Você está na página 1de 27

DOI

A NEGAÇÃO SOCIAL DA MORTE E SUA


BANALIZAÇÃO NA PANDEMIA DA COVID-19
THE SOCIAL DENIAL OF DEATH AND ITS TRIVIALISATION
DURING THE COVID-19 PANDEMIC

Renato Alves de Oliveira*

Síntese: O artigo trata da negação social da morte humana no Oci-


dente, a partir do século XX, e sua banalização no Brasil no contexto
da pandemia da Covid-19. Objetivo do texto é mostrar a negação so-
cial da morte presente na cultura do culto ao corpo, do vitalismo, da
longevidade, da negação do envelhecimento, do ativismo e do sucesso
econômico. O texto indica que a banalização da morte demonstra um
desprezo pela vida. Ignorar a morte é tratar com desdém quem a pade-
ce. A banalização da morte, com a consequente vulgarização da vida,
causou uma minimização da pandemia no Brasil. O método usado na
elaboração do artigo é o de análise social, em diálogo com autores que
tratam da negação e banalização social da morte. A conclusão consiste
em demonstrar que a sociedade ocidental nega a morte para não afron-
tá-la e nem pensá-la como um evento pessoal. Sua banalização revela
desprezo pela vida.
Palavras-chave: Vida; Morte; Negação social da morte; Banalização da
morte; Pandemia Covid-19.
Abstract: This article addresses the issue of the social denial of human
death in the Western world from the 20th century onwards and its tri-
vialisation in the context of the Covid-19 pandemic in Brazil. It aims to
show how human death is socially denied, in a culture that worships the
body, vitalism, longevity, activism and economic success. It also shows
the trivialisation of death as a sign of contempt for life, since to ignore
death is to treat those affected with disdain. The trivialisation of death

* Doutor em teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana, de Roma; professor adjunto do


Departamento de Teologia da PUC-Minas e membro do grupo de pesquisa “Teologia e Contempora-
neidade”; desenvolve estudos sobre a morte nos âmbitos cultural, filosófico-teológico e sobre as relações
entre antropologia e escatologia cristãs. É padre da Arquidiocese de Belo Horizonte. E-mail: <praobh@
yahoo.com.br>.
REB, Petrópolis, volume 82, número 323, p. 520-546, Set./Dez. 2022 521

with the consequent banalisation of life has led to the downplaying and
lack of control of the pandemic in Brazil. This study utilized a method
of social analysis, in dialogue with authors dealing with the topics of
social denial and the banalisation of death. It reaches the conclusion
that Western culture denies death to avoid confronting it or thinking
about it as a personal event. Its trivialisation reveals contempt for life.
Keywords: Life; Death; Social denial of death; Trivialisation of death;
Pandemic Covid-19.

Introdução
A morte é uma certeza que pulsa na interioridade da vida humana.
A morte entrou no mundo juntamente com a vida. Por isso, dizer vida
é referir-se a uma vida que é mortal. Desde seu nascimento, o ser hu-
mano está condenado a morrer. Trata-se de uma verdade impressa na
condição humana do sujeito. A vida está circunscrita e delimitada pela
morte. Não se trata de uma questão marginal, mas capital da existência
humana. A morte é uma questão central, porque a vida humana é reves-
tida de valor supremo e inegociável. Em razão do valor da vida humana,
nenhum ser humano pode morrer como um alguém ou um ninguém.
A morte significa que a vida humana tem um prazo e limite. Viver é
confrontar-se cotidianamente com a morte. O ser humano nasce e vai
morrendo lentamente.
O artigo seguirá o seguinte percurso metodológico: 1) abordará a di-
mensão doméstica, familiar e social da morte, que perdurou, no ociden-
te cristão, até o final do século XIX. No século XX, a morte passou de
um evento doméstico a um fato privado e individualizado. Antes, mor-
ria-se em casa, no aconchego da família. Atualmente, morre-se na soli-
dão do leito hospitalar; 2) mostrará como no século XX, no Ocidente,
se assistiu um fenômeno paradoxal sobre a morte humana: afirmação
e visibilidade no campo das ciências humanas (filosofia, teologia, psi-
cologia, sociologia etc.) e negação social e cultural. Rejeita-se falar e
pensar na morte como uma realidade pessoal; 3) demonstrará como a
negação social da morte está presente na cultura do culto ao corpo, na
rejeição do envelhecimento, na cultura do vitalismo, do ativismo e do
sucesso econômico; 4) enfatizará como a negação social se contrasta
com a audiência que a morte conquistou nos meios de comunicação.
A morte é um produto que dá audiência e vende bem; 5) apresentará
522 R.A. de Oliveira. Negação social da morte e sua banalização na Pandemia

como no contexto da pandemia da Covid-19, a morte passou por um


processo de banalização social como forma de vulgarização da vida. Ig-
norar a morte é desprezar a vida humana. A banalização da morte se
manifestou na minimização da pandemia no Brasil; 6) salientará como
a vulgarização da negação da morte se manifestou no atropelamento dos
rituais derradeiros em torno dela.

1. A dimensão doméstica e social da morte


No ocidente cristão, a morte possuía uma dimensão doméstica e so-
cial, conforme defende o historiador francês Philippe Ariès. O encontro
com a morte era marcado por uma preparação ritual. Acreditava-se que
a pessoa era avisada sobre o tempo em que aconteceria sua morte por
meio de sinais naturais ou por uma íntima convicção. “Não se morre
sem ter tido tempo para saber que se está para morrer. Caso contrário
se tratava de uma morte terrível, como a peste ou a morte imprevista,
então ocorria apresentá-la como exceção e não falar sobre ela” (Ariès,
1978, p. 18). Havia alguém, o nuncius mortis, que tinha uma proximi-
dade afetiva com o moribundo e era encarregado de anunciar-lhe a pro-
ximidade de sua morte. A morte súbita, por motivo de doença, guerra
ou acidente, era temida e vista como sinal de insatisfação divina, porque
privava a pessoa de uma preparação. “Os homens do fim da Idade Mé-
dia enviavam com prazer pedidos aos protetores especialistas contra a
morte súbita. A iconografia coloca um cálice nas mãos de santa Bárbara
a quem se atribui a graça de não morrer sem o viático. A reputação de
são Roque é célebre entre os santos anti-peste” (Mollat, 1966, p. 227).
Diante da iminência da morte, o leito do moribundo em sua casa
era circundado por uma atmosfera afetiva em que se registrava a presen-
ça de familiares, amigos e vizinhos. Entre as pessoas presentes no quarto
do moribundo, há registro da presença de crianças, de modo que até
o século XVIII não existe imagem do quarto de um agonizante sem
alguma criança. O quarto do moribundo se tornava um espaço público
e social. Consciente do ritual que deveria ser cumprido, o moribundo,
como protagonista, proprietário e centro de sua própria morte, presidia
os últimos momentos que antecediam sua partida. Era momento de
recomendação, manifestação de desejos, de reconciliação, de oração e
de cumprimento dos rituais religiosos (absolvição dos pecados, viáti-
co, aspersão com água benta): “A oração é composta de duas partes: o
REB, Petrópolis, volume 82, número 323, p. 520-546, Set./Dez. 2022 523

mea culpa, ‘Deus, me arrependo pela tua graça dos meus pecados’, uma
forma abreviada do futuro confiteor [...]. A segunda parte da oração é
a commendacio animae, paráfrase de uma oração antiquíssima, inspira-
da, talvez, dos hebreus da sinagoga” (Ariès, 1978, p. 23). O enfermo
demonstrava lucidez, controle da situação e aceitação da morte. Uma
vez cumprido o ritual coletivo, o moribundo se entregava nos braços
da morte. Alguns gestos típicos de alguém que se reconhecia na proxi-
midade da morte: “despia-se das armas, deitava traquilamente por ter-
ra: deveria ser em seu leito [...] Abria os braços em forma de cruz [...]
Mas, eis o costume: deitado de modo que a cabeça ficava voltada para
o Oriente, para Jerusalém” (Ariès, 1978, p. 21). Esses momentos finais
eram precedidos de simplicidade, tranquilidade, aceitação, emotivida-
de, sem dramaticidade.
A morte era vista vinculada com a biografia e a história pessoal de
cada um; cada pessoa fazia uma “revisão de toda a sua vida no momento
do morrer, em um só instante. Acreditava-se de fato que sua postura
naquele instante daria à sua biografia um sentido definitivo, uma con-
clusão” (Ariès, 1978, p. 40). Essa recapitulação pessoal, em que o mo-
ribundo tinha em suas mãos uma síntese de sua história vital, fazia de
seus últimos instantes de vida um verdadeiro juízo individual. Na visão
do historiador Ariès, o quadro do moribundo, instantes antes de sua
morte, era constituído de uma verdadeira antecipação da representação
do que aconteceria no dia do juízo particular:
Mas acontece alguma coisa que perturba a simplicidade da cerimônia
e que os presentes não veem, um espetáculo somente reservado ao mo-
ribundo, o qual o contempla com um pouco de inquietude e muita
indiferença. Os seres sobrenaturais invadem o quarto e se aglomeram na
cabeceira do moribundo. De uma parte, a Trindade, a Virgem e toda a
corte celeste e, da outra, Satanás e o exército dos demônios monstruosos
(Ariès, 1978, p. 38).
Outra mudança que se verifica é referente à relação do moribundo
com sua família. A relação do enfermo com sua morte era condividi-
da com a família. Quando alguém se percebia na iminência da morte
procurava exteriorizar suas ideias, seus pensamentos, seus sentimentos
e seus desejos religiosos por meio de um testamento. Na visão de Ariès,
o testamento, em sua compreensão inicial, tinha um caráter mais exis-
tencial e religioso:
524 R.A. de Oliveira. Negação social da morte e sua banalização na Pandemia

