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RESUMO

Édipo e Antígona: heranças da tragédia grega para a construção da clínica


psicanalítica

Em que a literatura interessa à clínica psicanalítica? O que impulsionou Freud e


Lacan a recorrerem a textos literários, entre eles textos dramáticos, a fim de formular e
transmitir conceitos que fundamentam esta clínica? Guiadas por essas questões,
abordaremos referências de Freud e Lacan a tragédias gregas escritas por Sófocles há
mais de 25 séculos, que ainda hoje são capazes de impactar e comover leitores em todo
o mundo. Neste percurso, partiremos de Édipo Rei, retomada por Freud em vários
momentos de sua obra, como referência que lhe permitiu articular conceitos seminais
como o próprio complexo de Édipo, em seus efeitos estruturantes para o sujeito, barrado
pela castração. E chegaremos a Antígona, retomada por Lacan especialmente no
seminário sobre a ética da psicanálise, como referência que lhe permitiu articular
conceitos cruciais como o de ato, extraindo consequências dessa articulação para tratar
da dimensão ética da clínica psicanalítica.

NOTA CURRICULAR

Fernanda Hamann de Oliveira


Psicóloga e jornalista, mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica,
UFRJ, cursando atualmente o doutorado no mesmo Programa, onde desenvolve sua tese
sobre literatura e psicanálise.

Fernanda Costa-Moura
Professora do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, UFRJ. Membro do
Tempo Freudiano Associação Psicanalítica.

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TEXTO INTEGRAL

Édipo e Antígona: heranças da tragédia grega para a construção da clínica


psicanalítica
Fernanda Hamann de Oliveira
Fernanda Costa-Moura

Em que a literatura interessa à psicanálise? Que elementos extraídos de uma

obra literária podem contribuir para a condução de uma prática clínica?

Embora sejam numerosos os pesquisadores que se propõema investigar os

pontos de encontro entre literatura e psicanálise, nem todos se interrogamquanto à

incidência que esseencontro pode ter sobre acondução de um trabalhoclínico.

Entretanto, tal interrogação é indispensável a uma pesquisa psicanalítica, uma vez que a

psicanálise não se define como uma filosofiaou uma visão de mundo, ela se define uma

práxis, indissociável de uma trama conceitual própria.

Mantendo no horizonte a prática da psicanálise, Freud se guiou por esta diretriz

a cada uma das muitas ocasiões em que fez referência a escritores e escritos literários –

Goethe, Shakespeare, Dostoiévski e tantos outros. No texto freudiano, tais referências

não obedecem apenas a um objetivo erudito de ilustração, mas situam a literatura “como

fonte de conhecimento privilegiado do inconsciente, ao lado daquele que é fornecido [a

Freud] pela clínica com seus pacientes”.O fundador da psicanálise atribuía ao poeta ou

escritor de ficção “um saber sobre o homem muito mais direto que aquele arduamente

obtido pelo analista na busca de conhecimento que se singulariza em cada

tratamento”(Rivera, 2005, p. 7-8. Grifo nosso).

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No texto de Lacan, as também abundantes referências à literatura tampouco

constituem meros “adornos” a suas elaborações: elas participam da própria

organizaçãodos conceitos psicanalíticos. Contudo, preocupado em fazer avançar a

psicanálise depois de Freud, Lacan voltou sua atenção não apenas às narrativas

tematizadas pelo enredo dasobras, mas também ao modo com que a estrutura de certos

escritos produz determinados efeitos de linguagem. Neste sentido, merece menção, em

especial, a leitura de Lacan sobre a obra de James Joyce, cuja radicalidade, além de

mudar os rumos da sua organização de conceitos como os de sintoma e de real, chegou

a afetar, inclusive, a escrita de Lacan, que se permitiu “joycianizar” (Mandil, 2003).

Quanto à escrita de Freud – quedestacava a literatura entre suas formas de arte

favoritas –, é frequenteque nela apareçam figuras de linguagem e outros recursos

estilísticos próprios do universo literário (Pontalis& Mango, 2013), o que nos ajuda a

entender por que o fundador da psicanálise recebeu, em 1930, o Prêmio Goethe de

Literatura, único prêmio concedido a ele em vida por sua obra (Alberti, 2007).

