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NOTA CURRICULAR
Fernanda Costa-Moura
Professora do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, UFRJ. Membro do
Tempo Freudiano Associação Psicanalítica.
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TEXTO INTEGRAL
Entretanto, tal interrogação é indispensável a uma pesquisa psicanalítica, uma vez que a
psicanálise não se define como uma filosofiaou uma visão de mundo, ela se define uma
a cada uma das muitas ocasiões em que fez referência a escritores e escritos literários –
não obedecem apenas a um objetivo erudito de ilustração, mas situam a literatura “como
Freud] pela clínica com seus pacientes”.O fundador da psicanálise atribuía ao poeta ou
escritor de ficção “um saber sobre o homem muito mais direto que aquele arduamente
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No texto de Lacan, as também abundantes referências à literatura tampouco
psicanálise depois de Freud, Lacan voltou sua atenção não apenas às narrativas
tematizadas pelo enredo dasobras, mas também ao modo com que a estrutura de certos
especial, a leitura de Lacan sobre a obra de James Joyce, cuja radicalidade, além de
estilísticos próprios do universo literário (Pontalis& Mango, 2013), o que nos ajuda a
Literatura, único prêmio concedido a ele em vida por sua obra (Alberti, 2007).
Estes são alguns indícios que nos encorajam a apostar na relevância de pesquisar
literários – narrativo, líricoou dramático. Duas dessas referências nos causam peculiar
impressão, porque tratam de obras escritas 25 séculos antes que Freud e Lacan se
debruçassem sobre elas. Trata-se dareferência de Freud à tragédiaÉdipo Rei –que lhe
psicanalítica.
Édipo Rei é a primeira tragédia da chamada Trilogia Tebana, que inclui também
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que se transmitiram oralmente durante os séculos anteriores, a trilogia trata do destino
do mais célebre rei de Tebas e sua família. Desde antes de nascer, Édipo já tem seu
assassinar o pai e desposar a mãe. A fim de evitar tal infortúnio, seus pais, Laio e
Jocasta, então rei e rainha de Tebas, ordenam que o bebê seja abandonado no alto do
monte Citéron, para morrer, pendurado a uma árvore pelos pés – de onde advém seu
nome, Oedipus: “pés inchados”. Um pastor, apiedado, resgata o bebê e o leva a Corinto,
onde ele é adotado e criado pelo rei Pólibo e a rainha Mérope, que não tinham filhos.
evitá-la, decide deixar Corinto, supondo que assim se afastará de seus pais. Mas esta
decisão, ao contrário, só faz aproximá-lo do seu destino: no caminho, Édipo duela com
um viajante desconhecido e o mata – sem saber que se trata de Laio, seu verdadeiro pai.
Laio viajava em busca de uma estratégia para derrotar a devoradora esfinge que se havia
fixado próximo aos portões deTebas, ameaçando de morte os cidadãos. Frente a frente
com a fera, Édipo escapa de ser devorado ao decifrar o enigma proposto por ela,
salvando a si e a toda a cidade. Deste modo, ele se torna rei, se casa com a rainha
Jocasta – ignorando o fato de que se trata de sua mãe – e tem com ela quatro filhos –
que são, ao mesmo tempo, seus irmãos: Antígona, Ismênia, Etéocles e Polinices.
desposar a mãe, ainda sem o saber, o rei Édipo envia o irmão de Jocasta, Creonte, ao
oráculo de Delfos, para descobrir como proceder quanto a uma terrível peste que assola
crescer até que se torne inextirpável, o que implica em desvendar quem é o assassino do
antigo rei, Laio. Édipo se propõe a conduzir tal investigação e se desespera ao descobrir
que ele mesmo é o assassino a quem procura. Aterrorizada pelo fato de que se casou
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com o próprio filho, Jocasta se suicida. Édipo, por sua vez, arranca os olhos e se exila
segunda, Édipo em Colono, que narra acontecimentos dos últimos anos da vida de
Édipo, vagando cego até a morte, na companhia da filha Antígona. É ela quem
Entretanto, ao final do primeiro ano, Etéoclesse recusa a ceder o cetro a Polinices, que
traidor da cidade, Creonte decreta que seu corpo não deve receber os devidos rituais
fúnebres, deixando-o jogado ao relento para ser devorado por cães e aves de rapina.