Do século XIII ao XVIII, o testamento foi para cada pessoa o meio de


exprimir, muito pessoal, os próprios pensamentos profundos, a própria
fé religiosa, o apego às coisas, às pessoas amadas, a Deus, às decisões
tomadas para assegurar a salvação da alma, o repouso do corpo. O tes-
tamento era então para cada pessoa não somente um ato de direito pri-
vado para a transmissão de uma herança, quanto um modo de afirmar
seus pensamentos e suas convicções profundas (Ariès, 1978, p. 55).
Com a evolução do tempo, assistiu-se a uma mudança referente ao
conteúdo e ao sentido do testamento. De um ato espontâneo, espiritual
e pessoal, passou a significar um ato jurídico-material. Ora, na segunda
metade do século XVIII, intervém uma mudança considerável na es-
trutura dos testamentos. Pode-se admitir que esta mudança ocorreu em
todo o ocidente cristão. As cláusulas piedosas, as escolhas de sepulturas,
os serviços religiosos e as doações de esmolas desaparecem, e o testa-
mento se reduz àquilo que é ainda hoje: um ato legal de distribuição de
patrimônio (Ariès, 1978, p. 55-56).
No final do século XIX e início do XX, assistiu-se a uma nova com-
preensão dos cemitérios e da arte funerária. Até o século XIX, os cemité-
rios eram construídos no centro da cidade e ao lado da Igreja, demons-
trando que a morte estava presente no centro da vida e da sociedade.
No entanto, essa prática passou por uma mudança, a partir do final
do século XIX, como mostra o modelo norte-americano de cemitério,
construído nos arredores das cidades, assemelhando-se a jardins e par-
ques. O cemitério, construído num contexto campestre, era sinal de
serenidade, de tranquilidade e de repouso. Segundo Vovelle, no final
do século XIX e início do século XX, os cemitérios dos Estados Unidos
ganham um caráter mais paisagístico e bucólico:
Entre estas influências, uma corrente comercial relativamente privile-
giada se instaurou com os Estados Unidos, que vão experimentar aqui-
lo que a tradição designa como rural cemetery e que aos nossos olhos
consiste em uma forma de cemitério ‘paisagístico’. Os Estados Unidos
conhecem já nos anos vinte a hostilidade para com os cemitérios intra-
-urbanos (Vovelle, 1986, p. 564).
Já os modelos de alguns países europeus, entre os quais a Inglaterra,
privilegiavam mais a dimensão artística do que a bucólica. O ambiente
sereno e pacífico dos cemitérios do século XX era uma forma de suavizar
a perturbação que a morte provoca.
REB, Petrópolis, volume 82, número 323, p. 520-546, Set./Dez. 2022 525

O século XX apresenta uma guinada substancial a respeito do tema


da morte, que é detectada por diversas áreas do conhecimento como
a psicologia, a sociologia, a história, a filosofia, a cultura e a teologia.
Ocorre um fenômeno paradoxal: a morte é condenada ao silêncio e,
simultaneamente, a partir da segunda metade do século XX, começa a
adquirir audiência nos ambientes intelectuais e nos meios de comuni-
cação. O século XX pode ser chamado de o século da morte, devido à
visibilidade que o tema conquistou em diversos segmentos da sociedade
e da cultura. Em razão da publicidade que o tema da morte alcançou,
alguns autores vão falar do “retorno da morte” (Manigne; André, 1976;
Ancona, 1993, p. 27-29).
Atualmente constata-se um “temor de falar da morte com a sua
consequente remoção e reaparecimento do tema com uma particular
efervescência” (Maggiani, 1979, p. 314). Essa mudança de perspectiva
sociocultural é denominada com vários termos: morte “proibida” (Ko-
walski, 2001, p. 461-481), “oculta” (Bizzotto, 1998, p. 47-68), “margi-
nada” (Versluis, 1971, p. 1025-1030), “removida” (Fuchs, 1973, p. 9),
“clandestina” (Basurko, 1976, p. 107), “expropriada” (Zuccaro, 2002,
p. 105-130), “obscena” (Maggiani, 1979, p. 273-274).

2. A negação social da morte


O ato de morrer, na sociedade ocidental do século XX, se constitui
em um fato escandaloso, em uma inconveniência que deve ser escondi-
da. A morte se tornou um tabu e deve ser banida da consciência públi-
ca e pessoal. Todo tipo de discurso ou de preocupação em relação aos
processos naturais da corrupção do corpo e que lembram fortemente a
realidade da morte deve ser considerado doentio e desgostoso e deve ser
mantido distante das crianças e dos jovens (Ancona, 1993, p. 12-13).
No contexto sociocultural do ocidente cristão, a morte se torna uma
realidade vergonhosa, mascarada e escamoteada. A evacuação da morte
da vida cotidiana constitui um fator estrutural da atual civilização. A
morte é banida das rodas de conversa com familiares e amigos; geral-
mente, tem-se disposição para conversar sobre diversos assuntos, mas
quando se trata de temas existenciais profundos, dentre os quais o da
morte, constata-se uma censura sociocultural. As pessoas se veem em-
baraçadas e bloqueadas diante da possibilidade de falar sobre o tema;
constata-se uma interdição social diante da possibilidade de falar e re-
526 R.A. de Oliveira. Negação social da morte e sua banalização na Pandemia

fletir sobre a morte. Segundo Gorer (1965, p. 173-174), a pornografia


da morte substituiu a do sexo. A morte é uma realidade obscena e mas-
carada da qual se evita falar principalmente diante de sua proximidade.
Esquiva-se de um confronto com a morte como se ela fosse algo incon-
veniente e repugnante.
Na realidade, esse comportamento de negação da morte revela um
medo de afrontá-la, de pensá-la e de assimilá-la na existência. Um re-
médio contra a morte é não pensar nela. Para “não ser amedrontado e
angustiado pela morte é preciso expulsá-la do pensamento” (Giardini,
1996, p. 57). Pensar na morte conduz a uma meditação na capacidade
de afrontá-la e de atualizá-la em minha condição mortal. Por isso, é
melhor viver como se eu fosse imortal. A morte diz respeito aos outros
e não a mim. No fundo, se pensa, de modo ilusório, que a remoção da
morte tornaria a vida serena e privada de preocupação existencial. É
preciso viver e se esquecer da morte como forma de tentar driblá-la.
No passado, o moribundo era visto como protagonista de sua morte,
transformando-a numa espécie de cerimônia pública, presidida e orga-
nizada por ele, em que participavam parentes, amigos, vizinhos e crian-
ças; atualmente, ao invés, tornou-se um fato privado e uma experiência
que ocorre num total isolamento. Desse modo, a morte como um tabu
não consiste simplesmente em seu silenciamento, mas sobretudo numa
nova forma de morrer e de lidar com a morte. O enfermo não é mais
protagonista de sua morte, que se torna um evento impessoal: morre-se,
mas não se sabe de quê. As pessoas que acompanham o moribundo nos
momentos de dor, de sofrimento e de agonia ocultam os reais motivos
que o conduzem à morte. A mentira se torna a verdade sobre a morte.
Procura-se ocultar do enfermo “a gravidade de seu mal (iludindo com
perguntas ou dando falsas respostas) e o expropria assim do direito de
ver a face da própria morte e de se preparar” (Rizzi, 2006, p. 23). Em
princípio, a justificativa para o ocultamento do motivo da morte seria
o de poupar o moribundo de sua angústia e de seu sofrimento. Ou seja,
não adianta o enfermo saber do que vai morrer porque isto não suavi-
zará seu sofrimento.
A rejeição social da morte demonstra uma mudança no local em que
ela ocorre: há uma passagem do ambiente doméstico e familiar para a
solidão e o anonimato dos hospitais. Se antigamente se morria em casa,
REB, Petrópolis, volume 82, número 323, p. 520-546, Set./Dez. 2022 527