Estes são alguns indícios que nos encorajam a apostar na relevância de pesquisar

os modos como Freud e Lacan se referem a escritores e escritosdos diferentes gêneros

literários – narrativo, líricoou dramático. Duas dessas referências nos causam peculiar

impressão, porque tratam de obras escritas 25 séculos antes que Freud e Lacan se

debruçassem sobre elas. Trata-se dareferência de Freud à tragédiaÉdipo Rei –que lhe

permitiu articular e nomear um conceito tão fundamental quanto o de complexo de

Édipo – e da referência de Lacanà tragédiaAntígona – que sedimenta uma das principais

trilhas percorridas no Seminário 7(1959-60) para a elaboração do conceito de ética

psicanalítica.

Édipo Rei é a primeira tragédia da chamada Trilogia Tebana, que inclui também

Édipo em Colono e Antígona.Escrita por Sófocles no século V a.C., a partir de mitos

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que se transmitiram oralmente durante os séculos anteriores, a trilogia trata do destino

do mais célebre rei de Tebas e sua família. Desde antes de nascer, Édipo já tem seu

destino selado: o oráculo de Delfos sentenciara que aquela criança estariafadada a

assassinar o pai e desposar a mãe. A fim de evitar tal infortúnio, seus pais, Laio e

Jocasta, então rei e rainha de Tebas, ordenam que o bebê seja abandonado no alto do

monte Citéron, para morrer, pendurado a uma árvore pelos pés – de onde advém seu

nome, Oedipus: “pés inchados”. Um pastor, apiedado, resgata o bebê e o leva a Corinto,

onde ele é adotado e criado pelo rei Pólibo e a rainha Mérope, que não tinham filhos.

Quando jovem, Édipo toma conhecimento da sentença do oráculo de Apolo, e, tentando

evitá-la, decide deixar Corinto, supondo que assim se afastará de seus pais. Mas esta

decisão, ao contrário, só faz aproximá-lo do seu destino: no caminho, Édipo duela com

um viajante desconhecido e o mata – sem saber que se trata de Laio, seu verdadeiro pai.

Laio viajava em busca de uma estratégia para derrotar a devoradora esfinge que se havia

fixado próximo aos portões deTebas, ameaçando de morte os cidadãos. Frente a frente

com a fera, Édipo escapa de ser devorado ao decifrar o enigma proposto por ela,

salvando a si e a toda a cidade. Deste modo, ele se torna rei, se casa com a rainha

Jocasta – ignorando o fato de que se trata de sua mãe – e tem com ela quatro filhos –

que são, ao mesmo tempo, seus irmãos: Antígona, Ismênia, Etéocles e Polinices.

A tragédiaÉdipo Reitem início neste momento: anos depois de assassinar o pai e

desposar a mãe, ainda sem o saber, o rei Édipo envia o irmão de Jocasta, Creonte, ao

oráculo de Delfos, para descobrir como proceder quanto a uma terrível peste que assola

a cidade. Apolo o aconselha a limpar a imundície que corrompe Tebas, semdeixá-la

crescer até que se torne inextirpável, o que implica em desvendar quem é o assassino do

antigo rei, Laio. Édipo se propõe a conduzir tal investigação e se desespera ao descobrir

que ele mesmo é o assassino a quem procura. Aterrorizada pelo fato de que se casou

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com o próprio filho, Jocasta se suicida. Édipo, por sua vez, arranca os olhos e se exila

voluntariamente na cidade de Colono.

A primeira tragédia da trilogia se encerra neste ponto, quando tem início a

segunda, Édipo em Colono, que narra acontecimentos dos últimos anos da vida de

Édipo, vagando cego até a morte, na companhia da filha Antígona. É ela quem

protagoniza e dá nome à terceira tragédia. Seus irmãos Etéocles e Polinices, em disputa

pelasucessão do trono tebano, concordam em se revezar anualmente na posição de rei.

Entretanto, ao final do primeiro ano, Etéoclesse recusa a ceder o cetro a Polinices, que

apela para um exército estrangeiro a fim de pressionar o irmão. Os dois acabam

matando um ao outro, o que leva Creonte à condição de rei. Considerando Polinices um

traidor da cidade, Creonte decreta que seu corpo não deve receber os devidos rituais

fúnebres, deixando-o jogado ao relento para ser devorado por cães e aves de rapina.

