto
aos bispos e barões reunidos em Paris que a sagração teria lugar no dia 15 de
agosto, festa da Assunção de Nossa Senhora. Durante uma caçada, ° futuro rei
Clemente, o Marechal, Gautier, o Camareiro. Filipe soube completarjudiciosa-
mente essa equipe, recrutando ao voltar da cruzada esses companheiros de combate
perdeu-se na floresta de Compiêgne; foi encontrado dois dias depois, semimorto; inimitáveis que foram Bartolomeu de Roye, cavaleiro do Vermandois, Guilherme
..J
iria Deus tomar de volta o filho homem que finalmente concedera? Desorientado, de Barres, Mateus de Montmorency; e jovens letrados recebidos em sua capela:
Luís VII lançou mão novamente do cajado de peregrino e acorreu penitente ao' André, formado na corte de Champagne, Guilherme, vindo da Bretanha para
sepulcro de Tomás Becket, suplicando ao mártir que outrora defendera das violên- estudar nas escolas de Mantes e Paris, e finalmente o Irmão Guérin, o hospitaleiro,
" cias do Plantageneta que o recompensasse com a cura de seu herdeiro. O santo "conselheiro especial do rei'Filipe no palácio real ein razão de sua sabedoria e de
I....J atendeu-o. Quanto a são Dênis, concedeu a Filipe uma graça suplementar: acome- seu incomparável dom de aconselhamento, que se ocupou dos negócios do rei e
teu de paralisia o seu pai, que de volta da Inglaterra viera orar j unto a seu túmulo. das necessidades das igrejas como se fosse o segundo junto ao rei". Para todos,
'..J Luís VII ainda sobreviveu um ano, m,s já era um trapo. I Filipe foi um bom padrinho, generoso, distribuindo as togas, dinheiro, pedras
I
Filipe já era maior, segundo o costume, mas único. Em sua idade, morria-se preciosas. Aos homens de armas dava os feudos confiscados nas províncias
I.)
muito nas caçadas e exercícios militares~E/sobretudo ainda não se era maduro o conquistadas e as ricas herdeiras; aos clérigos, as boas prebendas, instalando os
suficiente para esquivar-se à influência dos mais velhos da parentela e daqueles que o haviam bem servido e os meninos de sua parentela. nas sedes episcopais -
.J
que também faziam parte dá família, pela homenagem que prestaram. Os grandes 1 Guérin em Senlis, o sobrinho de BartoJomeu em Evreux, os filhos de Gautier em
.J príncipes que foram a Reims para a cerimônia da unção - o conde de Plandres, ,I Noyon, Paris e Meaux, o de Roberto Clemente em Senso Guerreando, orando,
que levava a espada, o conde de Hainaut, o jovem Henrique, co-rei da Ingla- investigando, enumerando, registrando ou verificando os orçamentos para a cons-
..J
'ldi ,i terra, representando
de Champagne,
seu pai, cujos ricos presentes trazia, e ainda os quatro tios
irmãos da rainha mãe, protetores do sobrinho: o arcebispo,
trução das torres e recintos urbanos, esses excelentes servidores sustentaram entre
1190 e 1200 a armadura militar e administrativa que fez a força insuperável da
I! monarquia.
consagrador, o conde Henrique, o Liberal, o conde de Blois e de Chartres,
I..J Thibaut, senescal de França, e o.conde Estêvão de Sancerre _ esperavam Para os contemporãneos que lhe fizeram o elogio, entretanto, essa força
manobrar o adolescente, pelo bem de sua própria casa. Com esse objetivo é que derivava principalmente da graça divina. Deus abençoou Filipe com seus favores

f....J

(
../
f 204
porque ele cumpriu fielmente as promessas da sagração, Foi o que Rigord empe-

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~

)
206 • idade média na frança filipe augusto 207
J
j nhou-se em demonstrar. Guilherme, o Bretão, que o sucedeu na função de histo- tas prostitutas cujas roupas valiam somas estratosféricas": Essa salutar puri-
.: riador, descreve como o rei abençoou o exército em Bouvines, antes da batalha de
que saiu vitorioso porque combatia pela defesa da santa Igreja. Em verdade, no
ficação foi atribuída a Filipe.
Mas sua glória consistiu, sobretudo, em ter posto os judeus contra a parede.
) que diz respeito à sacralidade, Luís VII realizara o essencial. Filipe herdava dele Consciente de seus deveres, seu pai os protegera. "Por respeito a ele", diz Rigord,
esta arma capital: a dedicação sem mácula da Igreja dos gauleses. Pôde dar-se ao Filipe conteve seu ardor, remoendo. Mas sequer esperou a morte de Luís VII,
.J luxo de não se perder nas devoções, e mesmo de enfrentar a ira do papa, o qual, mandando detê-los em suas sinagogas em fevereiro de 1180, para extorquir-lhes,
-.J juiz eminente da conduta dos reis, tentou em vão forçã-lo a respeitar as leis do segundo os cronistas ingleses, trinta e uma mil libras cunhadas em Paris - uma
casarrtento. vez e meia' os rendimentos do reino em um ano. Certo de ser aplaudido, dada a
À 15 de agosto de 1193, no dia seguinte ao casamento, Filipe desfez-se de frustração causada pelos reiterados fracassos da guerra santa, ele aboliu todas as
sua segunda mulher, Ingueburgue, irmã do rei da Dinamarca. Rigord explica: dívidas dos cristãos para com judeus, guardando para si um terço dos créditos.
"Impedido por um malefício", ele não conseguira deflorã-la, Do primeiro leito, Expulsou esses deicidas, confiscando os imóveis que haviam adquirido, mas logo
tivera um filho, mas só um, e doente. Pelo bem da dinastia, devia gerar outros permitiria que retomassem e enriquecessem novamente, para em seguida gravá-los
meninos, e portanto tomar' outra mulher, e, para isso, romper legitimamente o
vfnculo conjli'gal-qüc--aeabal'ã de=entabular. O casamento era nulo em-caso de
incesto. Em Compíêgne, perante uma assembléia de bispos e barões presidida por
I~ - moderadamente,
representa-apenas
é verdade: o lucro dessas taxas nas contas de 1202-1203
1% dos rendimentos dacoroa. Assim foi que se ajustaram os
procedimentos de uma exploração racional da riqueza judaica: durante mais de um
.J seu tio,o arcebispo de Reims, quinze testemunhas, das quais doze pertenciam a
sua casa, juraram que ele era primo em quarto grau de Ingueburgue. Era' uma
I século, alternando proteção e violentas compressões periódicas, ela proporcionaria
ao tesouro real volumosas entradas de dinheiro. Estendendo ao reino as regula-
J mentira que lhe permitiu contrair uma terceira união. Os bispos a abençoaram mentações em uso no ducado da Normandia, o decreto de 1206 apertou o cerco.
-.J solenemente. Em 1198, o novo papa, Inocêncio Ill, condenou o rei da França por Ele limitava a taxa de usura a dois dinheiros por libra e por semana, o equivalente
bigamia. Seu legado não chegou a excomungá-Io. Mas ele recorreu a uma temível a 43% ao ano; e sobretudo instalava em cada cidade prepostos para o controle do
.J
sanção, colocando o reino sob interdito. A sentença não chegou a ser aplicada em crédito, cuja tarefa consistia, sobretudo, em avaliar com precisão os fundos que se
-..J dois terços dos bispados que dependiam da coroa. De modo que Filipe manteve-se acumulavam nos cofres dos emprcstadores judeus.
firme. Durante quinze anos. E o papa teve afinal de legitimar os dois filhos Demonstrando tanto zelo, o rei Filipe foi também recompensado pela Provi-
.J nascidos do mau casamento. Ele cedia ante a aliança da realeza com o episcopado, dência por se ter aventurado na perigosa peregrinação à Terra Santa. Logo que
tão fortalecida no reinado anterior. Bem aconselhado, o filho do mui cristão Luís foram conhecidas a derrota de Hattin e a queda de Jerusalém, começou-se a pregar
J VII eximiu-se de perturbar os mecanismos estabelecidos. Seu funcionamento a realização de uma nova cruzada. Em 1188, em Gisors, os dois reis - Henrique
.J regular permitia-lhe colocar discretamente seus amigos nas catedrais. Da mesma ~ da Inglaterra e Filipe da França - trocaram o beijo da paz, comprometendo-se a
forma, tendo ele intervindo apenas para coordenar as relações entre burgueses tomar-lhe a frente, após o terceiro soberano, Prederico Barba-Ruiva. Para preparar
..J e estudantes, o desenvolvimento das escolas de Paris deveu-lhe muito; 'e a a expedição, autorizavam. a aplicar sobre seus súditos uma taxa geral, o dízimo
...J universidade, cuja organização e~a~~creci-cl3pelo papado, avivou constante- saladino..Bm 1190, Filipe partiu. A rainha acabava .dcmorrcr e seu filho tinha
mente, com seu crescimento natural e seu brilho, o brilho da própria monarquia apenas três anos. O fato de que assim arriscasse tudo leva-nos a ponderar que
-..J da flor-de-lis. . aquele que mais tarde seria considerado esperto como uma raposa colocava na
É verdade que desde seu advento o soberano colocara a força de seu braço verdade o serviço de Deus acima da política, e que era movido pela fé, a esperança
a serviço da Igreja. Sua primeira carâpanha.em 1180, levou-o ao Mâconnais para e a caridade. É claro que o novo chefe da casa Plantageneta, Ricardo Coração de
a conclusão da obra de paz encetada por seu pai. Mas Rigord elogiou-o sobretudo Leão, também partia, seguido por todos os grandes chefes feudais do reino. Para
por ter' já no início de seu reinado livrado o reino de todas as podridões que o melhor se garantir, tomou sérias precauções antes de partir. Estabeleceu em
infectavam. Começara em Paris, sua cidade, expungindo-a da lama, do mau cheiro. testamento- e é este o primeiro ato escrito que trata de sucessão na casa real -
Nada de mercadores nem prostitutas nos Iunocents: mandou cercar o cemitério como seu poder seria exercido durante sua ausência e para a eventualidade de não
com um muro e determinou a construção de mercados na parte exterior. Os mestres retomar, como seria exercido "o ofício real, cujo dever é garantir por todos os
pervertidos que propagavam a má doutrina na fie de Ia Cité foram levados à meios o que é bom para os súditos e colocar a utilidade pública acima da utilidade

III fogueira. O rei saneava a ferro e fogo. E não hesitava em recorrer aos bandos
armados, os routiers. Seus hagiógrafos eximiram-se de dizê-Io, mostrando-o,
privada". Esse decreto instituía em Paris a centralização do poder público, e em
primeiro lugar justiceiro. Nessa cidade, de quatro em quatro meses, os mais
.) IIUIII muito pelo contrário, a destruir os brabantinos. As milícias da paz haviam próximos do soberano pelo sangue - a rainha, sua mãe, e seu tio materno, o
promovido uma carnificina em Dun-Ie-Roi, em Berry, massacrando, segundo arcebispo de Reims -- "ouviriam as razões dos homens do reino e apaziguariam
se dizia, mais de dez mil homens e suas companheiras, "quinhentas a novecen- as disputas pela honra de Deus e pela utilidade do reino". Filipe deixava atrás de

~ 111.
)
)
208 a idade média na frança filipe augusto 209

si procuradores que, investidos de seus poderes, participariam desses tribunais e pelo rei, que se escorava nos direitos herdados da falecida mulher. Revelou-se
"recitariam" as questões de sua terra. Desses "bailios", homens que haviam, então claramente em que eram fracos os Estados cuja reconstrução correra para-
recebido o arrendamento (bail) de seus direitos, nem a rainha nem o arcebispo lelamente à da monarquia. À frente dessas instituições políticas era necessário um
podiam tomá-Io se não cometessem erime de sangue. Ele os havia distribuído "por guerreiro, e um guerreiro fisicamente capaz de manejar a espada. Também o reino
suas terras, distinguindo cada uma por seu nome - o que equivalia a reconhecer precisava de um homem assim à sua frente. Mas os principados ficavam muito
a personalidade de cada região -, para aplicarem a justiça mensalmente em seu mais vuineráveis quando as linhagens eram bruscamente decapitadas, como o
nome, reconhecer o direito de cada um, mas protegendo o seu, estabelecendo por foram pela terceira cruzada, pois eram feudos móveis da coroa e os costumes
escrko o que lhe cabia nos rendimentos de justiça". Filipe preocupava-se com a que situavam o rei no ápice da pirâmide das homenagens ofereciam-lhe mil
justiça, mas não esquecia o dinheiro. Em cada senhoria, os bailios deviam encar- recursos de intervir para se apoderar deles, ou pelo menos torná-los tempora-
regar os prebostes de estabelecer quatro homens de confiança.t'prudentes, legíti- riamente inofensivos. .
mos e de bom renome"; as questões locais não seriam tratadas sem seu aconse-
Ihamento. Em Paris, eles seriam seis, e o próprio rei os designava: eram burgueses,
e os mais ricos negociantes, grandes cambistas, homens que sabiam contar, se não No advento de Filipe Augusto, o sistema jurídico teorizado por Suger já estava
.. Todo-ano-em Saint-Rémi, nas festas eu GaQdelária e· na-Assunção, "todes-os
. ------:-!er plenamente instalado. Já o estava praticamente em 1169, quando Henrique Plan-
I seus rendimentos, foros e receitas extraordinárias seriam levados a Paris", para o tageneta, procedendo à partilha de seu patrimônio na assembléia de Montmirail,
I' lugar seguro que ele mandara fechar dentro de fortes muralhas. levou seus filhos Henrique e Ricardo a colocar as mãos entre as de Filipe, um
Filipe chegou à Síria pela Sicília. De todos os reis de França, era o primeiro menino de três anos e meio - o primeiro, pela Normandia e Anjou, o segundo,
I que tomava o caminho do mar. No Oriente, combateu valorosamente - e perdeu
a saúde. Mas retomou. O mais rápido que pôde. Rápido demais, talvez: Jerusalém
pela Aquitânia. E por outro lado, quem ainda se recusaria a admitir que o Capeto,
por ser rei, não precisava prestar homenagem a ninguém? Este princípio foi
não fora libertada. Joinville mostra como são Luis foi forçado a admitir que seu aplicado em 1185, quando caíram nas mãos de Filipe Augusto, na cidade de
, avô fora criticado por essa precipitação. No fim de 1191, Filipe estava em Amiens, poderes que cabiam ao bispo. Durante o reinado, os especialistas em
! Saint-Denis, agradecendo ao mártir por ter velado pelo reino e por ele mesmo direito que estavam a seu serviço ajudaram-no a apertar a malha em que se viam
durante a dura viagem, cujas vantagens no terreno temporal estava para extrair.
i cativas as maiores senhorias do reino. Quando procedia à investidura desses
Não eram vantagens desprezíveis. A cruzada o livrara de seus principais principados, agora tratados como tenures' eles o aconselhavam a exigir o compro-
I rivais, e especialmente do mais preocupante por três anos. De fato, Ricardo misso de fiadores do feudatário,jurando indenizar o soberano se o príncipe viesse
i Coração de Leão permanecera além-mar, o único a fazê-lo dos três reis que se

r
a negligenciar seus deveres. Depois de 1202, impôs-se entre os subvassalos,
haviam posto em marcha, como outrora os três magos rumo a Belém; quedou-se,
quando prestavam juramento de fidelidade a seu próprio senhor, o costume de
glorioso, a combater cortesmente os muçulmanos, acumulando proezas arturianas.
reservar expressamente a fidelidade primordial d~vida ao suserano, o senhor rei.
ri!
No caminho de volta, seus inimigos alemães o haviam capturado, retendo-o por
longos meses e exicindo cada.vez.mais.para SO)tAI I! presa.de pri..meira.-PaP.!.
Em 1209, perto da torre recém-construída de Villeneuve-sur-Yonnc, a conselho e
II
i'
justificar o seqüestro de um cruzado, alegavam as violências e perfídias cometidas
pelo Plantageneta na Terra Santa. A informação espalhou-se: começava-se a
'do duque de Borgonha, do conde de Nevers e outros; grandes, o rei estabeleceu por
decreto que em caso de partilha de um feudo Iígio cada beneficiário não deveria prestar
i[ ! homenagem por sua porção ao chefe da casa, mas diretamente ao senhor do feudo,
perceber, com desencanto, que a expedição a Jerusalém não era para os ricos
servindo-o. Os barões sabiam que podiam tirar partido de tais disposições, e se
11;
apenas uma questão de fé, mas sobretudode prazer e lucro. Filipe tratou de
apressaram a instituí-Ias de sua parte, mas tratando de respeitá-Ias também.
espalhar ainda mais a notícia. Como se-entendera outrora com Ricardo contra
Observemos, entretanto, que se o direito feudal delineou-se com tanta
i: Henrique 11,seu pai, entendeu-se contra Ricardo com seu irmão mais moço, João,
rapidez foi sobretudo porque o feudo se tomara a maneira nobre de possuir a terra
sem terra e ávido por possuí-Ia, prometendo-lhe a Normandia, o Maine, Anjou, a
i; e organizar as sucessões, e sua concessão, uma das modalidades jurídicas que os
Aquitânia, tudo. De sua parte, apoderava-se das fortalezas ao longo do Epte, nos
I • I~II
limites do domínio, e para começar da mais perigosa, Gisors. E tratando de agir homens da lei passaram jl ríebater nos processos. Por mais que se exaltasse a
I com rapidez para se apoderar do que podia, pois Ricardo retomaria. amizade da vassalagern ese colocasse a lealdade no alto de todas as virtudes a
O lucro era precário. Mas era durável, em compensação, o benefício que a serem exibidas pelo fidalgo, o fato é que jurar sua fé tendia a não passar mais de
'"i'IIl hecatornbe dos feudais rendia ao rei da França. Ele voltara praticamente sozinho. uma formalidade cumpnda da boca para fora, já que era necessário para entrar na
Dos grandes feudatários que o haviam acompanhado, quase todos caíram antes de
Saint-Jean-d' Acre, e .eram -es mais poderosos: os três irmãos de Champagne, o ••. Dependência de um feudo em relação a outro. ou o feudo a ela submetido. O mesmo que mouvallce.
conde de F1andres, que não deixava herdeiro, e cuja sucessão era parte cobiçada (N.T.)
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1111 210 • idade média na França

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posse de um bem. Por essa razão é que já se admitia que as viúvas dotadas e as
herdeiras de feudos também deviam prestar homenagem, apesar de incapazes, por
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,,._ ••.•,,.,.'~ JY~' ! serem mulheres, de prestar o serviço das armas. Este, de fato, tomava-se secundá-
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, ! . I _,,<:)~,,~(j O (f) 0<9 ••• .r -./ I rio. É claro que o rei esperava que os homens que se haviam ajoelhado à sua frente
, O"" ~' -c lI: "" ( viessem combater a seu lado. Ele ordenava aos escreventes de sua casa que
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. -~ \ ••
\ 'i estabelecessem a lista dos cavaleiros de que dependia a defesa de tal burgo ou tal
8
! ,.'
1 I
z
castelo; as "escritas a respeito dos feudos" enumeravam cuidadosamente em seus
arquivos aqueles que, de cada região, deviam vir juntar-se às hostes, a elas
1, integrando-se durante quarenta dias e a seus próprios custos, ou então resgatar
as prestações militares a que estavam obrigados pela tenure. Mas em suas
11, expedições públicas ou privadas o rei contava mais com a dedicação de seus
amigos, de seus domésticos; e dos principados grandes ou pequenos sobre
I
os quais reforçava seu poder de senhor supremo esperava sobretudo lucros
1
(W
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- -fmsnceiros (fomecídos pelos reliefs) e vantagens políticas - ou os meios
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":; de tirar partido do estiolamento das linhagens.
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De fato, o costume agora estabelecia o senhor do feudo em posição preemi-


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tii "O'"
nente em relação à parentela do feudatário falecido, autorizando-o a exigir a guarda
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entendesse as viúvas e órfãs. Foi uma prerrogativa que Filipe explorou plenamente,
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II . de Nevers e Auxerre morre, deixando apenas uma filha; durante três anos, o rei,
guardião da herdeira, deita mão em todos os frutos da senhoria, e em seguida dá a
moça em casamento a seu primo de Courtenay;quando ela enviúva, toma-a de

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volta, entregando-a com os dois condados a Hervé de Donzy, naturalmente
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Hervé a promessa de jamais dispor dela sem consentimento real, se por algum
imprevisto esse contrato matrimonial não se conçretizasse, Em 1201, foi a vez de

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O z m.'· a Champagne cair, por acidente familiar, sob a pesada tutela do rei senhor, À morte
u de seu marido, a condessa Branca de Navarra, que só tinha uma filha, estava
grávida e a ponto de dar à luz. Filipe atropelou os fatos, aceitando receber a viúva
..J :111 em sua homenagem, mas com a condição de que ela se comprometesse a não casar
de novo nem casar sua filha sem ouvir sua opinião, e a colocar sob a guarda do rei
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li o o filho que esperava. Baseando-se nesse acordo, ao qual se ligavam os principais
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barões de Champagne, o Capeto pôs as mãos em duas fortalezas. Graças a uma
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o <{ queixa escrita que Branca mandou ao papa em 1215, sabemos que o príncipe Luís,
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filho mais velho do rei de França, querendo extrair-lhe dinheiro, mandou um belo
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com o filho; retirando-se para o quarto das senhoras, ela conseguiu que os intrusos
fossem rechaçados pelos seus. O episódio mostra como era exercido o direito de
guarda. Por força desse direito, Filipe fez o que bem entendeu com as duas filhas
Nc( o c do conde de Flandres, morto no Oriente, e com a herdeira da Bretanha,
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oQ, Finalmente, foi utilizando o direito do feudo que ele conseguiu destruir o

