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O LUTO COMO CATEGORIA DIAGNÓSTICA: CONSIDERAÇÕES SARTRIANAS

Chapter · September 2017

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Sarah Vieira Carneiro Georges Daniel Janja Bloc Boris

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O LUTO COMO CATEGORIA DIAGNÓSTICA: CONSIDERAÇÕES SARTREANAS

Sarah Vieira Carneiro


Georges Daniel Janja Bloc Boris

Introdução

O processo de luto é amplamente reconhecido como uma experiência


humana universal, uma resposta normal e esperada à perda. A abordagem do luto
nas pesquisas em saúde mental é crescente. A literatura especializada aponta
características (sintomas) normais e patológicas do luto, o tempo de duração, a
intensidade, o curso, o prognóstico e o seu tratamento. Há mesmo um “movimento”
científico para inclusão do luto ou, pelo menos, do luto patológico como categoria
clínica nos manuais diagnósticos, processo que se encontra em franca expansão.
Recentemente, uma decisão polêmica tomou conta do ambiente acadêmico
especializado: foi definida a retirada do luto como critério de exclusão para o
diagnóstico de transtorno depressivo maior, desde que a duração dos “sintomas”
seja superior a duas semanas. O que, aqui, nos propomos a apresentar é uma
reflexão sobre este “movimento”, em termos históricos, sociais e psicológicos, bem
como fazer uma articulação da concepção de luto com a fenomenologia existencial
de Jean-Paul Sartre (1939/2006; 1943/2011; 1946/2010; 1960/1966). Para tanto, na
primeira parte, apresentamos uma breve análise sociohistórica do processo de luto.
A segunda parte é constituída de uma revisão crítica de artigos científicos atuais
sobre o luto. A terceira e última parte discute a contribuição de alguns conceitos da
fenomenologia existencial de Jean-Paul Sartre (liberdade, má-fé e angústia) à
abordagem do luto.

Análise Sociohistórica da Concepção de Luto

Na tentativa de compreender um fenômeno, o fato de estarmos imersos


numa determinada sociedade e num dado tempo histórico gera o risco da
naturalização de nossa forma de lidar com o mundo (Heywood, 2004). Perguntas
enganosamente simples expressam, em seu bojo, a construção sociohistórica e o
processo de apropriação humana e individual de tais conceitos. Como reagimos
diante da morte de alguém querido? Contrariamente aos que buscam uma
causalidade linear entre o luto e o funcionamento cerebral, julgamos de suma
importância circunscrever historicamente a perda no contexto sociocultural. O
historiador e antropólogo francês Philippe Ariès (1975/2003) empreendeu esta
experiência nos dois volumes de sua obra “O Homem diante da Morte”, nos quais
aponta, através dos séculos, na sociedade ocidental, quatro períodos, assim
denominados: a morte domada (do século V ao XVII), a morte aparente ou de si
mesmo (séculos XVII e XVIII), a morte do outro (século XIX) e a morte interdita
(século XX até os dias atuais).

A morte domada
Ariès (1975/2003) denominou de morte “domada” a concepção vigente no
período do século V ao XVII, na qual o homem mantinha uma atitude de resignação
diante da sua finitude, o que impedia que a morte se apoderasse de sua vida. A
morte das pessoas era precedida por sinais que os próprios moribundos
pressentiam. Não que fossem dotadas de clarividência, mas todos sabiam que iam
morrer. O aviso era captado por signos naturais ou, ainda com maior frequência, por
uma “convicção íntima” ou reconhecimento espontâneo, mais do que por uma
premonição sobrenatural ou mágica. Não havia meios de blefar ou de fazer de conta
que nada viram. Eram observadoras dos signos e, mais do que tudo, de si mesmas.
Não tinham pressa de morrer, mas quando viam chegar sua hora, estavam prontas,
sem precipitação nem atraso, como deviam morrer os cristãos. Diante de tal clareza,
o moribundo reunia toda a família e os amigos, ao redor do seu leito, e, desta forma,
iniciavam-se os ritos pré-fúnebres. Inicialmente, o moribundo fazia um lamento das
coisas e dos seres amados que seriam perdidos, isto é, lamentava a vida que
perderia em breve. Depois, o moribundo recebia o perdão dos amigos e dos
familiares, despedia-se deles e os encomendava a Deus. Em seguida, recebia a
absolvição sacramental do sacerdote (“extrema unção”) e partia. Nesta época, os
corpos ainda eram enterrados dentro das igrejas (“campo santo”). Toda a cerimônia
que acompanhava o moribundo era pública, simples e familiar. Havia, no entanto,
um tipo de morte temido e vergonhoso, naquela época, que Ariès denominou de
“mors repentina” (morte repentina). As pessoas desejavam uma morte lenta e
avisada para que todos os rituais de adeus e de perdão pudessem ser
concretizados. Quando a morte repentina acontecia, era vergonhosa, pois
significava castigo ou maldição para os descendentes da família.
Assim, percebemos uma atitude de resignação ao inevitável, traduzida numa
relação de naturalidade, familiaridade e publicidade diante da perda, que era
característica daquele período. Assim,
a) A morte era esperada no leito;
b) A morte era uma cerimônia pública e organizada pelo próprio moribundo, que
a presidia e conhecia seu protocolo;
c) Tratava-se, também, de uma cerimônia pública. Todos podiam entrar nos
aposentos do moribundo livremente, inclusive as crianças; e
d) Os ritos de morte eram simples, sendo aceitos e cumpridos de modo
cerimonial, mas sem caráter dramático ou gestos excessivos de emoção.

