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BLINDING EDGE

Sobre A Vila e o cinema de M. Night Shyamalan

Bruno Andrade

Em todos os filmes a figura da morte como destaque; para cada morte uma
renascença; a cada renascença, uma mudança. Etapa final de um processo
interminável (a dor humana), tal mudança surge como o maior de todos os tabus,
ao mesmo tempo impraticável e imprescindível, fantástico e real. Esta mudança
inicia-se no momento preciso onde a crença abandona sua condição única de
crise e a dúvida completa passa a maquinar as poucas certezas (não só as dos
filmes como também as nossas) que ainda restam.
É através de todos estes movimentos que dramaticidade, poder e encantamento
se manifestam no cinema de M. Night Shyamalan. O diretor de O Sexto Sentido,
atualmente um dos mais célebres jovens realizadores do cinema norte-
americano, conseguiu com seus últimos três filmes consolidar uma posição hoje
virtualmente inédita na indústria cinematográfica Hollywoodiana: a do cineasta
que, trabalhando para os grandes estúdios na realização de filmes fantásticos,
"contrabandeia" para o interior destes filmes uma razão reflexiva que em muito
põe em xeque a idéia que se faz daquilo que costuma ser reconhecido como
filme-Hollywoodiano-de-gênero. É, portanto, de enorme interesse notar que com
o lançamento de seu último filme, A Vila, Shyamalan chega à encruzilhada da
situação que criou (e criou-se) ao seu redor após 5 anos e 3 filmes de sucesso.
Vendido como uma espécie de pós-Bruxa de Blair, filme-programático destinado
ao público adolescente, A Vila teve da comunidade crítica nacional e
internacional uma acolhida quase que completamente calamitosa, e apesar de
ótimas bilheterias a recepção entre o público mundial foi uma de enorme
estranhamento.
O fato é que já com Sinais, filme anterior a A Vila, uma radicalização de propostas
parecia enunciar-se na obra de Shyamalan: formal, temática, filosófica, mesmo
politicamente é possível perceber uma evolução enorme; um salto que, no
cenário pouco afeito a mudanças radicais que é Hollywood, continha ares pouco
saudáveis para a carreira de um jovem cineasta. Contudo, o filme conheceu boa
fortuna pública quando lançado, e foi neste momento que muitos começaram a
perguntar-se quanto ao próximo passo do diretor hindu-americano.
Eis que surge A Vila, e mais uma vez Shyamalan confunde mais que esclarece,
trazendo às telas mais um misto de tristeza resoluta e fé descabida. O que hoje
mais parece interessante numa análise de sua obra – fora o percurso bizarro que
traça com filmes tão peculiares e distintos entre si como O Sexto Sentido, Corpo
Fechado, Sinais e A Vila – é o apego incondicional às emoções mais absurdas
dos personagens de seus filmes, um apego que pode parecer simplesmente sem
medidas num primeiro contato (algo que provavelmente foi um dos grandes
responsáveis pela enorme repercussão à época do lançamento de O Sexto
Sentido) mas que num momento posterior talvez revele a real força do cinema
de Shyamalan. Mas o que seria essa força, e de onde ela vem precisamente?
Muito já se falou sobre a coerência temática do cinema de Shyamalan –
correlações entre crença e misticismo (caso de Corpo Fechado), medo e
descrença (caso de Sinais), angústia e insegurança (O Sexto Sentido, A Vila),
pós-vida e pós-morte (todos estes filmes). Mas talvez seja de maior interesse
procurar ainda uma outra chave de compreensão para aquilo que podemos
desde já chamar de função-Shyamalan, ou mesmo forma-Shyamalan. Se seus
filmes se estabelecem num tempo "pós" (essa questão será desenvolvida mais
abaixo) é principalmente por conta de um mecanismo decorrente deste momento
do após, do depois, e que ajuda a colocar os dramas de Shyamalan junto àquilo
que de mais contemporâneo se realiza em cinema hoje (e que inclui obras tão
diversas quanto as do taiwanês Tsai Ming-liang e o americano Todd Haynes).
Trata-se do único fator que agrupa em um só tempo crenças e questionamentos,
absurdo e real, teologia e ciência; sem mais delongas, trata-se de um anseio real
