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As novas formas de sepultamento interferem no processo de luto?

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Angélica Cantarella Tironi2 e Giselle Leandro Fleury3

Resumo: A importância dos cerimônias fúnebres foi abordado por Sófocles, em


Antígona, peça que será aqui retomada e cotejada com alguns capítulos de O seminário,
livro 7: a ética da psicanálise, de Jacques Lacan. Estes autores nos permitem avançar
na questão que orienta essa reflexão: quais as consequências das novas formas de
sepultamento para o processo de luto?
Palavras-chave: psicanálise; Antígona; cerimoniais fúnebres; processo de luto;
pandemia.

Summary: The importance of funeral ceremonies was addressed by Sophocles, in


Antigone, a play that will be retaken and compared with some chapters of Jacques
Lacan's The Seminar, book 7: the ethics of psychoanalysis. These authors allow us to
advance the question that guides this reflection: what are the consequences of the new
forms of burial for the mourning process?
Keywords: psychoanalysis; Antigone; funeral ceremonies; mourning process;
pandemic.

Introdução
No início do ano de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) advertiu que
o surto da doença causado pelo novo Coronavírus constituía uma emergência de saúde
pública de importância internacional. No entanto, o rápido avanço do vírus exigiu que
ele alçasse o estatuto de pandemia, reconfigurando a vida dos cidadãos de todo o
mundo.
Em decorrência do rápido alastramento do contágio e do assustador número de
mortes, alguns países enfrentaram problemas logísticos para enterrar as vítimas deste
vírus. Os necrotério, as funerárias, os cemitérios saturados, e, em alguns momentos,
colapsados, exigiram que novos protocolos de armazenamento, velório e enterro dos
corpos fossem oficializados de acordo com as dificuldades de cada cidade.

1 Texto originalmente publicado em: Latusa 25. Revista da Escola Brasileira de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro.
Impossível tirar o corpo fora: exílios e confinamentos. Rio de Janeiro: EBP-RJ, 2020.
2 Correspondente da Seção Rio de Janeiro da Escola Brasileira de Psicanálise; Pós-Doutora em Teoria Psicanalítica Pela

Universidade Federal do Rio de Janeiro; Graduanda em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Endereço eletrônico: angelicatironi@gmail.com.
3 Participante do Cien, coordenação laboratório Pipa-voada-RJ; Mestre pelo programa de Pós-Graduação em

Psicanálise pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro; formação pelo ICP RJ (2009-2012). Endereço eletrônico:
fleury.giselle@gmail.com.

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Diversos planos emergenciais foram colocados em prática para evitar os
problemas de saúde pública causados pelo contato com os contaminados. Madri utilizou
uma pista de patinação no gelo como alternativa para o colapso de seus necrotérios; no
Equador, corpos aguardaram dias para serem coletados nas casas ou em suas
calçadas; em Manaus, por falta de caixões, alguns cadáveres foram enterrados em
sacos plásticos e, em determinado momento, em sistema de trincheiras e de sepulturas
coletivas; em São Paulo, foram contratadas câmaras frigoríficas e realizados enterros
noturnos.
Para atender às normas sanitárias, nos casos em que o diagnóstico de Covid
não foi claramente determinado, ou em que o falecimento ocorreu em decorrência do
vírus, os corpos foram cremados ou sepultados com caixão lacrado, sem velório, ou
com o tempo de vigília abreviado e o número de pessoas reduzido. Ao conduzir o caixão
à sepultura, coveiros totalmente paramentados com equipamentos de proteção
individual contra contaminação – macacões, botas, luvas látex, óculos de segurança,
máscaras e álcool em gel – deram à cena um toque de ficção científica distópica.
Durante a pandemia, as restrições adotadas para a prevenção do Coronavírus
alteraram as tradições dos cerimoniais fúnebres comumente realizadas no Brasil. A
questão que orienta essa reflexão pode ser formulada da seguinte maneira: quais as
consequências das novas formas de sepultamento para o processo de luto?