A morte aparente ou de si mesmo


Os séculos XVII e XVIII representam um período de mudança da concepção
da morte, fortemente influenciada pelos casos de catalepsia (rigidez tônica),
relatados em toda a Europa durante a Idade Média. A população europeia
manifestava traços de pânico de ser enterrada viva por meio de ilustrativos
testamentos. Há registros de pedidos, bastante comuns, como: “esperar que meu
corpo inicie o processo de decomposição para iniciar o cortejo”, ou “permito e peço
que golpes de lanceta sejam aplicados nos meus calcanhares, antes de enterrarem
meu corpo”. O medo de que seus entes queridos fossem enterrados vivos levou a
sociedade, também, a estender os velórios.
Outros fenômenos, sempre relativos à preocupação com a particularidade de
cada indivíduo, são ilustrativos deste período, tais como:
a) A representação do juízo final no quarto do moribundo: antes, se concebia
que o juízo final aconteceria no final dos tempos e que não haveria lugar para a
responsabilidade do indivíduo pelo cômputo das suas boas e más ações. Então, a
cena se transformou: a avaliação das almas seria realizada pelo arcanjo São
Miguel. O juízo final permaneceu sendo representado por uma corte de justiça, na
qual Cristo estaria sentado no trono de juiz, rodeado por sua comitiva (os
apóstolos). Surgiu, então, a ideia de um livro de contas individual;
b) O interesse na decomposição física do cadáver: o horror à decomposição do
corpo após a morte se estendeu, também, à decomposição em vida, representada
pela doença e pela velhice. A morte se tornou o lugar em que o homem tomou
consciência de si mesmo;
c) O começo da personalização das sepulturas: ocorreu uma individualização
das sepulturas, significando o desejo de conservar a identidade do túmulo e a
memória do desaparecido.

A morte do outro
A partir do século XIX, o homem das sociedades ocidentais passou a dar à
morte um novo sentido, exaltando-a, dramatizando sua finitude e, desejando que
fosse impressionante e arrebatadora. Mas, ao mesmo tempo, já se ocupava menos
de sua própria morte, e, assim, a morte romântica, retórica, passou a ser, antes de
tudo a morte do outro. Como o ato sexual, a morte passou a ser considerada, a
partir de então e cada vez mais acentuadamente, uma transgressão, que arrebatava
o homem de sua vida quotidiana, de sua sociedade racional e de seu trabalho
monótono, para lançá-lo em um mundo irracional, violento e cruel. Naturalmente, a
expressão de dor dos sobreviventes era devida a uma nova intolerância com a
separação. A simples ideia da morte comovia as pessoas: choravam, desmaiavam,
desfaleciam e jejuavam. Confiando nos que lhe eram próximos, o moribundo
delegava-lhes parte dos poderes que havia ciosamente exercido até então, por meio
de testamentos amplos. O acúmulo de corpos nas igrejas, também reconhecido
como um problema de saúde pública, devido às emanações pestilentas e aos
odores fétidos, tornou-se intolerável. A exposição dos corpos corrompia a dignidade
dos mortos e parte da sociedade se voltou contra a Igreja, por ter feito tudo pela
alma e nada pelo corpo. Com a ideia de visitar o morto, era preciso que ele tivesse
uma morada própria, de propriedade da família: o jazigo no cemitério.

