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Daniela Tonizza de Almeida | Giselle Campos Freitas Amorim

Maíra Paiva | Sandro Boaventura


(Organizadores)

fundamentos, cotidiano e encontros dos


Centros de Convivência com a cidade
Daniela Tonizza de Almeida
Giselle Campos Freitas Amorim
Maíra Paiva
Sandro Boaventura
(organizadores)

VIDA EM COMUM:
fundamentos, cotidiano e encontros
dos Centros de Convivência com a cidade

PRIMEIRA EDIÇÃO

REALIZAÇÃO:

Belo Horizonte
2022
Copyright © Daniela Tonizza de Almeida | Giselle Campos Freitas Amorim
Maíra Paiva | Sandro Boaventura (organizadores), 2022.

Editor ÁLVARO GENTIL


Produção executiva PAULA PESSOA
Revisão PEDRO VIANNA
Produção gráfica editorial ANDREZZA LIBEL
Capa COLAGEM DE LAMBE-LAMBE DESENVOLVIDA NA OFICINA DE ARTES VISUAIS DO
CENTRO DE CONVIVÊNCIA OESTE COORDENADA POR MAÍRA PAIVA E MONTAGEM DE
SANDRO BOAVENTURA
Fotógrafa da capa ISABELLA LEITE

Prefeito Municipal FUAD NOMAN


Secretária Municipal de Saúde CLÁUDIA NAVARRO
Secretária Municipal Adjunta de Saúde FERNANDA GIRÃO
Subsecretária de Atenção à Saúde TACIANA MALHEIROS
Diretora de Assistência à Saúde RENATA MASCARENHAS
Gerente da Rede de Saúde Mental FERNANDO SIQUEIRA
Gerente Adjunta da Rede de Saúde Mental VÂNIA DOLHER

Catalogação na Publicação (CIP)

Almeida, Daniela Tonizza


A447v Vida em comum : fundamentos, cotidiano e encontros dos Centros de Convivência com a cidade /
Daniela Tonizza de Almeida ... [et al] (organizadores). – 1. ed. – Belo Horizonte : Ramalhete, 2022.
382 p. : il. foto. color.

Vários autores.
ISBN 978-65-88959-83-1

1. Política de Saúde Mental 2. Serviços de Saúde Mental 3. Rede de Atenção Psicossocial I.Título.

CDD: 362.10981

Bibliotecária responsável: Cleide A. Fernandes CRB6/2334

Os conceitos, afirmações e opiniões emitidos nos artigos publicados neste livro são de responsabilidade exclusiva de
seus autores.
Distribuição gratuita

Todos os direitos desta edição reservados a


Daniela Tonizza de Almeida | Giselle Campos Freitas Amorim
Maíra Paiva | Sandro Boaventura (organizadores)

Proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem autorização, por escrito, do(a)
autor(a) e da editora.
Este livro foi revisado segundo o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
A todos aqueles que nos ensinaram a resistir ao manicômio com seus
mantos bordados, tal Bispo, desenhos ou papéis pelas ruas, com
Gentileza, a salvação pelo lixo, com Estamira, bom brilhantismo e ágeis
sambas nos pés…
Aos usuários que tecem a rotina dos nossos serviços.
E se, de repente
A gente não sentisse
A dor que a gente finge
E sente
Se de repente
A gente distraísse
O ferro do suplício
Ao som de uma canção
Então, eu te convidaria
Pra uma fantasia
Do meu violão

Chico Buarque – “Fantasia”


PREFÁCIO

Generosos presentes

Dentre tantos presentes generosos dos Centros de Convivência


de Belo Horizonte, recebemos agora este livro. Livro que representa
um marco, completa uma volta, desenha um conjunto; atende a um
convite e responde a um desafio.
Já tendo tantas vezes tentado buscar palavras para descrever o
louco encanto nascido dos Centros de Convivência, nunca o fiz sem
embaraço: afinal, como transmitir, sem redundância ou estereótipos,
aquilo que suas práticas e produções já expressam tão eloquentemente?
Como impedir que as palavras proliferem infinitamente, se repitam, se
desgastem, perdendo o fio do corte? Mas, afinal, dia após dia, a com-
primir e esticar, reunir e destacar, guardar e dispor, ancorar e escorrer,
os centros de convivência tratam matérias tão várias - dos sonhos, das
tintas, das letras e do que mais lhes cair em mãos ou vier à mente! Não
vacilariam, por certo, ao dar forma à densa matéria de seu cotidiano - e
aí está: fizeram um livro.
Com muita propriedade o fizeram. A escrita mostra aspectos
fundamentais da sua atuação, tal como se inscreve entre nós. Revela
a surpreendente diversidade das práticas: oficinas de teatro, mosaico,
marcenaria, bordado, futebol, letras, música, pintura, o diabo a qua-
tro – sem esquecer uma sedutora oficina de não fazer nada. Destaca
sua pertinência a uma rede de atenção psicossocial que sempre ousou
fechar manicômios; relembra a história desta rede e o próprio percurso
dentro dela; sustenta os seus princípios, ao acolher pessoas em intenso
sofrimento mental e participar do cuidado que impede a exclusão e
promove cidadania. O livro seria incompleto ou omisso se não abordasse
tais aspectos; mas, claramente colocados, aí estão.
Contudo, é preciso também e, sobretudo, dar testemunho da
experiência própria dos Centros de Convivência, em sua arrojada
simplicidade, sua originalidade radical. Eis, a meu ver, o desafio maior
enfrentado nesta escrita: falar desta singular experiência através da
límpida linguagem pela qual a realizam, dispensando intérpretes que a
deturpariam, e qualquer saber teórico no falso lugar de fundamento.
Mesmo aqueles de nós que bem conhecem e amam esses ser-
viços encontram no livro novos aspectos do seu pensar-fazer que nos
surpreendem. Por exemplo, a importância de assegurar a cada usuário
uma entrada e um lugar que lhes sejam próprios – pois variam os modos
pelos quais cada um frequenta este espaço e nele se aloja e circula.
Alguns muito simplesmente buscam algo que os interessa, seja bordar,
pintar ou fazer teatro, e logo se vinculam a determinadas atividades; mas
há aqueles, errantes, que agora estão aqui, logo acolá. Alguns, tenazes,
levam até o fim a conclusão de seu produto; outros, porém, inquietos,
fazem coisas sem começo nem fim. Há os que desejam aprender e os
que fazem o que já sabem. Alguns buscam uma forma e um sentido;
outros desconstroem sentidos e formas. Um deles tateia o modo de
assinar seus quadros, rabiscando o próprio nome a cada vez com grafias
diferentes; um outro desloca objetos das oficinas para lugares inusitados;
um terceiro faz um livro de papéis avulsos unidos com um laço. Curio-
samente, as diferenças no jeito de habitar este espaço não impedem a
sua partilha. Acontecem as conversas, as trocas, as assembleias - onde
cabem neologismos e outras estranhezas; toma-se um café, fuma-se
um cigarro, rega-se o jardim; e assim, mesmo quando se trocam os pés
pelas mãos, o que é sem pé nem cabeça faz um corpo.
Daí os estatutos diversos que os objetos assumem. Um poema pode
ser endereçado à namorada, mas pode também enterrar-se no fundo da
sacola. Há traços, palavras que comovem por seu profundo significado;
outros se dão ao luxo de significar coisa alguma.Vai-se do esboço ina-
cabado à coisa pronta, sendo possível parar no meio do caminho; vale
deslocar-se de um ponto a outro, não sendo obrigatório chegar a este ou
àquele lugar. Por vezes, de uma sentada, algo se produz de muito belo;
noutras, é preciso pelejar no caminho que se quer. Uma escultura terá
um lugar de destaque numa exposição; outra permanecerá num canto da
prateleira. Um pano de prato bordado com esmero, uma bolsa elegante,
um móvel bem feito hão de valer dinheiro; mas também se fazem coisas
que não cabem no mercado. Há objetos úteis, destinados a fins bem
precisos; há também aqueles cuja finalidade só se inventa depois. Alguns
têm algo de relíquia, outros de mensagem, outros de lixo. Enfim, ao lado
do produto estritamente individual, há produções feitas coletivamente,
motivo de zelo e orgulho para o grupo: uma alegoria para um desfile,
uma canção para um festival. Há o autoral e o anônimo, o solitário e o
gregário, o um só e o todos juntos. Há convivência.
À diversidade das pessoas, dos produtos e seus lugares, sentidos
e valores, corresponde, do lado dos monitores, uma multiplicidade
de funções. A transmissão das técnicas, sim: ensinar um ponto mais
elaborado; mostrar um jeito novo de usar o pincel, ou como se faz para
colar as lascas do mosaico. O cultivo do gosto: sem pedantismo, fugir do
banal e do piegas para propor a leitura de um conto, a visita ao museu,
a ida ao cinema. A abertura e o consentimento: não impor expectativas,
não definir padrões, não antecipar resultados. A arte do estar juntos:
apaziguar dois que brigam, abraçar um que aniversaria, estar ao lado de
outro que chora, reunir numa assembleia todo mundo. A promoção do
fazer coletivo com vistas a um todo: costurar bordados feitos por mãos
diferentes para compor uma toalha de mesa. Mas também a montagem
conjunta de objetos não todos: cada um grava uma lista daquilo que lhe
salta aos olhos num pedaço de pano, reunidos num manto a ser recortado,
cujos fragmentos transformam-se em peças de figurino.
No decorrer de todas essas artes, o convívio produz laços que
não são quaisquer: implicam num solidário envolvimento em momen-
tos de alegria, dor ou embaraço das vidas dos conviventes. Propiciar
a um andarilho que nunca havia pintado que o fizesse pela primeira
vez levou também a ajudá-lo a tirar o documento de identidade que
nunca teve para inscrever seus quadros numa exposição. Ao lado de
um usuário não convidado pela filha para conduzi-la ao altar, entre
lágrimas e consolos, drogas e intervalos, foi possível acompanhá-lo à
igreja, para que preservasse ainda assim seu lugar de pai. Apoiando um
casal de usuários em seu desejo de casar-se, apesar da relutância da
família da noiva, inventou-se mediar, junto à Coordenadoria Munici-
pal de Direitos Humanos, uma conversa sobre o direito ao amor. Em
parceria certeira com o CERSAM, se fez valer o desejo e o direito de
uma mãe até então órfã de que não lhe tirassem a criança desta vez,
acompanhando bem de perto mãe e filho, nas peripécias por vezes
difíceis dessa criação. Sim, a convivência acarreta amizade, e a amizade
compromissos que levam mais longe do que, a princípio, se esperava ir.
Continua-se a ir longe, nos tantos circuitos criados nesse percurso.
Relações e trocas se fazem com os diferentes pontos da rede: não apenas
com os CERSAMs, como no caso acima e em inúmeras situações, a
cada dia; também com as unidades básicas de saúde, os consultórios
de rua, os serviços residenciais e tantos outros. São importantes as par-
cerias intersetoriais, como o funcionamento da Educação de Jovens e
Adultos, EJA, nas dependências de alguns dos Centros de Convivên-
cia, assim como a inserção de alguns deles no espaço dos Centros de
Apoio Comunitários, os CACs. Não faltam universidades parceiras,
cujos professores e alunos frequentam e apreciam este original espaço
de formação. Empreendimentos nascidos dos Centros de Convivência
vão além deles, caminhando com firmeza rumo ao direito ao trabalho:
dentre outros, a Suricato, associação de usuários e familiares para a
geração de trabalho e renda, com núcleos de produção em marcenaria,
mosaico, bordado e costura e culinária.
E essa profusão de palavras e coisas e sons se espalha pela cidade!
As mostras vão desde os despretensiosos bazares do bairro até aqueles,
tradicionais, no saguão da Secretaria de Saúde; das pequenas tendas que
jamais faltam nos encontros, seminários, conferências da saúde mental,
nesta e em outras cidades, até as grandes exposições em espaços nobres
da cultura de Belo Horizonte, frequentadas por milhares de pessoas. É
pura alegria viajar para encontrar o mar, torcer nos Jogos de Primavera,
assistir a uma peça dos Sapos e Afogados, dançar no Espaço Cultural
Suricato, cantar nos Festivais da Canção Ideia Sonora, nos shows do
São Doidão ou do Trem Tan Tan. É beleza pura correr os olhos numa
Mostra de Arte Insensata: multidão de objetos heterogêneos e exóticos,
a nascer uns dos outros, subir pelas paredes, sair pelas janelas em atrevida
exuberância. É pura ousadia quando os usuários, trazendo suas cores e
artefatos, protestam em passeatas e manifestações. É a mais pura emoção
quando a gente, curiosa e encantada, espera a chegada dos Centros de
Convivência e demais serviços de saúde mental de todos os cantos de
Minas para o desfile da Escola de Samba Liberdade Ainda que Tan Tan:
quais as fantasias, os adereços, as faixas, criados desta vez? Como soará
aos ouvidos da cidade o samba deste ano, que já sabemos de cor e temos
no coração? Incomparáveis festas de cidadania, amorosos momentos
de encontro, corajosas lutas políticas – tudo isso propiciam, com tudo
contribuem, em tudo estão presentes os Centros de Convivência de
Belo Horizonte.
Buscando destacar alguns pontos dos muitos que me trouxeram a
leitura do livro, certamente deixei de mencionar iniciativas, atividades,
projetos, também eles importantes. Mas os organizadores, implacavel-
mente cuidadosos, nada deixaram de lado: nada escapou ao seu olhar
atento, movido pelo desejo de trazer à luz as múltiplas faces desta
experiência.Todos trouxeram seus textos: usuários, monitores, gerentes,
gestores, professores, estagiários, parceiros, num mosaico que só mesmo
os Centros de Convivência são capazes de compor.
Sejam todos bem-vindos ao seu encanto!
Ana Marta Lobosque
Belo Horizonte, 10 de dezembro de 2021.
APRESENTAÇÃO

palavra pede pele. pede passagem. pratica ponte entre pessoas. palavra
perto. preserva o pensamento. presta para o corpo. pira. paira. para o
tempo. possuir parte da palavra é pouco. é preciso ponto. pouso. peso.
composição. piscar e pisar a palavra no papel. palpitar. pulsar a palavra
no peito. passar a página. pintar a palma da mão. do pé. palavra causa
pacto. impacto. persiste. insiste. resiste. como pixo. como pintura. como
coisa pronta pra partir e ser. palavra é letra presente. reside em nós.
desata os punhos. permanece pronta. passa por tudo. por bordas. con-
tornos. transtornos. palavra é política. pacífica. periférica. cada palavra
tem sua própria história particular. porque percorreu passos. países.
delírios continentes. palavra liberdade é principal. porque luta. perturba.
provoca. potencializa. aponta para a arte. poesia desenhada. palavreada
com pincéis. haicais. telas. bordados. pingos de letras. pontas de lápis.
pensamentos poéticos convivem entre si. dançam próximo. conversam.
atuam. cantam sem pontuação. pedem prosa. poema é permitido em
linha. traço. rasgo. recorte. possui para si o ato de produzir voz. pre-
sença. palavra que é paisagem. retrato. artesanato da escrita. registro de
expressão. grafia possível. pedaço de som. textura de ilustração. palavra
que alinhava. apazigua. palavra catada vira manto. protege. o lugar de
fala de cada palavra é o encontro entre. o intervalo convivente. a cidade.
o cotidiano. lugar plural. toda palavra pede tratamento. quer cuidado.
partilha de afeto. saúde. invenção de vida. nome próprio para existir.

A poesia de Maíra Paiva inicia a apresentação deste livro como


um desafio e um convite. Desafio de colocar em diálogo as múltiplas
formas que a linguagem pode assumir no esforço de traduzir uma
realidade vivida ou desejada. A palavra existe e precisa de papel para
se fazer inteira, tomar corpo para expressar, materializar e conectar a
sensibilidade, o pensamento e a ação. Neste livro, cada palavra é uma
tentativa de produzir saberes, circunscrever princípios que orientam
as atividades, registrar experiências e criações artísticas. Por meio da
palavra, torna-se possível recuperar fragmentos da memória e lhes ofe-
recer contornos, retratar as vicissitudes do cotidiano e o encontro dos
Centros de Convivência com a cidade, demarcando sua existência ao
longo de quase trinta anos de implementação da política de atenção
psicossocial, pautada nos princípios do SUS e no cuidado em liberdade,
em Belo Horizonte.
A vida e a escrita se entrelaçam neste livro, mas é preciso estar
advertido que a palavra é sempre insuficiente, incompleta. Por suas frestas
e fissuras se descortinam novas buscas.A palavra solta convida a brincar,
mergulhar, trilhar novos caminhos, ressignificar continuamente o saber
e a experiência. A palavra passa por, permeia, perpassa, atravessa, não
cessa de interrogar. Pela palavra, ressoam as vozes de usuários, familiares,
gestores, monitores e parceiros em cada parte do livro.
Agradecemos a todos que nos enviaram sua contribuição para
publicação. Lamentamos profundamente não poder incluir todos. O
grande volume de material nos exigiu fazer escolhas difíceis e criteriosas,
mas que, de forma alguma, invalida a beleza e a qualidade do que cada
um foi capaz de produzir.
Conviver é um ato por uma “vida (em) comum”. Viver em
proximidade, construir uma vida junto, não é tarefa fácil. Exige tanto
enfrentar conflitos quanto encontrar pontos de enlace mediados pelas
palavras que legitimam o espaço social ao qual pertencemos e referen-
ciamos nossa existência. Desse modo, reafirmar a vida já no título desta
publicação – em um tempo em que a morte nos ronda tão de perto e,
além disso, reafirmar a importância da sociabilidade para a vida –, nos
parece um bom caminho para (re)inventar a convivência, conectando
o singular ao coletivo, sem anulá-lo.
O livro se divide em três partes. Pelo ato de conviver, a primeira
parte, é composta pelas palavras que procuram expressar aquilo que nos
é próprio, que nos define, orienta e constitui. Esta parte foi dividida
em três seções: Para que não se esqueça: história e fundamentos aborda o
percurso histórico, os princípios e as diretrizes que fundamentam o
trabalho dos Centros de Convivência. Trata dos princípios do SUS à
reforma psiquiátrica antimanicomial, o cuidado em liberdade, a reabili-
tação psicossocial e a importância dos Centros de Convivência na Rede
de Atenção Psicossocial. No final desta seção, ficamos com as palavras
de Rosimeire Silva, que deixa pistas por onde podemos percorrer a
fim de ampliar as reflexões sobre nossos serviços.
Na segunda seção, Um mergulho no cotidiano: os voos nas oficinas,
considerações teóricas relacionadas à prática das oficinas nos Centros
de Convivência antecedem relatos de experiências. Essas considerações
teóricas e os relatos desvelam o saber e o fazer produzido nos diversos
encontros mediados no cotidiano das oficinas, suas vivências artísticas,
artesanais e de atividades físicas. Nessas vivências, a atividade criativa e sua
produção material se mostram fundamentais no cuidado ao cidadão em
sofrimento mental.A partir de um fazer junto se constrói a convivência.
Atravessando o muro de dentro, mergulhamos na convivência ao “pé da
letra”. Lá, alçamos voos pelas histórias bordadas, atividades físicas, arte
e loucura no teatro além da cena… Para além da vivência cotidiana, as
oficinas possibilitam que as produções artísticas e artesanais ultrapassem
as fronteiras do serviço rumo ao território ampliado, através de parcerias
que garantem o direito à cidade e, ao mesmo tempo, transformam o
imaginário social sobre a loucura, desmistificando e desconstruindo as
imagens da incapacidade e da periculosidade historicamente associadas
às pessoas em sofrimento mental.
A terceira seção - Ressonâncias em todo canto: vicissitudes do coti-
diano - trata do que significa se colocar ao lado para ocupar a cidade,
desconstruindo muros, tecendo laços sociais e produzindo cultura. A
palavra “liberdade” revigora-se dia após dia como potência para enfren-
tar o preconceito, o medo e a solidão. Brota de encontros singelos no
cotidiano, junto com a alegria, o amor e o desejo. Esta palavra que ressoa
na existência dos Centros de Convivência, acolhe e faz da vida poesia.
Liberdade caminha junto com convivência e pertencimento e com elas
passeia, vai a casamentos, faz mostra de arte, festival de música, torneio
de jogos, desfila no 18 de maio, ultrapassa os limites da cidade, viaja
no Trem Tan Tan, vai a Brasília se manifestar para, finalmente, chegar à
praia de Iriri e realizar o sonho de conhecer o mar. Ir, sentir e rir nas
poéticas da convivência além- mar...
Os encontros com a cidade ecoam também na segunda parte, Pelos
litorais da convivência, lançando mão da metáfora do litoral para pensar o
Centro de Convivência entre outros lugares diversos, heterogêneos em
avanços e recuos, como mar e areia. Assim, pelos olhares de usuários,
gestores, trabalhadores e parceiros, para cada campo com que o Centro
de Convivência faz litoral, dedicamos uma seção. Entre campos de cui-
dado, no trabalho em rede no contexto da RAPS, se destaca o manejo
da crise, as construções coletivas, as intervenções com usuários e seus
resultados e o cuidado no contexto da pandemia. Em interface com
a Cultura, através de mostras de arte e formação de grupos culturais,
encontramos entrelaces do sensível. Com a Educação, em destaque com o
projeto de Educação de Jovens e Adultos, nos posicionamos entremundos
do saber e com projetos de geração de trabalho e renda, entre práticas
de cidadania. Com universidades, entre parcerias de formação, é possível
ampliar a oferta de atividades e formação de trabalhadores atentos
às ameaças de retrocessos. Apontando para um futuro entre meios da
luta antimanicomial, reafirmamos nosso compromisso político contra
qualquer forma de segregação da loucura, construindo, junto com os
movimentos sociais, ações de fortalecimento da luta antimanicomial.
Pela invenção imagética da letra, na terceira parte, a palavra nos provoca
com uma pergunta: como a letra existe, para a loucura, na arte? Se nas
primeiras partes, na busca por sentido para apreender a experiência, a
palavra se apresenta como a poesia, a prosa poética, o ensaio, o relato de
experiência; aqui, através de escrita em imagens, a palavra como coisa,
forma, sonoridade, desenho, se revela na dimensão da letra.
Pensar a escrita como meio de comunicação, ideia, visualidade
e potência criativa nos provoca para um olhar sensível a respeito da
loucura e suas aproximações com as letras, as palavras e as coisas. O
usuário-artista que, ao longo do seu percurso de vida, sofre com as
dificuldades de uma construção formal da escrita, contudo, vê na prá-
tica das oficinas a oportunidade de reinventá-la, tornando-a expressão
única e transformando-a em criação livre.
Nessa produção, a relação entre arte e loucura se mostra pela
diversidade de possibilidades de se fazer escrita, tendo a letra como
matéria-prima, grafias em múltiplas técnicas, suportes, temas, conceitos
e espaços. Encontramos, então, escritas com elementos de repetição,
escapando às normas gramaticais, aglutinadas com figuras entre sinais,
delírios, elucubrações, tamanhos, intensidades que colorem, traçam,
rasgam, rabiscam o papel, a tela, o tecido, e, portanto, trazem consigo
suas próprias e inventivas línguas e linguagens. Desta forma, esse ato
da escrita, como trabalho e objeto estético, riquíssimo em conteúdo e
visualidades, foi pensado como um recorte para apresentar uma parte
significativa da produção artística dos Centros de Convivência.
De forma simples, na potência da palavra, no gesto de falar a vida,
sobre a vida em comum, mais ainda, indo aquém, da palavra à letra,
apresentamos os Centros de Convivência e suas produções.

Daniela Tonizza de Almeida


Giselle Campos Freitas Amorim
Maíra Paiva
Sandro Boaventura
SUMÁRIO

PARTE I
PELO ATO DE CONVIVER

SEÇÃO 1 - PARA QUE NÃO SE ESQUEÇA: HISTÓRIA E


FUNDAMENTOS.....................................................................................29
CONVIVER É UM ATO...........................................................................31
Frederico Eymard Ewald Rezende

A REDE DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL DE


BELO HORIZONTE: CENTROS DE CONVIVÊNCIA COMO
POTÊNCIA PARA A REABILITAÇÃO PSICOSSOCIAL.................33
Fernando Siqueira
Luiz Carlos Penna Chaves
Vânia Dolher de Santa Inêz Souza Baker

OS CENTROS DE CONVIVÊNCIA NA REDE DE SAÚDE


MENTAL DE BELO HORIZONTE........................................................40
Karen C. Zacché
Rosimeire Silva (in memorian)

CONFERÊNCIA DE ROSIMEIRE SILVA NO


I ENCONTRO DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA
DE BELO HORIZONTE...........................................................................49
VIDA (EM) COMUM.................................................................................57
Esdras Rodrigues dos Santos

SEÇÃO 2 - UM MERGULHO NO COTIDIANO: OS VOOS


NAS OFICINAS........................................................................................59
MUNDO DOS SONHOS..........................................................................61
Gladstone Luiz da Costa Freitas

OFICINAS: A CONVIVÊNCIA QUE SE CONSTRÓI


A PARTIR DE UM FAZER JUNTO......................................................62
Daniela Tonizza de Almeida
ATRAVESSANDO O MURO DE DENTRO.......................................72
Maíra Paiva

UM MERGULHO NO BISPO.................................................................78
Stefano Fontana

A CONVIVÊNCIA AO PÉ DA LETRA.................................................80
Sandro Boaventura

HISTÓRIAS BORDADAS.........................................................................90
Regina Cazita

ARTE E LOUCURA...................................................................................93
Valéria Almeida

TEATRO ALÉM DA CENA......................................................................96


Helena Soares Aphonso

ATIVIDADE FÍSICA NO CENTRO DE CONVIVÊNCIA.............100


Carlos Phillipe Burgarelli

CENTRO DE CONVIVÊNCIA CONVIVENDO COM


AS ADVERSIDADES EM SONHO DE UM SUS MAIS
VALORIZADO.........................................................................................107
Rogério Rodrigues de Carvalho

SEÇÃO 3 - RESSONÂNCIAS EM TODO CANTO:


VICISSITUDES DO COTIDIANO ................................................109
TRAVESSIA DA ESCURIDÃO..............................................................111
Rogério Gomes

CENTROS DE CONVIVÊNCIA DE BELO HORIZONTE:


DESATANDO NÓS, FAZENDO LAÇOS, AFIRMANDO A
LIBERDADE E AVANÇANDO..............................................................112
Ana Paula de Matos Novaes

“RESSONÂNCIAS” NA EXISTÊNCIA DO CENTRO DE


CONVIVÊNCIA SÃO PAULO..............................................................120
Marta Soares
Adriane Rodrigues
POÉTICAS DAS CONVIVÊNCIAS: O ACOLHIMENTO DOS
MORADORES DE RESIDÊNCIAS TERAPÊUTICAS NO
CENTRO DE CONVIVÊNCIA.............................................................127
Leila Rodrigues
Cláudia Vânia da Silva

TREINANDO PARA SER DOIDA.......................................................131


Leida Uematu

IRIRI - IR, SENTIR, RIR, ALÉM MAR.............................................138


Maria Betânia de Lima Guimarães

CORDEL DOS 25.....................................................................................145


Coletivo Centro de Convivência Nise da Silveira

PARTE II
PELOS LITORAIS DA CONVIVÊNCIA

SEÇÃO 1 - ENTRE CAMPOS DE CUIDADO: OS


CENTROS DE CONVIVÊNCIA E A REDE DE ATENÇÃO
PSICOSSOCIAL......................................................................................153
PARA QUE NÃO SE ESQUEÇA...........................................................155
Lídia Martiniano

A CONVIVÊNCIA AO LITORAL........................................................157
Sandro Boaventura

NA DESORDEM, UM ECO DO AMOR!...........................................165


Fernanda Otoni Brisset

O CENTRO DE CONVIVÊNCIA OESTE E A PANDEMIA –


REINVENTANDO AS FORMAS DE ESTAR AO LADO...............177
Giselle Campos Freitas Amorim

UMA MÃE, UM FILHO E A TESSITURA DE UMA REDE DE


CUIDADOS................................................................................................183
Renata Cristina de Souza Ramos
Ana Paula de Matos Novaes
Cláudia Bougleux Michelin Scarano
Sirla Alves
ACOLHIMENTO.......................................................................................189
Rose Ramos

SEÇÃO 2 - ENTRELACES DO SENSÍVEL: CENTRO DE


CONVIVÊNCIA, ARTE E CULTURA..........................................191
DIFERENÇAS............................................................................................193
Hugo Leone

CULTURA E BEM-ESTAR SOCIAL: UMA CONQUISTA


ESTÉTICA...................................................................................................194
Luciana Salles

CONSTRUINDO RETRATOS: OS DESAFIOS DE UMA


CURADORIA SOBRE A MOSTRA DE ARTE INSENSATA.......197
Júlio Moreira
Maíra Paiva

ARTES, ENCONTROS E GOLES DE CAFÉ......................................204


Wesley Simões

UM DOCE BALANÇO, UM MERGULHO, UM SALTO, UM


LUGAR DE SE AFOGAR, UM SABER EMERGIR NOVO:
ESTREIA DO TEATRO NA REDE PÚBLICA DE SAÚDE
MENTAL DE BELO HORIZONTE......................................................210
Juliana Saúde Barreto

TREM AVOA? AFIRMO QUE SIM .....................................................217


Ana Paula de Matos Novaes
Marcos Evando Martins dos Santos
Mauro Sérgio Camilo
Rogéria Pereira Ferreira

TREM TAN TAN: LOCOMOTIVA SONORA E A RELAÇÃO


COM A IMPRENSA.................................................................................227
Babilak Bah

COMO VEMOS A CIDADE DENTRO DE NÓS MESMOS?.........238


Billi
SEÇÃO 3 - ENTREMUNDOS DO SABER: CENTRO DE
CONVIVÊNCIA E EDUCAÇÃO.....................................................239
SONHARINA.............................................................................................241
Brenda Behôri

ARTE & EDUCAÇÃO: UMA EXPERIÊNCIA NOS ESPAÇOS DA


SAÚDE MENTAL DO SUS/PBH..........................................................242
Paulo Sérgio Thomaz

UM OLHAR REFLEXIVO SOBRE O TRABALHO


INTERSETORIAL: SAÚDE E EDUCAÇÃO JUNTAS NO
PROCESSO DE INSERÇÃO SOCIAL E DE CONSTRUÇÃO DA
AUTONOMIA............................................................................................249
José Álvaro Pereira da Silva
Wilma dos Santos Ribeiro

INTERSETORIALIDADE: UMA TRAMA DE DESAFIOS E


REALIZAÇÕES NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS EM
VENDA NOVA...........................................................................................257
Sirla Alves

O HOMEM “COLIBRI”..........................................................................262
Jéssica Amaral Rodrigues

SEÇÃO 4 - ENTRE PRÁTICAS DA CIDADANIA:


CENTRO DE CONVIVÊNCIA E TRABALHO........................265
RENASCENDO.........................................................................................267
Diego Luiz

BAZARES VIRTUAIS EM TEMPOS DE PANDEMIA:


ESTRATÉGIAS DE EMPREENDEDORISMO E PARCERIAS
ENTRE CENTROS DE CONVIVÊNCIA E INCUBADORA DE
EMPREENDIMENTOS ECONÔMICOS E SOLIDÁRIOS............269
Aleixo da Cruz
Ana Rita Gonçalves
Bruno Soriano Velano
Daniela Ramos Garcia
Danielle Campos dos Santos Domingos
Luciana Lopes Melo
PROJETO DE INSERÇÃO NO MERCADO FORMAL
DE TRABALHO: A EXPERIÊNCIA DOS CENTROS DE
CONVIVÊNCIA DE BELO HORIZONTE........................................276
Giselle Campos Freitas Amorim
Ana Paula Novaes
Daniela Tonizza de Almeida
Isabel Cristina Silviano Brandão
Karen Christina Zacché
Maria Betânia de Lima Guimarães
Maria Eliza Vasconcelos
Marise Hilbert Santos
Marta Soares
Wilma dos Santos Ribeiro

EFETIVIDADE DO DIREITO AO TRABALHO: PARCERIA


FISCALIZAÇÃO DO TRABALHO – CENTROS DE
CONVIVÊNCIA........................................................................................285
Patrícia Siqueira Silveira

A MAGIA DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA............................291


Sergei Teixeira

SEÇÃO 5 - ENTRE PARCERIAS DE FORMAÇÃO:


CENTRO DE CONVIVÊNCIA E UNIVERSIDADE...............293
MÁSCARA DA PALAVRA......................................................................295
Adrienne Luz

ENCONTROS, DIÁLOGOS E ARTE: A PARCERIA ENTRE O


CURSO DE PSICOLOGIA DA PUC-MG E O CENTRO DE
CONVIVÊNCIA CARLOS PRATES....................................................296
Maria Eliza Vasconcelos Silva
Maria Helena Camargos Moreira

CARTA AO CENTRO DE CONVIVÊNCIA SÃO PAULO ..........303


Luiz Filipe Alves Rocha
(Urano)

A FORMAÇÃO EM SAÚDE MENTAL E PSIQUIATRIA


NA COMUNIDADE – UM GESTO PROFISSIONAL EM
MÚLTIPLAS DIMENSÕES...................................................................305
Enio Rodrigues da Silva
PONTO DIFERENTE............................................................................320
Leandro Henrique Angelo

SEÇÃO 6 - ENTREMEIOS DA LUTA ANTIMANICOMIAL:


CENTRO DE CONVIVÊNCIA E POLÍTICA............................323
MANIFESTO CONVIVENTE................................................................325
Coletivo da oficina de Letras do Centro de Convivência Carlos Prates

QUEM SÃO OS SÃOS?...........................................................................329


Ricardo Evangelista

O SONHO CONTINUA.........................................................................334
Sílvia Maria Soares Ferreira
Eustáquio Martins da Silveira
Ninjão com a Comunidade

“ELES PASSARÃO... NÓS, PASSARINHO!”: UMA ANÁLISE DOS


DESAFIOS ATUAIS PARA A LUTA ANTIMANICOMIAL............337
Daniela Tonizza de Almeida
Giselle Campos Freitas Amorim

NÃO ME CALO NEM NO PRANTO.................................................349


Coletivo Centro de Convivência Barreiro

PARTE III
PELA INVENÇÃO IMAGÉTICA DA LETRA
Fonte: Karina Ferreira

Parte I

PELO ATO DE CONVIVER


27
Seção 1

PARA QUE NÃO SE ESQUEÇA:


HISTÓRIA E FUNDAMENTOS

29
CONVIVER É UM ATO

Frederico Eymard Ewald Rezende1

Conviver é sempre novo, é o meu presente futuro


Tudo tem uma cor nova
Que sempre aparece, porém nem sempre como sempre
Não dá pra entender
O sempre e o nunca
Adentro a madrugada
Convivo com meus sonhos
O ourives usa esmero no tratamento do ouro
Quem usa esmero no tratamento do outro?
Há um gosto pra tudo
Há um rosto pra tudo
Conviver é outro universo
Conviver tem que ter a ver
Ver nem sempre é com os olhos
Atrás das aparências encontram-se pessoas
O dinheiro esconde muita mentira
Conviver é um ato, são atos, ato I, ato II, ato III
Fato, trato, pode ser um mato, um mate, um traste
É por fim uma arte.
Convivência não deve ser conivência nem conveniência
É repartir o momento.
Conviver com arte é outra parte
É outro rosto, outro gosto
Outro posso
Conviver é entrada e saída
É ida vida com também ferida
Quem foge da convivência
Foge da existência, da resistência
1
Artista, jornalista, poeta e músico. Usuário do Centro de Convivência Arthur Bispo do Rosário.

31
Convivência tem rito, não tem atrito
É trem bonito quando é feito pelo coração
Convivência às vezes é chata mata
Mas desata sem data quantas vezes ata!
Quando a convivência se torna conveniência
Perde essência
Na convivência sempre tem outra chance outro lance
Convivência também é desgaste nervo futuro passado e acervo
A arte sublima a convivência
Põe-na numa condição acima
Convivência com arte é outra
Convivência faz parte de um tratamento da alma
Com mais calma tira os traumas
Melhora a saúde restabelece plenitude
A convivência não é só nós
Centros de Convivência
A família é um Centro de Convivência
E o Centro de Convivência se torna uma outra família

32 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
A REDE DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL DE
BELO HORIZONTE: CENTROS DE CONVIVÊNCIA
COMO POTÊNCIA PARA A REABILITAÇÃO
PSICOSSOCIAL

Fernando Siqueira1
Luiz Carlos Penna Chaves2
Vânia Dolher de Santa Inêz Souza Baker3

A Gerência da Rede de Saúde Mental (GRSAM), na Secretaria


Municipal de Saúde (SMSA) de Belo Horizonte, tem desenvolvido
uma gestão que reafirma a Política de Saúde Mental de BH, construída
historicamente com ampla participação de trabalhadores, usuários, fami-
liares, gestores e deliberações que se deram nas Conferências Municipais,
sempre alinhada com os princípios da Reforma Psiquiátrica Brasileira.
A história da Saúde Mental em Belo Horizonte foi construída ao longo
das três últimas décadas com muita troca, escuta cuidadosa, articulação
de diversos atores e defesa de direitos.
Em 2001, a Reforma Psiquiátrica Brasileira passa a ter refe-
renciamento legal através da Lei Federal Nº 10.216, de 06/04/01,
conhecida como “Lei Paulo Delgado”, que dispõe sobre a proteção e
os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o
modelo assistencial em saúde mental. As portarias subsequentes, como a
3088/2011, institui a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) para pessoas
com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes
do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único
de Saúde (SUS). Esta Portaria apresenta diretrizes e objetivos para o
funcionamento da RAPS, que deve, em concordância com os princí-
pios do SUS e da Reforma Psiquiátrica, estar comprometida com o
1
Psiquiatra, Gerente da Rede de Saúde Mental - GRSAM/DIAS/SUASA/SMSA/PBH.
2
Psicólogo, Referência Técnica na Gerência da Rede de Saúde Mental - GRSAM/DIAS/SUASA/SMSA/PBH
3
Psicóloga, Gerente Adjunta da Gerência da Rede de Saúde Mental - GRSAM/DIAS/SUASA/SMSA/PBH.

33
atendimento de todas as pessoas que necessitam de cuidados em saúde
mental em seus diferentes processos de adoecimento e sofrimento
mental. A Reforma psiquiátrica é um processo em curso, que apesar
dos muitos avanços em várias cidades do país, em especial em Belo
Horizonte, ainda sofre ameaças de retrocessos e ataques constantes
pelos que defendem o Hospital Psiquiátrico, que exclui e segrega as
pessoas das possibilidades da convivência nos territórios e do cuidado
em liberdade. O modelo sustentado pela Reforma Psiquiátrica Anti-
manicomial no Brasil é celebrado internacionalmente, sendo inclusive
utilizado como referência pela OMS em sua nova diretriz de saúde
mental lançada no dia 10 de Junho de 2021 (WHO, 2021). Esta dire-
triz orienta internacionalmente a substituição do modelo biomédico
pautado na internação por serviços abertos e comunitários.
A GRSAM desenvolve ações que sustentam os cuidados em saúde
mental através do funcionamento da Rede de Atenção Psicossocial
em Belo Horizonte (RAPS-BH) na lógica antimanicomial, articulada
em diversos pontos de cuidado, com forte investimento na ampliação
dessa rede, que se propõe a cuidar de pessoas de todas as idades, com
experiência de sofrimento mental e/ou em uso prejudicial de álcool e
outras drogas, de forma humanizada e privilegiando o tratamento em
liberdade, a singularidade, a conquista da cidadania e a inserção social.
A ética de Redução de Danos é orientadora do cuidado nos
diversos serviços da RAPS-BH. Redução de danos hoje é um conceito
ampliado, que vai além do uso de álcool e outras drogas, pois avança
para o entendimento dos estilos de vida, hábitos e discute alternativas
livres de escolha e possibilidades.
As ações de cuidado em saúde mental e de reabilitação psicosso-
cial oferecidas aos usuários dos serviços de saúde mental do SUS-BH,
possibilitam caminhos para a produção de vida e buscam não limitar
seus projetos terapêuticos à diminuição ou remoção dos sintomas
psiquiátricos, mas cuidam, promovendo a liberdade, a convivência, os
laços com o território e a cidade.
A RAPS-BH é composta pelos seguintes dispositivos, serviços
e programas:

34 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
• Serviços na Atenção Primária à Saúde e Inserção Social: Equi-
pes de Saúde Mental nos Centros de Saúde; Equipes de Saúde
Mental da Criança e Adolescente; Consultório na Rua; Arte
da Saúde; Centros de Convivência; Incubadora de Empreen-
dimentos Econômicos e Solidários (IEES);
• Estratégias de desinstitucionalização: Serviço Residencial
Terapêutico; Programa “De Volta para Casa” (PVC);
• Serviços de atenção psicossocial especializada: Centros de
Referência em Saúde Mental (CERSAM); Centros de Refe-
rência em Saúde Mental - Álcool e Outras Drogas (CERSAM
AD); Centros de Referência em Saúde Mental Infantojuvenil
(CERSAMi); Serviço de Urgência Psiquiátrica (SUP);
• Atenção Residencial de Caráter Transitório: Unidade de
Acolhimento Transitório (UAT); Unidade de Acolhimento
Transitório Infanto-Juvenil (UATi)
• Atenção Hospitalar: Leitos em hospital geral (Hospital Metro-
politano Doutor Célio de Castro);
• Residência Integrada em Saúde Mental.

