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A Paisagem Melancólica

O policial (William Petersen) adentra o espaço particular do psicopata (Brian


Cox): uma cela com paredes brancas, grades brancas, uniforme branco. Mesmo
o tom da voz de Cox é de um controle que parece amplificar o tom asséptico ao
seu redor, que a câmara vai aos poucos catalogando com fria precisão. O dialogo
se torna agonizante, e vai aos poucos se apossando da imagem até a explosão
do policial que, num rompante, abandona o espaço e corre pelos corredores do
hospital psiquiátrico onde, numa alternância de planos gerais e subjetivos,
vemos uma explosão de branco e vidro. Esta é uma das sequências principais
de Dragão Vermelho (86), de Michael Mann, e está em completo contraste com
os posteriores filmes de Hannibal Lecter com Anthony Hopkins. É uma cena
inquietante de horror estilizado. Quantos outros cineastas considerariam usar a
cor branca como uma arma estética apontada contra o espectador?
Dragão Vermelho é um enervante thriller psicológico, em que até a sequência
final a violência é quase nula, mas onde o horror não deixa de se instalar. Sua
lógica é a do espaço penetrado, do assassino que mata famílias no silêncio da
madrugada. Todos os crimes acontecem antes do filme começar, portanto, o que
existe para significar a violência é o vazio das cenas dos crimes: casas de
famílias de classe média alta deixadas exatamente como o assassino as
abandonou. Aqui se encontram dois dos elementos-chave do cinema de Mann:
primeiro, a ideia de espaço privado que o homem domina e que está sempre
prestes a ser interrompido. Do ladrão James Caan tendo que lidar com as
consequências de se aliar a uma grande organização no excelente longa de
estreia Profissão: Ladrão (81), a Muhammad Ali tendo que abrir mão do seu
cinturão de campeão de boxe ao se recusar a lutar no Vietnã. O homem solitário
está sempre tentando cultivar seu próprio lugar privado e sempre sendo
atropelado pela história.
Ali (01) é, neste sentido, essencial. Um afresco histórico em que cerca de dez
anos de história americana são revistos pelo olhar de Muhammad Ali. Isso é
levado ao limite em sua espetacular abertura: uma montagem de cerca de dez
minutos em que se alternam cenas do biografado treinando, um show de Sam
Cooke, flashbacks particulares e algumas imagens históricas em que se leva ao
limite a ideia de inserir este homem no seu tempo, de filtrar a história por este
olhar particular, que insiste em permanecer no seu ritmo próprio enquanto
tromba sem parar com ela.
O que as cenas de grandes casas desabitadas em Dragão Vermelho também
revelam é justamente esta ideia de espaço vazio tão importante para a estética
de Michael Mann. Todo filme do cineasta, mas em especial os policiais, fazem
uso constante desse recurso. Mann filma as grandes cidades (invariavelmente
Los Angeles) como se filmasse as grandes planícies num faroeste. A área
urbana surge como um grande espaço desolado. O táxi a rodar pelo centro de
Los Angeles em Colateral (04), ou de forma menos direta, a maior parte das
cenas de confrontos dramáticos domésticos em Fogo Contra Fogo (95), que se
desenrolam sempre em apartamentos com grandes janelas que permitem que a
paisagem urbana se instale na imagem. Poucos cineastas põem tanta ênfase na
direção de arte e, especialmente, na escolha de locações como Mann, e
percebemos porque quando a menor discussão entre marido e esposa acabe
sendo totalmente reposicionada pela grande metrópole que a assiste ao fundo.
A cidade é um personagem, concreto, asfalto e vidro poucas vezes se mostram
tão expressivos na tela como em filmes como Profissão: Ladrão e Fogo Contra
Fogo. Em Colateral, o cineasta coloca a dramaturgia em último plano (é o único
dos filmes importantes de Mann que ele não escreveu) em favor de permitir que