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u. lillI "império" plantageneta. Ao voltar do cativeiro, Ricardo já não lhe estava ligado

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I,: I . pela homenagem, tendo retirado sua confiança no senhor traidor. Durante cinco
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! anos, opôs-se a ele na mais dura das guerras. Em setembro de 1198, envia a todos Era uma verdadeira revolução interpretar dessa maneira o direito, quanto às
prerrogativas do senhor. Filipe sentia-se forte o suficiente para baixar um tal
I 'I!, os seus povos um boletim de vitória: é mais uma vez o texto escrito como
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julgamento e mandã-lo executar. Valeu-se de novo de Artur, investindo-o solene-
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instrumento de propaganda política, criando o fato para em seguida explorá-Io e
ampliar sua repercussão. Diz ele: "Esmaguei brutalmente o inimigo diante de mente da armadura e recebendo sua homenagem pela Bretanha, que com esse gesto
J II Gisors: a ponte sobre' o Epte caiu sob os pés dos cavaleiros de França em tornou-se um feudo móvel da coroa. Viria a investi-lo, quando deles se apoderasse,
debandada. O rei bebeu no rio; vinte de seus cavaleiros afogaram-se; minha lança da Aquitânia, que o novo cavaleiro herdava de sua avó, de Anjou e do Maine,que
de~bou Mateus de Montmorency, Alain de Roucy e Fouque de Guilleval; deles vinham do avô. Mas não da Normandia. Esta província seria o preço do relief. Ele
fiz p,risioneiros, junto com cem outros combatentes; envio os nomes da maioria a queria, e foi por ela que começou a conquista. Como João, queixando-se de
!i[ injustiça, recorresse ao papa, que pretendia intrometer-se, Filipe mandou respon-
deles; quanto aos que foram' capturados por Mercadier [um chefe de routiers],
!Ii ainda não os conheço. Prisioneiros a rodo, duzentos cavalos capturados, dos quais der - apoiado pelos bispos e barões - que se tratava de direito feudal, de uma

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cento e quarenta armados em ferros." Filipe Augusto não fora vencido em batalha; questão temporal que em nada dizia respeito à corte de Roma, e que lhe parecia
Fréteval não passava de um tropeço. Mas uma derrota feia, cujas conseqüências "injurioso para a dignidade real" submeter semelhante caso à arbitragem ponti-
, poderiam ter sido gravíssimas se. um outro aç!dente nãQ.houvesse invertido a fícia. Quando correu a informação de que João sem Terra matara com as próprias
situação nã'primavera seguinte: atingido por uma saraivada de balestras, Ricardo mãos seu sobrinho feitó 'prisioneiro em Roueri, o rei de' França aproveitou para
morria sem deixar filho legítimo. Havia dois pretendentes a sua sucessão: o tomar ainda mais. Ajudado pelos grandes da região abalada por esse crime,
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1'1 sobrinho, filho de seu irmão mais velho, Artur, conde da Bretanha, e João, o irmão apoderou-se de Anjou e do Maine, mas deixando esses condados - cujo herdeiro
:il mais moço, que logo se apoderou da Normandía e dá Inglaterra. Era tudo que Filipe perdera seu direito por causa do crime - nas mãos do oficial, o senescal, que
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podia desejar, o momento de agir como seu avô Luís VI em Flandres, mas com substituía o senhor ausente à frente da casa condal. Não se arriscou para além das
muito mais eficácia, pois o direito senhorial tornara-se mais claro. Ele acorreu a fronteiras da velha região franca. Por demais afastado, e sobretudo estranho, o
Mans, tomou sob sua guarda o menino Artur, investiu-o do Maine e de Anjou.. Poitou era inapropriável. Mas ele manteve consigo Tours e essa grande recompen-
levando-o consigo para Paris. Usando o menino como uma carta decisiva no jogo sa que era o ducado da Normandia. Não mais haveria um senescal nessa província.
f··.J cerrado que sustentava contra o tio, soltou-o no momento exato, tomando-lhe de Foram os bailios do rei que a administraram. Ela passou então a fazer parte do
volta os dois grandes feudos para entregá-Ios a João sem Terra em troca de um domínio real, legitimamente anexada em virtude dos costumes, ou melhor, do
enorme relief, e concordando, como garantia da paz acertada, em unir seu filho a direito do feudo.
Branca de Castela, sobrinha de seu novo fiel. O principal para ele era que o
Plantageneta retomasse a sua homenagem e que pudesse exercer sua autoridade
sobre ele por todos os meios que lhe eram oferecidos pelo costume feudal. Mas o vassalo traidor não fora destruido. Em 1213, Filipe simulou dirigir-se à
Alguns meses depois, justamente, dois príncipes doPoitou que eram vassalos travessia do mar para perseguir na Inglaterra oirei João, excomungado por ter
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de João - Hugo, sire de Lusignan, e o conde da Marche, Sucessores dos potentados ..pressionado as igrejas com demasiado zelo. Estava avançando com suas hostes
indóceis que oduque da Aquitânia tentava á muito custo manterem sua fidelidade, pela região flamenga. Foi então que seu adversário, distribuindo dinheiro farta-
no início do século XI - desafiaram seu senhor: ele tomara para si a herdeira que mente, atiçou contra ele o conde de Boulogne e o de Flandres, além do imperador
um deles destinava ao filho, o que era traição. Foram então exigir justiça ao senhor Oto, rei da Alemanha. O primeiro, Renaud de Dammartin, era um velho amigo do
deste senhor, o rei da França. Semelhante lIpclo, subindo de baixo para cima na Capeto, que o fizera cavaleiro com suas próprias mãos, mas era também um desses
escala das vassalagens, estava de' acordo com os novos hábitos. Filipe não se ambiciosos que, promovidos rapidamente nas casas por favorecimento do senhor,
eximiu de receber a queixa, convocando seu homem na corte de Paris para esqueciam a amizade para conduzir sua própria política; desde que desposara a
estabelecer a paz. João não compareceu, alegando que só poderia cumprir o
serviço de vassalagem nas marchas da Normandia. Respondeu-se que ele estava
I .herdeira de Boulogne, repudiando a prima do rei, ele retomara as pretensões de
seus antecessores condes, senhores do grande porto da Mancha, orgulhosos de
convocado oficialmente, como duque da Aquitânia, Ele persistiu. A corte baixou .descenderem de Carlos Magno e de ter Godofredo de Bulhâo entre seus parentes;
então sua sentença, em abril de 1202. Constatando que seu par recusava-se a Renaud traiu, e o amor que lhe dedicava Filipe transformou-se 'em ódio mort.al; em
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cumprir seu dever de conselheiro, os barões da França pronunciaram a "commi- 1211, a corte de França decidira uma nova commise, a da forte senhoria de Mortain,
se", confisco de todos os feudos em proveito do rei. Baseavam-se para isso em práticas que o rei concedera a Renaud ao se apoderar da Normandia; no ano seguinte,
li consuetudinárias. Acontecia que determinado senhor traído ameaçasse apossar-se Renaud fez-se homem lígio do rei da Inglaterra. Quanto ao conde de Flandres,
da terra e do castelo do infiel; mas era muito raro que se arriscasse.a aplicara sentença Ferrando de Portugal, não se conformava de ter sido obrigado a pagar um tão
E de qualquer modo tal sanção nunca havia sido aplicada a um principado. grande relief çat« retomar o grande feudo do chefe de sua mulher; a população da
região compartilhava esse rancor, e ele podia contar com sua ajuda; tratava,
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214 a idade média na frança filipe augusto 2L5
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portanto, de servir mal a seu senhor, tão mal quanto podia sem correr o risco de Filipe não queria entrar em combate: um cristão não tenta seu Deus' o dia
ser punido; quando o rei penetrou no condado, ele se passou para o campo 27 de julho de 1214 era um domingo: no dia do Senhor, um cristão não t'az,~o das
adversário. Finalmente, o imperador Oto de Brunswick dependia inteiramente de armas. Mas foi forçado a fazê-lo pela malícia dos inimigos.
João sem Terra, seu tio materno; havia quatro anos fora também excomungado por . Toda batalha é uma cerimônia quase religiosa. O rei de França desempenhou
sua política italiana, que ia de encontro aos interesses da Santa Sé, e o papa perfeitamente seu papel; dois clérigos postavam-se a seu lado, cantando incessan-
Inocêncio III fizera eleger e coroar contra ele o jovem Frederico de Hohenstaufen temente os salmos de David, no auge da refrega. No silêncio que antecedeu o início
como rei da Alemanha; Oto via, portanto, no "muí cristão" rei de França, da batalha, ele voltou-se para o Senhor, implorando sua bênção, e em seguida,
suste~táculo natural do papado, seu rival mais perigoso. Coalizão. Ela atacaria estendendo as mãos sobre o povo ajoelhado, abençoou-o. Em rigoroso respeito ao
Filip6 Augusto pelo Norte, enquanto, pelo Sul, João sem Terra empreenderia a ritual, falou-lhes então. Aqueles que à nossa frente se encontram, disse, são os
reconquista de sua herança." prepostos do Maligno; anátema sobre o imperador por ter pretendido destruir a
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Em fevereiro de 1214, João desembarcou em La RochelIe. Avançou Santa Igreja; os guerreiros que o acompanhavam, acrescenta Guilherme, o Bretão,
tomando Angers a 17 de junho, e em seguida iniciou o assédio a um castelo são soldados que venderam seu serviço por dinheiro, dinheiro resultante da
vizinho, Roche-aux-Moines. O rei de França incumbira seu filho, Luís, conde pilhagem dos pobres e dos padres - esses mesmos pobres e padres de que Filipe
de Artois, de r~tj.r--nessa--parte, cGHrtodos as cavaleiros arregimentados na era o eficiente protetor, Além disso, usavam-se no campo adversário armas cuja
parte meridional do domínio. Ele, por sua vez, mantinha-se em Flandres, com utilização é rejeitada pelo bom cavaleiro, longos facões que penetram pelas
os cavaleiros do Norte. Lá, devastava e estragava a terra de seu vassalo infiel. fissuras da armadura. Estava claro que os adversários vinham para matar. Sem fé
Mas seus barões aconselharam-nó a não enfrentar o inimigo, e ele se retirou de nem lei. Um deles dispunha-se inclusive a dar combate ao próprio irmão, renegan-
Tournai em direção a Lille, em situação difícil. A 2 de julho, o rei da do a mais estreita de todas as amizades. E muitos foram os que atacaram o homem
Inglaterra levantou o cerco e inopinadamente bateu em retirada, ao se a que estavam ligados por uma homenagem ligia. A velha condessa de Flandres,
aproximar Luís com a cavalaria franca. A 27, Filipe obteve em Bouvines cujo comércio com o demônio era bem conhecido, ajudou-os com seus sortilégios
uma .vitória impressionante, que os historiadores franceses considerariam e prometeu-Ihes a vitória. Tudo era podridão em torno do rei da Alemanha, ao
fundamental, com razão. passo que junto ao rei de França estavam os clérigos respeitosos da autoridade
.i. pontifícia, os cavaleiros leais, os bons sargentos da região de Soissons, responsá-
veis por proezas extraordinárias, e o povo valoroso das milícias comunais - ao
O acontecimento é narrado num relatório escrito imediatamente por Guilherme, o qual, simbolicamente, era confiada a guarda da auriflama,
Brctão, o capelão do rei, que durante a batalha se mantivera junto a seu senhor. Os adversários do Capeto haviam jurado dividir entre eles seus domínios,
Apresento a seguir o que devemos levarem conta desse relato, escrito naturalmente não sem antes trucidá-Ia. Com esse objetivo, o conde de Flandres avançou até
com a intenção de glorificar a -coroa. chegar a tocar no rei; detiveram-no, no último momento, o "horror" c o medo
desse crime inexpiável, atentar contra a vida de sêu senhor natural, ainda por cima
Bouvines foi uma verdadeira batalha, um desses raros combates encetados
de acordo com todos os-ritos, para. decidir definitivamente um conflito político, colocado sob a especial proteção de Deus pela unção da sagração, como os bispos,
como Tomás Becket. ,
Nas duas extremidades do terrenoescolhido para as cargas de cavalaria, alinha-
ram-se frente a frente três desses corpos que muito apropriadamente eramdeno- Filipe quase foi eliminado. Penetrando no coração de sua maisnie, inimigos
minados batalhas. No centro de cada dispositivo colocaram-se os dois reis, o da armados de croques atiraram-no aos pés do próprio cavalo. Mas seus melhores
França e o da Alemanha, cada qual ostentando os símbolos de seu poder: de um companheiros, os que formavam o núcleo da "família", protegeram-no com seus
lado, a auriflama e o estandarte das flores-de-Iis, emblemas sagrados; de outro _ corpos, colocando-o novamente na montaria, e foi nesse momento, em meio à
para além do espaço semelhante àquele que, no início da partida de xadrez, .separa poeira levantada, que a sorte mudou. Deus havia apontado o derrotado. Era o mau
rei, que porpouco não recebeu o xeque-mate. O golpe que lhe assestou um dos
as brancas das negras -, emblemas muito diferentes, profanos, arrogantes e como
que diabólicos: uma carroça, réplica do caroccio que os milaneses do ano mil mais valorosos cavaleiros da França resvalou sobre a loriga, matando o cavalo; o
imperador-saltou sobre. outra montaria e fugiu a toda velocidade; nunca mais
arrastavam em circunstâncias semelhantes, e', sobre ele, um estandarte em forma
de dragão, com a águia imperial. voltaria a ser visto. Abandonara em campo de batalha sua carroça estropiada e a
águia de asas quebradas. O rei não se dignou a apoderar-se desses símbolos do
Filipe estava chegando aos cinqüenta anos. Com essa idade, na época, o
poder universal. Como bom e submisso filho, mandou levá-l os ao anti-rei Frede-
I senhor, cansado, retirava-se do jogo militar. Pois ele não hesitou em expor seu
rico, ou seja, ao papa.
'11 corpo ao risco. Veio cercado dos homens de sua casa, unidos, todos francos,
Verdadeira carnificina entre os peões: os brabantinos pagos pelo conde de
franceses. Do outro lado, em compensação, urna série de conjurações perversas
impede que nações diversas se constituam num conjunto coerente. Boulogne foram dizimados: eram heréticos, mereciam. Muito poucos morreram
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216 a idade média na trança
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na cavalaria. Guilherme, o Bretão, menciona apenas dois, e ainda assim por Eneida, a Philippide celebra Filipe, rei dos francos, e Bouvines transforma-se na
acidente. Em compensação, foi feita grande quantidade de prisioneiros, entre eles vitória de uma nação, a nação franca. Lutando na proporção de um contra três, não
os dois condes traidores. De acordo com o costume na região, o vencedor poderia hesitando em encarar o perigo, esses guerreiros "de impetuosa coragem" vence-
matá-Ios pois haviam cometido, na intenção, o crime de regicfdio. Mas Filipe era ram porque eram valorosos. Antes que entrassem em combate, Irmão Guérin,
temente a Deus, e mostrou-se clemente, limitando-se a acorrentá-los para condu- percorrendo as frentes de batalha, lembrara-Ihes que sua raça, "vitoriosa em todos
zi-Ias a um lugar seguro: os prisioneiros valiam muitíssimo. Só um não foi os combates, sempre destruíra os inimigos". Acontece que naquele dia alguns dos
negociado: Renaud de Dammartin; pelo resto de sua vida, o rei o manteria antagonistas tinham, correndo nas veias, o mesmo sangue generoso - e por isso
trancafiado sob estrita vigilância na torre de Péronne. Todos os outros tiveram foi tão cruel o confronto. Eram eles francos, o que basta para salvá-los da desonra
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estabelecido um resgate, sendo para isso cuidadosamente contados. Um "catálogo _ inclusive Renaud de Dammartin, o traidor: "O destemor que demonstrava na
de prisioneiros" elaborado nos primeiros dias de agosto enumerou cento e dez guerra era-lhe natural; proclamava alto e bom som que ele efetivamente nascera
~ cavaleiros transportados a Paris pelas carroças das comunas, dezesseis entregues de pais francos, e muito embora seu pecado o tenha feito degenerar a teus olhos,
a barões, três a oficiais da casa' real. Os capturados, no entanto, haviam sido três ó França, exime-te de envergonhar-te dele, para que não enrubesças ... " Todos os
vezes mais numerosos; os demais foram trocados ou deixados sob guarda segura demais tiveram de dobrar-se: "os filhos da Inglaterra, para os quais os prazeres
.ao.Iongo docaminho, "- do desregramento e os dons deBaco têm mais encanto que-os presentes de Marte,
Nas encruzilhadas, todo o povo, "grandes e pequenos, homens e mulheres, o Temível" , e principalmente os teutões, todos os que falavam thiois, os alemães
velhos e jovens", reunia-se para aplaudir os soberanos vitoriosos. Os camponeses, e os f1amengos do Norte. Sua derrota provou "que eles são realmente inferiores
trazendo os atributos de sua função laboriosa de alimentação, foices e ancinhos, aos homens da França, e que não podem ser comparados a eles nos exercícios
j;i:
pois "era na época em que se colhia-o trigo", juntavam-se para ver o conde marciais". Seu "furor", seivagem e algo bestial, cedeu ante o destemor nativo
Ferrando posto em ferros na carroça, e . 'os plebeus, as mulheres velhas e crianças 'dos "filhos da França". Notável é que esta França' -não mais se restrinja à
não se pejavam de ínjuriã-lo". Sob o olhar do rei triunfante, cercado de guerreiros , Francônia de Clóvis ou Roberto, o Piedoso. Foram as forças dos "filhos da Gália"
e exibindo a força do Estado legítimo, o populacho em alegria podia por um que naquele dia o rei congregou, afirma Guilherme, o Bretão, mais adiante. A Gália
momento extravasar seus rancores contra os senhores malvados, punidos por terem dos Comentários de César: um espaço muito mais extenso que o próprio reino .
... ;. perturbado a ordem social. Nas cidades, no entanto, nada de sarcasmo nem Uma só nação, unida a seu chefe. Ardoroso como os guerreiros de seu povo,
deboche, apenas comemorações muito bem ordenadas. Ao som dos sinos, nas ruas o rei da Philippide não é mais o homem envelhecido que evitava o combate,
cobertas de ramos e flores dos campos, o clero recebia o cortejo com cantos de prudente. Contrariando a opinião de seus barões, ele quer a batalha, mal pode
louvor, e a burguesia dançava. A festa chegou ao auge na chegada a Paris, a cidade esperar o momento de enfrentar sozinho o imperador, e não se conforma de ter
fechada aonde o rei vinha descansar de suas empreitadas. Uma festa que durou, sido obrigado a desistir, no tumulto, de aniquilar são Miguel, este Satã, com sua
) segundo Guilherme, o Bretão, sete dias e sete noites. Entendamos bem o que ele lança. Pois empunhando a auriflama, "absolutamente semelhante às bandeiras que
quer dizer: a alegria transportava-se ao infinito, fora do tempo, exatamente como se costuma brandir nas procissões da Igreja", eli: partira, vingador da cristan-
permitia a iluminação qne,JiissjpalÍd!:La~~""',torna\fa a noite "mo luminosa dade;nleira~-para purgá-Ia da pestilência herética propagada-por Oto de Bruns-
; quanto o dia". E, de fato, o vencedotfazia sua entrada na cidade capital como na wick. Em Roma, Oto havia despojado os peregrinos: era culpa desse malvado
(li.
Jerusalém do último dia. Deus acabava de abençoá-Io, de demonstrar seu direito, se o povo de Deus não conseguiu reunir-se para libertar mais uma vez o nimulo
,de restabelecer a paz na Terra, convidando as duas partes da ecclesia; da sociedade do Cristo. '
cristã, o clero e o povo, a aclamá-Ia ela se regozijar. A "universidade dos homens No discurso que Guilherme, o Bretão, põe em sua boca momentos antes da
das escolas", de um lado, e de outro os "cidadãos" "manifestaram a grande batalha, o imperador exorta "a matar ou deportar os clérigos e monges que Filipe
alegria de seus corações ... com banquetes, canções e danças". Dilapidando des- tanto exalta e defende com todo o ardor de, seu corpo". É necessário que sejam
preocupadamente as riquezas, como de hábito nos extravasamentos eufóricos das menos numerosos, reduzidos ao mínimo indispensável, e que "os cavaleiros, os
cerimônias nupciais. Após aquela vitória, celebravam-se efetivamente, em Paris, que cuidam dos negócios públicos, os que na guerra ou na paz propiciam repouso
as núpcias do povo com a realeza. ao povo e ao' clero, possuam a terra e recebam generosos dizimos". Pois não se
deve esquecer que ele promulgara uma lei determinando "que as igrejas só
possuiriam os pequenos dízirnos e o rendimento das oblaçõcs, que a ele entrega-
riam as senhorias, para que garantisse a subsistência do povo e o pagamento dos
Guilherme, o Bretão, valeu-se do material dessa reportagem inicial para compor
cavaleiros". E acrescentava: •'Como a Igreja será mais útil e eficiente quando eu
um poema latino de quase dez mil versos, extraordinário monumento à glória do
assim houver restabelecido a justiça! Que o bom cavaleiro possua os campos bem
Estado monárquico. Levou tanto tempo que não pôde ofcrecê-lo completo a seu
cultivados, as terras estuantes de delícias e riquezas, em vez dessa raça de
senhor. Ofereceu-o, em 1224, ao novo rei, Luís VIII. Com base no modelo da
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218 a idade média na frança filipc augusto 219