Antígona na Cidade
A quantidade inimaginável de doentes colapsou o sistema de saúde e as mortes
rapidamente saturaram o sistema funerário em alguns países do mundo. Os esforços
dos governantes para encontrar maneiras de preservar os corpos e lhes oferecer
sepultamento demonstram a importância de tais rituais em nossa cultura. O tema das
cerimônias fúnebres foi o fio de Ariadne deste artigo; fio que orienta uma, dentre muitas
possibilidades, de articulação entre a peça de Sófocles, Antígona, e O seminário, livro
7: a ética da psicanálise, de Jacques Lacan.
A tragédia sofocliana começa com uma determinação de Creonte de que
Etócles, defensor de Tebas, fosse sepultado com todas as homenagens oferecidas aos
mortos ilustres; enquanto Polinice, que lutara contra a Pátria, fosse proibido de receber
um túmulo ou qualquer honraria pública: “[...] que seu cadáver fique insepulto, repasto
de abutres e cães, e se transforme em objeto de horror” (Sófocles, 441 a.C./2004, p.
89).
Com este decreto, Creonte institui uma lei soberana em nome do bem de toda a
Cidade: não se pode honrar da mesma forma aqueles que defendem e os que traem a
própria pátria. Com esta máxima universal, Creonte comete um erro de julgamento que

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o submete à consequências fatais. Esta lei ultrapassa o limite que Antígona defende, a
saber, o das leis não escritas, da vontade dos deuses. Se para Creonte, as leis terrenas
equivalem às leis divinas, para Antígona, elas ocupam dois campos simbólicos distintos.
O confronto que ela trava com a ordem do rei e sua “escolha absoluta” de honrar a perda
do irmão, permite Lacan vislumbrar a questão do desejo.
Para Lacan, o ato de Antígona decorre do fato de que “[...] aquele que pôde ser
situado por um nome deve ser preservado pelo ato dos funerais” (Lacan, 1959-
1960/1997, p. 338). No entanto, sua insistência desvela, inicialmente, um ser desumano,
não civilizado, em acordo com seu desejo que visa a transposição de um limite para
além do qual o humano não pode se sustentar por muito tempo. A fidelidade a seu
desejo levado às últimas consequências não decorre apenas do direito do morto e de
sua família às cerimônias fúnebres, mas também de um pathos que articula intimamente
desejo e morte.
Desta paixão Lacan depreende a distinção entre duas mortes: a morte natural e
a morte absoluta, que aniquila o circuito natural de vida e morte que determina o
humano. Antígona se encontra entre estas duas mortes de uma maneira não
convencional: se normalmente a morte natural é seguida pela morte simbólica, neste
caso, a exclusão da comunidade antecede a própria morte. “Não falemos mais nela; é
como se ela já não vivesse”, diz Creonte à Ismênia (Sófocles, 441 a.C./2004, p. 101).
Segundo Lacan (1959-1960/1997, p. 300), o atravessamento do limite da
segunda morte é o que permite a construção de uma “imagem fascinante” que coloca
Antígona no centro da tragédia. Esta imagem fascina pelo “brilho insuportável” que ela
emana ao se fazer “essa vítima tão terrivelmente involuntária”, condenada a ser
enterrada viva em uma tumba por ter tentado enterrar o irmão.
Ao tomar tal suplício como destino, Antígona ultrapassa um limite que é a
posição de “na-finda-linha” (Lacan, 1959-1960/1997, p. 330); neologismo que conjuga
“fim da linha” com “finda a linha”. Com esta expressão Lacan evidencia que Antígona
toma o mal pelo bem porque alguma coisa para além desta fronteira, “esta zona limite
entre a vida e a morte” (Lacan, 1959-1960/1997, p. 330) se tornou o seu próprio bem
(Lacan, 1959-1960/1997, p. 328). Assim ela dá sentido ao seu ato.
No entanto, essa ultrapassagem não se dá sem o lamento da própria Antígona,
de que ela mesma, antecipadamente excluída do mundo dos vivos, não receberá
homenagens públicas: “Sem lágrimas, abandonada pelos amigos, sem cânticos
nupciais, desgraçada, sou conduzida nesta fúnebre viagem!” (Sófocles, 441 a.C./2004,
p. 110).
A atualidade de Antígona decorre do fato de o impedimento de receber as honras
fúnebres foi um dos transtornos decorrentes desta pandemia. Apesar de este

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impedimento vir de condições completamente distintas, retomar tal peça de Sófocles
permite evidenciar a importância dos ritos e sua aproximação com o sagrado. Se o dever
de sepultar o irmão, para Antígona, é uma necessidade de lhe render homenagens, há
um outro aspecto destes rituais que deve ser evidenciado: os efeitos de catarse e de
apaziguamento que eles produzem.

