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Drácula de Bram Stoker e Segredos de Sangue: figurino, uso de cores, sexo e morte

em representações cinematográficas 1

Isabel Wittmann, PPGAS-UFAM.

Resumo: Este artigo analisa os filmes Drácula (Dracula, 1992, dirigido por
Francis Ford Coppola) e Segredos de Sangue (Stoker, 2013, dirigido por Chan-wook
Park), ambos inspirados no livro Drácula, de Bram Stoker; e a construção de narrativa
sobre a sexualidade de suas protagonistas. A obra literária foi escrita em um local e
período marcado pelo moralismo vitoriano, em que o papel social da mulher era ligado
ao matrimônio e o lar. Através do uso de elementos como figurino e uso de cores,
estabelece-se um discurso que relaciona a sexualidade feminina ao perigo, através do
vampirismo.

Palavras-chave: gênero, sexualidade, análise fílmica.

A arte não existe no vácuo: é influenciada pelo contexto e pela sociedade em que
é gerada. O livro Drácula, publicado pelo escritor irlandês Bram Stoker em 1897, é um
romance gótico de terror, que rendeu diversas adaptações no cinema. Duas obras
cinematográficas baseadas no romance citado são Drácula de Bram Stoker (Coppola,
1992) e Segredos de Sangue (Park, 2013). Ambas têm em comum a temática com
subtextos sobre sexualidade e violência, que evocam a moralidade vitoriana de uma
maneira que não existe no material original. Ambas são protagonizadas por mulheres que
têm em sua trajetória o despertar de sua sexualidade marcado pela morte como
simbolismo.

O século XIX na Europa, época e local em que o livro citado foi escrito, foi
marcado pelo reinado de rainha Vitória na Inglaterra, entre 1837 e 1901. A monarca ficou
conhecida pelo seu moralismo e rigidez em relação às regras sociais. Sua influência foi
grande também devido ao fato de ter laços de parentesco com grande parte das cortes
europeias, através de seus filhos e netos. Viúva aos vinte e quatro anos de idade, a rainha
guardou luto até o fim de sua vida e através de seus atos influenciou uma onda de

1
Trabalho apresentado no I Encontro de Antropologia Visual da América Amazônica, realizado entre os
dias 04 e 06 de novembro de 2014, Belém/PA.

1
conservadorismo.

De acordo com Michel Foucault “a pudícia imperial figuraria no brasão de nossa


sexualidade contida, muda, hipócrita” (1999, p.9). Conforme o autor, até o século XVII
existia maior franqueza em relação aos costumes e uma maior frouxidão sobre o que era
considerado grosseiro, obsceno ou indecente. Com a o avançar do século XIX “a
sexualidade é, então, cuidadosamente encerrada”.

Conforme Cristian Carla Bernava, narrativas cinematográficas possuem certos


padrões que se repetem em relação aos personagens e vários pesquisadores já estudaram
o papel das mulheres e o lugar social por elas ocupado no contexto dessas narrativas.
Alguns paradigmas se construíram, sendo um deles

[...] construído durante todo o século dezenove, e que tinha como


principais características femininas a devoção, a pureza, a submissão e
a domesticidade. De acordo com Gilles Lipovetsky, a construção social
da mulher voltada ao lar como um modelo normativo que se deu no
século dezenove, elaborou-se a partir da negação da mulher como
indivíduo, igual e independente (2010, p. 70).
Por isso o que se espera dessas protagonistas é que tenham um papel assexuado
de submissão, ligando-as ao lar. A mudança desse padrão é um desvio, que as narrativas
mostram como indicador de perigo. Assim, vindo de uma obra idealizada nessa época, os
dois filmes analisados não se furtam de ter uma visão temerosa em relação à sexualidade.
Ainda de acordo com Pierre Sorlin:

um filme não organiza apenas uma ficção; ele coloca também alguns
personagens na presença de outros e instaura relações entre eles [...].
Colocando em relação indivíduos e grupos, cada filme constitui, no
interior do mundo fictício da tela, hierarquias, valores, redes de
intercâmbio e de influências. (apud BERNAVA, 2010, p. 26)
Ambos os filmes foram analisados tendo em mente esse conjunto de hierarquias e
valores que são apresentados e levando-se em conta como aspectos tais quais o uso de
cores e elementos do design de produção trabalham para construir mensagens para os
espectadores. Conforme Patti Bellantoni (2013), muitas vezes analisamos nos filmes itens
como roteiro, atuações e fotografia, mas esquecemos da importância da cor na criação de
percepções. “Cores certamente tem sua própria linguagem, que pode ajudar visualmente
a definir um arco do personagem ou uma camada da história” (loc. 543, tradução minha).
As cores influenciam o espectador e a forma como ele se sente em relação à cena, mas

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raramente essa manipulação é percebida de forma raciocinada.

Como escrito por Rose Satiko Gitiran Hijiki, “A capacidade de perceber


significados em pinturas (ou poemas, melodias, construções, potes, peças, estátuas) - e,
completo, no cinema- seria, como todas as outras capacidades humanas, produtos de uma
experiência coletiva que transcende” (1998, p. 104). Toda obra cinematográfica é feita
com intencionalidades: os elementos em cena não são dispostos aleatoriamente. Estes já
citados acrescentam camadas extras que se somam à trama e aprofundam a visão da obra
cinematográfica, permitindo, assim, perceber significados através da análise fílmica.