A morte interdita
Durante o século XX, ocorreu um fenômeno inaudito: a morte, tão presente
no passado, de tão familiar, começou a se apagar e a desaparecer, tornando-se
vergonhosa e objeto de interdição. Sem dúvida, encontramos no cerne desta
mudança um sentimento já presente no século XIX: aqueles que cercavam o
moribundo tendiam a poupá-lo e ocultar-lhe a gravidade de seu estado. A verdade
começava a ser problemática. Entre 1930 e 1950, a evolução se precipitou. Tal
aceleração se deveu a um fenômeno material importante: o deslocamento do lugar
da morte. Já não se morria em casa, em meio aos seus, mas no hospital, sozinho.
As pessoas passaram a morrer no hospital porque ele se tornou o local no qual se
presta os cuidados com o moribundo, pois já não se pode proporcioná-los em casa.
Antes, asilava miseráveis e peregrinos; depois, tornou-se um centro médico, no qual
se cura e se luta contra a morte. Hoje, continua tendo tal função curativa, mas
passou, também, cada vez mais, a ser considerado um lugar privilegiado da morte:
morre-se no hospital porque os médicos não conseguiram curar; não vamos mais ao
hospital para sermos curados, mas, precisamente, para morrer. A morte no hospital
não é mais ocasião de uma cerimônia ritualística, presidida pelo moribundo, em
meio à assembleia de seus parentes e amigos. Atualmente, a morte é um fenômeno
técnico, causado pela parada dos cuidados, ou, de maneira mais declarada, por
decisão do médico e da equipe hospitalar. Inclusive, em muitos casos, há muito, o
moribundo perdeu a consciência. A morte foi dividida, parcelada em pequenas
etapas, dentre as quais, definitivamente, não se sabe qual a verdadeira morte,
aquela em que se perdeu a consciência ou aquela em que se perdeu a respiração.
Nas novas regiões da morte, procura-se reduzir ao mínimo decente as
operações destinadas a fazer desaparecer o corpo. Antes de tudo, é importante que
a sociedade, a vizinhança, os amigos, os colegas e as crianças se apercebam, o
mínimo possível, que a morte ocorreu. Se algumas formalidades são mantidas, e se
uma cerimônia ainda marca a partida, devem permanecer discretas e evitar todo
pretexto a uma emoção qualquer: assim, as condolências à família são, agora,
suprimidas, no final dos serviços do enterro. As manifestações aparentes de luto
são condenadas e desaparecem. Não são mais usadas roupas escuras e não se
adota mais uma aparência diferente daquela do cotidiano. Uma causalidade
imediata aparece, prontamente: a necessidade da felicidade, o dever moral e a
obrigação social de contribuir para a felicidade coletiva, evitando toda causa de
tristeza e mantendo um ar de estar sempre feliz, mesmo que se esteja no fundo da
depressão. Ao demonstrar algum sinal de tristeza, peca-se contra a felicidade, que é
posta em questão, e a sociedade arrisca-se a perder sua razão de ser.
Sobre a relação com a morte no Brasil, DaMatta (1984/2011) destaca que
falar dos mortos é como negar a própria morte, pois, na sociedade brasileira, o
morto continua existindo, voltando, sistematicamente, para pedir ajuda e dar lições
de humildade cristã; enfim, permanece em lugar privilegiado em sua comunidade e
na sua família: “no Brasil, a morte mata, mas os mortos não morrem” (p. 57). Esta
relação de proximidade com o mundo dos mortos também se alterou em nosso país
(em prol da medicalização), como destacou Ariès (1975/2003). Assim como
observamos o movimento de institucionalização e de medicalização da morte,
também percebemos tal processo em relação às manifestações de luto. Como
trataremos adiante, o pesar não é apenas vergonhoso ou um sinal de fraqueza: é
considerado doença. Como tal, torna-se objeto dos especialistas e deve ser
prevenido, diagnosticado e tratado.