preguiçosos, que só existe para devorar os grãos e vive na ociosidade, ressequin- Apoiando-se nas três elites - o clero, a nobreza e o terceiro estado -, o rei mui
do-se à sombra, em lugar desses inúteis." Contra os príncipes que não gostam dos cristão instalou-se durante séculos acima da nação reunida, cuidando dela como
padres, contra os predicadores desviados que fornecem pretextos a sua cobiça e um pai e esperando devoção filial de cada um de seus súditos. Depois de Bouvines,
excitam o populacho, contra todos os fermentos da subversão, o rei de França "podia-se perguntar se o rei amava seu povo mais que o povo amava seu rei.
"I"!
li ii apresentava-se como defensor da ordem estabelecida, defensor da Igreja de sólidas Estabelecera-se entre os dois, a esse respeito, uma espécie de emulação amorosa.
bases temporais sobre a qual repousa a monarquia sagrada. A vitória que Deus lhe Não se podia saber qual dos dois era mais caro ao outro, em qual dos dois era o
I concede selou a aliança entre o trono e o altar. amor mais ardoroso, de tal modo era tema a afeição que os unia um ao outro por
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A Philippide não se detém na descrição da passagem dos vencedores pelos vínculos perfeitamente puros".
I ! campos. Tampouco refere-se aos ceifeiros que insultam os príncipes feitos prisio-
neiros. Tudo se concentra no triunfo, comemorado na cidade capital como eram
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celebrados outrora os dos imperadores - Guilherme evoca especialmente Vespa-
siano, Tito, para que não se esqueça que o Capeto foi, como eles, o terror do povo
Podemos aqui encerrar um dos períodos da lentíssima história das estruturas com
um acontecimento específico, uma data precisa, para variar. Na noite de 27 de
judaico. Mas o triunfo do rei dos francos é de bem outro alcance. Pois os francos julho de 1~14,.chegou a seu termo uma evolução que se manifestava há séculos.
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, levam a mélhor sobre os romanos;' I1bertaram a Gàlia de seu jugo, e foi da Grécia A batalha resolvera tudo. "Jamais desde então houve esse que ousasse entrar em
que o alto saber transferiu-se para as escolas parisienses. Mais que um novo César, guerra com o rei Filipe, mas ele viveu desde então em grande paz, e toda a terra
Filipe é um novo Alexandre, herói cujas façanhas vinham de ser contadas por viveu em grande paz porumlongo momento." São anotações de um historiador
) Gautier de Châtillon, tabelião do arcebispo de Reims. De Paris aos confins do anônimo a serviço dos sires de Béthune. Ele enxergava longe. Depois de Bouvines,
reino, enorme corpo ..que tem por coração a corte do soberano, dissemina-se a o rei da França pôde sentar-se tranqüilamente em seu trono e não mais mexer-se,
alegria da vitória "pelas cidades, aldeias e burgos", núcleos da circulação mone- como convinha a alguém de sua idade. Se fosse preciso cavalgar, seu filho o faria
tária que já agora, dominando o mundo dos castelos e povoados, constituem os em seu lugar. Dócil? A pergunta procede. Naquela época, as relações entre
mecanismos pelos quais se dissemina um poder político centralizado. "Uma única senhores que demoravam a morrer e seus herdeiros eram em geral muito tensas.
vitória gera, assim, mil triunfos." Ela congrega a grande nação na comunhão do Muitos depoimentos levaram-nos a concluir que o príncipe Luís, senhor do Artois
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Estado e sob seu poder . herdado da mãe, conduzia sua própria política, e sua mulher, Branca de Castela,
Unanimidade nessa festa "oferecida a seu Filipe" pela França agradecida. inquieta, autoritária, certamente atiçava tais ambições de autonomia. O fato de que
O sangue derramado no campo de Bouvines purificou todos os "filhos da Gália", Filipe não tenha mandado sagrar seu filho mais velho quando ainda vivia, pela
como a água de um novo batismo, conduzindo-os de volta à inocência dos primeira vez na linhagem capetíngia, nada prova. Seu pai só se decidira a compar-
primeiros dias da Criação. À inocência e à igualdade. A cerimônia triunfal abole tilhar com ele a dignidade real no último momento, quando já começava a sentir-se
1:11 por certo tempo, entre eles, toda distinção "de condição, de fortuna, de profissão". incapaz. Tarnpouco devemos concluir que após a "itória ele se tenha sentido mais
O cavaleiro, o burguês e o próprio camponês parecem igualmente "radiantes", seguro que seus antecessores quanto ao futuro da dinastia. Em todas as linhagens,
banhados na luz que" os homens da igreja recebem diretamente de Deus, e que é a associação do herdeiro era circunstancial. E talvez Filipe Augusto considerasse
necessariamente refletida em direção ao p~vo leigo pelo corpo do rei, revestido melhor não coroar um sucessor designado que se engajava - sem que ele mesmo
graças a essa vitória de um esplendor suplementar. se engajasse, - em aventuras incertas como a conquista da Inglaterra em 1216,
~II
Homens de oração, homens de armas, homens das cidades, homens do apesar da excomunhâo lançada contra ele, e mais tarde, com a bênção do papa, na
) campo: a Philippide distingue quatro·categoriassociais. Mas Guilherme, o Bretão, cruzada contra os albigenses. '
pretendendo que seu poema revele as estruturas do Estado, cuida para que a última Pelo menos cuidara de inculcar no rapaz a moral que o habilitaria a exercer
dessas categorias seja situada em seu devido lugar, inferior e exterior. O camponês o ofício real. Para Luís, um escrevente parisicnse, Gilles, compôs um retrato do
é o único que se mostra estupefato ante a glória que sobre ele desce. Tem o príncipe que lhe foi entregue em 1200, ao completar treze anos. Nessa obra, o
atrevimento de "julgar-se elevado à altura dos maiores reis". Pensando tolamente Karolinus, é Carlos Magno que mostra ao adolescente o exemplo das quatro
que a vestimenta festiva que envcrga por algumas horas vai tirá-Io da rusticidade, virtudes cardeais, a força, a justiça, a prudência e a temperança. Filipe permitiu
da incultura, da submissão, do trabalho, que é o que lhe cabe, imaginando que' 'por que se dissesse que seria bom que seu sucessor fosse menos arrebatado que ele,
usar uma outra roupa seu aspecto vai-se tornar o de um outro", ele esquece que evitando ter duas mulheres ao mesmo tempo. Numa página do manuscrito, um
os rústicos não passam dos pés do Estado, e que só são admitidos permanentemente quadro genealógico situa os "reis modernos da França". São os Capetos, ornados
na alegria da corte real os três outros estados, as três ordens. De fato, o poder da flor-de-lis, e seus nomes estão escritos com tinta vermelha a partir de Roberto,
.J "mui piedoso e mui letrado". Notemos que nada se diz da ascendência carolíngia
monárquico apossou-se, após Bouvines, do tema sobre o qual os príncipes rivais
haviam construido outrora a ideologia cavaleiresca, precisamente para enfrentá-Io. do príncipe Luís. Não parecia necessário insistir no fato de que sua mãe e sua avó

)
-,
11,r
I filipe augusto 221
220 a idade média na frança I

haviam enriquecido a linhagem com um suplemento do sangue de Carlos Magno.


I francesa, fora naturalmente pela força das armas, por sua habilidade em jogar com
Pois nem o autor do Karolinus nem ninguém mais duvidava que ele fosse seu o direito feudal, mas antes de mais nada por ter cumprido fielmente, como se afirma
herdeiro legítimo, como seu ancestral Roberto, como seu pai. Já em 1204, uma na crônica, seus deveres de rei cristianíssimo.
bula do papa Inocêncio proclamava: "Todos sabem que o rei da França descende Sob o reinado de Filipe Augusto, as catedrais da França passavam definiti-
da raça de Carlos Magno." E dois anos antes, sob o controle do Irmão Guérin, vamente aser o emblema maior do poder real, graças aos novos sinais dispostos
Estêvão de Gallardon inscrevera a profecia de são Valério num dos registros da em suas fachadas. Desenvolvem-se então dois temas, ambos surgidos da meditação

!
I
chancelaria real. Não era preciso temer qualquer contestação. O filho de Filipe
Augusto envergaria a coroa e tomaria em mãos todo o domínio, ampliado por seu
dos doutores sobre a encarnação de Deus. Meio século antes, preocupado em
expressar a humanidade do Cristo, Suger fora o primeiro a colocar no portal da
pai para estupefação geral. A todas as boas sortes que Filipe Augusto tivera, basflica de Saint-Denis estátuas figurando os ancestrais de Jesus. Eram reis, como
somava-se mais esta: não tivera um irmão com quem fosse 'obrigado a partilhar. afirma o Evangelho. Reis dos judeus. Mas o fato é que diante desses personagens
Podia legar tudo a seu filho primogénito. O costume certamente o forçaria a deixar coroa dós ninguém deixava de pensar antes de mais nada na instituição real. Esta
um dos grandes feudos conquistados, talvez a Normandia, ao segundo, Filipe representação. foi ampliada pelos homens que conceberam a nova fachada de
Hurepel, se não tivesse este nascido de uma esposa secundária. Um filho legitima- Notre-Dame de Paris no início do século XIII. Tiveram a idéia de ilustrar a teoria
do,é verdade, por graça do papa, mas ainda assim-semibastardo aos olhos de todos, 'dós reis de Judá numa galeria acima dos três pórticos, na base das torres, As
podendo reivindicar apenas migalhas da herança paterna. ' estátuas foram esculpidas muito depois de 1223, quando afinal foi concretizado o
Em setembro de 1222, Filipe sentiu-se mal. Para salvação de sua alma, tratou projeto'. Suas .cabeças foram encontradas recentemente, pois em 1793 também
de despojar-se de suas riquezas. Deu aos cavaleiros que combatiam na Terra Santa haviam .sido decapitadas pelos revolucionários. Até mesmo esse gesto atesta a
e aos pobres de Paris os dinheiros de sua caixa, a Saint-Denís, uma cruz, um força do símbolo: os vândalos queriam acabar com a monarquia, e investiram
relicário e as jóias de seu tesouro. Algumas tigelas de prata, três dezenas de taças, ' contra essas imagens que durante séculos, em pleno coração da cidade real, haviam
um saco de moedas de ouro bizantinas, pedras preciosas, mas muito poucas, celebrado os reis, os reis vivos, os reis de França, no frontispício de um edifício
recebidas de presente dos parentes, de sua mãe, dos prelados, de Gautier, o que por suas pedras maciças, seu aspecto de fortaleza, era por si só uma manifes-
Camareiro: o inventário feito por Guérin em 1206 evidencia que a corte capetíngia tação de poderio. As estátuas designavam este poderio como sendo o do monarca.
ainda recusava o fausto. O rei viveu até o verão seguinte. Estava em Pacy-sur-Eure
quando percebeu que ia morrer. Quis então voltar a Paris, onde se realizava um
concílio preparatório de nova cruzada. Mas morreu a caminho, em Mantes. Nas A segunda imagem é mais sutil, e também mais rica, resumindo os frutos de toda
Grandes chroniques de France, lemos seu elogio fúnebre, tal qual ele teria uma reflexão sobre o poder. É a imagem da Coroação da Virgem. Esculpida pela
desejado: "Ele aumentou e multiplicou maravilhosamente o reino de França [o primeira vez em 1190, no portal da catedral de Senlis, ela reapareceu cerca de trinta
. voca bulário ainda confunde domínio e reino]; apoiou e guardou maravi lhosamente anos depois em Notre-Dame de Paris, no tímpanq do portal norte da fachada. Para
a senhoria e o direito e a nobreza da coroa de França ... Foi sempre o escudo da o do sul, acabavam de reutilizar um relevo que datava de uns cinqüenta anos antes.
Santa Igreja contra toda adversidade. -Defendeu c guardou a igreja de Saint-Denis também ele mostra a Virgem, sentada com o Menino, para o qual seu corpo serve
de França sobre todas as outras como sua pró~ria câmara, em especial privilégio como uma espécie de trono. De ambos os lados dessa figura central, dois persona-
de amor, e muitas vezes mostrou por suas obras a grande afeição que sempre teve gens dão ao conjunto seu significado político: o rei e o bispo, associados num
pelos mártires e sua igreja. Foi zeloso e amoroso da fé cristã desde os primeiros mesmo plano. Mas não iguais. Luís VII, ajoelhado, encontra-se à esquerda. À
..J dias de sua juventude; tomou o sinal-da-cruz no qual Nosso Senhor foi cruci- direita, do lado melhor, o bispo, de pé, o domina. O que assim vemos encenado
ficado e o conduziu em seus ombros para libertar o sepulcro e em seguida face ao povo é o sucesso dos reformadores eclesiásticos que haviam garantido a
suportou dificuldades e trabalho por Nosso Senhor; além-mar, partiu à frente superioridade do espiritual sobre o temporal, que se haviam empenhado - e foi
de grandes hostes contra os inimigos da cruz e trabalhou com lealdade e ! bem este o caso durante o reinado de Luís VII- em subordinar a realeza à Igreja.
integridade até que a cidade de Acre fosse tomada ... Foi generoso com as
esmolas em diversos lugares."
I As figuras do portal norte proclamam algo muito diferente. A Virgem não
mais se encontra no centro. Sentada no mesmo banco, ela está à direita do Cristo.
O corpo do falecido, revestido da dalmática, como no dia de sua sagração, Ligeiramente acima dela, coroado, ele se prepara para depositar-lhe na fronte uma
coberto de um tecido de ouro, coroado, o cetro na mão, foi conduzido através de coroa. Mais uma vez, o signo principal é esse emblema, essa imagem da realeza
Paris em direção à necrópole real. Lá, foi recebido por uma multidão de bispos e de que os Cape to se ornavam nas audiências solenes. É verdade que a coroa é aqui
arcebispos. O filho de Luís VII voltava ao coração da instituição eclesiástica, para atribuída a Jesus, a Maria, fora do tempo, após a morte e a Assunção da Virgem
- ali instalar-se pela eternidade. Milagres haviam brotado no percurso. Também ele ao Paraíso. Mas o fato de que se representasse o Cristo como um rei exaltava a
era considerado santo. Seja como for, se firmara definitivamente a monarquia dignidade real, tomando-a divina e realçando o prestígio daquele que passava pelo
222 a idade média na frança

representante de Deus na terra. Observe-se ainda que o que vemos é um homem


já coroado, e uma mulher que o vai ser por esse homem. Esta cena significa a \
predominância do masculino sobre o feminino, e que todo poder de mulher deriva
do poder exercido por um. homem, sendo dele uma delegação subalterna. Ora,
quando essa imagem foi esculpida, os eruditos pensavam e os pregadores diziam I

ao povo de fiéis que nesse casal a Virgem Maria representa a Igreja. No pórtico
da catedral, portanto, a imagem exaltava o poder da Igreja, também ela coroada.
xn
Mas deixava claro que esse poder é subordinado. O poder superior pertence àquele
que decide, que faz o gesto, que age. Ao Cristo. Ao Cristo rei. Ao rei, seu delegado
neste mundo.
. A difusão dessa idéia no raiar. do século XlII, na região real e nas proximi-
o Sul
dades da universidade onde se formavam os artesãos da ideologia monárquica,
evidencia o retomo às estruturas carolíngias. Aqui embaixo, o rei é o senhor do
poder supremo, que recebe de Cristo. Sob ele e~.ontra-se a sociedade das três
.J. ordens. Elé domina, ein particular, a mais alta delas, a ordem eclesiástica. Os Na realidade, nem todos os "filhos da Gália" obedeciam a Filipe Augusto. É
bispos são os delegados de seu poder; ele os investe deste poder para que verdade que as anexações que promoveu haviam propiciado a união, em torno de
ornamentem sua catedral. Mas em seu nome. E essas figuras também recordam Paris e da coroa, da antiga região dos francos, do ducado dos robertianos, e por
que é ele a partir de agora que dirige a,obra, como é o defensor da verdadeira fé suas prerrogativas de senhor o rei também controlava com pulso firme a Cham-
quando toma a frente de seus cavaleiros para uma cruzada contra os descrentes ou pagne. Da região da Borgonha.- por sinal há muito amputada de Sens, do
11 os heréticos. Auxerrois e do Nivernais - ele não pensava em se apoderar: o duque era seu
I primo, vassalo fidelíssimo que combatera como um leão em Bouvines. Igualmente
haviam combatido sob a auriflama guerreiros provenientes das regiões do Império,
,I
o conde de Bar, "homem jovem mas velho na coragem", vários cavaleiros
II lorenos, entre osquais Gérard La Truie, que lutou na batalha central lado a lado
com Filipe. No Sul da Borgonha, o poder capetíngio aumentava passo a passo,
I insensivelmente empurrando para leste a velha fronteira do reino. 'Já nos combates
em Auvergne o sire de Beaujeu havia acompanhado Luís VI. Luís VII estendera
.J 11111,1 sua proteção aos bispados das montanhas, implantando às margens do Saona os
r postos avançados do domínio real. Ora, as correntes-de circulação intensificam-se
ect"JS-idcravelmen-te-nessas paragens desde que o:;--marinheiros-de··Gênova e Pisa
~
libertaram a Tirreniana dos sarracenos. Os negócios comerciais prosperavam em
J "

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Saint-GiIles, Montpellier, Arles e logo também em Marselha. Já prosperavam
,I igualmente em Lyon. Quando Filipe e Ricardo tomaram a cruz, o Ródano e o mar
~ haviam-se tornado o melhor caminho para a Terra Santa.
II A sudoeste, em compensação, a expansão da monarquia continuava bloquea-
!I da pelo poder que ainda restava ao Plantageneta, e sobretudo pela impermeabili-
dade da velha região dos godos. Não se pode dizer que a batalha de Bouvines tenha'
I
repercutido para além do Loire. Filipe não tomara quase nada do Poitou. E aliás
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não quisera, lúcido, aventurar-se tão longe, desgastar suas forças para exigir
'I
,'I fidelidades incertas de guerreiros que desprezava. Nunca lhe passou pela cabeça
a idéia de anexar a Aquitãnia: seu pai não pudera conservá-Ia, e tratara de livrar-se
dela; o próprio Henrique 11 perdera seu tempo ali; lá também é que Ricardo
Coração de Leão perdera a vida. Solicitado a partir rumo ao grande Sul para arrasar
a heresia, dever que lhe era imposto pela promessa da sagração, o rei fizera ouvidos
'li moucos. Sua única iniciativa foi autorizar o príncipe Luís a tentar a aventura nessas
223
')