Todo o real percebido para pela forma imagem. Depois, renasce em


lembrança, isto é, imagem de imagem. Ora, o cinema, como qualquer
representação (pintura, desenho), é uma imagem de imagem, mas, como
a foto, é uma imagem da imagem perceptiva, e, melhor do que a foto, é
uma imagem animada, isto é, viva. Como representação de uma
representação viva, o cinema convida-nos para refletir sobre o
imaginário da realidade e a realidade do imaginário (MORIN apud
AUMONT et al, 1999, p. 236)
Drácula

Drácula de Bram Stoker2, dirigido por Francis Ford Coppola, foi uma produção
com orçamento relativamente enxuto em relação à escala da obra: estima-se que foram
gastos em torno de quarenta milhões de dólares. Locações e cenários foram reduzidos, os
efeitos especiais são em sua maioria práticos e a ênfase foi colocada no figurino, elemento
que não só auxiliou a narrativa, como ajudou a construir conexões entre os personagens.

“Como os figurinos atendem a demandas específicas para a composição dos


personagens, demandas estas que se encaixam na visão geral que o diretor tem sobre a
obra, raramente um figurinista consegue ser autoral3” (WITTMANN, 2014b). Neste filme

2
DRÁCULA de Bram Stoker (Dracula). Direção: Francis Ford Coppola. Produção: Francis Ford Coppola,
Charles Mulvehill. Intérpretes: Gary Oldman, Winona Ryder, Anthony Hopkins, Keanu Reeves, Sadie
Frost e outros. Roteiro: James V. Hart. Design de Produção: Thomas E. Sanders. Direção de Arte:
Andrew Precht. Figurino: Eiko Ishioka. Los Angeles: Sony Pictures, 1992. DVD (127min), color.
3
A ideia de autoralidade está vinculada à crítica. “Entre 1954 e 1964, os Cahiers du cinema, por exemplo,
tentaram estabelecer e defender uma ‘política dos autores’. Essa ‘política dos autores’ designava-se a
um duplo objetivo: revelar alguns cineastas (a maioria americanos), considerados pelo conjunto da
crítica diretores de segundo plano, e fazer com que se os reconhecesse como artistas completos e não
operários sem qualificação, técnicos sem inventividade pagos pela indústria hollywoodiana. [...] A
noção implica que o autor tenha um caráter, uma personalidade, uma vida real e uma psicologia e até
uma ‘visão de mundo’ que centrem sua função sobre sua própria pessoa e soa sua ‘vontade de expressão
3
a figurinista é Eiko Ishioka, uma profissional a quem se pode aplicar este rótulo: com
pouquíssimos filmes em sua filmografia, suas peças são facilmente identificáveis. É nítida
sua preferência por cores sólidas, as suas referências, como o barroco e o vestuário
tradicional japonês e as formas esculturais bem como o cuidado em relação a detalhes e
acessórios complementares. No filme, ela criou um clima de terror dramático, baseado no
estranho e dentro das restrições.

A adaptação do romance gótico sobre o famoso vampiro nesta obra


cinematográfica é realizada de uma forma que reflete o temor vitoriano em torno da
sexualidade, especialmente a feminina. “Sexo, perigo, paixão e sangue: todos esses
elementos podem ser identificados pela cor vermelha. Não é à toa que Eiko Ishioka
escolheu-a para representar Drácula” (interpretado Gary Oldman) (WITTMANN, 2014b).
Ainda no começo do filme, em 1562, quando jovem e humano, lutando pelo cristianismo
em Constantinopla, utiliza uma armadura na cor, com desenho intrigante em forma de
feixes que lembram um corpo humano sem a pele, desnudando os músculos. Drácula,
ainda não um vampiro, já é mostrado como fera, como um corpo latente e à mostra.
Conforme Patti Bellantoni, o vermelho é uma cor visualmente agressiva e tende a ser
sensual e erótica.

Vermelho intenso é como cafeína visual. Ele pode ativar sua libido ou
tornar você agressivo, ansioso ou compulsivo. De fato, vermelho pode
ativar quaisquer paixões latentes que você possa trazer ao filme. [...]
Porque tendemos a vê-lo primeiro, vermelho dá a ilusão de avançar
sobre nós” (BELLANTONI, 2013, loc. 714, tradução minha).

Imagem 1: Armadura de Drácula

pessoal’”. (AUMONT et al, 1999, p. 110). Dessa forma o profissional seria tão autor do trabalho de
sua responsabilidade quanto um escritor de seu livro, coordenando as atividades dos demais
trabalhadores sob seu cuidado, para a criação de uma obra com sua visão artística.

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Ao partir para a guerra, havia deixado para trás sua noiva Elisabeta (interpretada
por Winona Ryder). Por crer que seu amado havia morrido em batalha, ela se suicida,
condenando sua alma imortal ao inferno. Nesta sequência traja um vestido verde,
adornado com bordados: em fios dourados, ramos recobrem seu corpo. Esse motivo se
repetirá ao longo do filme, como veremos mais adiante. Em seu peito traz um dragão,
animal símbolo da ordem de Dracul, de onde o personagem principal tomou o nome.
Elisabeta levava em si o amor por ele.

Imagem 2: Elisabeta em seu vestido verde com ramos bordados.

O verde é a cor oposta ao vermelho em um círculo cromático, em que se


apresentam as possíveis combinações estre as cores. Quando duas cores ficam exatamente
opostas uma à outra, chamam-se cores complementares: essa oposição cria a combinação
perfeita em termos estéticos entre elas.

