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Adros do Tempo

Maria Trika

1. “(…) Foram recorrer aos poderes de Iroko. Juntaram-se em círculo ao redor da árvore
sagrada, tendo o cuidado de manter as costas voltadas para o tronco. Não ousavam olhar
a grande planta, pois, os que olhavam Iroko de frente enlouqueciam e morriam. ” – Itan
sobre Iroko. Orixá muito antigo, que é a própria representação da dimensão Tempo.
10,2. Sabe quando você se depara com algo prisco (que pertence a tempos idos; antigo,
velho, prístino.)? Como quando olhamos para uma pedra, uma montanha ou uma árvore
muito grande e bruta?
17,1. Antes do filme começar, nos é apresentado um vídeo com o próprio diretor, M.
Night Shyamalan, falando do valor de ver um filme em uma sala de cinema.
21,7. Lembrei que já passaram quase dois anos sem ir a uma.
24. É a primeira vez que eu e Raquel vamos ao cinema. Mesmo após quase um ano juntas.
26,3. O filme começa. Vemos um plano de uma pequena van em uma estrada bonita a
caminho de um resort. Ouvimos uma música romântica cantada por uma voz doce e
infantil. Dentro da van, um casal com seus dois filhos: Trent (Nolan River), de seis anos,
e Maddox (Aleza Swinton), de onze. A mãe elogia a voz da filha e diz estar curiosa para
ver como sua voz ficará quando for mais velha.
37,8. Shyamalan deposita pequenas pistas em seus planos. Sempre existe algum plano
que concentra quase todo o conceito do filme, como na cena inicial de Sinais (2002), em
que ficamos observando o quintal da casa por alguns segundos, até perceber estranhas
oscilações em alguns pontos da imagem. Com o movimento da câmera, percebemos que
a imagem está sendo mediada pela janela. O vidro, mesmo com sua transparência e ‘
“invisibilidade”, interfere na forma com que enxergamos e todo o conceito do filme vai
trabalhar essa questão do visível e do invisível (aquilo que é sagrado ou que está para
além do nosso mundo) e como isso pode transformar e decodificar nossas crenças.
56,2. A família se hospeda em sua suíte e – voilà!) – temos aí nosso plano conceitual: a
câmera define um centro e desliza suavemente para o lado, onde percebemos outra
situação paralela, e retorna. Uma oscilação, um movimento cíclico, como uma onda que
vai e vem. Esse plano será retomado algumas vezes no filme. Todas em momentos
definitivos para a trama.
65,4. Seguimos acompanhando as férias familiares em um lugar paradisíaco, que “por
sorte” foi encontrado na internet. Aos poucos, percebemos alguns problemas de saúde na
mãe, ficamos sabendo sobre seu possível divórcio e somos também apresentados a outros
personagens hospedados ali.
72,3. O gerente do hotel faz uma proposta inédita e irrecusável, apenas para alguns
hóspedes: passar o dia em uma ilha deserta de uma reserva natural com vegetação e corais
compostos por um mineral muito raro. E já sabemos que: fudeu.
79,2. Obviamente eles aceitam e a tensão começa. Nós, espectadores, já sabemos que vai
dar merda, mas eles não.

