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DIREITA E ESQUERDA SÃO ARTIFÍCIOS RETÓRICOS; NÃO SE DEIXE

ENGANAR

Falar em esquerda e direita é participar de um jogo retórico que serve aos interesses
de apenas um dos jogadores. Quase sempre, quem dá as cartas é a esquerda.

Não perca seu tempo classificando as pessoas, os partidos e as bandeiras


entre esquerda e direita. A classificação existe apenas no discurso, não na
realidade, e é uma ferramenta retórica para criar conflitos, marcar posições e
demonizar adversários. Mais do que isso, falar em esquerda e direita é
participar de um jogo. Um jogo retórico que serve aos interesses de apenas um
dos jogadores. Quase sempre, quem dá as cartas é a esquerda.

Funciona assim: o primeiro lance é da (autodeclarada) esquerda. Ela olha uma


dada situação social vista como problemática e a interpreta como uma
instância de luta de classes: um lado mais forte que oprime um lado mais
fraco. A esquerda então arroga para si a defesa do lado mais fraco/oprimido,
que envolve algum tipo de compensação para esse lado e punição do lado
opressor. E a direita, o que faz? Fica com a inglória incumbência, que ela
aceita de bom grado, de defender o lado mais forte contra o ataque da
esquerda que quer balançar o status quo.

Isso vale desde os casos clássicos do conflito, como a situação dos


trabalhadores. A esquerda arroga para si a defesa da causa dos operários e a
direita fica com a defesa dos empresários. Sabemos que na prática não é
nada disso: está cheio de empresário de esquerda e de sindicalista de
direita. Além disso, essa conveniente dicotomia exclui muita gente: o
desempregado, o informal, o pequeno empreendedor, o autônomo, o
profissional liberal, etc. Mesmo assim, a leitura “pega”, e acaba sendo a lente
básica pela qual muitos leem a realidade e se posicionam.

O mesmo jogo serve também para contextos totalmente díspares e nos quais
encontrar um oprimido e um opressor é bem menos claro. Penso em dois bem
aplicáveis ao Brasil, que mostram como é arbitrária essa divisão.

O primeiro é o aborto. A narrativa dominante nesse tema é a que pinta a


mulher como vítima e os homens ou a sociedade machista patriarcal como
opressores, que não querem que a mulher seja dona de si, seja feliz, etc. Mas
a própria esquerda brasileira, que tem em suas raízes ainda muito da teologia
da libertação católica (ferrenhamente anti-aborto), oferece uma narrativa
alternativa: o aborto é uma situação dramática na qual a mulher é jogada por
um sistema injusto (pois, tendo condições, ninguém decidiria abortar), e as
grandes empresas que ofertam e lucram com o aborto são parte do aparato
opressor do capitalismo global. De que lado ficar? Dos que negam direitos
reprodutivos ou dos que apoiam a agenda de multinacionais?
Ou pensemos no caso do transporte. Há luta de classes aí? Não havia, não
precisava haver, mas agora há! Ônibus, usado pela maioria pobre, e bicicletas
– preferência de uma minoria rica – são o lado oprimido. Quem aposta neles é
esquerda. Os egoístas motoristas de carro são os opressores; quem os
defende é a direita.

Há uma série de questões que revelam o absurdo dos termos esquerda e


direita: ambientalismo (cada vez mais nossa direita estabelecida coloca as
causas verdes como aliadas à esquerda), industrialização, povos indígenas e
tradicionais, pequena vs grande agricultura, grande empresariado, política
externa, e muitos etc.

As pessoas que migram pra direita têm sido aquelas que sentem o sistema
balançar e abraçam a leitura da luta de classes, só que para defender o lado
mais forte, em geral criando espantalhos para demonizar o outro lado. Isso,
evidentemente, em nada ajuda a imagem de um contingente já associado à
raiva ou ao ódio. A direita, de alguma maneira, acaba por proliferar o “tiozão
reaça que só escreve em caps lock”.

O pobre recostado recebendo bolsa-família e fazendo filhos, o


maconheiro de Humanas que anda de bicicleta e quer revolução, o
proletário pelego, o negro racista, a feminazi beligerante; figuras que a
direita adora odiar. Todos têm alguma base numa realidade parcial –
assim como os estereótipos que a esquerda adora odiar! – mas são, antes
de tudo, criações da imaginação ideológica. E nessa guerra de ódios, foi
dado à direita o lado perdedor: o lado do mais forte, que naturalmente não
desperta a simpatia popular.

A real resposta à mentalidade esquerdista está na recusa do jogo da luta de


classes; está em apresentar soluções que não passem nem pela defesa de um
grupo e nem pela demonização de outro. Está em descobrir as lógicas que
desarmam o discurso que só enxerga opressores e oprimidos.

A realidade social não é fundamentalmente uma realidade de exploração, de


transações perde-ganha. Essas existem, mas são abusos. A luta de classes
(ou melhor, de grupos) é a realidade básica apenas em um campo da vida
social: a política, que instaura cabos de guerra por onde passa. Fora dela, o
padrão de interação humana numa sociedade que reconhece direitos
individuais é o da relação voluntária, que depende do ganha-ganha – as
trocas no mercado são uma modalidade desse tipo de interação. Essa é a
relação que deve ser estimulada e ganhar mais espaço, pois é ela que eleva a
qualidade de vida de todos no longo prazo.
Joel Pinheiro da Fonseca é paulista, formado em Economia pelo Insper e
mestre em Filosofia pela USP.

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