O verde é uma cor ambígua: pode estar presente em uma planta saudável ou uma
carne apodrecendo (BELLANTONI, 2013). A interpretação depende do contexto e aqui,
relacionado a Elisabeta, unido aos ramos sempre presentes, demonstra como viceja.
Assim, marcando Drácula com o vermelho e Elisabeta com o verde, cria-se a percepção
de que eles são opostos que se completam: o primeiro marcado pela carnalidade e
animalidade e a segunda pelo afastamento desses elementos.

Devastado pela dor e pela injustiça que vê no fato de sua amada ser condenada ao
inferno, Drácula renuncia Deus, afirmando que levantará de sua própria morte para vinga-
la. Crava uma espada no crucifixo da igreja onde o corpo dela repousa e este jorra sangue.
Bebe-o para tornar-se um vampiro.

Tempo se passa e a trama se desloca para 1897. Outras personagens são


introduzidas: Mina (também interpretada por Winona Ryder) e sua amiga Lucy (Sadie
Frost). Elas são moças solteiras, mas tem pensamentos e ações diferentes a respeito de
5
sua sexualidade. Quando Lucy chega à casa de Mina, flagra-a observando uma edição do
livro As Mil e Uma Noites com ilustrações que representam atos sexuais. Ela demostra
interesse no assunto, ao mesmo tempo que desconforto em relação à ideia de consumar
seu futuro matrimônio com o jovem advogado Jonathan Harker (interpretado por Keanu
Reeves). Seus vestidos são em tons claros de azul, para realçar sua aura virginal. A cor é
relacionada à impotência: “Azul pode ser uma lagoa tranquila ou um manto suave de
tristeza. É quieto e distante. [...] É uma cor para pensar, não para agir” (BELLANTONI,
2013, loc. 2037, tradução minha). Além disso, seus trajes sempre apresentam algum
bordado em forma de galhos ou ramos, conectando-a simbolicamente a Elisabeta.

Imagens 3 e 4: Mina com seus vestidos azul claro, adornados com ramos.

Já Lucy comporta-se da forma oposta: coquete, aceita feliz o galanteio de três


pretendentes, um nobre, um médico da pequena burguesia e um americano novo rico. Não
por acaso veste-se de branco, como o fazem as noivas de Drácula, que usam trajes que
remetem aos gregos da antiguidade. “Em certa cena em que as duas amigas conversam
no jardim e uma tempestade causada por Drácula está se formando, o vestido de Lucy é
confeccionado com tecido tão fino que é possível enxergar a estrutura de sua anquinha4 e
vislumbrar que sob ele não utiliza nenhum tipo de anágua” (WITTMANN, 2014b). A
falta do que seria a roupa íntima da época sob o vestido é um indicador da maneira como
vê o próprio corpo, sem amarras. Conforme Paloma Coelho (2014, p. 132) “em muitas
produções, sobretudo hollywoodianas, a sexualidade feminina é vista como devastadora,
como ameaça à família e à ordem burguesa”. A personagem lida com sua sexualidade de

4
A anquinhas são uma estrutura utilizada sob o vestido para alterar o formato da saia. No final do século
XIX a moda ditava o uso de um volume maior na parte posterior da mesma. “O uso da anquinha
francesa, também chamada ‘rolo de nádega’ ou cul postiche (bumbum postiço), ampliou e deu forma
colunar à silhueta abaixo da cintura”. (LEVENTON, Melissa org. História Ilustrada do Vestuário. São
Paulo: Publifolha, 2009. p. 286)

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forma aberta, brincando com seus três pretendentes, mas afinal escolhe um deles como
noivo.

Imagens 5 e 6: O vestido transparente de Lucy.

Jonathan é contratado por Drácula para cuidar de negócios imobiliários. Precisa


se deslocar até a Transilvânia para tratar com o conde, que, envelhecido, se veste com
uma túnica clara e sobre ela uma capa vermelha, ambas com bordados em dourado. “Na
capa o padrão que aparece é novamente de dragões, o animal que lhe simboliza. Suas
mangas que se estreitam; sua gola, alta e rígida como de um quimono; e sua extensão
exagerada conferem-lhe dramaticidade” (WITTMANN, 2014b)

Drácula age de maneira sedutora em relação a Jonathan e é através do sexo


representado pelo vampirismo que o aprisiona em seu castelo: suas três noivas dominam
seu corpo e sugam seu sangue de maneira erótica. Seus corpos semidesnudo contrastam
com os vestidos que cobrem todo o corpo das moças da sociedade. Conforme Georges
Bataille: “O erotismo dos corpos tem de qualquer maneira algo de pesado, de sinistro”
(1987, p. 17), que nesse filme aparece vinculando a sexualidade feminina com a
possibilidade de morte, tanto para a mulher que a exerce, quanto para aqueles que
compartilham dela. Para o autor, há conexão entre a possibilidade de vida, vinda do
erotismo, e o aspecto luxuoso da morte.

Drácula, que havia visto um retrato de Mina e nela reconheceu Elisabeta, viaja
para Londres para encontrá-la. Esse fato é importante, pois na obra original não há
qualquer ligação entre as duas personagens. Ao relacionar Mina com a amada do passado
do conde, o filme acrescenta uma camada interpretativa e altera a motivação das ações do
personagem.

Ele não se aproxima dela imediatamente. Primeiramente seduz Lucy. Enquanto a

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jovem dorme, ele, em sua forma animalesca a atrai para o jardim. Ela sai de seus
aposentos já vestida de vermelho, cor que a liga a ele, que por sua vez crava os dentes em
seu pescoço de forma a transformá-la. Lucy feriu uma regra não escrita que diz respeito
ao comportamento sexual feminino: O espaço privado [...] estaria reservado para a vivência
da sexualidade feminina com o marido no quarto nupcial. Ou seja, a sexualidade da mulher só
seria permitida no âmbito privado, na intimidade do casal (COELHO, 2014, p. 135).