83,8. A ilha é toda protegida por um cânion. O mar é bem forte, com ondas imensas
debatendo-se constantemente nas rochas. A câmera nos apresenta de forma serena tudo
ali, inclusive os corpos das crianças brincando na água, a pele sob o sol, o toque das coisas
e a existência delas. A ilha parece um oásis do tempo na lógica socializante, algo que se
manteve puro.
95,3.
97,6. Encontram um corpo morto na ilha.
99,9. Todas as mortes do filme vêm acompanhadas de um respiro. Elas são sentidas.
Talvez uma herança dos filmes de Spielberg.
104,5. Quando a morte acontece, existe primeiro um respiro entre as cenas, a câmera se
delonga mais no plano ou mostra algo da paisagem, as falésias, o encontro da água com
a areia ou as ondas do mar batendo nas rochas. Em seguida, assim que o fim da vida se
faz, algo novo, uma nova possibilidade é aberta na narrativa, seja a interferência da ilha
nos corpos, seja uma nova ideia para sair dali.
116. Novamente temos a ideia de ciclo na construção do filme. Todo fim leva a um início.
118,3. Em uma sequência de cenas filmadas de forma muito curiosa – com a câmera bem
perto dos corpos, com movimentos frenéticos e enquadramentos sempre ocultando parte
dos personagens, dos acontecimentos e dos gestos -, começamos a sentir um
estranhamento maior, dessa vez acompanhado pelos personagens.
127,5. Começamos a perceber pelo corpo o mistério daquele lugar: o tempo passa em
uma velocidade extrema, onde 24 horas equivalem ao envelhecimento de uns 50 anos.
132,1. De início, as crianças Trent, Maddox e Kara (outra hóspede, também com seis
anos) sofrem as transformações de maior impacto, com algumas formulações muito
bonitas sobre no que este crescer implica: não somente uma alteração física, mas também
na forma de lidar com o mundo, o aumento de cores e informações na cabeça… Eles
passam pela primeira e, talvez, a mais evidente metamorfose.
143,6. Vamos acompanhando essa espécie de maturidade imatura que eles alcançam,
entre posturas adultas com rompantes de ideias infantis e uma impulsividade ou
ingenuidade acerca das responsabilidades que começam a assumir. Agora, eles são,
teoricamente, adultos e possuem outro papel para executar. No entanto, essa aceleração
temporal – evidente em seus corpos – não possibilita um verdadeiro processo de
maturação interna. Percebemos isso de forma mais evidente na cena em que Trent
descobre a gravidez de Kara, sendo que poucas horas antes ele não compreendia, de fato,
o que era sexo ou como era o processo de procriação. Extremamente nervoso e em
choque, Trent começa a gritar inúmeras decisões importantes de maneira frenética. Diz
que a ama, que irá casar com ela e uma série de falas atreladas a esse ideal romântico do
“felizes para sempre”. No entanto, ao mesmo tempo que assume tamanha
responsabilidade, ele faz “birra” com os pais, os culpando pela separação, e por suas
próprias ações.
171,2. O tempo, nessa intensidade, mesmo mantendo sua linearidade, é um caos.
173,5. É preciso o tempo de passar por essas pequenas transformações e o tempo se
adaptar a elas.
178,1. Shyamalan interpreta o personagem responsável por deixar todos os hóspedes na
ilha, os quais segue observando e registrando com câmeras, binóculos e equipamentos de
alta tecnologia. O papel de seu personagem é, de alguma forma, conduzir a experiência
dos personagens no tempo, registrando e compondo a narrativa do experimento. Como é
(ou pode ser) o papel do diretor.
189,6. A passagem do tempo passa a manifestar-se nos mais velhos. Agora, no outro
extremo, as mudanças tornam-se novamente perceptíveis. Os pequenos desenhos da idade
começam a se apresentar com mais força, não somente marcando mais as linhas de
expressão, tornando os cabelos brancos, a pele mais flácida e rugosa, como alterando a
capacidade daqueles corpos. O filme torna-se mais agressivo, e parecemos assistir a uma
série de performances – algumas com um tom mais mitológico. No caso de Chrystal
(Abbey Lee Kershaw), que possui uma deficiência de cálcio – que faz com que seu corpo
torne-se quebradiço – e uma preocupação excessiva com a estética, o envelhecer
manifesta-se como um processo monstruoso, quase que tornando a uma criatura fantástica
grega. Em outros, algo mais poético. Prisca (Vicky Krieps), em uma cena super bonita,
descobre ter ficado surda de um ouvido, enquanto Guy (Gael García Bernal) começa a ter
problemas de visão. As limitações físicas da idade alteram a percepção do mundo dos
personagens e, por sua vez, do filme. A captação da imagem e som seguem a mesma
lógica, utilizando esses recursos para reforçar o suspense da trama.
221,8. Os gestos, o ritmo, o silêncio, tudo mudou. O envelhecimento para esses
personagens apresenta-se quase como um rito, uma dança do fim.
228,7.”A meu ver, todos os elementos são fluidos. A própria pedra é fluida: uma
montanha se desagrega, torna-se areia. É unicamente uma questão de tempo. É a curta
duração de nossa existência que nos faz qualificar como “duro” ou “mole” esse ou aquele
material. O tempo desestabiliza esses critérios.” – citação de Giuseppe Penone no livro
Ser Crânio, de Georges Didi-Huberman. Nesse livro, Didi-Huberman amarra alguns
pensamentos de artistas e estudiosos sobre a matéria das coisas e o processo de
transmutação delas, como pequenas marcas que vão se formando em nosso crânio, ou o
como uma pedra é esculpida pelo rio (e vice-versa). Olhando dessa forma, a matéria acaba
se tornando algo com grande potencial abstrato.
249,4. O tempo faz isso, vai redimensionando as coisas.
254. Talvez a velocidade dos acontecimentos na trama seja o tempo da percepção que
uma pedra ou um cânion teriam sobre nós.
258,6.
260,9. Retomando a pergunta do início: sinto que, nessas situações, algo dentro da gente
é despertado por esses espaços que estavam antes de nós e vão continuar depois, um
sentimento perturbador, um desespero que fica oscilando entre o fascínio e o pavor.
Nossos corpos entram em choque. Completamente paralisados pela materialização do
tempo e nossa pequenez diante dele. E, de alguma forma, isso nos conecta com todos e
tudo ao nosso redor. O tempo nos faz ser parte do todo.
274,7. Assim que subiram os créditos, Raquel disse sobre como as letras que aparecem
ao fundo vão ganhando serifa e se transformando de fontes mais contemporâneas para
fontes antigas.
0,31. Dedico esse texto a ela.

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