na própria cama, cercado por familiares e amigos, num clima de luci-


dez e religiosidade, atualmente morre-se sozinho num leito hospitalar
rodeado de uma parafernália de aparelhos (Lepargneur, 1986, p. 95).
Doravante, o hospital é que tem posse, conhecimento e administra a
vida e a morte humanas. O hospital é o lugar onde se nasce e se morre.
A experiência dos dois pontos extremos da existência se dá num único
local: o hospital. Segundo o teólogo Ancona, o hospital, como espaço
técnico e bucrático, é o endereço onde se nasce e se morre:
A sociedade contemporânea, caracterizada pelo bem-estar e pela eficiên-
cia, parece ter codificado tacitamente que os dois eventos fundamentais
da vida de cada ser humano, o nascimento e a morte, sejam geridos
num lugar típico desta cultura: o hospital. Antropólogos e sociólogos
indicam o hospital como o símbolo por excelência da ‘morte técnico-
-industrial’ em que o homem não tem o direito de gerir a própria morte
(Ancona, 1993, p. 13).
A morte não pertence mais nem ao moribundo nem à sua família,
mas é regulada e administrada pela burocracia hospitalar. Geralmente,
em torno do doente cria-se uma espécie de cordão de segurança em que
as palavras “doença” e “morte” são evitadas. A família se recusa a tocar
no assunto, temendo que o estado clínico do doente piore e com o re-
ceio de magoá-lo. Os médicos preferem não dizer aos doentes o que eles
têm, transmitindo a notícia aos parentes próximos.
No contexto técnico do hospital, o moribundo não experimenta a
morte como um fato pessoal e próprio, mas como um evento impes-
soal e anônimo. Não é a sua morte, mas a morte em geral. A gestão da
morte e do morrer humanos é assumida por um pessoal especializado
(os senhores da morte – os tanatocratas), que institui o protocolo mé-
dico mais oportuno em relação ao caso. Terapias, técnicas e aparelhos
apropriados ao moribundo que se transforma em um dado profissional
administrado para uma melhor organização hospitalar. É na neutralida-
de hospitalar que se procuram todos os recursos médicos possíveis para
combater o sofrimento, a dor e retardar a morte. O moribundo perde
sua identidade e se torna um paciente entre tantos outros, sendo con-
denado a morrer em um estado de solidão existencial, experimentando,
muitas vezes, a morte com desumanidade e com tragicidade. “Em tal
condição, o que vem à tona não é tanto o sentido de um sofrimento físi-
co radical e extremo, mas o vazio afetivo e espiritual que se experimenta
de modo concreto” (Ancona, 2007, p. 19).
528 R.A. de Oliveira. Negação social da morte e sua banalização na Pandemia

Muitas vezes, o hospital se preocupa mais com a enfermidade do


que com o enfermo. A morte significa o fracasso dos recursos técnicos.
Acreditar que a medicina é capaz de curar todo tipo de enfermidade
significa admitir que a vida pode ser prolongada, em seu aspecto físi-
co, indefinidamente. “Assistimos a uma tentativa de prolongar o evento
biológico da vida, retardando o evento biológico da morte” (Zuccaro,
2002, p. 42). Diante do surgimento de novas doenças e de pandemias,
os cientistas se mobilizam rapidamente para procurar uma cura ou uma
vacina com o objetivo de preservar a vida humana e postergar ao má-
ximo a ocorrência da morte. A ambição dos recursos técnicos de curar
todas as enfermidades vê a morte como
[...] o fracasso mais grave a ser temido ou uma pausa na luta médica
pela vida, em que o termo ‘pausa’ comporta conotações eufemísticas.
Quando não é mais possível o silêncio, o mascaramento do morrer e
da morte, seja do moribundo que da família, se torna sintomático nas
expressões (‘ele precisa de repouso’, ‘vamos deixá-lo sozinho’...) e na
ritualidade hospitalar antes e depois da morte: o corpo que fala a mor-
te, único vínculo com os viventes, é ocultado, se torna obsceno e será
reencontrado para breves instantes e depois será selado para sempre
(Maggiani, 1979, p. 274).
Na realidade, essa obsessão da medicina de curar todo tipo de enfer-
midade e aliviar a dor manifesta um desejo de dominar e de domesticar
a morte. Os recursos técnicos da medicina visam preservar a integridade
física da vida e erradicar a morte. A morte é o inimigo contra o qual a
medicina luta diariamente. “A tecnologia médica e cirúrgica, sem ven-
cer a morte, marca pontos em várias batalhas contra ela, ao adiar sua
chegada e afastar a dor” (Lepargneur, 1986, p. 34). Atualmente, muitas
respostas técnicas e científicas são oferecidas para sanar a enfermidade,
a dor e a morte, mas se constata pouca capacidade humana de afron-
tá-las. Os recursos técnicos visam atenuar a dor e o sofrimento, para
que o enfermo possa experimentar uma morte sem dor, silenciosa. “O
progresso, mesmo combatendo vigorosamente a doença e a morte – e
remediando por isso indubitavelmente toda uma série de sofrimentos
que até há poucos decênios oprimiam a vida dos homens ocidentais ‘sem
remédio’ –, ao mesmo tempo causou a emigração e a remoção da morte”
(Grillo, 2007, p. 66). “Quase não se pode mais falar de agonia, desde o
momento em que os medicamentos tornam sempre mais possível um
morrer sereno” (Hofmeier, 1974, p. 609).
REB, Petrópolis, volume 82, número 323, p. 520-546, Set./Dez. 2022 529

Muitas vezes, a evolução tecnológica no combate às enfermidades


não é acompanhada de uma humanização da morte. A morte se tornou
uma vilã e um inimigo a ser vencido pela medicina, em nome de um
prolongamento físico da vida, de um desejo de conservação e de desen-
volvimento da vida (conservação de espermas, de células germinativas,
clonagem) e do aumento da expectativa de vida. Os recursos técnicos
da medicina provocaram uma subdivisão interna do evento único da
morte: a morte foi fracionada em uma série de pequenas etapas, de
modo que não se sabe qual é a verdadeira morte: morte cerebral ou in-
terrupção da respiração. O objetivo dessa subdivisão é cancelar a ação
dramática e impactante da morte de modo a torná-la aceitável e menos
agressiva. O proprietário da morte e das circunstâncias que a circun-
dam é a medicina. À família do enfermo cabe visitá-lo nos horários
determinados pelo hospital e receber as informações sobre seu estado
de saúde por parte dos médicos, visto que o enfermo se tornou uma
propriedade da medicina. Assim, tudo aquilo que os seres humanos
anteriormente procuravam obter e explicar recorrendo com súplicas às
potências sobrenaturais, agora se pede à medicina. “Hoje a medicina
se empossou do enfermo, tirando-o física e psicologicamente de seus
familiares de modo mais ou menos radical: tirou-o realmente de si
mesmo” (Pohier, 1974, p. 673).
A negação social da morte afeta a relação entre o moribundo e sua
família. Há uma perda dos contatos quantitativos e as experiências qua-
litativas da morte: a experiência da morte se torna menos intensa. O en-
fermo é privado de um contato familiar e social, experimentando “por
antecipação uma ‘doce morte’ social” (Sandrin, 1985, p. 6-7). Antes da
ocorrência da morte física, tem-se a experiência da morte como fato so-
cial e psicológico, visto que o enfermo é expropriado de sua residência,
de seus afazeres diários e de seu círculo de relações afetivas. A pessoa está
condenada a morrer privadamente. A privatização e o isolamento das
condições em que ocorre a morte são consequências do individualismo
e da privatização da vida. Desse modo, a morte se tornou uma realida-
de dessocializada. “A morte, e com ela tudo aquilo que pode recordá-
-la (o envelhecimento, a doença, a dor), vem sempre mais privatizada
e escondida” (Allievi, 2007, p. 40). Compete ao enfermo, privado de
uma aproximação consciente da morte, aceitar as condições nas quais
sua morte ocorrerá. Assim, a morte passa de um evento natural e pes-
soal a um fato técnico, medicalizado e impessoal. A morte se torna um
530 R.A. de Oliveira. Negação social da morte e sua banalização na Pandemia