O Luto como Categoria Clínica

Como destacamos anteriormente, as manifestações psicológicas e sociais


em torno da morte e do luto não ocorrem no vácuo. O desenvolvimento científico
sedimentou e validou o caminho que transformou o luto em doença. Atribui-se ao
filósofo, físico e matemático René Descartes (1596-1650) a tradição de opor mente
e corpo na busca da explicação de fenômenos humanos. O chamado dualismo
cartesiano postulou que mente e matéria seriam constituídas de diferentes
substâncias e que caberia à glândula pineal (glândula endócrina localizada entre os
dois hemisférios cerebrais) a conexão entre elas. Dentre muitos outros
desdobramentos dos achados cartesianos, deu-se uma consequência especial para
nossa discussão: a dessacralização do corpo. Com a morte, a alma livre deixaria o
corpo, tornando-o um objeto para a ciência. À observação naturalista do
comportamento de homens e animais, aliou-se o estudo dos cadáveres, em busca
de correlatos biológicos para explicar fenômenos humanos mais complexos.
Na mesma tradição, um outro grande nome se destacou, especialmente no
que tange à observação das pessoas enlutadas. Em seu tratado “A Expressão da
Emoção no Homem e nos Animais”, o naturalista britânico Charles Darwin
(1859/2000) descreveu expressões e gestos involuntários usados pelo homem e
pelos animais inferiores, dando preferência aos últimos, “já que menos propensos a
enganar” (p. 35). Para Darwin, a emoção humana é expressa através de uma trilha
de forças nervosas transmitidas por canais habituais, “produzindo seu efeito em
todos os pontos onde a vontade ainda não consiga interferir pela força do hábito” (p.
37). Assim, a forma como expressamos nossas emoções seria hereditária,
reforçada pela sua utilidade, manifestando o caráter universal da espécie. Darwin se
voltou à questão específica do luto e retratou os enlutados por meio de uma
descrição cuidadosa:
pessoas sofrendo de luto excessivo geralmente buscam alívio através de
movimentos frenéticos, (...) mas quando o sofrimento é prolongado, elas não
buscam movimento, permanecem paradas e passivas, podendo
ocasionalmente embalar-se para frente e para trás. A circulação se torna
lânguida; as faces pálidas; as pálpebras caídas; a cabeça pousada sobre o
peito contraído; os lábios, as bochechas e o queixo caem com o próprio peso
(p. 99).
O pai da teoria da seleção natural chegou a identificar um grupo de músculos como
os responsáveis pelas reações de luto, ao tempo em que reafirmava seu caráter
universal: “a expressão do luto, em decorrência da contração dos músculos-do-luto,
não é restrita aos europeus, mas parece comum a todas as raças de humanos” (p.
110). Conceber o processo de luto como um fenômeno físico e universal, portanto,
foi um passo fundamental para concebê-lo como doença, uma vez que, para a
identificação do desvio, era essencial delimitar um parâmetro. Ao defender que a
expressão do luto é hereditária, determinada pela evolução da espécie e com
estritos correlatos físicos, tal concepção eliminou todo o caráter individual, histórico
e cultural das perdas. Neste sentido, um brasileiro do século XXI se enlutaria da
mesma forma que um aborígene australiano. Qualquer fuga de tal padrão seria um
indicativo seguro de um desvio genético ou mesmo funcional.
Considera-se que a obra “Luto e Melancolia”, de Freud (1917/2010), teve um
caráter seminal no tocante à introdução do luto como tema de estudo em saúde
mental. Freud, do ponto de vista da psicanálise, buscava e se preocupava,
particularmente, em distinguir o luto da melancolia em termos de desinvestimento e
reinvestimento libidinais. Para Freud, a melancolia distinguia-se do “luto normal”
porque advinha de uma relação de ambivalência com o objeto perdido, levando a
um empobrecimento do ego e a uma queda da auto-estima. A distinção entre luto e
melancolia fundou a ideia de que há um “luto normal”, saudável, e outro que segue
os caminhos da patologia. Os comportamentos autoagressivos, cujo ápice ocorre na
tentativa de suicídio, seriam o limiar entre a normalidade e a doença.
Foi em 1944 que o psiquiatra Erich Lindemann, em seu artigo “A
Sintomatologia e o Manejo do Luto Agudo1”, definitivamente descreveu o luto nos
moldes de uma doença, usando expressões como “síndrome”, “sintomatologia”,

1Tradução livre de Lindemann, E. (1944). The symptomatology and management of


acute grief. American Journal of Psychiatry, 101, 141-149.
“reações mórbidas” e “prognóstico”. Já no início do artigo, Lindemann apresenta os
pressupostos do seu trabalho:
1) O luto agudo é uma síndrome definida, com sintomatologia física e psicológica;
2) Tal síndrome pode aparecer logo após uma crise; pode ser adiada; pode ser
exagerada ou aparentemente ausente;
3) No lugar da síndrome típica, podem aparecer quadros distorcidos, cada um
representando um aspecto em especial da síndrome do luto;
4) Com técnicas apropriadas, tais quadros distorcidos podem ser transformados
com sucesso em reações normais de luto com resolução.
O artigo de Lindemann foi publicado no prestigiado American Journal of Psychiatry,
mas o seu autor não propôs o uso de medicamentos. Um psiquiatra contemporâneo
de Lindemann, Myerson, também em 1944, foi além e propôs o uso de eletrochoque
no tratamento de enlutados, no artigo “O Uso da Terapia de Eletrochoque em
Reações Prolongadas de Luto”, publicado no New England Journal of Medicine.
Myerson argumentava que, nos casos tratados com sucesso por ele, parecia não
haver um fundo psicológico, mas alterações fisiológicas que se reorganizavam
mediante o eletrochoque. Certamente, os eletrochoques caíram em desuso, mas as
bases para um entendimento do luto como perturbação fisiológica estavam
lançadas.
Na década de 1960, o psiquiatra e etologista2 John Bowlby lançou sua teoria
do apego, na qual defendia que o comportamento de apego teria valor de
sobrevivência para todas as espécies e que o comportamento exibido na perda
seria genérico e teria como objetivo recuperar o vínculo. Com raízes claras na obra
de Charles Darwin, Bowlby (1973/1998) propôs a divisão do luto em fases:
1) Entorpecimento: o enlutado vive o choque e tem dificuldade de compreender a
ausência;
2) Anseio e busca: o enlutado exibe comportamentos de busca, na esperança do
restabelecimento do vínculo, e sofre crises de raiva quando percebe que isto é
impossível;
3) Desorganização e desespero: dando-se conta da impossibilidade de reaver o
vínculo, o enlutado se desorganiza e se desespera; e