pela dúvida, a dúvida primordialmente como sentimento e sentido (bom lembrar
que um dos filmes de Shyamalan se chama O Sexto Sentido) mas também como
um clamor pela espera, por uma espécie de "suspensão" de eventos e idéias
(talvez daí o sucesso de Shyamalan ao incorporar todo este repertório de
conceitos a um gênero cinematográfico, o suspense).
***
Ainda na primeira cena de A Vila assistimos a um enterro. Um grupo de pessoas
observam de longe a cerimônia, onde um pai lamenta-se diante da lápide do filho
recém-morto. O filme se passa num pequeno vilarejo do século XIX, mais
exatamente no ano de 1897. Este vilarejo é cercado por uma floresta onde vivem
estranhas criaturas, às quais os nativos se referem apenas como "aqueles-dos-
quais-não-falamos". Em termos de trama e intriga do filme tratam-se apenas de
criaturas, de monstros; mas de que maneira estes-dos-quais-não-se-fala se
inscrevem no cinema realizado por Shyamalan, no projeto que o cineasta vem
edificando desde O Sexto Sentido? Afinal de contas, quem são? Pois talvez
sejam os mortos das tragédias que iniciam as narrativas de A Vila e Corpo
Fechado; talvez sejam monstros e fantasmas como aqueles que assolam os
protagonistas de Sinais e O Sexto Sentido; talvez sejam esta face do mal capaz
de um acordo com a inocência como visto em Corpo Fechado e O Sexto Sentido.
Porém, antes de serem qualquer uma destas coisas eles são apenas e tão-
somente um mistério, este mistério que só consegue existir em sua plenitude
após um momento em que muito se fez e muito aconteceu, um momento em que
é preciso dizer "Basta" e pôr fim a alguma coisa: um mundo, uma vida, a
maldade, uma ameaça, medo, apatia, descrença e mesmo crença.
De tudo isso surge a necessidade de discutir a maneira como a obra de
Shyamalan se inscreve num momento "pós": tragédias, acidentes, traumas,
tristeza, loucura, fantasmagorias... Enfim, tudo aquilo que ativa este processo de
dor à qual os protagonistas invariavelmente reagem: a perda da amada e
subsequente perda da crença do padre Mel Gibson em Sinais; os encontros
aterrorizantes que o garotinho Haley Joel Osment em O Sexto Sentido trava com
fantasmas; a desilusão com a qual o guarda Bruce Willis preenche todos os seus
dias após ter anulado sua função de super-herói e homem invencível em Corpo
Fechado. Mas é em A Vila, mais que em qualquer outro filme, que essa idéia do
momento-pós alcança uma espécie de ápice, chegando mesmo a algo próximo
de um esgotamento e um paroxismo completo (não por acaso o filme começa
com a já citada cena de enterro). Existe uma desolação enorme partilhada pelos
personagens do filme, talvez por conta do impossível que é o abandono desta
"vila" em favor da travessia pela floresta onde residem "aqueles-dos-quais-não-
falamos", ou talvez pelo sentimento de que será impossível a manutenção da
harmonia que durante tanto tempo preencheu este espaço improvável que é "a
vila".
***
O que o espectador talvez redescobre com os filmes de Shyamalan – e
principalmente com A Vila – é justamente a possibilidade de que o cinema
fantástico ainda pode verificar a existência de humanidades, em outras palavras
de personagens. Tratam-se não mais de meros corpos que balançam e correm
de um lado para o outro ao serem perseguidos pelo assassino psicopata
(geralmente na sua encarnação mais esgotada) mas de personagens que se
apavoram com o puramente abstrato, que possuem medo daquilo que é de
qualquer maneira absolutamente inverossímil (invasão de alienígenas, mundo
povoado por fantasmas e monstros, super-vilões). Ainda é muito cedo para
responder se devemos inscrever ou não Shyamalan no panteão dos grandes
realizadores de cinema fantástico – ao lado de nomes como Alfred Hitchcock,
Jacques Tourneur, John Carpenter, Fritz Lang, Mario Bava e muitos outros. O
fato é que com A Vila o cineasta se inscreve no que de melhor se realiza em
cinema hoje, e isto já nos diz o bastante sobre o que esperar deste fantástico
homem de cinema que é Shyamalan.

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