Imagens 7 e 8: Lucy sendo seduzida por Drácula e, posteriormente, adoecida após ser mordida
por ele. Nos dois momentos veste-se de vermelho.
O erro de Lucy, dessa forma, foi demonstrar abertamente que tinha desejos
próprios, em um período em que a mulher deveria esperar os avanços de seus pretendentes.
O vampirismo vem como uma punição pelo seu comportamento coquete, embora não
lascivo. Quando seu quadro se agrava e fica de cama, sua camisola também é vermelha,
frisando novamente a sua relação com o vampiro. A ameaça é ainda reforçada pelo fato
de a moça arrancar as próprias roupas e lançar-se sobre os homens que adentram seu
quarto.

Após seduzir e transformar Lucy, Drácula se aproxima de Mina. Ela troca o azul
claro pelo verde quando é avistada por ele pela primeira vez nas ruas de Londres.
Bordados de ramos adornam o traje, mas dessa vez de forma mais perceptível, em um
tom mais claro contrastante, ligando-a a Elisabeta e captando a atenção dele
irremediavelmente.

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Imagens 9 e 10: Mina com vestido verde e bordado de ramos, finalmente encontrando com
Drácula.
Lucy falece em virtude da infecção-vampírica e é enterrada com seu vestido de
noiva, sob pesar de seus três pretendentes. Se seu vestido de solteira era transparente e
utilizado sem roupas íntimas, este traje, por sua vez, é exagerado,

com gola alta e mangas longas, cobrindo todo seu corpo e escondendo
suas formas, não marcando sequer sua cintura. A jovem deveria levar o
casamento que nem chegou a acontecer junto consigo para seu túmulo.
Nessa lógica da moral vitoriana, o casamento marcaria a relação sexual
permitida dentro de normas de comportamento, bem como o controle
sobre o corpo feminino (WITTMANN, 2014b).

Imagens 11 e 12: Lucy provando seu vestido de noiva e depois sendo velada com ele.
Já que a ação vampírica corresponde ao ato sexual, o tratamento que Drácula
confere a Mina é diferente: ele a seduz, mas como amante, e não como monstro5. Após
saírem e verem as maravilhas do nascente cinema, ambos bebem absinto juntos. Ela usa
os cabelos soltos pela primeira vez, como um sinal de que está liberta da repressão que a
envolvia até então. Também utiliza um vestido em vermelho vibrante, deixando claro sua
inclinação em relação a ele. Drácula, por sua vez, veste uma casaca com ramos dourados
bordados, os mesmo de Elisabeta, de maneira que há uma troca recíproca de elementos
visuais que marcam o interesse amoroso. Eles estão abrindo mão de seus próprios
elementos marcadores de personagem para, assim, representarem no uso daqueles do

5
A monstruosidade opera nos limites da natureza humana e pode estar ligada a comportamento transgressor
ou excessivamente sexual ou erótico. “Conforme vários autores que trabalham o tema, o ‘monstro’ é,
por excelência, a marca hiperbólica de algo fora da ordem, seja ela ‘natural’, ‘sobrenatural’ ou, no
mínimo, fora dos ordenamentos conhecidos. [...] a categoria ‘monstro’ é a região que dá forma ao limite
humano, sendo seu oposto constitutivo, mas no qual a noção de humanidade não opera com a mesma
forma ou com os mesmos pressupostos [...] Dentro da nascente ciência sexual, todos aqueles que não
se encaixam no padrão de uma vida sexual heterossexual, monogâmica e com fins procriativos eram
vistos como potencialmente monstruosos” (LEITE JUNIOR, Jorge. Transitar para onde?
Monstruosidade, (des)patologização, (in)segurança social e identidades transgêneras. Estudos
Feministas. Florianópolis v.20 n.2 p. 559-568, mai.-ago. 2012).

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outro seu pendor.

Imagem 13: Mina com vestido vermelho e Drácula com casaca bordada com ramos.

Posteriormente Mina recebe uma carta de Jonathan relatando que está vivo,
debilitado e abrigado em um convento. Ela retrocede em sua afirmação visual e
figurinística de sentimentos e volta para o azul claro do começo do filme. Mas não é
qualquer vestido azul claro: é o mesmo de quando havia se despedido de seu noivo. Dessa
forma, retoma a relação com ele.

Viaja para encontra-lo o no convento, casa-se vestida de cinza, uma não-cor que
passa a adotar em seus trajes, porque toda a expansividade de sentimentos que
compartilhava com Drácula inexiste em seu casamento com Jonathan. Ele demonstra
interesse em ter com ela o mesmo tipo de experiência arrebatadora que compartilhou com
as noivas de Drácula. Não há nenhum lampejo de desejo entre os dois.