“fato empírico manipulável e não mais um mistério intocável” (Pohier,


1978, p. 85). A morte é reduzida a uma constatação biológica: “trágico
êxito de uma enfermidade” ou “fim do processo de envelhecimento”
(Scortegagna, 1996, p. 54). No fundo, o ser humano é relegado a seu
aspecto físico-biológico. Ele passou de sujeito a objeto da morte. No
plano cultural, registra-se uma crescente diluição da dimensão pessoal
da morte que conduz a uma exclusão do patrimônio cultural, enquanto
insignificante para a vida.
Esse contexto sociocultural de ocultamento e negação da morte pro-
vocou mudanças nos ritos funerais. O novo conceito de morte e a nova
forma de morrer exigem uma nova postura diante da morte. Nessa
nova forma cultural de compreendê-la, as empresas fúnebres exercem
uma função importante: “serviços que anteriormente eram confiados a
familiares, parentes e amigos, agora são feitos por especialistas da empre-
sa. Eles objetivam, por assim dizer, a relação com o morto, poupando os
parentes de um certo conflito emocional” (Hofmeier, 1974, p. 610). Em
muitos casos, as empresas fúnebres prestam serviços sociais (notificação
pública do caso de morte com anúncios e avisos), jurídicos (assessoria
jurídica para cuidar de herança do testamento) e religiosos (contrata o
ministro religioso para realizar os rituais espirituais). A morte passa do
domínio do hospital para a indústria fúnebre. Assim, no entorno à morte
construiu-se uma indústria que priva os familiares de qualquer contato
com as questões referentes ao morto. Uma vez constatada a morte física,
tem-se um afastamento da família em relação ao morto, delegando-se
para uma empresa fúnebre os cuidados últimos com o falecido.
A negação da morte promove uma nova forma de enfrentar a morte
e o morrer. Nos Estados Unidos, os ritos funerários preveem espaços
específicos: os funeral parlours (espaços reservados para o recebimento
da família e dos amigos), as funeral homes (espaços em que o morto é
embalsamado e apresentado) os thanatos centers (complexos mortuá-
rios). Todas essas estruturas estão permeadas de uma linguagem e de
um modo de organização que visam atenuar e cancelar as várias refe-
rências à morte (Ancona, 1993, p. 16). No Brasil, há também lugares
sofisticados que lidam com a morte. Em Belo Horizonte, há um espaço
fúnebre chamado Funeral House, que consiste em um lugar glamouri-
zado, localizado na área central da cidade, em que se realizam os veló-
rios de famílias abastadas. O espaço parece mais um lugar destinado a
REB, Petrópolis, volume 82, número 323, p. 520-546, Set./Dez. 2022 531

uma festa do que a um serviço fúnebre. Esses espaços fúnebres glamou-


rizados buscam suavizar o horror que a morte representa, bem como
amortecer o impacto psicológico e social que a morte provoca.
A radicalização de uma remoção violenta da morte encontra seu cume
em uma prática, cada vez mais frequente, da cremação, que procura ex-
tirpar todos os vestígios possíveis da morte. Nas sociedades arcaicas,
desde a pré-história, o horror da decomposição do cadáver fez com que
o ser humano exercitasse algumas práticas que visam apressar a decom-
posição (cremação e endocanibalismo) ou evitá-la (embalsamamento)
(Morin, 1970, p. 28). Em muitas sociedades antigas, os corpos eram
enterrados ou queimados. Atualmente, a cremação, que consiste na in-
cineração do corpo com o uso de recursos químicos, é defendida por
questões urbanísticas (os cemitérios ocupam muito espaço físico e de-
vem ser eliminados dos centros urbanos), sanitárias (por uma questão
de saúde pública, a cremação seria mais higiênica) e ecológicas (com o
sepultamento, a decomposição do corpo poderia afetar os lençóis freáti-
cos e, ainda, tornar o solo inapto para ser reutilizado).
Outra prática sociocultural atual, que goza de popularidade, é o
hábito de embalsamar e maquiar o defunto. Essa preocupação com o
aspecto estético do defunto é uma forma de disfarçar e censurar a pró-
pria morte. O horror e a feiura que a morte representa precisam ser
eliminados. A prática de maquiar o defunto e torná-lo higienicamen-
te apresentável representa uma forma de fazer da morte uma realidade
mais aceitável e palatável. Consiste numa prática que visa amortecer as
imagens de desequilíbrio, de ruptura, de instabilidade e de repugnância
que a morte representa. Os atos de embalsamar e de cremar os mortos,
difusos em diversos países, representam uma forma de “esquecimento
da morte” (Ancona, 1993, p. 16). A negação da morte traz em seu cer-
ne uma afirmação da vida em seu aspecto físico-biológico. Segundo o
filósofo Gadamer (2006, p. 72), “a repressão da morte significa vontade
de viver”. A censura da morte consiste num desejo de afirmação da vida
em seu aspecto físico. A morte soaria como um fato inconveniente no
interior da vida. Essa problemática oculta em seu interior uma “censura
das realidades últimas” (Angelini, 1984, p. 756).
Na realidade, a negação da morte oculta um desejo de imortali-
dade físico-biológica. A morte é um impeditivo diante da possibilida-
de e do desejo de se experimentar uma vida sem limite e sem confim.
532 R.A. de Oliveira. Negação social da morte e sua banalização na Pandemia

O ser humano deseja viver eternamente o aspecto físico de sua existên-


cia, porém dentro dele está a morte, o limite de sua vida física. A morte
significa que a vida tem um prazo, um limite e uma data de validade.
A morte é uma certeza que delimita e circunscreve a vida; essa certeza
pode causar angústia, revolta e insatisfação na vida de um sujeito que
deseja viver uma vida sem limite físico. O desejo de uma vida imortal,
no sentido físico, consiste em um repúdio do aspecto contingente e
finito da existência. A contingência e a finitude podem resultar em
aspectos insuportáveis para a existência de um sujeito que deseja viver
permanentemente. A afirmação da vida, como uma grandeza imortal
no sentido terreno e finito, revela uma negação do caráter temporal
da existência e da própria duração da realidade. “Qualquer tentativa
idealística de negar a morte como fato radical e significativo do homem
aparece como defesa contra uma angústia inexplorável, ou como sinal
de impossibilidade de assumir um significado ‘positivo’ do fim da du-
ração temporal” (Lodi, 1972, p. 206).
O desejo da ciência e da medicina é descobrir um antídoto para a
morte. Libertar a vida da morte é um desejo futuro da ciência. Conjec-
turar uma existência concreta que não passasse pela morte e que não
conhecesse um limite existencial radical terminaria em uma ditadura
do imanente e do espaço-temporal. Uma vida fisicamente imortal seria
suportável? Libertar a vida de seu caráter finito seria uma forma de tor-
ná-la aceitável e tolerável? A morte não é um limite necessário imposto
à vida? A imortalidade transcendente da visão espiritual e religiosa da
morte é substituída por uma ótica imortal e imanente da perspectiva
secular. O pressuposto antropológico dessa visão cultural é a redução do
ser humano à sua dimensão física e corporal.
A negação da morte, produzida no contexto da sociedade e da cultu-
ra ocidentais, pelo menos no plano da práxis social, representa uma rea-
lidade bem consolidada que, porém, não oferece soluções válidas para
afrontar o problema da morte humana.