A assistência em saúde mental é, então, realizada horizontalmente


em rede, que conta com diversos pontos de atenção aos usuários, que

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 35


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
recebem cuidado integral em saúde, com acompanhamento longitudinal
pelos profissionais, de acordo com o projeto terapêutico. As equipes são
sempre multiprofissionais, possibilitando que o usuário seja assistido de
acordo com as suas necessidades.
Além dos serviços acima mencionados, a GRSAM, em esforço
conjunto na SMSA, tem ampliado essa rede com novos serviços, como
o CERSAM AD Pampulha/Noroeste, retaguarda centralizada, leitos
no Hospital Metropolitano Doutor Célio de Castro, mudança da sede
do CERSAM AD Venda Nova, previsão de ampliação das equipes de
Consultório de Rua e Serviço Residencial Terapêutico, além de outros
projetos em andamento para ampliação de serviços de referência em
saúde mental e a reorganização e qualificação das Equipes de Saúde
Mental na Atenção Primária à Saúde, considerando a necessária atuação
integrada com as Equipes de Saúde da Família e as ações de promoção
de saúde nos territórios.
Na RAPS-BH, destacamos aqui os nove Centros de Convivên-
cia, como serviços permeados pela lógica da desinstitucionalização, da
inclusão, da garantia de cidadania aos diferentes, da busca de autonomia
e da reabilitação psicossocial.
Na história da construção da rede de saúde mental em Belo
Horizonte, vemos surgir, estrategicamente, os Centros de Convivência.
O São Paulo, na Regional Nordeste, foi criado em 1993, funcionando
no Centro de Apoio Comunitário. No ano de 1996, três Centros de
Convivência foram criados: os Centros de Convivência Barreiro, o
Carlos Prates, na Regional Noroeste, e o Nise da Silveira, na Pampulha.
Quatro anos depois foi inaugurado, na Regional Venda Nova, o Marcus
Matraga, no ano de 2000. Neste mesmo ano, ocorreu a municipalização
do Centro de Convivência Arthur Bispo do Rosário. Este foi criado
em 1992, ainda no Instituto Raul Soares, unidade hospitalar referência
para todo o Estado de Minas, passando depois a funcionar em espaço
separado, no período de municipalização, e ocupando o atual imóvel,
fora do IRS, a partir de 2005, na Regional Leste. No ano seguinte, em
2001, mais dois Centros de Convivência passaram a funcionar, um na
Regional Norte, que é o Rosimeire Silva, e outro, na Regional Cen-

36 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
tro-Sul: Cezar Campos. Na Regional Oeste, o Centro de Convivência
iniciou suas atividades no ano de 2002. Sendo assim, no período de
9 anos, entre 1993 e 2002, Belo Horizonte passa a contar com um
Centro de Convivência em cada uma das nove Regionais da cidade,
compondo a RAPS do SUS-BH.
Os Centros de Convivência, estruturados como dispositivos inse-
ridos no campo da saúde, na RAPS-BH, possibilitam a descoberta de
talentos e habilidades, formas de expressar e de dar sentido às variadas
vivências e funcionam como operadores de mudanças, de suportes
e apoios, de sustentação ao sujeito em situação de sofrimento. Não
se trata de operar no campo da clínica stricto sensu; trata-se de uma
proposta para além do tratamento medicamentoso e psicoterapêutico,
embora tenha efeitos de apaziguamento e terapêutico. O Centro de
Convivência é lugar de estar junto, de realizar trocas, lugar de conviver
com as diferentes experiências do sofrimento mental e também lugar
de criar possibilidades para cada um incluir-se na cidade, a seu modo
e no seu tempo.
A Reforma Psiquiátrica, baseada nos princípios da reabilitação
psicossocial, destaca vários desafios cotidianos que surgiram no convívio
das pessoas com sofrimento psíquico em sociedade. A circulação pela
cidade, o convívio com familiares e comunidade e o sentimento de
pertencimento tornaram-se práticas de uma mudança cultural e social
para inclusão social das pessoas com sofrimento psíquico.
A reabilitação psicossocial, como entendida por Saraceno (1999),
favorece um conjunto de estratégias para aumentar as oportunidades
de trocas e negociações para as pessoas em sofrimento mental, seus
familiares, comunidade e serviços que deles cuidam.
Ainda segundo este mesmo autor, a reabilitação psicossocial possui
três grandes núcleos no cotidiano das pessoas com sofrimento men-
tal: a casa, o trabalho e o lazer. O trabalho é fonte de esforços e ações
para essa inclusão, porém ainda é um grande desafio no cotidiano. O
trabalho, em conceito ampliado, faz parte dos preceitos da reabilitação
psicossocial de Saraceno, sendo uma área importante da vida e valori-
zado social e culturalmente. O trabalho contribui para dar um lugar de

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 37


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
pertencimento, auxilia na consolidação da identidade como cidadão e
para independência e autonomia, sendo componente de um projeto
que faça sentido na vida do sujeito.
Os Centros de Convivência em BH, além de oferecerem opor-
tunidades de convivência através de oficinas variadas, de inclusão social,
de resgate de projetos de vida, de encontros com familiares dos usuá-
rios, participa também do Projeto de Inclusão Formal no Mercado
de Trabalho de pessoas com sofrimento mental. Essa participação foi
iniciada em 2014 com a solicitação de parceria pelo Ministério do
Trabalho à SMSA e tem se revelado uma parceria potente no sentido
de desconstrução de mitos e preconceitos em relação às pessoas com
sofrimento mental, o que amplia as possibilidades de acesso ao mercado
formal de trabalho.
Ainda nessa mesma perspectiva de inclusão social pelo trabalho
e de construção de identidades, como sinalizado por Saraceno, vale
mencionar a Incubadora de Empreendimentos Econômicos e Solidários
(IEES),vinculada à Gerência da Rede de Saúde Mental (GRSAM) , para
o fomento de iniciativas de inclusão social através do trabalho e geração
de renda, pela via da economia solidária para usuários acompanhados
nos serviços de Saúde Mental. A Incubadora promove o apoio técnico
às iniciativas e projetos de estímulo, inserção e capacitação em relação
ao trabalho, em parceria com a rede de Saúde Mental. Atualmente, são
apoiados projetos no campo de álcool e outras drogas, no campo da
juventude e também a Suricato - Associação de Trabalho e Produção
Solidária, ONG criada e gerenciada pelos usuários/associados que agrega
cinco núcleos de produção: marcenaria, mosaico, costura e bordado,
culinária e o Espaço Cultural Suricato.
Assim como toda a rede de saúde mental de Belo Horizonte,
o Centro de Convivência se constituiu, a princípio, para acolher os
casos mais graves, de pessoas que passaram anos em instituições asilares,
com os quadros sintomáticos mais complexos e de sujeitos com laços
sociais rompidos ou precários. Ao longo dos anos, os contextos sociais,
culturais e comportamentais mudaram, os serviços da rede de saúde
mental de Belo Horizonte vêm buscando lidar com essas mudanças, dar

38 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
respostas condizentes com a complexidade das situações que se apre-
sentam no mundo contemporâneo, em destaque, o uso prejudicial de
álcool e outras drogas, que é um universo complexo, de difícil manejo,
que apresenta particularidades que desafiam os variados segmentos e
setores da sociedade. Entendemos que a missão precípua do dispositivo
Centro de Convivência se mantém fiel ao ideário que o constituiu
desde sua criação e se atualiza acolhendo os sujeitos em suas diversas
experiências de sofrimento, nos diferentes territórios onde esses sujeitos
vivem. Os Centros de Convivência contribuem articulando projetos
de reabilitação psicossocial no âmbito da Rede de Atenção Psicossocial
(RAPS-BH) e também através de parcerias intersetoriais, fortalecendo
a rede de cuidados e inclusão.

Referências

WORLD HEALTH ORGANIZATION. Guidance on community


mental health services: Promoting person-centred and rights-based
approaches, 2021. Disponível em: https://www.who.int/publications/i/
item/9789240025707. Acesso em 21 de set.de 2021.
SARACENO, Benedetto. Libertando identidades: da reabilitação psi-
cossocial à cidadania possível. Instituto Franco Basaglia. Rio de Janeiro: Te
Corá Editora. Belo Horizonte,1999.

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 39


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
OS CENTROS DE CONVIVÊNCIA NA REDE DE
SAÚDE MENTAL DE BELO HORIZONTE

Karen C. Zacché1
Rosimeire Silva (in memorian)

“Há poesia toda vez que um escrito nos introduz


num mundo diferente do nosso,
e, ao nos dar a presença de um ser,
de uma certa relação fundamental,
faz com que ela se torne também nossa (...)
a poesia é criação de um sujeito
assumindo uma nova ordem
de relação simbólica com o mundo”
Jacques Lacan

Introdução

Belo Horizonte possui uma complexa rede de atenção à saúde


mental orientada pelos princípios da Reforma Psiquiátrica Antimanico-
mial. Desde 1993, uma série de serviços foram abertos para que a cidade
pudesse prescindir do hospital psiquiátrico para cuidar do cidadão com
sofrimento mental. No que diz respeito à reinserção social, os Centros
de Convivência têm mostrado ser uma saída para a construção de novas
possibilidades no percurso do tratamento dos usuários da rede de saúde
mental. O eixo principal do seu funcionamento é a estruturação de
um cotidiano de atividades, principalmente artísticas e artesanais. O
fazer artístico é construtor e potencializador de laços sociais, lançando
o sujeito rumo a novas experiências e desejos.
A fim de compreender essa realidade, é necessário retomar o
processo histórico por meio do qual a assistência psiquiátrica se con-
solidou. O século XVII, ao inventar o hospital geral e institucionalizar
as diferenças agrupadas sob o signo da desrazão – loucos, hereges,
prostitutas e mendigos –, estabeleceu as principais condições para a
1
Psicóloga, Gerente do Centro de Convivência Arthur Bispo do Rosário.

40
posterior segregação do louco, que ao final do século XVIII passou a
ser percebido como doente mental com a invenção do saber médico
sobre a loucura (FOUCAULT, 1987). A Psiquiatria nasceu propondo
a exclusão de alguns indivíduos e assumiu as chaves da fortaleza do
confinamento, passando a não só se ocupar dos loucos, mas também
a exercer o mandato social de falar em nome desses. Pela boca da
Psiquiatria fala a razão e, em nome da razão, os “doentes mentais” são
segregados e excluídos do convívio social.
Entre nós, a história da Psiquiatria revelou os limites da desuma-
nidade com que o exercício deste poder conduziu a prática terapêutica.
Os lugares de tratamento não se distinguiam, em nada, da violência
cotidiana exercida nos campos de concentração, analogia essa estabele-
cida por Franco Basaglia no momento de sua visita a uma das institui-
ções psiquiátricas brasileiras, provocando inquietação e possibilitando
o início do processo de transformação do cenário do tratamento em
saúde mental.
Podemos afirmar que o tratamento moral nunca foi abandonado
como terapêutica no tratamento ofertado aos loucos, nem mesmo com
o desenvolvimento da indústria farmacêutica. Poderíamos supor que,
controlando os sintomas da doença mental com o uso dos recursos
medicamentosos, poder-se-ia abrir mão da prisão como condição
destinada a quem dela sofria; mas isso não aconteceu, pelo menos não
a partir daí.
O livro “Nos porões da loucura”, resultado de reportagens do
jornalista Hiram Firmino publicadas no jornal Estado de Minas em
1979, lançadas em livro em 1982 e nas quais é baseado o filme “Em
Nome da Razão” (1979), além de um livro mais recente, de 2013,
“Holocausto Brasileiro”, da jornalista Daniela Arbex, são documentos
preciosos para demonstrar que nos manicômios não imperava a ques-
tão dos cuidados. O que se constatava era, antes e acima de tudo, o
abandono e o descuido. A loucura trazia consigo a ruptura dos laços e
a internação fortalecia essa ruptura pela via do isolamento, oferecendo
um cotidiano sem vida e vazio de sentido. Somando-se a esse fato, vale
lembrar que a imagem que se construiu do louco ao longo do tempo foi

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 41


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
sempre pelo viés da negatividade: ausência de razão e de juízo; aquele
que é imprevisível, perigoso, incapaz. Se nós, orientados pela lógica da
Reforma Psiquiátrica, recusamos essa maneira de lidar com a loucura,
não podemos escapar das marcas dessa herança que nos foi deixada por
um passado nem tão distante. Cabe, portanto, decidirmos o que fazer
dessa herança. Herança que assume a forma de uma dívida com cada
um que teve sua vida destruída pela maneira como a loucura foi tratada
pela sociedade. Podemos citar como exemplo claro, cruel e atual: o dano
causado pela institucionalização decorrente de anos de exílio forçado
naquelas instituições totais chamadas “hospitais psiquiátricos”, vividos
pelos que hoje são moradores dos serviços residenciais terapêuticos.
Demarcamos que a construção de formas mais humanas no
tratamento do portador de sofrimento mental ainda são insuficientes
para fazer frente às consequências de como se deu ao longo dos séculos,
assim como também à ruptura dos laços sociais, frequentes nas trajetórias
de vida dos desses sujeitos. Tais rupturas apresentam aspectos mais ou
menos graves, podem ser mais breves ou mais prolongadas e, na maioria
das vezes, foram potencializadas pelos manicômios.
Nos últimos anos, contudo, o termo “cuidado” foi ampliado e,
especificamente no campo da saúde mental, várias frentes foram se
abrindo no sentido de ampliar ações necessárias visando um projeto
de atenção ao portador de sofrimento mental. Em Belo Horizonte, a
rede de atendimento psicossocial é composta pelos serviços substitu-
tivos ao manicômio. A cidade dispõe de oito CERSAM’s (Centros de
Referência em Saúde Mental - nome mineiro recebido pelo CAPS),
cinco CERSAM’s-AD (Álcool e Drogas) e três CERSAM-i (Infantil),
equipes de saúde mental nas Unidades Básicas de Saúde, trinta e qua-
tro Serviços Residenciais Terapêuticos, nove Centros de Convivência,
Programa Arte da Saúde, Serviço de Urgência Psiquiátrica Noturna,
Consultórios de Rua, Equipes Complementares para o Atendimento de
Crianças e Adolescentes, Unidade de Acolhimento Transitório e uma
Incubadora de Empreendimentos Econômicos e Solidários da Saúde
Mental, dispositivos públicos que integram a rede de atendimento do
Sistema Único de Saúde (SUS).

42 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
A progressiva implantação dos serviços substitutivos se fez acom-
panhar pela gradual desativação de leitos e fechamento de parte dos
hospitais psiquiátricos existentes. No curso dos últimos vinte e oito
anos, ou seja, a partir de 1993, cinco hospitais psiquiátricos existentes
na cidade foram fechados, restando atualmente em funcionamento
apenas um, que atende a demanda de todo o Estado de Minas Gerais.
Para ajudar cada usuário a lidar com seu sofrimento mental e
enfrentar o isolamento e a segregação, a rede substitutiva oferece o
Centro de Convivência - um dispositivo que lança mão de oficinas
de arte, artesanato e atividades físicas para organizar o cotidiano do
usuário, indo além do tratamento terapêutico propriamente dito. A
política de saúde mental de Belo Horizonte optou, assim, no que se
refere à formação das equipes desses dispositivos, pelos artistas, artesãos
e educadores físicos. São esses profissionais que conduzem as oficinas e
atividades ofertadas nos Centros de Convivência. Essa escolha e deci-
são política expressam o reconhecimento e a importância atribuída às
contribuições oriundas do campo da arte, da cultura e do lazer; práticas
e disciplinas que não necessariamente se inscrevem, mas transcendem
o campo do cuidado da saúde stricto sensu.
O trabalho desenvolvido pelos artistas, cuja formação realiza-se
no campo das artes e têm como referência o processo de criação, propi-
ciam outros recursos aos sujeitos excluídos, para que possam encontrar
e escolher novas formas de se expressarem. Formas essas, vale ressaltar,
menos “padrão” ou “formal” e que incluem um jeito particular de rela-
cionar-se com o mundo e uma nova lógica de dialogar com a cidade.
A natureza das nossas oficinas se dá de forma criativa, não massificada,
e produtora singular de sentido, produzindo efeitos que são claramente
percebidos na melhoria das condições de vida, nas relações pessoais e
nos corpos das pessoas.
A hipótese que fazemos e que nos orienta é de que, exatamente
por vir de outro campo e por aportar à experiência da loucura valores
e referências estrangeiras ao campo da saúde, ao incluir pincel, tinta,
música, papel, argila, cor, som, relações e afetos, que produzem efeitos
e revelam-se potentes. Em outras palavras: a aposta na arte como modo

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 43


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
de expressão, mas, sobretudo, como recurso de invenção de humani-
dades, revela-se potente, além de assertiva, no cotidiano dos Centros
de Convivência. As fronteiras do viver se expandem pela descoberta
de perspectivas, significados, novas possibilidades de inserção e fazem
desses elementos recursos imprescindíveis ao processo de desconstrução
do manicômio.
É importante salientar que não esperamos que desse processo de
criação surjam artistas, o que pode ou não vir a acontecer. O que nos
interessa, fundamentalmente, é a liberdade que o processo criativo traz
em si e, principalmente, a possibilidade de um fazer sem expectativas
exigentes, duras ou padronizadas. Cada sujeito é convidado a criar; o
limite é dado pelo suporte da obra a ser criada e pela relação que ele
estabelece com o outro. O que importa é o que o contato direto com a
arte ou com o fazer artístico pode proporcionar. Essa é uma das funções
do Centro de Convivência.
Há também uma agenda constante para frequência aos lugares
de compartilhamento de arte e cultura na cidade, tais como cinema,
teatro e shows. Além disso, compartilhamos com a cidade o resultado
desse processo criativo e de expressão que acontece nos Centros de
Convivência, realizando eventos, shows e exposições. O maior exem-
plo desse empenho é a Mostra de Arte Insensata. Essa iniciativa, que
teve três edições, é uma maneira de potencializar e amplificar aquilo
que fazemos cotidianamente: o diálogo com a cidade. Durante cinco
dias, levamos para um equipamento cultural, em Belo Horizonte, uma
série de shows, oficinas, ateliês abertos, seminários, rodas de conversas,
loja de objetos e artesanato, bar e restaurante. Lugares onde usuários e
trabalhadores oferecem à cidade um momento prazeroso, propiciando
circular pelos resultados que o encontro da arte com a loucura produziu.
Ricardo Aquino (2012, p. 49), citando Deleuze, pontua que
quando alguém está criando encontra-se “num devir artista e isso o
afasta da doença”. Longe de reduzir a arte a um processo de cura, vis-
lumbramos antes o intervalo que ela pode proporcionar. Fazemos aos
nossos usuários o convite para fazerem outra coisa de sua dor, de seu
sofrimento, que seja produção de vida, além da cessação do sintoma.

44 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
As oficinas nos Centros de Convivência são, como consequência
da produção de novos sujeitos, provocadoras para novas possibilidades:
não é raro vermos ali casais se formando, amizades surgindo e se
consolidando, a busca pelo retorno aos estudos, a busca por trabalho.
Algumas dessas saídas de cada usuário pouco precisam de nós, os
trabalhadores da saúde mental. Porém, em outras circunstâncias, é
fundamental a nossa participação para construirmos juntos com os
usuários novas possibilidades, como é o caso da inserção no mercado
de trabalho, seja pela via da economia solidária ou pela via do
mercado formal.
No ano de 2003, a Secretaria Municipal de Saúde de Belo
Horizonte (SMSA-BH) criou uma Incubadora de Empreendimentos
Econômicos e Solidários para dar suporte à experiência de trabalho
cooperado surgido entre usuários da rede de atenção à saúde mental: a
Suricato. Essa experiência, merecedora de relato mais pormenorizado,
conta atualmente com quatro grupos de produção e um espaço onde,
além de exposição e venda dos produtos produzidos pelos usuários,
funciona um bar/restaurante e uma galeria de arte, com variada agenda
cultural de shows musicais e performances artísticas.
No campo do trabalho formal, a partir de 2014 os Centros de
Convivência têm sustentado, em parceria com a Superintendência
Regional do Trabalho em Minas Gerais - Ministério do Trabalho e
Previdência, entidades formadoras e empresas, um projeto no qual nossos
usuários ingressam no mercado formal de trabalho através de apren-
dizagem profissional. Atualmente, cento e sessenta e oito usuários, dos
nove Centros de Convivência, estão trabalhando em diversas empresas2.
O Centro de Convivência da rede de saúde mental de Belo
Horizonte encontra-se em um lugar de fronteira, um lugar na saúde
que se dirige para fora da saúde, com a loucura circulando livremente
pela cidade. Além do processo de trabalho cotidiano em cada Centro
de Convivência, monitores têm papel fundamental na interlocução
que fazemos com a cidade tanto no que diz respeito aos eventos cul-
turais que esta nos oferece, quanto àqueles que nós oferecemos (shows,
2 
Dados de agosto de 2021.

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 45


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
exposições, intervenções, saraus...). Esses dois movimentos, que vão no
sentido de uma apropriação e usufruto da cidade, ao mesmo tempo
que têm por finalidade e consequência deixar nossos usuários mais à
vontade para circularem, têm também por finalidade e consequência
mudar a representação social do portador de sofrimento mental, fazendo
caber na cidade o convívio com a loucura.
Os Centros de Convivência constituem-se em espaço de socia-
bilidade, compreendida não como um mero estar ali, mas como tempo,
espaço no qual se oferta algo, um recurso a mais que incrementa o
convívio e torna o comum viver mais atrativo. Lugar que almeja
fomentar no cidadão em sofrimento mental o desejo de circular sob
outras referências sobre si e sobre o mundo, não mais como louco
e não só como usuário da saúde mental, mas como um cidadão, o
“qualquer um”, que pode usufruir do que a cidade oferece aos que
nela vivem; o sujeito singular que aporta e consome os recursos que
a mesma oferta e acolhe.
O conviver a que nos referimos orienta-se pela proposição de
Agamben (2009) sobre a amizade. Ao interpretar partes do texto aristo-
télico Etica nicomachea, especificamente os livros oitavo e nono, Agam-
ben destaca a passagem referente à amizade, reconhecendo o estatuto
político dado pelo filósofo, em suas palavras:
Mas, então, também para o amigo se deverá com-sentir
que ele existe, e isso acontece no conviver (syzen) e no
ter em comum (koinonein) ações e pensamentos. Nesse
sentido, diz-se que os homens convivem e não, como
para o gado, que condividem o pasto (ARISTÓTELES
apud AGAMBEN, 2009, p. 91).

Na interpretação desse filósofo italiano, podemos ler esta afir-


mativa como:
Essencial é, em todo caso, que a comunidade humana
seja aqui definida, em relação àquele animal, através de
um conviver [...] que não é definido pela participação
numa substância comum, mas por uma condivisão
puramente existencial e, por assim dizer, sem objeto:
a amizade, como com-sentimento do puro fato de

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MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
ser. [...] E é essa partilha sem objeto, esse com-sen-
tir originário que constitui a política (AGAMBEN,
2009, pp. 91-92).

Cabe assinalar que, assim como os demais serviços da saúde


mental, o Centro de Convivência atende casos graves de sofrimento
mental e também aqueles que fazem uso prejudicial de álcool e outras
drogas. Pensar um lugar com tal especificidade, que funciona na tensão
entre o dentro e o fora, requer atenção e disposição para operar sob
esse fio de tensão, ou seja, não fazer do serviço um gueto segregativo,
e, por outro lado, reconhecer que o “para todos” deixa sempre de fora
o singular, operando de modo a excluir a diferença mais radical. Assim,
para não correr o risco de normalizar um serviço como esse, sob pena
de excluir aqueles que mais precisam dele, é preciso buscar o encontro
com as diferenças, com a diversidade.
O reconhecimento de um lugar para a diferença, um lugar que
a estimule e potencialize o processo de invenção da inserção singular,
remete-nos a um dos princípios mais caros e bonitos do SUS: a equi-
dade ou reconhecimento de que é preciso tratar de modo diferente os
desiguais, oferecendo mais cuidado a quem mais precisa.
Desde a implantação dos Centros de Convivência, uma de
suas vocações é a de se constituírem como canais de diálogo mais
estreito da saúde mental e de seus usuários com outras políticas
públicas e com a cidade. Entretanto, e a despeito de várias inicia-
tivas e da inserção em normativas do SUS, esses dispositivos não
recebem financiamento das demais instâncias de governo federal,
fato que fragiliza e reduz a implantação de Centro de Convivência
em muitos municípios.
Para concluir, apoiamo-nos nos dizeres de Contardo Calligaris e
Fayga Ostrower. Calligaris (2013, n.p.), quando afirma que “a liberdade
é um trabalho incessante para inventar os futuros que queremos e para
ter coragem de fazê-los acontecer”. E Fayga Ostrower, transcrito por
Frederico Morais (1998, p. 42)), quando declara: “A arte é uma forma
de crescimento para a liberdade, um caminho de vida”.

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 47


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
Arte, liberdade, convivência, solidariedade são ferramentas que
orientam e dão forma ao cotidiano, em nosso banal, surpreendente e
criativo dia a dia.

Referências

AGAMBEN, G. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Cha-


pecó: Argos, 2009.
AQUINO, R. Do Pitoresco ao Pontual: uma Imagem-Biografia. In:
LÁZARO, W. et al. (orgs.) Arthur Bispo do Rosário – Séc. XX. Rio
de Janeiro: Réptil, 2012. p. 48-105.
ARBEX, Daniela. Holocausto Brasileiro. São Paulo: Geração Edito-
rial, 2013.
CALLIGARIS, C. Liberdade de ir e vir. Folha de São Paulo, São Paulo,
05 de dez. 2013. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/
contardocalligaris/2013/12/1380677-liberdade-de-ir-e-vir.shtml. Acesso
em 15 de set. 2021
FIRMINO, H. Nos porões da loucura. Belo Horizonte:
CODECRI, 1982.
FOUCAULT, M. História da loucura na Idade Clássica. São Paulo:
Editora Perspectiva, 1987.
MORAIS, F. Arte é o que eu e você chamamos arte. Rio de Janeiro:
Record, 1998.
RATTON, H. Em nome da razão. Belo Horizonte: Quimera, 1979.
Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=smtO7x34xn0. Acesso
em: 13 mar. 2016.

48 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
CONFERÊNCIA DE ROSIMEIRE SILVA1 NO
I ENCONTRO DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA
DE BELO HORIZONTE2

Bom dia a todos! É desnecessário, mas delicado dizer da ale-


gria e do prazer de estar aqui neste I Encontro dos Centros de
Convivência. Num I Encontro em que ainda bem que eu não fui
a única a tentar reconhecer tantas faces que se apresentavam com-
pletamente diferentes.
Houve um tempo em que eu conhecia todos os trabalhadores
dos Centros de Convivência, das equipes dos Centros de Convivência.
Talvez, felizmente, eu ainda possa reconhecer muitos dos rostos de dez
ou quinze anos atrás, mas também posso me surpreender por tanta gente
nova nessa empreitada. Acho que isso é absolutamente feliz para esta
experiência e para o percurso que os Centros de Convivência realizam
dentro da reforma psiquiátrica em BH e do que a gente testemunha de
um trabalho muito singular nestes dispositivos que fazem tão diferen-
tes os Centros de Convivência daqui dos Centros de Convivência de
outros locais de outras cidades, de outros estados, e aí não tem nenhum
1
Rosimeire Silva foi Psicóloga, Mestre em Promoção da Saúde e Prevenção à Violência (Faculdade de
Medicina UFMG). Militante da Luta Antimanicomial, integrante da Comissão Nacional de Direitos
Humanos do Conselho Federal de Psicologia. Trabalhou na Coordenação da política para população
de rua da PBH de 1993 a 1995, como Técnica da Coordenação de Saúde Mental da PBH de 1996 a
1998. Coordenou a Política de Saúde Mental da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte (2003 a 2013),
juntamente com Miriam Nadim Abou-Yd e Políbio de Campos Souza. Atuou no PAI-PJ (Programa de
Atenção Integral ao Paciente Judiciário do TJMG). Coordenou o CRR Ateliê Intervalo de Redução de
Danos da Faculdade de Medicina (UFMG), foi articuladora do Projeto Redes (FIOCRUZ/SENAD) no
município de Ribeirão das Neves (MG). Foi Professora convidada em cursos de pós-graduação (lato e
stricto sensu) da Faculdade de Medicina (UFMG). Atuou como professora em cursos na área de Saúde
Mental, Atenção ao Usuário de Álcool e Outras Drogas e como Supervisora de Redes de Atenção Psi-
cossocial. Dona de um vasto currículo, de um sorriso largo, de coragem e energia incomensuráveis, de
um carisma impressionante, de uma transmissão rigorosa e potente. Guerreira incansável derrubou muitos
muros, construiu cidades invisíveis e arquitetou travessias rosianas. Nos deixou precocemente, às vésperas
do 18 de maio de 2017. Está entre nós “encantada”, na sua fala doce e firme, na sua escrita fina e precisa,
na sua transmissão valiosa, na sua presença.
2
O evento, realizado em 01 de julho de 2015, teve como tema “Centros de Convivência: lugar/papel na
assistência ao cidadão em sofrimento mental ou em uso prejudicial de álcool e outras drogas” e reuniu
as trabalhadoras e trabalhadores dos nove Centros de Convivência de Belo Horizonte. Transcrição da
gravação de Sandro Boaventura.

49
julgamento de valor, mas apenas a constatação de uma diferença no
modo de operar esses dispositivos.
Quando recebi o convite da Giselle eu nem perguntei para o que
era. Aceitei o convite e depois fui me dar conta de que era para contar
a história, para falar um pouco da história dos Centros de Convivên-
cia, e aí não tem como a gente também não se dar conta de quando a
gente é chamado para contar história é porque a gente está ficando um
pouquinho velho. Só conta a história quem já viveu, quem já passou
por ela. Recebi o texto de preparação do encontro3 e aí fiz um percurso
de leitura e fui me surpreendendo com várias coisas, especialmente na
fala dos usuários, e queria um pouco comentar esses pontos também.
Mas antes, já que é para falar de história, certamente os Centros de
Convivência foram os dispositivos que tanto como coordenadora,
mas bem antes de coordenadora, eu tive o privilégio de acompanhar
a construção desses dispositivos na cidade. Muito antes de ser da saúde
mental eu já acompanhava essa empreitada e essa tentativa de construção
desses novos dispositivos.Vou dividir aqui, a memória com Betânia, da
tentativa de implantação do Centro de Convivência Oeste, quando eu
trabalhava ainda na Secretaria de Assistência Social e aí o que consegui
reter na minha memória desse percurso e dessa história marcava a saúde
mental, pelo que me lembro, com esses dispositivos a opção por criar
um lugar dentro da saúde mental, que já fizesse, a partir desses disposi-
tivos, um diálogo mais estreito com outras políticas públicas. No início
dos Centros de Convivência pude acompanhar, mais como militante
da luta antimanicomial e também como trabalhadora da assistência,
a tentativa de criar os dispositivos em parceria, principalmente com
política de cultura do município. Uma tentativa que não resultou muito
exitosa e que levou a uma reconfiguração da forma de organizar os
serviços. A expectativa era, naquele momento, que a cultura pudesse
financiar, como fazem em outros lugares no Brasil, os trabalhadores
dessas equipes, dada a configuração própria da política de cultura, o
seu modo de funcionamento absolutamente fragmentário e diverso da
3
Rosimeire Silva refere-se aqui a uma compilação de respostas de usuários, familiares e trabalhadores da
rede à pergunta sobre o tema do Encontro. A compilação e análise das respostas feita por Sandro Boaventura
e Giselle Amorim foi apresentada aos presentes por esta última no segundo turno do evento.

50 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
saúde. Neste ponto, a cultura funcionava –não sei como anda hoje –,
mas funcionava naquele momento através de editais que tinham um
tempo determinado para a atuação dos projetos, e isso se contrapunha
ao que buscava a saúde e ao modo de funcionar da saúde que buscava
sustentar uma ação perene como a que vocês realizam hoje.
Então, não era pelo desenvolvimento de um projeto que se ini-
ciava e se interrompia com um prazo dado, mas a sustentação de um
lugar dentro da rede pros usuários da saúde mental onde seu encontro
se desse com os recursos da arte e da cultura. Uma outra orientação,
que ainda permanece, configura a organização de alguns dos Cen-
tros de Convivência. Era a tentativa de localizar esses dispositivos em
espaços que já não fossem exclusivamente sanitários. A parceria com a
assistência social e particularmente com os CAC’s visava isso: criar os
Centros de Convivência dentro de dispositivos que fossem de habita-
ção de toda a comunidade. Os CAC’s, Centros de Apoio Comunitário,
eram dispositivos ligados na época à Secretaria de Assistência Social,
e foi assim que nasceu o Centro de Convivência São Paulo, foi assim
que nasceu o Centro de Convivência da Pampulha e, posteriormente,
o Centro de Convivência do Barreiro e o Providência, mais adiante.
Desses, apenas o Pampulha não ficou dentro de um CAC, e os outros
que foram criados em espaços próprios foram criados por limitação
também da política de assistência social de oferecer esse recurso nas
outras regionais. Tinha aí uma intenção que eu acho que os Centros
de Convivência conseguem no seu cotidiano, que era de fazer esse
laço e permitir ao portador do sofrimento circular por grupos, por
espaços habitados por outros sujeitos, por mulheres, por crianças, por
tudo aquilo que o CAC reunia no seu interior. Os CAC’s prestavam
uma série de serviços e ali dentro se alocava, se inseria um dispositivo
da saúde mental que visava oferecer, como Sandro trabalhou tão bem4,
um espaço de convivência e de sociabilidade pro portador de sofri-
mento mental em que estar, em que participar desse dispositivo, não
fosse simplesmente estar ali, simplesmente naquele espaço como uma
4
Rosimeire Silva refere-se aqui e mais adiante ao texto de abertura do I Encontro escrito e apresentado
por Sandro Boaventura a partir das discussões da comissão organizadora do evento, o qual foi revisto
pelo autor para compor neste livro a primeira parte do texto aqui intitulado “A convivência ao litoral”.

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 51


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
permanência, mas que a gente também oferecesse algo, um recurso a
mais que incrementasse essa convivência, que a tornasse mais atrativa,
mais agradável e a partir de onde os usuários pudessem circular pela
cidade sobre outras referências não mais como louco, essa primeira
inscrição dada pela cultura, nem só como um usuário da saúde mental,
mas como alguém capaz de conviver e de produzir outras referências
sobre si e sobre o mundo a partir do encontro com aquelas atividades
oferecidas nesse serviço.
Ainda bem no início – e aí para marcar uma coisa que eu acho
que os Centros de Convivência realizam hoje dentro da rede de forma
mais incisiva que é o diálogo com a cidade, essa intervenção da saúde
mental no campo mais amplo da cultura... eu não tenho muita certeza
do ano… talvez Marta Soares vá lembrar… acho que foi entre 96 ou
97 – a gente faz uma parceria com o Cine Belas Artes e pela primeira
vez os Centros de Convivência fazem uma intervenção coletiva fora
dos seus espaços. Nós recolhemos junto com uma pessoa do cinema – o
cinema tinha uma lojinha, uma loja, que oferecia uma série de objetos
artísticos e artesanais –, e a gente saiu fazendo uma pesquisa dentro do
Centro de Convivência da produção das oficinas o que a gente podia
recolher para ser mostrado à cidade. Então, ali já tinha um germe do que
vai se tornar muito tempo depois essa coisa potente que é a Mostra de
Arte Insensata. Foi uma exposição que causou na cidade, eu me lembro
que de tudo que a gente levou, rapidamente, tudo foi vendido dentro
da loja do Belas Artes. Mas foi uma intervenção absolutamente pontual;
logo depois a gente se distancia também, a gente sai da coordenação
e, durante um tempo, nos Centros de Convivência cada um fazia sua
intervenção no seu território, mas tinha pouca atuação como coletivo,
esse que eu acho que me parece ser para dentro da rede um grande
salto que o Centro de Convivência realiza...Vocês conseguem susten-
tar, têm conseguido sustentar, ao longo desses anos, e, especialmente a
partir de 2003, quando a gente retoma essa intervenção coletiva dos
serviços, a partir do bazar.Tem um bazar tradicional que os Centros de
Convivência realizam dentro do hall da Secretaria Municipal de Saúde,
que são dois bazares... Marta está ali lembrando... São duas datas onde

52 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
vocês realizam esse bazar, que é em maio, comemorando o dia da luta
antimanicomial, e no final do ano, com o Bazar de Natal, que já se
tornou uma intervenção esperada pela cidade, esperada pela Secretaria
Municipal de Saúde. E cada uma de nós que estava naquele momento
se lembra do esforço que foi necessário para que a gente produzisse
uma intervenção coletiva, foi preciso acertar coisas tão delicadas como
valor de uma determinada peça, como a gente ia identificar aquele
produto, de onde ele vinha, como a gente ia organizar a distribuição
e a prestação de contas desse recurso. Mas, sobretudo, como a gente
ia organizar uma disposição de trabalho entre todos os serviços que
permitissem a construção de uma escala responsável para sustentar,
para fazer funcionar aquele dispositivo naquele lugar, era essencial que
a gente fizesse isso.
Hoje me lembrando… Antes do bazar, na primeira reunião, em
2003, com os Centros de Convivência, as gerentes me fazem a per-
gunta de qual era o lugar dos Centros de Convivência dentro da rede.
Eu sempre achei que o lugar de vocês é um lugar de fronteira. É um
lugar da saúde para fora da saúde. Não é à toa que a arte se coloca nesse
lugar. E aí é interessante que quando eu fui ler o trabalho de vocês,
num certo momento, na fala de um dos monitores eu anotei alguma
coisa assim: “curioso como a arte se sente deslocada em seu habitat
natural” ... Porque não tem um locus mais natural para a arte do que o
campo da saúde mental e seu encontro com a loucura. Mas é ali que os
monitores, vindos de uma tradição talvez de professores de arte ou do
seu ateliê pessoal, têm que reinventar um modo de fazer arte e entrar
na saúde sem ser capturado por esse lugar de se tornar arteterapeuta.
Essa é uma marca que acho que Belo Horizonte aos poucos foi con-
seguindo construir. Então, escutar hoje que os Centros de Convivência
não são um lugar clínico, mas que produz um efeito terapêutico, não
são substantivamente o lugar da clínica, mas adjetivamente são o lugar
da clínica, produz efeito terapêutico, me parece ser um salto importante
na construção do pensamento sobre esses serviços, de um pensamento
que não vai vir de fora, não é alguém lendo a experiência que vai nos

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 53


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
fornecer as orientações para nosso trabalho cotidiano, é do trabalho
de vocês que esse pensamento virá.
Acho que essa marcação é importante em dois sentidos: para nós,
não foi simples... Para nós, no coletivo, muitos de nós achávamos, num
certo momento, que o Centro de Convivência tinha que assumir uma
face mais clínica. Essa força do pensamento clínico na nossa experiência,
no nosso cotidiano, fazia um empuxo para tudo à clínica… E não foi
simples construir uma outra referência e sustentar uma outra referência
para poder hoje concluir desse modo. Então, a clínica tem um lugar para
o seu fazer, para sua operação; ela não é desconhecida dos trabalhadores
do Centro de Convivência, mas não é ali... não é o papel, não é essa a
função dessas equipes, não é esse o papel, apesar de vocês produzirem
os efeitos terapêuticos muitas vezes os mais potentes e mais potentes
que o trabalho lá onde a clínica tem o seu lugar muitas vezes...
Mas esse é o referencial que eu acho que é preciso conservar
dessa história. Por que é preciso conservar? Para conservar o valor da
saúde, também sustentar um lugar que não seja essencialmente sanitário,
mas que vai trazer os efeitos mais importantes para a saúde e para a
vida das pessoas. Isso coloca os Centros de Convivência num patamar
completamente distinto de uma certa ideia ou de um certo olhar que
pode ser endereçado, e muitas vezes é endereçado a vocês, como uma
coisa menor, porque é mais singela; o fazer de um Centro de Convivên-
cia é mais sutil, mais singelo, mais delicado, mas não é menos potente
do que aquilo que se faz e se oferece num Centro de Saúde ou num
CERSAM, e a potência maior do trabalho de vocês me parece ser esse
ponto de diálogo com a cidade. Os Centros de Convivência são, dentro
da rede de saúde mental, os que mais conversam com a cidade nos seus
diferentes grupos, nos seus diferentes segmentos... Estou me lembrando
de uma das exposições que talvez expresse isso de uma maneira mais
clara que foi a exposição do Ponteio, no Ponteio Lar Shopping, onde
os Centros de Convivência foram convidados a produzir uma expo-
sição a ser apresentada dentro daquele shopping. Então, o convite nos
veio de fora já como um efeito desse trabalho, como uma repercussão,
um ressoar daquilo que vocês fazem no cotidiano no interior desses

54 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
lugares, lá no espaço das oficinas para fora da cidade. E a partir dessa
convocação, desse convite, a gente sempre pode sustentar um diálogo
com toda a saúde mental…
Este é o segundo ponto que eu acho que é fundamental: destacar
toda a potência, todo o valor desses dispositivos; não pode nunca levá-los
a uma posição narcísica de se achar a cereja do bolo da saúde mental.
Só é possível ter um Centro de Convivência, e com essa potência,
dentro de um trabalho de rede efetivo. Por mais que seja embaraçoso
o cotidiano, por mais que seja difícil, esse foi um ponto no qual eu
insisti com os Centros de Convivência. Sei que o dia a dia... e que a
vida como ela é... não é simples, sei que o diálogo com o Centro de
Saúde e CERSAM, às vezes é mais duro do que com a cidade, com
outros espaços da cidade… Contudo, desse diálogo vocês nunca vão
poder recuar; é responsabilidade de vocês produzir e alterar cada vez
mais o discurso da saúde sobre esse lugar, quando a gente lê é lá onde
é preciso ainda investir sobre qual a função, qual a dimensão, qual a
potência desse serviço… tem hora que aparece como um lugar para
arrumar emprego, arrumar trabalho, e ora aparece como mero entre-
tenimento e, em algumas vezes, já aparece isso que vocês apontam, mas
que, sobretudo, os usuários apontam, como um lugar para favorecer o
laço social, para favorecer uma outra forma de pertencer à cidade, de
pertencer a vida, de se relacionar com o seu sofrimento, de se relacio-
nar com sua família… Os familiares também trazem uma pérola. Tem
uma fala de um familiar que diz claramente do efeito dos Centros de
Convivência para as relações familiares:“o usuário frequentar o Centro
de Convivência altera o seu lugar dentro da família”... E esta sempre
foi uma das apostas e um dos cálculos da Saúde Mental na constituição
desses dispositivos.
Para concluir, uma outra coisa que acho importante nesse trabalho
de rede é que vocês sustentem o trabalho de rede entre os Centros de
Convivência e a ética. Isso que a gente foi conseguindo: contornar as
diferenças, reconhecer o jeito de cada um, reconhecer a singularidade
de cada serviço, mas convocar para uma atuação orientada pelos mesmos
princípios, porque não foi sempre assim; teve um momento em que

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 55


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
alguns Centros de Convivência se orientavam para uma certa direção
e outros começavam a caminhar noutro rumo e aos poucos esse dis-
curso, os princípios que orientam os serviços, eles são apropriados por
todos os Centros de Convivência e vocês realizam todos os dias esse
trabalho coletivo como um conjunto de Centros de Convivência. É daí
que vem a força de vocês! Então, não desacreditem disso, não recuem
disso, continuem e ensinem a rede a trabalhar cada vez mais, assim não
apenas a rede de saúde mental, mas a rede de saúde como um todo.
Teve um coisa que me chamou demais a atenção: foi que a fala
de alguns usuários coincidia… É… Em 2003 a gente fez uma oficina
com os Centros de Convivência retomando o trabalho, retomando
princípios, orientação. Foram várias oficinas que resultaram num belo
documento que merece ser publicado e que está lá na coordenação de
saúde mental e que eu acho que vocês têm que fazê-lo circular mais,
que é um discurso dos Centros de Convivência que a gente tem que
trazer a público para deixar de ser só lido, para tentar mostrar qual é o
pensamento que a gente também produz… Mas, naquele momento, me
lembro de a gente trabalhar muito com uma poesia do Chico Buarque
com a qual eu quero encerrar, porque fiquei feliz de encontrar com
essa ideia no discurso dos usuários, especialmente5.
Que não falte tinta, violão e artista na saúde para que a gente
possa cantar a canção da vida

Obrigada!