A função da catarse
A tragédia está na raiz da experiência analítica, como bem testemunham as
referências de Sigmund Freud às peças sobre Antígona e Édipo. Além de embasar os
conteúdos míticos necessários à sustentação de alguns conceitos psicanalíticos, Freud
recolheu das tragédias a noção de catarse.
Bastante conhecida nos momentos iniciais do tratamento analítico, catarse teve
origem na Antiguidade, especificamente em Aristóteles. Neste contexto, tal noção
caracterizava a purgação de paixões, como o temor e a piedade. No decorrer da história,
entretanto, ela foi associada à termos médicos e ganhou a concepção de “eliminação
dos humores pecantes” (Lacan, 1959-1960/1997, p. 297), que carrega um resíduo da
moralidade religiosa em sua própria definição.
No entanto, uma inflexão sobre esse conceito levou Lacan (1959-1960, p. 297)
ao termo Katharos, puros, que aproxima catarse de purificação. No deslocamento das
significações de tal noção, portanto, o sentido cerimonial da purificação ganhou o
primeiro plano. Toda essa discussão importa porque, nas tragédias, inclusive em
Antígona, catarse comporta uma dupla visão: ela é empregada tanto como “descargas,
retorno ao normal” (Lacan, 1959-1960, p. 297) quanto é vinculada à purificação ritual.
Nossa reflexão gira em torno do fato de os velórios e os sepultamentos serem,
em nossa cultura, cerimônias fúnebres que permitem a catarse; a purgação do temor
em relação à própria morte; a piedade do falecido, de seus familiares e de si mesmo.
Esses rituais permitem que as perdas sejam acolhidas, que se construam laços de vida
e de amorosidade, que sejam realizadas homenagens simbólicas ao falecido, que se
conte histórias vividas com aquele que se foi. A possibilidade de proferir palavras de
despedida produz efeitos de apaziguamento.
Sepultamentos sem ritos, sem a presença dos familiares e amigos, são como
Tragédias sem Coro. Lacan define que “[...] o Coro são as pessoas que se emocionam”,
cuja função é a de produzir uma certa purificação da emoção pela catarse. Há, na
catarse, um efeito de apaziguamento, uma certa “música” que produz um efeito de
entusiasmo. Tal processo é descrito por Lacan: “Toma-se conta da emoção de vocês
numa saudável disposição de cena. O Coro se encarrega disso. O comentário

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emocional é realizado. Essa é a maior chance de sobrevivência da tragédia antiga - ele
é realizado” (Lacan, 1959-1960/1997 p. 299).
Na catástrofe causada pela pandemia, a possibilidade de realização da catarse
fica subsumida pelas leis da ciência. No entanto, com seu ato, Antígona ensina que “A
morte nos impõe as suas próprias leis” (Sófocles, 441.a.c /1970, p.27). Diante desta
imposição é fundamental encontrar um modo de simbolização que permita inscrever
algo deste impossível de nomear presente na morte. Tal possibilidade pode ser
realizada pelo luto, tal como Sigmund Freud ensinou. No entanto, quais são as
consequências psíquicas quando este processo não ocorre ou quando ocorre em um
tempo distinto do “esperado”?

O luto no Exílio
No texto “Luto e melancolia”, Sigmund Freud (1917[1915]/1996) definiu o luto
como um trabalho que resulta em um “desinvestimento de catexias investidas no objeto
amado”. Em nossa cultura, este processo depende de cerimônias fúnebres que, quando
não ocorrem na presença do corpo, podem resultar em um luto em suspensão. Não
saber como o familiar enfrentou os últimos momentos de vida, ou não ter acesso aos
restos mortais do ente querido, pode gerar o prolongamento do sentimento de perda, a
fantasia de que aquela morte não aconteceu e o adiamento na elaboração do processo
de luto. Tais consequências foram amplamente discutidas para que a Comissão
Nacional da Verdade, que trata dos desaparecidos políticos durante a ditadura militar,
exigisse que os corpos fossem entregues às suas famílias para receberem as devidas
homenagens.
Diante das dificuldades ou mesmo da impossibilidade de parentes e familiares
honrarem a memória dos falecidos antes do sepultamento, em todo mundo surgiram
novos rituais para homenageá-los e confortar os enlutados: na Itália, empresas
disponibilizaram links para familiares em quarentena assistirem padres abençoando os
corpos; em Maceió, jangadas enfileiras e adornadas com velas brancas e fitas pretas
formaram um “velário” para homenagear os que não puderam ter um velório comum em
Alagoas. A não realização de um velório impede uma despedida última e o não contato
com o corpo morto abre um espaço de irrealizável bastante comum nas experiências
traumáticas.
Na tentativa de amenizar as distâncias exigidas para evitar a propagação da
doença durante o sepultamento, os rituais religiosos estão sendo realizados pela
internet, contando com o uso de plataformas digitais que congregam até uma centena
de amigos e familiares. Com a presença física limitada à família nuclear, as palavras de
conforto chegam de forma remota, sem nenhum contato presencial que a conforte.