3. A negação da morte diante da cultura do vitalismo, do culto ao


corpo, do progresso econômico e do ativismo
A remoção social e cultural da morte é verificada na busca por uma
qualidade de vida, postergando seu evento, no culto ao corpo e à jo-
vialidade permanente, no desejo do sucesso econômico, removendo os
REB, Petrópolis, volume 82, número 323, p. 520-546, Set./Dez. 2022 533

inconvenientes que ela provoca, e na cultura do ativismo laborativo e do


divertimento, com o escopo de atenuar as perturbações que ela causa.
O desejo das ciências da saúde (medicina, fisioterapia, enfermagem,
biologia etc.) é dominar e domesticar a morte. O reinado da morte con-
siste na proclamação da derrota das ciências da saúde. A morte é uma
realidade inconveniente. As ciências da saúde buscam todos os recursos
(pesquisas, medicamentos, vacinas etc.) para prorrogar cada vez mais
o evento da morte. Busca-se ao máximo uma afirmação da vida e uma
negação da morte. Procura-se qualidade e prolongamento da vida. As
gerações atuais vivem mais do que as gerações anteriores.
Como forma de negação da morte, houve um crescimento vertigi-
noso da indústria do corpo, da saúde e da beleza. Atualmente, assiste-se
a um exagerado vitalismo com o culto ao corpo, à saúde, ao bem-estar
físico, à eterna juventude; um crescimento no consumo de produtos
cosméticos e uma procura acentuada pela cirurgia plástica com fins esté-
ticos. Busca-se um corpo com uma imagem eternamente jovem, sem si-
nais que recordem sua dimensão finita e limitada. Trata-se de um corpo
sem rugas e sem imperfeições físicas; enfim, um corpo que não possui
sinais de morte. Essa visão vitalista é uma forma cultural de exorcizar o
envelhecimento, a dor, o sofrimento e a morte. A procura frenética pela
qualidade de vida não é acompanhada por uma busca pela qualidade da
morte e do morrer. Segundo Ancona, a busca por um conceito de qua-
lidade de vida é uma forma sutil de rejeição social da morte:
Em uma cultura como a nossa, dominada e com uma forte obsessão
pelo conceito de “qualidade de vida”, as questões relativas à morte e ao
morrer se tornam irrelevantes e inconvenientes e, por isso, devem ser
evitadas ou removidas [...]. Saúde e bem-estar constituem um dever a
ser perseguido e assumem um valor absoluto, a ponto de considerar
insignificante e indecente uma vida privada de beleza e sanidade global
[...]. Nesta cultura de referência para muitos é óbvio que não há espaço
algum para uma consideração em termos de valor para aquelas expe-
riências humanas problemáticas como o sofrimento, a velhice, o morrer
e a morte (Ancona, 2007, p. 17).
A negação da morte se oculta na negação do envelhecimento, um
processo biológico que recorda a condição finita e cuja sujeição à suces-
sividade temporal do corpo deve ser negada. O processo de envelheci-
mento recorda e atualiza que a morte está orientada para o fim físico.
Como forma de negação implícita da morte, é preciso apagar do corpo
534 R.A. de Oliveira. Negação social da morte e sua banalização na Pandemia

os sinais que recordam sua exposição à sucessividade do tempo e do


processo de envelhecimento. O envelhecimento recorda algo repudiá-
vel, indigno do corpo e que deve ser censurado e ocultado. A rejeição
do envelhecimento se mostra na ocultação dos sinais que demonstram a
sujeição do corpo a tal processo: maquiagem, pintura dos cabelos bran-
cos, cirurgias plásticas diante da constatação de “imperfeições” corporais
(caimento das pálpebras sobre os olhos, sobrancelhas artificiais etc.). É
preciso ter um corpo jovem, sarado, malhado e sem sinais de obesida-
de, deficiência física ou exposto ao envelhecimento. Busca-se um corpo
idealizado imune à dor, ao sofrimento, ao envelhecimento e, enfim, à
morte. O corpo deve transcender seus limites físicos e suas barreiras
temporais. Procura-se um corpo irreal e imortal.
As ideias de progresso, de acúmulo, de realização, de sucesso e de
felicidade não compactuam com a realidade da morte. Em um cenário
econômico em que impera um desejo obstinado pelo desenvolvimen-
to, pela ascensão profissional, pela concepção ilimitada de poder, pela
competitividade e pelo lucro, a morte é vista como um obstáculo e um
evento indesejado. O ser humano tem um desejo ilimitado de sucesso
profissional, de ascensão social, de conquista econômica e bem-estar
social, porém, diante desse contexto, surge a morte como uma ideia
inconveniente que recorda a dimensão finita do sujeito. O evento da
morte como algo que indica uma ideia de ruptura, de separação, de
desconexão é inaceitável para uma realidade social e econômica que
prima pela velocidade e pelo volume dos bens produzidos, pela con-
quista de mercado e pela concorrência. Na visão de Ancona, o oculta-
mento social da morte tem uma dimensão sociológica diante das exi-
gências técnicas e industriais:
O processo de negação e remoção da morte tem um significado so-
ciológico na civilização ocidental contemporânea. Esse processo está
alinhado com as exigências técnico-industriais. Os atos de pensar e de
sentir a morte não correspondem às leis do progresso e da produção em
geral. A civilização industrial — ao contrário das sociedades rurais em
que a morte é uma realidade como qualquer outra — não admite uma
possível conscientização do fenômeno morte (Ancona, 1993, p. 14).
Constata-se uma “vontade não declarada, mas operante, de cancelar,
de atenuar, de remover tudo aquilo que pode interferir nos ritmos da
produtividade” (Rizzi, 2006, p. 25). Nesse sentido, quando morre um
funcionário de uma empresa, a sociedade não pode parar para chorar o
REB, Petrópolis, volume 82, número 323, p. 520-546, Set./Dez. 2022 535

defunto (viver a experiência da elaboração do luto), pois este será ime-


diatamente substituído por outro, para que a morte não interrompa a
cadeia produtiva. Nesse cenário, a morte, para ter espaço e aceitação,
deve se tornar uma peça que contribui para o funcionamento do pro-
gresso econômico. Ou seja, a morte deve se tornar um produto de con-
sumo ou, do contrário, será vista como algo que se encontra na direção
oposta do progresso e do lucro.
Outra forma de expulsar a morte do horizonte reflexivo e existencial
do ser humano é se deixar absorver pela cultura do ativismo, do con-
sumismo e do divertimento. A postura ativista da cultura atual é uma
forma de reprimir a ideia da morte. Percebe-se uma necessidade de estar
sempre ocupado, fazendo alguma coisa, de se ter todo o tempo do dia
repleto de atividade, uma compulsão pelo trabalho e uma necessidade de
se manter atualizado a cada instante, pelos meios de comunicação, sobre
o que ocorre no mundo. Verifica-se uma necessidade mórbida de estar
o tempo todo conectado e ativado com a realidade e os afazeres, porque
pode ser que ter um espaço de tempo livre conduza o ser humano a pen-
sar em questões existenciais profundas, dentre as quais a ideia da morte.
O ativismo laborativo é uma forma de manter o ser humano distraído e
desfocado de questões existenciais. É preciso viver como se a morte não
existisse ou não se referisse à minha pessoa. É necessário que vida cotidia-
na seja preenchida por momentos de entretenimentos e distrações para
não ceder espaço para pensar em questões existenciais profundas.
Na verdade, para muitos daqueles aos quais é concedido o repouso do
cansaço do trabalho ter um tempo livre à disposição significa um tempo
vazio, que eles rapidamente preenchem com distrações e divertimentos,
para evitar que pensamentos muito sérios, entre os quais o pensamento
da morte, venham a angustiá-los (Giardini, 1998, p. 419).
Um comportamento ativista e laborativo é valorizado e visto como
sinal de vitalismo, jovialidade e produtividade. Mas no subterrâneo des-
se comportamento oculta-se uma repressão de pensar em questões que
têm uma densidade existencial. O sujeito ativista, para descansar e re-
fazer suas forças, necessita experimentar emoções fortes e se divertir de
um modo intenso. Tem-se a passagem de um ativismo laborativo para
um ativismo emocional e recreativo. Esse ser humano é absorvido pela
cultura do entretenimento: curtir a vida (carpe diem): viagens, férias, fa-
zer esporte, assistir à televisão, conectar-se com a internet etc. É preciso
536 R.A. de Oliveira. Negação social da morte e sua banalização na Pandemia

divertir, estar distraído, realizar os projetos pessoais, gozar dos prazeres


que a vida oferece (comer, beber, dançar, passear etc.) e curtir a brevida-
de da existência, com o intento de não pensar em questões existenciais
profundas. É necessário gozar a vida com a máxima intensidade sem
pensar em seu limite existencial e em sua brevidade. Observando como
um desmedido comportamento laborativo e recreativo camufla o pen-
samento da morte, expressa Giardini (1998, p. 424):
Este tipo de atividade absorve de tal modo a atenção daqueles que a ela
se dedicam que não deixa para eles nem tempo e nem vontade de pensar
que são mortais. [...] [trabalho e recreação] quase nunca advertem para
o transcorrer do tempo e eles perdem a consciência de que suas vidas
terminarão. Deixar-se absorver por intensas atividades laborativas e re-
creativas dá a entender que a própria vida é de duração interminável.
A pessoa que tem um perfil ativista tal que, para descansar, precisa
experimentar um divertimento intenso, pode terminar desenvolvendo
um comportamento consumista. Esse comportamento pode significar
um desejo obstinado de consumir algo como forma de abrandar suas
angústias, seus sofrimentos e suas decepções. Nesse comportamento
consumista compulsivo não se consome por exigência orgânica ou pes-
soal, mas por uma necessidade psicológica de negação de algo profundo.
A pessoa é induzida a estar sempre “drogada”, mediante o desenvol-
vimento de um comportamento ativista no trabalho, nos momentos
recreativos e no modo de consumir como forma velada de anular uma
reflexão sobre as questões existenciais, entre as quais a morte. Esse é
um comportamento superficial e massivo, que distancia a pessoa de si
mesma e a impede de enfrentar perguntas fundamentais da existência:
Quem eu sou? Qual será o meu fim? Qual o sentido do sofrimento e da
dor? Por que existe o mal? Qual o sentido da morte?