5 
Neste momento da conferência, Rosimeire fez leitura completa da Letra da música “Fantasia”, álbum
“Vida”, de Chico Buarque, 1980.

56 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
VIDA (EM) COMUM

Esdras Rodrigues dos Santos1

Caí das alturas da megalomania


Não mais teria a vida apontada por ideias de grandeza
Sem o delírio tecido:
“Então, meu Deus, é isto?”
“Uma vida comum?!”

Sim, vida comum!


E nos espaços comunais do Matraga e da sociedade
Salve a liberdade!

Sem manicômio e lobotomia!


Quero trabalho e renda!

Há também brilho no comum e cotidiano


Potente é ser humano
Ser em comunidade!

1
Usuário do Centro de Convivência Marcus Matraga e bacharel em Psicologia.

57
Seção 2

UM MERGULHO NO COTIDIANO:
OS VOOS NAS OFICINAS

59
MUNDO DOS SONHOS

Gladstone Luiz da Costa Freitas1

Máscaras de escravos
Rabiscos de um velho Picasso
Canções de antigos amigos que deixaram pra nós
Dó Re Mi Sol Lá Si faz
Um cachepô de flor para eu plantar

Boneco de massa, Escultura de sabão


Vem então, vem surgindo um carrinho,
Um grande leão.
Devorar, Costurar, faz colares de toda cor,
Para eu cantar

Deixa a tristeza pra lá


Jogue as mãos para o ar,
No Centro de Convivência
Eu quero ficar.

1
Usuário do Centro de Convivência Rosimeire Silva.

61
OFICINAS: A CONVIVÊNCIA QUE SE CONSTRÓI
A PARTIR DE UM FAZER JUNTO

Daniela Tonizza de Almeida1

“Mas a liberdade só é terapêutica se não significa deixar as


pessoas sós.
A liberdade é um fato coletivo.
É preciso estarmos juntos para sermos livres.”
Franco Rottelli

Cabeças raspadas, bocas desdentadas, corpos cobertos por aventais,


pés descalços, corpos nus jogados no chão. Abandono de vidas humanas
em meio a muros de concreto desgastados pelo tempo. Silêncio.
Essas memórias do hospício, que marcaram o início de minha
vida profissional, se contrastam radicalmente com a lembrança do meu
primeiro encontro com um Centro de Convivência. Era uma casa que
se destacava na rua. A fachada desenhada e colorida, o portão aberto que
convidava a entrar. Do lado de fora já se ouvia um grupo tocando um
samba da melhor qualidade. Em outra sala, era o barro que se moldava
sob mãos curiosas e olhares atentos. No meio do caminho, mulheres
costuravam histórias.
Para além da dicotomia fechado/aberto, exclusão/inserção, pude
testemunhar que ali, nos Centros de Convivência, esses territórios
impregnados de sentidos e afetos, as oficinas eram o eixo de mediação
da convivência, da produção de vida, encontros e relações, por permi-
tirem compartilhar experiências relacionadas ao fazer junto.
Partindo dessas memórias, proponho discutir neste texto o sentido
da oficina nos serviços de saúde mental, em especial nos Centros de
Convivência. Inicio com uma necessária contextualização histórica da
relação entre atividade e loucura, a fim de ressignificá-la no contexto
do cuidado em liberdade.
1
Terapeuta Ocupacional. Doutora em Psicologia pela UFMG. Gerente do Centro de Convivência Carlos
Prates/Prefeitura de Belo Horizonte.

62
Atividade humana: um direito e uma necessidade

A atividade é inerente à condição humana. Por meio de uma


atividade é possível conhecer o mundo, auferir-lhe sentido, desejar
e agir sobre ele, modificando-o e construindo, ao mesmo tempo,
uma estrutura subjetiva que permita reconhecer-se como ser singu-
lar. Nas atividades, são investidos saberes e afetos que nem sempre
são facilmente traduzíveis em palavras. Ontologicamente, a ativi-
dade antecede o desenvolvimento da linguagem e lhe dá sustentação
(LEONTIEV, 2004).
Por um lado, a atividade pressupõe uma tarefa orientada para um
fim que convida um sujeito a pensar e colocar o corpo em movimento.
Por outro, é momento de vida, experiência e encontro. No intervalo
entre o previsto e a surpresa dos acontecimentos, a atividade convoca
o corpo a inventar, criar, a fazer escolhas a partir daquilo que tem valor
(DURRIVE, 2013). Estimula, desta forma, a autonomia e a sociabili-
dade. Em outras palavras, vincula, desenvolve, emancipa.
A atividade humana também pode ser compreendida como
prática social e cultural, atravessada por normas e valores, disputas de
poder e desigualdades. Envolve hábitos, técnicas, instrumentos e mate-
riais historicamente construídos. Atividade produtiva ou reprodutiva,
de vida diária, de lazer, artística, política, científica, filosófica... Muitas
são as nomeações e significados socialmente compartilhados de tudo
aquilo que se pode fazer no cotidiano, mas o sentido é sempre singular
e construído na experiência vivida.
É consenso entre as nações que assinaram a Declaração Universal
de Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário, que
[...] o trabalho, o lazer, o estudo, a participação na vida
cultural que frui das artes e do progresso científico são
direitos atrelados à vida e à liberdade nas sociedades
democráticas, sem distinção de raça, cor, sexo, credo,
opinião política ou condição social. (ORGANIZAÇÃO
DAS NAÇÕES UNIDAS, n.p.)

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 63


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
Desta forma, o Estado reconhece a atividade como um direito
humano inalienável, do qual ninguém deveria estar excluído.

A atividade humana e o tratamento da loucura:


discursos marcados por contingências econômicas
e sociais

Do ponto de vista social, a atividade humana adquire novos con-


tornos e significados em determinados momentos históricos. Desde o
século XVII, com a ascensão da burguesia, o ócio e a improdutividade
tornaram-se condenáveis. Nesse período, a imposição da atividade de
trabalho servia para auxiliar na manutenção da ordem no interior de
grandes asilos onde se recolhiam os desadaptados, conforme demonstra
Foucault (1987). Com o surgimento da Psiquiatria e a patologização
da loucura, no século XVIII, o que era desvio social passou a ser con-
siderado desvio moral. No tratamento proposto por Pinel, o hospital
era central e o psiquiatra, a autoridade através da qual o louco deveria
ser submetido no intuito de restabelecer sua razão e controlar seus
excessos. Com caráter normatizador e disciplinador, o trabalho mecâ-
nico, alienado, não reconhecido e não pago era utilizado tanto para
reprodução institucional quanto para adestramento e manutenção do
silenciamento no interior das instituições asilares (GUERRA, 2004).
Essa lógica manicomial segue seu curso até o século XX, quando
passa a ser questionada por distintos movimentos de reforma psiquiá-
trica ao redor do mundo, sobretudo no período pós-Segunda Guerra.
Em um primeiro momento, o uso da atividade no trato da loucura se
revigora com uma roupagem artística. A arte se oferece como possibi-
lidade de expressão e acesso ao inconsciente, além de funcionar como
dispositivo de humanização do contexto hospitalar e de restauração de
sua função supostamente terapêutica, embora pouco se questionasse
sua lógica segregativa.
Em um segundo momento sobressaem as críticas à exclusão
e à violência impetradas no interior dessas instituições asilares. Esse
movimento dá origem aos primeiros serviços territoriais e comunitá-

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MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
rios, onde o trabalho passa a ser ressignificado como possibilidade de
resgate da subjetividade e da cidadania. Nessa perspectiva, a atividade
de trabalho ressurge fortalecida, não mais como entretenimento e
controle da ociosidade, mas como possibilidade efetiva de ampliação
da contratualidade na vida social.
O trabalho ganha nova centralidade com a reforma psiquiátrica
italiana, agora compreendido como um direito. Na perspectiva da
reabilitação psicossocial, a ênfase nas cooperativas de trabalho exercia
a tripla função de formação, tratamento e produção, favorecendo, ao
mesmo tempo, autonomia e proteção (SARACENO, 2001).
Mais que uma ruptura epistemológica, ocorre uma ruptura ética
e política que subsidia essas primeiras experiências de reforma psiquiá-
trica que inspiraram o movimento antimanicomial brasileiro. Em Belo
Horizonte, esse discurso do direito à cidade ganha novos contornos a
partir de seu enlace com a Psicanálise, garantindo o direito à singula-
ridade a partir do laço social. Segundo Guerra (2004), nesse contexto
as oficinas assumem caráter diferente nos Centros de Referência em
Saúde Mental (CERSAM) e Centros de Convivência. Nos primeiros,
buscava-se restaurar laços cindidos pela emergência da crise, enquanto
os Centros de Convivência se constituíam em espaços de produção
artística sem mediação psi, que avançavam em direção à cultura e ao
trabalho, permitindo deslocamentos do trabalho repetitivo e alienante
pela via da criatividade e da obra, sem a pretensão de funcionamento
para todos.
Apesar da valorização da oficina como estratégia de atenção psi-
cossocial nos primeiros anos de implementação da reforma psiquiátrica
no Brasil, o que se observa é que vem perdendo sua centralidade em
detrimento da medicalização e da primazia dos saberes e práticas psi
nos Centros de Atenção Psicossocial (FIORATI; SAEKI, 2012). As
oficinas, quando acontecem nos CAPS, centram-se mais no processo
do que no produto e raramente ultrapassam os limites institucionais
(CONSTANTINIDIS, 2020), ao passo que os Centros de Convivência
se mantêm como

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 65


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
[...] espaços que privilegiam a participação e a cons-
trução coletiva através de atividades relacionadas à
arte, educação, lazer e cultura, funcionando por meio de
oficinas com a participação de diversos setores da socie-
dade, de maneira distinta em cada território. (FERIGATO,
CARVALHO; TEIXEIRA, 2016, p. 94, grifos do autor)

“Nem tanto ao mar, nem tanto a terra”: o usuário


como guia

O breve resgate histórico dos discursos acerca da relação entre a


atividade humana e o tratamento da loucura convida a refletir até que
ponto esses discursos ainda persistem e insistem em se reproduzir nas
práticas dos serviços substitutivos como um saber a priori e uma oferta
pronta que dificulta escutar o sujeito e suas demandas.Ao mesmo tempo,
contribui também para ressignificar, revalorizar e revitalizar o sentido
da oficina nos serviços de saúde mental à medida que torna possível
desmistificar algumas de suas adjetivações nesse contexto.
O primeiro ponto a se desmistificar é sua função terapêutica.
O trabalho não pode ser jamais tomado como “panaceia para todos
os males” (BARROS, 2005). A inscrição na entrada de Auschwitz:
“ARBEIT MACHT FREI” (o trabalho liberta) explicita claramente o
quanto o trabalho pode assumir uma função política de controle social.
O trabalho só tem valor se for uma livre escolha, exercido a partir de
uma organização que favoreça a criatividade, legitime a pluralidade das
experiências e a autonomia no ritmo da produção.
Um dos propósitos da oficina em um serviço de saúde mental
é resgatar o sentido pré-capitalista do trabalho, ou seja, destituído da
alienação e reificação que lhe subtraíram o potencial inventivo, tor-
nando-o fonte de marginalização e sofrimento. Tenha características
artísticas ou artesanais, a oficina é o lugar não só onde se desenvolve
atividades como pintar, tecer, consertar, construir, mas onde o ritmo
e o tempo não obedecem à urgência da produção ou do consumo,
mas do desejo de quem produz. Desta forma, é lugar de produção de
objetos, mas também de modos de vida que respeitam as singularidades.

66 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
Há de se reconhecer o valor do trabalho para a produção de novas
identidades e ampliação da contratualidade social (SARACENO, 2001).
É preciso apostar que o usuário seja capaz de produções com valor de
troca. Nessa perspectiva, a oficina é lugar de exercício de cooperação
na produção e disponibilização dos produtos ao mercado, local onde
as trocas acontecem. Paradoxalmente, é também o lugar onde o objeto
produzido não é apenas mera mercadoria a ser comercializada, mas
encerra em si a marca de quem o produziu. Lugar onde o processo
de fazer e estar junto pode importar tanto quanto o que é produzido.
Se possibilitar a inserção no mercado de trabalho é desejável
porque garante a cidadania, esta não pode jamais ser a única aposta de
um serviço que tem as oficinas como eixo de sustentação, como é o
caso do Centro de Convivência. O problema da oferta única é que não
considera as necessidades e o sentido que a atividade tem para cada um.
É necessário desconstruir o imaginário de que atividade humana
se restringe ao trabalho e resgatar outras dimensões da vida cotidiana
que são o lazer, a política, o autocuidado, o estudo… É preciso se
desvencilhar da orientação pragmática de que tudo deve ter utilidade
e direcionar-se para um fim e reconhecer que o sentido da oficina
para muitos usuários se refere simplesmente ao prazer de estar junto,
fazendo uma atividade.
Há que se oferecer um cardápio diverso para que pessoas com
demandas igualmente diversas possam se servir da maneira que melhor
lhes convier. Ofertas que permitam a ocasião do acontecimento e que
favoreçam o entrelace entre a subjetividade e a cidadania. Nesse sentido,
algumas oficinas podem oferecer atividades de caráter mais artístico e
expressivo; outras, atividades mais estruturadas e produtivas; outras, de
lazer e autocuidado.
Nesse processo, o monitor distancia-se da conotação de terapeuta
ou professor. É alguém que se apresenta como um mediador da relação
do usuário com sua produção, ofertando um material, convidando à
experimentação, provocando o agir e, consequentemente, o posicio-
nar-se no mundo a fim de viver com saúde. Cabe ao monitor apostar
no laço que se faz na contingência do encontro, despindo-se de seu

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 67


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
saber suposto para que o protagonismo do usuário possa prevalecer
nessa relação.

Produção de si e transformação do mundo

“Cada sujeito, ao construir um objeto, pintar uma tela, cantar uma


música, faz algo mais que expor a si mesmo e ao próprio sofrimento.
Ele realiza um fato de cultura.” (RIGHETTI, 1970 apud LIMA, 2006,
p. 356). Independentemente do valor material ou simbólico que deter-
minadas produções artísticas possam adquirir, os mais diversos níveis de
conexões – com o grupo, com uma coletividade local, com um outro
que se constitui interlocutor – são igualmente relevantes.
[...] se, por um lado, nos interessamos por pensar a relação
da recepção com a obra, os sentidos que são depositados
nelas, por outro, voltamos nosso olhar para o processo
de criação, para tomá-lo a partir de seu efeito na vida e
na autoprodução de sujeitos, mapeando os sentidos que
a criação tem para aquele que cria. [...] Enfim, pensar
as relações que se podem estabelecer entre a criação e a
produção de uma certa saúde, a invenção de uma forma
de enfrentamento da doença, da solidão, do isolamento
(LIMA, 2006, p. 326).

A articulação das práticas de saúde com o campo da arte e da


cultura possibilita exercícios estéticos e potencializa novas sensibilidades
e modos de agir e existir até então impensáveis por renovarem relações
e afetos que ressoam nas experiências socioculturais da vida coletiva
(LIMA et al, 2015).
De forma diametralmente oposta à realidade da anulação da sub-
jetividade e do laço social no contexto do hospício, no espaço-tempo
do Centro de Convivência, o entrelaçamento de uma pluralidade de
atividades humanas se constitui, nos termos de Rancière (2005, p. 63),
em “uma fábrica do sensível”. Lugar de produção de um mundo comum
em que as experiências individuais de fazer, ser, ver e dizer podem ser
partilhadas e reconhecidas. Há aí uma dimensão em que política e esté-
tica confluem, produzindo deslocamentos e reordenando a vida social.

68 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
É dessa forma que o Centro de Convivência, como lugar de clínica
ampliada e articulada a outros pontos da Rede de Atenção Psicossocial,
por vezes, vai se configurar como lugar de (com)viver, por vezes, lugar
de fazer atividades; por vezes, como um lugar de acolhimento que o
usuário procura para não “dar crise” em casa. Lugar de telefonar para a
família, lugar de tomar um café, de ganhar um “vale”, uma confirmação
de que sua presença tem valor. Para alguns, será um lugar de passagem
breve, enquanto outros permanecerão vinculados ali por longos anos.
Para uns, será um caminho para a inserção no estudo, no mercado
cultural ou de trabalho, para reconstruir laços familiares ou constituir
novos vínculos de amor ou amizade. Para outros, um lugar onde dá
tratamento ao seu sofrimento.
Romper com a tutela, a cronicidade, a infantilização e o entre-
tenimento não significa romper com a promoção de atividades nos
serviços de saúde mental, mas mirar sempre o lado de fora, a vida no
território, a porta de saída. Das atividades realizadas nas oficinas podem
surgir grupos culturais e associações de trabalho; podem derivar pas-
seios, exposições, bazares. Através de parcerias para geração de trabalho
e renda, parcerias com outros serviços de saúde, universidades, espaços
culturais, centros comunitários, esportivos, escolas se constrói possibi-
lidades de uma ocupação cada vez mais ampliada do espaço público.
As discussões sobre a luta antimanicomial, em parceria com movi-
mentos sociais, oferecem as bases para, nas oficinas, se compor sambas,
se fabricar fantasias e adereços para o Desfile do 18 de maio. Desse
modo, a oficina se constitui como o lugar onde o convívio, mediado
pela experimentação, possibilita despertar desejos, descobrir potenciais,
desenvolver autonomia e encontrar saídas singulares, mas também é o
lugar de tecer laços e promover transformações sociais.
A experiência das oficinas nos Centros de Convivência ensina
que são necessários muitos fios para compor uma rede de cuidado
em liberdade. Não basta conter a crise; é necessário restituir a digni-
dade, resgatar a subjetividade anulada pelos anos de institucionalização,
favorecer o convívio comunitário através de redes de solidariedade e
apoio. É nessa perspectiva que os Centros de Convivência reafirmam

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 69


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
cotidianamente o compromisso político com a produção de uma vida
em comum. Afinal, só tem sentido ser livre “se não significa deixar as
pessoas sós”.

Referências

BARROS,Vanessa Andrade. A função política do trabalho e a ordem


social.Veredas do Direito, v. 2, n.4, p.51-56, julho-dezembro, 2005. Dis-
ponível em http://revista.domhelder.edu.br/index.php/veredas/issue/
view/11. Acesso em 12 set. 2021.
CONSTANTINIDIS, Terezinha Cid; CID, Maria Fernanda Barboza;
SANTANA, Lenise Moraes; RENÓ, Suzana Rodrigues. Concepções
de Profissionais de Saúde Mental acerca de Atividades Terapêuti-
cas em CAPS. Trends Psychol., Ribeirão Preto, vol. 26, nº 2, p. 911-926,
junho/2018. Disponível em https://doi.org/10.9788/TP2018.2-14Pt.
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vital. Trabalho, educação e saúde, v. 9, nº suppl 1, p. 47-67, 2011. Disponível
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set. 2021.
FERIGATO, Sabrina Helena; CARVALHO, Sérgio Resende;
TEIXEIRA, Ricardo Rodrigues. Os Centros de Convivên-
cia: dispositivos híbridos para a produção de redes que extra-
polam as fronteiras sanitárias. Cadernos Brasileiros de Saúde
Mental, Florianópolis, v. 8, n. 20, p. 80-103, 2016. Disponível
em http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S1984-21472016000300006&lng=pt&nrm=iso. Acesso em 07
set. 2021.
FIORATI, Regina Célia; SAEKI, Toyoko. As atividades terapêuticas
em dois serviços extra-hospitalares de saúde mental: A inserção
das ações psicossociais. Cadernos de Terapia Ocupacional UFSCar, v. 20, n
2, p. 207-215, São Carlos, 2012. Disponível em https://doi.org/10.4322/
cto.2012.022 Acesso em 12 set. 2021

70 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. São
Paulo: Perspectiva, 1995.
GUERRA, Andreia Maris Campos. Oficinas em saúde mental: per-
curso de uma história, fundamentos de uma prática. In: COSTA, Clarice;
FIGUEIREDO, Ana Cristina (org.) Oficinas terapêuticas em Saúde
Mental: sujeito, produção e cidadania. Rio de Janeiro: Contra-capa,
2004. p.23-58.
LEONTIEV, Alexis. O desenvolvimento do Psiquismo. 2. ed. São
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LIMA, Elizabeth Maria Freire de Araújo. Por uma Arte menor: res-
sonância entre arte, clínica e loucura na contemporaneidade. Interface:
comunicação, saúde, educação. Botucatu, v. 10, n. 20, Dez. 2006, p. 317-329.
Disponível em https://doi. org/10.1590/S1414-32832006000200004.
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LIMA, Elizabeth Araújo et al. Interface arte, saúde e cultura: um
campo transversal de saberes e práticas. Interface: Comunicação, Saúde,
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set. de 2021.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal
de Direitos Humanos. Adotada e proclamada pela Assembleia Geral das
Nações Unidas (resolução 217 A III) em 10 de dezembro 1948. Disponível
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manos. Acesso em 23/09/2021.
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São
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Psicossocial à cidadania possível. 2. ed. Rio de Janeiro/Belo Horizonte: Te
Corá, 2001.

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 71


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
ATRAVESSANDO O MURO DE DENTRO

Maíra Paiva1

“O muro do mundo não é mudo”


Frederico Eymard2

Para começar a escrever este texto – um relato da minha expe-


riência como artista nos Centros de Convivência –, tive que trazer à
tona algumas reminiscências da minha trajetória e do meu encontro
com a saúde mental.
No primeiro convite à escrita, tive grande dificuldade de entrar
em contato com essas reminiscências de histórias, muitas vividas sob um
período inquietante, dentro de um hospital psiquiátrico. Ali, naquele
lugar, pude me aproximar mais das pessoas em sofrimento mental e
começar a construir meus conceitos acerca da loucura.
Não foi uma tarefa fácil a de romper meus próprios muros para
tentar me conectar a um espaço tão cercado. Eram outros muros que
estavam ali. Altos. Disfarçados de proteção. Muros que cobriam as pes-
soas, silenciando cotidianamente os seus desejos. Muros que emudeciam
existências. Os muros, que para uns servem de abrigo para acolher
os “loucos”, para mim simbolizam um território frio, cimentado em
hostilidade e separação.
Além dos muros, minha lembrança maior, também me recordei
das chaves. Eram muitas, para muitas portas. Sempre lamentei, depois
de tempos, ver aquelas tantas portas e tantas chaves servindo mais para
trancar os pacientes do que simbolizando possíveis passagens para uma
saída. Eu carregava muitas chaves.
1
Artista plástica, formada pela Escola Guignard (2005). Pós-graduada em Arteterapia pela Integrarte
(2008). Atua como monitora de oficinas de Letras, Mosaico, Pintura e Desenho nos Centros de Convi-
vência Arthur Bispo e Oeste SUS-BH/MG desde 2011. Investiga o desenho e a escrita como grafia em
seu trabalho autoral.
2
Jornalista, escritor, poeta, artista e frequentador do Centro de Convivência Arthur Bispo do Rosário.

72
Minha maior dificuldade nessa época foi desenvolver uma prática
de trabalho arteterapêutico com pacientes de permanência tão flutuante.
As oficinas eram realizadas três vezes ao dia, em alas hospitalares dife-
rentes, com pacientes diagnosticados com vários sofrimentos mentais.
Além dessa rotatividade grande de pessoas internadas, o que
impedia estabelecer algum laço mais expressivo, era inviável produzir
qualquer projeto terapêutico em arte, de natureza mais subjetiva. Eu
me via sozinha nesse exercício do trabalho e sem a perspectiva de quase
nenhum compartilhamento com outros profissionais. O muro não me
possibilitou construir redes.
Desse “muro de dentro” só posso dizer sobre o choque. A com-
paração. A sensação que foi estar do lado de dentro e hoje do lado de
fora: “estar murada” era também estar assinada, só que pelos outros.
Cercada, ali, não é você mesma que assina seu próprio nome. Seu nome
se perde, como o corpo, contornado por tantos outros, confundido entre
achar-se e perder-se em um espaço que não se reconhece.

Caso V: o andarilho desenha seu nome3


Assim vou caminhando
Por esta vida
Assim eu vou andando
Por esta imensa avenida
Vivendo não sei bem por quê
Sempre numa grande expectativa
E avenida em russo quer dizer perspectiva
Jorge Mautner

Cheguei ao Centro de Convivência em abril de 2011. Desde


então, oriento as oficinas de desenho, pintura, mosaico e letras. Nesses
onze anos, muitos usuários da rede de saúde mental passaram por essas
oficinas, trazendo suas histórias, inscrevendo seus nomes e, como muitos
3
Caso apresentado na supervisão clínica da Regional Oeste, em agosto de 2019. Na ocasião, o usuário
Valdecy Lopes Valadares (in memoriam), era frequentador assíduo da oficina de desenho e pintura no
Centro de Convivência Oeste.
Faleceu em julho de 2021, aos 47 anos.

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 73


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
andarilhos, chegaram pra realizar sua “viagem de cada dia”, expondo
em suas produções a importância da arte e “do fazer” artístico, como
uma resposta para se atravessar uma estrada.
Em todo esse caminho percorrido até agora, ao lado de outros
profissionais das áreas de Música, Artesanato,Teatro, Psicologia,Terapia
Ocupacional, dentre tantas outras, pude perceber a alegria de “estar
junto” no trabalho da liberdade. Do se fazer livre. Do ofício de ali-
mentar, diariamente, a ideia de derrubar os muros para emancipação
e fortalecer a autonomia.
Na dimensão do cuidado, sinto a diferença, marcada pela clínica
ampliada e o entendimento da arte como lugar de soluções possíveis
para uma construção de vida e não só como uma finalidade terapêutica.
Nesse contexto, de rever minhas reflexões acerca da loucura e seu tra-
tamento, penso no Centro de Convivência como espaço de encontro,
fortificado pela arte e seus usuários artistas, assim como o papel dos
monitores para que essa relação aconteça.
Meu encontro com V surgiu em 2017.Veio trazido pelo irmão,
A. Chegou cabisbaixo, tímido, quase não conseguia dizer seu nome
ou qualquer outra palavra. Ficava à sombra desse irmão, sem pre-
sença, acompanhado de um silêncio ensurdecedor. Trazia em seus
pés os chinelos gastos, carregados de uma andança empoeirada pelo
tempo e pelo cansaço. Soube que fugiu de casa e ficou errante pela
cidade, desaparecido de si mesmo, sem traçar rumo. “Eu andava muito.
Dormia nos lotes. Uma vez, fui direto, uma avenida que não acabava
mais”, me disse V. Depois de um mês, A encontrou-o e o levou de
volta pra casa.
Chegou ao Centro de Convivência para a oficina de desenho e
pintura, às terças-feiras à tarde. Com vontade de desenhar, desenhava
à mão livre, temas com animais, natureza e pessoas. Também buscava
referências em imagens de livros de arte, na tentativa de copiar as formas
e as cenas. Não demonstrava dificuldade para executar seus trabalhos,
pelo contrário, qualquer proposta feita por mim acolhia com a tran-
quilidade e a vontade de viajar (agora com os passos das mãos).

74 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
Perguntei a V se ele queria pintar uma tela. Disse que sim com
a cabeça. Foi então que percebi sua facilidade em lidar com as tintas,
manejar bem os pincéis e construir, mesmo que ainda no registro das
imagens dos livros, suas próprias representações. V pintou alguns qua-
dros.Telas grandes, com cores e contornos de linhas pretas. Na maioria
delas sempre representou figuras humanas.
Certa ocasião, inscrevi alguns usuários para o Edital da Bienal
Naif, dentre eles V. Mas, para efetivar a participação desses usuários,
era necessário ter uma documentação: CPF, RG e comprovante de
residência. Descobrimos que V não tinha nenhum desses documentos,
ou seja: era mesmo um sujeito sem o registro de um nome. Eu e a
equipe, então, iniciamos o trabalho dessa busca para a documentação
de V. Conseguimos com seu irmão uma proposta de acompanhamento
para ir às instituições, na ideia dessa assistência. Foram alguns dias de
trabalho para construir uma identidade para V. Ele se empenhou.
Mostrou-se cada vez mais envolvido nessa missão de se fazer existir.
Conseguimos, depois de alguns dias, os documentos dele. Por fim, o
inscrevemos no Edital.
Com o tempo, sua assinatura nos quadros e desenhos começou
a aparecer. Seu nome cresceu. Nesse percurso, pouco sabendo de sua
história de vida, fui percebendo a criação de uma identidade por essa
vontade de assinar seu nome.VALDECY.VALDECYR.VALDECI. Às
vezes com “Y”, às vezes com “I” ou “R”. E nessas assinaturas, grandes
e quase escritas em cima das imagens, V foi se comunicando cada vez
mais. Estávamos aprendendo a chamar seu nome, ensinado por ele, gra-
dativamente. E seu corpo já não era mais uma tela em branco. Já escrevia
histórias, aproximava-se das cores, conversava com a paisagem ao redor.
Seu corpo já não era mais mudo. Deu salto do muro para o mundo.
Seu nome caminhou pelas ruas de Belo Horizonte, na itinerân-
cia aflita e delirante da cidade, até encontrar a forma que coubesse na
tela, ou no papel. E, quase como um carimbo, o nome de V marcou
agora o branco da página, com a grafia de uma outra espécie. Firme.
Viva. Confiante.

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 75


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
Esse corpo, que agora assinava seu nome, encontrou sua casa na
arte, nas tintas e na sua própria apresentação. Estava ancorado. Acolhido.
Aprendeu a morar no gesto, no movimento. Construiu abrigo na
potência do encontro. Me convidou a caminhar junto na sua avenida
reinventada. Me convidou à perspectiva.
No fim do ano de 2018, fui convidada a fazer uma exposição dos
meus trabalhos junto a outro artista, Eduardo Resende. Convidamos mais
três artistas frequentadores dos Centros de Convivência, dentre eles V.
Foi então que algumas pinturas de V foram parar em uma expo-
sição numa famosa galeria de arte em BH. Inscrito como “Valdecy
– artista que refaz a História da Arte e conversa com outros artistas”,
seus trabalhos chamaram a atenção de críticos de arte.
Na tentativa de levar V ao dia de abertura, em um fim de semana
também nos empenhamos, como equipe, para essa empreitada. Marcamos
um local de encontro, porém V e A não apareceram. Chegaram antes
do horário combinado, e devido a uma forte chuva foram embora.
V ficou visivelmente frustrado quando lhe disse que o aguardei
por quase uma hora no local combinado. Ficou chateado. Disse que
gostaria de ter ido. Eu disse que haveriam outras exposições e o levei,
junto a outros usuários, numa visita à galeria durante o horário de
oficina. Creio que ele se sentiu contemplado e vibrou, com um leve
sorriso, ao ver seus quadros expostos.
No desfile do 18 de Maio desse ano, uma situação curiosa ocorreu
no trajeto da manifestação. Em certo trecho, onde eu estava acompa-
nhada de V, parei para cumprimentar uma amiga do consultório de
rua. No instante em que iniciamos a conversa, o apresentei pra ela.
Disse seu nome e completei dizendo que ele era um artista do Centro
de Convivência.
V ficou entusiasmado. Vi em seus olhos uma alegria. Estendeu
sua mão para cumprimentá-la. Estendeu seu corpo, sua voz. Estava se
apresentando. Esse era um momento marcante para V se apresentar.
Ser um, ser único, não mais alguém atrás ou à sombra de alguém. V
estava definitivamente se reconhecendo, com seu nome e seu corpo

76 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
no mundo. Já não estava mais só, dentro de suas estradas. Conseguia se
ver parte da multidão, se fazendo presente com nome próprio.
Diante dessas experiências, do convívio e do meu cuidado com
V, pude ir além dos muros. Baseando-me nesse enlaçamento com o
sujeito, penso que a arte é ferramenta fundamental para o tratamento
em saúde mental, possibilitando, inclusive, uma produção para além dos
Centros de Convivência.
Além de potencializar a expressão, a inserção social e a circula-
ção, a produção artística se orienta não só no pensamento da reforma
psiquiátrica e antimanicomial, mas permite também ao cidadão em
sofrimento mental criar outros laços e ocupar-se no contexto cultural
e artístico da cidade.
Penso que, na minha função de artista e na direção de um cuidado,
as abordagens não existem sob o viés da conduta arteterapêutica, mas
sim dentro de uma percepção estética, poética e de completa liberdade
para a loucura se reinventar.

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 77


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
UM MERGULHO NO BISPO

Stefano Fontana1

Lembro-me daquela tarde de domingo, animado, esperando,


com a respiração suspensa. Segunda-feira de manhã haveria a Oficina
de Poesia no Centro de Convivência Arthur Bispo do Rosário, da
qual participava regularmente nas minhas viagens a BH, viagens que
começaram como uma pesquisa antropológica “simples” e logo se
transformaram em imersões poéticas no meu corpo, apneias fascinantes
através do corpo dos outros poetas.
Quase dois anos se passaram desde aquele momento, e talvez,
certamente, é importante lembrar.
As memórias são como sonhos; elas abrem possibilidades e iluminam
os caminhos.As memórias são uma magia que cria pontes emocionantes
com o passado e desenha linhas de luz em direção ao mar do verdadeiro
ser. E enquanto escrevo fico excitado: minha pele é cruzada por um leve
sopro da cabeça aos pés. Finalmente me encontro de cabeça para baixo
como naquele querido tempo, perfeitamente à vontade, pronto para
mergulhar; o ar volta a ser saboroso, como quando ao anoitecer saía do
Centro de Convivência Arthur Bispo do Rosário com a vida espalhada
em todo o meu corpo, numa transformação em que cada pedacinho do
meu mosaico interior era claramente visível e finalmente importante.
Muitas vezes, nestes anos, comecei a escrever poemas sozinho,
no meio da natureza, em busca de alguma conexão cósmica, e nunca
entendi porque sentia que algo estava faltando: o poeta estava cansado,
incompleto, e muitas vezes minha loucura ficava escondida em cantos
da minha caverna, impossível de encontrar, obscura e assustadora. Era
como se a água da minha nascente não encontrasse a maneira de jorrar
das milhares de passagens disponíveis para saciar minha sede.
1
Stefano Fontana é um livre artista amador, ativista e doutorando em antropologia cultural e social pela
UNIMIB (Itália) e UFRJ (Brasil) com uma pesquisa sobre arte e cidadania no Centro de Convivên-
cia Arthur Bispo do Rosário.

78
Na segunda-feira, às 8:30, estive na porta do Centro de Convi-
vência e lembro como Maíra, a ”formiga atômica”, apareceu no topo
da subida, perto do Centro de Convivência. Meu coração disparou,
sabendo que a “oficina de poesia” logo começaria e que eu e meus
colegas poetas iríamos escrever, declamar e ouvir nossos poemas em
uma mandala convivial.
Continuo a lembrar, minha pele agora canta em voz alta.
Estou tremendo.
Lembro-me do silêncio ensurdecedor em que nós, poetas, com-
pusemos nossos escritos. Naquele momento, naquele espaço, a respira-
ção da cidade estava suspensa; um silêncio que não era o de “prisão”,
mas uma catarse evocativa de uma rasa vedica2 , um lugar de sugestão
e ressonância coletiva.
Uma ação aparentemente de solitária imersão, onde prende-se a
respiração para descer, lá longe, envoltos em um misto de embriaguez e
medo, mas com a certeza de que certamente ninguém teria se afogado.
Sabíamos muito bem três coisas: que os poetas se apoiam uns nos
outros; que os poetas recolhem suas pedras preciosas para oferecê-las e
que essas pedras se tornariam colares poderosos no pescoço de outros
poetas. Colocamos os lápis no papel e começamos a declamar: bocas,
olhos, mãos, palavras.
Fecho minhas pálpebras e tudo está presente novamente.
Andorinha lê devagar, Grillo corre com as palavras, Billy sussurra,
Elon faz longas pausas, Calango do Serro acaricia as palavras e eu... eu
estou aqui, e abro os olhos.
Agora sim! Lembro-me bem o que permitia que a água da minha
nascente fluísse livremente quando estava no Centro da Convivência,
e como os jatos davam forma a uma fonte abundante e restauradora.
Agora minha pele fica em silêncio, um leve frio passa pelo meu
corpo. A memória está se transformando em saudade, em um sonho
lúcido do que seremos.
2
Rasa é um termo da tradição védica que se refere às artes performativas (incluindo a poesia) e significa
“sabor”, “gosto” que é evocado no corpo pela prática artística.

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 79


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
A CONVIVÊNCIA AO PÉ DA LETRA

Sandro Boaventura1

“EU PRECISO DESTAS PALAVRAS ESCRITA”


Arthur Bispo do Rosário

Escrita, fala, escuta e leitura são práticas postas em roda tendo a


“convivência” por princípio nas chamadas oficinas de Letras, as quais
acontecem nos Centros de Convivência Carlos Prates e Oeste, em
que trabalho. Nelas trabalhamos com produção e recepção de textos
diversos, em destaque os literários. Na produção de textos, falamos e
escrevemos; na recepção deles, ouvimo-nos uns aos outros e fazemos
leituras, compartilhando escritas feitas em oficina ou das literaturas. Para
pensar aqui a prática das oficinas de Letras, creio que a noção de “letra”,
em Lacan, pode nos dar pistas para acompanharmos, em seguida, relato
de experiência sobre elas.

1 Ao “pé da letra”, cartas/letras que voam: uma


orientação pelas pistas de Lacan sobre “A carta roubada”
“Os escritos carregam ao vento as promissórias em branco
de uma cavalgada louca.
E se eles não fossem folhas volantes, não haveria letras
roubadas2, cartas que voaram.”
Jacques Lacan

1
Sujeito do p de palavra, poesia, performance e psicanálise. Monitor das oficinas de Letras, Teatro e
Performance nos Centros de Convivência Carlos Prates e Oeste da Rede SUS-BH/MG. Licenciado e
bacharel em Língua Portuguesa e suas literaturas pela Faculdade de Letras da UFMG. Ator formado pelo
Teatro Universitário da UFMG. Psicanalista.
2
Em nota da tradutora da edição em Português é explicado que o original em francês desta epígrafe é rico
em polissemias. Destaco para este texto, sobretudo, a observação de que lettres volées, do original, podem
ser tanto “cartas roubadas”, ou “voadas”, quanto as letras que voaram.

80
O que se pode, então, ter em vista da “letra” em Lacan para as nossas
oficinas de Letras? Mais, ainda: da noção de “letra” podemos extrair uma
orientação para outras oficinas dos nossos centros? Para responder a estas
questões recortamos de Lacan um pouco do seu comentário sobre o
misterioso conto “A carta roubada”, do escritor norte-americano Edgar
Allan Poe, seguindo as pistas deixadas por Lacan, tendo em vista também
a leitura dele feita pelo psicanalista Ram Mandil no primeiro capítulo
do livro Efeitos da letra: Lacan leitor de Joyce. Pelas pistas, vamos ver como
nos rastros de “A carta roubada” se revela o deslizamento de a letter,
uma carta-letra, para a litter, um lixo, deslizamento que se deu a partir
de trocadilho que fizeram em torno do escritor irlandês James Joyce.
No enredo do conto de Poe, os destinos de uma carta furtada, desviada
de uma rainha se dão, não pelo seu conteúdo – o qual fica, inclusive,
desconhecido para quem lê o conto – mas por sua materialidade, pelo
seu trânsito como objeto manuseável. Extraindo daí o destaque dado ao
“objeto manuseável”, o associaremos com apontamentos feitos por duas
psicanalistas sobre a relevância da “produção material”, de objetos com
um endereçamento, na prática das oficinas. Em seguida, acompanhare-
mos a experiência do cotidiano delas, em que esses objetos transitam
pelo Centro de Convivência nas mãos de um usuário e voam avulsos da
bagagem de uma outra até se tornarem o livro dela. Por fim, relatam-se
propostas e vivências ao “pé da letra” nas oficinas.
A partir da noção de “letra” em Lacan podemos encontrar uma
orientação para a prática das oficinas? No percurso de seu ensino, a noção
de “letra” é relevante desde “O seminário sobre ‘A carta roubada’”, de
1957, passando pelo artigo “Lituraterra”, de 1971. No primeiro, Lacan
diz:“A letter, a litter, uma carta, uma letra, um lixo. Fizeram-se trocadilhos,
no cenáculo de Joyce, com a homofonia dessas duas palavras em inglês”
(LACAN,1998, p.28). E retoma a questão no segundo, tomando em
seu artigo como ponto de partida o “equívoco com que Joyce (James
Joyce, digo) desliza de a letter para a litter, de carta letra/carta (traduzo)
para lixo” (LACAN, 2003, p.15). O lixo, como veremos em breve, a
ser tomado aqui no sentido daquilo que se destaca, do que se pode
manusear, sobre o que encontraremos ressonâncias nos relatos de casos
e das práticas nas oficinas presentes aqui na segunda parte deste texto.