2 A etologia é a disciplina que estuda o comportamento animal.


4) Reorganização: o enlutado passa por um grau maior ou menor de adaptação à
vida sem a pessoa perdida.
Esta tendência da divisão do luto em fases marcou profundamente o campo de
estudo do luto em saúde mental.
O psiquiatra britânico Colin M. Parkes, que trabalhou com Bowlby durante
algumas décadas, teve e continua tendo grande expressão na área. Parkes
(1972/1998) publicou seu livro “Luto: Perdas na Vida Adulta”, em que também
trabalhou com as fases propostas por Bowlby a partir de uma vasta pesquisa com
viúvas, sugeriu que o luto patológico seria aquele em que a pessoa se fixa em
determinada etapa do processo de luto e “não consegue” completá-lo. Sugeriu a
seguinte classificação para o luto patológico:
1) Luto crônico: prolongamento indefinido do luto, com predomínio de ansiedade,
tensão, inquietação e insônia;
2) Luto adiado: a pessoa pode apresentar comportamento normal ou alguns dos
sintomas de luto distorcidos, como hiperatividade, sintomas da doença do morto e
isolamento;
3) Luto inibido: os sintomas do luto normal estão ausentes. Um dos achados mais
importantes de Parkes é o que se refere à interferência do luto no sistema
imunológico, tornando o indivíduo mais susceptível a doenças, transtornos
psiquiátricos e à morte.
Em 1991, o professor de psicologia da Harvard Medical School, J. Worden
lançou seu livro “Terapia do Luto: Um Manual para o Profissional de Saúde Mental”,
no qual, ao invés de estágios, propôs tarefas ao enlutado, assegurando ao indivíduo
um papel mais ativo em seu processo de luto. As quatro tarefas para o enlutado,
propostas por Worden (1991/1998), são:
1) Aceitar a realidade da perda;
2) Elaborar a dor da perda;
3) Ajustar-se a um ambiente no qual falta a pessoa que faleceu; e
4) Reposicionar emocionalmente a pessoa que faleceu e continuar a vida.
Worden propôs uma terapia para resolver o “luto patológico”, que consiste
basicamente na retomada das tarefas do luto não realizadas, e o dividiu em quatro
principais categorias:
a) Reações de luto crônicas: luto com duração excessiva em relação ao tempo
cronológico. A pessoa sente que seu luto nunca chega a um término satisfatório;
b) Reações de luto retardadas: a pessoa pode ter tido uma reação emocional na
época da perda, mas não é suficiente para a perda. Num momento futuro, a pessoa
pode apresentar os sintomas de luto em relação a uma perda subsequente e
imediata;
c) Reações de luto exageradas: a intensificação de uma reação de luto normal,
deixando a pessoa sobrecarregada, recorrendo a uma conduta mal adaptada;
d) Reações de luto mascaradas: a pessoa tem sintomas e comportamentos que
trazem dificuldade para ela, mas não os associa à perda. Em geral, subdivide-se em
dois tipos: luto mascarado por sintomas físicos e luto mascarado por conduta mal
adaptada.
Recentemente, um debate acalorado em torno do lançamento do DSM-V
(Diagnostic Statistic Manual), a chamada “bíblia” da psiquiatria, tomou conta do
meio científico. Discutiu-se a retirada do luto como critério de exclusão para o
diagnóstico de depressão e a inclusão do “luto complicado” como uma nova
categoria diagnóstica. Shear et al. (2011) advogam a favor da mudança, afirmando
que o luto complicado (LC) cumpre os critérios propostos para a criação de um
transtorno, quais sejam:
1) É uma síndrome psicológica ou física que acomete o indivíduo;
2) Não é meramente uma resposta esperada a um estressor comum;
3) Reflete uma disfunção psicobiológica de base;
4) Não é resultado de desvio social ou conflito com a sociedade;
5) Tem validadores diagnósticos, como prognóstico, psicobiologia e resposta ao
tratamento;
6) Tem utilidade clínica, assegurando melhor avaliação e tratamento aos pacientes;
7) É diferente de transtornos correlatos;
8) Os potenciais benefícios superam os riscos em potencial.
Para reforçar seus argumentos, Shear et al. apresentam uma tabela com os critérios
propostos para o luto complicado:
a. A pessoa deve estar enlutada (por exemplo, sofre pela morte de um ente querido)
durante, pelo menos, 6 meses;

b. Pelo menos um dos seguintes sintomas de intenso luto agudo deve estar presente
por um período maior do que o esperado por outras pessoas de seu círculo social e
cultural:
- Anseio ou espera intensa e persistente pela pessoa que morreu;
- Sentimento frequente e intenso de solidão ou de que a vida é vazia ou sem
sentido sem a pessoa que morreu;
- Pensamentos recorrentes de que é injusto, sem sentido ou insuportável ter que
viver sem a pessoa que morreu, ou um desejo recorrente de morrer para se reunir
com o falecido;
- Pensamentos frequentes e preocupantes sobre a pessoa que morreu (por
exemplo, pensamentos ou imagens intrusivas sobre quem faleceu), interferindo em
atividades e no funcionamento normal do enlutado;