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Após a conclusão dos ritos fúnebres, uma nova possibilidade de homenagem foi
disponibilizada no Brasil. A criação dos “inumeráveis”, (www.inumeraveis.com.br), um
memorial virtual que enaltece as histórias das vidas perdidas para a Covid, foi uma
maneira de fazer resistência à redução das vidas à números estatísticos. Nas perdas
em massa, quando deixa de ser possível enterrar e identificar os mortos de forma
individualizada, a valorização de cada vida precisa ser realizada ao menos
simbolicamente. E dar voz à família que perdeu um ente querido, a partir de um
memorial cuidadosamente escrito para aquele que se foi, evidenciando seus gostos,
seus gestos e traços singulares foi uma maneira encontrada para dar à vida o seu devido
valor.

À guisa de conclusão
Orientadas pela questão que intitula este artigo – As novas formas de
sepultamento interferem no processo de luto? –, focalizamos o momento atual de nossa
civilização assolada pela Covid-19. Apesar de toda dificuldade que há em escrever
sobre a atualidade, que não se decantou em um a posteriori, e ainda não desvelou as
consequências e o destino de determinado evento, nos arriscamos a pensar sobre o
processo de luto nesta época em que a pandemia modificou radicalmente as cerimônias
fúnebres.
O número inimaginável de mortos, e os esforços que em todo mundo foi
dispensado para preservar os corpos e lhes oferecer um sepultamento, ao menos,
digno, evidenciou a força deste costume sagrado. Para entendermos a importância
destes ritos, retomamos Antígona, peça sofocliana discutida minuciosamente por
Jacques Lacan, em O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise, aqui também trabalhado.
Diante das ordens de Creonte de manter o cadáver de Polinice sem qualquer
honraria, Antígona decide sepultá-lo com suas próprias mãos ao preço de ser
emparedada viva. Com este ato, ela denuncia que as leis divinas são distintas das leis
terrenas, e que Creonte, ao equivale-las em nome do bem-estar do povo, acaba por
desprezar os preceito divinos para sustentar sua autoridade.
O ato de Antígona, levado às últimas consequências, deixa ver o
ultrapassamento de um limite além do qual o humano não se sustenta por muito tempo.
Portanto, este ato, esclarece Lacan, articula diretamente desejo e morte, e coloca
Antígona em uma posição incomum: a morte simbólica antecede a morte natural. A
consequência desta antecipação é o fato de ela mesma, que ofereceu a própria vida às
honrarias fúnebres dispensadas ao irmão, não poder recebê-las de forma alguma.
Com esta pesquisa, concluímos a atualidade de Antígona em nossos dias, e à
importância das cerimônias fúnebres acrescentamos os efeitos de apaziguamento

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produzidos pela catarse. O trabalho que Lacan realiza sobre este conceito, tão caro à
psicanálise, demonstrando todas as modificações que ele sofreu no transcorrer da
história, permite uma abertura para duas vias que se entrelaçam: catarse remete tanto
à descarga quanto à purificação. E este entrelaçamento pôde ser visto nas cerimônias
de velório e sepultamentos, tal como eram realizados em nossa sociedade.
No entanto, com as modificações decorrentes da pandemia, os sepultamentos
estão ocorrendo sem ritos, tal como se as tragédias se estruturassem sem Coro. A
simbolização do trágico através da presença do Coro e dos processos de luto,
possibilitam um efeito de apaziguamento do impossível de nomear que o real da morte
inscreve. Sem aqueles que se emocionam, a catarse fica submetida às normas
científicas, com o risco de alterar substancialmente o processo de luto em nossa cultura.
Diante das impossibilidades colocadas pela pandemia, surgiram outras maneiras de
render homenagens às vidas perdidas, numa tentativa de impedir que elas se
transformem em uma estatística útil apenas para ser veiculada nas mídias.
Com seu ato-puro-desejo-trágico, Antígona faz anteparo simbólico aos
sepultamentos no exílio, que se tornaram comuns no início desta pandemia. Uma
proteção que não garante um processo de luto que possibilite o desinvestimento das
catexias investidas no objeto amoroso. Portanto, a questão aqui levantada só poderá
ser respondida quando o a posteriori escrever a história deste momento tão inusitado,
que nenhum campo de saber foi capaz de garantir uma orientação digna de confiança.
Ao final da escrita deste texto, o Brasil contabilizava 139.883 mortos e um claro
descontrole da doença, o que nos coloca a expectativa de um breve aumento desse
número.

Referências Bibliográficas
Lacan, J. (1959-1960/1997). O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed.
Sófocles. (441 a. C./1970). Antígona. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira.
Sófocles. (441 a.C./2004). Édipo Rei. Antígona. São Paulo: Editora Martin Claret.

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