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 81


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
Para deslizar da carta/letra para lançá-la ao lixo, como em Joyce,
é preciso partir do comentário de Lacan sobre o conto “A carta rou-
bada”, de Poe. Neste, narra-se a história dos destinos de uma carta
comprometedora roubada da Rainha. A polícia parisiense é chamada,
em segredo, para recuperá-la, porém, mesmo com exaustivas buscas feitas
detalhadamente baseadas em descrição prévia da carta, não consegue
encontrá-la. O Comissário de Polícia de Paris procura, então, seu amigo
Dupin. Este consegue encontrá-la tendo por raciocínio que, diferente
da minuciosa busca da polícia, a carta estaria em lugar explícito e sua
forma teria sido modificada daquela que havia sido descrita à polícia.
No conto, ao revelar como desvendou o mistério da carta roubada,
Dupin a descreve no novo formato ao encontrá-la:“bastante manchada
e amassada. Estava quase rasgada em duas, pelo meio” (POE, 2017, p.
92). Em seguida, diz:“Decerto era, segundo todas as aparências, radical-
mente diferente daquela de que o comissário nos dera tão minuciosa
descrição” (POE, 2017, p. 93) E, por fim, desvenda: “Tornava-se claro
para mim que a carta tinha sido revirada como uma luva, de dentro
para fora, reendereçada e relacrada” (POE, 2017, p. 94)
No conto de Poe, nada sabemos sobre o conteúdo comprome-
tedor da carta, letter, mas sobre seu trânsito e destino marcado pela sua
materialidade, um pedaço de papel escrito, como um lixo que se pode
manusear. Ao comentar o possível momento em que os policiais pari-
sienses tenham revirado a carta roubada ao apanhá-la nas mãos durante
sua busca, sem, porém, encontrá-la, detidos na descrição prévia que
tinham dela, Lacan diz: “A espécie de dejeto que os policiais manipulam
nesse momento tampouco lhes revela sua outra natureza por estar
apenas meio rasgada” (LACAN, 1998, p. 28. grifo meu).
Segundo Mandil (2003, p. 27),“a crítica de Lacan incide sobre as
tentativas de igualar os destinos de uma carta ao cumprimento de sua
função mensageira” e que a orientação de Dupin para encontrá-la se
dá ao considerar que uma carta possui também uma “materialidade, e
sendo portanto manuseável, passível de ser esquecida, rasgada, guardada,
adulterada ou tratada como detrito” (MANDIL, 2003, p. 27). Assim, há
uma dupla dimensão em uma carta/letra: por um lado, sua função de

82 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
transmissão de uma mensagem e, por outro, sua materialidade, como a
litter, podendo ser tomada como “pedaço de papel rabiscado, timbrado,
selado ou virado pelo avesso”. (MANDIL, 2003, p. 27)
É importante destacar que os policiais do conto não encontram a
carta, uma vez que estavam fixados em um saber prévio sobre ela, em
sua descrição detalhada. Isso nos aponta para a questão sobre este saber
na passagem entre as duas dimensões da carta/letra apontadas acima.
Segundo Ram, a passagem da função mensageira da carta/letra para
algo manuseável “não se faz, para Lacan, sem uma descontinuidade no
saber articulado. É isso, em última análise, que a dimensão ‘litoral’ da
letra leva em consideração” (MANDIL, 2003, p.49). “Borda do furo
no saber, não é isso que ela desenha?” (LACAN, 2003, p.18) Ao “pé
da letra” (LACAN, 2003, p. 18) desenha-se, borda-se tal como com
linha e agulha em torno do furo. Nas linhas de um pedaço de papel,
risca-se, rabisca-se, desenha-se uma borda, um litoral.3
Essa dimensão da carta/letra como objeto destacável remete-nos
ao que é ressaltado no funcionamento das oficinas em saúde mental pela
psicanalista Andréa Maris Campos Guerra, a qual desenvolveu extensa
pesquisa sobre as oficinas na rede de Saúde Mental em Belo Horizonte.
No trecho a seguir, o funcionamento do Centro de Convivência é
referenciado pela materialidade dos seus produtos:
A oficina vincula-se mais estreitamente à questão do
estatuto do objeto do que ao da própria fala, posto que o
seu funcionamento, seja qual for a tendência da oficina
(trabalho, arte, convivência, subjetividade), sempre se
referencia um produto, uma produção material. De acordo
com esse aspecto, a oficina se diferencia da clínica strictu
sensu, de um lado, mas também das atividades coletivas, de
cunho eminentemente sociopolítico, de outro. Inaugura,
destarte, um campo inédito que parece se sustentar em
uma interseção. (GUERRA, 2004, p. 49 - grifos meus)

Segundo a psicanalista Elisa Alvarenga, a oficina criativa dispõe-


-se para que aqueles que dela participam possam “acrescentar objetos
3
Um pouco mais sobre a metáfora do litoral em Lacan é possível encontrar no texto “A convivência ao
litoral”, de minha autoria, na primeira seção da segunda parte deste livro.

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 83


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
ao mundo” (ALVARENGA, 1999, p. 121). No entanto, na medida
em que o objeto se torna separável, é relevante dispor-se, sobretudo,
como destinatário a quem os sujeitos em sofrimento mental possam
endereçar esses objetos que acrescentam ao mundo. Se aquele que
exerce a função de destinatário da atividade criativa desses sujeitos
“recebe ativamente esse ‘texto’ que lhe é endereçado, ele fará falar o
sujeito, não necessariamente sobre o que foi criado, mas colocando algo
em movimento.” (ALVARENGA, 1999, p. 121 – grifo meu). Pode haver,
assim, efeitos apaziguadores para esses sujeitos:
Mas esse efeito apaziguador só se dá porque o texto ou
objeto produzido tem um endereço, ou seja: a atividade
criativa acontece sobre um fundo de linguagem, onde a
fala está potencialmente presente. Mesmo que o sujeito
nada tenha a dizer sobre o objeto produzido, o fato de
que ele é endereçado coloca-o em pauta numa relação
onde o que é criado pode ser lido. (...) Sobre um objeto,
ponto de enigma, pode-se construir um novo edifício
(ALVARENGA, 1999, p. 120 - grifos meus).

Partiremos agora para as ressonâncias no relato de experiência tendo


em vista uma orientação pela “letra” em Lacan e dos apontamentos de
Guerra e Alvarenga sobre os objetos destacáveis a serem endereçados e pos-
tos em movimento, em trânsito, em voo, como da carta/letra/lixo roubada.

2 O voo das letras: a experiência do cotidiano nas


oficinas
“O que é bom para o lixo é bom para a poesia.”
Manoel de Barros

“Isso é tudo lixo”. Ouvi, com todas as letras, do usuário A do


Centro de Convivência Carlos Prates (CCCP). A, ex-interno de
manicômios, morador de uma residência terapêutica da nossa rede,
fazia um uso muito próprio do CCCP. Ele ficava à nossa porta na
rua e transitava pelo serviço em curtas visitas. Por vezes, adentrava o
espaço da oficina e soltava uma palavra sua, enigmática: “É clomoa-

84 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
gem…”. Desta não me esqueço. E eu gostava de ouvi-lo discursar
enigmas de forma enfática e brevíssima, seguidos de “entendeu?”.
A que eu respondia apenas repetindo sonoramente seu neologismo.
Depois anotava-o no quadro branco ou no papel. Mas, antes dessas
visitas na oficina, eu tinha muitas dificuldades com A. O usuário cos-
tumava passar pelo CCCP, pegar algum objeto da oficina e o deslocar
para algum lugar escondido. Quando A entrava em passos rápidos
pelos nossos espaços abertos era preciso ficar atento aos trabalhos em
produção, ou eles poderiam desaparecer em segundos, furtados pelas
mãos de A para destinos desconhecidos. A biblioteca do serviço ficava
em espaço aberto, e depois de eu organizar os livros por categorias,
gêneros e títulos, encadeando-os alfabeticamente, A reposicionava-os
ao seu bel prazer nas estantes. Um dia, num rompante, o repreendi:
“você não pode fazer isso com as obras dos colegas!”. Foi então que
ele, altivo, exclamou: “Isso é tudo lixo”!
Silenciei-me. A, furtivo, desapareceu. Imediatamente, a fala de A
remeteu-me ao deslizamento de a letter para a litter e só pude assentir
com ele: “sim, é lixo”, e como tal é objeto a se manusear, a se deslocar.
A não pode se conformar ao meu saber pré-inscrito sobre o que é uma
obra ou o encadeamento de livros nas estantes de uma biblioteca. A
deslocava os objetos do Centro de Convivência tal uma carta/letra furtada
do conto de Poe. Os deslocamentos que ele fazia com os produtos das
oficinas nos apontam que estes eram tais como a carta-letra-lixo de que
nos fala Lacan: objetos manuseáveis. Para A, a letra era o lixo que pode
se destacar, mover, furtar ou guardar. Depois disso, passei a recebê-lo ao
“pé da letra”: na sua materialidade, na sonoridade dos neologismos que
me trazia, deixando-o dar destinos aos objetos das oficinas e a revirar os
livros da biblioteca. Penso hoje que talvez o que ele fizesse no Centro
de Convivência se expressasse nisto, sonoramente: a “clomoagem”.
A chegada de B ao Centro de Convivência Oeste (CCO) situou-
-me no lugar daquele para quem endereçar e depositar sua produção
material. Na produção de B, as palavras fluem livremente entre dese-
nhos coloridos. Neles, do desenho de uma árvore brota um coração

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 85


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
de onde surge um sol de onde pode vir um rosto ou imprimir-se a
marca de batom de um beijo seu na folha de papel. Cada elemento está
interligado. O texto de B se tece cruzando letras e sons e sentidos...
Ela fazia um uso singular da oficina de Letras, trazendo seu próprio
material, não se interessando muito pelas práticas, temas ou textos de
outros autores que eram nela propostos. Chegava ao CCO carregando,
por vezes, uma bagagem com três ou quatro cadernos na sala de oficina,
alguns papéis avulsos a voar. Eu pedia a ela que selecionasse alguns deles
e que os lesse em voz alta para mim. Ela ainda os afixava em mural ou
paredes do CCO ou dedicava alguns a colegas e funcionários. Comecei
a guardar seus textos produzidos em oficina. Ela sonhava em publicar
um livro. Propusemo-nos a confeccioná-lo.
A confecção do livro se estendeu por mais de um ano. A princí-
pio, eu pedia que ela corrigisse os textos com sugestões minhas, e me
pautava em critérios estéticos para selecioná-los para o livro. Empe-
nhamo-nos ainda em fazer escritos de sua história de vida. Mas este
enredo mostrou-se dispensável, uma vez que tomou relevo a possibi-
lidade de eu escutar dela as leituras em voz alta “ao pé da letra”, e de
confeccionarmos aquele livro, o qual fez-se na forma de uma caixinha
com papéis avulsos amarrados por um laço de fita. Vemos aí a sair de
cena a função mensageira da carta/letra para tomar relevo a dimensão
do objeto, e, nessa passagem, a descontinuidade no saber articulado
tal como indicamos acima, que se mostrava, por exemplo, nas minhas
correções gramaticais e críticas literárias.
Do furo no saber, a letra de B continuou a fazer borda, e pus-me
a navegar com ela pelo seu litoral, entre o desenho das letras e aqueles
outros que se espraiavam na folha de papel, em sonoridade de rimas
e cores. Ela passou a fazer seu uso também singular no CCO, onde
passava para me apresentar textos novos e levar mais exemplares de
seus livros para vender. Os livros foram inspirados nas características
do trabalho dela: eram caixinhas com escritos impressos avulsos. Eles
passaram a se deslocar junto aos outros papéis, a fazer ressoar para mim
o aforismo lacaniano de que uma “carta sempre chega ao seu destino”
(LACAN, 1998, p. 45).

86 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
Nas oficinas de Letras, os escritos como cartas/letras passaram a
voar para seus destinos. Por vezes, é a mim que se endereçam. Outras,
importa que eu guarde os papéis avulsos ou cadernos numa pasta no
armário. Mas, principalmente, importa que eu escute a materialidade
da sonoridade de suas leituras em voz alta. Assim, configuraram-se
o cotidiano das oficinas de Letras. Das nossas conversas, os usuários
pedem-me uma proposta para se fazer um escrito: pode ser um tema
de notícia do momento, uma palavra que um colega disse, uma imagem
ou um texto literário. Mas as escritas correm livres, motivadas pelas
singularidades com que cada um recebeu a proposta. Então, faz-se
silêncio e cada qual desenha sua letra no papel. É importante, como
nos diz Guerra (2004, p. 54), “uma oferta o mais diversificada possível
das atividades nas oficinas, de tal forma a ‘programar o acaso’, aumen-
tando as chances de que um encontro venha a acontecer”. São muitas
as formas possíveis de permitir o acaso no encontro com as letras. Ao
chegar nos Centros de Convivência Carlos Prates e Oeste, servi-lhes
uma sopa de letrinhas e ofereci um prato separado para que coletassem
algumas letras. Algumas palavras foram formadas; neologismos; outras
ficaram no caldo. Depois, juntamos as palavras em suas sonoridades
e compomos uma pequena canção. Ao programar o acaso, gostamos
também de praticar a receita do famoso manifesto dadaísta: recortar
as palavras de um texto, colocar em um saco, sorteá-las e fazer uma
colagem delas.
No que chamamos “Inventário Poético”, andamos à deriva pelas
ruas do entorno do Centro de Convivência a fazer listas do que nos
saltassem aos olhos. Depois, em parceria com as oficinas vizinhas, alguns
bordaram, pintaram ou desenharam em tecidos os textos criados a partir
das listas que foram feitas na caminhada. Os pedaços de tecido foram
fixados um ao outro com velcros, de forma que pudessem se soltar um
do outro e ficassem separados. A este objeto chamei “percaminho”,
um neologismo aglutinando as palavras “pergaminho” e “caminho”.
Com os inventários, também gravamos um áudio, cruzando-os em
sonoridades. Enfim, reunindo todo o material, fizemos a performance
“Viagem ao centro da convivência”. Nela, um usuário figurava feito

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 87


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
Arthur Bispo do Rosário a carregar um barco de madeira, de onde
desenrolamos o “percaminho”. O navegar do barco por entre a pla-
teia se dava ao som de um “chuáááá” emitido com a participação
do público acompanhando o mover em ondas do longo tecido. Em
seguida, fragmentados, cada pedaço destacado do “percaminho” virava
uma peça de figurino e líamos seus escritos, dos quais ainda se faziam
ecos em refrãos e sons para serem entoados com a plateia. Assim, na
singularidade de cada um, amarras eram feitas, possibilitando o laço
comum no longo “percaminho”, e coletivamente a convivência se
dava um happening entre os presentes.
Na convivência ao “pé-da-letra”: A desloca os livros e os obje-
tos dos colegas das oficinas, B vem com sua bagagem de escritos e
desenhos para entoá-los ou expor em mural, C e D discorrem sobre
temas atuais, outro escreve textos para gravá-los com o monitor, a fim
de fazer postagens nas redes sociais. Há aquele que traz seu calhamaço
de papéis avulsos com versos para compor canções; outro que me
dá de presente páginas e páginas de cópias manuscritas que faz de
livros, e aquela que transita entre a oficina de Pintura e Letras com
cores e versos; dois deles fazem acrósticos a cada oficina, despon-
tando versos de letra a letra; uma outra que faz diário em mistura de
oração, e mais uma que, por trânsitos inquietos pela oficina, escreve
poemas-pílulas. Há quem venha esporadicamente dar-me notícias
sobre o seu trabalho no projeto de reinserção no mercado formal
e quem semanalmente canta-me canções e recita-me um poema
ao telefone… Cada qual faz sua experiência do cotidiano na con-
vivência em oficina ao “pé-da-letra”, pela qual voam suas furtivas
cartas, letras, objetos que se destacam, transitam, se deslocam a fim
de sempre chegar aos seus destinos…

Agradecimento

Agradeço a Lúcia Castello Branco, pelo mosaico de sua transmissão


como professora na graduação a evocar a falta que me pôs a trabalho

88 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
nos rastros do que chama “palavra em ponto de p”; e à interlocução
com Laura Rubião, Éverton Cordeiro e as colegas da comissão orga-
nizadora deste livro.

Referências

ALVARENGA, Maria Elisa. O trabalho criativo e seus efeitos na clí-


nica da psicose. In:Curinga. Belo Horizonte, n.13, set. 1999, p. 118-121.
GUERRA, Andréa Máris Campos. Oficinas em saúde mental: per-
curso de uma história, fundamentos de uma prática. In: FIGUEIREDO,
A. C. & COSTA, C. M. (Org.) Oficinas terapêuticas em saúde men-
tal - sujeito, produção cidadania. Rio de Janeiro. Contra-Capa/IPUB,
2004, p. 23-58.
LACAN, Jacques. O seminário sobre ‘A carta roubada”. In:Escritos.
Trad.Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p.13-45.
______, Jacques. Lituraterra. In:Outros escritos. Trad.Vera Ribeiro. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p.15-25.
MANDIL, Ram. Os efeitos da letra: Lacan leitor de Joyce. Rio de
Janeiro/Belo Horizonte: Contra Capa Livraria/ Faculdade de Letras
UFMG, 2003.
POE, Edgar Allan. Histórias extraordinárias. Trad. José Paulo Paes, São
Paulo: Companhia das Letras, 2017.

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 89


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
HISTÓRIAS BORDADAS

Regina Cazita1

Passei a infância rodeada por cores, linhas e agulhas. Sempre


fui curiosa em manusear e conhecer sobre artes e me encantei pela
diversidade delas. Entre tramas, linhas e cores, comecei a aprender
com minha mãe e a avó os primeiros pontos que em tamanha
delicadeza fizeram minha paixão crescer cada dia mais. Alguns
anos depois me voluntariei em um lar de meninas, onde passei a
conhecer e sentir o entusiasmo das crianças ao primeiro contato
com as agulhas. Além de encontrar nelas ainda mais inspiração sobre
as artes, bordados e afins. 
Ao longo da vida me empenhei em aprender e ensinar sobre
costura e bordado, e por onde quer que eu passasse tentava deixar um
pouco da beleza e delicadeza dessa arte tecida com tanto carinho. Dei
aulas na minha cidade natal, posteriormente na cidade vizinha, na qual
morei por muitos anos, e em seguida, mais precisamente em 1994, me
mudei para Belo Horizonte, onde fazia questão de dar sequência a este
trabalho. Passado algum tempo, participei do teste de seleção que me
conferiu a oportunidade de ingressar no Centro de Convivência Oeste
da Rede SUS-BH/MG, em 2014, onde estou bem feliz e realizada desde
então. Tamanha foi a minha alegria com a conquista! Minha história
com cores, linhas e agulhas encontraria outras histórias alinhavadas por
elas! A ideia de transmitir aos usuários a mesma felicidade e fascínio
pelos bordados me empolgava.
Como profissional, pude perceber que os usuários e as usuárias
chegavam tímidos, muitas vezes cabisbaixos, mas com um potencial
criativo imenso e desejo de se expressarem, o que nos bordados se
manifesta na escolha das cores, na arte costurada no pano que conta aos
pouquinhos a história particular de cada um. É visível o quanto eles e
elas buscam por transformações e se expressam através dos bordados.
1
Monitora da oficina de Bordado e Costura do Centro de Convivência Oeste.Artesã, bordadeira e costureira.

90
Certa vez, propus uma atividade que consistia em construirmos
uma toalha de mesa, mais especificamente uma toalha de banquete
coletiva. Esta seria composta pela costura de pedaços de tecidos traba-
lhados por cada usuário e usuária. A ideia era juntar as singularidades, as
histórias de cada um contadas através dos traços e bordados delicados,
feitos cuidadosamente para compor aquele trabalho. Cada um teve
seu papel no projeto coletivo, sendo essa participação fundamental
para o processo criativo e integração dos usuários. Além de expressão
de maneira artística que eles brilhantemente colocavam nos bordados,
seria uma forma de aproximar ainda mais os usuários e promover a
conversa entre os estilos de cada um. Isso ajudou bastante na troca de
experiências e diálogo entre todos. Os usuários e as usuárias passa-
ram a conversar mais entre si e a se conhecerem melhor. A atividade
possibilitou que pudéssemos construir juntos uma história coletiva na
toalha de banquete de histórias expressadas no pedacinho de tecido
feito por cada um.
Aos poucos o entusiasmo tomou conta tanto da equipe quanto
dos usuários, que agora se interessavam em aprender novos pontos,
novas técnicas – de tudo um pouco para abrilhantar ainda mais os seus
trabalhos. No processo, as histórias em cada pedaço de tecido foram
alinhavadas todas juntas. Ao final, a toalha confeccionada pelos usuários
ficou linda, atraindo os olhares de todos! Além disso, o processo foi
gratificante e prazeroso. Pudemos compartilhar de experiências de vida
encantadoras; cada pedaço construído contava a singularidade de cada
um em um trabalho coletivo.
Percebo que o trabalho desenvolvido no Centro de Convivência
tem efeitos de grande relevância na vida dos usuários. Desperta o inte-
resse em aprender coisas novas, levando a pesquisas, novos aprendizados,
um trabalho mais rico e diversificado, que pode favorecer para alguns
a geração de renda. O envolvimento com o trabalho nas oficinas traz
momentos de relaxamento, prazer, alegria e pausa no sofrimento. E na
convivência, abertura para novos amigos, namoros, casamentos, para
o convívio em geral, ampliando horizontes, levando a expectativas de
uma vida melhor e de outras conquistas.

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 91


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
Diante dessas experiências citadas e as demais vivenciadas no
Centro de Convivência, posso dizer que aprendi e aprendo a cada dia
mais sobre pessoas, sobre o meu trabalho e como ele pode ser utilizado
como forma de expressão; como se tecessem suas histórias singulares,
diversas, encantadoras e fascinantes.

92 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
ARTE E LOUCURA1

Valéria Almeida2

A arte imita a vida ou a vida imita a arte?


Pergunta sem resposta ou pelo menos tema para discussão infinita.
Existe loucura na arte ou a arte é um componente da loucura?
Como definir loucura?
Como definir o belo?
Genialidade costuma andar de mãos dadas com a loucura.
É só olhar.
Não quer dizer que a loucura necessariamente produz arte, mas…
É que Van Gogh não lhe dá ouvidos.
É que Maluco Beleza não compõe coisas belas.
É que Mozart não ia ficando cada vez mais louco, por conta da
sífilis que o acometeu.
Ah... Mas existe a normalidade!
Só não se sabe quem a definiu.
Quando a tal da loucura encontra a alma, a arte expõe, resgata,
comunica, eleva, releva, refresca, acalma, emociona.
Quem é louco? Cervantes ou Dom Quixote?
Dançar loucamente, pintar loucamente, esculpir loucamente e
até, porque não, arquitetar loucamente.
Nos Centros de Convivência, não trabalhamos com diagnósticos
e nem fazemos do sujeito um artista pelo domínio de uma técnica ou
o esforço do fazer, a partir da criação sem limites.
As oficinas se iniciam tímidas, inseguras, sem definições aparentes.
1
Todos os nomes de usuários citados no texto são fictícios.
2
Artista visual. Monitora de Artesanato, Pintura e Desenho nos Centros de Convivência Carlos Prates
e Nise da Silveira.

93
Aos poucos se transformam numa linguagem pintada, bordada,
cantada, organizada e descolada do sofrimento imediato.
A arte expressa o insensato através da prática de uma produção
que muitas vezes aparece em estado bruto.
Em um momento, a voz grita, o desejo de se cortar aparece,
Rosa avisa. Então, a tinta vermelha é ofertada junto com as folhas de
papel. Logo, entorna na mesa, espirra no corpo, ensanguenta de rubro,
contendo, por um tempo, o desejo de morte.
Em outro momento é preciso emprestar o corpo ao delírio do
outro, pedindo licença aos “amigos invisíveis” para que ele possa dese-
nhar livremente, aliviando um sofrimento intermitente.
A experiência da arte por vezes também possibilita que pessoas
que circulam pela cidade, fazendo uso prejudicial de álcool e outras
drogas possam vivenciar o possível e reduzir seus excessos. Negociar,
renegociar, arriscar, ouvir, ofertar, encontrar laços onde as barras e bordas
aparecem sutilmente possibilitando um intervalo e um encontro com
um outro, com uma atividade, consigo mesmo...
Da mesma forma, os eventos, passeios e viagens são ações que
transformam, recolocam e permitem a todos se reconhecerem como
pessoas comuns.
Como diria Paul Gauguin:“Fecho bem os olhos para ver o que pinto”.
A produção artística tem a capacidade de aplacar o sofrimento da loucura.
Bispo do Rosário tinha que unir esses dois nomes próprios ligados
à tentativa humana de enfrentar a loucura e a fé.
Cavalos com pernas imensas, relógios derretidos, homem que
vira inseto, objetos suspensos no ar…
Dali, Kafka, Niemeyer…
Mas também Margarida. Circulante, flutuante, dita como desa-
justada, cômica, divertida, com rompantes agressivos e repetidos e, por
vezes, violentos e ameaçadores, especialmente aos olhos daqueles que
não conviviam de perto. Porém a aproximação e o afeto despertavam
uma “normalidade” desconhecida no espaço comum da oficina.

94 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
A convivência provoca uma espécie de conhecimento do sujeito
que faz com que os limites socialmente construídos sobre o que é
loucura e o que é normalidade se tornem borrados.
É impossível ser normal aos olhos de todos, assim como é
impossível ser anormal aos olhos de todos. Normal e anormal são
termos relativos, assim como são relativos os seres humanos.
Como diria o escritor Edgar Alan Poe, “Tornei-me insano, com
longos intervalos de uma horrível sanidade”...

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 95


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
TEATRO ALÉM DA CENA

Helena Soares Aphonso1

Pode ser que o teatro não seja revolucionário


em si mesmo, mas não tenham
dúvidas: é um ensaio da revolução!
Augusto Boal

A poesia como referência. O corpo e a linguagem como experi-


mento e desafio nas propostas de trabalho nas oficinas de teatro, criati-
vidade para pessoas com sofrimento mental e não atores: uma conquista
que chegou pela observação aprimorada no decorrer dos desafios.
A escuta através da respiração: ouvir longe, trazer para perto, para
dentro do corpo, abrir os olhos e olhar para o outro, se sentir presente.
Reconhecer o espaço onde se encontram os corpos, os atritos. Aquecer,
alongar e lembrar os músculos que eles precisam de elasticidade para
continuar movimentando esse monte de ossos e carnes. A poesia fala
por nós.Tudo ao redor nos diz que precisamos reagir, memorizar, pelas
sensações, afetos, lembranças e sorrisos. Afinal, estamos vivos.
Essas são algumas das proposições que orientam as atividades na
oficina de teatro “Criatividade”, desenvolvidas no Centro de Convivência
Nise da Silveira, uma maneira de pensar o teatro como um movimento
que produz no corpo sensações vivas de conscientização e sensibilização,
através do despertar da cognição, sentidos, emoção, motricidade que vão
influenciar no poder de desenvolvimento da presença. Por isso é que
a arte e a vida, no campo das artes cênicas, estarão sempre associadas e
são um poderoso instrumento de transformação humana.
A convivência é feita pelo afeto, e o teatro se encarrega de abrir
possibilidades e olhares de uns sobre os outros, através do imaginário
poético das ações: observações, experimentos, cenas, leituras, escritas,
1
Pedagoga, escritora, atriz e professora de teatro. Responsável pelas oficinas de teatro criatividade no
Centro de Convivência Nise da Silveira/Saúde Mental/PBH/MG.

96
brincadeiras, lembranças, invenções, cantigas, lamentos, sorrisos, garga-
lhadas, choros, atritos, cafés. Enfim, abraços.
A busca é por elementos que permitam uma vida poética, procu-
rando o que nos faz florescer, o que nos faz amar e comunicar. Nosso
caminho é de perguntas; vamos descobrindo junt@s, com alegria e
liberdade, como brindar nossas diferenças e seguirmos com suavidade a
vida que nos é tão cara e preciosa. A linguagem performativa é utilizada
como meio de potencializar a expressividade do usuário do serviço
de saúde mental através das diversas leituras que propõe a oficina de
teatro-criatividade. Objetiva a produção de elementos criativos para ir
ao encontro com o coletivo nas interações de boa convivência: corpo,
voz, texto, dramaturgia, desenho, rascunho, encenação, costura, bordado,
jogos dramáticos e outros, para despertar curiosidade no olhar e aguçar
a criatividade. Processo que potencializa a socialização e inclusão. É
preciso provocar a percepção dos sentidos no cotidiano, mexer com
o simbólico e fazer a escuta de cada um e seu tempo, observando e
substituindo funções de acordo com suas limitações. Pontos como a
prontidão, a desinibição, a afetividade e os valores de cada um são esti-
mulados e apreciados com todos do grupo, visando o encontro com o
melhor de cada um que se dispõe a participar e conviver com o desafio
que é a produção de teatro além da cena.
O Teatro do Oprimido é a inspiração e referência que valoriza a
capacidade criadora, colocando os participantes sempre como sujeitos
ativos, nunca passivos, empoderando através de exercícios e técnicas
teatrais acessíveis, descontraídas e fundamentadas na transformação da
realidade através do diálogo. O Teatro do Oprimido utiliza recursos
dialéticos na produção e execução das propostas de trabalho com atores
e não atores.
O citado Teatro do Oprimido é uma metodologia desenvolvida
pelo teatrólogo brasileiro Augusto Boal (1931-2009). Um conjunto de
técnicas teatrais que buscam transformar o espectador em sujeito atuante
da ação dramática para o desenvolvimento da autonomia diante dos
fatos cotidianos, visando “desmecanizar” o corpo e as emoções, dando
lugar à imaginação de novas perspectivas. Parte da ideia de que todos

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 97


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
os seres humanos são atores, mesmo que não façam teatro. Tem suas
bases na ética, estética e solidariedade. É praticado como um disposi-
tivo na busca da liberdade e composto por técnicas teatrais acessíveis,
que modificam a realidade através de jogos e exercícios, estimulando o
protagonismo social por meio do acesso à produção artística, buscando
promover a criação de si e do mundo.
Algumas técnicas mais conhecidas e aplicadas para construção de
cenas, debates, informações, construção de saberes (criadas por Boal)
são: teatro jornal, teatro fórum, teatro invisível, teatro imagem, teatro
arco-íris do desejo, teatro legislativo.
A partir dessa orientação, processos interativos são criados nos
encontros das oficinas de teatro-criatividade, de acordo com o momento
e o grupo que se forma na oficina, culminando em projetos orientadores
aos quais nomeio “diálogos possíveis”:
• Grupo de teatro Metamorfose: criação e apresentação de
cenas elaboradas a partir de processos corporais, improvisa-
ções, estudo e criação de dramaturgias, poéticas, construção
de personagens, figurino, cenário, etc. O grupo já fez várias
intervenções em festas, seminário, natal, abertura de concurso
de poesia e mais.
• Cadernos – registros de escrita criativa: cartas, memórias,
desenhos, fotos, lembranças, poesias, dramaturgias. Material
resultado do processo de estimulação das memórias emotivas
nas oficinas de teatro-criatividade.
• Teatro de bonecos e máscaras: confecção de bonecos, figurinos,
cenas, que despertam o lúdico e ampliam as possibilidades
de expressão.
• Circo: Um pouco de malabares e outras estripulias para turmas
com mais energia física.
• Cena escultura: Linguagem corporal que transforma questões,
problemas e sentimentos em imagens concretas. Contextuali-
zadas pelos participantes, produzem leituras diversas.

98 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
• Bordados coletivos: leituras, imagens, palavras, poesias como
inspiração para uma mandala no tecido – momento de reci-
tações, conversas, risadas e boas vibrações de todo o grupo.
A partir do exposto, é possível afirmar que o teatro vai além da
cena. Extrapolando o mero sentido do teatro encenado, abre o leque
para os experimentos e as diversas linguagens, culminando, assim, no
sentido dessa arte no processo de produção de subjetividades, inclusão
e na construção de autonomia.

Referência

BOAL, Augusto. A estética do oprimido. Rio de Janeiro:


Garamond, 2009.

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 99


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
ATIVIDADE FÍSICA NO CENTRO DE
CONVIVÊNCIA

Carlos Phillipe Burgarelli1

O Centro de Convivência, como um dos serviços da rede de aten-


ção psicossocial (RAPS), se apresenta como um espaço para socialização,
convivência, desenvolvimento de potencialidades e tem, dentre as várias
oficinas de arte e cultura, a educação física. Pessoas em sofrimento mental
que estão em acompanhamento na RAPS podem ser encaminhadas
para participar das oficinas no Centro de Convivência. Primeiramente,
é necessária uma entrevista com a gerente, onde é apresentado o serviço
e verificado qual atividade esse usuário tem interesse em participar.
Nesse contexto, a atividade física proporciona muitos benefícios
aos usuários, sendo um recurso importante para a promoção de saúde,
prevenção de várias doenças e manutenção da saúde mental (ADA-
MOLI; AZEVEDO, 2007).
A atividade física pode ser definida por todo movimento corporal
que provoque gasto energético, podendo ser realizada em tarefas diárias,
trabalho, caminhadas, esportes, jogos, dança e exercícios físicos, proporcio-
nando saúde quando feito de maneira regular (NAZARÉ, et. al., 2010).
Assim, partindo da experiência de implementação da prática de
atividade física no Centro de Convivência Carlos Prates, pretende-
mos descrever os benefícios da atividade física para pessoas em sofri-
mento mental.

A atividade física no Centro de Convivência Carlos


Prates

O Centro de Convivência Carlos Prates conta com uma boa


estrutura física, com quadra poliesportiva, horta com várias árvores
1
Educador Físico vinculado ao Programa Academia da Cidade.

100
frutíferas, salas amplas para as diversas oficinas, sendo um local de refe-
rência para muitos usuários que frequentam e um espaço privilegiado
para a prática de atividade física. A estrutura física favorece a oferta de
diversas atividades na educação física: exercícios físicos, ginástica, aula
de yoga, futebol, vôlei, peteca, além de jogos e brincadeiras como a
queimada, boliche, ping-pong, totó, entre outras possibilidades. Existe
um cronograma de atividades semanais para o usuário se orientar e se
programar, mas que pode sofrer alterações de acordo com a avaliação
do professor.
A diversidade de experiências, histórias e expectativas que cada
usuário traz quando vem para o Centro de Convivência praticar atividade
física é muito grande. Isso é visível nas aulas, onde há, desde usuários
com muita habilidade e interesse, até os que talvez nunca tenham feito
aquela atividade e estão ali por curiosidade, pela convivência. 
Muitos usuários demonstram interesse nas atividades de educação
física já ao ingressar no serviço, na entrevista com a gerente. Outros
despertam o interesse ao longo do tempo, vendo as aulas e o envolvi-
mento dos colegas. 
Há usuários que, mesmo conscientes de que precisam se exercitar
por questões de saúde, recomendação médica, demonstram resistências
que podem ser vencidas pela convivência no dia a dia, conversas e,
assim, confiança no professor. Há também usuários que, talvez, nunca
tenham feito aulas de ginástica, o corpo descoordenado, debilitado
devido ao efeito das medicações e com muitas limitações, ficando, na
maioria das vezes, parados, sentados, sem vontade de movimentar-se,
mas que estão ali para participar de alguma maneira. Então, sempre fica
a reflexão: como a atividade física é importante para a saúde física e
mental, pois movimentar o corpo traz benefícios e estímulos mentais
que vão gerar uma qualidade melhor de vida para essas pessoas que
ficam muito ociosas na maior parte do tempo.
Melo (2014) destaca que a atividade física no campo da saúde
mental é eficaz como terapia não medicamentosa já que, com a prá-
tica de exercícios, o organismo libera hormônios como a serotonina e

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 101


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
endorfinas que auxiliam no equilíbrio de estados de ansiedade, estresse
e depressão, gerando benefícios não apenas físicos, mas também tera-
pêuticos, no sentido de favorecer a saúde para o corpo e a mente.
Desse modo, é necessário sensibilidade para despertar o interesse e
motivação, ofertando atividades com as quais eles demonstrem afinidade,
curiosidade e que sejam adequadas à situação em que se encontram.
Despertando a motivação para se movimentar, o usuário pode inte-
ragir com outros, descobrir potencialidades e conseguir participar da
atividade. Cada um tem seu tempo e o respeito para com o sujeito, e
sua história é fundamental nesse processo.
Para Nazaré, et. al. (2010), as pessoas que praticam atividade
física são menos propensas a transtornos mentais, lidando melhor com
as adversidades do que pessoas sedentárias. O sedentarismo é também
um fator determinante para o surgimento de doenças crônicas não
transmissíveis, que estão entre as principais causas de morte no país, de
acordo com a OMS (MALTA; SILVA JUNIOR; 2013).
Melo (2014) acrescenta que pacientes esquizofrênicos são mais
sedentários e apresentam maior risco de obesidade e doenças crôni-
cas se comparados à população em geral, devido a fatores diversos.
Além do sedentarismo, é necessário considerar os efeitos colaterais dos
medicamentos antipsicóticos, sendo que alguns podem colaborar para
a obesidade. Diabetes Melitus tipo II e Dislipidemia também ocorrem
devido ao efeito de algumas medicações psiquiátricas, trazendo como
consequência significativo ganho de peso (TEIXEIRA, ROCHA
2006). Além disso, a sedação e o parkinsonismo acabam colaborando
para o sedentarismo, por dificultar o movimento ou o desejo de se
movimentar (FONSECA 2021).
Pelo histórico de sedentarismo, associado a excesso de peso e
comorbidades, propor exercícios de alongamento e mobilidade, exercícios
aeróbicos e de fortalecimento, é muito importante para minimizar seus
efeitos para a saúde, e o ponto de partida é a oferta que desperta, muitas
vezes, pouco interesse. O mesmo não ocorre com as atividades coletivas
de jogos que, por serem lúdicas, culturais e remeterem a brincadeiras
da infância – como a queimada – possibilitam movimentar o corpo e,

102 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
ao mesmo tempo, se divertir, canalizando na atividade um turbilhão de
sentimentos que trazem quando chegam ao Centro de Convivência. 
O futebol, por exemplo, é uma atividade que gera um envolvi-
mento muito grande dos usuários. Faça sol, faça chuva, eles estão sempre
motivados a fazer a atividade, e se deixar, por horas a fio.Também é uma
atividade que desperta emoções devido a força cultural que carrega.
E sendo uma modalidade de disputa, exige que se faça acordos para
cumprir as regras, respeitar os colegas e suas limitações, gerando um
ambiente propício para a socialização e cuidado com a saúde, além de
ser diversão garantida.
Na prática diária no Centro de Convivência Carlos Prates, é pos-
sível perceber que os benefícios da atividade física não estão relacionados
apenas ao movimento e ao gasto energético. Para além da atividade
física, são proporcionados momentos de lazer, alegria, descontração,
cuidado com o corpo e a saúde, lidar com as emoções e sentimentos
que afloram, principalmente nessas atividades como o futebol, que
envolvem disputa. Nessas situações em que os conflitos emergem, o
educador físico tem a função de mediar, convidar o grupo ao diálogo
e ao entendimento mútuo. Recentemente, vivenciamos uma situação
em que um dos usuários da oficina de futebol não devolveu objetos
emprestados de alguns integrantes do grupo.Alguns usuários o acusaram
de ladrão e o ameaçaram. Ele mostrou-se ressentido e não queria mais
retornar ao serviço. Após uma conversa entre os envolvidos, mediada
por nós, foi possível promover uma conciliação a partir do acolhimento,
do diálogo e da responsabilização.
Por suas características estruturais, o Centro de Convivência Car-
los Prates sedia anualmente os “Jogos da Primavera” em setembro, com
duração de uma semana, o que mobiliza muito os usuários, pois todos os
serviços de saúde mental de Belo Horizonte são convidados a participar.
São competições saudáveis envolvendo várias modalidades de jogos e
brincadeiras: Futebol, Queimada, Peteca, Jogo de Damas,Truco, Boliche
e Totó, entre outras atividades que podem ser propostas dependendo do
interesse dos usuários e da viabilidade de execução. É um evento que gera
motivação, socialização, muito envolvimento e expectativas dos usuários

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 103


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
que, ao longo do ano, sempre estão comentando e se preparando para
os Jogos da Primavera. Infelizmente, este é o segundo ano em que o
evento foi adiado em função da pandemia. Seguimos aguardando, com
grande ansiedade, o momento em que este intercâmbio em torno da
prática de atividade física se tornará possível novamente.
Finalmente, cabe acrescentar que temos observado o quanto as
atividades psicomotoras têm contribuído no processo de desinstitu-
cionalização quando ofertadas aos moradores dos serviços residenciais
terapêuticos, incidindo diretamente nas marcas da institucionalização
sobre os corpos: embotamento causado por longos anos sem estímulos,
pelo confinamento, silenciamento e anulação da subjetividade. Além
disso, a grande maioria dos usuários egressos de longa internação é de
idosos, que sofrem os efeitos do envelhecimento no corpo. Perceber o
próprio corpo no espaço, interagir com o outros e movimentar-se de
forma lúdica tem produzido efeitos relatados por usuários e cuidadores.
A atividade física contribui, assim, para devolver ao egresso de
longa internação sua energia de vida capturada pela institucionalização
ao “possibilitar descobertas e transformações, bem como de aprofun-
dar a consciência de si (AMORIM, et al, 2017, p. 41). Desta forma, o
trabalho com a motricidade coloca esses usuários em contato consigo
mesmos através da redescoberta do seu corpo na relação com o outro.