Antígona se rebela contra a determinação do tio, uma vez que, sem o sepultamento
adequado, seu irmão seria condenado pelos deuses a vagar cem anos às margens do rio
dos mortos. Temendo tamanhadesgraça, ela pede ajuda à irmã Ismênia para sepultarem
vê obrigada a sepultar o irmão por conta própria, mas é surpreendida pelos guardas do
rei enquanto tenta fazê-lo. Apesar de advertido quanto à ira dos deuses que se voltaria
contra ele, Creonte condena Antígona a ser aprisionada viva numa pequena caverna,
visando castigá-la com uma morte lenta. Convicta de seu ato, porém, ela se suicida, o
enredo acima resume a narrativa conforme transmitida por Sófocles. Énesses moldes
que ela detém a atenção de Freud, num momento tão primordial para a psicanálise
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quanto o ano de 1897. Em outubro deste ano, ele remete a Fliessa carta onde formula
uma hipótese para justificar o efeito cativanteproduzido porÉdipo Rei, tantos séculos
após sua escrita por Sófocles: a hipótese de que cada espectadorna plateia – inclusive
ele mesmo, Freud – teria sido um dia, “em germe ou na fantasia, um Édipo, e cada qual
Poucos anos depois, Freud torna pública esta hipótese ao abordar “a lenda do Rei Édipo
sonhos (1900), onde dedica algumas páginas a uma análise da tragédia, transcrevendo e
comentandocertas passagens. Ele afirma, então, que estar apaixonado por um dos pais e
nutrir ódio pelo outro é uma situação infantil recorrente entre os psiconeuróticos, da
qual tampouco estão livres as pessoas consideradas normais. E assevera: “o Rei Édipo,
que assassinou seu pai Laio e casou com sua mãe Jocasta, simplesmente nos mostra a
realização dos nossos próprios desejos de infância” (Freud, 1900, p. 277-9). Desde
de psicanálise (1938), elechega a afirmar que a descoberta deste complexo, por si só, já
humano.
ele se encadeiam outros conceitos seminais, com todas as consequências que advêm daí
relação com a lei, o sintoma, estas são algumas decorrências fundamentais do modo
como o sujeito responde à barra da castração, que se impõe a ele a partir do que está em
jogo no Édipo. A referência à peça sofocliana é, então, exemplarda maneira como Freud
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se apropria dos efeitos produzidos porescritos literários, interessado em se aproximar
Embora Freud, em seu esforço de transmissão, tenha afirmado que Édipo Rei é
capaz de “[comover] um auditório moderno não menos que o grego de sua época”
(Freud, 1900, p. 279), Lacan conferiu especial valor à tragédia grega “situada em seu
pleno contexto, isto é, o contexto antigo” (Lacan, 1960-61, p. 113). Isto porque o modo
como essas tragédias chegam até nós, como obras literárias ou adaptações encenadas
recebidas, ou melhor, vividas pelo público que lhe era contemporâneo.Vale lembrar que
o século Va.C., curto intervalo de tempo no qual o advento da tragédia grega surgiu e se
anuais em homenagem a Dionísio – deus que revela uma dimensão Outra do sagrado,
pois questiona e desorganiza a ordem humana que cabe aos demais deuses organizar –,
as peças trágicas não somente refletiam o laço social vigente na polis: elas o instituíam
numa tradição aristotélica, como uma espécie de purgação via descarga motora – a qual
chegou a inspirar o método ab-reativo usado por Freud no início da clínica da histeria –
,era valorizada diferentemente por Lacan. Para ele, tratava-se, antes, de uma espécie de
sujeito)”, decantação esta que é efeito da função do coro: não “levar a audiência a ser
tomada pelas emoções, mas fazer com que estas passem pelo estreito do significante” –
um trabalho comparável ao que tem lugar numa análise (Vorsatz, 2013, p. 43). Embora
cidadãos a uma reflexão fora do escopo do saber. Não é coincidência, portanto, que a
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morte da tragédia tenha coincidido com o nascimento da filosofia, cuja paixão pelo
uma enunciação singular que diz respeito à ética sem, com isso, constituir um saber, um
domínio de conhecimento sobre a ética”. Dito de outra maneira, “Se a filosofia pensa a
tematizadas pelo enredo, pois tem relação com a estrutura trágica da obra, a qual situa o
herói numa situação análoga ao paradoxo que acossa o sujeito do inconsciente: embora
seja determinado por um campo de exterioridade que escapa totalmente ao seu controle,
cabe a ele se responsabilizar pelo seu ato – ato este que só se efetiva em perda. Em seu
termos próprios na cena trágica que tinha lugar na Grécia do século V a.C.É por este
escolhe se referir não à filosofia, berço formal da ética como saberorientado pelo ideal
do Bem, e sim à tragédia sofocliana, na qual o herói – ou, neste caso específico, a
Bem entendido, a filha de Édipo não se dobra à lei da cidade, enunciada por
Creonte, nem tampouco à lei divina, embora demonstre respeito porela: Antígona toma
o desejo como dever ético, à diferença da irmã Ismênia, que se abstém de tomar uma
posição diante daquilo que precisa ser feito. Assim, o valor ético do ato de Antígona
reside, justamente, na sua singularidade: não se trata de uma ação normativa, passível de
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tomada de posição a partir de uma experiência trágica da vida, que faz emergir uma
aqui abordadas. Se coube a Freud dar o passo inicial, de retornar à tragédia grega para
sujeito de que trata a clínica psicanalítica, coube a Lacan dar o passo seguinte, de
retornar à tragédia grega para nela sublinhar uma dimensão que subverte o próprio
estatuto de obra literária com o qual ela nos chega hoje – a dimensão do ato, da
experiência trágica, posta em jogo numa posição determinada pelo desejo como dever
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
2007.
Zahar, 1988.
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__________. O seminário, livro 8: A transferência (1960-61). Rio de Janeiro: Zahar,
2010.
PONTALIS, J.-B.; MANGO, E. G. Freud com os escritores. São Paulo: Três estrelas,
2013.
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