4. A exposição da morte nos meios de comunicação social


antes da pandemia da Covid-19
A negação sociocultural da morte contrasta com a audiência con-
quistada nos meios de comunicação, principalmente na televisão e no
cinema, tornando-se objeto de espetáculo, em virtude da violência e da
brutalidade com que é apresentada. Se o contato concreto com a morte
representa um daqueles fatos desgostosos que deve ser mantido distan-
te da experiência cotidiana, isso não se verifica com a “morte ao vivo”
REB, Petrópolis, volume 82, número 323, p. 520-546, Set./Dez. 2022 537

transmitida pela televisão, pela internet, pelo cinema e por outros meios
de comunicação. Segundo Ancona, os meios de comunicação transfor-
maram a morte em um espetáculo, gerando cenas de formas impactos
coletivos e pessoais:
A espetacularização da morte [...] sustenta significativamente cifras de
audiência e de lucros; porque é um produto que se vende bem! Atra-
vés dos media, que assediam de um modo constante o viver cotidiano
do homem contemporâneo, a morte e o morrer, reduzidos existencial-
mente às assim chamadas cenas de forte impacto emotivo (violências,
acidentes individuais e coletivos, guerras, catástrofes, genocídios etc.),
alcançam milhões de pessoas e se apresentam como puros e simples
fatos vistos comodamente sem alguma participação direta e sem um
envolvimento pessoal (Ancona, 2007, p. 20).
A morte se tornou um produto comercializável pelos meios de co-
municação. As mortes que geram lucro e altos picos de audiência são
as mortes trágicas ou de pessoas famosas, de personalidades nacional
ou internacionalmente conhecidas, que geram comoção popular; as
mortes por acidentes trágicos, guerras e pandemias. Quanto mais trá-
gica a morte ou mais famosa aquela pessoa que morre mais comoção
e audiência produz. Porém, trata-se de uma morte cuja comoção é
momentânea e suave. É uma morte que não impacta existencialmente
como a morte de um familiar ou de uma pessoa querida. Não é uma
morte que gera um luto permanente e intenso. Trata-se da morte do
outro, anônimo ou famoso.
Com a ampliação dos meios de comunicação, a morte conquistou
um caráter público. Entretanto, esse não é um fenômeno exclusivo da
contemporaneidade. O caráter público da morte tem raízes distantes e
cada cultura ofereceu o seu espetáculo (desde as arenas em que os cris-
tãos padeciam o martírio, as execuções públicas nas fogueiras, as cru-
cifixões e outros tipos de morte que ocorriam nas praças públicas). Po-
rém, atualmente, com o clima frenético das técnicas de comunicação, o
fenômeno da morte assume dimensões mais notórias e alcança milhões
de espectadores. A morte-espetáculo dos meios de comunicação con-
siste num produto de consumo coletivo que não ajuda o ser humano a
entender ou sentir em profundidade a relevância da morte para a vida.
Trata-se de um fenômeno midiático que não toca existencialmente o ser
humano e o deixa indiferente. A morte-espetáculo dos meios de comu-
nicação “está em linha com o processo cultural da remoção da morte,
538 R.A. de Oliveira. Negação social da morte e sua banalização na Pandemia

típico de nossa sociedade ocidental. Sob este aspecto, ela é um produto


que vende bem e como tal vem comercializado e tornado público nos
oportunos canais comerciais” (Ancona, 1993, p. 32).
A exposição da morte nos meios de comunicação se refere a uma
imagem genérica, impessoal e anônima. “O espectador está comoda-
mente sentado na poltrona da sala, diante da tela e, daquela fortaleza
que o torna imune à morte, goza do espetáculo. A morte se aproxima,
entra em sua casa de todos os modos, mas ela permanece inócua e estra-
nha. Não é a sua” (Zuccaro, 2002, p. 44-45). Essa imagem abstrata da
morte é inofensiva e distante, sem consequências práticas, e não causa
um impacto na consciência pessoal. Consiste numa experiência que não
possibilita uma reflexão sobre a condição mortal e a finitude da exis-
tência pessoal. É a morte de um alguém com quem não se tem vínculo
afetivo. É uma imagem da morte que não toca a pessoa, ou que pode
até lhe causar uma comoção rápida, mas que, em seguida, se apaga e é
esquecida velozmente. “Toda a gama de reportagens da morte na im-
prensa, no rádio e na televisão nos comove por uns momentos, porém
não nos afeta no fundo de nosso ser. Não podemos ficar todas as noites
fazendo luto” (Küng, 2000, p. 263). O espectador, diante das imagens
trágicas da morte que são apresentadas pela televisão, muito provavel-
mente se esquece assim que as imagens desaparecem.
Os programas do final da tarde na TV brasileira que tratam do so-
frimento, da dor e da morte, rendem altas cifras de audiência. O sofri-
mento alheio causa interesse no telespectador. A curiosidade está vol-
tada para aquilo que se refere ao outro. Os vídeos mais acessados no
YouTube são aqueles que tratam de mortes trágicas como, por exemplo,
as executadas pelo grupo extremista estado islâmico. As matérias que ex-
ploram a morte estão entre as lidas dos jornais impressos e eletrônicos.
Também, registra-se um aumento de jogos eletrônicos infantis e adultos
que tratam da morte. A indústria em torno da morte fatura altas cifras
financeiras com a ideia da morte. Porém, trata-se sempre da dor, do
sofrimento e da morte alheia; não coopera na assimilação e aceitação da
morte pessoal.
Os meios de comunicação apresentam a morte do outro de forma
exibicionista, como uma verdadeira e própria epopeia do macabro. No
fundo, “é natural que uma civilização que teme a morte e às vezes a
aceita com prazer, às vezes se sacia de modo sadomasoquista e às vezes a
REB, Petrópolis, volume 82, número 323, p. 520-546, Set./Dez. 2022 539

reduz a uma informação que suscita no espectador uma curiosa mistura


de indignação, de satisfação e de indiferença” (Thomas, 1983, p. 193).
Essa imagem midiática da morte concebe-a a civilização como um fato
acidental, imprevisto, sem concretude existencial, dissociado e externo
à vida. A morte é vista como um fenômeno pontual, que atinge a exis-
tência de modo externo.

5. A banalização da morte no contexto da


pandemia da Covid-19
A pandemia Covid iniciou em dezembro de 2019, na China, e
se disseminou para centenas de países em poucos dias e meses, com
milhares de indivíduos infectados, mortos e curados, provocando uma
transformação profunda na sociedade contemporânea, em diferentes
aspectos.
Ela chegou ao Brasil em fevereiro de 2020. Desde que chegou foi
tratada com negligência pelo presidente da república brasileira, taxan-
do-a de uma “gripezinha” passageira. Durante a evolução da pande-
mia no Brasil, o presidente, movido por preocupações econômicas, deu
declarações minimizando a doença, posicionando-se contrariamente às
medidas de higienização e isolamento social, tratando com desdém o
número de mortos e boicotando a vacinação da população. O primeiro
mandatário, de modo desumano, fez um pacto com a morte. O governo
aliou-se ao vírus, defendendo a imunização de rebanho, uma infecção
em massa da população, como forma de dominar e frear a dissemina-
ção da doença. As medidas negacionistas e genocidas do presidente da
república fez com que o Brasil se tornasse um dos países com um dos
maiores números de infectados e mortos do mundo. No mês de junho
de 2021, o Brasil chegou à cifra de 500 mil mortos. Foi considerado o
pior país na gestão da pandemia. O presidente, preferindo salvar a eco-
nomia e os empregos, sacrificou muitas vidas.
A banalização da morte no contexto pandêmico da Covid também
se deu pela postura negacionista da ciência por parte do primeiro man-
datário do Brasil. Desde no início da pandemia, no Brasil, houve um
tratamento com desdém dos dados científicos e dos recursos técnicos
eficazes contra o vírus. O presidente do Brasil defendia medicamentos
ineficazes, refutados reiteradamente pela comunidade científica, contra
a doença. Havia um estimulo e uma defesa de que as pessoas tomassem
540 R.A. de Oliveira. Negação social da morte e sua banalização na Pandemia