Considerações finais

Os Centros de Convivência são espaços muito ricos e com grande


potencial a ser explorado pela prática de atividade física. O movimentar
e o que isso representa e pode representar para cada usuário que se
permitir vivenciar essa experiência, proporciona benefícios físicos e
mentais e, assim, mais qualidade de vida. O sorriso no rosto ao final
de uma atividade é a imagem que sempre fica, pois além do cuidado
com a saúde, através do movimento, essas práticas evocam “alegria” –
sentimento essencial a essas pessoas que buscam superar suas dificuldades
e ampliar as possibilidades de viver.

104 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
Referências

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MALTA, Deborah Carvalho; SILVA JR, Jarbas Barbosa da. O Plano
de Ações Estratégicas para o Enfrentamento das Doenças
Crônicas Não Transmissíveis no Brasil e a definição das metas
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MELO, Lígia Gisely dos Santos Chaves; OLIVEIRA, Kleber Roberto da
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NAZARÉ, Eliany Oliveira; AGUIAR, Romulo Carlos de; ALMEIDA,
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COSTA, Mackson Luiz Fernandes da; ARAUJO, Allana de Carvalho;
FERREIRA, Deyze da Silva. Práticas corporais e desinstitucionaliza-

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 105


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
ção em saúde mental: Desafios e possibilidades. Estudos de Psicologia, v.
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TEIXEIRA, Paulo José Ribeiro; ROCHA, Fábio Lopes. Efeitos Adver-
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106 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
CENTRO DE CONVIVÊNCIA
CONVIVENDO COM AS ADVERSIDADES EM
SONHO DE UM SUS MAIS VALORIZADO

Rogério Rodrigues de Carvalho1

Embarquei nessa viagem a pé meus pensamentos me distraí


corpo cabeça memórias sem fim
melancolia torna-se real
segue seu rumo natural
o medo me silencia informações normais
numa realidade normal no virtual
Viver é arriscado caminhar é perigoso
mas no meu interior tudo é válido
no meu mar
o sol brilha sem parar
está nublado
as nuvens parecem que a todo tempo tem sinal de chuva
vai nos molhar
acordei hoje para ver meus amigos convidar para ver uma valsa

Em cortês tecidos, entre linhas e agulhas,


um bom café e uma boa prosa com os amigos,
o artesanato do Centro de Convivência
transforma o dia a dia em aprendizado.

Mosaico.
Pedras, uma de cada vez colocadas em madeira e paredes coladas,
fica uma estampa para nossos olhos formatados em cores;
um visual perfeito,
fazendo das Pedras-flores em ângulos diferentes.

1
Usuário do Centro de Convivência Barreiro.

107
Da terra bem irrigada do jardim do Centro de Convivência
brota margarida-banana e limão.
Molhar e cuidar da terra.
Ela nos devolve em frutos e belas flores;
um olhar diferente para o limão e banana.
Saem sucos maravilhosos da terra,
tudo que se planta dá: chá de hortelã e erva cidreira.

O torneio de futebol dos Jogos da Primavera


onde os jogadores desfilam gols, dribles no canto da torcida,
o encanto da bola,
o placar apertado para os vencedores.
Primeiro lugar,
o campeão mais o vice-campeão se tornam um time só.
Centros de Convivência e CERSAM.

Passeio na praia:
os usuários se organizaram juntos com o Centro de Convivência
e viajaram para o RJ.
Era só alegria,
tinham pessoas que estavam pela primeira vez no mar.
Ao olhar a praia e o barulho das ondas por um instante só...
o infinito do mar.

Oficina de letra, música e melodia:


numa palavra escrita junta sai sons na imaginação,
uma poesia se torna música natural.
Letra, história de vida.
Ao cantar e fazer apresentações em várias universidades e centros
culturais,
os usuários conectam com sambas raps sertanejos e baiões.
Todas as composições são dos usuários do Centro de Convivência.

Ao respirar sinto-me vivo para criar o impossível sonhar é neces-


sário pra mim e pra vocês
em cima de um SUS mais valorizado

108 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
Seção 3

RESSONÂNCIAS EM TODO CANTO:


VICISSITUDES DO COTIDIANO

109
TRAVESSIA DA ESCURIDÃO

Rogério Gomes1

Tempos de privação
De solidão
Momentos nebulosos
O passado obscuro da loucura
Na travessia da escuridão
Ao longe uma luz
Tudo se fez passado
Agora o presente de convívio
Amigos
Alegria de uma nova vida
Nas feridas de hoje
Guardamos cicatrizes
De um tempo que não volta
Jamais!

1
Usuário do Centro de Convivência Cézar Campos.

111
CENTROS DE CONVIVÊNCIA DE BELO
HORIZONTE: DESATANDO NÓS, FAZENDO
LAÇOS, AFIRMANDO A LIBERDADE E
AVANÇANDO 1

Ana Paula de Matos Novaes2

“Faz escuro em todo canto” (Coletivo Centro de


Convivência Barreiro)

Nesses tempos sombrios, em que Ciência, Educação e Cultura


são vistos como ameaças e a escatologia dos podres poderes tenta
dominar a cena e causar medo, é preciso relembrar, voltar a História,
afirmando que “um outro mundo é possível”. E é porque sonhamos,
sonhamos muito.
1993, em Belo Horizonte: um marco histórico importante em
BH. Patrus Ananias é eleito prefeito da cidade e acompanhamos todas
e todos o pulsar da pólis, marcada pela construção e implementação
de políticas públicas. Na Secretaria Municipal de Saúde, assume Cézar
Rodrigues Campos, psiquiatra, militante antimanicomial. Na coorde-
nação de Saúde Mental, Míriam Abou-yd, ainda sem nossa saudosa
Rosimeire Silva (In memoriam), inicia o processo de construção de
uma rede substitutiva aos hospitais psiquiátricos. Não sem tensão, é
claro. Afinal, os “donos de hospícios” e, hoje, das “comunidades terapêuticas”,
eram e são vorazes. Fomos para as ruas e praças, assembleias e fóruns,
encontros e reuniões para planejar, executar e defender a Política Pública
de Saúde Mental de Belo Horizonte.
O primeiro CERSAM, na regional Barreiro, foi pensado para
interromper o fluxo de pacientes que eram internados no Hospital
Galba Veloso. O primeiro Centro de Convivência, o São Paulo, em
1
Texto apresentado no evento “Louco encanto”, em dezembro de 2019, e atualizado para esta publicação.
2
Psicóloga, com especialização em saúde mental pela Escola de Saúde Pública de Minas Gerais. Gerente
do Centro de Convivência Marcus Matraga /regional Venda Nova.

112
um Centro de Apoio Comunitário, lugar, à época, da diversidade e
de encontros. Desses dois dispositivos surgiram tantos outros com a
premissa (pelo menos deveria ser) de acolhimento, inserção, garantia
de direitos, cidadania e cuidado. Cuidado em liberdade!
Passados 28 anos do início da Política de Saúde Mental na cidade,
já não temos muros. Não mesmo? E os muros simbólicos? E os que
insistem em fazer renascer o manicômio? Ficam algumas perguntas.
Outras surgem: como pensar o cotidiano do dispositivo Centro
de Convivência a partir da convivência e da arte na interlocução com
a cidade para além dos muros e portas abertas em uma cidade onde
a intolerância começa a rondar? Aqui cabe ressaltar que uma palavra
retorna insistentemente: liberdade. Sim, repito: liberdade é a palavra.
Só conseguimos avistar o que tinha além das portas e muros porque
nosso cuidado é em liberdade. E com liberdade ainda é possível ir
desconstruindo toda uma lógica do preconceito e do medo, que estão
associados às pessoas com sofrimento mental.
Centros de Convivência: um dispositivo que acolhe o sujeito
para, quem sabe, topar experimentar algo no campo da arte e da cul-
tura? Oficinas? Escolarização? Integração em espaços de participação
política? Passeios, visitas a exposições, viagens? Grupos musicais de
reconhecimento nacional? Atividades esportivas com direito a medalhas
e premiação? Inserção em projetos de geração de trabalho e renda?
Ah, não. Nada disso, então! Chegar, poder tomar um cafezinho, sentar,
observar o movimento mais tranquilo nas manhãs e intenso à tarde,
quando duas ou mais oficinas dividem o mesmo espaço e a música
do rádio faz alguns dançarem e convidarem a gerente pra balançar o
esqueleto? Espaço banal, de convívio, de pausa do sofrimento. Pausa
do sofrimento?
Bem, tem dias que o sofrimento emerge com toda a sua força.
Um usuário com laços familiares fragilizados, em uso abusivo de subs-
tâncias, em abandono do tratamento, com uso irregular da medicação,
precisando de um banho quente de quem passou alguns dias a ermo
na rua e resolveu simplesmente aparecer: lugar de pertencimento!
Momento precioso pra tentarmos, então, refazer o laço, desatar alguns

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 113


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
nós, contatar a rede de saúde, o profissional de referência que às vezes
já não está mais na unidade; propor uma, duas ou até mais vezes discutir
o caso com a equipe de Saúde da Família, com o CERSAM, com toda
a saúde mental e também outros parceiros.
Construir o caso, compartilhar o cuidado, tendo como ética o
consentimento do sujeito. Às vezes, ele não quer ou não dá conta de
nossa intervenção. Fazer o quê? Como é difícil ver um cidadão com
sofrimento mental no momento em que ele não aceita e não quer nossa
ajuda e termos que nos recolher para não impor nosso “pseudosaberso-
bretudoetodos” e aguardar, ficar à espreita, na brecha de um momento
que algo possa fazer sentido e aí conseguirmos nos colocar ao seu lado.
Nessas horas, contar com a rede do Sistema Único de Saúde, sem
os enquadramentos que, na maioria das vezes, impedem a chegada e a
entrada dos nossos usuários, é fundamental quando o que está em cena
é a possibilidade de “re”construção de projetos de vida e autonomia.
É imprescindível que cada ponto da rede assuma o seu papel nessa
construção cotidiana de novas possibilidades, enfrentando cada desafio
e assumindo o compromisso de sustentação do SUS.
Estar de portas abertas não significa deixarmos tudo ou quem quiser
entrar. Mantemos o acolhimento dos casos graves de saúde mental e aos
usuários de álcool e outras drogas. Sim, eles têm chegado cada vez mais
jovens, sem a referência das longas internações que tanto marcaram o
corpo com letargia, excesso de medicação e negação do desejo. Eles e elas
e, talvez, aqueles, nos chegam com o sofrimento que a vida louca e o abuso
da droga imprimem na vida: falta de sentido, busca por algo que ajude a
deslocar o sofrer da existência, porém com a vontade de fazer algo, dar
um intervalo, romper as barreiras do preconceito, principalmente quando
se associa loucura, raça, desigualdade social e violência. Muita violência.

“Faz escuro, mas eu canto” (Thiago de Mello)

Tem momentos que são de festas, aniversários comemorados por


quem já não se lembra em qual data nasceu e que hoje envolvem a
participação de familiares e outros laços comunitários na organização

114 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
da festança.Viver a experiência de conhecer ou reconhecer o balanço
do mar, juntos, em caravana. Fazer shows em palcos divididos com
artistas de renome nacional em uma das três edições da Mostra de
Arte Insensata que, reunindo toda a produção artística e cultural dos
Centros de Convivência, CERSAM’s, Projeto Arte da Saúde, e Con-
sultório de Rua intervêm na cidade e na cultura, fazendo caber a falta
de cabimento, com arte e beleza.

“Faz escuro, mas depois do golpe eu me levanto”


(Coletivo Centro de Convivência Barreiro)

Tem época de manifestar. Ir a Brasília, ocupar ministério, “fora


Valencius”. Encontrar parceiros de outros cantos do Brasil, e também de
outros países, para fazer valer a voz, exigindo Manicômios nunca Mais!
Liberdade na cabeça!
Para não esquecermos, e para que nunca mais aconteça: só
em Barbacena cerca de 60 mil pessoas morreram, segundo dados
do livro “Holocausto Brasileiro”, de Daniela Arbex, e a cada 18 de
maio nos encontramos em praça pública e em formato da “Escola de
Samba Liberdade ainda que Tan Tan” lembramos que nossa luta é por
delicadeza e por uma rede de serviços que substitua os manicômios,
produza projetos de vida, de solidariedade, de quebra de paradigmas e
preconceitos. E quanta delicadeza nos nossos moradores dos Serviços
Residenciais Terapêuticos. Sobreviventes do horror, eles nos mostram
que há muita vida no território e que é preciso aproveitá-la.
Com fios se tecem redes... rede de deitar, como as que temos
na entrada do CERSAM Venda Nova, e redes de ajuda, cuidado,
intervenção e laços. Com fio desfiado do uniforme da Colônia Juliano
Moreira, Arthur Bispo do Rosário, interno por muitos anos, teceu e
bordou palavras no manto da anunciação, com o qual pretendia apre-
sentar-se a Deus e salvar o mundo. Postumamente, foi reconhecido
como grande artista contemporâneo e suas obras estão guardadas em
galerias e museus. Mas a ele nada disso interessava.

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 115


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
Com fios, linhas e cores, o cotidiano dos Centros de Convivência
é marcado por usuários que participam de oficinas de arte e artesanato:
alguns não se interessam se suas produções vão além das portas abertas.
Outros, no entanto, constroem um quê de identidade, de nomeação
a partir da oferta de um material, às vezes simples ou mais complexos
como ritmos, instrumentos, pena e papel. E com a sensibilidade e cora-
gem dos artistas que aqui escolhem colocar seu saber e visão de mundo
vamos intervindo e ampliando a circulação e apropriação da cidade.
Em maio de 2017 presenciamos o Circuito Praça da Liberdade
ser ocupado por obras, sujeitos, gerentes, artistas e a população, além da
ampla cobertura da imprensa. Só no Centro Cultural Banco do Brasil,
importante espaço cultural de BH, mais de quarenta mil pessoas visi-
taram o recorte da exposição da 3ª Mostra de Arte Insensata. Isso não
é pouco. Isso tem efeito: cidadãos belorizontinos se deparam com uma
produção estética de qualidade, que encanta, pela qual um novo olhar e
a admiração levam à pergunta: como tanta beleza pôde ser aprisionada,
trancada, identificada com violência, incapacidade e dor? Como não ficar
impactada com as seis edições do Festival da Canção Ideia Sonora? Com-
positores-usuários sobem ao palco para cantar e encantar. Tem música
que gruda na pele. Saracura do Edmundo. E quem ama, cuida. Saracura.
...Falar das experiências pessoais através da arte torna
possível argumentar que existe um movimento social
cultural no campo da reforma psiquiátrica e da luta
antimanicomial. Em outras palavras, quando os sujeitos
que viveram a experiência da loucura passam a construir
projetos artísticos-culturais, individuais ou coletivos,
além de reivindicarem espaços para se manifestar artis-
ticamente em eventos de natureza mais propriamente
política - como congressos, fóruns, etc, (SOALHEIRO,
2003) - se torna possível entender esse amplo processo
como um movimento social cultural no sentido de
transformação do imaginário social da loucura. (AMA-
RANTE, 2012, p.131)

Todo mês de setembro, o que nos mobiliza são os Jogos da Pri-


mavera. Corpos em movimentos em uma anti-olimpíada, com direito
a pódio e medalhas, nos lembra que a entrada dos educadores físicos

116 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
nos Centros de Convivência agita, mas também acalma; põe pra correr,
mas dá uma pausa; contribui para a coordenação motora e melhora os
dados vitais. Logo, com mais cuidado e vida.
Com liberdade, vejo usuários sonharem com trabalho, emprego
e renda e a nós são direcionados novos e muitos desejos, agora que a
liberdade é palavra peso- pesado. E não costumamos recuar quando o
sonho é sonho que se sonha junto.Ao contrário, fazemos laços, tentamos
ampliá-los. Assim surgiram os cursos de qualificação coordenados pelo
Fórum Mineiro de Saúde Mental e, posteriormente, a Incubadora de
Empreendimentos Solidários da Secretaria Municipal de Saúde, que
acolhe a Suricato com seus núcleos de produção e o espaço cultural,
entre outras iniciativas.
Iniciamos, em 2014, a convite da Superintendência Regional
do Trabalho de Minas Gerais, o projeto de inserção de usuários no
mercado formal de trabalho, estabelecendo uma parceria com empresas
e instituições formadoras (SENAC e Rede Cidadã) para o encami-
nhamento dos usuários vinculados aos Centros de Convivência para
vagas de Pessoas Com Deficiências (PCDs). Quase trezentos usuários
frequentes aos nossos serviços já foram inseridos no mercado formal
de trabalho nestes sete anos. Um dos trabalhadores, pela primeira vez,
já com mais de 60 anos, teve a carteira de trabalho assinada, o salário
na conta e a rotina modificada pelo compromisso na empresa.
Trabalhar é fácil? Não, certamente que não. Essa proposta é para
todos? Também não. Mas com o apoio e acompanhamento da nossa
rede de saúde e saúde mental testemunhamos, hoje, momentos de ale-
gria e intervenções junto às empresas, contribuindo para a mudança
da lógica manicomial. Gente doida não consegue trabalhar? Consegue.
Provamos que sim!
Já há algum tempo descobrimos que trem avoa. Duvidam? Acham
que é loucura minha? Pois não é. Com o grupo musical Trem Tan Tan
voamos alto para Salvador e para a Cidade Maravilhosa.Viajamos por
cidades mineiras como Barbacena e São Gonçalo. Com o Trem vimos o
famoso cantor e compositor Chico César espiar na coxia nossa querida
Dona Isaura pra lhe dar um abraço.

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 117


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
A música “Vento de Manicômio” – um relato autobiográfico das
suas várias internações – o emocionou muito. Ele precisava conhecer
Dona Isaura. Ela com sua rabugice de senhora pra lá de cinquentenária
pôde, com os demais participantes do Trem, ver o mar e sentir o teatro
Castro Alves, na Bahia, lotado, aplaudir de pé sua loucura transfigurada
em sons, palavras e canto... “Tá caindo flor...tá caindo flor!”. Ela ali
não era a louca rabugenta. Ela era Dona Isaura P. da Cunha. E assim
vamos atravessando a cidade.
Aqui recorto um pequeno trecho de Edmar Oliveira, publicado
na revista Cadernos da 2ª Mostra de Arte Insensata:
A inclusão da loucura na cidade produz uma nova esté-
tica.A prova viva dessa estética pode ser vista nos eventos
da Mostra de Arte Insensata e outros tantos produzidos
pela Rede de Saúde Mental. Essa nova estética de inclu-
são da loucura é apresentada à cidade, nas exposições,
nas oficinas, nos espetáculos culturais. E essa nova esté-
tica deixa de bater palmas pra maluco, como se dizia
antigamente na outra estética, para aplaudir o talento
(OLIVEIRA, 2012).

Muito fizemos e continuamos a fazer. Queremos mais. Sonhamos


muito: direitos, nenhum a menos; de políticas públicas e do Sistema
Único de Saúde não abrimos mão. Enfrentar as formas sutis, outras nem
tanto, de exclusão e desrespeito, é coragem que não podemos perder.
Contribuir com a organização de usuários e familiares para a defesa da
vida, a direção certa! A 4ª edição da Mostra de Arte Insensata precisa
acontecer. Aprofundar discussões acerca de racismo, sexualidade, direitos
humanos, entre outros temas transversais, é urgente. Financiamento em
lei para Centros de Convivência: um nó que precisamos desatar em
conjunto e pelo Brasil afora. Centro de Memória e Cultura que reúna
todo o acervo desses anos e consiga transformar nossas experiências
em produções e novas intervenções. Já passou da hora!
Faz escuro, é verdade, e nesses momentos é fácil nos perdermos
na escuridão. Sabemos que é preciso celebrar os encontros, resistir,
afirmar a liberdade, construirmos saídas e avançarmos. E como trouxe

118 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
à luz o tema do 18 de maio de 2019, nossa saída é irmos, juntos, lado
a lado, com as diversas gentes!!
“É preciso anoitecer
Pra chegar o amanhã
Cantarei a liberdade ainda que tam tam”
(Coletivo do Centro de Convivência Barreiro)

Referências

AMARANTE, P.; FREITAS, F.; NABUCO, E.; PANDE, M. N. R. Da


diversidade da loucura à identidade da cultura: o movimento social
cultural no campo da reforma psiquiátrica. Cadernos Brasileiros de Saúde
Mental, v. 4, n. 8, p. 125-132, 2012. Disponível em: https://periodicos.ufsc.
br/index.php/cbsm/article/view/68659. Acesso em: 05 ago. 2021.Cad.
Bras. Saúde Mental, Rio de Janeiro, v.4, n.8, p.4-7, jan./jun. 2012.
OLIVEIRA, Edmar. Nossa Política produz qual estética? In: AMO-
RIM, Giselle; HILBERT, Marise; SILVA, Rosemeire. Cadernos da 2a mos-
tra de Arte Insensata. Belo Horizonte: Prefeitura de Belo Horizonte: 2012.
COLETIVO DO CENTRO DE CONVIVÊNCIA BARREIRO. Não
me calo nem no pranto. Samba-enredo da “Escola de Samba Liberdade
ainda que Tan Tan”. Maio de 2017.

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 119


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
“RESSONÂNCIAS” NA EXISTÊNCIA DO CENTRO
DE CONVIVÊNCIA SÃO PAULO

Marta Soares1
Adriane Rodrigues2

Etimologicamente, a palavra texto quer dizer tecido, e a


palavra linha, um fio de um tecido de linho. Textos são,
contudo, tecidos inacabados: são feitos de linhas (da
corrente) e não são unidos [...] quem escreve tece fios, que
devem ser recolhidos pelo receptor para serem urdidos.
Só assim o texto ganhará significado.
Vilem Flusser

Que nossos fios sejam entrelaçados de afetos.

I
“Não basta existir. É preciso também pertencer”
(Clarice Lispector)

O casamento de uma trabalhadora do Centro de Convivência


São Paulo teve o convite extensivo aos usuários. Organizados os carros
considerando os lugares para os caronas, lá fomos nós. Chegando à igreja,
a expectativa pela entrada da noiva, emoções à flor de todos os tons...
Cerimonialmente segue o rito. À saída, não menos emocionante, lá vinham
os noivos caminhando, agora mais leves, em direção à porta... Sorrisos
iluminados... E de repente algo fora do script. Num piscar de olhos, um corte
fora do contexto... Um salto ligeirinho sem ruídos, dentre os convidados
até o tapete vermelho, para a entrega de flores à noiva. Surpreendente e
cinematográfico modo de reverenciar o amor e expressar gratidão.
Neste mesmo evento, quando a caminho do local da recepção
nenhuma das pessoas no carro sabia o endereço e nenhum dos caro-
1
Terapeuta Ocupacional, Gerente do Centro de Convivência São Paulo.
2
Terapeuta Ocupacional, trabalhadora do Centro de Convivência São Paulo.

120
nas conseguia enxergar o endereço impresso no convite, até que o
autor do ligeiro salto há instantes atrás saca da sua inseparável bolsa
uma... lupa!
Risos... risos... gargalhadas... Pura potência de vida!

II
Direito ao Amor: encontro de poder a felicidade!

O amor de A e J nos levou a inúmeras tentativas para sensibi-


lizar os membros da família de A, grupo que se mantinha apreensivo,
preocupado em relação ao encontro que anunciava o tempo de uma
vida de existência. Foram várias conversas com a referência de A,
a pedido do casal, que solicitou mediação junto à Coordenadoria
Municipal de Direitos Humanos para uma conversa com a família
sobre o direito ao amor. O inusitado pedido, construído em rede,
foi recebido com seriedade e surpresa, que se desdobrou em uma
provocadora e sensível conversa com os envolvidos e interessados.
A presença da mãe e das tias de A atualizou memórias, histórias,
descobertas e diferenças que, ao longo da conversação, foi possível
refutar, desentender, angustiar, ponderar, repensar, conciliar, pactuar,
permitir. Os desdobramentos daquele momento tiveram como con-
sequência os 18 anos de vidas compartilhadas em suas descobertas,
projetos e autonomia.
A e J abriram um negócio próprio a partir da experiência na
marcenaria do CAC São Paulo.
Nesse núcleo de afetos e no compartilhamento do trabalho
no coração de uma comunidade, o Centro de Apoio Comunitário
São Paulo (CAC São Paulo) foi o espaço compartilhado onde se
experimentou a realidade da convivência com diferentes públicos na
existência e circulação da loucura nossa de cada dia, por onde fosse
necessário, ou como o desejo orientava, o fazer junto, o participar,
o discorrer, o convidar, o discordar, o refletir, o festejar, o cuidar, o
viver e os seus desafios.

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 121


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
III
Dias de Luta Antimanicomial

Quão deliciosas as memórias das construções do 18 de Maio, a


bagunça que organizava a liberdade para as experimentações com as
cores, o traço, o corte, o laço, o texto, as surpreendentes composições,
os dizeres e escritos e o pensamento livre para as formulações dos con-
ceitos construídos em roda, a base para as criações nesse espaço-tempo
vivo. E o prazer de ver e sentir a alegria pelo resultado daquele objeto
ou vestimenta que iria ornamentar o encontro com o outro no polí-
tico-cultural ato de pertencer a uma cidade.
O momento das saídas para o desfile no centro da cidade era,
entre todos, o mais tenso: a organização das roupas e adereços, o lanche
para ficar ‘fortim’, o banheiro, o vestir-se, o espelho, o troca-troca e os
retoques... A faixa, os estandartes, a água, o batom...A entrada no ônibus,
o trajeto, a cantoria, a alegria pelo resultado traduzida na intensidade
do brilho no olhar esperançado.
E sabe-se lá porque estávamos sempre atrasados, rs, rs ... E no
caminhar com o samba pelo centro da cidade, lá estávamos juntos e
misturados, belos e altivos na orgulhosa cena da horizontalidade, com
a vestimenta que é a cara de quem a produziu, em luta pelos direitos
de vida e de amor e – por que não? – outros desejos.
Nos fazeres desse cotidiano despretensioso, vimos e assistimos
respostas que revelam simplicidade. Vivências no ineditismo de uma
prática a ser formulada. Um vir a ser que se reinventa com a chegada de
mais um, do retorno de alguém ou de uma nova ideia que se apresenta.
Momentos únicos em cada oportunidade organizada e percebida no
corriqueiro cotidiano, como sugere o nome do jornal mural “Agrados e
Ruindades do CCSP”, produzido na oficina coordenada pela estagiária
de TO/UFMG.
Um quanto de liberdade nos contornos possibilitam a fruição das
criações e soluções. O belo e o feio visíveis ou recolhidos, as dificuldades
e soluções à mostra no real das cenas, combinadas ou espontâneas.Vida
pulsante nas contradições e condições de nossa humanidade corajosa

122 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
ou não, previsível ou surpreendente, matéria que sustenta a criação e
recriação desse lugar que se propõe aberto.

IV
“Sou o que sou”

Alguns meses antes, T aguardava com expectativa o casamento


de sua filha. Logo vem sua preocupação em convidar a gerência do
Centro de Convivência e o monitor referenciado na época. Depois de
alguns contratempos familiares, T traz a informação sobre a decisão de
um dos irmãos de que não estaria permitido a ele acompanhar a filha
até o altar. A cabeça se desorganiza... Foram muitas as tentativas para
amenizar aquela tensão, contemporizar... Não avançamos na empreitada.
Chegado o esperado dia, e minutos antes de chegarmos à igreja,
o encontramos intoxicado a algumas quadras do local da cerimônia...
Providenciamos uma Coca-Cola, sanduíche, água e o nosso estar junto.
Sentamos no bar e ali ficamos conversando e torcendo por uma melhora
e descanso mínimos. Um pequeno grupo de conhecidos (sobrinhos
e amigos) se aproxima e se surpreende ao vê-lo naquela condição de
fragilidade e o acolhem.
Depois de um tempo, ele decide seguir em direção à igreja. Can-
sado, desalinhado e cambaleante, senta-se no meio-fio. Sentamos tam-
bém. Estabeleceu-se então uma conversa que andou em círculos, e assim
ganhávamos tempo. Uma das irmãs ia nos acolhendo, e vice-versa, e desse
modo compartilhava conosco o cálculo: em quanto tempo ou em qual
tempo T daria conta de entrar na igreja sem muito alarde. E ele falando
todo o tempo que precisava ver sua filha. Entramos e nos posicionamos
mais ao fundo. Passou a eternidade por ali... Lançamos mão de repertó-
rios conhecidos e outros contornos tentando algum alívio. Lembranças,
histórias... Uma parte do grupo familiar se mantinha atenta e acolhedora.
O outro conjunto continuava ansioso, irritado, assustado, constrangido…
Ficamos por perto até a saída da noiva para os cumprimentos.
Nesse momento, T estava mais organizado e à vontade junto aos
parentes acolhedores.

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 123


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
O cuidar da realidade do etéreo instante. Aprendizados e apren-
dizes da nossa saúde mental.

V
Luz, brilho, câmera, ação!

E, então, mais que de repente, o cotidiano do Centro de Convi-


vência São Paulo vive uma cena que chama a atenção: um estagiário
postado sobre o galho de uma das frondosas árvores que compõem
nosso jardim no CAC São Paulo se põe a ler, em voz alta, Quincas
Borba, de Machado de Assis.
A cena é gravada e dirigida por um dos frequentadores do ser-
viço. É ele quem aponta para a importância do jovem subir na árvore,
pois estar em um lugar de destaque favorece a gravação do vídeo. O
diretor também cobra do jovem uma leitura com emoção e interpre-
tação do texto.
Iniciada a gravação, a leitura é interrompida diversas vezes para a
substituição de palavras por outras com semelhante sentido. Segundo
o diretor, o texto de Machado de Assis contém palavras que precisam
ser substituídas por outras “mais verdadeiras” e que não carreguem
conotações religiosas ou ideológicas. A cena leve e bonita é engraçada,
num jogo compartilhado de emoções. Ambos, ator e diretor, se diver-
tem, caem na gargalhada por diversas vezes. Reiniciam a cena e sem
perceberem abandonam o livro e passam a prosear sobre o mundo, as
relações, as pessoas, a vida....

VI
Lugar para deixar memórias, inscrições, histórias ou
recortes de um tempo…

O ato de colar cada pedacinho escolhido a dedo, dentro de


um contexto ou não, é um exercício dado à dedicação. Caquinhos
de azulejos bem cortados, destacados, coloridos, na criação de uma
obra que recebeu de seu autor o nome de A Noiva. Um trabalho

124 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
realizado como quem se prepara para o grande encontro com o
amor, tamanho o empenho e a dedicação. Era como se colocasse
para si mesmo o esmero, a paciência, a persistência e o humor.
Atitudes permeadas por memórias compartilhadas na oficina sobre
seus desencontros, descompassos e sofrimento com as mulheres vida
afora. Uma obra que está no acervo do Centro de Convivência São
Paulo, depois de sua morte. As demais produções foram para a UAT
(Unidade de Acolhimento Transitório). O autor/artista se foi num
momento importante de sua produção, não só em relação ao seu
trabalho artístico, mas também no que se refere às suas elaborações,
retificações e ressignificações.
Nesses momentos de trocas, fragmentos da vida aparecem para
ganhar contornos e outros sentidos sobre o papel, na melodia, no arranjo,
numa tela ou no texto, no tecido, os fiapos, dois acordes, vivas cores,
três pincéis, mil caquinhos de azulejos, cola, papel, tesoura...E lá vem
o que convida ao jogo, ao reencontro com o lúdico nas intervenções
comunicacionais, dialógicas e inventivas.

VII
Potência de vida que atravessa ou encurta caminhos
para outras margens…

É importante destacar aqui a atuação da monitora de nível médio,


que ao disponibilizar sua escuta sensível e sua abertura para o novo, foi
possível encontrar saídas para impasses e desafios. Lembramos aqui a
chegada de P em companhia de sua mãe, M. A filha veio encaminhada
de uma UBS (Unidade Básica de Saúde). P e M ou M e P.
Dentre os fazeres ofertados na oficina de artesanato, o bordado
era uma das possibilidades para quem já o fazia ou para aqueles que
imaginavam a familiaridade e a destreza com as agulhas.
Meses depois da chegada do par mãe e filha, aconteceu a abertura
da turma de EJA (Educação de Jovens e Adultos) no CAC.Várias pessoas
mostraram-se interessadas e, desse modo, aconteceram aproximações
junto a leitura, a escrita e os cálculos.

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 125


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
M logo demonstrou interesse, mas não tinha como retornar à tarde
ao Centro de Convivência, o horário das aulas da EJA. A monitora vai
pensar junto com M a possibilidade do bordado e da escrita. E assim,
o alfabeto logo foi tomando forma e ganhando cores pelas mãos de
M. O exercício com as palavras a partir de cada letra inicial, os jogos,
as conversas, juntavam-se ao tecer despretensioso no tempo singular
desse desabrochamento.
P foi se distraindo com outras coisas porque sua mãe estava focada
noutro assunto que não P. E a partir dessa reconfiguração produziu-se
o distanciamento necessário e salutar para cada uma das personagens
em suas distintas trajetórias. M se alfabetizou bordando letras, permi-
tindo cores à vida, chegando à apropriação da leitura para vislumbrar
outros modos de existência e/ou outros caminhos. Salta aos olhos o
seu contentamento ao ver as palavras para o letramento que ela ousou
experimentar. A partir do apontar ou apostar caminhos que podem
transformar realidades, para até sonhar com o que a pessoa não sabia
que podia...
Este lugar onde a arte e o cotidiano permeiam as construções
e elaborações nos dá permissão para querer mais. E a arte que revolu-
cionariamente se faz possível de não ser capturada, a não ser enquanto
provocadora, o que autoriza a possibilidade de simplesmente estar ali e
fazer-se no mundo através da práxis criadora e mantenedora de projetos
de vida mais ampliados.
E consentiram-se outros tantos encontros revigorados por outras
identidades: a madrinha e o compadre, os afilhados e as comadres, nesse
cuidadoso presente, por estamos prenhes de futuro.

126 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
POÉTICAS DAS CONVIVÊNCIAS: O
ACOLHIMENTO DOS MORADORES DE
RESIDÊNCIAS TERAPÊUTICAS NO CENTRO DE
CONVIVÊNCIA

Leila Rodrigues1
Cláudia Vânia da Silva2

A experiência do cotidiano

Os serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico trabalham em


rede e se complementam. Os moradores dos Serviços Residenciais
Terapêuticos (SRT) – “casas inseridas na comunidade destinadas às
pessoas com sofrimento mental, egressas de longas internações em hos-
pitais psiquiátricos onde os usuários recebem o suporte necessário para
reconstrução cotidiana da sua cidadania, buscando que eles se tornem
um habitante efetivo do território/bairro exercendo sua liberdade e
atividade como cidadão” – são frequentadores dos Centros de Con-
vivência. Contrapondo a lógica da exclusão, tão própria do hospício,
a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) possibilita aos moradores de
SRT´s, além de cuidado, a ampliação dos laços, o exercício de cidadania
e pertencimento à cidade.
O quintal, o lápis de cor, a escolarização de jovens e adultos, as
oficinas de arte e artesanato fazem parte das muitas atividades e projetos
ofertados pelos Centros de Convivência. Nesses serviços, os moradores
das SRT´s encontram um lugar da diversidade humana, onde são aco-
lhidos para a vivência de novas relações e experimentações.
Os três fragmentos que seguem falam sobre os biscoitinhos de
palha e as frutinhas do quintal; sobre os restinhos de lápis de cor, as
hortaliças e a terra; as aulas da EJA e sobre o querido professor.
1
Formada em Letras. Monitora do Centro de Convivência Marcus Matraga – Venda Nova.
2
Auxiliar de limpeza do Centro de Convivência Marcus Matraga – Venda Nova.

127
Siga conosco um pouco de um dia qualquer da semana!... O táxi
sai de uma residência terapêutica onde moram Rita e Vitorino. Outro,
de onde mora Amélia. Destino: Centro de Convivência Marcus Matraga.

Mimos e Afetos

Rita é moradora da SRT Incas e é frequente no Centro de


Convivência, onde participa da Escolarização de Jovens e Adultos- EJA
(turma externa da Escola Municipal Professora Ondina Nobre). Tem
uma assiduidade excelente e faz questão de estar presente às aulas. Fica
bastante incomodada e procura se desculpar com o professor quando
precisa faltar, por exemplo, para ir a uma consulta, deixando clara sua
intenção de obter o diploma do ensino fundamental. Seu interesse pelo
estudo é também notório pelo material que traz para as atividades; além
do material fornecido pela Prefeitura, faz questão de incrementar o kit,
adquirindo com seu próprio recurso outros materiais.Valoriza todo o
contexto em que se encontra, valorização essa que demonstra desde o
respeito para com todos os presentes no Centro de Convivência, no trato
com o professor, bem como os trabalhadores, para os quais, não raras
vezes, como forma de reconhecimento e agradecimento, leva um mimo:
chaveiro, caixa de cotonetes, balas e desenhos diversos. Além da EJA,
Rita é frequente no serviço, participando de outras oficinas, ampliando
os laços de afetos e disposta a aprender novas habilidades. Autônoma, é
sempre muito cuidadosa com os demais moradores das SRTs.
Numa manhã ela nos surpreende ao chegar no serviço de táxi,
acompanhada por outros dois moradores e sem a supervisão de um
estagiário. Algo que nos faz acreditar que apostas como estas, do lugar da
autonomia desses sujeitos, são possíveis, necessárias e têm sido possibilitadas
pelo despertar de novos desejos e por uma rede tecida por diversas mãos.

O desabrochar da essência

Vitorino também é morador da SRT Incas. Logo que começou


a vir ao Centro de Convivência chegava arredio, permanecia de cóco-

128 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
ras em um canto da varanda com uma garrafa de água e uma caneca.
Não gostava de interagir. Esses gestos nos remetem aos manicômios e
hospitais psiquiátricos, realidade de tempos sombrios vividos por ele.
Em uma das tentativas de trazê-lo para o grupo, descobrimos o
seu gosto pela horta. Então ele começa a participar das atividades que
lhe são ofertadas.Vitorino passa a chegar todo equipado: macacão de
jardineiro, botas e ferramentas para “trabalhar” no quintal. Ele passa a
manhã ajudando no cuidado com a terra. Um bom tempo depois passou
a sentar na mesa da oficina e pede lápis, papel, faz desenhos, colore, exibe
sua arte, gosta dos elogios. Leva seus trabalhos para mostrar na residência
e nem sempre entende que os outros materiais precisam ficar. O jeito
é separar alguns lápis para presenteá-lo ao fim da atividade. Vitorino
agora interage bem com os usuários, faz suas rimas, conta causos, canta
e nos encanta em cada encontro no Centro de Convivência.

Biscoitinho de palha

Amélia mora na SRT São João Batista. Chegava ao Centro de


Convivência arredia, não suportava o toque, não queria conversar. Ela
é brava. Minutos depois quer ir embora. O estagiário que a acompanha
media e oferece opções, mas Amélia não quer pintura, desenho, música;
não quer nada. Já passeou e quer voltar para casa.
Amélia volta ao serviço e o estagiário a convida para conhecer
o quintal e ela descobre que lá tem frutinhas. Ela gosta das frutinhas,
só não gosta de manga. “Manga suja...”.
Passa-se um tempo… Amélia agora já chega mais tranquila. Con-
versa, sorri, pede para descer para o quintal para pegar alguma fruta,
mas logo quer ir embora. Um dia, Amélia fica um pouco mais. Ela se
encanta e se distrai com o trator que trabalha numa obra aos fundos.
É hora do intervalo das oficinas, momento do encontro, ouvir música
mais alta, dançar. E hoje tem café e biscoitinhos doados por um usuário.
Amélia se integra, está mais solta.
Na visita seguinte, ela já chega perguntando:“hoje tem biscoitinho
de palha”? Biscoitinho de palha? Ela fica brava:“É aquele quadradinho”.

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 129


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
Depois de algumas sugestões, descobre-se que se trata do biscoito wafer.
Não tinha. Não é todo dia que temos lanche com biscoito. Agora, todas
as quintas-feiras nos esforçamos para ter biscoitinho de palha. E ficamos
sabendo que Amélia espera ansiosa a estagiária no portão de casa para
vir ao Centro de Convivência. Na espera do intervalo das oficinas
ela se distrai, agora com mais leveza e sorriso no rosto. Já tem amigos,
gosta mais de uns que de outros, conversa, brinca e até se arrisca, vez
ou outra, a dançar. Dança pertinho da nossa “anja” do projeto “Eu, o
rei e as estrelas”... Mas isso já é outro assunto.

Nota dos autores

Rita, Vitorino e Amélia são nomes fictícios de moradores das


Residências Terapêuticas-SRT´s do território de Venda Nova

Agradecimentos

Agradecemos à Luciana Rodrigues de Almeida (Assistente Social.


Referência Técnica de Saúde Mental da regional Venda Nova. Ex-mo-
nitora do Centro de Convivência Marcus Matraga/Venda Nova);Tatá
Santana (Ator, músico, arte- educador. Monitor dos Centros de Con-
vivência Marcus Matraga/ Venda Nova e Rosimeire Silva/ Norte) e
Ronaldo José Miranda (Professor da Escolarização de Jovens e Adultos
no Centro de Convivência Marcus Matraga/Venda Nova/Escola Muni-
cipal Ondina Nobre) pelas preciosas contribuições na revisão do texto.

Referência

MARAZZI, Luciane. O destino do homem é a liberdade. Jor-


nal do Conselho Municipal de Saúde de Belo Horizonte, ano 11,
dezembro/2012.

130 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
TREINANDO PARA SER DOIDA

Leida Uematu1

Estamos eu, vários usuários e oficineiros, em volta de uma


mesa muito grande, onde acontecia a oficina de bordado,
de que tanto gosto. Daí, um usuário comenta que a vizinha
do Centro de Convivência disse pra ele que quem entra aqui
é tudo doido. Em seguida, uma usuária me pergunta: “você
também é doida?”
Eu respondo: “tô treinando!”