224 a idade média na f rança


o sul 225

terras distantes, gesto pelo qualé felicitado nas Grandes chroniques de France:
"Depois de ver-se algo enfraquecido e envelhecido, ele não poupou seu filho, produziam grande cópia de rapazes cujos únicos recursos eram sua robustez e sua
mandando-o por duas vezes ao Albigeois, à frente de grandes hostes, para destruir capacidade de lutar; quase sempre nascidos em casas cavaleirescas, eles eram
a bougrerle' dos homens da região." Filipe não podia imaginar que essas expedi- forçados pela bastardia e a pobreza dos patrimônios retalhados em divisões
ções contra os bougres, os cátaros, prenunciavam a extensão de seu domínio até sucessórias a saírem em busca da melhor sorte; só podiam imaginar encontrá-Ia
as margens mediterrâneas. através das armas, e formavam companhias para oferecer seus serviços a quem
A propósito da Gália meridional, é bom acabar de vez com três idéias ainda quisesse contratá-los. Mas se os príncipes logo se aventuraram a contratar, para
correntes mas falsas: essas províncias não foram objeto de um empreendimento atingir seus objetivos, esses grupos de "aragoneses", "riavarreses" ou "bascos"
deliberado de conquista colonial da parte do rei dos francos; não tinham uma - como as populações denominavam tais guerreiros selvagens que as aterroriza-
) unidade, nem política nem cultural; a religião cátara contaminava na época toda a vam, e cuja língua não compreendiam - certamente era também porque há muito
.J cristandade, não se encontrando nesse país autóctone. tempo a moeda circulava mais generosamente nas províncias meridionais. Remeto
Ninguém tinha dúvida de que Deus incumbia os soberanos sagrados em aos aide-memoire que já comentei, exibidos antes do meado do século XI, no
Reims de manter a todo custo a paze a verdadeira féaté a fronteira de outros reinos, Poitou e na Narbonnaise, nas assembléias nas quais as disputas principescas eram
os de Navarra e Aragão. No início do século XIV, os pastores heréticos de arbitradas, e que dão conta de milhares de soldos. O dinheiro era ali envolvido em
.J opéràçõesde grande envergadura, tanto quanto na Inglaterra, outra região em que
- Montaillou sabiam muito bem por onde passiva esse limite, e consideravam-se
) súditos do rei das flores-de-lis que armava a Inquisição contra eles. Aquém desses se manifestou precocemente o fenômeno do mercenarismo. No século XII, os
limites, que ninguém pensava em alterar, o Midi, o Sul, dividia-se em múltiplas especialistas dessas transações financeiras, originários das mais diversas proce-
..J dências, eram chamados de cahorsins (originários de Cahors). Escolhera-se o
regiões, cada uma consciente de sua identidade; estava dividido entre nações que
.J não falavam o mesmo dialeto. Déssa diversidade lingüística saíra, é claro, a nome de uma cidade em pleno florescimento. Pode-se explicar a proliferação dos
linguagem dos poemas admiráveis e que eram devidamente admirados, mas não routiers no Sul do reino pela proximidade de montanhas pobres e cidades onde se
.J só em Orange ou Toulouse: os trovadores eram igualmente aplaudidos em Caen, acumulava o dinheiro .
como logo seriam em Florença e Nápoles. Não é menos certo que essa fala de corte Eis entâo o segundo fator: a solidez das estruturas urbanas. Aqui, o poder
) contribuiu, quando a classe dominante teve de fazer frente aos ataques e à rapina político enraizava-se nas instituições municipais. Baseava-se nas velhas cidades
dos guerreiros do Norte, para cimentar a união para a resistência, alimentando mais de origem romana, mas também nas aglomerações secundárias que os textos locais
J denominam sistema de castrum, não designando com isso meras torres, mas densas
tarde a nostalgia de uma liberdade perdida. Despertado pela agressão, esse senti-
-.J mento nacional ocupa um lugar próprio entre os fatores entrelaçados da evolução reuniões de casas de pedra, de grande valor estratégico. Como nas sucessões os
política. direitos senhoriais eram partilhados equilibradamente entre todos os rapazes e
.J
. Como no Norte, essa evolução conduzira durante o século XII ao fortaleci- moças, e como aos nobres não repugnava a prática de empréstimo e do negócio, o
.J mento dos amplos poderes territoriais. Ele já não pode ser acompanhado com tanta poder pertencia, nos "castels" como nas cidades, a um grupo numeroso de
. facilidade, por falta de boas.crênicas: o.l.ugaLda-hi"tória na prorluçãgJiterária-em associados quê oossuíam em comum a senhoria; dominando as casas menos ricas,
restrito nessas regiões de alta cultura, principalmente jurídica e poética. Verifica- mas deliberando com os chefes sobre esses oustaus, esses co-senhores tomavam
.J se, no entanto, que o poder principesco fortalecia-se.Não por se escorar no sistema juntos a decisão de delegar a gestâo dos negócios a magistrados. Assim é que a
feudal ao estilo franco: segundo as tradições locais, que os Plantagenctas abalaram . autoridade era repartida entre cavaleiros e "cidadãos". Os primeiros tinham a
mas não conseguiram eliminar, ;;as relações entre os homens e entre as terras primazia, mas não esmagavam os segundos com sua arrogância, como na região
repousavam em contratos acertados livremente, e feudo era o nome dado ao lucro franca: os burgueses combatiam com eles para defender o interesse coletivo.
extraído de um bem qualquer por todo aquele, fosse nobre ou não, que dele Igualmente familiarizados com a escrita, igualmente hábeis no debate, cavaleiros
.J houvesse recebido o uso-temporário através desses acordos. Duas circunstâncias e cidadãos compartilhavam a mesma cultura baseada na cortezia, uma cultura profana
orientavam de forma original o desenvolvimento do jogo político nessa parte da e mais vigorosa que a eclesiástica. Disso dão testemunho os poemas políticos, os
..J Gália. Era ela primeiramente - e o seria até o fim da Idade Média - a terra de sirventes,os tensósdeixados pelos trovadores. Os nobres e os outros tinham consciên-
.J eleição dos bandos de routiers, os soldados que percorriam desordenadamente os cia de formar um corpo ordenado que dominava a desordem da região da planície .
caminhos. A especial virulência dos grupos de mercenários nessas paragens Fosse em Toulouse ou no menor dos castelos, eles esforçavam-se juntos por

-)-
) II!Irr !
decorria em primeiro lugar do fato de que suas terras montanhosas e ingratas

Bougres: nome dado a certos heréticos. (N. T.)


sujeitar o campo circundante ao poder urbano, pelas armas e pelo dinheiro.
É claro que as cidades levavam a melhor sobre as castra, por sua riqueza e
pela superioridade militar que deviam a suas muralhas, às ruínas antigas transfor-
madas em fortalezas, e também porque nelas residia um bispo, responsável pela
f
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,
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.»,
o sul 227
226 a idade média na fraaça

paz de Deus em toda a extensão da dioeese. Esse velho sistema de segurança De fato, nessa região onde se haviam realizado as primeiras assembléias da
coleliva:se havia apedeiçoado no decorrer do Século XII no Vivarais, em Gévau- paz de Deus, as relações de poder haviam por um lado sofrido mais profunda
dan, Veby e Rouergue .. Para apoiar a obra de pacificação, os bispos reuniam modificação em virtude da reforma gregoriana. A depuração da alta Igreja rompera
. periodicamente a população, cobrando dos barões e guerreiros a promessa de não a unidade da sociedade dominante, brutalmente subtraindo as sés episcopais ao
pilhar, exigindo preces do clero e moeda dos mercadores. Deliberações, discus- controle das grandes linhagens. Por outro lado, o papa não era apenas um hóspede,
() como na região capetingia: ele estava em casa. O condado de Mauguio era feudo
sões" Pl'(1)C'eSSOS mstruídospor legistas. E também coletas, reunindo o dinheiro da
(.J ""pup.de" pat'8 a paz da geIIk: comum. Em caso de alerta, os cavaleiros e todos os da Santa Sé. Em 1204, o papa Inocêncio III conseguiu que Pedro de Aragão fosse
a Roma, que oferecesse seu reino no altar de são Pedro e o tomasse de volta
""homcJilS da terra", sob os estandartes das confrarias, lançavam-se unânimes
contra 'os agentes perturbadores, e sobretudo os routiers. Os príncipes deviam
l' como tenure feudal do sumo pontífice, depois de prestar-lhe homenagem.
( contar comessas I'Grtes organizações citadinas, convocar seus representantes às I· Sendo também uma monarquia, a Igreja romana igualmente se fortalecia, e por
meios equivalentes, que, no entanto, usava com maior constância e enxergando
assembléias qm presidiam, asscelã-Ios a suas decisões. A reconstrução do Estado
apoíea-se aooessariamente nas cidades .. mais longe. Sem rei durante muito tempo, o Sul da Gália servia de eficiente
trampolim para sua expansão. Ao contrário do que acontecia no Norte, portan-
A OlmOOl1'8nCiade mês !'Õ1os de desenvolv\mento político complicava esse
to, o espiritual e o temporal não agiam aqui em estreita conivência, Disputavam
'processo. Um deles encontrava-se no Poitou, demasiado ao Norte. Conduzida
o poder um com o outro. Essas inclinações conflitivas favoreciam atitudes
() pelos Pil'wtagenetas à maneir.a franca e com poderosos recursos, a empreitada de
religiosas globalmente condenadas pela autoridade eclesiástica, que as consi-
união ia deencQDtro, parJl () Leste, às insubordinações dos montanheses; teve mais
(.J êxito nas pr~s madumas, embota tropeçando, para além de Bordeaux, no derava heréticas.
red\Gl);gascm; ffirJl'C8'SSGuredOlldamentediante de Toulouse. Antiga capital dos reis
() godos, "JJ01IIikmse elJalO:seJg<lillRdo
pólo, o que ocupava a posição central. Seus condes,
{.J também de origem f.rJanea,aspiravam li soberania sobre as dioceses de Périgueux, Desde o inicio do século XII, enquanto, paralelamente 80 progresso geral, as
Cahcrs, A,'gen, Aabi" R<OIlla, <e.ainda sobre a Narbonnaise, as cidades fortes de consciências individuais libertavam-se pouco a pouco do conformismo e da
(.J Septiliwmia" 'SObre Sa;1nl~Gines, encruzilhada dos negociantes do mar; para além obediência cega, enquanto os dou tos meditavam mais atentamente as palavras do
do Róc!bm:Q, riles ha'V~am retomado uma parte dos direitos dos marqueses da Novo Testamento e os leigos aproximavam-se dos textos sagrados, os desvios
{j"
Provença, t{)) ipresUgioda dinastia derivava da lembrança de Raimundo,o ancestral heréticos brotavam por toda parte e de formas as mais diversas. Não podemos
(J incuIl'iboo p-em papa de chefiar a primeira cruzada. É verdade que no tempo de distingui-Ias bem umas das outras porque só as conhecemos através daqueles que
FilipeA~g,ustG1:l):(l:c.mmeàe Toulouse, da parentela do rei de França, reconhecia-se as combateram. O ardor do combate tornava-os cegos, impedindo-os de separar
(J comci>8~1W'41Ssa\\ID. ..Mas:a·enorme distância o autorizava - e nisso era único entre com lucidez o joio do trigo. E por sua vez os adeptos das seitas perseguidas,
os prl1!rcipes feudais - a não comparecer à sagração, às audiências solenes, a submet.idos a questionamento, calavam-se ou davam respostas evasivas. Sabe-se
{...J
sequer :fingir_ que .servia. Mesmo nessa independência, entretanto, ele tinha de pelo menos que em sua maioria os homens e mulheres obrigados a se esconderem
( enfrentar 'úma ilorceita lentativã hêgemõniêa, procedente da pe-rit:eria, como a para. escapar da repressão, muitos dos quais seriam capturados e queimados,
primeira. ·.eescorada num reino. Era o reino de Aragão. O rei Pedro 11era conde aspiravam a um cristianismo livre dos rituais e da ganga carnal que mantém
( prisioneiro o espírito. Reapareciam exigências cuja força se havia manifestado de
de Barcelona. Seu irmão controlava o condado de Provença, onde se procedia a
f...J uma vi,g(jJJtf)S8 'retomada do controle.do poder segundo o modelocatalão, ou seja, uma hora para outra na região franca, logo depois do ano mil: a recusa da
explorando ao mesmo tempo o direito feudal e a lei romana. Ele próprio posava intermediaçâo dos padres e das pompas litúrgicas, a convicção de que o homem
( de paladino da cruz na península Ibérica, combatendo os mouros ao lado do rei de não tem o direito de invocar seu Criador como testemunha através do juramen-
Castela e logoobtendo sobre eles, em 1212, em Las Navasde Tolosa, uma vitória to, de que a sexualidade não pode ser abençoada, a repugnância a imaginar
(
não menos brilhante nem decisiva que a de Bouviries. Desde então, espraiava sua Deus encarnado num corpode sangue. Tais exigências pouco diferiam das que
{.J influência para além dos Pireneus. O visconde de Béam, os condes de Bigorre, eram feitas pelos reformadores da Igreja. O próprio sucesso da reforma as havia
Foix e Comminges, assim como Trencavel, visconde de Béziers e Carcassonne, reavivado, portanto. Na vanguarda do movimento, alguns franco-atiradores
prestavam-lhe 'homenagem. Em 1204, desposou a filha do sire de Montpellier, que indóceis voltaram a formulá-Ias no início do século XII: foi o caso do monge
era bígamo, como o rei da França, e o papa, para agradar a Pedro de Aragão, fez Henrique de Lausanne ou de Pedro de Bruys, que pregava através da Provença
de sua mulher - recusando-se a legitimar os irmãos dela - a herdeira dessa e da Septimania queimando os crucifixos.
(.J fortíssima .senhoria. Descobrimos nesse ponto um quarto parceiro no grande jogo Mas a maioria dos que sonhavam com uma Igreja melhor não se aventurava
político; e -descobrimos que, exatamente como no jogo do Norte da Gália, o tão longe. O que os movia, sobretudo, era o horror ao dinheiro. Fossem clérigos
I.J religioso misturava-se ao profano. Mas de maneira diferente. ou leigos, despojavam-se das riquezas, o que levava a denunciar a dos prelados,

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'!1·.·'il~~'' ; osul .229
228 a idade média na franca

Lyon, onde renasciam os negócios, foram os principais focos da heresia vaudoise.


assim como o poder excessivo dos escribas, fariseus e publicanos. Era essa a É possível também que a alta burguesia tenha dado ouvidos aos cátaros, pois eles
atitude dos discípulos de Pedro Valdês, oevaudois. A austeridade da vida que a tranqüilizavam. Os pregadores consideravam a moeda tão desprezível que não
levavam ressaltava ainda mais os erros de todos os homens da Igreja que encara- recusavam os dinheiros que lhes eram oferecidos, chegando mesmo a emprestá-
vam sua função antes de tudo como uma profissão maquinalmente executada - e los. Seja como for, convenciam aqueles que não pretendiam viver como "perfei-
lucrativa. O povo admirava e ouvia esses "homens bons", encantado com a tos" de que podiam, ao aproximar-se a morte, limpar-se de seus pecados simples-
exortação a práticas menos formais, a gestos redentores mais simples. O discurso mente através do rito do consolamentum, da imposição de mãos. No campo, a
que lhe era apresentado não o desconcertava. Era um discurso construído sobre penetração da heresia certamente foi favorecida pelo novo fervor com que os
temas semelhantes aos temas desenvolvidos pelos pregadores submetidos à auto- homens da Igreja exigiam o dízimo. Nas regiões francas e borgonhesas, no próprio
ridade dos bispos; empregava as mesmas palavras, as mesmas imagens, dando Norte da Aquitânia, regiões nas quais as prescrições carolíngias haviam sido
como exemplo as mesmas figuras, e para começar a do Salvador. Assim é que se estritamente aplicadas, essa cobrança sobre os frutos da terra era mal-tolerada pelo
formavam por toda parte pequenos grupos de devoção que de forma alguma campesinato;nos tumultos que volta e meia o sacudiam, sua raiva voltava-se
pretendiam separar-se da Igreja, demonstrando, pelo contrário, que esta podia em primeiro lugar contra os celeiros onde os monges e cônegos acumulavam o
renovar-se de dentro para fora, voltando à pureza de suas origens. O problema é r produto desse imposto. Sua cobrança, entretanto, era legitimada por hábitos
que', reprimidos pelas forçãs estabeleci das que incomodavam, eles eram levados a imemoriais. O mesmo não acontecia no Sul do reino e na Provença, onde o
enrijecer sua posição, proclamando que se deve obedecer antes a Deus que aos 1'- dízimo provavelmente nunca havia sido cobrado. O que não impediu o clero
homens e mergulhando na clandestinidade, em rebeldia. de exigir sua "restituição" após o meado do século XII, quando se ativava o
É verdade que também se infiltravam crenças diferentes. Evervin de Stein- comércio de produtos agrícolas e montantes cada vez maiores de dinheiro eram
feld já as identifica em Colônia em í 143. Vinham elas do Oriente. E os contem- canalizados para a .reconstrução e a decoração dos edifícios de culto. Para
porâneos não se enganaram, denominando "bougres"; ou búlgaros, os que se justificar essa punção, os prelados não se referiam ao costume nem aos precei-
deixavam levar por essas crenças -ou ainda "cãtaros", palavra grega. Efetiva- tos do Antigo Testamento, mas ao direito romano. Para eles, o dízimo era um
mente maniqueístas, elas sustentavam, além da transmigração das almas, a exis- sinal do imperium, da dominação universal pretendida pela Igreja romana. A
tência de um segundo deus, o do mal e da matéria, também ele criador e defron- forte resistência encontrada por tais exigências foi evidentemente considerada
tando-se com o deus bom num combate de desfecho incerto. Eram, portantq, herética.
crenças estranhas ao cristianismo. Mas foram aceitas, pois seus propagadores Mas se a heresia demonstrou tanta força nas províncias meridionais, sendo
usavam o mesmo vocabulário e as mesmas alegorias que os padres. Elas formaram com tanta dificuldade extirpada, é que as relações de poder, as estruturas sociais
a armadura - na verdade bastante frouxa - de uma nova religião, que, a darmos e a cultura laica predispunham melhor à aceitação das doutrinas propagadas pelos
crédito às atas de duvidosa autenticidade de um concílio realizado em .1169 em bonshommes, como eram chamados os heréticos, ,e a protegê-los da repressão. O
Saint Feliú de Lauraguais, pretendia constituir-se em verdadeira Igreja, com seus primeiro fator era a fratura mais profunda entre os-dois campos em que se dividia
sacramentos, sua hierarquia, seus próprios bispos e dioceses. No fim do século, a classe dominante. Tudo que pudesse diminuir o poder temporal dos eclesiásticos
duas formações heréticas 'defrontavam-se, portanto, comaortodoxia, Alain de era apoiado pelos barões e cavaleiros, seus rivais. Não resta dúvida de que os
Lille não as confunde: de um lado estão os vaudois, do outro, os cátaros, e no Sul bispos e legados do papa viam nos senhores leigos, e com razão, os mantenedores
da Gália aqueles atacavam decididamente estes, na defesa do cristianismo. Nas da bougrerie. Ela florescia com naturalidade nos oustaus da cavalaria e do
cidades do Norte do reino, a heresia não se mostrava menos ativa. Já em 1135 era patriciado: neles os pregadores eram bem-recebidos; durante as refeições em
motivo de preocupação. Passado J meado do século, começava-se a perceber na comum, ensinavam que o casamento não pode ser um sacramento, que não são
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região renana, na Lorena, na França, que ela constituía sério perigo para as necessários padres, muito menos aqueles cuja avidez tendia a diminuir ainda mais os
estruturas eclesiásticas. Em 1153, o papa Eugênio III exortava o bispo de Arras à magros recursos da família. Do que diziam, eram as mulheres as mais atentas ouvintes:
vigilância. Dez anos depois, Luís VII voltava-se preocupado para Alexandre Ill. as formas da devoção herética não as relegavam a uma posição marginal, como as da
O bispo de Nevers e o bispo de Auxerre tratavam de neutralizar os líderes e seus ortodoxia; também elas podiam ser "perfeitas", impor as mãos, transmitir o Espírito.
adeptos. Instituiu-se todo um sistema inquisirorial dos mais eficientes: identifica- Não estou 'convencido de que a condição feminina tenha sido menos oprimida no Sul
dos os focos de corrupção, as fogueiras purificaram as províncias francas. Tais que no Norte. Seria necessário conferir, levar mais longe as investigações. Seja
medidas demoraram a ser aplicadas no Sul, embora nele as pestilências encontras- como for, não resta dúvida de que mulheres contribuíram para propagar práticas
..J sem terreno muito mais favorável. religiosas que as retiravam da submissão em que as mantinha a Igreja estabelecida.
Como no Norte, elas se difundiam a partir das grandes cidades, onde aqueles É preciso levar em conta também a solidariedade que unia todas as casas agiu ti-
que manejavam o dinheiro, convencidos de que a usura é um pecado grave, nadas no castrum: partindo das mais ricas, a perversão facilmente contaminava as
mostravam-se mais sensíveis à pregação da pobreza. Toulouse, Albi, Colônia e

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230 a idade média na frança osul 231

vizinhas. Mais que as cidades, foram os castelos, blocos compactos, que se Toulouse, em Albi, de onde o populacho acabava de expulsar o legado, debaixo
transformaram no Sul em ninhos da heresia. Os organizadores da contra-ofensiva de chacota. Cometeu o erro de apresentar-se com excessiva arrogância, pronun-
católica não demoraram a percebê-Io, passando a tratá-Ios como tais. ciando palavras incapazes de tocar seu auditório. Nada conseguiu. E os abades de
Referi-me há pouco à vitalidade de uma cultura profana autônoma nessas sua ordem que davam prosseguimento à luta bem que se arriscaram até o coração
regiões. Era uma cultura da discussão livre e pública. Acostumado a debater da infecção, nos castelos, mas tampouco conseguiram alguma coisa. Eram neces-
questões de direito; o povo das aldeias e castelos debatia livre e publicamente .l sários apóstolos muito diferentes. Foram eles os cônegos, mais bem preparados

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questões de religião. O sagrado não estava assim tão claramente separado do civil.
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para discorrer, e que optaram por se dirigir aos contestadores como os discípulos
Como outras questões municipais, era algo passível de ser posto em discussão. ~, • I
de Jesus, a pé, sem acompanhantes, em total despojamento. Uma equipe de
Reunido na praça, o povo ouvia os defensores do caminho reto e os do desvio, cada castelhanos, introduzida na região pelo bispo de asma, foi a primeira, sendo
qual expondo seus argumentos, exatamente como ouvia os trovadores de tendên- i. seguida em Elne pelo capítulo da catedral. Pobres e letrados, esses novos prega-
cias opostas em questões de política. Sob a presidência da comunidade dos
senhores, os leigos arbitravam. O cronista Guilherme de Puylaurens descreveu
t'o' dores conseguiram aos poucos a adesão dos vaudols. Reunidos em Pamiers no
palácio do conde de Foix, eles foram "mteiramente convencidos e confundidos,
longamente um desses debates, realizado em 1207 no castrum de Montreal-en- assim como a maior parte da população do castrum, principalmente os pobres. Até
.Carcassêa Diante dos perfeitos, do catarismo, lá se encontravaolegado do papa mesmo aquele que fora instruído juiz do debate, e que se mostrara favorável aos
Pedro de Castelnau. "Discutiu-se durante vários dias por escrito perante árbitros", vaudois, renunciou à heresia e ofereceu sua pessoa e seus bens ao bispo de Osma:
cavaleiros e burgueses; "as partes entregaram os escritos aos leigos, que haviam a partir daquele dia, combateria com coragem a superstição herética". Exatamente
sido investidos do poder de concluir"; é verdade que estes, prudentes (estávamos como fez Durando de Osca, que se tomou o mais ardente adversário dos catares
às vésperas da cruzada) "não quiseram deliberar e se separaram sem concluir o no interior de.uma comunidade de "pobres católicos". Essa reviravolta na ofen-
caso". Vale registrar o recurso ao livre raciocínio, a autoridade entregue a homens siva revelou-se decisiva. Juntamente com a formação da ordem dos dominicanos,
que não estavam destinados pelo sacramento da ordem a decidir sobre coisas ela prenunciava uma renovação completa do cristianismo, e ainda, através do
sagradas. Pode-se aqui avaliar bem até que ponto chegara nessa região, no início juramento popular, do exemplo da renúncia e da racionalização do aparelho
do século XIII, a desafeição pela instituição eclesiástica. dogmático, a plena derrota do catarismo.
Mas o fato é que ela se enrijecera ante o perigo. Quando este se tornou claro
na segunda metade do século XII, a Igreja não demorou a concluir que era preciso
agir nas cidades, pois os camponeses mantinham-se mudos, continuando a conci- Ao mesmo tempo em que procurava convencer, a Igreja instalava os instrumentos
liar as forças invisíveis com gestos e palavras, com ritos presididos pelos párocos da repressão. Os transviados rompiam a paz pública, vale dizer, a paz de Deus. A
mas também, com os ritos clandestinos, e tidos como mais eficazes, das "supers- questão da fé, o negocium fidei, confundia-se, portanto, com o negocium pacis, li '
tições'", inexpugnáveis. A Igreja organizou sua defesa através da imagem. No questão da paz. Os bispos foram convocados a lutàr contra a heresia com os meios
amplo teatro constituído pela fachada da igreja abacial de Saint-Gilles, a grande que utilizavam contra os saqueadores: o anatema.e o apoio das milícias armadas.
esculturamonumental servia por volta de 1170 para proclamar diante do povo, no A ação das instituições de paz tradicionais foi reforçada pelos princípios do direito
tom majestoso dos arcos de triunfo' deixados pela Roma antiga, a ericarriação do rorriano. Os papas do fim do século XII conheciam-nos'bern, pois haviam estudado
Cristo, a Redenção, o valor do sacramento da Eucaristia e da Cruz, a força dos em Bolonha. Recorreram, portanto, a prescrições rigorosas. Considerados culpa-
[1 apóstolos e de seus sucessores, os bispos. A Igreja organizou sua defesa também dos de lesa -majestade, os que se levantavam contra as leis da Igreja foram passíveis