c. Pelo menos dois dos seguintes sintomas devem estar presentes, durante, no mínimo,
um mês:
- Ruminação excessiva e problemática sobre as circunstâncias ou as
consequências da morte, por exemplo, preocupações sobre como e por que a
pessoa morreu, ou sobre não ser capaz de gerenciar a própria vida sem o ente
querido, pensamentos sobre ter decepcionado o falecido etc.;
- Sentimentos recorrentes de descrença ou incapacidade de aceitar a morte (por
exemplo, a pessoa não consegue acreditar ou aceitar que seu ente querido
realmente se foi);
- Sentimento persistente de estar em choque, assombrado, atordoado ou
emocionalmente entorpecido desde a morte;
- Sentimentos recorrentes de raiva ou ressentimento relacionados com a morte;
- Dificuldade persistente de confiar ou de se preocupar com outras pessoas ou
sentimento intenso de inveja de outros que não tenham experimentado perda
semelhante;
- Dor ou outros sintomas frequentes que o falecido apresentava, ou ouvir a voz ou
ver a pessoa falecida;
- Experiência de reação emocional ou psicológica intensa a memórias da pessoa
que morreu ou lembranças da morte;
- Mudança de comportamento decorrente de evitação ou busca de proximidade
excessiva (por exemplo, evitar ir a lugares, fazer coisas ou ter contato com coisas
que lembram a perda, ou sentir-se atraído por lembranças da pessoa, como querer
ver, tocar, ouvir ou cheirar coisas relacionadas ao falecido). Algumas pessoas
experimentam ambos os sintomas contraditórios.

d. A duração dos sintomas e o prejuízo devem ser de pelo menos um mês;


e. Os sintomas causam sofrimento clínico significativo ou prejuízo social, ocupacional
ou em outras áreas de funcionamento quando tal prejuízo não é mais bem explicado
por respostas culturais apropriadas.
Tabela – Critérios Propostos por Shear et al. (2011) para Luto Complicado (LC)

Forte, também, é o movimento contra a mudança, ou seja, pela manutenção


do luto como critério de exclusão para o diagnóstico de depressão e contra a
designação do luto complicado como um novo transtorno mental. Horwitz e
Wakefield (2011) questionam algumas mudanças propostas para o DSM-V, dentre
elas, a da concepção do luto. Argumentam que retirar o luto como critério de
exclusão para a depressão leva, em última instância, à fusão do luto na depressão,
e apresentam uma série de desvantagens de tal processo, dentre elas:
1) A patologização de uma condição normal leva os enlutados ao engano de se
crerem doentes e a procurarem tratamento, muitas vezes, desnecessário;
2) Perda do apoio social, que se mostra diferente para a depressão (eliciando,
geralmente, hostilidade, estigma e rejeição) e para o luto (que, normalmente, gera
apoio social e simpatia);
3) Com um tratamento desnecessário (mormente com antidepressivos), pode
ocorrer a exacerbação dos sintomas do luto; e
4) Superlotação dos serviços de saúde mental.
Por sua vez, Allen Frances (2013), presidente da força-tarefa do DSM-IV e
participante do DSM-III, em seu livro “Saving Normal”, questiona a própria validade
do DSM, mas acaba por considerá-lo, ainda que falho, o melhor instrumento
diagnóstico disponível. Aponta muitas falhas no processo de construção do DSM-V
e adverte:
a promoção de determinada doença não ocorre num vácuo – ela requer que
a indústria farmacêutica engaje ativamente os médicos que prescrevem
medicações, os pacientes que as solicitam, os pesquisadores que inventam
novos transtornos mentais, os grupos de consumidores que defendem mais
tratamento e a mídia, principalmente a internet, que espalha o termo. Uma
campanha de esclarecimento persistente, convincente e bem financiada
sobre a doença é criada. A psiquiatria é especialmente vulnerável à
manipulação dos limites entre o normal e o patológico porque não dispõe de
testes biológicos e se baseia fortemente nos julgamentos subjetivos, que
podem ser facilmente influenciáveis por um marketing hábil (p. 29).

O movimento de patologização de determinados fenômenos existenciais


humanos é lento e poderoso, ainda que esteja claramente calcado em vitórias da
política e do mercado sobre a ciência. É na fenomenologia existencial de Jean-Paul
Sartre que buscaremos entendimento destas questões.