A Saúde Mental tornou-se tema e luta cotidiana em minha exis-


tência através da necessidade do cuidado para com minha irmã que é
usuária dos Serviços de atenção à Saúde Mental em Belo Horizonte
– Minas Gerais.
Em meados dos anos 2000, fui me aproximando dos serviços
oferecidos gratuitamente no Sistema Único de Saúde - SUS, bem
como das reuniões entre os familiares dos usuários da rede, dos fóruns,
conferências e eventos próprios à reivindicação por um tratamento
humanizado e contra os manicômios.
Hoje, sou militante e apoiadora da luta antimanicomial e dos
Centros de Convivência, principalmente do antigo Centro de Con-
vivência Venda Nova, renomeado atualmente como Centro de Con-
vivência Marcus Matraga. Percebi que esses Centros têm a importante
função de preparar o usuário para reinseri-lo à sociedade, seja através
das atividades, do trabalho ou, simplesmente, fazê-lo circular mais
pela cidade.
Em todo este tempo, presenciei situações que me atravessaram.
Convido-lhe a recordar algumas delas comigo através deste relato.

1
Familiar, militante da luta antimanicomial.

131
Oficina de falar e ouvir

Esse encontro foi antes da pandemia. Abro o portão do Centro


de Convivência, vou descendo a rampa e vendo as várias oficinas que
acontecem. Naquela tarde havia ali, inclusive, a oficina de não fazer oficina.
Participo, sempre que me sobra um tempo, da oficina de Bordado. No
intervalo, uma usuária senta-se ao meu lado e começamos a conversar.
Perguntei como ela estava. Ela disse que não muito bem e que na oficina
de música, aquele dia, não queria voltar, estava muito barulho. Eu disse:
“fica comigo aqui então?!” Ela tentou bordar, mas não conseguiu:“Não
quero! Não é isso também que eu quero. Eu não tô bem, tô triste...
quero falar!”. “Então vamos fazer a “oficina de falar e ouvir”, respondi a
ela. Coloquei em seguida as minhas coisas de bordado sobre a mesa e
perguntei se ela queria um abraço. Respondeu que sim e demos um
forte abraço. Ela começou a falar da falta da filha que havia falecido e,
por isso, ela estava sem lugar. Bateu muito forte a saudade. Conversamos
bastante. Na verdade, foi ela quem mais falou. Acabou o intervalo e
continuamos na nossa oficina de falar e ouvir. Mais uma vez, o meu bor-
dado não foi para frente. Em compensação, a minha tarde foi marcante,
maravilhosa! Ela saiu grata por ter falado e por ter sido ouvida. E eu
comecei a descobrir o valor dos pequenos e singelos gestos.

Um senhor muito gentil

Estou no Marcus Matraga. Ouço o barulho do portão abrir e lá


vem P.V. com seu saco de coisas de reciclagem que, em geral, ele deixa
pelo caminho. Ele desce a rampa e olha para o quadro onde estão os
nomes dos aniversariantes do mês. Vê se tem algum dos descritos ali
presente, encontra e cumprimenta de forma entusiasmada: “Parabéns!
Hoje é o dia dela!”. Eu só o observo. Ele é um senhor muito gentil e
atencioso, me cumprimenta beijando as costas da minha mão. Frequenta
a oficina de não fazer oficina (Ah! Tem essa oficina também!): Fica no
fumódromo, às vezes arranja confusão... Quando conversamos, ele vai
me contando os casos da vida dele. Falando sobre sua família e sobre

132 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
onde já trabalhou. Lembra o nome dos meus parentes e pergunta por
eles. Mesmo parecendo não fazer nada, nenhuma atividade organizada,
a presença dele no espaço é muito importante. Ele puxa conversa com
todos, fala das últimas notícias do futebol e da política e assim vai
fazendo a palavra circular, dando e tendo notícias sobre as pessoas que
frequentam o lugar.

Atravessar o Atlântico: o Convite à Bolonha

A Itália tem grandes nomes na defesa da luta antimanicomial, como


por exemplo o psiquiatra veneziano Franco Basaglia, que revolucionou
o tratamento com os portadores de transtornos mentais. Em 2015, eu
e minha irmã fomos convidadas pela Universidade Federal de Minas
Gerais para conhecer Associações de Familiares de usuários da cidade
de Bolonha e o modelo dos serviços de saúde mental europeu. Fiquei
impactada com as soluções comunitárias que as famílias dos usuários,
os próprios e a comunidade do entorno criavam para que o vínculo
entre os centros de cuidado para usuários da saúde mental e a sociedade
se tornasse cada vez mais sólido e eficaz no cuidado e na reinserção
social desses cidadãos, como por exemplo reunir-se em coletivos para
realizar atividades físicas, de lazer e de convívio.
Me senti inspirada a criar um projeto em Belo Horizonte, onde a
sociedade fosse convidada a conhecer por dentro os nossos Centros de
Convivência e Centros de Referência em Saúde Mental – CERSAM’s.
Identifiquei um grupo de possíveis colaboradores que, até então, não
tinham ligação direta com o tema, para conhecer a rede de serviço de
saúde mental de Belo Horizonte e colaborar no desenvolvimento deste
projeto.Veio então a ideia de promover uma Festa de Aniversário mensal
no Centro de Convivência Marcus Matraga, com o intuito de celebrarmos
a vida dos usuários. Unidas na concretização deste projeto, vieram as
colaboradoras Ana Maria, Adriana,Teresa, Denise,Valéria, Denise Cruz,
Leandro, Adelmar, Maria Helena, Mônica, Sebastiana, Elisângela, Eustá-
quio, Efigênia, Roselene e Marley. Todo mês, um desses colaboradores
ajudam na organização e participam da festança.

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 133


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
Aprendendo a dançar

Ai, Festa de Aniversário! Por longos anos (acho que foram cinco),
sem interrupção, comemoramos os aniversariantes do mês no Marcus
Matraga com muita comida gostosa, sucos, refrigerantes, doces, bolo,
enfeites e até presente para os usuários. Ah, tinha música também: um
amigo e sua banda cover dos Beatles, um cantor, seleção de variadas
músicas escolhida pelos homenageados guardadas num pendrive ou na
memória, cantada ao vivo, em microfone aberto. Quem quiser, vai lá e
canta, recita, se expressa... E onde tem música, tem dança!
Eu, “dura que só” para dançar, fui chamada para o baile. Dancei
com um dos usuários, mas morri de vergonha. Nós dois ríamos muito
enquanto dançávamos. Ele sabia dançar, era muito bom, mas eu, muito dura.
Foi um alívio não pisar no seu pé! Eu dizia pra ele: “não desista de mim,
não!’’. Simpático, em todas as festas me chamava para dançar.Acho que ele
queria me ensinar a quebrar a dureza. Acredito, hoje, que ele conseguiu.

Bloco “maluco beleza” nas ruas de Venda Nova

É Carnaval! Vamos para as oficinas do Centro de Convivência


preparar nossas fantasias. Cada um faz a sua. Depois, saímos às ruas do
entorno, caminhamos até uma pracinha e lá ficamos curtindo, dançando
e cantando, sendo observados pela comunidade, que se encanta com
tanta beleza e liberdade. Todos enfeitados e “lá vamos nós!” Nesse dia, a
criançada, filhos e filhas dos usuários festejam conosco o Carnaval. Ao
retornar para o Centro de Convivência, saboreamos um lanche e um
sorvete gostoso que Roselene, uma das colaboradoras, nos trouxe. Foi a
primeira vez que brinquei de Carnaval pelas ruas, numa praça. Só mesmo
o povo da saúde mental para me dar essa liberdade de viver coisas inéditas.

Escola de samba: debutando na avenida

O desfile da escola de samba Liberdade Ainda que Tam Tam será no


18 de maio, no Centro de Belo Horizonte. As oficinas dos Centros de

134 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
Convivência ficam repletas desde o início do ano até o dia do desfile,
pois conta com o envolvimento de todos: usuários, oficineiros, gerente,
trabalhadores e familiares. Chegam universitários e gente da comunidade
também. Muita alegria, muitas cores, muitas ideias, discussões e politi-
zação. É o momento mais concreto na defesa da reforma psiquiátrica.
Esta é a primeira vez que eu desfilo numa escola de samba. E
foi na escola de samba da saúde mental que debutei na avenida. Estar
envolvida neste movimento nos faz experimentar cada coisa! Faz a
gente viver! Viva o 18 de Maio! Viva a LUTA ANTIMANICOMIAL!

Trabalho e saúde mental

Chego ao Centro de Convivência, passo por dentro da casa,


desço as escadas e dou de cara com quatro usuários diante da tela
do computador. Lá, eles estavam no telecentro, fazendo um curso de
formação do Senac, que é vinculado ao projeto de trabalho oferecido
para os usuários dos Centros de Convivência. Durante uma semana
a formação do Senac está sendo virtual, por causa da pandemia; na
outra semana é na empresa em que trabalham. Sim, usuários da Saúde
Mental trabalham em empregos formais. E como é importante esse
trabalho! Converso com os usuários e eles falam dos seus projetos de
vida. Estão esperando chegar as suas férias para cuidar dos dentes, fazer
algum curso, alguma obra na casa com seus salários. Como eles têm
orgulho deles mesmos!
É “facinho” virar fã.
Estou na parte de baixo da casa, onde funciona o Centro de
Convivência, e ouço a música vindo do andar de cima. É o Trem Tan
Tan ensaiando! Sorte a minha de ter vindo hoje, no dia do ensaio!
Esse Trem tem vários vagões diferentes. Cada vagão tem o seu jeito,
a sua voz, o seu dom. Cada um com sua peculiaridade. Um deles é o
vagão feminino: R.F.P, mulher vaidosa que se enfeita muito para suas
apresentações e ensina a fazer uma receita de vaca atolada na música
que canta. Ela é diva! A primeira vez que assisti o Trem Tan Tan foi no
encerramento de um seminário na Faculdade de Medicina da UFMG.

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 135


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
Eles contagiaram o lugar e as pessoas com uma alegria radiante. Ali
eles ganharam uma fã.

Atletas avulsos

Chegou setembro e, com ele, os Jogos da Primavera. Está na


hora de irmos para o Centro de Convivência Carlos Prates. Quem vai
competir hoje? Sou a motorista, a torcedora, a paparazzi dos atletas.
Fico circulando para conseguir ver todos disputando suas modali-
dades. E aquela fila? É para pegar o lanche gostoso que os trabalha-
dores prepararam para todos. Pergunto se precisam de ajuda. Minha
ajuda é aceita. Mais uma atribuição. Voltamos para Venda Nova com
medalhas, sem medalhas, com muito assunto para comentar sobre as
competições, risos e muita alegria. A final do futebol será no Cen-
tro de Convivência São Paulo. Lá vamos nós, como atletas avulsos,
querendo participar da competição. E participam, revezando com
outros jogadores. Pode isso, Arnaldo? Pode. O importante é incluir,
é viver e dividir a alegria da vida.

Um artista à mesa

Em um final de tarde, quase no horário de fechar o Centro de


Convivência, estou ajudando a organizar e guardar os materiais. Sentado
à mesa, está um jovem rabiscando um papel. Me aproximo dele e vejo
sua obra: um olho. Lindo! Ele pergunta: “Quer pra você?”. Não tive
dúvidas. Claro! Guardo até hoje esse desenho. Esse jovem, que chegou
ao Centro de Convivência com uma depressão grave, ficou lá pouco
tempo, melhorou muito e hoje é um artista, estudante de Artes Visuais
na Escola Guignard.

Outras vidas, outros seres

“Oi! Você já viu as minhas Galinhas?”, S.F. me pergunta. “Ah,


tá com galinhas aí?”, respondo. Debruço sobre a mureta e olho lá

136 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
para baixo no quintal e vejo as galinhas passeando. “Eu vou trazer
milho, hoje já joguei milho lá para elas. Elas estão botando ovos.”
“Que legal! Você gosta de cuidar da criação?”, eu disse. “Gosto”,
ele responde, enquanto vejo os gatos circulando pelo espaço. Aqui
tem outras vidas, outros seres que ajudam a cuidar de quem não está
muito bem. Não é raro ver alguém acariciando os gatos, com eles
no colo ou roçando as nossas pernas debaixo da mesa. Lembro de
Nise da Silveira.

Pensando em mim

“Estou fazendo esses vasos com suculentas. Quer comprar?” –


E.J. me pergunta. “Que legal! Quero, sim. Faz um para mim. Confio
no seu bom gosto”. Recebi as fotos dos arranjos no Whatsapp:“Nossa!
Todos são lindos! Vou decidir aí na hora de pegar.” Cheguei ao Centro
de Convivência, mas não consegui decidir.“Leida, E. falou que fez esse
aqui pensando em você”– disse uma das trabalhadoras. “Pronto! Tá
decidido, é esse então!”.Vasos com suculentas é coisa recente, porque
E. adora jardinagem. É o Centro de Convivência inventando moda,
criando novas possibilidades.
Lembrar e relatar essas experiências me conforta, me dá alento.
Tem um tempinho que não consigo ir ao Centro de Convivência,
envolvida que estou com as diversas reuniões para a defesa da Rede de
Atenção Psicossocial e dos CERSAM’s2. Lutar contra esses ataques e o
lado podre do ser humano é triste, mas vendo que não estou sozinha,
me dá força para continuar. Também me confirma a importância do
Centro de Convivência para as pessoas com sofrimento mental.

2
O Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais – CRMMG, a partir de uma vistoria nos Centros
de Referência em Saúde Mental - CERSAM’s, em 2020, fez um relatório para a Secretaria Municipal
de Saúde onde identificou irregularidades. Uma delas se refere à ausência do psiquiatra à noite e finais
de semana na escala dos CERSAM’s. Essa dita irregularidade está em total desacordo com o trabalho das
equipes de saúde mental nos CERSAM‘s e com a atual Política de Saúde Mental da cidade, pois o SUP
(Serviço de Urgência Psiquiátrica) é o serviço responsável pela retaguarda psiquiátrica dos CERSAM à
noite e aos finais de semana.

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 137


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
IRIRI - IR, SENTIR, RIR, ALÉM MAR

Maria Betânia de Lima Guimarães1

A vivência de gerenciar um Centro de Convivência na RAPS


(Rede de Atenção Psicossocial) de Belo Horizonte nos coloca frente a
inúmeros movimentos e desafios do cuidar em liberdade, do trabalhar
no campo da saúde, com ações para além do campo sanitário propria-
mente dito, de efeitos terapêuticos notórios, como o relato a seguir.
Ao encontro da cidadania, da inserção social, do tratar em liber-
dade, em nome da convivência, das trocas sociais, da circulação e da
apropriação de velhos e novos espaços, no dia a dia dos Centros de
Convivência, muitos dos desejos e sonhos despertados se materializam.
E foi assim que nasceu a proposta de uma viagem para a praia. Para
a maioria, a primeira oportunidade de conhecer o mar, de sair do Estado
de Minas Gerais, a primeira saída longa sem a família ou a primeira
oportunidade de viajar com familiares; enfim, a primeira grande e bela
experiência de um coletivo de usuários, familiares e trabalhadores do
então Centro de Convivência Providência, atualmente, Rosimeire Silva.
Foram longos meses de preparação para esta iniciativa que foi
construída cuidadosamente a muitas mãos. Onde ir? Quem vai? Quando?
Como? Qual a viabilidade desta proposta? Onde e como buscar recur-
sos? Assembleias com familiares, usuários, reuniões de equipe, contato
com as referências de tratamento de cada um, conversas um a um e, ao
mesmo tempo, com todos os que iriam e o cuidado com os que não
poderiam ir. A lista dos combinados só crescia, para que pudesse nortear
nossos passos. O que não esquecer de colocar na bagagem, reserva de
hotel, roteiro de passeios, definição de cardápios, lanches para a estrada,
e construção dos critérios de quem tinha condições naquele momento
de ir nesta viagem, ou de quem precisaria do acompanhamento de
algum familiar. Enfim chegou a data tão esperada e planejada: dia 06
1
Terapeuta Ocupacional, Gerente do Centro de Convivência Rosimeire Silva, até setembro de 2021.

138
de novembro de 2014... 1ª viagem à praia dos participantes do Centro
de Convivência Rosimeire Silva – na época ainda Centro de Convi-
vência Providência.
Invadida pela responsabilidade, pela emoção, pela ansiedade e
pela chuva que caía incessantemente nesse dia, foi impossível conter
as lágrimas ao se aproximar a hora do embarque. Era noite e a chuva
fina não dava sinal de trégua, o que apertava ainda mais o coração, que
já se encontrava descompassado. De casa ao Centro de Convivência,
pensava em uma noite inteira de viagem de ônibus, com chuva, o que
aconteceria longe de um terreno conhecido, sem o apoio da rede local
no caso de emergências. Enfim, me sentindo responsável por essa que
me parecia, naquele momento, uma aventura e tendo de encarar um
desafio por nós construído.
Bastou chegar ao Centro de Convivência para que as providências
tivessem que ser tomadas e para que as lágrimas e a ansiedade dessem
lugar ao sorriso, à determinação, às palavras de otimismo, e que me
deixasse contagiar pelo entusiasmo de tantos que ali já me esperavam.
Ao me ver rodeada pelo alarido de dezenas de usuários que faziam dez
perguntas ao mesmo tempo, num misto de euforia, medo e expectati-
vas, junto a igual ansiedade dos familiares e profissionais que também
se lançavam nesta experiência pela primeira vez, só havia espaço para
assumir de maneira decidida o compromisso com todos ali assumido.
Naquele dia cuidamos – desde o jantar de antes da viagem, preparado
carinhosamente por vários da equipe –, até a checagem e identificação
da medicação de cada um, a autorização dos familiares, os documentos,
as etiquetas das bagagens, e repactuar as combinações. Era hora de sair,
e bastou sinalizar para que começasse a grande correria para entrar no
ônibus. Bagagens, caixas de refrigerante, água, sucos, biscoitos, salgados,
sanduíches, jogos, violão, pandeiro, caixa de som e muitos, muitos sonhos.
Já dentro do ônibus, hora de rezar juntos, pedir as bênçãos para
uma boa viagem, chamada dos presentes, procedimento que se repetiu
várias vezes, e sempre repactuar os combinados. Tudo era novidade: o
ônibus grande, com banheiro, televisão, as duplas formadas na poltrona
e as paradas na estrada, tão esperadas como a própria praia. A mesma

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 139


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
correria da entrada no ônibus se repetia na saída: parecia uma festa;
todos acordavam e queriam descer, ir ao banheiro e especialmente se
deliciarem com os lanches que levamos. As empadas preparadas pelos
usuários da Suricato (Associação de Trabalho e Produção Solidária)
ficaram na memória. Como esquecer aquela iguaria que nos acompa-
nhou na ida, na estadia e no retorno daquele passeio que sempre teve
gosto de “quero mais”?
Ao amanhecer, antes mesmo de chegar ao destino final, à cidade
de Iriri, de dentro do ônibus a primeira visão do mar. Faltaram espaços
nas janelas, faltou fôlego e sobraram suspiros e gritos que interrompe-
ram o silêncio que pairou na madrugada.Ver a imensidão e a beleza do
mar, que parecia nos ver passar, foi um encontro que fez descortinar
e compartilhar os mais belos sentimentos de gratidão e de felicidade.
No centro de Iriri o dono do hotel já nos esperava, indicando o
caminho do Coqueiros Praia Hotel. Além do mar, que já nos acolhia
com boas-vindas, ali estavam, na porta do hotel, também a nos esperar,
os funcionários, que integravam uma mesma família, fazendo uma
recepção calorosa e muito carinhosa.
A divisão dos apartamentos, já planejada com antecedência, colo-
cava cada um de nós trabalhadores em um apartamento com dois ou
três usuários, e rapidamente nos alojamos. As varandas de alguns apar-
tamentos davam para o mar. Foi quando vi a mãe de um usuário, de
joelhos, braços abertos e em lágrimas fazer seu agradecimento a Deus.
Logo depois outra se manifesta: “já posso morrer, pois morrerei feliz
porque realizei o maior sonho da minha vida”. Frases que parecem
banais, mas que testemunhei o sentido que faziam na vida dessas pessoas.
Bagagens guardadas, a troca de roupas de viagem por roupas de
banho e rapidamente todos no restaurante para tomar café. No prato
de sobremesa, que mal equilibravam nas mãos, não cabia a quantidade
de bolos, pães, presunto, queijo, manteiga, biscoitos, frutas, tudo mis-
turado, tudo a que se tinha direito. Com certeza nunca haviam tido
acesso a um café assim. Os funcionários do hotel, ao mesmo tempo que
se mostravam surpresos, eram muito amáveis, risonhos, e se divertiam
com a nossa diversão.

140 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
Após o café, o momento mais esperado da viagem. Ali não era
apenas o sonho de mineiros diante do mar; muito além disso, era a
trégua no sofrimento, nas dores, nas vozes, nos delírios, na depressão,
no cansaço da vida, que trazia no balanço das águas o aconchego que
adentrava corpo e alma.
Caminhamos na praia e, quando me dei conta, a maioria já estava
dentro d’água. De mãos dadas, seguravam uns nos outros, fazendo
uma corrente humana na beira do mar, capaz de barrar qualquer mal,
qualquer dor ou qualquer medo que surgisse. Sorrisos por toda parte,
alguns sentindo tonteira, provando a água salgada, afundando na areia,
tomando alguns tombos. Eram sinais de liberdade e da felicidade que
transbordava. Uns com trajes de banho, outros com roupas comuns,
peças íntimas, bota, chapéu e até sombrinha. Era a hora de desfrutar
das diferentes sensações trazidas pelo mar, pela areia e solidariamente,
experimentar a deliciosa sensação de liberdade.
Liberdade experimentada por aqueles que, em nome da razão e/
ou do sofrimento, muitas das vezes a tiveram cerceada.
Na areia, alguns jogavam frescobol, outros peteca, alguns passeavam
no calçadão, outros admiravam a beleza do mar, outros cantavam, outros
construíam castelos, se enterravam na areia. Mas o que era comum a
todos era o sentimento de pertencimento.Tínhamos ali ao nosso dispor
o mar, a areia, a praia, a alegria e o tempo. Tempo que, de tão valioso,
não fazia diferença ter sol ou ter chuva, fazer frio ou calor; apenas ter
tempo para ali estar.
Os familiares que conosco viajaram eram aqueles que sempre
estiveram mais próximos do Centro de Convivência, mães que acompa-
nhavam seus filhos que possuíam pouca autonomia. E ali revelavam, tanto
quanto ou mais que seus filhos, viver pela primeira vez esse turbilhão
de emoções trazidas não só pela viagem ou pelo encontro com o mar,
mas por experimentar viver com liberdade. Foi emocionante ver uma
senhora, que há poucos minutos tinha entrado pela primeira vez no
mar, ir buscar uma outra que resistia por estar com roupa longa, meias
e sapatos, e por não saber que poderia se permitir viver esta aventura.
As duas vieram de mãos dadas – a que já se sentia mais experiente

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 141


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
acalmando a outra, que estava com um medo visível, e as duas entrando
juntas no mar. Tanto o semblante da alegria de uma como o pavor da
outra transpareciam o prazer e felicidade vivenciados.Todos nós fomos
para perto apoiá-las, e vem o grito de uma, que batia a mão no mar,
falando repetidamente: “Nós semos milionários”. Grito ao qual fizemos
coro, também batendo as palmas das mãos na água, respingando nossa
alegria por todos os lados: “nós semos milionários, nós semos milionários...”.
A equipe do Centro de Convivência foi fundamental na proposi-
ção de atividades, brincadeiras, compartilhamento das responsabilidades,
no entusiasmo e na cumplicidade ao viver uma experiência ímpar
e muito gratificante para todos, que muito ultrapassou a dimensão
de trabalho.
Nas refeições, os pratos montanhosos se repetiam duas, três e até
quatro vezes, exigindo uma caminhada depois, para digestão. Nesses
passeios, novos planos e sonhos surgiam: quem sabe montar um Centro
de Convivência em Iriri, ou pelo menos passar só quarenta dias por
ano ali? E começaram a procurar lotes e imóveis...
A tranquilidade e a proximidade me permitiam escutá-los e
percebê-los de forma bem diferente da correria do dia a dia. E como
foi precioso me sentir ali totalmente entregue de corpo e alma! O que
ouvi e aprendi nesses dias sobre companheirismo, respeito, humildade,
simplicidade, aceitação das diferenças, tolerância e convivência valeu
mais do que muitos anos de trabalho na saúde mental. Os papos sobre
exército, animais, doença, família, tratamentos, quase sempre acabavam
em gargalhadas.
A preocupação cada vez mais dava lugar à confiança e à certeza
de que valeu cada segundo vivido de ansiedade e nervosismo.
As mães, sempre nos surpreendendo. Ouvi de uma: “Minha
filha sempre me fala que é preciso ter descanso, e eu lhe respondo
que isso é ilusão, não existe nesta vida, apenas na outra. Mas, pela
primeira vez, percebo que esta palavra existe de verdade; o que estou
sentindo só pode ser descanso, e vou falar para o meu marido, que
também não conhece”.

142 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
O segundo dia de viagem, assim como o primeiro, nos reservava
mais chuva, mas o tempo das descobertas, passeios, diversão, convivência
e alegrias predominava. Conhecer cidades e praias vizinhas de Iriri, o
Projeto Tamar – de reabilitação das tartarugas –, e mais banhos de mar
com mais destreza, confiança e curtição. Não faltaram rodas de viola,
banhos de piscina, compras de artesanato e o pedido incessante de que
a viagem pudesse se estender mais.
Mas o ar da despedida se aproximava e, na piscina, a fila para tirar
a foto de recordação com a boia em formato de baleia, com direito
a beijos e abraços. Após o jantar, todos de malas prontas, longe da
apreensão e agitação da vinda, entraram calmamente no ônibus, num
clima de muitas gargalhadas, casos, piadas, brincadeiras e cantoria, e na
bagagem de volta, no lugar dos sonhos a gratidão e os efeitos de dias
inesquecíveis junto às garrafas de água salgada, conchas e presentes
para quem não foi.
E claro que uma experiência tão incrível como esta, que foi e
continua sendo fonte de inspiração contínua, de mais sonhos e curio-
sidade em quem não foi, fez acontecer após dois anos mais uma nova
viagem ao mesmo lugar. Desta vez com mais tranquilidade, mas com as
mesmas grandes emoções, que para mim se traduzem de forma muito
especial na ciranda que fizemos durante mais de duas horas no mar,
mais uma vez tendo o tempo a nosso favor. Ainda hoje, na fala de um
usuário, o que mais lhe marcou nas viagens:“você me chamou pra roda
e me pediu pra cantar uma música”.
Esta fala me faz pensar o Centro de Convivência, bem como o
porquê das viagens e de tantas outras atividades ali realizadas, como
um lugar, uma oportunidade de chamar o sujeito “pra roda” e pro-
mover o seu protagonismo. Ora no centro, ora no círculo, ora fora,
respeitando sua liberdade, de mãos dadas ou não, cada um procurando
cantar sua música, no seu tom, do seu jeito, como e com quem esco-
lher. Um dispositivo que integra a rede de saúde mental, podendo
ser incluído no projeto terapêutico, com potentes recursos e efeitos.
Como uma ciranda, oportunizando trocas, experiências, brincadei-
ras, alegrias, convívio, autoestima, interação, simbologias, resgates e

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 143


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
o exercício do corpo, da memória, da criatividade, através de meios
da arte e da cultura.
Segundo outro usuário,“aqui me faz ter certeza de que estou no
rumo certo para conseguir o que mais quero: ser feliz”.

144 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
CORDEL DOS 25

Coletivo Centro de Convivência Nise da Silveira1

Parte de um projeto importante Nesse lugar tenho bagagem


Antimanicomial De muitos aprendizados:
Serviçal da rede pública Oficina de cerâmica
De saúde mental De desenho e pintura
Centro de Convivência é orgulho Aprendiz de jardinagem
Para a nossa capital. E também tapeçaria
São 9 Centros de Convivência Tudo isso me movia
Um em cada regional Com muita alegria
Todos juntos importantes
Para a nossa capital Me tornei um militante
Hoje eu falo só de um Antimanicomial
Que é muito especial. Realmente um ativista
Da inclusão social
1996 foi um ano memorável Gratidão retorno hoje
Pois nasceu lá na Pampulha A todo esse pessoal
Um lugar iluminado Pra vocação realizada
Centro de Convivência São Francisco Felicidade é fatal
Foi o seu primeiro nome
Foi me confiada
Peço licença pra dizer Logo na minha chegada
Com muita propriedade Coordenar uma oficina
Fui o primeiro usuário Que não estava montada
Nesse lugar ensolarado
Aceitei o desafio
Apostei na liberdade
Comecei a empreitada
Aqui fiz a minha estória
Empreendi monitoria
Falo com muito prazer
O meu nome é Paulo Reis Na área de marcenaria
1
Produção: Paulo dos Reis Braga,Wagri da Silva Constantino, Silvia Maria Soares Ferreira, Stael de Mello,
Wilma dos Santos Ribeiro (Gerente, até novembro de 2021/ Terapeuta Ocupacional), José Álvaro Pereira
da Silva (Professor do Ensino Fundamental – EJA). Idealização/Organização/Criação: Helvécio Viana
Couto (Bacharel em Música)

145
Agora eu anuncio Na virada do milênio
Quem “comanda” essa casa Novidade veio a mil
Com respeito e reverência Centro de Convivência Pampulha
Competência e consciência Foi o seu segundo nome
Apresento a vocês Na avenida Portugal
Wilma dos Santos Ribeiro A gente se estabeleceu
Quando fala em gerência Veio a música e o teatro
Ela é nossa referência Até a EJA aconteceu

Tô aqui desde o começo Hoje em dia o seu nome


Tenho muito pra contar Virou Nise da Silveira
Nesse espaço especial Homenagem à pioneira
Onde vim a trabalhar Antimanicomial
Muita alegria sinto Nise foi muito guerreira
Com o pessoal desse lugar Combatente imortal
Oficinas e passeios Fez da arte uma arma
Eventos de convivência Para a saúde mental

Esquecer não posso não O Centro de Convivência


De projetos premiados: Faz da arte e artesanato
“Diálogo com a Cidade”; A sua matéria prima
Educarte e São Doidão Invenção desse lugar
Muita coisa aqui é cria Por isso a minha gratidão
Que nasceu no coração Ao artista e artesão
Da loucura fez-se vida E a todo trabalhador
Donde brota a união Nesse espaço de inclusão

No teatro vi histórias Agora passo a palavra


Nos palcos da capital Préssa gente maravilha
Foi o “Grupo Sem Pressão” Cada um que se apresente
Que brilhou com emoção Deixe aqui o seu recado
Agora o “Metamorfose” Fale com seu coração
Com riqueza e performance Para o aniversariante
Inspirado em Boal Nessas bodas de prata
É a nova sensação Sua palavra vale ouro

146 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
Sou Wagri Constantino Na oficina de pintura
Eu também peço licença Eu profissional me fiz
Benção ao “meu padrinho” De aquarela à acrílica
O Centro de Convivência Muito estilo aprendi
Aqui eu cheguei mirrado, Eu fiz muita exposição
Tacanho e minguado Tudo foi de coração
Fui tratado com paciência A toada dessa arte
De vela de 7 dias Deu até um ganha pão

Os espelhos dessa casa Era Oscar de velha luta


Já viram o Gonzaguinha No caminho a me intervir
Cujo pai é o Gonzagão De casa à faculdade
Famoso Rei do Baião Tinha um bar, um burburinho
Tudo aqui inspira a mente Sílvia, vamos plantar flor
Para se andar pra frente Pedra e poesia?
Vim da rua, vim carente Disse não me indagando
Hoje aqui me sinto gente Mais tarde despertaria

Aqui se dá valor à vida Isso me vem à memória


À cultura e à arte Que me traz esse lugar
Não precisa ir à Grécia Construção de amizade
Para conhecer Helena Coisa de se alegrar
Fiz teatro e fiz poema Plantar flor, pedra, poema
Oficina musical Se tornou uma parceria
Hoje sou compositor Eu sou Sílvia Maria
Lhe rendo graças afinal Rendo-lhe graça e poesia

Eu me chamo Deolinda Agora peço licença,


Que prazer aqui estar Pois da EJA vou contar
Quando entro nesta casa Chegou em 2007
Eu me ponho a pintar No Centro de Convivência
Esse instante é muito mágico Transformando a parceria
Já começo a relaxar Da saúde e educação
Eu produzo muita arte Que antes se fazia
Acho isso exemplar Com alfabetização

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 147


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
Aprendeu com Mestre Freire Nóis pede uma licença
Que o oprimido traz saber Pra nóis dois aqui chegar
Pra mudá realidade Wilson e Alexandre
Pra fazê transformação Nóis não podia fartá
Tudo ganhou importância Nóis aqui é testemunha
Com essa nobre união Que nos fez esse lugar
Sou o Álvaro Pereira É com muita gratidão
Professor da EJA, então Que a gente vem contá

Saúde e educação Na demanda do trabáio


Para junto transformá Fez-se um mediador
União bem abrangente Pró ativo e atraente
Move o saber diferente O Centro de Convivência
Traz justiça social Acolhendo muita gente
Direito fundamental Pra virá trabalhadô
valoriza a nossa gente Acabou com nossa dor
O povo fica contente Hoje é nóis independente

O lema dessa união Ô seu moço aqui é Stael


Não pode ser diferente: Faço uma confissão
“Saúde e educação Aqui na terra de Minas
Direito de toda gente” O melhor trem que conheço
Soletrando essa verdade Nasceu de muitas batalhas
Faz gerar a liberdade Antimanicomial
Invento de autonomia Hoje faz bodas de prata
Para nossa humanidade É o Nise da Silveira

Coisa constitucional Temos doidos de mãos dadas


Nosso mantra é legal Pra fazer Piuí,Piuí
Dessa união plural Vamos nesse trem, seu moço
Marchamos com esse refrão Pois a festa é aqui
Saúde e educação Conviver aqui é bom
É dever do estado, uai A gente não sai do tom
Direito de toda gente Vou falar mais um tiquinho
Vai bordando esse repente Com afeto e carinho

148 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
Parece até uma viagem Na arte, na cultura
Quando estou nesse lugar No trabalho, educação
Pois em todas oficinas Na política humanitária
Eu não paro de criar Na loucura em liberdade
Eu virei compositora A gente se faz presente
Na oficina musical Com o Centro de Convivência
Ganhei prêmio em festival Viva o Nise da Silveira
Isso foi sensacional Viva a Saúde Mental.

Sou Helvécio Viana


Nessa roda vou entrar
Pra dizer da maravilha
Que ajudei a inventar
De uma linda parceria
De Centros de Convivência
Nasceu um grupo formoso
O seu nome é São Doidão

Um quarteto, um solo, um trio


Vozes negras, roucas, brancas
Tudo vira poesia
Nessa nobre cantoria
O suor que cai e pinga
Um pingo da nota sol
No ouvido descendente
No ouvido ancestral

O grupo do santo doido


Ganhou prêmio nacional.
Com incentivo cultural
Fez seu álbum musical
Tudo isso foi matéria
Ganhou fama em jornal
São Doidão virou orgulho
Para a nossa capital

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 149


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
Fonte: Karina Ferreira

Parte II

PELOS LITORAIS DA
CONVIVÊNCIA
151
Seção 1

ENTRE CAMPOS DE CUIDADO:


OS CENTROS DE CONVIVÊNCIA
E A REDE DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL

153
PARA QUE NÃO SE ESQUEÇA

Lídia Martiniano1

PARA QUE NÃO SE ESQUEÇA


PARA QUE NUNCA MAIS ACONTEÇA
MANICÔMIO NUNCA MAIS.2
***
A LIBERDADE E A DIGNIDADE:...
O RESPEITO E O CUIDADO COM AMOR.
DEVE HAVER UMA SOLUÇÃO
SEM QUE HAJA MAIS SOFRIMENTO
EM QUALQUER LUGAR OU SITUAÇÃO
precisamos trabalhar a Cura, nem que
seja parcial no momento atual.
Vamos levar a sério a rede substitutiva
ao hospital psiquiátrico.
E AS PESSOAS QUE NOS ASSISTEM
COM ATENÇÃO, RESPONSABILIDADE E AMOR,
VAMOS LUTAR POR UMA QUALIDADE DE VIDA
E TRATAMENTO MELHORES?
O equilíbrio dos responsáveis e da política
pública de saúde mental
é a base do nosso
PRÓPRIO EQUILÍBRIO!
Vamos refletir e nos unir.
Os assistentes e assistidos,
no propósito de melhores efeitos
em nosso aprimoramento e valores pessoais.
POR UM LUGAR CONFIÁVEL, POR CONFORTO
EMOCIONAL;
1
Poeta, usuária do Centro de Convivência Oeste.
2
Em 2015, este foi o tema do desfile do 18 de maio, Dia da Luta Antimanicomial, em Belo Horizonte.

155
VIVA A LUTA ANTIMANICOMIAL!
Poder viver a vida em um meio natural.
A CONVIVÊNCIA AO LITORAL1

Sandro Boaventura2

“Quero os pastos todos demarcados… Como é que posso


com este mundo?
A vida é ingrata no macio de si, mas transtraz
a esperança mesmo do meio do fel do desespero.
Ao que, este mundo é muito misturado…”
Riobaldo em Grande Sertão: Veredas, de
João Guimarães Rosa

1 Centros de Convivência: seu lugar no E da questão

1.1 Encontros

Há muitos encontros nos Centros de Convivência de Saúde


Mental da Rede do Sistema Único de Saúde de Belo Horizonte, Minas
Gerais (SUS-BH/MG). Houve muitos outros encontros a partir deles.
E ainda mais em porvir. Há os encontros do dia a dia, que fazem desses
centros espaços para se conviver. Convivências entre usuários dos serviços
substitutivos da Rede de Saúde Mental, entre funcionários e equipes
dos outros serviços desta rede. Há também os encontros gerados por
eles, além da rotina das oficinas de arte, suas festas, passeios, viagens, o
desfile-protesto da luta antimanicomial, a seleção do seu samba-enredo,
os eventos do Espaço Suricato, as reuniões do Fórum Mineiro de Saúde
Mental, as reuniões de equipe em cada unidade, supervisões clínicas e
reuniões de microáreas com as equipes de cada regional. Somam-se à
1
A primeira parte deste texto foi reelaborada a partir de um escrito apresentado na abertura do I Encontro
dos Centros de Convivência, em 01 de julho de 2015. Na ocasião, pautei-me nas discussões da comissão
organizadora a que integrei junto a Genesco Alves, Giselle Amorim, Maria Eliza Vasconcelos, Paulo Sérgio
Thomaz e Sílvia Riveres, a quem agradeço pelas conversas e colaborações com comentários e referências
teóricas que foram fundamentais para reflexões, a partir das quais pude pautar questões que orientam o
meu trabalho na rotina dos Centros de Convivência.
2
Sujeito do p de palavra, poesia, performance e psicanálise. Monitor das oficinas de Letras, Teatro e
Performance nos Centros de Convivência Carlos Prates e Oeste da Rede SUS-BH/MG. Licenciado e
bacharel em Língua Portuguesa e suas literaturas pela Faculdade de Letras da UFMG. Ator formado pelo
Teatro Universitário da UFMG. Psicanalista.

157
rotina os encontros com a comunidade, nas suas mostras e participações
em eventos. A partir da convivência e seus encontros significativos,
mas esparsos e fragmentados na rotina, demandou-se parar um tempo
para um encontro que reunisse os trabalhadores dos nossos Centros
de Convivência.
Havia o desejo de encontrar e saber notícias, dificuldades e rotina
um do outro. Havia a demanda em enfrentar o difícil contexto político
em que a luta antimanicomial se encontra e os riscos de, após tantas
conquistas, ocorrer regressões no cuidado ao cidadão em sofrimento
mental. Havia a necessidade de entendimento do que é ser trabalhador
desse serviço: sua função e papel, tendo em vista a própria experiência.
É preciso a visibilidade, tornar conhecido o que é feito em sua rotina,
o entendimento das suas singularidades... Diante de tantas urgências,
a criar tantas expectativas, ficamos ansiosos para o nosso primeiro
encontro, e cheios de perguntas. Foi preciso, então, encontrar o centro
em que estas questões talvez se fizessem. Chegou-se, dessa forma, nas
discussões da comissão organizadora do I Encontro, da qual participei,
a um tema que nos pareceu ser mais elementar: qual é o lugar onde
os Centros de Convivência se encontram? Qual o papel dos Centros
de Convivência a partir do qual seja possível continuar a escrever sua
história e fazer seu trabalho e luta?
Surgiu, então,“I Encontro dos Centros de Convivência da Rede
SUS/BH-MG: seu lugar e papel na assistência ao cidadão em sofrimento
mental ou em uso prejudicial de álcool e outras drogas”, realizado em
01 de julho de 2015. Com um provocativo e ambíguo pronome “seu”
foi possível, então, perguntar ao mesmo tempo qual é o lugar e papel
deles, os Centros de Convivência, mas também qual é o nosso lugar e
papel em questão, daqueles que trabalham na Rede SUS-BH.
A partir do tema escolhido pela comissão organizadora na oca-
sião do I Encontro, este texto apresenta questões que atravessaram suas
discussões. Em seguida, lançando mão da metáfora do litoral no ensino
do psicanalista Jacques Lacan, proponho o lugar do Centro de Convi-
vência nas franjas de campos heterogêneos, tal como mar e areia, em
torno dos dois significantes que nomeiam este serviço substitutivo aos

158 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
manicômios na Rede SUS-BH/MG: “centro” e “convivência”. Em
duas seções para cada significante, o primeiro é apresentado no litoral
com o “descentramento” e o segundo a partir da pergunta sobre o em
comum possível no laço feito de amarrações do caso a caso.