É por isso que Mina foge, luta para ficar com Drácula e então passa novamente a
usar um traje verde, demonstrando que é definitivamente sua amada. Esse final marca sua
agência, sua plena liberdade de escolhas sobre quem amar e quem manter a seu lado,
ainda que também a condene a ao inferno e a perda de sua alma, no contexto diegético6
da trama. A paixão invoca a morte, porque para quem ama, o amado se torna tudo o que
existe. O egoísmo e a perda da individualidade marcariam esse sentimento, que gera a

6
A diegese implica tudo aquilo que está dento do universo criado para o filme. “A diegese é, portanto, em
primeiro lugar, a história compreendida como pseudomundo, como universo fictício, cujos elementos
se combinam para formar uma globalidade. [...] Por isso, é possível falar de universo diegético, que
compreende tanto a série de ações, seu suposto contexto (seja ele geográfico, histórico ou social),
quanto o ambiente de sentimentos e de motivações nos quais elas surgem” (AUMONT et al, 1999, p.
114).

10
anulação do amante. (BATAILLE, 1987, p. 16).

Segredos de Sangue

O título original de Segredos de Sangue7 é Stoker, uma clara referência a Bram


Stoker, autor de Drácula, de onde o roteirista Wentworth Miller tirou sua inspiração. O
filme não é uma adaptação direta da obra, apenas é inspirado pelo seu estilo, por isso os
vampiros não se fazem presentes. Ainda assim, é uma “história clássica de vampiros,
retratando a solidão, a incompreensão da própria natureza e fazendo relação entre sedução
e perigo” (WITTMANN, 2014a). Esse é o primeiro filme de língua inglesa do diretor sul-
coreano Chan-wook Park. Ele constrói um imagético poderoso, através do uso de cores
de forma simbólica. O figurino é de responsabilidade de Kurt Swanson e Bart Mueller,
que assinam como Kurt & Bart.

A história começa no décimo oitavo aniversário de India (interpretada por Mia


Wasikowska), quando ela e sua mãe, Evelyn (Nicole Kidman) recebem a notícia da morte
de seu pai, Richard (Dermot Mulroney). O sobrenome da família é Stoker e eles vivem
isolados em seu casarão com alguns empregados domésticos. Esse viver, aliado ao modo
peculiar de se vestirem, distante do contemporâneo, cria a impressão de que a história
poderia ser ambientada em algum período do passado. Tudo que os rodeia é muito contido
e a estética remete ao período gótico americano.

No enterro de Richard podemos perceber a oposição entre mãe e filha. Evelyn é


uma mulher solitária, cujo marido aos poucos parou de lhe dar atenção para ocupar-se da
filha. Ela mantém uma relação fria com a esta, de quem se ressente por ter afastado o
marido de si, de maneira que desconstrói o senso comum, em que se espera uma vocação
natural para ser mãe, comumente chamada de instinto materno, de “caráter ideológico e
mítico que envolve o conceito de maternidade, correspondendo a uma visão essencialista
que favorece a opressão das mulheres” (COELHO, 2014, p. 136). Jovem e bonita, parece
querer clamar ao mundo que é bela e que ainda está viva e por isso usa um vestido justo,

7
SEGREDOS de Sangue (Stoker). Direção: Chan-wook Park. Produção: Michael Costigan, Ridley Scott,
Tony Scott. Intérpretes: Gary Oldman, Mia Wasikowska, Nicole Kidman, Matthew Goode, Dermot
Mulroney e outros. Roteiro: Wentworth Miller. Design de Produção: Thérèse DePrez. Direção de Arte:
Wing Lee. Figurino: Kurt and Bart. Los Angeles: Fox Films, 2013. Blu-Ray (98min), color.

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com detalhes assimétricos na gola, e um sapato de salto alto. Já India sempre usa

“roupas que parecem trajes infantis de épocas passadas: blusas soltas e


saias com silhueta em A e corte em viés ou pregas. Veste-se com
austeridade, cores neutras e sempre busca a simetria, tanto nos trajes
como no cabelo cuidadosamente partido ao meio, passando uma
imagem de repressão. Usa sempre o mesmo sapato: um estilo oxford
bicolor, que acreditava ganhar do pai todo ano em seu aniversário”
(WITTMANN, 2014a).

Imagens 14 e 15: Contraste entre roupas e calçados de mãe e filha.


Após o enterro, o misterioso tio Charlie, irmão de Richard, aparece. Descobre-se
que os calçados de India na verdade eram presentes de seu tio: eram uma forma de Charlie
criar uma conexão com a sobrinha e tentar controlá-la, mesmo à distância. Ao mesmo
tempo significavam estabilidade e segurança para ela: um elemento que se repetia e estava
sempre presente em sua vida. “Em determinado momento do filme, deita-se na cama com
todos os pares que usou no passado ao seu redor, como um escudo ou um legado. Sua
história e sua jornada de crescimento podem ser contadas através dos sapatos”
(WITTMANN, 2014a).

Imagem 16: India e seu escudo de sapatos, protegendo-a contra um mundo sem seu pai.
Após o velório India recrimina sua mãe. A jovem traja um vestido cinza e fala que
está vestindo traje de luto e que no período vitoriano as viúvas faziam isso por pelo menos
dois anos. A roupa estabelece um preciso código social, que neste momento India aceita
e deseja impor à sua mãe.

Mas Evelyn quer se sentir viva e não presa: vai rapidamente se livrar do luto e
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passará a vestir roupas cada vez mais rosadas, translúcidas e tradicionalmente femininas.
Charlie passa a flertar com ela abertamente, e essa é sua forma de demonstrar estar aberta
aos seus avanços8.

“Amarelo é a cor que vai aparecer desde o princípio como um alerta do


que está por vir e posteriormente servirá de elemento importante na
composição de determinadas cenas. Ela gravita em torno de India e
aparece na forma de bolas de tênis que ela espalha na quadra nos
créditos de abertura, na decoração do seu bolo de aniversário, nos ovos
diante dela na mesa da cozinha, na fita da caixa de presente, apenas para
citar alguns momentos” (WITTMANN, 2014a).