I através da palavra. Era necessário CJl.pulsar o erro com o arrazoado oral, como nos
tribunais. A vitória dependia de maior habilidade na retórica e na dialéticà. As
do castigo merecido por este crime, a morte e o confisco .•. Assim como a lei civil
pune com a morte e a espoliação os criminosos culpados de lesa-majestade ... assim
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escolas episcopais começaram a melhor preparar-se para tais combates, mediante
o reiterado exercício da "disputa". F()ram necessárias duas gerações para afiar as
também a Igreja afasta do Cristo e despoja aqueles que, errando na fé, atacam Deus
ou seu Filho em detrimento mais grave da majestade divina:' Assim justificava
armas e ajustar a mira. Inocêncio Iflas medidas que editava.
, Os mais puros foram os primeiros a serem lançados contra a heresia meri- A ação repressiva desenrolou-se em três etapas. Em 1163, em Tours, um
dional. Eram os monges cistercienses, que por sua vez julgavam-se "perfeitos' a concílio delimitou seu campo: as províncias meridionais do reino. Quatorze anos
.J sua maneira. Mas todos sabiam perfeitamente que esses adeptos da pobreza depois, o conde de Toulouse, Raimundo V, lançava um grito de alerta. Numa carta
compravam terras pelomelhor preço e exigiam com aspereza os dízimos. Conven- ao abade de Cister, mostrava como a heresia disseminava-se abertamente em seus
cidos de sua superioridade, fracassaram. E, no entanto, na desorientação que se domínios; lúcido, explicava que "aqueles que lhe dão acolhida pensam estar
seguiu às viagens de prédica de Henrique de Lausanne, viera dar sua contribuição prestando homenagem a Deus", e que, portanto, ela penetra facilmente nas
o orador mais célebre, são Bemardo. Ele pregara nas cidades principais, em famílias, logo jogando as mulheres contra o marido ou o 'pai; ela já conquistou,

I.J
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232 a idade média na frança osul 233

acrescenta, uma parte do clero; os santuarios estão desertos; 'os sacramentos -da
4 primeira vez empregava plenamente os cavaleiros do Cristo no combate ao mal,
Igreja de nada valem". Ele evocava também o pior, a infiltração do dualismo - no próprio interior do povo cristão. Em sua resposta, Filipe Augusto começou a
a doutrina cátara. E reconhecia que caberia a ele, o príncipe, •'vingador e ministro queixar-se de Raimundo VI, cunhado de João sem Terra. "Não recebemos qual-
) da cólera de Deus", esmagar o inimigo da fé verdadeira. Mas confessava-se quer ajuda dele nem de seus homens, embora tenha recebido de nós um dos maiores
impotente e pedia a ajuda de seu senhor, o rei da França. Uma missão chefiada baronatos do reino." Defendendo, no entanto, suas prerrogativas de senhor feudal,
)
pelo abade de Clairvaux constatou os fatos. E informou ao concílio geral ele respondia como jurista ao especialista em direito que era o sumo pontífice:
) reunido em Latrão em 1179, cujos participantes pediram ação imediata contra "Quanto ao fato de expordes a terra do conde àqueles que dela pretendem apossar-se,
os transviados e os routiers, igualmente. Já não bastava o anátema solenemente fomos informados por homens letrados e não letrados de que não tendes o direito de
lançado. Também o braço secular deveria abater-se sobre os maus. Os príncipes assim agir se não o houveres condenado como herético [Raimundo VI fora efetiva-
e os cavaleiros, aconselhados pelos bispos, tomariam armas. Durante sua emprei- mente condenado como cúmplice dos bougres, e não como bougre ele mesmo].
tada militar, gozariam das imunidades concedidas aos peregrinos da Terra Santa. .Se ele o for, devereis avisar-nos e .determinar que exponhamos sua terra, pois é de
A remissão dos pecados era prometida aos que tombassem em combate, como aos nós que ela depende. Ora, o fato é que não o fizestes ..;"
cruzados. Todos os outros receberiam a indulgência por dois anos de penitência. A cruzada foi organizada sem ele. Entretanto, os prelados que tomaram o
Estavam autorizados a se apossar dos bens dos infiéis e a reduzi-Ias à servidão. caminho do Ródano em junho de 1209, assim como os barões, o duque de
Aqueles que se reeusassem a combater seriam excomungados. Já era uma verda- Borgonha, os condes de Nevers, Saint-Pol e Bar eram todos francos ou borgonhe-
deira cruzada, sem que se reconhecesse, mas conduzida diocese a diocese, no ses, e a questão da fé era assim mais uma vez tomada sob a responsabilidade dos
contexto tradicional das iniciativas em nome da paz de Deus. monges cistercienses, acolitados por um pequeno grupo de cavaleiros da Íle-de-
Mas verificou-se em Montpellier - cujos sires mal podiam esperar o France, obcecados com o ideal da cruzada. Alguns anos antes, estes haviam partido
momento de entrar em combate com o vizinho, o Trencavel - que não era possível dispostos a libertar Jerusalém, e quando a expedição de que participavam foi
contar com os guerreiros locais: estavam de pacto com a heresia. Tentou-se, como desviada em 1202 de acordo com o interesse de Vcneza, quando foram solicitados
na Itália, encontrar apoio nas instituições municipais, comprometer os cônsules a conquistar Zadar (cidade cristã da Dalmácia) em lugar da Palestina;persistiram
das .cidades, mediante juramento, no combate às más doutrinas. Mas os bispos sozinhos na missão que haviam abraçado, a de libertar o tümulo do Cristo, tristes
mostravam-se reticentes, e os consulados, demasiado jovens para se libertarem de e amargurados por não serem seguidos. Esse pequeno núcleo inabalável era
sua tutela. Foi então que o novo papa, Inocêncio m, decidiu destituir os prelados conduzido por Simão, senhor de Montfort-I' Amaury, vassalo do rei de França, "o
hesitantes de Béziers, Narbonne e Toulouse, Excomungou Raimundo VI, "homem mais puro por sua castidade, perseverando até o fim, ligado ao serviço de Deus",
pestilento" que, cercado de seus routiers, recusava-se a pôr fim a suas guerras era ele acompanhado pelos homens de sua linhagem e de sua maisnie, e ainda por
.J privadas e a acertar com os rivais a paz necessária à ação comum, com isso seus amigos, os cistercienses da abadia de Vaux-de-Cernay, vizinha de suas terras.
contribuindo para a disseminação da heresia. Acusava-o de fazer mau uso da razão Eles se empenhavam a fundo nessa nova peregrinação, sem pensar em saquear ou
de que fora dotado por Deus, de utilizá-Ia contra Deus e contra a "Igreja geral" conquistar. Sentiam-se obrigados . a reparar, por sua\ dedicação obstinada à causa
(o que era a mesma coisa), pois o homem razoável que ouve a razão só pode ter de Deus, os desvios da quarta cruzada. ..
em mente..a-unidadé4a.-!greja,-Onde-sç encontra 3 Espírito. Para o papa, estava-em Ao se aproximarem, Raimundo de Toulouse atendeu aos reclamos, apresen-
causa agora o destino de toda a Igreja, e o caso das províncias meridionais tando-se nu diante da basílica de Saint-Gilles para receber os açoites da penitência.
interessava a toda a cristandade. Em 1204, e novamente em 1205 e 1207, Inocência Absolvido, foijuntar-se ao exército dos francos. Com cssaaliança, só faltava tomar
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111 pressionou Filipe Augusto a intervir com suas hastes. Oferecia-lhe o que o a senhoria dos Trencavel. Esta logo seria conquistada. Antes de Carcassonne,
concílio de Latrão oferecera aos senhêres da região: juntar a seu domínio as terras Béziers caiu a 22 de julho. Ainda está viva a lembrança dos heréticos massacrados,
Ij misturados aos que não o eram, sendo Deus convidado a reconhecer os seus;
confisca das aos barões perversos. Sobreveio então a surpresa, em janeiro de 1208:
.J til I! , o regado Pedró de Castelnau foi assassinado em Saint-Gilles; o papa não teve lembrança também das mulheres e crianças queimadas na catedral, "que rachou
I,

J dúvida de que o conde Raimundo era o instigador do crime; ele e seus cúmplices ao meio por causa do fogo". As atrocidades foram atribuídas aos "vadios,
seriam, portanto, "despojados de suas terras para que habitantes católicos nelas sujeitos ... sem nada nos pés, de camisa e calções, armados com maças e nada
..J 11111 ! tomem o lugar dos heréticos eliminados". Solução radical: extermínio a ferro e mais", chefes dos routiers e suas manadas, cujos serviços os cavaleiros de Deus
fogo dos maus, e repovoamento com os bons da região devastada. haviam contratado. O visconde morreu, no cárcere, a 10 de novembro. Teve direito
.J IIII:! a funerais ostensivos: era importante que todo mundo soubesse que morrera o
senhor das cidades conquistadas. Suas terras foram oferecidas ao duque de Bar-
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ganha e ao conde de Nevers, os quais, cumprida sua promessa e exortados neste
Os bons eram naturalmente os francos. O rei recusou-se a apoiar o desvio da
) !U:li instituição da cruzada para províncias submetidas à coroa, uma inversão que pela
sentido, recusaram. Uma comissão constituída de dois bispos, quatro cavaleiros e

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234 a idade médio na frança osul
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c legado do-papa-entregou tudo a Simão de Montfort, que permanecera com uns


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reconciliação, voltando-se para seu vassalo, o rei de Aragão. Coberto de glória por
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trinta cavaleiros apenas; mas eram amigos fiéis, incumbidos de depurar a região r sua vitória sobre os muçulmanos da Espanha, Pedro 11foi a Toulouse. Os cônsules
da peste herética. ~ da cidade e os condes prestaram-lhe homenagem, assim como o jovem filho deste
Por toda parte eles a viam a zombar do alto dos muros dos castelos. Trataram ,I . . último, unido à filha do rei por um acordo de esponsais. Este tomava sob sua
então de logo submeter esses lugares, Minerva, Termas, Lavaur, limpando-os e !) guarda, junto com o condado, a seu genro, que não estava envolvido com a heresia
"plantando a cruz do Cristo no alto da torre" em sinal de vitória (mais alto que o i ". e que por compromisso real assumido perante Inocêncio III seria instruído na
estandarte de Simão, pois o Cristo é que forçara os maus a se refugiarem em seu
covil), queimando alegremente dezenas, centenas de perfeitos - e com eles os
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verdadeira fé. A reviravolta de Roma e esses compromissos de vassalagem amea-
çavam os direitos do rei da França. Para defendé-Ios, Filipe Augusto autorizou seu
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senhores da região: os cruzados não duvidavam um instante sequer de que fossem filho a entrar em cruzada. Mas a 13 de setembro de 1213, diante de Muret - como
também culpados de heresia militante. Foi um trabalho duro. Mas os conquistado- no ano seguinte nos campos de Bouvines -, Deus favoreceu aqueles que por Ele
res da fé utilizavam bons brabantinos e fortes máquinas de assédio. Um burguês
de Montpellier encarregava-se de reunir o dinheiro necessário. Depois, a partir do
f' combatiam. Numericamente inferiores, Simão de Montfort e os seus - devida-
mente purificados pela eonfissão e as missas, além de abençoados com um
verão de 1210, vieram reforços, movidos por promessas de indulgência, mas fragmento da verdadeira Cruz - venceram em batalha o rei de Aragão, os condes
também pelo puro desejo de servir a Deus. Partindo da França; da Aquitânia, de Toulouse, Foix e Comminges, os burgueses e artesãos de Toulouse. Conspur-
. tia Gasconha, a pregação mobilizava bispos, barões e cavaleiros. Mobil.izava cado, pois havia passado a noite anterior com uma mulher, mais duramente punido
também - especialmente na Renânia e na região de Liêge, onde mostrou-se do que seria o imperador Oto, Pedro 11foi morto em combate.
extremamente eficaz - homens sem posses que chegavam a pé, exaltados, e FoÍ na primavera de 1215 que o príncipe Luis desincumbiu-se do compro-
entre eles muitos marginais de intenções duvidosas. Crescia a convicção de que misso que assumira. Montfort veio a seu encontro. Os dois entraram juntos em
seriam os pobres, por "ordenação dó céu", aqueles que venceriam o mal, e Mompellíer, Narbonne e finalmente em Toulouse. Passados os quarenta dias de
isso no exato momento em que, na região franca, os "meninos", os esquecidos campanha a 'que estava obrigado pelos votos da cruzada, Luís ouviu o legado e
do crescimento agrícola, Iormavam bandos, partindo sem saber para onde, partiu. Viera como os outros, como peregrino, e não como conquistador. Desde
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liderados por iluminados esfarrapados, sonhando' com a terra sem mal das Muret, seu pai contava com Simão, homem de confiança, para defender no Sul os
utopias milenaristas. interesses da coroa. Quanto ao papa, sustentava queas terras dos heréticos haviam
Em 1210, Raimundo VI foi novamente atingido. Seus domínios c poderes sido confisca das em nome de são Pedro; seu destino seria decidido pelo concílio
régios.estavam expostos. Simão tomou-os, e seu irmão Gui, os do conde de Foix, geral que se' reuniria em Latrão. Inocêncio III desejava que fossem restituídas ao
igualmente excomungado. O abade deCister, legado, foi feito arcebispo de filho de Raimundo VI, como feudo da Santa Sé. Os prelados não concordaram. A
Narbonne, e o abade de Vaux-de-Cernay, bispo de Carcassonne. No inverno de herança de Toulouse foi partilhada. O que se encontrava em terras do Império ficou
.( 1212, em Pamiers, prelados e clérigos, cavaleiros e burgueses reuniram-se em sob a guarda da Igreja, para ser entregue a Raimundo, o sétimo, quando fosse
grande número num . 'parlamento" semelhante aos concílios pela paz de Deus, maior. eYse se mostrasse digno de perdão". O rctsto - "do Ródano ao Porto",
"para impor o reinado dos bons costumes, para varrer o lixo herético, implantar vale dizer, aos Pireneus - foi confiado a Simão de Montfort, para que recebesse
bens hábitos, para -garantir O culto ría-religíão cristã c, no "domínio temporal, a .. essas senhorias"de quem tinhaódireito de concedê-Ias". Apressou-se a prestar
segurança e a paz". Foram então promulgados estatutos minuciosamente prepa- homenagem ao rei de França em nome delas.
( rados por doze jurados, dois bispos, um templário, um hospitalário, quatro guer- Ele julgava então que seria capaz de controlar Toulouse a partir do Château
reiros vindos da França, quatro cavaleiros e dois burgueses da região: "Haviam Narbonnais, onde se instalara. Toulouse era incontrolavel. Não herética, mas
sido escolhidos francos e autóctones para tirar a desconfiança de todos os cora- I
ligada a seu senhor natural, como toda a região, que não suportava os estrangeiros
ções." Através dessas disposições, foram introduzidos, com vistas à partilha das vindos do Norte. Toulouse expulsou Simão, abrindo suas portas para o jovem
sucessões nobres e plebéias, os usos de Paris, e em especial a estrita maneira de Raimundo. Em l218, Montfort, que sitiava a grande cidade, foi abatido por uma
servir os Icudos à maneira franca. Durante dez anos, ficava proibido às herdeiras máquina de arrojar pedras. No ano seguinte, Luís de França partiu para nova
de castelos casar sem autorização do chefe dos cruzados da região; mas elas quarentena, massacrou de passagem os habitantes de Marmande, surgiu diante das
podiam livremente tomar por marido cavaleiros do Norte. Assim foi que se muralhas de Toulouse e partiu de volta: como em sua primeira viagem, não vinha
permitiu aos francos tomar o lugar da aristocracia do Sul através da cópula para conquistar. Filipe Augusto recusara-se a se apossar dos direitos que lhe eram
legítima, como previra o autor da Geste des seigneurs d 'Amboise ao dirigir seu oferecidos por Amauri, filho de Simão. Mas quando este, desanimado, chegou a
olhar para o passado merovíngio. Paris em 1224, acompanhado dos sessenta cavaleiros que lhe restavam e renovan-
do sua oferta, o filho de Filipe, já agora rei, aceitou. Luís VIII acabava de se

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Mas tudo estava em processo de mudança no tabuleiro político. Mais uma
vez preocupado antes de tudo com o destino da Terra Santa, o papa trabalhava pela apoderar dos feudos de que a corte dos barões havia despojado João sem Terra

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) 236 a idade média na f rança
237
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"vinte e dois anos antes. Com a maior facilidade, apossava-se de La Rochelle, da
resistência de uma nação aos invasores. O Capeto e seu vassalo empenharam-se
Saintonge, do Limousin e do Périgord, Seus cavaleiros foram mesmo até Saint-Émi-
em providenciar para que em todas as regiões submetidas a seu poder o combate
lion, na Guiena. Com as mãos livres, desejoso de dobrar os cátaros, que sabia estarem
do bem contra o mal fosse levado a bom termo. "Em nossa juventude, no limiar
ainda a pregar abertamente, empenhado também em impor o reconhecimento de
d~ nosso reinado", proclamava Luís IX numa ordenação promulgada para a
seus direitos soberanos sobre o Sul da Gália, ele tomou pela terceira vez a frente
di'&!ésede' Nimes, "pela honra de Deus, que nos deu a mais alta honra na Terra,
de uma cruzada" contra Raimundo VII, excomungado. Durante cinco anos o
faremos com que a Igreja de Deus, por tanto tempo inquieta, seja honrada e
papa permitiria que recebesse um décimo dos rendimentos do clero da França,
conduzida à. fé ... que os excomungados sejam reconciliados de acordo com o
garantindo a segurança do reino contra o rei da Inglaterra.
direito canõnico, e que se se mostrarem insubmissos sejam ao fim de um ano
A expedição pelo Sul foi um passeio, como a que seu pai e seu avô haviam
trazidos à força à unidade da Igreja." Em Paris, o conde de Toulouse prometera
comandado no Mâconnais. Os nobres da Narbonnaise apressaram-se a colocar as
agir da mesma forma. Expulsaria de suas terras os maus fiéis e seus simpatizantes,
mãos nas do rei, que caminhava pela margem esquerda do Ródano, em terras
não poupando nem seus vassalos, nem seus parentes e amigos. Ordenaria a seus
imperiais, não hesitando em brandir por ali a espada da justiça. Mas ele seria detido
bailios que buscassem os hereges por toda parte, oferecendo a quem ajudasse a
por um obstáculo inesperado: Avignon. Para lá do rio, aumentara a força das
encontrar algum deles o prêmio de uma renda de dois marcos de prata durante os
grandes comunidades urbanas, Barganhando.seu.apolo.ao.conde de TmU011Se,elas
dois primeiros anos, e em seguida de um marco, perpetuamente, "e a mesma coisa
. haviam obtido novos privilégios. Sua política à italiana transformara-as em peque-
para cada herege, se capturar vários". A Igreja recobraria seu antigo poder,
nos Estados resistentes. Os cavaleiros e patrícios que acabavam de afastar os
receberia tranqüilamente dízimos e primícias, construindo em sinal de vitória, à
profissionais das magistraturas haviam-se entendido com Luís VIII: ele estava
maneira da França, catedrais cujas torres altas e ornamentos celebrariam o esma-
autorizado a penetrar no recinto murado com uma pequena escolta, enquanto o
gamento das doutrinas perniciosas. Raimundo VII dava quatro mil marcos para a
exército atravessasse a ponte. Mas ao ver os cruzados a cidade ficou com medo,
fundação em Toulouse, mas uma vez à maneira da França, de um centro de estudos:
temendo o mesmo destino que Bézicrs. Fechou-se. Ferido em sua honra, conven-
quatro mestres em teologia, dois mestres em direito canônico, seis mestres em artes
cido de que semelhante resistência tinha a ver com os heréticos, obrigado pelo
liberais e dois gramáticos viriam das escolas parisienses para formar um bom clero
juramento que prestara a castigar as cidades rebeldes, o rei da França sitiou-a
no bom saber. Foi aperfeiçoada;enlim, a máquina repressiva.
durante três meses sob um céu plúmbeo e em meio a nuvens de inoscas que
Em 1184, os bispos haviam sido convocados a percorrer sua diocese para
propagavam terríveis cólicas. Finalmente, quebrou as defesas, impediu que seus
julgar in loco os transviados notórios. Em 1199' c 1206, Inocêncio III exortara-os
homens saqueassem, contentou-se com seis mil marcos de prata e com promessas
a não mais confiar apenas nas informações que corriam, mas tratarem de se
I
,
e prosseguiu em sua empreitada. Ao retomar em novembro de 1226, entretanto,
informar, de investigar. Em 1229, em Toulouse, um concílio provincial determinou
morreria de disenteria em Auvergne. A darmos crédito a Guilherme de Puylaurens,
I como efetuar essa busca com maior eficiência. "Que em cada paróquia sejam
Filipe, seu pai, previra que este homem frágil não resistiria aos miasmas naquelas
designados um padre e três leigos para dar busca diligente aos heréticos, vasculhar