1.2 “Centro” e “Convivência”: convergência e


descentramento

Trazemos no nome do nosso serviço dois importantes significantes:


“centro” e “convivência”. Podemos dizer que aquilo que nos nomeia
tem muito a dizer a nosso respeito. Nosso nome é fundamental para nos
localizar na rede de saúde quanto ao papel, função e sentido do nosso
fazer, mas também desperta novas questões a respeito do lugar onde
situamos nossa prática cotidiana. Se, por um lado, podemos entender
os espaços onde acontece este serviço substitutivo como um centro,
um ponto de convergência de saberes, práticas e fazeres, por outro há
uma espécie de descentramento do seu lugar, na medida mesma em
que se dá esta convergência.
Entendamos melhor o que está em questão quanto ao “descen-
tramento” desses Centros: dada a Reforma Psiquiátrica Nacional, pela
lei 10.216, promulgada em 06 de abril de 2001, a qual “dispõe sobre a
proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e
redireciona o modelo assistencial em saúde mental” (BRASIL, 2001),
participamos de uma “Política de Saúde Mental”. O Centro de Convi-
vência é um serviço substitutivo aos hospitais psiquiátricos, oferecido
pela Rede de Saúde Pública do SUS-BH aos cidadãos em sofrimento
mental e em uso prejudicial de álcool e outras drogas. Neste sentido,
integramos um serviço de “política” pública. No entanto, entendemos
também que, na recente história da Reforma Psiquiátrica, ainda há
muitas questões por lutar. Isso também nos leva a uma luta política
cotidiana, que acredita e defende o tratamento em liberdade de seus
cidadãos usuários dos serviços.
É preciso destacar que estamos localizados na “área” da saúde.
Tem-se em vista, neste sentido, que nos Centros de Convivência acredi-

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 159


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
tamos na possibilidade de uma clínica ampliada, e que, se não praticamos
“tratamento” e “terapia” na forma substantiva desses significantes, nós o
fazemos por “adjetivação”, havendo, assim, uma dimensão “terapêutica”
e “de cuidado” em nossa prática. Seu cotidiano, porém, não se dá por
“profissionais da saúde”, nem por práticas “médicas”. Saindo da dimensão
da saúde, vamos para outras duas áreas fundamentais em nossa prática: arte e
cultura, pelas quais é dado o cotidiano dos nossos Centros de Convivência.
Os chamados “monitores”, ministrantes das oficinas, bem como
também a gestão dos Centros, são trabalhadores de formações e expe-
riências profissionais diversas. Em grande parte, a relação com a arte
norteia o universo de nosso fazer diário, mas também são oferecidas
ao cidadão em sofrimento mental oficinas de artesanato, culinária,
costura, bordado e prática em horta, as quais podemos situar em um
amplo espectro da cultura.
Política, saúde, arte e cultura convivem em nossos centros. Recen-
temente, o debate quanto à aproximação com os universos do trabalho
e da educação também tem se acentuado. O primeiro já participava da
nossa convivência, pela valorização da produção de trabalhos de arte,
artesanato e bordado realizados nas oficinas. Levados às feiras da Mostra
de Arte Insensata e em datas comemorativas, os trabalhos dos usuários
encontram seu próprio mercado. Além disso, a Associação de Trabalho
e Produção Solidária Suricato já nos trazia a relação com o trabalho e
a geração de renda. Hoje, o Projeto de inserção no mercado formal de
trabalho nos convoca ainda mais para uma reflexão sobre o nosso papel
nessa dimensão. Já a educação entra em pauta a respeito do nosso papel na
medida em que é possível, em nossa rotina, certo desenvolvimento de
habilidades dos usuários, os quais, muitas vezes, chamam de “professores”,
os ditos “monitores” das oficinas. Mas também há o funcionamento
da Educação de Jovens e Adultos (EJA) dentro de alguns dos nossos
Centros de Convivência, trabalhando pela reinserção escolar.
A ampliação do nosso campo de atuação, se por um lado nos
possibilita acessar diferentes saberes e ferramentas para nossa prática, por
outro descentra em várias áreas nosso Centro de Convivência, localiza-nos
num lugar de possíveis misturas. Nesse sentido, o que nos diferencia, ao

160 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
mesmo tempo nos descentraliza. Onde se converge também se dispersa
em lugares diversos, os quais, muitas vezes, podem nos levar a dificuldade
de identificação ou entendimento do nosso papel.Talvez possamos dizer
que, como lugar de misturas e intersecções, não exista o que é um Centro
de Convivência, mas como existem os Centros de Convivência, no plural.

1.3 Lugar dos Centros em pluralidade

Qual o lugar/papel do Centro de Convivência e a política, e a


saúde, Centro de Convivência e a arte e cultura, Centro de Convi-
vência e o trabalho e geração de renda, e a educação? Para pensarmos
coletivamente o “e” dessa questão, foram convidados todos os presentes
ao I Encontro. Para tal, na ocasião nos inspiramos no que a psicanalista
Ruth Silviano Brandão (2005) nos fala sobre a conjunção “e”:
Partimos da ideia de que o E não é sempre adição. Não
se somam os saberes, eles se enlaçam, costuram-se, recor-
tam-se. O E é também limite ou marca do indecidível,
impossibilidade de atravessar territórios heteróclitos.
Litorais (BRANDÃO, 2005, p. 5)

O trecho acima nos lembra que a conjunção “e” serve-nos, em nossa


língua portuguesa, a ligar duas palavras. Dentre muitas operações possíveis a
ela ao fazer a ligação entre palavras, destaco aqui a de articulação promovida
pela conjunção “e”. No nosso primeiro encontro, ao conversarmos sobre
cada articulação do Centro de Convivência entre os seus lugares procu-
ramos nos aproximar de seu lugar. Ainda à borda, ao seu litoral, ainda que
enlaçado, costurado ou recortado por limite ou marca do que não se pode
decidir de vez, mas talvez, de cada vez, apenas por encontro...

2 Lugar litoral

2.1 Um “centro” no “litoral”

Da experiência do nosso primeiro encontro, mantive comigo a


pergunta sobre o lugar dos nossos Centros de Convivência na Rede

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 161


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
SUS-BH/MG. Pensar sobre seu lugar, como já disse, é buscar situar o
lugar deles, mas também o meu, e, assim, orientar-me quanto ao meu
papel em trabalho nas suas oficinas, o papel do chamado “monitor”.
O E da questão, inspirado pela citação anterior, de Brandão, remete
à metáfora do “litoral” em Jacques Lacan. Então, passo a perguntar, a
partir do nosso I Encontro: seria também nosso lugar “litoral”?
Em “Lituraterra”, Lacan lança mão da metáfora do “litoral” para
assentar a noção de “letra” na contraposição entre outros conceitos
importantes no seu ensino, sobre os quais não cabe, por ora, que eu me
estenda a explicitá-los na complexidade que implicam, mas considero
que podemos nos valer também dessa metáfora para situarmos o lugar
dos Centros de Convivência na Rede SUS-BH/MG. Vejamos o que
nos fala Lacan (2003, p. 18):“Não é a letra... litoral, mais propriamente,
ou seja, figurando que um campo inteiro serve de fronteira para o
outro, por serem eles estrangeiros, a ponto de não serem recíprocos?”.
Lacan ainda diferencia o “litoral” da “fronteira”, explicitando que esta
“com certeza, ao separar dois territórios, simboliza que eles são iguais
para quem a transpõe, que há entre eles um denominador comum.”
(LACAN, 2003, p. 18). Sobre estes trechos, podemos entender a figu-
ração do “litoral” no percurso do ensino de Lacan pelo que nos fala o
psicanalista Ram Mandil:
Separando, mas ao mesmo tempo conjugando mar e terra,
a imagem do litoral fornece, a essa altura, a figuração
necessária para uma articulação entre elementos hete-
rogêneos, permitindo ao mesmo tempo tornar presente
a ausência de uma medida comum entre, por exemplo,
o terreno sólido e a fluidez do líquido. (MANDIL,
2003, p.48)

Nesse sentido, no litoral, os Centros de Convivência estariam em


lugar tal a água e a areia de beira-mar, em aproximações e afastamentos.
Neles, os campos arrolados acima – política, saúde, arte e cultura, edu-
cação, trabalho e geração de renda – convivem em sua heterogeneidade,
estrangeiros um ao outro, mas também nas bordas do ponto em que se
convergem, no centro onde se dá encontro ao mesmo tempo se dão
descentramentos das particularidades de cada campo.

162 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
2.2 O litoral no em comum da “convivência”

Vamos partir agora para o litoral da “convivência”. No artigo


“Como viver junto? – Fronteiras e Territórios”, seus autores se indagam
sobre o que é possível hoje no em comum, uma vez que na contempo-
raneidade não se conformam mais soluções universais. Segundo eles,
“Como viver junto é uma pergunta que não comporta solução universal,
é no caso a caso que a amarra se realiza, dando lugar a um laço comum.”
(GUERRA; BARROS; GARCIA, 2007, p.36). Sem o limite bem
demarcado da universalidade da lei, no espaço de convivência entre as
pessoas, as fronteiras que o delimitam mostram-se indeterminadas. Mas
nessa indeterminação, há, então, uma porosidade “fácil-e-difícil”, como
dizem os autores, fronteiriça entre as saídas singulares para a invenção
do em comum ou, ainda, uma porosidade tal litoral, em que cada um, em
sua heterogeneidade e descontinuidade com outro, se aproxima e afasta:
Há fronteiras que apontam para uma porosidade receptiva
a novas formas de inventar o em comum. O termo fron-
teira, de todo modo, requer nova parada. Ao falar sobre
a letra, Lacan prefere o termo litoral (LACAN, 1971). Ele
diz que a fronteira demarca uma linha divisória entre
os dois elementos de mesma matéria, enquanto litoral
de duas matérias diferentes e de uma linha vaga que,
na condição de franja, avança e recua, podendo ir além,
muito além de tomarmos em sua linha de horizonte.
(GUERRA; BARROS; GARCIA, 2007, p. 35)

No final do artigo, Guerra, Barros e Garcia citam exemplos de


diversos dispositivos atuais, cujas experiências testemunham “modos
singulares e inéditos de soluções para a convivência” (GUERRA;
BARROS; GARCIA, 2007, p. 35), arrolando dentre elas, a dos Centros
de Convivência.
No litoral entre o Centro de Convivência e a política, escrevemos
textos, fazemos composições, confeccionamos fantasias e desfilamos na
avenida do dezoito de maio pela luta antimanicomial. No litoral entre o
Centro de Convivência e a saúde, atentamo-nos de que é preciso estar
em tratamento para frequentar nossas oficinas e estarmos em conversa
com os outros serviços da nossa rede, lembrando da importância da

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 163


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
medicação e da conversa sincera com suas referências técnicas. No
litoral entre o Centro de Convivência e a arte e a cultura, fazemos
poesias, pintamos e bordamos, contamos histórias, fazemos culinária,
plantamos, cantamos... No litoral entre o Centro de Convivência e o
trabalho e geração de renda, acompanhamos o percurso de formação
e ingresso no mercado de trabalho, realizamos bazares. No litoral entre
o Centro de Convivência e a educação, reunimo-nos com as turmas
da EJA em projetos coletivos. Em cada e entre este serviço substitutivo
ao manicômio e os diversos campos com que faz litoral, o verde da
esperança, como nos diz Guimarães Rosa na epígrafe deste trabalho,
“transtraz” em meio ao fel do sofrimento mental. É ali, sem pastos bem
demarcados, o que para Riobaldo revela um mundo “misturado”, com
Lacan podemos avistar figurar um litoral onde, se há uma mistura, seria
uma mistura heterogênea. Nas franjas móveis entre avanços e recuos
com outros campos, o em comum se faz nos “centros” de “convivência”…

Referências

BRASIL. Ministério da Saúde. Lei nº 10.216 de 06 de abril de 2001.


Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos
mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Brasília: Diário
Oficial da União, 2001. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
leis/leis_2001/l10216.htm. Acesso em 27 de set. de 2021.
BRANDÃO, Ruth Silviano. Editorial. Aletria: Revista de Estudos de Litera-
tura. Belo Horizonte: POSLIT, Faculdade de Letras da UFMG, n. 12, p. 5, 2005.
GUERRA,Andréa Máris Campos; BARROS, Fernanda Otoni; GARCIA,
Célio. Como viver junto? Fronteiras e territórios”. in: Curinga, Belo Hori-
zonte: Escola Brasileira de Psicanálise - Seção Minas, n. 25, 2007, p. 33-37.
LACAN, Jacques. “Lituraterra”. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 2003, p.15-25.
MANDIL, Ram. Os efeitos da letra: Lacan leitor de Joyce. Rio de Janeiro/
Belo Horizonte: Contra Capa/Faculdade de Letras UFMG, 2003.

164 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
NA DESORDEM, UM ECO DO AMOR!

Fernanda Otoni Brisset1

“Uma molécula disse sim à outra molécula e nasceu a vida.”


(Explosão)
A hora da estrela – Clarice Lispector

Quando alguém se dirige pela primeira vez à rede de saúde mental


para tratar seu sofrimento, ao chegar na porta de entrada dos dispositivos
da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) não é possível saber a priori
o que carrega na bagagem. O ponto de partida de um tratamento em
saúde mental está na oferta vazia de saber sobre o sujeito que na rede
se precipita. Será preciso segui-lo para alcançar o que se passa e se trata
em seu sofrer. O saber que guia a direção de um tratamento está do
lado do sujeito, e podemos dizer que a RAPS de Belo Horizonte2 se
organiza para dar lugar a esse saber singular ao acolhê-lo através de
1
Psicanalista, Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e da Associação Mundial de Psicanálise
(AMP). Supervisora Clínica da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) do município de Belo Horizonte.
Responsável pela concepção, fundação e coordenação do Programa de Atenção Integral ao Paciente
Judiciário (PAI-PJ) do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, de agosto de 1998 a agosto de 2021, onde
atualmente exerce a função de supervisora clínica.
2
Segundo o material informativo produzido pela Gerência da Rede de Saúde Mental (GRSAM) para
circulação ampla – “A Rede de Atenção Psicossocial e a Política de Saúde Mental de Belo Horizonte”
(2021) –, são diversos os dispositivos para atenção em saúde mental. Por exemplo, neste artigo vou des-
tacar, entre eles, os Centros de Saúde (CS), os Centros de Convivência (CC) e os Centros de Referência
em Saúde Mental (CERSAM). Os cuidados em Saúde Mental nos Centros de Saúde são coordenados
pelas Equipes de Saúde da Família, que ofertam cuidado integral a cada usuário referenciado, com apoio
de profissionais de Saúde Mental (psicólogo e/ou psiquiatra), quando estes se encontram em condições
de acompanhamento ambulatorial, ou seja, fora da urgência e crise, segundo a construção conjunta de
Projeto Terapêutico com os profissionais de Saúde Mental, nos encontros de matriciamento. Os Centros
de Convivência foram desenhados para acolher, fora do momento de crise, os usuários da rede visando
trabalhar sua inserção social e autonomia através do estímulo e desenvolvimento de habilidades artísticas
e artesanais; ampliar o território de convivência e circulação social, construindo formas de se inserir
na cidade; resgatar laços sociais de diversos modos através da conexão com os recursos da cidade, em
consonância com o Projeto Terapêutico e projetos de vida do usuário. O acompanhamento no Centro
de Convivência é feito conjuntamente com as equipes dos centros de saúde e através das articulações
intersetoriais. Ou seja, o Centro de Convivência é um lugar para conviver, criar laços através da arte de
viver junto. Já o Centro de Referência em Saúde Mental (CERSAM) é um dispositivo para acolhimento
das situações de crises e urgências em saúde mental e acompanhamento de pessoas em sofrimento mental
com quadros graves e persistentes.

165
diversos dispositivos e portas de entrada, segundo a expressão da sua
singularidade subjetiva na cidade aberta. Contudo, cada usuário guarda
consigo seu modo de chegar e de usar a Rede; ele o faz à sua maneira,
conforme suas coordenadas subjetivas.
No decorrer da pandemia que assola o planeta, o modo singular
como cada sujeito se serve da RAPS se evidencia. As restrições ao
convívio, sua ausência, instalam a crise no Centro da Convivência e
lançam luz sobre a hospitalidade da desordem que não se deixa guiar
pelas placas de trânsito e ruge alhures, em algum lugar entre o centro
e a sua ausência.

Sobre a hospitalidade da desordem

Viver junto não é evidente. A loucura de cada um guarda a subs-


tância indomável que escapa ao laço, ao mesmo tempo em que nele se
instala com sede do impossível. A relação não existe, e sua inexistência
perdura na convivência enquanto mal-estar e causa de desejo. Sua insis-
tência se ajeita no laço com o heterogêneo, no esforço em enredar a
desordem – do gozo que segue sozinho – a uma forma que a suporte
junto a mais alguns outros. Cada um que se faz sujeito ajeita-se com
isso em corpo e encontra um jeito de chegar e instalar no social o que
não cabe em si mesmo.
De tempos em tempos, essa coisa mal-ajambrada fura os protocolos,
esburaca a burocracia, furta ao sentido comum e espera encontrar uma
rede para sossegar o que transborda em si como sofrimento. Mas, ao se
aproximar da coisa em si, o sujeito se ausenta, a familiaridade discursiva
se evade. As palavras fogem, falham as receitas e procedimentos proto-
colares, o script das boas maneiras não dirige o roteiro… nada funciona
bem. A substância da loucura toma a dianteira.
Isso faz com que o acolhimento do sofrimento psíquico na rede
da cidade aberta não seja confortável, desde a entrada! Sempre sobra um
resto, falta um pedaço, não se acerta a forma completamente. A subs-
tância que a experiência da loucura traz na bagagem e que se apresenta
na porta de entrada é sempre um pouco desalojada do Outro que a

166 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
acolhe. Esse impossível de apreender causa constrangimento. Contudo,
falamos em hospitalidade, em acolher essa coisa estranha. Mas não existe
fórmula para hospedar o estrangeiro. Quando a hospitalidade acontece
é porque o desejo a precede. A oferta de hospitalidade é a chave que
abre a porta.
Ao acolher o que não cabe em nenhum lugar, desse lugar de mais
ninguém, a radicalidade da solidão é perturbada. O cuidado em saúde
mental requer a convivência com o que se passa fora de si e na ausência
em si mesmo. Favorecer a formação de um laço da substância louca ao
Outro social – dessa coisa clandestina e buliçosa, que não acata proto-
colos, normas e tende a escapar para se recuperar – requer o convívio, a
experiência do dia seguinte, acompanhar os modos como isso se ajeita
com a oferta, as pistas que entrega quanto ao seu enlace. Uma aposta
na contingência do encontro, no corpo falante e na potência do laço
social. Uma rede não se constrói sem viver junto! E não há garantias
de que esse laço se dará de início, nem no meio, e nem no fim.
A rede é um movimento que procura suportar o tempo da inven-
ção de uma forma, ainda que precária, protética, que possa aguentar
que essa coisa louca se encoste em sua trama. Estar ali ao lado é funda-
mental para acolher e interpor, entre o sujeito e seu gozo, as exigências
externas, decisivas, responsáveis por obrigá-lo a dar um passo adiante.
A oferta está, desde a entrada, comprometida em enredar o que há de
mais singular aí ao convívio com o Outro. Trata-se de amarrar, em
rede, sempre de forma flexível e provisória, pontos de ancoragem para
abrigar nas palavras ou nas coisas, nas conversas ou nas artes, o que não
tem cabimento nem nunca terá. O constrangimento de um laço é a
arte da oferta e dela participa a tensão de uma amarra, pois viver junto
não é evidente. É a força desse laço, o da vida, mesmo frouxo, que pede
um esforço a mais para seguir mais longe.
Todos os recursos devem estar à mão para que essa tessitura possa
ser tramada: os medicamentos, os materiais de arte, as letras, as palavras,
a escuta, os corpos... etc. Mas, sobretudo, ofertar uma hospitalidade que
convida o sujeito a um esforço a mais quando ele ousar declinar da
convivência, anunciando sua saída. Isso exige em cada ponto da rede

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 167


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
e de cada um suportar a desordem que existe na junção mais íntima
do ser e que vez por outra transborda de forma louca, desobedece aos
sinais de trânsito e cai como corpo abismado no real do encontro com
mais alguns outros... É a crise que urge.
Para dar acolhimento ao que precipita nessa urgência, temos
os Centros de Referência em Saúde Mental (CERSAM). Mas o que
a experiência ensina é que a crise que urge no corpo em desordem
e não se sabe, a priori, onde esse corpo desbussolado vai se levar para
entregar sua desordem. Às vezes isso cai nas ruas, às vezes parte errante,
às vezes se isola, outras vezes vai ao CERSAM e a outros pontos da
rede e da cidade.
Em tempos pandêmicos, uma crise eclodiu no centro da con-
vivência e muitos usuários chegaram ao Centro de Convivência com
seu corpo em desordem.
Nos últimos tempos a gente tem atendido muito a
crise no Centro de Convivência. A estrutura essencial
do serviço é o de ser um lugar de conviver, via arte, via
produção criativa. O Centro de Convivência é lugar
de acolhida. […] E conviver não está sendo uma tarefa
simples quando está sendo exigido seguir protocolos
sanitários. A pandemia instalou uma distância no con-
vívio, reduziu os encontros. O Centro de Convivência
não está inchado de números, mas inchado de crise.
(BÁRBARA BUZATTI)

Sobre a crise no Centro3

Quando a substância do gozo se solta das ficções onde se encon-


trava amarrada, o corpo se perturba e entra em sofrimento. Isso solto
produz intensa angústia. Os recursos sociais e simbólicos neste instante
são precários, e a desordem na junção mais íntima do ser se faz ver. A
substância da desordem é gozo que se desprega da cadeia, do saber, dos
protocolos, desencadeia-se e precipita-se como um céu que desaba em
3
Esse tema, com seus impasses, surgiu no calor de uma conversação com os trabalhadores do Centro de
Convivência Arthur Bispo, em 18/06/2021.

168 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
tempestade a substância como tal: coisa esquisita, desarrazoada, extraída
e excluída de si mesma, fora do envelope formal do sintoma.
No cenário pandêmico, diz Bárbara Buzatti, “o Centro de Con-
vivência está mais esvaziado de pessoas”, mas com uma multidão de
crises. Interessante sublinhar que quando a cidade se fecha e restringe o
convívio, em sua ausência, o usuário foi bater na porta da convivência
para entregar a desordem que toma seu corpo e que segue um circuito
singular fora da ordem protocolar. Ele procura localizar na cidade um
acolhimento para essa substância que faz sofrer, é um endereçamento,
um lugar para entregar a perturbação que eclode em si.
O Armando é assim: ele frequenta oficina, faz uns tra-
balhos muito bacanas, muito bons, ele mora aqui perto,
não mora longe, mas quando ele vê que ele vai dar
crise, se ele tá de chapéu, ele tira o chapéu, aí ele tira
a camisa, enfia a cabeça dentro d’água. E ele fala “eu
não tomei remédio hoje”. Ele vem dar a crise aqui. Ele
tira a roupa toda e sai correndo pela Silviano Brandão.
Seguimos atrás dele. Na hora que ele vê que vai entrar
na crise, não tem ninguém em casa, porque ele fica lá
sozinho, a primeira coisa que ele faz é descer a rua todo
arrumadinho, ele sempre vem arrumadinho, e ao chegar
aqui se desarruma e aí começa… (Maria Nazareth de
Melo Alves)

O que Maria Nazareth de Melo Alves nos transmite é que quando


o sujeito sozinho verifica que está se desarrumando, ele se arruma com
a força da transferência para desnudar seu sofrimento no Centro de
Convivência. É ali que a tempestade da desordem em si foi desabar.
O corpo em sofrimento se mostra como efeito de uma desmontagem
subjetiva, errante e “desbussolado” quanto ao gozo que ali eclode. Isso
solto é pura perdição.
Contudo, o que é notável em Armando é que, em algum lugar
nessa ausência em si mesmo, vibram os ecos de uma acolhida que se
experimenta no corpo e o guia … e ensina que em cada sujeito vive
uma presunção de sociabilidade, uma necessidade de enredar a substância
do gozo para não mergulhar no infinito disso em si mesmo. Isso sugere
que estejam no espaço da convivência os recursos com os quais inventar

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 169


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
um saber fazer com o gozo, deslocando para a esquisitice do laço social,
para o espaço em comum, o mal-estar que cada um é levado a tolerar.
O sujeito ali chega da forma como sua urgência desenha, defor-
mado quanto às formas prêt-à-porter, pois a urgência do sofrimento
transpõe as bordas da apresentação razoável dentro das formalidades do
Outro. Localizamos nessa clínica o que Lacan nomeia como a expe-
riência do “isso não organizado”. Miller, lendo Lacan, sublinha que a
princípio o Isso está inorganizado, pois sua relação é com o gozo e não
com o significante. “O sujeito não está no Isso. Não está ali em pessoa,
ali não tem ninguém, ou digamos que não se encontra ali, mas que sua
ausência se faz desde um lugar: o lugar de mais-ninguém” (MILLER,
2015, p.320). Quando a crise se instala, é esse isso inorganizado que
se apresenta em sua evidência obscura, nu e em estado de errância... o
eu saiu de si... O que a nudez descobre é mais um corpo gozante do
que um corpo falante, no sentido de que o falar não se articula... são
palavras sem destino... desatino do gozo, é só isso!
O corpo que chega em desordem é um corpo agitado, perplexo,
ausente, mudo... com palavras e atos que escapam aos pedaços, sem
articulação a uma demanda, a uma montagem ficcional. Há uma des-
conexão do Outro... Como conectar esse corpo ao Outro, e isso quer
dizer, ao campo do discurso, das coisas, da cultura, das normas e do
convívio, se na desordem do corpo, a montagem ficcional de um Outro
se despedaça? Como localizar algo que reinscreva o sujeito lá onde a
desordem o faz ausente em si mesmo? Como acionar as coordenadas
subjetivas que favorecem a conexão a uma montagem sinthomatica?
O que a clínica ensina e Lacan confirma é que “[...] na mata do
gozo, tem um lugar esvaziado e ali se pode inscrever o sujeito [...]”
(MILLER, p. 322). Ou seja, aí pode se inscrever um significante novo,
um conector qualquer que amarre a desordem do gozo a um laço
possível. Isto acontece quando se dá suporte para ecoar o que ressoa
em corpo, ou, como bem disse Lacan, “[...] só pode ser de alhures que
se faz ouvir [...]” (LACAN, 1998. p. 674).
Portanto, é preciso o mínimo de um Outro, sua presença menos
na dimensão significante, do sentido, e mais enquanto um corpo que

170 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
ressona a coisa desde alhures. Para tanto, é preciso se despir do saber
posto, sustentar um lugar esvaziado de saber prêt-à-porter, para acolher o
singular de um corpo em desordem, segui-lo em sua trajetória irregular
conduzindo-o ao encontro dos recursos para tratar seu sofrimento, em
rede, numa solução que seja própria, única e que costure o singular do
sujeito à oferta da RAPS para todos.
Ao ir ao encontro de um Centro de Convivência para apresentar
a nudez de um corpo em crise, ao retornar ao lugar onde o laço social
já foi uma experiência de possível, se em desordem seu corpo ali se
endereça segundo as coordenadas de alguma bússola íntima, isto parece
indicar uma aposta que esse circuito possa favorecer um efeito retorno.
A clínica ensina a seguir o corpo falante; sem saber dizer, ele indica o
norte da bússola. Será preciso segui-lo. No caso de Armando, poderíamos
pensar que ele fura o protocolo da RAPS: ele não se dirige primeiro ao
CERSAM, ele chega ao Centro de Convivência, ele elege ali o lugar
para acolhida do que nele precipita. É a esse lugar que ele dirige seu
“isso inorganizado”. Neste instante “isso” não sabe que o CERSAM é o
serviço de atendimento à crise, equipado e preparado para tal. No gozo
não há saber: é a desordem da ausência em si. Contudo, cito Lacan,“entre
centro e ausência, entre saber e gozo, há litoral...” (LACAN, 2003, p. 21).

Entre centro e ausência, um litoral, uma rede

O movimento de Armando nos faz ver que há um litoral entre


o Centro de Convivência e o CERSAM para acolher a desordem que
eclode da ausência em si. Há nos meandros da rede em si mesma um
espaço de passagem, um campo fluído por onde o usuário tece a costura
entre um ponto e outro segundo o fluxo do seu gozo. O sujeito em
trânsito pela rede não segue semáforos prefixados, ele segue o fluxo
de sua urgência guiado pelas coordenadas subjetivas traçadas por seus
encontros e desencontros.
Se a RAPS é para todos, a rede é de cada um e de mais ninguém,
segundo o uso que faz dela, como tece os fios e amarra os nós que
suporta seu balanço. Ao seguir o vaguear do corpo falante na desordem

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 171


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
do gozo, vão-se trançando os fios de uma costura singular, uma rede
própria que acolhe cada um, ora pra lá, ora pra cá, conforme as pegadas
que ravinam esse litoral particular.
Por outro lado, quanto à rede, cada ponto que dela participa
(CERSAM, Centro de Saúde, Centro de Convivência etc.) não é
igual ao outro, são heterogêneos quanto à oferta que entregam e o
saber fazer que os define. Contudo, o que faz a rede é que seus pontos
diversos se enodam por e com aquele que nela busca acolhida, ou seja,
o corpo falante trança seu circuito próprio no campo aberto entre os
pontos da RAPS.
Se dessa trança entre pontos o sujeito trama a sua rede, isso conta
que entre os vários pontos dela haja acolhimento articulado que dê
passagem a essa tecitura! Entre um ponto e outro da rede também há
um litoral, ou seja, uma franja onde um banha o outro: tem a água do
mar e tem a areia da praia …. ora se tocam, se banham, se enxertam, se
entrelaçam… contudo, sem perder o que é próprio a cada um. Quando
água e areia encontram, seguem juntas como água e areia. Ora está
mais pra lá, ora está mais pra cá…
Essa imagem nos ajuda a pensar que os diversos pontos da RAPS
laçam-se, uns nos outros, enquanto alças que se ancoram durante a
arrebentação das ondas na orla do litoral, sustentando o cuidado com-
partilhado seguindo o turbilhão do sujeito. A rede é um tecido vivo, tal
como uma malha que se estende pelas margens litorâneas, que ora se
recolhe ora se abre para abraçar a coisa buliçosa que se agita ora aqui
ora acolá, buscando se enredar e sossegar-se, onde quer que encontre
ancoragem.
Os usuários que são frequentes no Centro de Con-
vivência, eles estabelecem uma relação com a gente
quase familiar. E acho inclusive muito bonito o usuário
procurar a gente quando precisa, acho que é um sinal
de confiança. É como se algo nele dissesse: - Eu vou lá,
sei que lá eu vou entrar [entrar na Rede], vou ser bem
recebido, mesmo na minha desordem... isto aí… um eco
do amor. O Centro de Convivência funciona e deve
funcionar como uma porta de acesso... (Karen Zacché)

172 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
Porta de acesso, lugar eco!

Quando o sujeito dirige sua desordem ao Centro de Convi-


vência, ensina Zacché, “o sujeito está batendo na crise”. Bater na crise
parece ser um esforço de sossegar o que nele se agita. Ele bate na
porta donde já viveu a experiência de um convívio. Então ele parece
retornar a esse lugar, com sua desordem, onde outrora experimentou
um sossego da coisa em si mesmo. Só que, naquele instante, ele não
está mais lá para acessar esse lugar em si, ele está fora de si... esse lugar
se encontra, naquele instante perdido em si, ausente nele mesmo. Isto
indica ser de alhures que o lugar do convívio ressoa como saudade em
sua desordem. Um lugar eco!
Funcionar como porta de acesso é acolher essa saudade desordeira,
seguir seu eco na articulação da rede para dar tratamento à crise. Será
ao seguir as pegadas do sujeito, o que da ausência em si ecoa como
saber que ele entrega por onde passa, que será possível reunir as pontas
dos campos heterogêneos da rede que – sem se confundir – se tocam,
se abraçam quando a desordem do sujeito pede passagem em busca de
alguma ancoragem para isso que agita seu corpo e o desnorteia.
Karen Zacché diz ler ali, nesse endereçamento desbussolado, o eco
do amor. Ela pode formular essa enunciação porque sua experiência,
como a dos trabalhadores e artistas do Centro de Convivência, tes-
temunha no fazer em rede com a substância da desordem na loucura
algo que se transmuta (tal como Lacan formula) em amor, em ancora
para o vazio em si mesmo. Para Lacan, o amor é o que faz suplência
para a relação que não existe. É dar lugar à inexistência enquanto o
que ex-siste feito eco do objeto perdido.
O Centro de Convivência é, para Armando, uma porta de acesso
que lhe permite encontrar o caminho para alçar o que o enlaça ao lugar
perdido em si mesmo, suporte do laço social, junto a mais alguns outros.
Uma porta que lhe abre as outras portas da rede em saúde mental.
Os corpos, as letras, os sons, pedaços de memórias articulam-se
uns às outras produzindo um encontro, um corpo, uma história, uma
armação sinthomática que pode advir no lugar d’isso inorganizado,

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 173


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
através da oferta de uma rede em movimento. Aqui, o possível é par-
ceiro da contingência, tal como a clínica em rede no campo da saúde
mental nos permite testemunhar.
Eis aí um farol!
Esse lugar “alhures” de onde se pode ouvir a desordem não tem
endereço protocolar, não se encontra na presença de um saber posto,
tampouco é uma extraterritorialidade... O campo da saúde mental
de forma sensível ensina que há a desordem e há um intervalo na
desordem. É nesse vácuo que a rede se estende seguindo o eco do que
ex-siste, a partir de um circuito do sujeito [que implica em um fora
de si e retorno], dando a esse movimento uma dimensão articulada ao
que é essencial e original em cada sujeito que aí poderá localizar-se e
enlaçar-se numa dada rotina.
Isso nos faz pensar no valor da rotina enquanto fator operatório
junto às coordenadas subjetivas de um corpo falante que, mesmo em
desordem, pode se servir dela, menos enquanto ordem e mais como
pulsação que marca o norte da bússola face à errância do gozo.
Fazer a rede funcionar como rede, fazendo de cada ponto um
porto que acolhe a loucura de cada um, é o desafio cotidiano, de
todo dia; de cada caso, melhor dizendo. A crise aparece no corpo, bate
em algumas portas exigindo uma rede articulada e enlaçada à forma
singular como a desordem eclode para cada um, e segui-la em sua
evidência obscura requer conduzi-la à luz do que nela se desponta e
ressoa como um desejo de laço. Não há garantias, mas acontece, como
efeito retorno d’arte de viver juntos. Isto nos faz ver que quando a
desordem de cada um bate na porta, a acolhida dessa coisa sem lugar é
uma aposta na emergência contingente de um laço que pode sossegar
o que em si desarrumou.

Uma topologia rumo ao sinthoma

No Centro de Convivência, ali onde a desordem na junção mais


íntima se verifica, os trabalhadores/artistas parecem forçar um mais
além, lançando a rede para verificar o que pode funcionar enquanto

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MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
sutura, enquanto junção ao fazer valer esse saber junto aos outros da
RAPS. Chamarei isto de uma aposta topológica rumo ao sinthoma,
junto ao corpo falante que ali se apresenta, no cotidiano dos serviços,
em montagens e desmontagens, peças soltas en corps e palavras, enlaçadas
ou desamarradas em gambiarras e bricolagens. Ofertam-se fios signifi-
cantes e materiais para enodar a substância gozante no tecido de uma
rede, através de ficções possíveis de laço social, frouxas e sem fixidez.
O Centro de Convivência faz-nos ver, de modo topológico,
como o sinthoma de cada um acontece do gozo que se desdobra entre
ruptura/sutura; dentro/fora; centro/ausência; individual/social; singular/
coletivo; ortodoxia/heresia; variante/padrão; abre/fecha; corte/costura;
uma topologia na qual o fora passa para dentro e, por que não dizer,
que o mais de dentro passa para fora, num engendramento heterogêneo
que se arranja com os diversos dispositivos para acolher em cada ponto
da rede a loucura de cada um. Uma experiência que extrai um enredo
do desdobramento do gozo que passa a torto e a direito, se vira ao
avesso, força e contorce as ambiguidades, os equívocos, num trabalho
incessante e singular rumo a uma solução sinthomática.
O Centro de Convivência, ainda que se instale para acompanhar
o sujeito fora da crise, está desde alhures nela engendrado. Entre o
centro e sua ausência sopram os ventos de um savoir-y-faire com o que
em si pulsa incabível, errante e original, e ex-siste em algum lugar do
sujeito ausente em si mesmo, fazendo vibrar no corpo em desordem
a marca do encontro com outro corpo que, como placa sensível, ecoa
em retorno. O desejo de laço parece seguir esse eco guia – pela trilha
de uma convivência arriscada, por onde cada um é convidado a se virar
com a substância do seu ser que ressoa no oco do Outro!
Sim! Uma molécula diz sim a outra molécula e nasce a vida.
Explosão que ecoa.
Uma contribuição evidente que o Centro de Convivência nos
entrega quanto ao seu saber fazer com a desordem que atravessa a
experiência louca do convívio e como lugar eco desse incabível na
experiência articulada de uma rede em movimento!

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 175


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
Referências

LACAN, J. Lituraterra. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar.


2003, p.15-25.
______. Observação sobre o relatório de Daniel Lagache: “Psica-
nálise e estrutura da personalidade”. (1960). In: Escritos. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 1998, p.653-691.
MILLER, J. A. Todo el mundo es loco. Buenos Aires: Paidós, 2015.

176 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
O CENTRO DE CONVIVÊNCIA OESTE E A
PANDEMIA – REINVENTANDO AS FORMAS DE
ESTAR AO LADO1

Giselle Campos Freitas Amorim2

1 Introdução

Relataremos a experiência de ruptura e reinvenção da prática


cotidiana do Centro de Convivência Oeste imposta pela pandemia
de COVID-19, a partir de março de 2020. Trazemos aqui recortes da
angústia que vivemos, do manejo dos novos desafios, rearranjos e rein-
venções dos processos de trabalho e dos modos de cuidado. Tomamos
como referência as valiosas contribuições de Fernanda Otoni, supervisora
da rede de saúde mental, trazidas na Conversação Saúde Mental- A rede
e suas amarrações em tempos de pandemia, que aconteceu em 3 de junho
de 2020, com a rede de saúde da regional Oeste.
Os Centros de Convivência fazem parte da RAPS (Rede de
Atenção Psicossocial) de Belo Horizonte e têm como missão a reabi-
litação psicossocial dos cidadãos em sofrimento mental e/ou em uso
prejudicial de álcool e outras drogas. Reinserção social, retomada de
laços sociais rompidos, criação de novos laços, ampliação da circulação
social, da autonomia, da participação social e intervenção na cultura,
desconstruindo mitos e preconceitos em relação ao sofrimento mental
são os principais objetivos do nosso trabalho. Oficinas, atividades cole-
tivas diversas, eventos, passeios, viagens, festas estruturam a nossa rotina,
que gira em torno da convivência e do laço social.
E eis que, em março de 2020, fomos todos surpreendidos com
a pandemia e com as restrições por ela impostas. Conviver se tornou
perigoso e o isolamento e o distanciamento social uma imposição
1 
Texto escrito em julho de 2021.
2
Psicóloga com especialização em Saúde Mental pela Escola de Saúde Pública de Minas Gerais (ESP-MG).
Gerente do Centro de Convivência Oeste.

177
para a preservação da vida. Todas as nossas atividades coletivas foram
suspensas do dia para a noite e o Centro de Convivência Oeste che-
gou a ficar fechado por quase um mês, apesar de acreditarmos que
esta não era a melhor opção, por se tratar de um serviço de saúde,
essencial, e referência para muitos usuários da rede de saúde mental
da regional Oeste.
Além da angústia diante desse acontecimento traumático para a
humanidade, fomos acometidos por uma angústia extra: como seguir
com nosso trabalho frente às restrições impostas e inevitáveis? Diante da
total ausência de referências sobre esse acontecimento traumático nos
vimos forçados a inventar novas formas de trabalho, de estar junto e de
cuidar, dia após dia. Invenções compartilhadas entre todos os Centros
de Convivência, construídas no coletivo, entre gerentes de Centros de
Convivência e GRSAM/ SMSA/ PBH (Gerência da Rede de Saúde
Mental da Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte) e em
equipe, em cada serviço. Fomos virados ao avesso, desvirados, revirados
e, se assim estávamos, nos restava oferecer, um a um, para cada um, a
oferta do laço, ainda que à distância.

2 Primeiro momento: cuidar da sobrevivência e estar


ao lado

Num primeiro momento, quando os monitores, artistas e artesãos


que se dedicavam às oficinas e demais atividades coletivas, passaram para
o regime de teletrabalho, nos articulamos para que todos os usuários
inscritos e frequentes no serviço pudessem ser acompanhados à distân-
cia, via teleatendimento. O critério que utilizamos para definição dos
contatos foi o vínculo e cada um ficou responsável por fazer contato
telefônico semanal com os usuários a ele vinculados. A equipe fazia
relatórios semanais e comunicava, de imediato, situações que reque-
riam intervenções urgentes, tais como desestabilizações, necessidade
de reconexões com o tratamento, necessidade de ajuda material para
sobrevivência/ benefícios, ou seja, demandas que necessitavam de
direcionamentos e mediações imediatos.