Antígona se rebela contra a determinação do tio, uma vez que, sem o sepultamento

adequado, seu irmão seria condenado pelos deuses a vagar cem anos às margens do rio

dos mortos. Temendo tamanhadesgraça, ela pede ajuda à irmã Ismênia para sepultarem

Policines, mas Ismênia se recusa a desobedecer à ordem de Creonte. Antígona, então, se

vê obrigada a sepultar o irmão por conta própria, mas é surpreendida pelos guardas do

rei enquanto tenta fazê-lo. Apesar de advertido quanto à ira dos deuses que se voltaria

contra ele, Creonte condena Antígona a ser aprisionada viva numa pequena caverna,

visando castigá-la com uma morte lenta. Convicta de seu ato, porém, ela se suicida, o

que desencadeia também o suicídio de Hêmon, seu noivo e filho de Creonte, e o

consequente suicídio da mãe dele, Eurídice, esposa de Creonte.

Embora hajavárias versões para a história de Édipo e seus descendentes, o

enredo acima resume a narrativa conforme transmitida por Sófocles. Énesses moldes

que ela detém a atenção de Freud, num momento tão primordial para a psicanálise

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quanto o ano de 1897. Em outubro deste ano, ele remete a Fliessa carta onde formula

uma hipótese para justificar o efeito cativanteproduzido porÉdipo Rei, tantos séculos

após sua escrita por Sófocles: a hipótese de que cada espectadorna plateia – inclusive

ele mesmo, Freud – teria sido um dia, “em germe ou na fantasia, um Édipo, e cada qual

[recuaria], horrorizado, diante da realização de seu sonho” (Freud, 1897, p. 160).

Poucos anos depois, Freud torna pública esta hipótese ao abordar “a lenda do Rei Édipo

e o drama de Sófocles que traz o seu nome”, no capítulo V de A interpretação dos

sonhos (1900), onde dedica algumas páginas a uma análise da tragédia, transcrevendo e

comentandocertas passagens. Ele afirma, então, que estar apaixonado por um dos pais e

nutrir ódio pelo outro é uma situação infantil recorrente entre os psiconeuróticos, da

qual tampouco estão livres as pessoas consideradas normais. E assevera: “o Rei Édipo,

que assassinou seu pai Laio e casou com sua mãe Jocasta, simplesmente nos mostra a

realização dos nossos próprios desejos de infância” (Freud, 1900, p. 277-9). Desde

então, são incontáveis as ocasiões em que Freud se refere ao complexo de Édipo,

conceito central na elaboração teórico-clínica freudiana.Em sua obra derradeira, Esboço

de psicanálise (1938), elechega a afirmar que a descoberta deste complexo, por si só, já

bastaria para situar a psicanálise entre as preciosas aquisições recentes do gênero

humano.

Édipo Rei, portanto, forneceu a Freud elementos para a formulação e

transmissão de um conceito cujos desdobramentos clínicos são, a rigor, inestimáveis. A

ele se encadeiam outros conceitos seminais, com todas as consequências que advêm daí

para a concepção psicanalítica de sujeito. A entrada do sujeito na linguagem, sua

relação com a lei, o sintoma, estas são algumas decorrências fundamentais do modo

como o sujeito responde à barra da castração, que se impõe a ele a partir do que está em

jogo no Édipo. A referência à peça sofocliana é, então, exemplarda maneira como Freud

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se apropria dos efeitos produzidos porescritos literários, interessado em se aproximar

daquilo que é próprio da condição do sujeito.

Embora Freud, em seu esforço de transmissão, tenha afirmado que Édipo Rei é

capaz de “[comover] um auditório moderno não menos que o grego de sua época”

(Freud, 1900, p. 279), Lacan conferiu especial valor à tragédia grega “situada em seu

pleno contexto, isto é, o contexto antigo” (Lacan, 1960-61, p. 113). Isto porque o modo

como essas tragédias chegam até nós, como obras literárias ou adaptações encenadas

para nosso lazer ou entretenimento, é essencialmente diverso do modo como eram

recebidas, ou melhor, vividas pelo público que lhe era contemporâneo.Vale lembrar que

o século Va.C., curto intervalo de tempo no qual o advento da tragédia grega surgiu e se

extinguiu, foi um período de apogeu dessa civilização, imediatamente anterior ao

nascimento da filosofia, no século seguinte. Encenadas como parte das festividades

anuais em homenagem a Dionísio – deus que revela uma dimensão Outra do sagrado,

pois questiona e desorganiza a ordem humana que cabe aos demais deuses organizar –,

as peças trágicas não somente refletiam o laço social vigente na polis: elas o instituíam

enquanto tal. A purificação ritual promovida pela katharsis,costumeiramente entendida,

numa tradição aristotélica, como uma espécie de purgação via descarga motora – a qual

chegou a inspirar o método ab-reativo usado por Freud no início da clínica da histeria –