II
terras ensolaradas.
uma a uma as casas e adegas suspeitas, procurar até nos redutos improvisados nos
Um guerreiro destemido - osire de Beaujeu, que permaneceu.na região -
telhados c em todos os esconderijos. Se forem encontrados- hereges ou crentes,
continuou a lutar pela fê. Raimunão VIl acabou por se entender com Branca de
il Castela, viúva e regente. Na Sexta-Feira Santa de 1229, em Notre-Dame de Paris,
partidários, receptadores ou defensores de hereges, tratarão de tomar todas as
•• 11 I precauções para que não fujam e os denunciarão com toda pressa ao arcebispo ou
) acompanhado por seus amigos, como ele condenados, submeteu-se a uma cerimô-
ao bispo,' ao senhor da região ou a seu bailio." Caberá ao poder eclesiástico
.11111
nia de expiação. Deserdado por mjlitância herética, ele se confessava destituído
julgá-los de acordo com os ritos. Os que voltarem espontaneamente à verdadeira
de todos os direitos que haviam sido exercidos por seus ancestrais. Mas ficava
fé "usarão duas cruzes em lugar alto e bem visível, de cor diferente da de sua
1I estabelecido que, tendo sido lavado do pecado pela penitência do conde, o rei da
roupa, uma à direita, outra à esquerda, que, no entanto, não bastarão para justifi-
França, na qualidade de patronus ecc/esiae, confiar-lhe-ia a título de concessão
'"i ca-los se não houver também um certificado de reconciliação fornecido peJo
feudal, e para que nelas se mostrasse "bom defensor da Igreja", as dioceses de
bispo ... Que a essas pessoas não sejam confiados encargos públicos, e que não
Toulouse, Agen, Rodez c Cahors, mas preservando, além das senhorias de Tren-
sejam admitidas nos atos legais." Quanto aos outros, insubmissos, '·para se
caveI, todo o resto dos bens que a linhagem rairnundina havia possuído aquém do
penitenciarem, serão emparedados", ou seja, atirados na masmorra. Todos os
Ródano: Beauca ire, Niines e Saint-Gilles,
católicos, homens de mais de quatorze anos, mulheres de mais de doze, jurarão
Os ritos observados e as cláusulas dessa paz evidenciam como o religioso e
li! .'denunciar lealmente os hereges", devendo, para não se tornarem suspeitos,
o político se articulavam estreitamente nessa época. O rei de quinze anos que
confessar-se e comungar três vezes por"ano. "Que os leigos não tenham consigo
I recebe a homenagem é o braço de Deus na Terra. Deus dispõe. E o que Ele quer é
nenhum livro das Escrituras, exceto o Saltério e o ofício divino; e que não os
i ~I que sejam afinal neutralizados Seus inimigos, tornados ainda mais arrogantes pela tenham em língua vulgar." Em 1233, a ··inquisição da perversidade herética" foi

II11
o sul 239
238 a idade média na frança

confiada aos Irmãos Mendicantes, às novas companhias formadas na fermentação Tinha ela oito anos. Antes que chegasse à idade de copular e procriar, foi
religiosa que fazia frente ao desafio herético, e com as quais o papa podia agora zelosamente guardada na corte de França. Em 1237, foi entregue a um dos irmãos
contar: os discípulos de são Domingos e de são Francisco. Os inquisidores do rei, Alfonso. Ninguém podia prever que Raimundo VII não voltaria a casar, e
executaram bem sua tarefa. Em Toulouse, de maio a julho de 1246, seu tribunal que Joana seria estéril. Quando ela morreu ao mesmo tempo que o marido, em
condenou cento e trinta e quatro indivíduos a portar a cruz, vinte e oito à prisão 1271, vendo a nação toulousina em dor, a linhagem de que ela era o último rebento
perpétua. Durante toda uma geração, eles haviam esbarrado na lei do silêncio, na "era destruída e apagada da face da Terra", todas as regiões do Languedoc
solidariedade entre parentes e vizinhos fortalecida pelas humilhações da der- retomaram à coroa. Por acaso. O Estado monárquico tomara-se capaz de absorvê-
rota, naquele mesmo sentimento nacional que obrigara os mestres parisienses Ias. Ainda não o era quarenta anos antes, Não se poderia mesmo, desse modo,
estabelecidos na universidade de Toulouse a se retirarem. Por longo tempo os concebê-Io senão como um agregado de princ!pados autônomos, ligados pelo
castelos haviam resistido com armas. A última violência foi o massacre, em contrato feudal e os vínculos muito mais fortes do parentesco ao domínio da
1242, de quatro inquisidores que passavam por Avignonnet. Dois anos depois, coroa, por sua vez suficientemente restrito e condensado para que o rei o
Montségur, reduto dos assassinos, caía. A partir daí, o 111 aI seria rechaçado mantivesse sob o devido controle através de seus homens. Ninguém podia
lentamente das cidades para os povoados da planície e cada vez mais alto nos prever a anexação de Toulouse, menos ainda desejá-Ia em nome de um "impe-
--vales. Sabe-se-que-aintl-a--resis-tia-no-raiar--do século AIV, entre os camponeses rialisíno~'-ainda aôsoiutamente impensáveL Em 1229, o crescimento das insti-
~; I n
de Montaillou. tuiçõesestatais ainda não chegara ao ponto de justificar tais desígnios, ao passo
"R Ir A paz firmada em Paris congregava Carcassonne, Baucaire e a região vizinha que em 1226 já ia avançado o suficiente para que Luís VIII, cujo filho mais
II ao domínio real. As instituições do Estado capetíngio haviam-se tornado robustas velho tinha apenas doze anos, confiasse a regência à esposa. Ninguém contes-
o bastante, e o sistema de comunicações progredira o suficiente para que já não tou sua decisão.
parecesse quimérico, em 1229, controlar essas paragens tão distantes a partir da
Íle-de-France, Os soberanos não as visitavam mais que antes. Entregavam seus
i1.
poderes aos senescais lá estabelecidos por Simão de Montfort; eles resolviam tudo Nos séculos XI e XII, ocorpo das mulheres nobres tinha grande valor político.
em sua corte, semelhante à corte real e fortemente munida, como ela, de Elas pariam, traziam como contribuição para a casa do marido um sangue,
,I
técnicos de justiça e finanças; Desse modo, a responsabilidade pela opressão pretensões sobre um patrimônio; enviuvando, acontecia que seu filho lhes viesse
recaía, aos olhos da população, sobre os que falavam em nome do rei. O rei por respeitosamente pedir conselho. Passivas, entretanto, serviam sobretudo para as
sua vez encamava a eqüidade. A distância, apresentava-se como o recurso. trocas entre linhagens das quais dependiam o destino das senhorias, tanto quanto
Dele podia-se esperar que acolhesse as queixas e contivesse a brutalidade de das guerras. No fim do século XII, no auge do movimento de progresso que elevava
seus agentes. a condição feminina, em ritmo semelhante ao dos homens, já era comum ver-se
mulheres prestarem homenagens na ausência de u~ marido ou pai, recebê-Ias
em nome de seu filho menor e, sob o controle do senhor guardião, cuidar no
A realeza íipropriara-;se-dessas~terras porque queria-participar da luta pela extirpa- dia-a-dia dos-interesses deste. -Na sagração de Luís IX, alguns barões ausentes
ção da heresia e porque considerava necessário um ponto de apoio contra a possível foram representados por suas mulheres. Mas a inovação de que se beneficiou
infidelidade de Raimundo VII. Esses domínios também proporcionavam uma Branca de Castela tinha menos a ver com a promoção da mulher que com a da
abertura para o mar, o que contava muito: na casa do soberano, sonhava-se menos realeza.
com anexações do que com a cruzadi, a verdadeira, aquela que finalmente Portando a coroa, a rainha da França não era um objeto como os outros. Sua
libertaria Jerusalém. Em todo caso, ninguém pensara em apoderar-se de todo o imagem correspondia à da Virgem sentada, no tímpano das catedrais, tendo nos
patrimônio dos condes de Toulouse, passado para as mãos de Deus em conseqüên- joelhos o Deus encarnado, enquanto fosse criança. Além disso, o marido desta
cia da guerra santa. Livre para agir em nome de Deus, o poder capetíngio limitou-se mulher, no topo da pirâmide feudal, só tinha como senhor o próprio Deus. Só Deus,
a dissociar o imenso principado e atrelar solidamente à coroa sua maior parte, sem podia.portanto, tomar a guarda de seu filho caçula, delegando esta tarefa a um de
a preocupação de anexá-Ia. Das quatro dioceses que lhe foram entregues como seus mais altos servidores. Desse modo, enquanto Filipe Augusto comandava a
feudo, Raimundo VII recebeu o de Toulouse apenas a título vitalício. Após sua cruzada, o arcebispo de Reims encarregara~se junto à rainha mãe da tutela do
morte, ele passaria a sua filha, até então seu único filho legítimo, e. prometida príncipe Luís, cuja mãe morrera em 1190. Em 1226, ainda não tenninara uma outra
a um dos filhos de Luís VIII. Só os herdeiros a nascerem da união assim cruzada, no Albigeois. Coube ao cardeal de Saint-Ange, legado do papa. tomar o
projetada o sucederiam no feudo; Joana de Toulouse e seus descendentes lugar de Deus ao lado de Branca de Castela. Nos primeiros anos, foi-lhe de grande
receberiam tudo que pertencera a seus ancestrais se seu pai viesse a morrer sem ajuda. Mas ajuda ainda mais valiosa e mesmo essencial foi-lhe dada pelos clérigos
deixar filho homem. e cavaleiros que constituíam na casa real como que um só grupo de parentesco, no

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f o sul 241

240 a idade média na frança

realeza sagrada por sua conduta, para começar, por suas virtudes, uma santidade
qual as dignidades eclesiásticas eram transmitidas de tio para sobrinho, e de pai bem menos duvidosa que aquela de que se pretendera ornar Filipe Augusto,
para filho os ofícios dos diferentes "metiers" da corte (só na posteridade de empenhando-se também em reforçar por todos os lados os suportes simbólicos do
Gauthier de Nemours, aliado aos Clemente e aos Comut, podemos contar, ao longo poder que detinha. Mostrando o exemplo da "prudhomie", reunindo plenamente
de quatro gerações, quatro arcebispos, dez bispos, dez cônegos de Notre-Dame ou em sua pessoa os valores da devoção. da sabedoria e do destemor, sabendo ler e
Saint-Martin de Tours, quatorze marechais ou camareiros). A reunião de todos lendo constantemente a Bíblia em seu quarto, Luís IX promoveu o remanejamento
esses homens protegia a linhagem real com uma couraça suficientemente dura para do ;Jrcl0' do regulamento das Iiturgias da sagração. Entre a tripla promessa,
sustê-Ia nos momentos de dificuldades. Era por sinal o caso. Prevalecendo-se da garantindo que o futuro rei manteria "por livre arbítrio" a "verdadeira paz", e a
minoridade, o baronato tentava romper as amarras com que era insensivelmente unção [oram inseridos os ritos da investidura na armadura, para proclamar o
mantido sob controle pela monarquia. Abrigada em Paris - onde os cavaleiros vínculo já agora indissolúvel entre a função real e a cavalaria.
do domínio e os burgueses instalaram em lugar seguro o jovem príncipe que os Em seguida, em 1240, Luís IX fez a aquisição de uma outra coroa, a que o
barões rebeldes pretendiam capturar -. sua mãe resistiu, cercada dos parentes próprio Jesus portara, de espinhos, instalando-a pelos séculos dos séculos no centro
do marido e do sogro. Os bons servidores foram a mais segura defesa da fragilidade de um relicário esplêndido. a Sainte-Chapelle. Gastou somas inimagináveis no
feminina. empenho de fixar em seu palácio, na cidade de Paris, este símbolo maior do poderio
Para que não fosse perturbada atranqüilid~de do.reino, o.falecidnreiacertara monárquico, cuja teoria era então elaborada pelos juristas. Um deles, João de
sua sucessão em 1225. Branca de Castela não tinha apenas defeitos. Era de uma Blanot (que pode ser incluído entre os parvenus da ciência, então numerosos: seus
inesgotável fecundidade. Dos filhos que pusera no mundo, cinco sobreviveram às avós eram servos, e seu pai, pequeno preboste no Mâconnais, ganhara bastante
mortalidades da infância. O último a nascer, Filipe Dagoberto, estava destinado dinheiro para mandã-lo estudar direito romano em Bolonha), afirmava que o rei
ao estado eclesiástico. Seguindo os costumes muito bem estabelecidos em todos podia exigir serviço militar dos subvassalos contra a vontade de seu senhor direto,
os principados do reino, e que só pelo acaso dos nascimentos não haviam sido pois estes são convocados, escrevia, "pelo bem público ", "em nome da pátria"
aplicados ao patrimônio capetíngio desde Filipe I, Luís VIII dividiu-o em quatro _ não da pequena pátria local, masda grande, identificada ao reino. E para esse
partes. Ao primogênito coube, juntainente com a coroa e todo o ouro e prata que borgonhês quê terminou como oficial de Lyon, não se tratava do reino da França,
fossem encontrados na torre do Louvre, o domínio dos ancestrais, os duques de mas do "reino da Gália" .
França, ampliado da Nonnandia, que em hipótese alguma devia ser dele separada. A grande enciclopédia do saber humano encomendada por Luís IX a Vicente
Roberto, o caçula, herdou o que vinha da avó, o Artois, com a ressalva de que, se de Beauvais, o dominicano que guardava seus livros, começa com uma história do
morresse sem deixar filho, este feudo retomaria ao rei. Aquisições recentes. o mundo inteiro. mas principalmente da dinastia, pois esta ocupa - e disso ninguém
Anjou e o Maine foram para o terceiro filho (que morreu, cabendo esta parte. afinal, tinha dúvida=-- o centro do mundo. O autor mostra como se confirmaram as duas
ao sexto filho, Carlos, que foi póstumo); o Poitou e Auvergne couberam aoquarto, predições combinadas, a de são Valério e a do retorno da coroa da França aos.
Afonso, futuro marido de Joana de Toulouse. Ao chegarem maioridade, os irmãos
â
descendentes de Carlos Magno. A título de ilustração de afirmações que garantiam,
foram sucessivamente tomando posse do legado, de sua porção que anos mais tarde sob o olhar de Deus, os direitos. da posteridade de luís VIII, Luís IX decidiu afinal
começaria a ser chamada de apanágio, "em provimento da coroa de Prança", Esta organizar a-necrópole real. Em Saint-Denis, onde o.abadcMateus de Vendôme
não era de forma alguma prejudicada por tal partilha, e disso ninguém duvidava. tentava reunir num só manuscrito todos os textos relatando os grandes feitos das
H! Ligadas à coroa pelo contrato feudal, essas províncias distribuídas mantinham-se reis de França, numa basílica inteiramente reoonstruída nas formas góticas e agora
I estreitamente vinculadas a ela, exatamente como os "filhos da França", os únicos
que a partir de agora usavam em ~u brasão a flor-de-Iis, mantinham-se unidos
inundada de luz, erguiam-se quatro altos uimulos cobertos de ornamentos: o de
Dagoberto, voltado para o sepulcro do mártir, o de Carlos, o Calvo, no meio do
sob a autoridade do primogênito, ehefe incontestado dessa família austera que coro (Dagoberto, Carlos: irmãos do rei tinham os nomes desse merovíngio e desse
desconhecia a frivolidade. Vemos os irmãos de Luís IX dóceis, quando o rei, carolíngio), e ainda os de Filipe Augusto e Luís VIII. Em 1267, as sepulturas dos
para construir a abadia cisterciense de Royaumont, forçava-os a carregar as reis das duas primeiras raças - e Carlos Martel, que nunca Dortara a coroa,
pedras com ele. A anedota reflete fielmente a realidade: perfeita, a coesão de também fazia parte do grupo - foram alinhadas no lado sul, e as sepulturas dos
uma linhagem governada segundo os preceitos de uma moral patriarcal susten- çapetíngios, no lado norte. Diante dessa fileira dupla, como remate dessa tripla
tou o crescimento da monarquia ao longo de todo o século XIII. linhagem, abria-se lugar para três corpos defuntos, o de Luís VIII, no centro, o de
,,,li Na condução do Estado, Luís IX manteve-se respeitoso dessa moral e seu pai e o de seu filho, que viria juntar-se aos antepassados, Semelhante disposi-
deixou-se guiar.menos pelos princípios acanhados que lhe teriam sido inculcados ção pretendia manifestar claramente, aos olhos de todos, este fato capital: verifi-
por sua mãe, segundo uma persistente idéia preconcebida, do que pelo exemplo cara-se uma ruptura na história dos poderes, sob o reinado de Filipe Augusto. Tal
do avô, cuja memória venerava. Deu o último retoque no edifício ideológico cuja ruptura assinala o nascimento do Estado Francês.
construção havia sido apressada pela vitória de Bouvines, realçando o brilho da
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o século xiii 243


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decidiu devolver-lhe, como feudo por um "serviço conveniente", uma boa parte
das províncias do sudoeste, adquiridas por seu pai e por ele mesmo. Muitos de seus
companheiros de armas desaprovaram-no. Ele resistia, pois só pensava na' paz, e
sobretudo acreditava na eficácia de um sistema assim definido no Livre de justice
et de plaids: ~O rei não deve receber de ninguém"; "Duques, condes, viscondes e
barões podem receber uns dos outros e tornar-se homens, exceto a dignidade' do
xm rei, contra quem de nada vale uma homenagem"; "Castelãos, subvassalos, cida-
dãos e plebeus estão submetidos àqueles que o rei tem como homens, e todos
encontram-se nas mãos do rei".
o século XIII Se cito a reflexão de um homem da lei, é porque a extensão do poder
monárquico foi obra sobretudo de juristas a que o soberano retribuía. Em seu nome,
estavam eles incumbidos de "controlar sua terra segundo os costumes da região".
Mas esses conselhos estavam "rnui destruidos e quase todos falidos", como Pedro
de Fontaines, bailio de Vennandois, dizia a Filipe, herdeiro do reino, no Conseil
Por mu-ito tempo os súditosdo rei da França 'sonharam em voltar ao tempo de que para ele escreveu. Desse modo, os juízes sentiam-se autorizados a decidir
"monsenhor são Luís": era uma época vista como de ouro, na qual eram felizes. segundo sua "vontade de senlido",já que a razão, que existe no homem como uma
Enganavam-se. Ela não fora poupada nem pela fome nem pelas epidemias, e - fagulha da inteligência divina, permite, segundo Cícero, conhecer a lei, que
como bem sabem os historiadores - enquanto debilitava-se rapidamente e logo corresponde a nossa verdadeira natureza, e agir "pela utilidade comum". Assim,
cessava a corrente de crescimento cujo vigor provocara a espantosa fecundidade eles forjavam pouco a pouco o "costume da França", rejeitando no conjunto dos
do século anterior, o número de proletários esmagados pelos ricos não parara de usos conservados' na memória das comunidades aquilo que não Ihes parecia

:\
i. aumentar nas cidades, nos burgos e no campo. Não devemos esquecer que as
últimas catedrais foram construídas em meio ao empobrecitnento das populações
"razoável", esclarecendo-se na consulta aos textos do direito canônico e do direito
civil. Esse novo "costume da França" reforçava as prerrogativas do soberano sobre
I menos favorecidas. Seu aspecto portentoso ilude. Como iludia, na época, o t1uxo
de moeda que chegava às cidades nas últimas ondas do progresso econômico,
as tenures feudais, mas também sobre os alódios: já se começava a pensar que só

I cidades onde o poder podia encontrar sem muito esforço aquilo de que precisava.
Nessa facilidade monetária, os mecanismos do Estado multiplicaram-se, ajustan-
poderiam ser retomados como feudos do rei, e só dele.
O direito romano, ensinado nas escolas de Orléans, afirmava ser o Capeto
"imperador em seu reino", Um dos sinais mais evidentes de sua plena soberania
1 do-se e enrijecendo-se, Assim como vemos, nas estruturas das igrejas construí das era a moeda, declarada atributo real pelos legistas. Uma ordenação elaborada em
no reinado de são Luís, enrijecer-se aos poucos em regras regulares e frias 1263 pelo conselho de homens de negócios de Paris, Orléans, Sens, Provins e Laon
I aquilo que brotara na espontaneidade da inovação, da mesma forma o corpo determinou, que a moeda do rei seria a única a cirbular em seu domínio e nos de
I
1
flexível dos costumes fecha-se insensivelmente nos rigorismos de uma ordena-
ção lógica.FNo momento 'em 'que 'mestre Alberto, o Grande, dominieano,
IrutQ..S;:ÜS barões.que.não.detizessem por herança o direito.de cunhagem, e:que seria
aceita em toda parte. Três anos depois, os ateliês reais emitiram as grandes peças
, ensinava em Paris que "a natureza é razão", em que' mestre Boaventura, de prata valendo um soldo tournoi"; necessárias para os altos negócios, assim
! franciscano, ensinava que a razão é "imagem natural do Criador", Luís IX,
discutindo com o bispo de Auxerje, respondia com a razão às exigências da
como algumas peças de ouro, inspiradas no modelo das espécies bizantinas, mas
de valor puramente emblemático, proclamando o poderio imperial.
Igreja, segundo nos relata Joinvílle. É verdade que sua primeira alegação
I fora precisamente Deus. E a ordem primordial que deixara ao herdeiro fora
A soberania sobrepujava as senhorias. E também as permeava. A serviço de
..J IIII!i ! a de amar Deus, pois Deus mostra como agir com sabedoria e o amor a Deus
um poder que lhes dava lucro e prestígio, os agentes do rei estendiam este poder
o mais que podiam, Espezinhavam o direito das igrejas, certos de contarem, nesta
afasta do pecado mortal. Desse modo, a história 'do reinado é colocada sob
I' frente, com o apoio dos barões. Estes protestam em 1264 contra a "falsa humilda-
II um duplo signo, o da razão e o do amor a Deus. de" desses "filhos de servos que, quando se tornam clérigos, julgam de acordo com
O rei baseava-se 110 amor de seus' feudatários, contando com ele para
seu direito os homens livres e os feudos dos homens livres", lembrando que ·0
controlar todo o reino e não hesitando em reduzir seu domínio direto com a país não foi conquistado pela arrogância dos clérigos, mas pelo sangue dos
intenção deliberada de fortalecer o baronato. Desejava que este se mostrasse sólido guerreiros". E quando o bispo de Lodêve queixava-se por volta de 1255 de estar
e amplamente disseminado. E, de fato, reforçou-o. Para que o filho de João sem
Terra, Henrique III, rei da Inglaterra, se tornasse seu vassalo, para que viesse
prestar-lhe homenagem no jardim do palácio em dezembro de 1259, Luís IX * Tournoi: moeda cunhada em Tours. (N. T.)