Contribuições da Fenomenologia Existencial de Jean-Paul Sartre à


Abordagem do Luto

Jean-Paul Sartre admitia sua compulsão pela escrita e construiu sua vasta
obra ao longo do século XX. O filósofo existencialista escreveu livros, ensaios,
peças e roteiros. Um fio condutor da sua produção é o conceito de liberdade. Para
Sartre (1946/2010), não há natureza humana que possa fundamentar, de fora dele,
o ser do homem. O homem surge no mundo, se depara com a facticidade, e apenas
depois, se define a partir de suas escolhas: “o homem nada é além do que ele se
faz” (p. 25). A falta de uma base biológica (ou qualquer que seja) para justificar a
vida do homem é a essência do conceito de liberdade e se contrapõe, diretamente,
a qualquer processo de patologização da conduta humana e, neste mesmo
contexto, à do luto. O enlutado não tem liberdade para fazer reviver um ente
querido, pois a morte do outro é uma situação-limite vivida por ele, mas o caminho
percorrido por cada enlutado é seu, fruto de sua liberdade e, portanto, de sua inteira
responsabilidade. Para Sartre (1943/2011), as reações físicas não podem jamais ser
apreendidas isoladamente. São sempre atravessadas por um para-si: “o corpo, de
modo algum, é captado por si mesmo; é um ponto de vista e um ponto de partida”
(p. 418). Acrescenta que
o Para-si deve ser todo inteiro corpo e todo inteiro consciência: não poderia
ser unido a um corpo. Similarmente, o ser-para-outro é todo inteiro corpo; não
há aqui ‘fenômenos psíquicos’ a serem unidos a um corpo; nada há detrás do
corpo. Mas o corpo é todo inteiro ‘psíquico’ (p. 388).
Ainda que se conceba reações puramente fisiológicas em sua gênese, ou seja,
como reflexos, estão sempre inseridos num tempo, num espaço e num indivíduo
particular, que os significa em sua liberdade e em seu projeto de ser.
Desde sua constituição como ciência, a psicologia esteve às voltas com o
dilema da dicotomia objetividade versus subjetividade. Como se moldar ao modelo
científico positivista e, ao mesmo tempo, dar conta de toda a riqueza e
profundidade da experiência humana? A multiplicidade de abordagens, de métodos
e até mesmo de objetos é uma marca inconteste deste esforço. Outro grande
impasse à pesquisa psicológica concerne à separação positivista entre sujeito e
objeto, noção cara a quem pretende uma ciência pura. Para tal concepção, é
preciso eliminar todo e qualquer rastro de subjetividade do pesquisador e das
interferências do meio. Assim, isolado, o homem se ofereceria à análise de sua
verdadeira natureza, expressa na mais límpida forma de leis. Foi em reação a este
quadro que, no início do século XX, Edmund Husserl (1900-1901/1980; 1910-
1911/1952) lançou as bases da fenomenologia. Em seu livro “A Cerimônia do
Adeus”, Simone de Beauvoir (1974/1984) descreveu a exultação de Sartre, quando,
por meio de Raymond Aron, tomou contato com a fenomenologia de Husserl e com
o mundo que se abria diante dele, a possibilidade de fazer filosofia a partir de uma
taça na mesa do café, do homem comum, de sua experiência no mundo. Ainda
que, ao longo de sua trajetória como pensador, Sartre tenha contestado, em muitos
momentos, as ideias de Husserl, suas contribuições estão indelevelmente
marcadas pelo período em que ele esteve com o mestre, em Berlim, nos anos de
1933 e 1934.
Em seu livro “Para um Esboço de uma Teoria das Emoções”, Sartre
(1939/2006) fez duras críticas à ciência psicológica e, particularmente, ao
psicologismo. Para Sartre, os psicólogos de então teimavam em partir de um
amontoado de fatos agrupados sob seu olhar, pretensamente neutro, considerando
fenômenos isolados, universais e descontextualizados: “os psicólogos não se dão
conta de que, com efeito, é tão impossível atingir a essência amontoando os
acidentes quanto chegar à unidade acrescentando indefinidamente algarismos à
direita de 0,99” (p. 16-17). Conforme o filósofo existencialista, os fenômenos
humanos não se manifestam de forma “pura”, pois não se tratam do espelhamento
de uma essência ou natureza humana universal, mas são frutos do homem em
situação, que reage, em sua liberdade, ao e no mundo. Portanto, para compreender
os “fatos psíquicos” ou os fenômenos humanos, não cumpre isolá-los e analisá-los,
mas situá-los no tempo, no espaço e no projeto individual, considerando, ainda, a
situação do próprio pesquisador. Para Sartre (1960/1966), a única teoria do
conhecimento que pode ser válida é a que se funda sobre a verdade de que o
experimentador faz parte do sistema experimental. Compreender é modificar-se, ir
além de si mesmo:
os fatos psíquicos com os quais nos deparamos nunca são os primeiros. Eles
são em sua estrutura essencial reações do homem contra o mundo; portanto,