ele reimagine a geografia da área central de Los Angeles com a ajuda de
câmeras digitais. Um veículo para Tom Cruise, usado como desculpa para
permitir que o diretor experimente com o suporte e sua cidade. O próprio filme
lança mão da ideia de experimentação de jazz que tem muito mais a ver com
sua lógica de encadeamento de imagens do que a lógica do roteiro funcional,
mas banal, que, a princípio, serviria de base para o filme.
Se Colateral não é um dos melhores filmes de Mann é justamente porque lhe
falta uma certa densidade literária que encontramos em outros trabalhos. A
impressão de que, paralelo a ação principal, existem diversas outras; que mesmo
o menor dos personagens habita um universo próprio, o que se completa no
desejo por autenticidade visto nos filmes (Mann gosta de apontar que Profissão:
Ladrão inclui pontas de legítimos ladrões de joias). Em Fogo Contra Fogo – um
projeto que Mann já acalentava desde antes de sua estreia – em que as três
horas de filme apresentam mais de vinte personagens de importância, temos a
impressão de estarmos diante de um amplo universo com diversas alternativas,
o que com frequência faz com que desejássemos que o filme gaste mais tempo
sobre determinado detalhe, expandisse determinada sequência, etc. É um raro
filme contemporâneo que efetivamente faz valer sua estrutura épica, mesmo
que, a princípio, sua história a respeito das semelhanças entre policiais e ladrões
possa parecer rotineira.
Os policiais de Mann guardam certo parentesco com os policiers franceses,
dirigidos por nomes como Jacques Becker e Jean-Pierre Melville. Seus policiais
e criminosos sempre nos passam a impressão de serem os homens mais
solitários do mundo. Há sempre a impressão de um certo peso, com um clima
existencial que parece existir mais para criar uma atmosfera. É sobretudo um
cinema de profunda melancolia, são filmes entrecortados por um desejo de algo
que parece estar para além da imagem, algo que não se consegue definir. O
excesso de grandes vidraças nas casas e apartamentos dos filmes de Mann
parecem apontar justamente para esta ideia, funcionando como verdadeiras
grades de prisão, quanto mais em relevo podemos por o pano de fundo, mais
estamos desconectados dele. Uma das cenas mais icônicas de Dragão
Vermelho é justamente a imagem de William Petersen pulando sobre uma
parede de vidro. O crítico franceses Jean-Baptiste Thoret descreveu este efeito
como “a síndrome de aquário”: são personagens presos numa ilha igual a um
pequeno aquário a imaginar o oceano, “mas o que vemos para além da nossa
gaiola de vidro parece um outro aquário, maior, mas ainda assim idêntico. Depois
de um tempo, aprendemos a viver com isso. Alguns abandonam qualquer
impulso de sair, enquanto outros, através do cansaço, resignacão ou simples
lucidez, terminam por descer as profundezas, deixando com os demais a tarefa
de viver com os restos” (1).
Ficamos então com um cineasta que trabalha devagar (o novo Miami Vice é só
seu nono longa, apesar de ter começado a filmar em 81), cuja obra permanece
pouco considerada (salvo por O Informante , de 99, nenhum dos seus filmes teve
ótima recepção a época do lançamento), apesar dos filmes individualmente
parecerem cada vez melhor com o passar do tempo. Sobretudo ficamos com um
cineasta que acredita no poder expressivo das imagens. Já que começamos com
Dragão Vermelho, é útil retornar a ele. Alguns anos atrás, quando Brett Ratner o
refilmou, numa grande produção, ele refez algumas cenas quase plano a plano,
só que o clima inquietante, a contemplação de horror, nada disso estava lá.
Pode-se copiar o estilo, mas não se pode copiar a convicção de um grande
cineasta como Michael Mann.

(1) Thoret, Jean Baptiste. Le Aquarium Syndrome in Simulacres no. 3 (Verão


2000). Ed. Rouge Profound

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