242

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'1Y,I~1~f:
~; I

~1.1 I
'~~··'I'l.:p 244 a idade média na frança
j: o sécu 10 xili 245

vendo "o.senescal, o baílio, o viguier'; os juizes e outros oficiais da corte dó senhor


) 1'1111' rei lançar intimações, investigar os crimes e condenar, cobrar pela força e pela anuais do Estado; as cidades forneceram um quarto, e a Igreja, quase todo o resto.
H
I; intimidação taxas ilícitas, requisitar cavalgadas" nos domínios eclesiásticos, os A 12 de junho de 1248, em Saint-Denis, o rei lançou mão do cajado e do alforje
~IIH barões por sua vez congratulavam-se por essa invasão do poderio laico. Mas não
demorariam a se queixar: sua senhoria sofria intrusões equivalentes. Para descul-
dos peregrinos, ergueu a auriflama, dirigiu-se a Notre-Dame e depois, os pés
descalços, a Santo Antônio, e partiu para o mar. Estreitamente unidos, seus irmãos
par-se por não acompanhar numa nova cruzada o rei Luís que tanto amava, o sire o seguiam. Saint-Gilles, porto assoreado, não pôde ser usado. O embarque teve
11'
; ,11'
,1' de Joinville declarou em 1267 que os sargentos do rei haviam aproveitado sua lugar em Aigues-Mortes, preparado com essa finalidade precípua na extremidade
estada na Terra Santa para empobrecer sua população. do domínio real. A bela aventura no delta do Nilo, todas as privações sofridas, a
.1 '111 E, no entanto, Luís IX sentia-se movido por uni "ciúme de justiça", conven- hecatombe de Mansurã, a captura do soberano, o resgate que teve de ser pago aos
cido de que Deus permitira sua sagração para que ele, novo Salomão, impusesse infiéis. --;- tudo isso deve ser lido em Joinville, admirável testemunha. Ao retomar
por toda parte a eqüidade. Na memória dos franceses, sentado sob o carvalho de seis anos depois, o cruzado estava irreconhecível. O fracasso, a longa permanência
Vincennes, ele ordena que venham a ele os mais humildes e necessitados de justiça. nos Lugares Santos ainda acessíveis, o sermão sobre a justiça que ouviu do
1111111
Essa imagem ilustra perfeitamente a idéia que ele mesmo tinha da função real, e franciscano Hugo de Barjols logo depois de desembarcar em Hyêres haviam-no
I
que levou a corte a se organizar em torno de uma peça chave, o "parlamento do "convertido", na acepção do termo, modificando sua vontade. Pelo resto da vida
. senhor r.ei","'loro de debates judieiários, Relegadõs 'â "câmara de contas", os ele continuaria-um .penitente. 7\'té então, seus favores - como os de sua mãe, que
membros da casa encarregados de controlar as finanças cediam lugar aos especia- construía Maubuisson, Lys e Chaalis - estavam reservados, sobretudo, aos
listas em direito, aos "mestres" do parlamento. Recebendo das mãos do patrão, no cistercienses.
dia marcado, os "mantos" e "Iibrés" que Ihes serviam de penhor da função, eles Em Royaumont, um quarto era reservado para ele, dando para a igreja. A
cumpriam com fervor sua missão, móvidos igualmente pelo amor divino e pela partir de então, viveu cercado de Irmãos Mendicantes, que o orientavam em suas
convicção unânime de que julgar é um ato sagrado. Despachavam investigadores, leituras e nas práticas piedosas. Estas não diferiam em relação aos comuns.
cavaleiros e clérigos, junto aos bailios que passavam a residir nas sedes de seus Simplesmente ele as exagerava, acumulando a seu redor os relicários que nas
tribunais. Se as sentenças eram por inadvertência "emitidas abertamente contra grandes festas gostava de carregar nos ombros. Antes dele, todos os reis haviam
o costume da região", cabia ao rei, "que se encarrega de guardar e fazer acolhido pobres em seus castelos; pois ele alimentava muito mais - cento e vinte
respeitar esses costumes", corrigir os maus julgamentos. Essas investigações diariamente na residência, treze na sala, três a sua mesa. E sobretudo, empenha-
acostumaram as 'populações a se voltar para o Parlamento de Paris, cujos va-se como são Francisco, na imitação do Cristo sofredor, pobremente vestido,
"ditos" ou sentenças passaram em 1254 a ser cuidadosamente registrados no recusando os ornamentos de que gostava de se enfeitar na alegria da juventude,
pergaminho. deixando de rir. Cuidando pessoalmente dos leprosos, era com radical ardor que
cumpria as missões reais.
Em respeito e cumprimento às promessas da sagração, no entanto, o rei quis
Foi como se ele quisesse aplicar a seu povo, para fortalecê-lo, para preparã-lo
mais. Em 1245, no momento em que se preparava de corpo e alma para uma
para retomar em melhores condições a luta coJtra o Islã, as macerações que
expedição à Terra Santa, determinou uma inquisição. Não que estivesse preocu-
impunha a seu próprio-corpo. As ordenações que promulgou nos dez últimos anos
'lI...
i pado em éstimular a caça aos hereges: sabia que estava sendo convenientemente
de vida são instrumentos de penitência destinados a neutralizar a maldade que até
levada a efeito. O que pretendia era reformar o governo do reino, reprimir por toda
então o rei julgava não ter combatido com suficiente vigor, o que o privara da.graça
parte, até os confins do longínquo Languedoc, os abusos daqueles que admi-
divina durante a cruzada. Foram medidas que tomou "pelo bem comum", "para a
nistravam em seu nome a justiçasexpulsando os prevaricadores. Ora, não foi
utilidade dos súditos", mas sobretudo para "abater o pecado", "para moldar pelo
aos homens de seu hôtel que ele confiou a investigação, mas a homens de Deus,
melhor o estado do reino". Mais uma vez, reforma. Enquanto na universidade de
aos dominicanos e franciscanos cujos confrades eram incumbidos de procurar
Paris certos pensadores ensinavam que o mundo ia mudar, entrar numa terceira
os cátaros para deles purificar a Terra. No espírito de Luís IX. de fato, a
era, a era do Espírito, após a do Pai e a do Filho, que conduziria toda a humanidade
depuração do pessoal judiciário era "questão de fé", exatamente como a luta
à pureza exemplificada pelos monges - e fixavam a data dessa mutação: estava
contra os albigcnses.
muito próxima -, o.empenho do rei da França voltava-se todo para essa purifica-
Ele tomara a cruz em 1244, aos trinta anos e após recuperar-se de uma ção, baixando proibições análogas às que os prelados e príncipes reunidos em torno
doença, inspirado por uma visão que tivera em estado de coma. Calculou-se que .dos cofres haviam pretendido baixar, dois séculos e meio antes, à espera do fim
investiu na santa empreitada um milhão de libras, o quádruplo dos rendimentos dos tempos.
Em contraponto a toda a evolução política que tentei acompanhar, descobri
.* Viguier: denorilinação de certos juizes ou prebostes no Sul da França. (N. T.) a cada momento as ressonâncias do movimento pela paz de Deus. No reinado de
Luís IX, ele como que ressuscitou. Movido pelo zelo divino, o soberano quis forçar
246 'idade média na frança o século xiii 247

o reino a lavar-se de seus pecados. Ele estava conspurcado pelo sangue inutilmente tinham do mundo. Descobriam-no muito mais vasto e sobretudo mais diverso,
derramado. Assim foi que o rei, tratando de dar o exemplo em seu domínio para menos firme em suas bases do que supunham, Os negociantes de Veneza, em busca
que fosse seguido em outras regiões, e preocupado em reduzir o "perigo de perder dos produtos caríssimos e raríssimos, os tecidos, peles e especiarias que a festa
vida ou membro" e em impedir a efusão de sangue, suprimiu o duelo judiciário, aristocrática já não podia dispensar, os Irmãos Mendicantes pagos pelo rei da
"acabou com as batalhas, eno lugar da batalha colocou provas de testemunha e de França para levar a palavra do Cristo além das terras islamizadas avançavam pelas
carta". Ele ainda sonhava em abolir para sempre as "guerras", as vinganças rotas da seda até as portas da China, exploradores de um novo mundo ~ e será
privadas. O que, naturalmente, era impossível. Mas pelo menos pediu a seus que as narrativas maravilhosas desses aventureiros foram realmente menos incô-
homens que se esforçassem, dando garantias aos adversários, por suspender as modas que as dos descobridores das Américas, dois séculos e meio depois? Na
hostilidades durante quarenta dias, para que a raiva tivesse tempo de ceder e os mesma época, igualmente inquietos e maravilhados, os eruditos descobriam os
protagonistas, nesse período de trégua, aceitassem decidir suas divergências em livros de Aristóteles que ainda não estavam traduzidos, sua Metafisiea, seu
discussões. O reino também estava conspurcado pelo dinheiro. Teria sido neces- comentário por Averróis, toda a majestade de um edifício conceitual cujas estru-
sário que o deixassem de lado todos os homens que se locupletavam em seu turas perfeitamente ajustadas apresentavam-se como irredutível contradição dos
manuseio, os lombardos, os cahorsinos, os judeus. O rei determinou que fossem dogmas cristãos. E enquanto se aproximavam de Cracóvia as hordas mongóis que
expulsos, o que tampouco era possível. O reino estava conspurcado ainda pela podiam ser lidas como os povos de Goge Magog, precursores do Anticristo, nas
frivolidade, a fórnicação, as blasfêmias. Foramptoibidos os jogos de azar, fecha- casas principescas de conforto'e'larguêzà-de recursos propiciados pelo aperfeiçoa-
ram-se as mulheres de vida fácil num bairro das cidades, sendo declarados mento do sistema fiscal a sociedade cortês descobria, espantada, que nas extremi-
)
passíveis de duros castigos aqueles que "ousassem dizer más palavras", "jurar por dades da Terra existiam civilizações policiadas, governadas por soberanos sapien-
.J algum dos membros de Deus, de Nossa Senhora ou dos santos". Medidas igual- tíssimos, e que, no entanto, nada sabiam ainda do Evangelho. Ela questionava-se,
mente inaplicãveis. . lúcida, quanto aos fracassos da cruzada, considerando - como Ioinville - que
J Incapaz de instaurar o paraíso em suas terras, Luís IX partiu em sua busca. eram culpados de pecado mortal QS maus conselheiros que haviam levado são Luís
Para estupor de sua casa, empenhou-se em cruzada uma segunda vez e morreu a partir mais uma vez em armas contra os descrentes. Era preciso compenetrar-se
diante de Túnis, mártir da fé. Unânime, seu povo considerava-o santo havia muito disso: dessa maneira não seria possível submetê-los, Não seria mais interessante
..J tempo. Atendendo. a uma exigência pública, a Igreja reconheceu oficialmente a tentar afastá -los do erro através da palavra persuasiva e do exemplo virtuoso, como
santidade do rei da França. Diz uma das testemunhas do processo de canonização: fizera Francisco de Assis? Como seria possível continuar acreditando que o povo
.J cristão estava instalado no centro do universo, sendo levado pelo movimento da
"Não só ele cuidara dia e noite, no governo do reino, da proteção dos corpos e das
coisas corporais, como cabe à função real... como também, mais preocupado do história, sem desvios, a ocupã-lo inteiro e sozinho? Aos poucos tomava-se eviden-
J que se pode imaginar com a salvação das almas, de tal modo cuidara delas ... que te a instabilidade de uma ordem que se julgara imutável, assim como a relatividade
-.J exercera o sacerdócio à maneira de um rei, e à maneira de um padre, a realeza." de um destino coletivo cuja trajetória parecera até então traçada segundo uma linha
Rex et sacerdos na perfeição. O próprio papa afirmava: são Luís começara por necessária. .. \
governar-se a si mesmo, reprimindo os movimentos da sensualidade com suas Pilar dessa ordem e guia -desse destino, a' instituição eclesiástica estava
faeuldades'de razão, para em seguida governar seus súditos com a instauração da -diretamenfê ameaçada. Desencantadas, as consciências começavam a duvidar.
~
"-i justiça e da eqüidade. Pelo exercício de sua razão, pelo fervor de seu amor aDeus, Seria possível obter a salvação simplesmente assistindo, mudo, aos ofícios liuir-
.J
são Luís aumentou tanto quanto Filipe Augusto o poderio capetíngio; e como as gicos, atrás da galeria entre a nave e o coro que agora isolava o clero do povo no
I
relações de parentesco estavam no centro das estruturas políticas, sua elevação interior das basílicas? O fiel não se aproximaria mais de Deus por sua devoção
) íntima, pela oração secreta e, imitando a caridade exemplificada pelo rei, através
.elevou um grau, na hierarquia dos méritos, toda a linhagem das flores-de-lis, todos
) os homens de seu sangue, toda a sua posteridade. Seu irmão Carlosde Anjou, rei do atendimentoaos indigentes que se juntavam à porta dos palácios? Preservado
da Sicília, afirmava: os outros irmãos, Roberto de Artois.i.Afonso de Poitiers, da danação pelas boas obras e os elãs do misticismo, por que haveria o cristão, nos
mortos durante a cruzada ou em conseqüência dela, também' mereciam a palma do intervalos dos exercícios de devoção, e já que a natureza é boa, de resistir à
martírio. Seu filho, Bernardo de Clermont, mudou seu título: dizia-se "filho do rei tentação de deixar que seu corpo desabrochasse, naturalmente, alegremente? Por
I da França"; pois passou a chamar-se "filho de monsenhor são Luís", cuja santidade que não se entregar as alegrias da vida? Fraturava-se assim insensivelmente um
..J definitivamente santificou a monarquia francesa . sistema de valores construido durante três séculos com base na coerência entre o
saber e a moral.
) Insensivelmente também se desviavam as correntes de prosperidade que até
..J Rem 1270; li morte de são Luís, que se toma mais clara a teadência que lentamente
então haviam favorecido as regiões francesas, enriquecendo-as mais que as outras,
disseminando por todo o Ocidente, até Chipre e a Moréia, a ciência de suas escolas,
minava a base de todas as coisas e modificava a idéia que os homens da época
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J
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248 a idade média na França o século xiii 249

as técnicas de seus arquitetos e os -dialetos de 'seus cavaleiros. Culminando na porque os casamentos se dêem mais tarde, Assim é que se interrompeu, à morte
predominância absoluta da troca, do comércio e da moeda, o progresso da econo- de Luís IX, o movimento profundo que desde a alta Idade Média sustentava o
mia européia pouco a pouco privava a França das boas obras de sua longa primazia, progresso geral na França.
transferindo-a à Itália dos navegadores e banqueiros. Os homens de negócios
da Lombardia e da Toscana, que havia gerações passavam necessariamente ,.
\~ :
pelo Norte da França para ir ao encontro dos de Flandres, da Inglaterra ou da I: Em meio ao florescimento do culto a são Luís, a realeza capetíngia chega ao
Renânia, começavam já a mudar de rota: providenciavam-se pistas através dos apogeu de sua força e de seu prestígio no reinado de Filipe IV, dito o Belo, Beleza
Alpes centrais, barcos de grande tonelagem uniam o Mediterrâneo ao mar do do rei, beleza do reino. Ele era então mais populoso que nunca, mais populoso que
Norte. jamais seria até o reinado de Luís XV. O Estado, onipresente e precisando de
As cidades da França ainda não sofriam as conseq üências desse deslocamen- 'I
dinheiro, tratava agora de recensear os lares passíveis de taxação, e em conseqüên-
to dos itinerários mercantes, pois nelas se concentrava todo o vigor da economia. cia o historiador pode adiantar alguns números sem correr risco de erros muito
Graças ao desenvolvimento do crédito, aumentou sua dominação sobre o campo, graves. Havia certamente de vinte a vinte e três milhões de habitantes no território
ao passo que seu patriciado, graças ao controle do comércio a longa distância de atualmente ocupado pela França. E já se encetara o processo que levaria a França
matérias-primas e produtos manufaturados, aumentava seu domínio sobze..as a tomar sua forme.hexagonal. Recuo no Sul: o rei renunciara, além-Pireneus, à
associações de artesãos e révendédores. Em Lyon.por exemplo, o poder municipal soberania sobre as regiões catalãs. Expansão a leste, para os lados de Toul, Verdun,
estava nas mãos de dezoito famílias estreitamente unidas. Em Reims, umas no Barrois, e o primado das flores-de-lis afirmava-se desde a Champagne, na
cinqüenta linhagens burguesas, controlando o comércio de tecidos e emprestando Lorena, que se livrava do controle imperial, como a Provença, cujos condes eram
dinheiros por toda parte, supervisionavam todos os métiers, os "pequenos" e os agora os descendentes de Carlos de Anjou, irmão de são Luís. O rei de França
"grandes", que por sua vez suportavam quase todo o peso dos impostos. Reims instalava seus homens em Lyon; o senhor do ducado de Borgonha vivia em Paris,
- tinha então cerca de vinte mil habitantes. Paris, dez vezes mais. A cidade do rei, e sua filha desposava um dos filhos de Filipe, o Belo; a corte da França pagava
. de longe a mais populosa da cristandade latina, era também seu mercado mais uma renda ao conde de Sabóia, ao delfim de Viennois, e este logo venderia ao rei
movimentado, pois nela se haviam estabelecido as casas mais ricas e gastado- todos os seus direitos e seu título,já agora usado pelo herdeiro presuntivo da coroa.
raso Lá os lombardos de Asti e Plaisance haviam instalado seus bancos. A Para lá dos Alpes, a fértil Itália oferecia-se às ambições dos príncipes da linhagem
amplitude das transações nas feiras de Champagne, cuja atividade culminava real; um deles reinava em Nápoles, sonhando em reconquistar a Sicília, e outros a
nesses anos, faz esquecer que Paris desempenhava um papel equivalente nos ela chegavam em busca de aventura.
acertos financeiros. Isoladas por suas muralhas, as cidades alimentavam no Senhor do mais vasto e poderoso Estado do Ocidente, o rei da França não
reino a ilusão da fertilidade e da felicidade, e os pobres da planície se agarra- se interessava em adquirir a dignidade imperial. Na realidade, ele detinha o
vam 'a esta miragem. império .. Como sucessor incontestado de Carlos Magno, podia, scgundo os
Fora dos muros, a radical mudança da conjuntura tornava-se então manifesta. juristas, dominar a Igreja em seu reino, devendo aliás assegurar sua proteção.
Os investimentos burgueses voltavam-se sobretudo para a viticultura, a criação c O papado passava.insensivelmente a submeter-se a seu patronato. Adquirira-se
11 ,i a exploração florestal. As pastagens, portanto, valorizavam-se, os bosques rendiam o hábito de reunir os grandes concílios ecumênicos não mais em Roma, mas
) às margens do Ródano, de acesso mais fácil para os prelados provenientes
cada vez mais - em certas regiões, valiam o dobro das terras de lavoura. Em
conseqüência, tinha fim o arroteamento. Em sentido inverso, os campos de nutri- de toda' a cristandade. 'Os cardeais franceses eram numerosos na cúria
ção às margens das cidades recuavam diante dos vinhedos, e nas proximidades dos pontíficia.
terrenos baldios retiravam-se dos solos ingratos nos quais haviam sido confinados Em 1261, na culminância de uma extraordinária ascensão, o filho de um
por certo período, e cujo rendimento caía a zero. Retração nas antigas terras, e, artesão de Troyes, graduado pelas escolas parisienses e agora capelão do papa,
portanto, excedente populacional, e já um começo de escassez. Nos campos da subira ao trono de são Pedro. Apressara-se então a conferir a púrpura a seus antigos
Picardia, só um décimo dos camponeses tinha do que viver - e não raro, aliás, colegas de estudos. Constituíra-se assim no colégio cardinalício um forte partido
com mais conforto que muitos fidalgotes seus vizinhos. Outro décimo nada tinha de homens preocupados com os desejos do Capeto, muitos dos quais sentiam-se
.J e precisava mendigar o pão de cada dia. Quanto aos outros lares, que cultivavam pouco à vontade além-montes. Em 1306, promoveram a eleição de um papa
menos de três hectares, s6 conseguiam sobreviver vendendo seu trabalho, empre- aquitânio. Clemente V quis aproximar-se do concílio, então em Viena. Trocou
gando-se os homens nas grandes fazendas, as mulheres fiando para os empreiteiros Roma pelo condado Venaissin, domínio dos antigos condes de Toulouse deserda-
urbanos. Em 1270, a população deixou de crescer, efeito da miséria: subalimenta- dos, e do qual se apoderara a Santa Sé. O papa instalou seus serviços em Avignon
das, as crianças morrem em maior número, e os adultos, mais cedo; e sobretudo e logo instalou-se também ele na cidade. Seus sucessores lá permaneceram. Na
) diminuem os nascimentos, pois as mulheres são menos férteis - e talvez também outra margem do rio, erguia-se a torre construída por Filipe, o Belo, protetora mas