supõe o homem e o mundo, e só podem adquirir seu sentido verdadeiro se
inicialmente elucidarmos essas duas noções (Sartre, 1939/2006, p. 21).
Influenciado, também, pelo marxismo, Sartre propôs a construção de uma
antropologia estrutural e histórica, uma totalização perpetuamente em curso:
mas o psicólogo não se compromete: ele ignora se a noção de homem não é
arbitrária. Ela pode ser muito vasta: nada diz que o primitivo australiano pode
ser incluído na mesma classe psicológica que o operário americano de 1939.
Seja como for, o psicólogo proíbe-se rigorosamente de considerar os homens
que o cercam como seus semelhantes. Essa noção de similitude, a partir da
qual se poderia talvez construir uma antropologia, lhe parece irrisória e
perigosa (Sartre, 1939/2006, p. 15).
Os fatos, por si mesmos, não são nem verdadeiros nem falsos, pois não têm
significado, a não ser se referidos a diferentes sistemas parciais de mediação.
Assim, não podemos tratar do luto sem situar a morte no contexto social e cultural
em que ocorre, bem como sem refletir sobre o sistema médico e axial que o
aprisiona e que tem suas bases ideológicas tão eficazmente fincadas em nossa
sociedade que já forma parte de nossa forma de conceber o homem e o mundo. É
neste sentido que destacamos a importância da contextualização sociohistórica da
morte e do processo de transformação do luto em categoria clínica.
Crer que exista um modelo “normal” de luto é negar a liberdade do homem: é
acreditar que a expressão do luto, como em Freud (1917/2010), Lindemann (1944),
Bowlby (1973/1998) e outros, é genérica, fruto da genética ou de reações
fisiológicas ainda não localizadas pela ciência. Somente acreditando num modelo
rígido de luto, podemos conceber as concepções de melancolia, de luto patológico
e, mais recentemente, de luto complicado (LC). A patologização das reações de luto
significa, também, negar a situação sociohistórica do homem, desconsiderando toda
a complexa rede de fatores na qual ele está imerso, ou seja, seu tempo histórico,
sua cultura e sua família, entre outros aspectos de sua existência concreta. Supor
que todos os homens devam experimentar seu luto em conformidade com critérios
diagnósticos é, para usar uma expressão cara a Sartre (1954/1966), dar-lhes um
“banho de ácido sulfúrico” (p. 41), no sentido de retirar deles todo resquício de
individualidade e de liberdade. Quando os manuais que orientam os profissionais de
saúde mental determinam um rígido parâmetro de “normalidade”, retiram do homem
a responsabilidade pela sua conduta. O luto complicado deixa de ser seu luto,
passando a ser considerado doença, determinada pelo mau funcionamento de
sistemas que deveriam ter cumprido determinadas fases, realizado certas tarefas e
feito o “trabalho de luto”. Neste sentido, escreveu Sartre (1943/2011):
assim, não há acidentes em uma vida; uma ocorrência comum que irrompe
subitamente e me carrega não provém de fora; se sou mobilizado em uma
guerra, esta guerra é minha guerra, é feita à minha imagem e eu a mereço (p.
678).
De todo modo, a retirada da responsabilidade e a “incapacidade” da escolha têm um
papel fundamental na tentativa de diminuição da angústia: já que não há mais
escolha, nem liberdade, mas doença, restaria ao homem entregar-se, de bom
grado, nas mãos dos especialistas e se lançar, cegamente, rumo a um tratamento.
Mas, ainda assim, se trataria de uma escolha, a escolha de entregar-se, ou de fingir
para si mesmo que não pode escolher. Estaríamos diante do fenômeno da má-fé,
que, para Sartre, trata-se da tentativa do homem de escapar da angústia, buscando
fora de si mesmo algo que o fundamente e que o justifique, num movimento similar
ao de mentir para si mesmo: “na má-fé, não há mentira cínica, nem sábio preparo
de conceitos enganadores. O ato primeiro da má-fé é fugir do que não se pode fugir,
fugir do que se é” (p. 118). Assim, podemos perceber que o projeto da má-fé é um
projeto de fracasso, já que não há como o homem fugir da própria condição do seu
ser, da sua liberdade. Deste modo, a patologização do luto é um empreendimento
fracassado, mas também complexo, como advertiu Frances (2013), pois se articula
com questões relativas não apenas à saúde, mas à política, ao mercado de
consumo e às relações de poder.
Finalmente, a partir da fenomenologia existencial de Sartre (1960/1966;
1939/2006; 1946/2010; 1943/2011), consideramos que o luto, como os demais
fenômenos psíquicos humanos, deve ser compreendido como uma construção
própria, produto e produtora da liberdade individualizada e, ainda assim, universal,
no sentido de que é contextualizada no meio sociocultural, no tempo histórico e na
vida concreta do enlutado.
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