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A CONQUISTA DA HONRA

Clint Eastwood, Flags Of Our Fathers, EUA, 2006

Em Aqui e Acolá, do Grupo Dziga Vertov, Godard inicia seu percurso de


questionamento explícito das imagens, de sua fabricação e circulação, a partir
da constatação da impertinência de uma narração sobre um outro que funciona
em prol de quem narra. Notadamente, um outro distante e assombrado pela
morte, pelo fim. Um outro já inexistente e, ao limite, incompreensível, mesmo
para as imagens que o acolhiam em sua expressão “genuína”. Como se qualquer
enunciação sem a possibilidade, virtual que fosse, de um contraplano, estivesse
também fatalmente assombrada pelo desaparecimento. Uma imagem chama
outra imagem: todo questionamento de uma expressão (um discurso, uma
narração) sobre o outro levaria, pois, a um questionamento sobre si.
Ao desenvolver o projeto de A Conquista da Honra, Clint Eastwood parece ter
percorrido um caminho curiosamente inverso a este: a morte e a iminência de
desaparecimento (a memória que se perde) conduz a um questionamento de si
e das imagens que se produz, que por sua vez traz a necessidade do
contraplano. É desta forma que A Conquista da Honra parte de um sentimento
de perda pela morte que se desdobra numa narração de “investigação” sobre
uma fotografia, em seus múltiplos agenciamentos com a realidade (fabricação e
circulação), e termina por chamar o contraplano direto desta morte (Cartas de
Iwo Jima).
Se todo este processo de responder a um questionamento sobre si com um olhar
generoso sobre o outro nos parece absolutamente radical dentro de um cinema
que contenta-se em produzir imagens iguais como se fossem diferentes e que
se mascara como lugar de enunciação (toda a dissertação de Godard em Nossa
Música sobre o plano e o contraplano no cinema clássico americano e suas
implicações políticas), não é apenas pelo seu impacto político como gesto, em
plena era Bush, mas principalmente pela constituição própria a cada um destes
olhares. Sem abandonar o princípio narrativo central do cinema americano,
Eastwood elabora dois filmes que se complementam e que dialogam entre si,
mas que não respondem a rigor um ao outro. São narrativas cinematográficas
diversas para realidades diversas, que, no entanto, testemunham a todo
instante, cada qual à sua maneira, sua origem, seu ponto de partida.
A Conquista da Honra é um grande mergulho em nado livre pela América,
composto de emoções que vão ligando-se umas às outras por diversos
caminhos. Em sua imponência discretamente “independente”, o filme constrói
um labirinto discursivo de grande impacto sensível. Se em Sobre Meninos e
Lobos, por exemplo, o discurso corria sub-repticiamente entre os interstícios de
uma sociedade construída em tramas (a investigação policial como âmago de
uma nação), em A Conquista da Honra ele é escancarado como tema e
estratégia (ou retórica) cinematográfica. Eastwood abraça a grandiose do gênero
para questionar a própria construção de um mundo em dimensões ampliadas
(de heroísmo, de poder, de domínio).
Partindo de uma imagem concreta (a famosa fotografia no Monte Suribachi)
desdobrada em duas imagens abstratas e complementares (dois conceitos que
erigem a nação): a bandeira americana e o hasteamento da bandeira, A
Conquista da Honra discorre sobre o mito (a construção dos efeitos públicos de
uma imagem, cuja reverberação profunda é a longo prazo) e o não-mito (a
realidade pessoal de quem origina as imagens como um momento que
desconhece seu depois). Os personagens estão imersos em acontecimentos
que os ultrapassam (sobre os quais eles não detêm domínio algum) e os afogam
em sensações (medo, paranóia, ternura, saudade). Trata-se de uma história que
não pode ser contada linearmente, que está perdida num turbilhão de diferentes
facetas (de cacos de memória) que ignora a unicidade – seja dos discursos, seja
das imagens –, e, desta forma, expõe suas fraturas.
O EUA não é uno. Por trás de sua aparência de solidez espalham-se diversas
rachaduras e fantasmas. Os heróis não são heróis, o “americano autêntico” é um
“fracasso”, a foto foi tirada numa reprodução do acontecimento original, os
homens na foto não são os responsáveis pelo ato, os nomes glorificados não
são os daqueles presentes na imagem, os soldados nem sempre diferenciam os
inimigos dos companheiros na hora de atirar. E a vitória não se dá (a ver) no
campo de batalha. Mais do que o aspecto “denunciatório” da exposição desta
“crise”, Eastwood parece querer apontar que as coisas não estão exatamente
onde achamos que elas estão, que é preciso olhar de mais perto e olhar além.
Este “olhar além” é o que transforma o filme numa sucessão de imagens em
tempo e espaços diferentes, cuja organização caótica se dá por associações
sensíveis, promovidas pelo “olhar de mais perto” (olhar com os personagens),
nos conduzindo a reflexões impactantes. Os estados emotivos de Bradley,
enfermeiro da tropa – ocupação que já o coloca em posto ligeiramente
distanciado, de observação –, que comprimem as distâncias entre o solo
americano e o campo de batalha, transformam o mundo numa coisa só,
assombrada por um único grande medo: o da morte. Demônio primeiro de toda
guerra concreta, ela solapa de ambos os lados todo o resto que se ergue acima
dela, todos os castelos de cartas (marcadas) que fazem a História.
As enunciações sobre a construção controversa do “herói americano” apontam
então para a sua gênese (sócio-histórica e cinematográfica): a política de Estado
de sustento através da iconografia e a edificação de valores culturais por meio
de uma “evolução” dramática. Se Bradley é um não-herói pelo seu desmonte da
ideologia cultural dominante, ele é percebido como herói pelos códigos
dramáticos consagrados pela história do cinema. E Clint Eastwood confronta, a
todo instante, esta história em sua obra, seja passeando pelos gêneros, seja
retrabalhando “narrativas americanas” (elaboradas, elas mesmas, em torno de
iconografias). É desta forma que um “filme de guerra” transforma-se numa
quase-denúncia ideológica, que a confusão narrativa vai cedendo lugar a uma
montagem paralela quase didática e que o homem comum ganha aos poucos,
por vias tortas, o mérito de um verdadeiro herói.
E é por isso que não há “honra” em Flags Of Our Fathers, nem muito menos
“conquista”. Há, sim, uma tentativa de compreensão das “bandeiras” erguidas
pelas gerações que deram origem a homens da América de hoje. Reescrever a
História, para Eastwood, é menos fazer justiça a grandes nomes ou re-narrar
grandes acontecimentos e grandes glórias, do que resgatar memórias afetivas
que exponham as ambiguidades da formação de uma América mais múltipla e
efervescente do que muitos gostariam de crer. E, para isto, é fundamental deixar
claras as bases de onde se parte, reconhecer e assumir sua origem, para só
então problematizá-la, questioná-la – e ser capaz, por fim, de lançar sobre o
outro um olhar digno, sincero e honesto.

Tatiana Monassa

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