medicamentos ineficazes contra a doença, que não usassem mascarás e


que voltassem ao trabalho, pois que era necessária manter a economia.
Com o mote de que necessário salvar a economia, o presidente empur-
rava a população na direção do vírus e lançava o povo ao encontro da
morte. O presidente defendia um primado da economia sobre a pessoa,
da morte sobre a vida. Muitos séquitos do presidente morreram to-
mando medicamentos ineficazes e defendendo a economia em primeiro
lugar. Muitas vidas foram tragadas pelo tratamento negligente e desde-
nhosa com a ciência.
Durante o período pandêmico, os jornais brasileiros noticiavam dia-
riamente o número de infectos, de mortos e de recuperados. Em perío-
dos agudos, nos meses de março, abril, maio e junho de 2021, o Brasil
chegou a registrar, em alguns dias, mais de 4 mil mortos por dia. Perce-
beu-se, com a evolução da pandemia, uma banalização com os números
de mortos pela população. O povo ouvia com indiferença a cifra do
número de mortos. A morte tinha de tornando uma realidade rotineira.
Depois de mais de um ano de vigência da pandemia, a morte se tornou
uma realidade familiar e cotidiana, sendo tratada com indiferença e sem
alarde. A morte de cada vítima da Covid-19 foi reduzida a um número
que não causa mais comoção nas pessoas. No fundo, pensa-se que é ha-
bitual e normal que as pessoas morram, pois estamos numa pandemia.
A banalização da morte está intimamente ligada à vulgarização de quem
morre. Trata-se sempre da banalização da morte do outro, tratado como
“alguém” ou “ninguém”. A morte que não é banalizada e nem vista
como um número é a morte de um familiar ou de um amigo.
A banalização da morte está intimamente ligada à banalização da
vida. A banalização da morte conduz a uma visão vulgarizada de quem
a padece. Se a morte é despojada de dignidade e de sentido é porque,
no fundo, a vida humana é destituída de valor. Uma morte sem valor
revela uma vida sem valor. Assim, a morte do ser humano, em termos
de valor e de dignidade, é reduzida à morte de um ser vivo qualquer do
universo. Dessa forma, o ser humano é destituído de seu primado onto-
lógico e axiológico na criação. Se o ser humano “é” mais e “vale” mais do
que qualquer outro ser vivo, sua morte não pode ser banalizada e nem
ignorada. Porém, se a morte do ser humano não for vista como o fim de
valor absoluto é porque ele foi reduzido ao nível animalesco. A morte
do ser humano é o fim de valor supremo, de uma singularidade única
e de um microcosmo irrepetível. A brutalização da morte é o resultado
REB, Petrópolis, volume 82, número 323, p. 520-546, Set./Dez. 2022 541

de uma visão brutalizada da existência: “a brutalização que experimenta-


mos hoje frente à vida do homem está profundamente relacionada com a
rejeição da pergunta pela morte” (Ratzinger, 2007, p. 91). A banalização
da morte do ser humano é uma forma de reduzi-lo à sua condição pu-
ramente biológica, ignorando sua dimensão moral e religiosa. Porque o
ser humano não é somente matéria que ocupa lugar no espaço, mas de
valor revestido de uma dignidade absoluta, sua morte não pode passar
desapercebida e nem pode ser vulgarizada.

6. Os rituais finais e o luto no contexto da


pandemia da Covid-19
As pandemias costumam gerar mortes em massa em um curto espa-
ço de tempo, provocando implicações psicológicas diversas. No caso da
Covid-19, algumas medidas adotadas internacionalmente para conter
a rápida disseminação do vírus, evitando uma escalada do número de
infectados, consistiu na higienização das mãos, no uso de máscara, e no
distanciamento social. Como forma de controlar o vírus, a pandemia
da Covid-19 provocou uma desintegração do tecido social e afetivo. Os
laços sociais e afetivos foram encolhidos, dando lugar a um isolamento
social forçado e obrigatório. Pois as interações sociais e afetivas, ou seja,
as relações face-a-face são importantes também na vivência dos rituais
de despedida, que consistem na realização de processos de despedida en-
tre pessoas na iminência da morte e seus familiares e amigos. “Os rituais
de despedida acontecem por meio de incentivo à comunicação familiar,
definição de questões não resolvidas, compartilhamento de bons mo-
mentos vividos juntos, agradecimentos e pedidos de perdão, revelando-
-se promotores de qualidade de morte para os doentes e de qualidade de
vida para os familiares” (Crepaldi et al., 2020, p. 4).
A comunicação verbal e a não verbal são essenciais nos rituais de des-
pedida. A comunicação não verbal (um aperto de mão, um beijo, um ges-
to de carinho e proximidade etc.) parece importante em situações em que
as palavras são insuficientes para externalizar o que se deseja ou, ainda,
não podem ser ditas. No contexto pandêmico, o fato de muitas pessoas
enfermas estarem isoladas, sem possibilidade de estabelecer interações fa-
ce-a-face pode dificultar as conversações no final da vida. Diante desse
cenário de impossibilidade de contato social, algumas equipes de saúde
usaram smartphones ou computadores, possibilitando a manutenção de
542 R.A. de Oliveira. Negação social da morte e sua banalização na Pandemia

contato com a rede socioafetiva da pessoa enferma, por meio de telefo-


nemas, mensagens de texto, áudio e vídeo. Apesar disso, nesses casos há
poucas oportunidades para a comunicação não verbal e mesmo a comu-
nicação verbal pode ser prejudicada, sobretudo quando as pessoas na imi-
nência da morte estão entubadas ou sedadas (Crepaldi et al., 2020, p. 4).
No contexto da pandemia da Covid-19, os rituais finais que envolvem
os últimos momentos da vida estão sendo atropelados. Geralmente, as
pessoas, quando são internadas por causa da Covid-19, perdem o contato
com os familiares, os vizinhos e os amigos. Por causa do caráter contagioso
da doença, o enfermo é privado de todo contato social. Há uma privação
do ritual familiar da visita ao enfermo para levar-lhe afeto, proximidade e
conforto. Assim, o enfermo faz experiência de isolamento afetivo e social.
Dessa forma, nos casos em que os infectados pela Covid-19 chegam a
óbito, a morte física é precedida pela morte social e afetiva. A pessoa que
passou a vida toda envolvida pela relação com a família e com os amigos
é obrigada a fazer a travessia da vida para morte sem qualquer vínculo
familiar. Morre-se sozinho, na solidão do leito hospitalar.
Outro ritual familiar que está sendo atropelado no contexto pandê-
mico é o do velório e o da despedida final à pessoa vítima da Covid-19.
Em razão do caráter infecioso da doença, os velórios estão sendo veta-
dos totalmente ou realizados com um número mínimo de familiares.
Desse modo, as famílias estão sendo privadas dos rituais da despedida e
do velório. Há privação da experiência de práticas culturais e religiosas
socialmente prescritas de manejo e permanência durante algum tem-
po próximo ao corpo, para despedida. Da mesma forma, esta privação
pode provocar a sensação de negligência e de tratamento desumano no
final da vida, aumentando o risco para problemas de saúde mental nos
sobreviventes após a crise. Ela deixa uma lacuna psicológica nos fami-
liares e amigos das vítimas. Parece que a vítima da Covid-19 desaparece
do universo relacional e afetivo da família sem realização da despedida
e do último adeus. Muitas famílias precisam de auxílio psicológico em
razão do atropelamento dos rituais finais das vítimas da pandemia. Em
situações mais agudas da pandemia, o velório consistiu apenas numa
visualização do caixão lacrado, realizada por dois familiares. O corpo
da vítima de Covid-19 não passava pelo procedimento de tanatopraxia,
que consiste na limpeza, no tratamento e na maquiagem do corpo para
o velório. Uma situação que ocasionou comoção nacional no Brasil foi a
realização do enterro das vítimas em covas coletivas. Além de não poder
REB, Petrópolis, volume 82, número 323, p. 520-546, Set./Dez. 2022 543