Figuras 17, 18, 19 e 20: O início do filme marca em amarelo o senso de alerto pelo que está por
vir.
Sobre o amarelo pode-se dizer que:

“Nós o construímos em nossa consciência como uma cor de advertência.


Repteis venenosos e anfíbios frequentemente são amarelos- um aviso
para todos que se aproxima, um grande lembrete de cuidado fabricado
em nosso código genético. [...] o desprezo para com a cor
provavelmente vem do fato de amarelo intenso em grandes quantidades
pode ser desagradável aos olhos” (BELLANTONI, 2013, loc. 1383)
Amarelo, não por coincidência, vem a ser a cor característica do tio Charlie, que

8
Conforme Lévi-Stauss, o levirato, costume entre alguns povos, quando um homem casa-se com a viúva
de seu irmão, não pode ser entendido como uma união preferencial, tendo em vista que não é a maneira
predominante de casar, mas é, sim, uma união privilegiada. O mesmo pode ser dito em relação ao
casamento avuncular, aquele entre tio ou tia com seu sobrinho ou sobrinha. Mas nesse caso, a relação
só não é vista como incestuosa quando se trata de um tio casando com a prole da irmã, ou tia casando
com prole do irmão (parentesco cruzado). Na situação retratada no filme, India é filha do irmão de
Charlie, portanto trata-se de parentesco paralelo e um relacionamento entre os dois caracterizaria
incesto. (LÉVI-STRAUSS, Claude. As estruturas elementares do parentesco. Petrópolis: Vozes,
1982. p.160)

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ao chegar veste um colete mostarda e ao final da trama, vestirá um pulôver da mesma cor,
transmitindo esse senso de alerta. Como já citado, os personagens do filme não são
vampiros, mas ele se comporta como um: jamais come e sempre aparece nos ambientes
sem que ninguém perceba de onde ele veio, deslocando-se silenciosamente. Além disso,
busca uma companhia para sua vida solitária e diferente das demais.

Figuras 21 e 22: Tio Charlie e suas roupas em tons puxando para o amarelo.

Mas embora pareça um vampiro, Charlie é menos perigoso do que parece: trata-
se de um homem com motivações infantis, como o ciúme entre irmãos. Descobre-se
depois que ele, quando criança, matou um irmão mais novo por não suportar a atenção
que lhe era dada. Richard, o irmão mais velho, jamais conseguiu amá-lo da mesma forma.
Por esse motivo, Charlie se encontra preso ao passado e por isso é tão apegado a essa cor
que lembra a sua infância. Em flashback, ela marca momento definidor de sua história: a
sequência em que enterra seu irmãozinho, rodeado por flores e com um brinquedo da cor.

Figuras 23 e 24: Flashback inundado de amarelo marcando o primeiro assassinato de Charlie.

Na escola de India, na aula de arte, ela não desenha o vaso de flores exposto como
modelo e sim o padrão amarelo e vermelho que decora seu interior. A combinação aparece
repetidas vezes ao longo do filme, como nos potes de sorvete com dois sabores que
carrega e em se lápis amarelo com a ponta coberta de sangue. Nesse contexto, o vermelho,
como em Drácula de Bram Stoker, adquire o duplo significado de carnalidade e morte,
que aqui caminham lado a lado, sempre vinculados ao amarelo de alerta de Charlie.

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Figuras 25, 26, 27 e 28: Ao longo do filme amarelo e vermelho (alerta e morte) são
repetidamente colocados lado a lado pela direção de arte.
O filme também é fortemente marcado por uma ideia de moral vitoriana, não
apenas explicitada pela opinião de India a respeito do luto de sua mãe. Conforme essa
moral, sexo aparece sinalizado como perigo e o perigo é representado de forma
sexualizada. Neste caso, o perigo não é nem só o flerte incestuoso de Charlie, mas é,
também, demonstrado por uma “aranha que sobe pelas pernas de India, para baixo de sua
saia” (WITTMANN, 2014a), em determinada cena.

India se veste e se comporta como criança, apesar de seus dezoito anos, e como
tal, seus desejos de cunho sexual estavam adormecidos. Ela sai com um rapaz e ele a leva
para passear em um bosque, onde tenta estupra-la. Tio Charlie aparece como que vindo
de lugar algum para defende-la, mas permite que ela exerça sua autonomia, de maneira
que ela mata seu agressor. Após seu primeiro contato com a morte diante de seus olhos,
India toma um banho para lavar-se do sangue que recobre seu corpo e debaixo da água
que escorre do chuveiro, chora. Ao choro se emenda o ato de se masturbar: na morte
encontrou dor e êxtase. Sexo e morte se atraem na trama.

Após esse momento é que deixa de lado sua camisola de algodão de menina e usa
uma camisola de seda. Sentiu que precisava vestir algo confeccionado neste tecido, como
explica à mãe. Agora é adulta e demonstrou isso através do contato de um tecido nobre
sobre sua pele. A mudança na sua forma de trajar reflete sua mudança, agora adulta e
mulher plena de agência. O design de produção construiu o quarto em que estão com
paredes em vermelho intenso, gritando essa mensagem de sexo-paixão-sangue.