,era valorizada diferentemente por Lacan. Para ele, tratava-se, antes, de uma espécie de

“decantação através da palavra para que se revele a palavra do herói (e também do

sujeito)”, decantação esta que é efeito da função do coro: não “levar a audiência a ser

tomada pelas emoções, mas fazer com que estas passem pelo estreito do significante” –

um trabalho comparável ao que tem lugar numa análise (Vorsatz, 2013, p. 43). Embora

situada dentro do registro do logos, esta operação articulada pela tragédiaconduzia os

cidadãos a uma reflexão fora do escopo do saber. Não é coincidência, portanto, que a

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morte da tragédia tenha coincidido com o nascimento da filosofia, cuja paixão pelo

saber alimenta uma tentativa de domesticação do real, assim como a evitação da

problemática concernente ao desejo.A tragédia antiga, contrariamente, “é portadora de

uma enunciação singular que diz respeito à ética sem, com isso, constituir um saber, um

domínio de conhecimento sobre a ética”. Dito de outra maneira, “Se a filosofia pensa a

ética, a tragédia a apresenta em ato” (Ibid., p. 13. Grifo nosso).

Na tragédia, o que é próprio da condição do sujeito vai além das narrativas

tematizadas pelo enredo, pois tem relação com a estrutura trágica da obra, a qual situa o

herói numa situação análoga ao paradoxo que acossa o sujeito do inconsciente: embora

seja determinado por um campo de exterioridade que escapa totalmente ao seu controle,

cabe a ele se responsabilizar pelo seu ato – ato este que só se efetiva em perda. Em seu

comentáriosobre Antígona, Lacan (1959-60) destacaessa problemática –

determinaçãoversus responsabilidade –, que é constitutiva do campo do desejo. Ela

concerne ao sujeito da psicanálise (sujeito moderno), mas curiosamentese articulava em

termos próprios na cena trágica que tinha lugar na Grécia do século V a.C.É por este

motivo que, no seminário quededica a circunscrever a ética da psicanálise, Lacan

escolhe se referir não à filosofia, berço formal da ética como saberorientado pelo ideal

do Bem, e sim à tragédia sofocliana, na qual o herói – ou, neste caso específico, a

heroína – apoia seu atonuma dimensão não de mestria, mas de responsabilidade.

Bem entendido, a filha de Édipo não se dobra à lei da cidade, enunciada por

Creonte, nem tampouco à lei divina, embora demonstre respeito porela: Antígona toma

o desejo como dever ético, à diferença da irmã Ismênia, que se abstém de tomar uma

posição diante daquilo que precisa ser feito. Assim, o valor ético do ato de Antígona

reside, justamente, na sua singularidade: não se trata de uma ação normativa, passível de

ser enunciada como exemplar no escopo de um saber especulativo; trata-se de uma

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tomada de posição a partir de uma experiência trágica da vida, que faz emergir uma

verdade absolutamente singular – à semelhança do que se produz numa análise.

Já estamos, portanto, em condições de retomar as perguntas que nos incitaram a

pesquisar o que motivou as referências de Freud e Lacan às duas tragédias de Sófocles

aqui abordadas. Se coube a Freud dar o passo inicial, de retornar à tragédia grega para

dela retirar elementos capazes de se prestar a uma articulação reveladora da condição do

sujeito de que trata a clínica psicanalítica, coube a Lacan dar o passo seguinte, de

retornar à tragédia grega para nela sublinhar uma dimensão que subverte o próprio

estatuto de obra literária com o qual ela nos chega hoje – a dimensão do ato, da

experiência trágica, posta em jogo numa posição determinada pelo desejo como dever

ético, efeito da operação que uma análise propicia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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__________. A interpretação dos sonhos (1900). Edição Standard Brasileira das

Obras Completas de Sigmund Freud. vol. 4 e 5. Rio de Janeiro: Imago, 1977.

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MANDIL, R. Os efeitos da letra: Lacan leitor de Joyce. Rio de Janeiro / Belo

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RIVERA, T. Guimarães Rosa e a psicanálise: Ensaios sobre imagem e escrita. Rio

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VORSATZ, I. Antígona e a ética trágica da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

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