realizar os rituais finais, muitas pessoas viram seus familiares sendo en-
terrados indignamente em valas comuns devido ao aumento vertiginoso
no aumento de sepultamento e do colapso no sistema funerário. Trata-se
de uma experiência trágica que deixa cicatrizes psicológicas profundas.
A vivência dos rituais de despedida é importante como momento
preparativo para a elaboração do luto. “Sabe-se que os rituais de despe-
dida são organizadores importantes para um processo de luto normal
dos indivíduos e o impedimento de viver esse momento pode trazer
intensos sentimentos de raiva, horror, choque” (Fiocruz, 2020). Como
fazer a experiência do luto de uma morte privada da vivência dos rituais
finais e da ausência de velório? O luto é um processo natural de respos-
ta diante do rompimento de um vínculo, ou seja, diante da perda de
alguém ou de algo significativo. No caso da perda de alguém, o luto se
caracteriza pelo período de elaboração, aceitação e acolhida da morte do
outro. Não há uma regra geral sobre o período de duração e a intensida-
de do luto. Cada pessoa experimenta do luto de uma forma particular
e pessoal. A experiência do luto depende do vínculo afetivo, do tipo de
morte e da faixa etária da pessoa falecida. A morte da pessoa com que
se tem um vínculo afetivo intenso e a morte de criança ou adolescente
podem gerar lutos prolongados. Há pessoas que passam a vida toda en-
lutadas enquanto outras elaboram e superam o luto rapidamente.
No contexto da pandemia, o desafio consiste em elaborar o luto de
uma pessoa a quem foi impossível visitar no hospital, de quem foi im-
possível despedir-se e participar de seu velório. Parece que a pessoa é for-
çada a viver o luto de alguém que foi abruptamente retirado do mundo
dos vivos. O luto já é uma experiência de dor e sofrimento; porém, no
contexto pandêmico, tornar-se uma vivência ainda mais dolorida. No
período pandêmico, o luto é “complicado”, podendo ocorrer de forma
mais intensa e duradoura do que o habitual, pelo fato de o/a enlutado/a
“não ter conseguido processar a situação nem se despedir de forma que
lhe permita ter um senso de realidade e concretude” (Fiocruz, 2020).

Conclusão
A negação social da morte refere-se a uma imagem anônima, pessoal
e genérica da morte. Trata-se da morte do outro, do alguém e do nin-
guém. Evita-se afrontar a morte como um evento pessoal. Procura-se ne-
gar a morte, tratando-a como um fato periférico e marginal à existência.
544 R.A. de Oliveira. Negação social da morte e sua banalização na Pandemia

No fundo, busca-se negar a verdade mais própria, certa e irrefutável do


existir humano. O processo de negação da morte é um mecanismo para
não pensá-la como evento próprio, como minha morte. Procura-se distra-
ção com a morte do outro como forma de negar a própria.
A banalização da morte revela uma trivialização da vida. Se a morte
do ser humano é banalizada é porque sua vida resta destituída de valor e
significado. Ignorar a morte de um ser humano consiste em tratar com
desdém quem a padece. Se a morte do ser humano não tem valor moral
é porque ele foi reduzido a qualquer outra categoria de ser vivente. Se a
morte do ser humano é banalizada, então qual a diferença entre a morte
humana e a morte de um animal? É preciso afirmar que a morte de um
ser humano é o fim de um valor absoluto e supremo. A morte do ser
humano é o fim de individualidade que não pode ser ignorada. O ser
humano “é” e “vale” mais do que qualquer outro ser vivo. Por isso, sua
morte não ser negligenciada.

Referências
ALLIEVI, S. La morte oggi. Servitium, Milano, v. 41, n. 171, p. 33-44,
2007.
ANCONA, G. La morte e il morire nella cultura odierna. Servizio della
Parola, Brescia, v. 39, p. 16-22, 2007.
ANCONA, G. La morte: teologia e catechesi. Cinisello Balsamo: Pao-
line, 1993.
ANGELINI, G. Morire “in privato”. Morte, morale e religione nella
cultura contemporanea. Rivista del Clero Italiano, Milano, v. 65, p. 744-
756, 1984.
ARIÈS, P. Storia della morte in Occidente dal Medioevo ai giorni nostri.
Milano: Rizzoli, 1978.
BASURKO, J. La cultura dominante ante el problema de la muerte.
Iglesia Viva, Valencia, n. 61, p. 103-122, 1976.
BIZZOTTO, M. Occultamento della morte. Camillianum, Roma,
v. 9, n. 18, p. 47-68, 1998.
BLANK, R.J. Escatologia da pessoa. São Paulo: Paulus, 2000.
BRESCIANI, C. Accoglienza della vita e, quindi, della morte. Camil-
lianum, Roma, v. 3, p. 291-305, 1992.
REB, Petrópolis, volume 82, número 323, p. 520-546, Set./Dez. 2022 545

COGO, A.S. et al. Saúde mental e atenção psicossocial na pandemia


da COVID-19. Processo de luto no contexto da COVID-19, Rio de
Janeiro: Fiocruz; Cepedes, 2020.
CREPALDI, M.A. et al. Terminalidade, morte e luto na pandemia de
COVID-19: demandas psicológicas emergentes e implicações práticas.
Estudos de Psicologia, Campinas, v. 37, p. 1-12, 2020.
FUCHS, W. Le immagini della morte nella società moderna: sopravvi-
venze arcaiche e influenze attuali. Torino: Einaudi, 1973.
GIARDINI, F. Lavorare e divertirsi per scacciare la paura della morte?
Sapienza, v. 51, p. 399-436, 1998.
GIARDINI, F. Le multiformi reazioni umane alla paura della morte.
Sacra Doctrina, Bologna, v. 41, p. 45-93, 1996.
GORER, G. Death, Grief, and Mourning in contemporary Britain. Lon-
don: Cresset Press, 1965.
GRILLO, A. Esperienza della morte e simboli rituali cristiani. Servi-
tium, Milano, v. 41, n. 171, p. 65-77, 2007.
HOFMEIER, J. L’odierna esperienza del morire. Concilium, Brescia,
v. 4, n. 10, p. 605-618, 1974.
KOWALSKI, E. La morte proibita. Il morire nella prospettiva filosofica,
antropologica ed etica. Studia Moralia, Roma, v. 39, p. 461-481, 2001.
KÜNG, H. Vida eterna? Madrid: Trotta, 2000.
LEPARGNEUR, H. Lugar atual da morte: antropologia, medicina e
religião. São Paulo: Paulinas, 1986.
LODI, E. La visione della morte e dei suffragi nell’Ordo Exequiarum.
Rivista di Pastorale Liturgica, Brescia, v. 10, p. 201-211, 1972.
MAGGIANI, S. Elementi del dibattito odierno sul tema della morte.
Rivista Liturgica, Camaldoli, v. 66, p. 270-317, 1979.
MANIGNE, J.-P.; ANDRÉ, B. Il ritorno della morte. Brescia: Querinia-
na, 1976.
MOLLAT, M. Le sentiment de la mort dans la vie et la pratique re-
ligieuses a la fin du Moyen Age. La Vie Spirituelle Supplément, Paris,
v. 19, n. 77, p. 218-229, 1966.
MORIN, E. O homem e a morte. Lisboa: Publicações Europa-América,
1970.
546 R.A. de Oliveira. Negação social da morte e sua banalização na Pandemia

POHIER, J.-M. Morte, natura e contingenza. Riflessioni sulla possi-


bilità di ritardare la morte con la medicina. Concilium, Brescia, v. 4,
n. 10, p. 669-686, 1974.
RATZINGER, J. Escatología. Barcelona: Herder, 2007.
RIZZI, A. L’uomo di fronte alla morte. Villa Verucchio: Pazzini, 2006.
SANDRIN, L. Uno sguardo dentro l’oscura esperienza del morire e del
soffrire. Credere Oggi, Padova, v. 5, n. 29, p. 5-14, 1985.
SCORTEGAGNA, R. I tempi della morte: un approccio sociologico.
In: BRENA, G.L. (Ed.). Il tempo della morte. Padova: Gregoriana Libre-
ria Editrice, 1996. p. 49-72.
SUNG, J.M. A rejeição da velhice e a negação da morte. Horizonte Teo-
lógico, Belo Horizonte, n. 3, p. 13-32, 2003.
THOMAS, L.-V. Antropologia de la muerte. Mexico: Fondo de Cultura
Económica, 1983.
VERSLUIS, N. La morte è un tabù?. Concilium, Brescia, v. 7, p. 1023-
1043, 1971.
VOVELLE, M. La morte e l’Occidente dal 1300 ai giorni nostri. Bari:
Laterza, 1986.
ZUCCARO, C. Il morire umano: un invito alla teologia morale. Bres-
cia: Queriniana, 2002.
Artigo recebido em: 12 jan. 2022
Aprovado em: 02 abr. 2022

Você também pode gostar