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Figuras 29 e 30: O perigo sinalizado pela aranha que sobe pelas pernas de India para dentro de
sua saia; e sua mudança para uma camisola confeccionada em tecido nobre após seu primeiro
assassinato.
O desfecho da história transcorre como o documentário sobre a natureza, que está
passando na televisão ligada de um hotel mais cedo no filme. Charlie acha que India já é
adulta o suficiente e lhe dá um derradeiro sapato como presente pelo seu aniversário: “um
scarpin de salto alto avermelhado, assinalando ao mesmo tempo a maturidade sexual e o
perigo; feito de couro de crocodilo, pois ele vê na sobrinha uma predadora pronta, como
o réptil” (WITTMANN, 2014a). Charlie sabe que ela já é capaz de matar e demonstrar
desejar tê-la como companheira de sua vida. Anteriormente ele havia dito “nós temos o
mesmo sangue” e agora reafirma “eu estava esperando por você”, querendo que ela veja
tudo que poderiam compartilhar. Geralmente em filmes de Hollywood, “amor é mostrado
como uma experiência transcendental, mágica, que possui o poder de transformar vidas
(COELHO, 2014, p.139)”. Neste caso, a palavra amor não é falada, apenas há a
demonstração de interesse por uma parceria. Mas ela não é transcendental, funciona como
uma expressão de instinto, uma aliança para a caçada.

Em um primeiro momento India rejeita o presente, retornando à segurança de seu


calçado preto e branco anterior. Só volta a vesti-lo quando percebe que está pronta para
a caça, dessa vez por si mesma e não pela intervenção de um terceiro, despertando para
seus desejos e abraçando o que seria sua verdadeira natureza. Charlie ameaça sua mãe e
ela o mata vestindo os sapatos que ele lhe deu.

Figuras 31 e 32: Tio Charlie retira o sapato Oxford de India e calça um scarpin de pele de
crocodilo.

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A natureza de India, contra a qual não precisa mais lutar, é construída sobre o
legado de seus familiares. Saindo de casa, com os cabelos e a roupa livres ao vento,
encontrou sua maturidade e sua liberdade e seguirá seu caminho, em uma estrada também
marcada com linhas amarelas. O alerta agora é em relação a si mesma e as roupas
construíram todo o simbolismo do despertar de sua vida adulta. Ela afirma: “Assim como
a saia precisa do vento para ondular, eu não sou composta por coisas que são somente
minhas. Eu visto o cinto de meu pai atado ao redor da blusa de minha mãe e os sapatos
que ganhei de meu tio. Esta sou eu. Assim como uma flor não escolhe sua cor, nós não
somos responsáveis pelo que nós viemos a ser. Só quando percebemos isso é nos
tornamos livres e se tornar adulto é se tornar livre”.

Figuras 33 e 34: India veste peças de roupa herdadas de sua família, que lhe compõem
enquanto adulta.

Imagem 35: Agora é o caminho de India que é marcado pelo alerta, como deixa clara a
fotografia do filme.

Vampiros, sexo e perigo

Drácula de Bram Stoker é uma narrativa sobre a sexualidade feminina, inspirado


pela moral vitoriana, carregado de espírito gótico e de grotesco. Por sua vez, Segredos de
Sangue é uma fábula sobre crescimento, com uma trama que expressa a ideia de que a
natureza de uma pessoa é imutável e ela deve crescer para abraça-la. As roupas
entrelaçam-se na narrativa, fato lembrado o tempo inteiro pelos próprios personagens.
Ambas as películas são marcadas pelas cores e elementos que se repetem, sem que isso
jamais seja feito de forma simplista, estabelecendo relação entre a sexualidade feminina

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e a morte.

Conforme Georges Bataille, o erotismo é “a aprovação da vida até na morte”


(1987, p. 10). Segundo o autor somos seres descontínuos, a continuidade da vida e da
morte são fascinantes e “essa fascinação domina o erotismo” (1987, p. 11). A conexão
entre morte e erotismo pode ser percebida no termo dissolução, quando algo deixa de
existir ou se desmancha, que se relaciona ao adjetivo dissoluto, vinculado à prática erótica
(BATAILLE, 1987, p. 14). Conforme o autor, sexualidade e morte são duas faces
indissociáveis da mesma moeda, já que o a tristeza que se segue ao prazer do orgasmo
pode servir como um lembrete da morte, embora esta seja o contrário do prazer.

No caso de Segredos de Sangue, soma-se ao erotismo a proibição do incesto


(BATAILLE, 1987, p. 34). Ao pensar no incesto, que marcaria a separação entre natureza
e cultura e seria um interdito sexual presente em toda a humanidade (LÉVI-STRAUSS,
1982), o autor afirma:

“Se vemos nos interditos essenciais a recusa que opõe o ser à natureza
encarada como um excesso de energia viva e como uma orgia da
destruição, não podemos mais diferenciar a morte da sexualidade. A
sexualidade e a morte são apenas os momentos intensos de uma festa
que a natureza celebra com a multidão inesgotável dos seres, uma e
outra tendo o sentido do desperdício ilimitado que a natureza executa
contra o desejo de durar que é próprio do ser” (BATAILLE, 1987, p.
41).
Narrativas cinematográficas fazem uso de determinados tropos na caracterização
dos personagens. Alguns dos tipos mais comuns de personagens femininas são a virgem,
a vamp e a mulher fatal. Todas essas caracterizações giram em torno da sexualidade: A
virgem encarna a fragilidade; a vamp utiliza a sexualidade para manipular os homens e a
mulher fatal atrai os homens e lhes causa problema, mas de forma menos destrutiva
(BERNAVA, 2010, p.70). Tanto Mina quanto India começam suas narrativas como
virgens e avançam para se tornarem mulheres fatais. É interessante notar que embora
esses elementos sejam de extrema relevância na construção das personagens femininas,
raramente são colocados em questão quando são homens que são retratados.