Ii ~I
)

250 a idade média na trança o século xiii 251

também dominadora, testemunho da inegável autoridade que o poder real exercia técnico. Ele continua vendo, a sustentar o todo, o alicerce fundamental da ordem
sobre a autoridade pontifícia. temporal cuja instalação mostrei no século XI: a senhoria. Explica que todos os
"súditos", sejam fidalgos ou não, encontram-se sob a justiça de um senhor, do qual
dependem, pelo bem comum, a proteção dos órfãos, o policiamento dos grandes
o Estado ainda se confunde nessa época com a casa do rei. Filipe, o Belo, l. caminhos, a manutenção das boas medidas, Como, entretanto, "toda justiça laica
comporta-se primeiro que tudo como chefe de linhagem, constantemente cercado é recebida do rei como feudoou subfeudo", toda senhoria está integrada ao sistema
pelos parentes mais próximos. Reza diariamente por seus parentes mortos, por são feudal, e aquele que a detém presta em seu nome homenagem a um senhor superior,
Luís, a cujo lado direito decidiu dormir seu último sono. Ao aproximar-se a morte, ;;C;, que por sua vez é às vezes o rei, mas com mais freqüência um "sire que recebe em
I.: baronato". Este, guardião das igrejas, incumbido de arregimentar os contingentes
ele exorta seu herdeiro a seguir em primeiro lugar os conselhos de seus tios. A t·
"família" de que é o chefe desenvolveu-se, e muito: congrega hoje várias centenas í;-:,~, das hostes, autorizado a modificar os costumes por ~estabelecimento", é quem
(
de pessoas repartidas entre serviços especializa dos, diversos "quartos" que acom- detém de fato a soberania. Dela, é co-possuidor, ao lado do rei, como os "cavaleiros
do castelo" eram co-possuidores do bando, com o senhor da fortaleza, nos
panham a pessoa real em seus incessantes deslocamentos. Filipe está sempre
viajando, para fazer a guerra onde for necessário, em peregrinações ao monte
. Saint-Michel ou à Notre-Damede Bolonha, retiro~ em Maubuisson'ou Poissy, para
f: primeiros tempos do feudalismo. A permanência do sistema, nesse ponto, não
....déixa de chamar a atenção: o reino da França é por demais vasto; como outrora
as intermináveis expedições de caça que tanto o apaixonam. Assim é que a "corte" as castelanias, deve ser administrado em condomínio. De fato, os barões são
separou-se do "hôtet", a residência, estabelecendo-se no velho palácio da cidade \ todos homens do rei, seus amigos, como os cavaleiros eram amigos outrora do
que cresce. Os arquivos, já agora bem organizados e atualizados, permitem-nos castelão, e devem servi-Io. O sistema feudal situa o rei no escalão supremo.
ver muito mais claramente que nas gerações anteriores como funcionava o órgão r
Nenhum barão pode estabelecer contra ele, ao passo que o rei é autorizado a
central do poder e os homens que nele atuavam. Alguns, encarregados de manusear ordenar para todo o reino "em tempo de guerra, no tempo em que se temer a
os dinheiros, eram estrangeiros, "lornbardos", como Bichc e Mouche de San guerra e em tempo de necessidade" (o que lhe permite, sobretudo, cobrar
Giminiano, que tinham seu "banco" em Paris. Mas o grande negócio continuava subsídios), e mesmo em tempo de paz, desde que seja "por mui grande conse-
sendo a justiça, confiada aos clérigos e cavaleiros do rei; estes eram denominados lho", "razoavelmente".
"cavaleiros da lei" e usavam duas armas, a espada que haviam recebido no dia da "Teria sido possível assentar uma monarquia das mais fortes exclusivamente
investidura na armadura e o saber jurídico adquirido nas escolas. Uns e outros, em Beaumanoir" (J. Strayer). A "lei civil" serviu apenas para reforçar os costumes.
pessoalmente ligados ao soberano pela homenagem e a fidelidade, estavam-no Bastava aplicá-los estritamente, tratando de orientar sua evolução no sentido
também pelo juramento especial de guardar com toda lealdade o corpo de seu desejado, com pequenos estímulos. Era o caso dos apanágios: o costume afirmou,
senhor, seus membros, sua honra, seu segredo. Fiéis: não se tem notícia de que o com força cada vez maior, que só se desvinculavam do reino por algum tempo,
rei tenha banido algum deles um dia. Eles lhe pertenciam, pensavam e agiam para para que os "filhos da França" tivessem como ,\iver decentemente. E, sobretudo,
ele, gratificados por sua generosidade. bastava dar livre curso - para além dos limites da própria senhoria do rei, que
De sua equipe-participavamu:.i "legistas" - Guilherme de Nogaret é o mais cobria doisferços do reino - à diligência dos funcionários encarregados de aplicar
famoso -, vindos dasprovíncias meridionais recém-incorporadas ao domínio. O os costumes. As populações não se cansavam de denunciar sua voracidade. É bem
ensino que haviam recebido em Toulouse ou Montpcllier impregnava-os dos verdade que, para administrar com eficiência, era necessário um número cada vez
preceitos do direito romano; aos quais recorriam tantos juízes, advogados e maior deles. Mas os senescais, juizes e bailios não eram em absoluto corruptos .
procuradores em Rouergue, QuercJ e nos três senescalatos do Languedoc, para .r Eles não provinham, como diziam, das classes baixas. Entretanto, como deviam
baixar sentenças ou defender as causas de seus clientes, Eles usavam este direito sustentar-se. e pagar aos sargentos que os ajudavam com os criminosos e
no interesse de seu senhor. Mas não devemos exagerar a importância da "lei civil" devedores do tesouro, aproveitavam qualquer oportunidade de estender o
na afirmação da superioridade capetíngia no interior do reino. Aos olhos dos alcance de sua jurisdição em meio às sobreposições das diferentes justiças,
servidores do palácio, esta repousava no que restava de feudal no poder, e que era fazendo recuar as da Igreja, na verdade igualmente onipresentes, e as dos
essencial. O feudo continuava sendo o sustentáculo primordial da força armada, feudatários. Estes acabaram por reagir: uniram-se restabelecendo a velha soli-
pois dessa tenure é que dependiam o treinamento e o equipamento dos homens dariedade regional, e conseguiram, após a morte de Filipe, o Belo, que sé
da guerra, e cra através do encadeamento dos vínculos de vassalagcm que todos voltasse atrás por algum tempo.
os habitantes do reino viam-se obrigados a "obediência e serviço" para com a Os historiadores se têm interrogado quanto à participação desse rei nos
pessoa real. negócios. É ele o primeiro a respeito do qual se pergunta o que teria em mente nos
É esse efetivamente o ponto de vista de Filipe de Beaumanoir, bailio de momentos em que não orava nem caçava, o que decidiu realmente. É que, com a
Beauvaisis, que por volta de 1280 lançou sobre os costumes da região o olhar do máquina praticamente funcionando sozinha, os mecanismos do Estado se haviam
1

252 a idade média na frança o século xiii 253

aperfeiçoado, e esse soberano - letrado, que ouvia em francês a leitura de Boécio facas, como os routiers, os tecelãos de Bruges ousaram enfrentar os eavaleiros
- confiava em seus serviços, e exceto quando em combate, mantinha-se volunta- da esporas de ouro, que esperavam esmagar com algumas investidas a audácia
) riamente à distância da ação, considerando, com o bom conhecedor de Aristóteles daqueles campônios. Pois eles degolaram "toda a nobreza da França", atirada ao
que era Pierre l~U Bois, que não convém ao príncipe rebaixar-se às questiúnculas. lodo dos fossos. Mais de duzentos mortos, entre eles Roberto de Artois e o conde
O belo Filipe raramente abria a boca. Ouçamos aqueles que o conheceram de perto: de Saint-Pol, Novo escândalo. No ano seguinte, Filipe, o Belo, foi vingar a afronta.
"Ele só sabia olhar as pessoas nos olhos sem falar." Uma coisa é certa: viveu em Com enorme dificuldade, derrubado de seu cavalo, como Filipe Augustoem
devoção a são Luís, e empenhou-se em imitá-Io. Durante a vida desejou chefiar Bouvines, reerguendo-se, finalmente vencendo, a golpes de machado. Mas incapaz
uma cruzada e talvez morrer nela. Envelhecendo na viuvez, infligia-se macerações de dobrar os rebeldes, de conter uma região já completamente estranha à cultura
cada vez mais duras. Seu avô já apertara o controle da igreja "galicana", protes- da França, por sua língua e seus costumes, desde que o conde, forçado a negociar,
tando em 1247 perante o papa, no concílio de Lyon, por seu direito de explorá-Ia cedera à coroa Lille, Douai e Béthune. O exército real precisou constantemente
sem submeter-se a controle algum em troca de sua proteção. Filipe empenhou todas voltar a aterrorizar Flandres.
as suas forças no sentido de protegê-Ia. O desejo premente de pureza para si Ora, o exército, a cavalaria, pesada e leve, devorava dinheiro, pois era
I1
mesmo, os seus, seu povo e a Igreja inteira, o senthnento de ser em seu reino o preciso substituir o que mais rapidamente se desgastava, as montarias, e sobretudo
'"vigáriotel!!por!!l" do Cristo -R,d,-a aguda consciência de-receber,geu poder porque o rei - "mal-aconselhado", segundo Pierre du Bois - passara a fornecer
II diretamente de Deus, e de dever - como mandou o dominicano João de Paris dizer garantias aos "condes, barões, cavaleiros e escudeiros que, obrigados ao serviço
) - mandar excomungar o papa se este viesse a escandalizar a Igreja, depondo-o de armas, deveriam combater a suas próprias custas, desse modo cumprindo as
por sua conta - todas essas convicções ex plicam as medidas tomadas em seu nome obrigações de seu feudo". O Estado precisou obter dinheiros a todo custo, o que o
II11 contra as pretensões de Bonifácio VIIJ, inclusive a bofetada de Anagni. O rei da estimulou, escorando-se no direito soberano, a livrar-se rapidamente do sistema
França estava convencido da indignidade do pontífice. Igualmente estava certo da feudal.

I culpa dos templários, baseando-se em suas confissões. Se os mandou para a


fogueira, não foi para apoderar-se das riquezas da Ordem do Templo: mirando-se
Para cobrir as despesas que continuavam sendo consideradas ocasionais, mas
cujo peso cada vez maior já se tomara permanente, o Estado passou a recorrer com
'I no exemplo de seus "ancestrais, mais empenhados que quaisquer outros príncipes regularidade à imensa riqueza da Igreja da França, acostumada a pagar os dízimos,
em expulsar a heresia e outros erros", ele sentia-se obrigado a depurar a Igreja taxas cobradas em princípio com o objetivo, obstinadamente perseguido, de
) "li
desse escândalo. Pelos mesmos motivos, em seu reinado começa nos tribunais a preparar a cruzada. Mas os homens do rei queriam explorar essa riqueza mais
caça às bruxas. Deus impõe às vezes cruéis tarefas àqueles que arma com o gládio livremente, sem o empecilho do direito, exigido pela Santa Sé, de autorizar tais
da justiça. retiradas. Quiseram, sobretudo, extorquir mais dos "súditos", e não só através da
I Incumbe-os igualmente de dobrar os orgulhos. E orgulhosos não faltavam
no reino. Durante os trinta anos de seu reinado, Filipe, o Belo, precisou constan-
ajuda de vassalagem, Recorreu-se generosamente ao direito real de ignorar por
ordenação as regras consuetudinarias v'em tempo de guerra" e "pelo bem
liRI!
temente mobilizar suas hostes nas extremidades de suas terras, para enfrentar duas comum". Desse modo é que foi estabelecidp O' imposto, esta novidade. Às
i potências adversas, conjugadas COlllil.SC havlam-conjugado às vésperas de Bouvi- apalpadelas. Foram sendo experimentadas sucessivamente todas as maneiras
!
nes, A sudoeste, teve de reprimir a arrogância do mais poderoso de seus vassalos, possíveis de tomar dinheiro, e sempre sem müÜo êxito, dada a incapacidade de
) o rei dos ingleses, que servia mal e sobretudo resistia à invasão dos agentes do estimar os recursos de que podia dispor a extorsão. Descobriu-se com surpresa
·Ii
I poder capetínglo, cujas insidiosas intrusões corroíam pouco a pouco os direitos que naquele país tão próspero o numerário era escasso. Tentou-se pelo menos-
que recebera da coroa na Gasconha; no Agenais, em Saintonge: por motivo de impedir que ele escapasse do reino: a fronteira com a Itália - ou seja, com os
traição, esses feudos eram tomados e restituídos após negociações e barganha, grandes bancos - tornou-se o que nunca havia sido, uma barreira de postos de
notavelmente reduzidos. No Norte, a rebelião foi de uma violência que espan- controle.
tou. os conselheiros do rei. Eles julgavam poder tirar dinheiro das grandes Restavam as espécies propriamente, que eram coisas reais. Cabia ao sobera
cidades de Flandres como tiravam das cidades do domínio, corri facilidade, no decidir que tal peça, com tal signo, valeria mais ou menos dinheiros ou soldos
11/1
deixando ao patriciado a missão de cobrar dos comuns. Era ignorar o príncipe Ele tinha o direito de mudar esses signos, de decretar que este ou aquele não mais
da região, assim como sua linhagem, que resistiu quando o condado foi confis- teria curso, emitindo um outro, extraindo lucros da cunhagem. Mas isso implicava
cado e ocupado. E, sobretudo, era ignorar a tenacidade dos enormes agrupa- perturbar um sistema extremamente frágil, pois a moeda de ouro valia agora o
mentos de artesãos têxteis, cansados da dominação dos homens de negócios, dobro da de prata e o valor dos metais preciosos variava constantemente. O Estado
loucos para defender a honra de sua nação, e ainda por cima extremameute atrapalhou-se com a tarefa impossível de controlar o instrumento monetário para
.J selvagens. Os profissionais-flamengos descobriram sua força de uma hora para atender a suas necessidades. E ao romper a estabilidade das medidas, sem desejá-lo
I
outra. Diante de Courtrai, a 11 de julho de 1303, arriscando tudo e armados de efetivamente, ficou parecendo imoral, pecador. Foi obrigado a desculpar-se, reagindo
'I~â'"
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254 a idade média na França .I' o século xiü 255

às recriminações das populações, O fato de liberar-se da feudalidade, alçando-se interior-do palácio. As mulheres dos três filhos do rei deixaram-se apanhar no jogo
acima dela em posição de delicado equilíbrio, obrigava-o a não mais contar apenas da cortesia. Foram longe demais. Duas delas, com conhecimento da terceira
com a velha fidelidade da vassalagem, tentando obter a adesão de todos os súditos. entregaram seus corpos a amantes. Em 1314, ano da morte do rei, o adultério foi
Na situação cada vez mais embaraçosa que decorria de seu próprio desenvolvi- descoberto, abominável conspurcação de que era preciso purificar a corte pelos
mento, o Estado precisou conquistar a confiança da nação. Explicar-se diante dela. meios mais violentos. Depois de castrados e esfolados vivos seus parceiros, as
E também prometer. Falar a ela. princesas culpadas foram encerradas no Châtcau-Gaillard. Uma morreu de frio no
Havia algum tempo já firmava-se na população o hábito das reuniões primeiro inverno, a outra, vegetou ali por longos anos, antes de acabar seus dias
periódicas nas grandes igrejas ou nas praças das cidades, para ouvir os intenniná- num claustro. O caso não deve ser encarado como simplesfait-divers. Ele mani-
veis sermões dos Irmãos Mendicantes. Pois o povo começou a se reunir também festa a força de um apetite de prazer de que fora tomada a alta sociedade desde a
para ouvir os agentes do Estado. Na presença do rei, que se mantinha calado, esses morte de são Luís. Eis que o desejo de gozar a vida apoderava-se agora da corte
porta-vozes começaram no início do século XIV a arengar os representantes das
diversas categorias sociais, ou pelo menos das que contavam, os três "estados" da
r da França, que extraía sua força da austeridade e do rigor, responsáveis por 'sua
situação à parte entre todas as outras cortes, na proximidade imediata da corte
celeste. Também a casa das flores-de-Iis era agora profanada. Semelhante desor-
sociedade cortês que com o evoluir das coisas transformara-se em sociedade
urbana. Assim foi que teve início na França o. discurso político. O duríssimo
---eeafronto entre a coroa 1fa. França e-a tiara penti ffcia, a propõsito de soberania,
I dem aumentou no espírito de Filipe IV a desconfiança em relação às mulheres.
Agonizante, e empenhado em impedir que esse apanágio "caísse em mãos de
fêmeas", determinou numa ordenação que; à falta de um herdeiro do sexo mascu-
motivou o primeiro desses diálogos entre o Estado e a nação. Em Notre-Dame de
Paris, em abril de 1302, a bula que afirmava estar o rei da França submetido ao lino, o Poitou retomaria à coroa. Exclusão da progenitora feminina.
bispo de Roma foi comentada diante de um milhar de ouvintes. Tratava-se, na É verdade que as mulheres já estavam afastadas mesmo do trono, e por fortes
maioria, de homens da Igreja, mas também estavam presentes príncipes da família motivos. Como escrevia o franciscano François de Meyronnes em seu comentário
real, os procuradores dos barões e das cidades. O papa pretendia reformar o reino sobre La cite de Dieu, a realeza não é uma herança, mas uma dignidade, análoga
e a Igreja galicana. O rei prometeu promover ele mesmo esse reforma, o que fez à dos grandes sacerdotes de Israel, que foram todos homens, como bem se vê pelo
ai guns meses depois por ordenações, fingindo voltar "ao tempo de monsenhor são Livro dos reis. Ninguém duvidava de que o rei da França não era apenas um rei,
Luís". Para conseguir o indispensável apoio das populações, o poder monárquico mas também um sacerdote, e as mulheres não têm acesso ao sacerdócio. Nem a
tinha de dar sua contribuição. filha de Luís X nem as filhas de seus dois irmãos, que reinaram depois dele,
Argumentações e promessas semelhantes seriam feitas nas reuniões que estavam assim autorizadas a assumir a função real. Entretanto, quando chegou ao
então se multiplicaram, a propósito da concessão de subsídios, do movimento das fim a linhagem direta dos capctíngios, quando desapareceram sucessivamente,
moedas, do estabelecimento de novas taxas. Em tais questões, o que mais contava sem deixar posteridade masculina, os três filhos gerados por Filipe, o Belo, muitos
era .a opinião dos burgueses. A eles é que era preciso seduzir e conquistar. pensaram evidentemente que estavam recebendo o castigo pelo pecado cometido
Promoveram-se, então, assembléias locais, de cidade em cidade ou por regiões, 'outrora por suas mulheres. Um pecado que degenerara a dinastia. E não devemos
segundo um modelo copiado das regiões do Languedoc, onde desde o século XII garantir apressadamente que o impudor das priAcesas da torre de Nesle nada teve
---a .populeção falava nas cidades cem o poder. Este precisou~barganhar mais a ver com as-perturbações que desde então, e por mais de um século, rondariam a
duramente, cedendo aqui para reter mais adiante, para ganhar o que pretendia, coroa da França.
sacrificando eventualmente os servidores cujo enriquecimento muito evidente
fazia pensar que metiam as mãos nos cofres do Estado. As burguesias, de fato,
aceitavam entreabrir seus cofres em nome da defesa do reino; recusavam-se, no
entanto, a fazê-lo para lucro dos burocratas e reforço de uma administração que
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II consideravam inútil e incômoda. A roda da fortuna elevara alto demais o camareira
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Enguerrand de Marigny; próximo demais do tesouro, foi o primeiro bode expiató-
! rio entregue pela monarquia à vingança do povo, para que suportasse melhor o
i inexorável endurecimento do sistema fiscal público.
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Temos de dar a devida importância ao pecado que, nos últimos anos do reinado, e
sem que se percebesse, insinuou-se no coração da casa real, muito perto da pessoa
do rigorosíssímó Filipe, o Belo. Estourou um último escândalo, dessa vez no

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