Ambas as personagens começam suas trajetórias submissas e aceitando os papéis


que lhes são dados. A partir daí descobrem seus desejos, suas vontades e se abrem para
experiências que são paralelamente sexuais e de violência, tendo em vista que a expressão

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dessa sexualidade é marcada pelo simbolismo que alerta o espectador. Embora haja essa
alternância no papel de passividade e agência, nos identificamos com as protagonistas
nessa ambivalência (AUMONT et al, p. 248). Quando Mina transfere seu afeto para
Drácula, passamos, mesmo, a ter identificação com ele, que até então exercia a vilania na
trama. A identificação (AUMONT et al, p. 270) pode mudar ao longo do filme, visto que
o jogo de personagens não é fixo.

A passagem de submissão e virgindade para agência e o status de mulher fatal, é


marcada, simbólica ou literalmente, pelo vampirismo. Os vampiros do gênero masculino
seduzem e querem companhia: a sedução leva as protagonistas ao descobrimento do sexo,
através do desejo deles por sangue e pelo contato pele a pele. Em Drácula, este ainda trata
de maneira distinta as mulheres que portam-se de acordo com a moral vitoriana (Mina) e
as demais (Lucy e suas noivas). A monstruosidade marca a passagem para uma vivência
marcada pela carnalidade. Quando deixam de seguir as regras sociais de comportamento
para seus respectivos gêneros, Mina e, especialmente, India passam a ser ameaças. Mas
há ainda uma diferença mais entre as personagens: Mina opta por tornar-se companheira
de Drácula. India decide seguir só sua jornada, embora não desconsiderando o auxílio
daqueles que dela fizeram parte.

Um filme pode ser entendido como “um discurso (pois é o ato de uma instância
narrativa) que se disfarça de história (pois age como se essa instância narrativa não
existisse)” (AUMONT et al, 1999, p. 121). Uma obra cinematográfica carrega uma
ideologia e conta uma história para o espectador dentro de um contexto, de um espaço e
de um tempo que criam uma realidade diegética. Embora não mostrem romances melosos
como o padrão hollywoodiano (WILLIAMS, 1998, p. 98) os filmes aqui analisados ainda
assim não naturalizam a sexualidade feminina. Não se pode entender o cinema como uma
representação realista do mundo, mas é de se prestar atenção quando duas adaptações de
uma mesma obra criam contos de advertência a respeito da livre expressão da sexualidade
feminina. Em Drácula de Bram Stocker e Segredos de Sague vemos os corpos femininos
cobertos e reprimidos, para se desnudarem apenas com a ameaça ou a concretização da
violência. Há o retrato de um ideal de feminilidade influenciado por um período, que
preconiza na ausência de desejos sexuais e em contrapartida, no perigo à vida que
representa o despertar desses desejos. A direção de arte afirma nos trajes e no uso de cores,

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marcadamente o vermelho (sexo-paixão-sangue), acompanhado de verde (sua cor
complementar) ou amarelo (perigo), as claras as intenções dos autores de ambos os filmes,
controlando esteticamente suas narrativas. Erotismo, prazer, morte e interdito se
relacionam em construção simbólica.

Referências:
AUMONT, Jacques et al. A estética do filme. Campinas: Papirus, 1999.
BATAILLE, Georges. O Erotismo. Porto Alegre: L&PM, 1987.
BELLANTONI, Patti. If It’s Purple, Someone’s Gonna Die. Burlington: Focal Press,
2013, Kindle Edition.
BERNAVA, Cristian Carla. Violência e Feminino no Cinema Contemporâneo. 2010.
210f. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2010.
COELHO, Paloma. Família no Cinema: a construção de discursos nos filmes
hollywoodianos contemporâneos. Estudos de Sociologia, Araraquara, v.19 n.36 p.129-
145, jan.-jun. 2014.
DRÁCULA de Bram Stoker (Dracula). Direção: Francis Ford Coppola. Los Angeles:
Sony Pictures, 1992. 1 DVD (127min), color.
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A vontade de saber. Riode Janeiro:
Edições Graal, 1999.
HIJIKI, Rose Satiko Gitirana. Antropólogos vão ao cinema: observações sobre a
constituição do filme como campo. Cadernos de campo. São Paulo, v.7 n.7 p.91-113,
1998.
LÉVI-STRAUSS, Claude. As estruturas elementares do parentesco. Petrópolis: Vozes,
1982.
SEGREDOS de Sangue (Stoker). Direção: Chan-wook Park. Los Angeles: Fox Films,
2013. Blu-Ray (98min), color.
WILLIAMS, Linda. Screening Sex: Revelando e dissimulando o sexo. Cadernos Pagu.
Campinas, n.38 p. 13-51, jan.-jun. 2012.
WITTMANN, Isabel. Vestindo o Filme: Segredos de Sangue. Cinema em Cena, 13
março 2014. Disponível em:
<http://www.cinemaemcena.com.br/plus/modulos/noticias/ler.php?cdnoticia=52402&cd
categoria=36>. Acesso em: 23 setembro 2014.
WITTMANN, Isabel. Vestindo o Filme: Drácula de Bram Stoker. Cinema em Cena, 30
julho 2014. Disponível em:
<http://www.cinemaemcena.com.br/plus/modulos/noticias/ler.php?cdnoticia=53394>.
Acesso em: 22 setembro 2014.

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