178 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
Nos teleatendimentos, os usuários e seus familiares puderam
ser escutados, orientados sobre os cuidados em relação à pande-
mia, quanto à necessidade de manutenção do tratamento na saúde
mental, sobre benefícios e sobre formas de se manterem ativos e
ocupados com atividades diversas (leitura, escrita, bordado, desenho,
música, artesanato e atividades físicas). A equipe se defrontou com
demandas de escuta, de busca de orientação sobre benefícios, de
dificuldades concretas do dia a dia, com as quais trabalhamos para
que pudessem ser devidamente direcionadas. Avaliamos que foi um
momento difícil, de ansiedade e incerteza diante de uma situação
nova e difícil para todos. Os familiares fortaleceram o vínculo com
o serviço e a equipe, valorizando mais o Centro de Convivência,
reconhecendo sua falta e importância. Como sublinhou Fernanda
Otoni, em nossa conversação: “Quanto mais o outro parece faltar,
mais a gente se aferra a ele.”
Na conversação trouxemos dois exemplos interessantes deste
estar ao lado ainda que à distância. O pai de J telefona para o serviço e
pede ajuda, diz que ela não sai da rua e está sem máscara, conversando
com as pessoas. Pergunta se pode dizer que eu liguei e que quero falar
com ela, diz que ela me escuta. Respondo que sim e ela vem ao tele-
fone “Você me ligou mesmo?” Digo que sim e que fiquei surpresa por
ela estar na rua, conversando com as pessoas, sem máscara, que isso era
perigoso, que devemos nos cuidar. “Eu não aguento mais ficar em casa,
não aguento mais...” Sugiro algumas coisas para ocupar seu tempo e
ela me pergunta “Posso cantar pra você?” Canta algumas músicas e se
apazigua. Fernanda Otoni sublinha que “neste momento algo se ativa
de um encontro em presença, tocou o corpo, fez sentido, fez laço, deu
destino, filtra algo da presença na ausência”. Em outro exemplo, trazido
por Sandro, monitor da Oficina de Letras, ao telefone ele sugere para C
uma atividade que ela fazia no Centro de Convivência, desfiar tecidos,
sugere que ela desfie os retalhos de sua mãe, costureira, e ela consente.
“Desfia o tecido”, conforme pontuou Fernanda, neste contexto,“é uma
frase que porta a materialidade do encontro, substância de um laço”.
Neste primeiro momento ressaltou-se para a equipe a dimensão do

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 179


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
cuidado, da acolhida, da escuta, do depurar e direcionar demandas e
das orientações para preservação da vida e da saúde mental.

3 Segundo momento: encontros pontuais e eventos


virtuais

Os momentos se misturam, vamos somando intervenções possí-


veis às já estabelecidas. A partir dos contatos telefônicos identificamos
necessidade de atendimentos individuais pontuais e acolhemos aqueles
que nos procuravam espontaneamente. Fornecemos kits de máscaras
artesanais e álcool em gel e kits para trabalho em casa (bordado, biju-
teria, desenho e pintura), além de escuta, orientações para esse trabalho
e encaminhamentos necessários.
Em maio, mês da Luta Antimanicomial, em que tradicionalmente
participamos de muitos eventos (bazares, exposições, apresentações
diversas e rodas de conversa, além do desfile do 18 de maio), tive-
mos que nos reinventar e partir para os eventos virtuais. Iniciamos
o mês com um bazar virtual das mães e nos surpreendemos com o
resultado, muito superior às vendas dos bazares presenciais, gerando
renda para os usuários e divulgação do trabalho. Seguimos com a
composição e gravação do samba enredo, iniciado em fevereiro nas
oficinas de música, o 18 de maio virtual, exposição virtual, live da
oficina de música e o Blog Porta Convivência. Eventos importantes
para a divulgação do nosso trabalho, ampliação das nossas conexões e
demonstração do potencial e da importância da arte em nossas vidas,
um alento em momentos tão difíceis.

4 Terceiro momento: oficinas individuais e oficinas


virtuais

A partir de julho de 2020 passamos a oferecer oficinas individuais


presenciais e oficinas coletivas virtuais, mantendo sempre o teleatendi-
mento e fornecimento de material para atividades em casa, principal-
mente para usuários do grupo de risco para COVID-19.

180 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
O trabalho com oficinas individuais reduziu muito nossa capa-
cidade de atendimento e houve certo empobrecimento de algumas
oficinas, onde a interação e a convivência são fundamentais. Entre-
tanto, observamos um fortalecimento dos vínculos e uma possibilidade
maior de desenvolvimento de habilidades artísticas. Alguns usuários
aprenderam a tocar violão, o que só é possível ensinando um a um,
outros puderam aprimorar suas composições e escrita, organizar seu
material em pastas, cadernos, contar com a atenção e orientação
individual do monitor repercutiu diretamente no aprimoramento do
trabalho de cada um.
As oficinas coletivas virtuais, opção interessante principalmente
para os usuários do grupo de risco para COVID-19, bem como as
assembleias e reuniões virtuais com os usuários inseridos no mer-
cado formal de trabalho não conseguiram atingir muitos usuários,
pois poucos têm acesso à internet. Isso também impactou os usuários
inseridos no mercado formal de trabalho durante a pandemia, já que a
aprendizagem tem ocorrido neste formato. Importante trabalhar para
a democratização desse acesso.

5 Quarto momento: Oficinas com grupos e horários


reduzidos

A partir de novembro 2020, com recuos em momentos de


fechamento da cidade, trabalhamos com oficinas coletivas, com
grupos reduzidos, de três a quatro usuários, em turnos reduzidos,
conforme orientações da nota técnica da RAPS, que determinava 7
m2 por pessoa e uma distância de 2 metros entre cada pessoa. Ava-
liamos que o trabalho com grupos reduzidos e horários reduzidos se
mostrou muito seguro e produtivo. Usuários novos passaram a aderir
mais, o foco e a concentração dos usuários nas oficinas melhoraram,
bem como a qualidade do trabalho, tendo os monitores condições
de dar atenção mais individualizada, descobrir novas possibilidades
e potencialidades, além de uma participação mais viva e ativa por
parte dos usuários.

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 181


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
6 Conclusão: “Vai ter festa esse ano?”

Aprendemos a lidar melhor com o contexto, adaptamo-nos,


passamos do momento inicial de incerteza frente ao desconhecido e
fomos nos reinventando na medida das possibilidades.
Sem perspectivas de um retorno à “normalidade” seguimos com
o desafio de fazer nosso trabalho atentos a nossa missão e objetivos.
Tentamos sempre fazer caber mais um e mais quantos chegarem bus-
cando acolhida. Nossa capacidade de atendimento se reduziu e, dia a
dia, buscamos novos arranjos para ninguém ficar de fora. Quem pre-
cisa mais vai mais, quem precisa menos vai menos, quem ainda não
pode ou se sente seguro para ir, continua mantendo teleatendimento,
buscando material.
Fizemos todo esforço para que todos se vacinassem o mais rápido
possível, verificando comorbidades, orientando sobre as datas e locais para
vacinação, fornecendo relatórios e reforçando a importância da segunda
dose da vacina. Repetidamente falamos dos cuidados que precisamos
manter apesar de vacinados. De pequenos em pequenos grupos tratamos
dos assuntos importantes que seriam pautas de nossas assembleias.
Ainda não retomamos nossos tão desejados passeios e eventos
presenciais, fundamentais para ampliar a circulação social e interven-
ção na cultura. Esperamos que em breve possamos voltar a circular.
Vamos manejando assim com jeitinho, tentando achar um ponto de
equilíbrio e esperança.
“E vai ter festa este ano?” Esta é a pergunta que não cala. Quem sabe?

182 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
UMA MÃE, UM FILHO E A TESSITURA DE UMA
REDE DE CUIDADOS

Renata Cristina de Souza Ramos1


Ana Paula de Matos Novaes2
Cláudia Bougleux Michelin Scarano3
Sirla Alves4

“Contra o pessimismo da razão, o otimismo da prática”

Antonio Gramsci

Claudinho já lê. Está crescendo e é muito esperto. Gosta de futebol


e faz muita bagunça também. Afinal, que criança não faz?
Eliza5, 33 anos, mulher bonita, cabelos negros, lindamente enca-
racolados. Teve três filhos durante a adolescência e juventude. Deu os
meninos para os ciganos e a menina, que foi internada, acabou morrendo
no hospital.Viveu por volta de oito anos entre variados amores, drogas,
rua e várias casas onde as pessoas que a acolhiam por curto período de
tempo, geralmente faziam exigências que chegavam ao abuso.
Quando chegou ao Centro de Referência em Saúde Mental
(CERSAM) Venda Nova, em outubro de 2010, grávida, foi logo avi-
sando: “esse é meu e ninguém tira”. Provavelmente, se fosse em 2017,
por determinação judicial, este também não seria seu... No entanto,
a ousadia e a certeza de que valia a pena pelo menos tentar, fez com
que sua técnica de referência, Cláudia, tomasse para si o desafio de
1
Psicóloga. Mestre em Promoção da Saúde e Prevenção da Violência pela Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG) –Especialista em Gestão. Especialista em Assistência a Usuários de álcool e outras drogas.
Gerente do Centro de Referência em Saúde Mental de Venda Nova - CERSAM Venda Nova (CAPSIII)
da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte.
2
Psicóloga com especialização em Saúde Mental pela Escola de Saúde Pública de Minas Gerais. Gerente
do Centro de Convivência Marcus Matraga /Regional Venda Nova.
3
Terapeuta Ocupacional do Centro de Referência em Saúde Mental Venda Nova - CERSAM Venda
Nova. Especialista em Saúde Mental.
4
Professora aposentada da Rede Municipal de Ensino de Belo Horizonte.
5
Nome fictício.

183
convencer as demais pessoas envolvidas no projeto terapêutico dela:
“Ela quer ter o filho, quer criá-lo, tem esse direito e conseguirá, se a
se a ajudarmos”. Acordou com a família de Eliza a concordância em
dar o mínimo de apoio, conversou com a equipe do CERSAM, que
abraçou a causa. Articulou com o Centro de Convivência, local em
que ela tinha importante referência, a acompanhar e apoiar seu desejo.
Coube a todos, então, a tarefa de inventar alternativas.
Foi inserida em permanência dia e hospitalidade noturna. Ter-
ceiro desafio que passou a ser constante: a articulação da rede de saúde.
Foi inserida primeiramente para a realização do pré-natal, que Eliza
fez certinho, sempre acompanhada e orientada pelos profissionais.
Foi reduzindo o cigarro até parar de fumar e deixou as drogas. Nesta
época, começou a participar das aulas da Educação de Jovens Adultos
-EJA no CERSAM e também no Centro de Convivência, onde fez
um vínculo tão forte, que foi um dos pontos que possibilitou toda
essa trajetória.
Em maio de 2011 entrou em trabalho de parto e foi acompanhada
pela auxiliar de enfermagem no Hospital Risoleta Neves. Nasceu Claú-
dio Roberto. Nasceu nesse momento também uma mãe. O que fazer
agora? Como cuidar? Dúvidas que toda mãe ao sair da maternidade
carrega dentro de si. Mas lá se foram eles rumo à construção de uma
nova família. Nos primeiros meses foi rigorosamente acompanhada por
sua Técnica de Referência e uma estagiária (que eram chamadas de
“Super Nani”) e por todos do CERSAM e do Centro de Convivên-
cia. Esquema tático de revezamento:Técnica de referência, gerente do
Centro de Convivência, Professora do EJA, madrinha da criança que
à época trabalhava no Centro de Convivência, toda a enfermagem,
que se revezavam inclusive nos finais de semana, para curar umbigo,
dar banho, acompanhar nas consultas, orientar sobre a amamentação e
cuidados com o bebê... Assim vai se alinhavando uma história recheada
de conversas, telefonemas, negociações, choros, sorrisos e fraldas... muitas
fraldas. A ansiedade de Eliza vai aos poucos diminuindo à medida que
os choros começam a ser decifrados e que ela percebe o poder que a
amamentação tem: na dúvida, dá o peito que ele para de chorar! E como

184 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
Eliza amamentou! Seguiu direitinho a recomendação do Ministério da
Saúde, de amamentar até os dois anos de idade.
Nova articulação da rede: pediatra para Claudinho, que sempre
acolheu esta dupla de braços abertos, dando todas as orientações, mas
ligando posteriormente para o CERSAM para reforçar as necessida-
des, principalmente quando ele ficou abaixo do peso, demandando
mais cuidados.

“A gente não quer só comida/a gente quer comida/


diversão e arte”... e, neste caso, escola também!

Só a rede de saúde não basta! Era necessário mais: benefício,


escola. Articulação com Assistência Social, Conselho Tutelar, uma rede
de proteção e de garantia de direitos. Ufa! Muitas barreiras a serem
vencidas, pois o preconceito muitas vezes se coloca a frente do ser
humano, impedindo que ele seja visto como uma pessoa capaz de cuidar,
de amar, de ser o que se pode ser, com toda sua singularidade. Mas após
muitas negociações, identificamos que ele precisava de uma “babá” e
a madrinha Andreia tinha uma irmã que se apresentou. Eliza o levava
de manhã e o buscava no final da tarde. Ela se mantinha organizada
participando de um número maior de atividades e oficinas no Centro
de Convivência. Frequência maior calculada para caber as orientações
necessárias e ampliar os laços de cuidado. Sua participação ativa nas
aulas da EJA, coordenada pela professora Sirla, fez grande diferença na
vida dos dois. Em alguns finais de semana ela e sua criança também
eram acolhidas pela família de Andréia, com seu marido e os três filhos.
Ao passar a frequentar a casa, Claudinho passa a ser considerado o
“caçulinha” da família.
Mais tarde ele foi colocado na creche, em período integral.
Mas creche tem férias, sendo necessário uma rede de cuidadores
potentes e disponíveis.
O primeiro ano foi muito comemorado, com bolinho e tudo
mais. Mas também com dificuldades e preocupações: muitos resfria-
dos, otites recorrentes, antibióticos com frequência e um certo atraso

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 185


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
psicomotor. Foi acionada a equipe de saúde mental infantil (equipe
complementar), que passou a acompanhar, realizando a intervenção
precoce no sentido da prevenção.
E assim Claudinho vai crescendo, tendo direito a família, escola,
lazer e cultura.
Existiram momentos de muitos impasses, como por exemplo, os
eternos conflitos familiares de Eliza, os amores, as mudanças constantes
de endereço. Nesses momentos, felizmente tem sempre alguém com
mais energia que toma a frente e se coloca mais à disposição, para que
continue sendo possível. A necessidade de uma cirurgia para retirada
de adenóide em Claudinho fez Eliza se desorganizar e falar aos quatro
cantos por onde passou: “Meu ‘fio’ vai operar, meu ‘fio’ vai operar”. E que
mãe não se desespera diante de qualquer cirurgia de um filho, por mais
simples que seja? Nada que não possa ser acolhido, cuidado, estando
junto, inclusive acompanhando durante a cirurgia, e o pós-operatório.
Necessário muito investimento da equipe para sustentar a travessia desse
momento com tranquilidade. Um mês depois, já tinha ganhado peso
e estava com saúde. Mais uma etapa.

Um atropelamento: Problema ou solução?

Como os desafios são sempre grandes, em uma tarde chega a


notícia de que Claudinho havia sido atropelado, e estava na Unidade
de Pronto Atendimento de Venda Nova (UPA). Rapidamente, a técnica
de referência se desloca para verificar a gravidade do caso: algumas
escoriações e um dente abalado. Fica em observação. Conselho Tutelar
acionado, configurando negligência materna, pois ele havia soltado a
mão da mãe e por isso foi atropelado. Acidentes não podem acontecer
com pessoas com sofrimento mental, pois o peso e a culpabilização
sobre elas ocorrem com muito mais intensidade e surge a ameaça de
Claudinho ser mandado arbitrariamente para um Abrigo.
Necessário toda uma articulação de proteção, de garantia de
direitos, de reuniões difíceis e tensas, de acionamento da justiça, para
garantir que mãe e filho possam continuar vivendo juntos. Eliza se

186 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
desorganiza, e sem a presença dos profissionais do CERSAM, vai junto
com a mãe, ao Conselho Tutelar para dizer que não era uma boa mãe,
que não consegue cuidar bem, que tem medo de acontecer algo pior
com ele, e que não tem condições de assumir mais.
Nesse momento, foi urgente uma pausa...e muitas interrogações:
Onde está o desejo da maternidade? Do lado da equipe ou do lado da
Eliza? O que ela suporta nesse momento? O que é possível? Perguntas
de difíceis respostas e de muita responsabilidade de articulação. Depois
de muitas idas e vindas, foi feito um arranjo possível: Claudinho fica na
casa de sua madrinha, amiga de Eliza, e ela continua sendo responsável
por ele, subsidiando as despesas, visitando todas as semanas. É o melhor
formato? Ela perdeu o direito de ser mãe? Não. Ela continua vinculada
a ele e com ele presente em sua vida. “Meu filho já tá aprendendo a ler,
vai ter formatura.Vai ter festinha de aniversário”.

Família, família, cachorro, gato e galinha

Para a equipe, a aprendizagem de que não há um formato ideal


de família; que há várias formas de se exercer a maternidade, que cada
dia e que cada fase da vida exige um novo olhar, um eterno refazer.
Muitas vezes fomos questionados ferrenhamente. Que garantia vocês
têm de que ela será uma boa mãe? Que ela vai dar conta? Vocês são
muito ideológicos, isso não vai dar certo. Como será o futuro dessa
criança? Respondemos que não temos garantia nenhuma e apenas uma
certeza: a certeza de que foi possível a presença de uma mãe na vida
de um filho, de que não foi vedado o direito de antemão por causa da
miséria, das condições sociais, ou das limitações e que sempre necessi-
taremos de uma originalidade indispensável para reinventar a cada dia
uma saída diante das dificuldades que surgem a cada momento.
Quanto ao futuro? Ainda bem que não temos respostas prontas.
Só sabemos que vai depender da tolerância da sociedade quanto às
diferenças, das políticas públicas eficazes, de uma rede de cuidado e
proteção, da garantia de direitos de qualquer cidadão, mas principal-
mente das pessoas que encontrar pelo caminho.

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 187


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
“E eu acredito num claro futuro
de música, ternura e aventura
pro equilibrista em cima do muro.
(...)
Porque toda razão, toda palavra
vale nada quando chega o amor”
(Caetano Veloso)6.

6
Trecho da música “Tá combinado” (Caetano Veloso, 1986).

188 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
ACOLHIMENTO

Rose Ramos1

Seja abrigo e motivação


Faça a transformação
Acolher é a melhor prevenção
Que o nosso coração seja como uma hospedagem acolhedora
E que seja boa a estadia para quem passa na nossa vida
Aqui a alma dialoga com outra alma: 
— Venha cá, descanse, aceite, reconheça aqui, a palavra cura ao
tocar a dor do outro.
Gratidão é a palavra que me define.
Acolho e sou acolhida.
eu mudei tanto, sabia? 
Deixei de ser aquela pessoa cheia de caraminholas na cabeça, e
hoje sou Imensidão!
Sou abrigo pra mim, e me aceito do jeito que sou.
Sou colo pra você, se quiser também. 
Sou escuta.
Sou silêncio.
Sou amor.

1
Usuária do Centro de Convivência Marcus Matraga

189
Seção 2

ENTRELACES DO SENSÍVEL:
CENTRO DE CONVIVÊNCIA, ARTE E CULTURA

191
DIFERENÇAS

Hugo Leone1

Cada um tem o seu mundo


Que não pode ser julgado
Não olhe o meu
porque eu sou pirado
Somos livres
para viver o nosso eu
Na arte de uma aquarela
Ou na antiguidade de um museu
Tem pessoas que pintam
Tem pessoas que colorem
Tem pessoas que espalham
Tem pessoas que recolhem
Não importa
Todos temos nossa loucura
Mas temos que olhar um para o outro
Com um olhar de ternura.

1
Usuário do Centro de Convivência Cézar Campos.

193
CULTURA E BEM-ESTAR SOCIAL: UMA
CONQUISTA ESTÉTICA

Luciana Salles1

“A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos


toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase
impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar,
parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar,
olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir,
sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a
opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o
automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir
os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender
a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar
muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço.“
(Bondía, 2002)

Vivemos em uma sociedade da informação. A velocidade dos


acontecimentos e sua consequente sobreposição, a necessidade de estar
sempre informado, de formular opiniões sobre esses acontecimentos,
tornam o sujeito incapaz de experiência, de silêncio e pausa, pois tudo o
atravessa sem deixar rastro, e a instantaneidade ocupa o lugar do encontro.
Mazelas como a pobreza, a miséria, a corrupção, o racismo, a violência,
a doença, o feminicídio, o sofrimento mental, o ecocídio e tantas outras,
tão fartamente publicizadas, são sabidas, mas nem por isso enfrentadas ou
devidamente responsabilizadas pela grande maioria dos “informados”. Para
muitos, basta olhar por uma fresta e saber sobre, mas não se sentem convi-
dados a uma participação mais efetiva no combate aos problemas sociais.
Com tamanha variedade de males incorporados à sociedade de
maneira tão orgânica, é necessário promover alguma fricção com a
realidade, algo que (re)clame por atenção, um chamado à convivência
1
Gestora cultural, mestranda em Economia, Políticas Culturais e Indústrias Criativas pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul e pós-graduada em Planejamento e Gestão Cultural pela PUC-MG. Atua
no setor cultural em Belo Horizonte desde 1995. Atualmente é Diretora Cultural da Fundação Clóvis
Salgado/Palácio das Artes.

194
real e pacificadora dentro da nossa diversidade e que nos desperte do
torpor de saber demais.
Os instrumentos para atingir o lugar da experiência muitas vezes
habitam uma dimensão sutil. E no campo da sutileza, a arte detém esse
poder de despertar, posto que é grito, mas também convite ao silêncio.
Que se constitui processo, mas também resultado e, ainda, instrumento
na construção da coletividade e da expressão.
Meu primeiro contato com a produção artística dos usuários da
rede de saúde mental do município de Belo Horizonte foi por meio
da “Mostra de Arte Insensata”, culminância do primoroso trabalho
realizado pelos Centros de Convivência. A espontaneidade estética
das obras criadas na liberdade da desrazão devolveu-me o sabor da
experiência bruta, tão diferente da apreciação artística resultante das
relações mercantis que levam ao dirigismo, que hoje norteia o ambiente
cultural brasileiro, ao menos na sua dimensão formal.
Mas, para além de me colocarem como sujeito dessa experiência,
essas obras tiveram o poder de desvelar quem as produziu, descons-
truindo um imaginário que me levava a acreditar na incapacidade das
pessoas com sofrimento mental, mas, sobretudo, pontuando o seu direito
à cidade e fazendo ecoar a luta por uma sociedade antimanicomial.
Movida por essa espécie de revelação e manejando uma engrena-
gem que me cabia naquele momento, aderi a esse movimento e propus,
no âmbito do Circuito Liberdade, complexo cultural que na ocasião
reunia cerca de dez espaços expositivos ao redor da Praça da Liberdade,
em Belo Horizonte, uma exposição desses trabalhos distribuídos nessa
variedade de centros culturais. Por meio dessa articulação, nascia a
Mostra Arte e Loucura, no Circuito Liberdade, realizada de abril a julho
de 2017, atingindo um expressivo número de visitantes no tempo em
que esteve em cartaz.
Contudo, a construção de uma compreensão que reconheça a
dimensão cultural como algo que compõe a base da sociedade e que,
portanto, estabelece o tecido social e constitui-se em uma fonte inesgo-
tável na geração de riquezas, é um desafio diário para os trabalhadores

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 195


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
da cultura e não dá pistas de que esteja obtendo o merecido êxito,
especialmente no Brasil.
Nos poucos países em que essa compreensão existe (Itália, França,
Inglaterra e Japão são alguns exemplos), há pesquisas que demonstram a
estreita relação entre cultura e bem-estar com resultados surpreendentes
e, por isso mesmo, merecedora de investimentos de maior vulto. Cons-
tatam que pessoas envolvidas em atividades culturais adoecem menos e,
portanto, custam menos e geram impacto positivo no sistema de saúde,
na redução dos números de criminalidade e no incremento da inovação,
algo que é tão caro à produtividade e competitividade de empresas, por
exemplo, além de levar a novas ideias que poderão servir à sociedade.
Em tempos pandêmicos nos quais a arte tem sido, notadamente,
esteio para a sanidade, é preciso reafirmar o valor da cultura. Com as
abordagens corretas, que transcendem as métricas dos números de
empregos gerados ou ingressos vendidos, é possível apresentar dados
consistentes e tangíveis sobre o valor da cultura no desenvolvimento
econômico e social.
Essa transformação ganhará legitimidade se convidar para a mesa,
junto aos tomadores de decisão nos âmbitos institucionais, as pessoas
das áreas à margem da sociedade, compreendendo-as como partícipes
dessa construção, e não apenas destinatárias, gerando um movimento
de representatividade e coesão cultural na formulação de políticas
públicas para a cultura.
Bem-estar social e saúde mental por meio da cultura levam ao
entendimento de como a arte pode melhorar a vida das pessoas sob
todos os aspectos. Essa é uma conquista estética e, como tal, deve ser
celebrada.

Referência

BONDIA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de


experiência. Revista Brasileira de Educação [on-line]. 2002, n. 19, p. 20.

196 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
CONSTRUINDO RETRATOS: OS DESAFIOS
DE UMA CURADORIA SOBRE A MOSTRA DE
ARTE INSENSATA

Júlio Moreira1
Maíra Paiva2

A Mostra de Arte Insensata sempre foi um dos eventos mais


relevantes no cenário da cidade de Belo Horizonte e da rede de saúde
mental. Surgiu em 2008 e teve em sua proposta inicial a bianualidade,
acontecendo também em outras capitais do Brasil a partir da sua ter-
ceira edição.
Com a intenção de debater e divulgar a arte produzida na rede de
atenção psicossocial, através de ações reflexivas, inclusivas e provocadoras,
alguns dos espaços culturais da cidade foram ocupados pelas experiências
diversas acerca do sofrimento mental e seus saberes, revelando assim a
história e a formação do que conhecemos sobre loucura, visibilidade
e diferenças presentes na cidade que habitamos.
A construção de uma política de luta antimanicomial nunca
esteve separada de uma interlocução entre a arte e a cultura e, por isso,
a Mostra se apresenta como a tradução do espetáculo, onde todas as
coisas acontecem. Todas as oficinas se encontram. As músicas se atra-
vessam num só ritmo. As vozes se retratam em quadros e objetos. A
beleza do encontro entre as conversas, debates, palestras e apresentações
revela a riqueza da diversidade. As mãos, os olhos e todos os sentidos
se juntam num só corpo, celebrado como grande obra artística. Essa
“contempl(ação)” de dizer sobre a poética singular de todos os sujeitos,
1
Artista Plástico formado pela Escola Guignard (2005). Atuou nos Centros de Convivência Rosimeire
Silva e Cézar Campos SUS-BH/MG, como monitor de pintura, desenho, gravura, cerâmica e mosaico
de 2010 a 2013.
2
 Artista Plástica formada pela Escola Guignard (2005). Pós-graduada em Arteterapia pela Integrarte (2008). 
Atua como monitora de oficinas de Letras, Mosaico, Pintura e Desenho nos Centros de Convivência
Arthur Bispo e Oeste SUS-BH/MG desde 2011.

197
insensatos em suas criações e únicos em suas (re)invenções de vida, se
faz plural na história da rede de saúde mental e seu trabalho com a arte.
Por isso, para dizer desse acontecimento, mostramos também nosso
olhar, como monitores-artistas e trabalhadores da saúde. Começamos
com esse relato a partir do convite, feito em 2012, para integrarmos
a Comissão Organizadora. Os artistas da rede que compuseram essa
equipe foram Wesley Simões, Júlio Moreira e Maíra Paiva, apoiados
também pelas gerentes de Centro de Convivência Karen Zacché e
Giselle Amorim, com a tarefa de pensar o conceito, escolher as obras,
construir a expografia e montar a exposição da Terceira Mostra de Arte
Insensata – “Tato, Trato e Retrato”.
Após formada essa equipe, o desafio foi visitar os nove Centros
de Convivência para observar a produção e escolher, dentre os diversos
objetos, bordados, desenhos, pinturas, fotografias e esculturas, o que
coubesse na ideia de pluralidade, porém, revelando a singularidade de
cada sujeito e cada serviço.
A seleção dos trabalhos foi intrigante e difícil ao mesmo tempo.
Encarar e analisar cada obra neste processo foi como estar frente a
frente com o artista que a produziu, conhecê-lo pelo lado de dentro e
se deixar seduzir por suas expressões. E eram muitas. Diante de tantos
trabalhos, seguimos procurando pontos que se ligavam, linhas que con-
vergiam, cores que se mesclavam, conversas. Uma avaliação criteriosa
com um único propósito: unir as singularidades. E era incrível como
“as peças iam se encaixando” como em um grande quebra-cabeça. Ao
final desta apuração tivemos um imenso mosaico com formas ricas e
acabamento perfeito. E, num “quebrar e colar de peças” para produzi-lo,
despedaçamos também uma série de paradigmas sobre a incapacidade
e periculosidade dos cidadãos em sofrimento mental. Aqui, diante de
tanta preciosidade, por um momento a arte nos faz esquecer o sofri-
mento, e só enxergamos os artistas e suas obras. Extraímos e reunimos
o melhor deles.
“Empresta-me Teus Olhos?” foi o título do texto escrito de maneira
muito poética pelo Wesley. Ele nos guiou, de forma muito delicada, para
um trabalho de curadoria, desenhada com a maior diversidade possível,

198 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
nos convidando a pensar no retrato do nosso cotidiano. Pensamos em
um museu, onde não só coubessem os infinitos objetos de cada Cen-
tro de Convivência, mas onde apresentasse o dia a dia do serviço e as
memórias, acolhidas em um só lugar. Nesse contexto, nasceu o “Museu
Interior”, ou o “Gabinete de Ideias”!
Durante a montagem, cada objeto que chegava era abrigado como
relíquia, como um propósito de memória e história a ser contemplado.
O galpão de cima do Espaço 104 serviu de “casa” para acolher o Museu.
Entre “cotocos” de lápis de cor desapontados, pequenas esculturas de
pássaros de cerâmica, baldes, cadeiras empilhadas, livros e enciclopédias
dispostos dentro e fora de caixas, molduras antigas, gavetas abertas cheias
de papel, vestidos de época, novelos de lã colorida, fios enlaçando guar-
da-roupas, surgia um caos e uma ordem entre as minúcias e as sutilezas,
características de um lugar profundo, localizado no interior de cada
um, de cada convívio, de cada situação trivial nos serviços. Um mundo
sensível que seduzia pelos detalhes: o som de uma caixinha de música,
um figurino que girava no teto, sonhos, memórias.
Um território coletivo cheio de saberes e vivências. Um museu
imaginário peculiar, carregado de conhecimento. Uma explosão de
imagens. E, nesse cenário tão orgânico, propusemos algumas ações,
dentre elas um engraxate em seu ofício, uma estátua viva pintada
de prata, na intenção de reinventar o lugar da rua dentro do Museu,
ambos se apresentando como parte do caos. Convidamos uma auxiliar
de limpeza, pessoa muito querida, chamada Regina Ferreira, para coar
seu famoso café e simbolizar o respiro, tão necessário e presente nos
Centros de Convivência. Um encantador diálogo com a cidade, que
quebrava barreiras e trazia as peculiaridades das ruas para compor seu
espetáculo. A simplicidade do cotidiano que antes passava despercebida
ganhava status e fazia explodir os sentidos: tato, olfato, audição, visão e
paladar, tudo aguçado ao extremo.
Paralelamente ao “Museu Interior”, no salão do segundo andar
do Espaço 104 montamos a Exposição “Tato, Trato e Retrato”. Em sua
entrada, montamos uma instalação com pés feitos de cerâmica. Criamos
um caminho que guiava os visitantes até as divisórias que apresentavam

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 199


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
os quadros de bordados, desenhos e pinturas. Foram muitos os registros
de identidade a partir de colagens, retratos e rostos traçados em linhas
e tintas, fotografias de lugares, esculturas de cabeças. Uma coleção de
280 obras no total, contemplada por centenas de pessoas nos quatro
dias de visitação. Foi uma experiência incrivelmente gratificante, pois
fazer parte dessa história nos trouxe uma sensação única de aprendizado.
Em meados de setembro de 2012, recebemos nova tarefa, a de
participar da Mostra de Arte Itinerante, ampliando a interlocução da
produção artística dos diversos serviços substitutivos de outras capitais.
Tivemos a oportunidade de montar as mesmas exposições no Rio de
Janeiro e em Goiânia, outros ventos, novos desafios. O desafio era elaborar
as Mostras, inserindo trabalhos produzidos pelos cidadãos em sofrimento
mental das respectivas cidades. Fomos muito bem acolhidos pelos serviços
nas duas viagens. Convidados a conhecer novos mundos, adentramos
em novos “museus interiores”. Enfim, percebemos que só mudamos de
endereço. Mas o desafio ainda estava “exposto na mesa”. Como agregar
novos trabalhos a uma Mostra que já parecia tão “redondinha”? Como
diz o ditado,“Na mesa que comem dois, comem três”. Sempre cabe mais
um. Acolhemos. E a roda apenas aumentou a circunferência, ganhando
corpo e continuando a girar em seu círculo perfeito.
Partimos para essa empreitada apenas com a equipe dos artistas,
primeiramente visitando o Rio de Janeiro e suas instituições de trata-
mento da saúde mental. Fomos recepcionados pelas assessoras de geração
de renda e cultura, as psicólogas Mariana Sloboda e Margarete Araújo e a
estagiária de Psicologia Rhayana Cavassini, que muito contribuíram para
a organização. Elas nos apresentaram diversos lugares, diferentes daqueles
que conhecíamos em Belo Horizonte, em termos de instituições de
saúde mental.Tivemos a oportunidade de visitar o Instituto Municipal
Nise da Silveira, o Instituto Philippe Pinel e o Instituto Municipal de
Assistência à Saúde Juliano Moreira, antiga Colônia Juliano Moreira,
onde viveu por 49 anos Arthur Bispo do Rosário e que hoje abriga o
Museu Bispo do Rosário de Arte Contemporânea. Nesses três lugares
percebemos uma grandiosa e riquíssima produção artística dos usuários,
com acervos muito bem preservados e uma variedade enorme de obras.

200 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
Montamos o Museu Interior em um salão, muito elegante, de
um antigo casarão, o Centro Cultural Laurinda Santos Lobo, localizado
no bairro Santa Teresa. Foi uma ação intensa, imersa em descobertas,
desafios e trabalho. Nos chegaram manequins pintados, esculturas de
arames, móveis antigos, desenhos, instalações de bonecas, aparelhos de
eletrochoque e apetrechos de lobotomia, utilizados por muitas décadas
na construção de uma lógica manicomial. Vieram também algumas
cartas, documentos, bordados de rostos, e até mesmo um busto feito
em bronze do psiquiatra Juliano Moreira.Tentamos recapitular todo o
percurso dessa narrativa histórica acerca da loucura, com uma identidade
própria e uma tonalidade artística.
Praticamente todas as salas desse belíssimo casarão foram ocupadas
pelo evento. No jardim, montamos a instalação “Espelhos de Narciso”,
compondo muito bem com o espaço de oficinas e apresentações tea-
trais. No interior da casa fizemos a exposição com obras de pintura,
em sua maioria. No andar de baixo aconteceram a feira, o palco de
apresentações musicais, as palestras e as rodas de conversa. Tudo muito
bem ocupado pela produção da saúde mental, criando um evento de
enorme visitação e apreciação do público carioca.
Encerrou-se, depois de quatro dias, em um belo domingo de sol,
com um pequeno desfile do bloco Loucura Suburbana nos arredores
do bairro, com a participação de muitos que ali passavam.
Em novembro do mesmo ano de 2012 partimos para Goiânia.
Foi uma viagem mais curta e, desta vez, fomos acompanhados de
uma artista-usuária do Centro de Convivência São Paulo, a Zilda
Flores. Por esse motivo, a experiência se caracterizou por uma outra
espécie de alegria e intensidade. Zilda nos trouxe um convívio e um
olhar amoroso sobre o trabalho, aproximando-se muito do nosso
fazer enquanto curadores e contribuindo com ideias geniais. Fomos
acolhidos pela Zilda e ela, integrada ao corpo da nossa equipe, virou
nosso “braço direito”.
A equipe de Goiânia era formada por profissionais da área de Psico-
logia,Terapia Ocupacional e Arteterapia. Marla Castro e Carolina Santos
nos receberam com toda atenção e cuidado. Nos apresentaram o Museu

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 201


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
Antropológico da Universidade Federal de Goiás, onde seria montada a
exposição, com cerca de 30 obras. O local abrigou também as atividades
de oficinas, rodas de conversa e apresentações de dança. Foi uma viagem
mais curta; não tivemos a oportunidade de montar o Museu Interior.
A Mostra durou três dias e foi visitada por um público bem
diverso. Tivemos a oportunidade de conhecer de perto um artesanato
indígena muito forte e presente na região, que se integrou à feira de
produtos artesanais dos usuários.
O encerramento se fez na praça, durante a noite, ao lado do pré-
dio da Mostra, com um enorme público, para assistir à apresentação do
cantor Diego Mascate. Um show de verdadeira piração, carregado de
letras bem divertidas e pensantes e em completa interação com a plateia.
A experiência dessas viagens foi, além de um profundo mergu-
lho no tempo, uma vivência de outros saberes em torno do cuidado
e da arte como aliada ao tratamento em saúde mental. Descobertas e
desafios nos transformaram como artistas, curadores e público, onde
aprendemos a mensurar nossas funções acerca de um trabalho com a
arte e a loucura. O convívio com outros profissionais, a observação de
outras maneiras de fazer rede, laço e acolhimento, nos apontaram para
outras investigações. Nos reforçou ainda mais a ideia da importância
dos dispositivos da saúde se abraçarem à cultura e, aprendemos que o
sofrimento mental tem a arte como uma imensa saída para a criativi-
dade, expressividade e comunicação.
A 3ª Mostra de Arte Insensata e Itinerante foi como uma grande
e iluminada roda gigante. Os convidados estavam sempre prontos para
vivenciar uma experiência emocionante, cheia de subidas e descidas.
Sentar-se na cadeira de uma roda gigante é saber dos altos e baixos.
Momentos de pausa e giros. Frio na barriga e às vezes falta de ar. Mas,
certamente, as imagens que guardamos na memória são sempre as
mais belas, quando vemos a imensidão do ponto mais alto. Ou, talvez,
seja a “roda” vista por quem está de fora dela: monumental, reluzente,
girando com todas as suas cores, viajando pelas transformações que a
circulação permite. Ancorar pelas cidades, como Mostra, pode ser da
ordem gigante da insanidade ou das voltas loucas que a Arte proporciona.

202 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
Nesse ângulo, dizer do tamanho e potência desse evento é dizer sobre
a poesia que cabe na inserção social, o atravessamento que o encontro
entre as multidões permite e, em toda a sua beleza, fazer possível um
giro fora das curvas de uma roda.

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 203


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
ARTES, ENCONTROS E GOLES DE CAFÉ

Wesley Simões1

Ao esboçar as primeiras linhas deste despretensioso texto, de cara


fui convidado, como que para esquentar prosa, a uma pequena volta no
tempo: de quando entrei para trabalhar no Projeto de Saúde Mental
do município de Belo Horizonte. Nessa época, a minha relação com
a loucura era apenas pela literatura. Devo dizer que nunca passou pelo
medo, entretanto. Quorpo Santo,Van Gogh, personagens de Guimarães
Rosa, o “Louco” do Maurício de Souza. Ia por aí. Comecei a trabalhar
em 1994, e ainda cursava a Escola de Belas Artes/UFMG, onde acabara
de pedir continuação de estudos para investigações no campo da escul-
tura. Eram restritas, devo confessar, as reflexões a respeito, até mesmo
acerca do meu trabalho pessoal como artista. Sobravam perguntas ainda
mal esboçadas. Garatujas.
Comecei pelo CERSAM/Barreiro, primeira unidade de atendi-
mento de urgência na cidade, e agora me recordo sobre uma conversa
que tive com uma das pessoas que me contatou para o trabalho (na
época envolvida com a área da cultura na Prefeitura) sobre o porquê
de ir para esse espaço, que atendia urgências psiquiátricas. Entre tantas e
tantas orientações e esclarecimentos, vinha junto também a orientação-
-oportunidade de esclarecer junto a Administração Regional Barreiro,
na Gerência de Cultura, a importância de se instalar na região um
Centro de Convivência de Saúde Mental. Esclarecendo: parece que, à
época, as pessoas condicionavam a instalação de um Centro de Convi-
vência à criação anterior de um centro cultural na região do Barreiro.
Encurtando um pouco a conversa, passados mais de dez anos dessas
conversas inaugurais, o Centro de Convivência Barreiro funcionava a
1
Wesley Simões é artista visual, ator e diretor de teatro. Membro-fundador da Cia. Reviu a Volta.Atualmente
trabalha como ator na Cia. Candongas, de BH, e como coordenador artístico e pedagógico da Escola Livre
de Artes Arena da Cultura em BH. Formado pela Escola de Belas Artes da UFMG e com pós-graduação
em Gestão Cultural pela PUC-MG, trabalhou durante 21 anos na coordenação de oficinas artísticas em
CERSAM’s e Centros de Convivência do projeto de saúde mental da Prefeitura de Belo Horizonte. Fez
parte da concepção, desenvolvimento e curadoria das 3 edições da Mostra de Arte Insensata.

204
plenos pulmões e o centro cultural ainda não passara de projeto (hoje
realidade, ainda bem). A aposta da Secretaria de Saúde estava correta.
A conversa-pensamento esquenta e sublinha um sentimento
que, eu sinto ainda hoje, permeia toda essa trajetória de conquistas do
projeto de saúde mental do Município de Belo Horizonte: o sonho.
É esse sonho que eu vi e vejo, como fio invisível de Ariadne ( Ops,
na verdade de São Doidão a conduzir os participantes de uma oficina
de arte ao longo desse tempo). Seja, enquanto ali estava, no dia a dia,
ou agora, acompanhando de mais além. O Sonho: a liga dos pontos, o
engate, fio dourado bordando a relação Arte e Loucura.
O artista (aí é preciso separar arte e produto cultural), seja ele
acadêmico, surrealista, cubista, engajado, artista popular, autodidata
ou não, traz em sua obra, em sua relação com o mundo, um descon-
tentamento, uma real vontade – revelada ou escondida – de recriar o
mundo. O sonho de um mundo, não necessariamente melhor, mas
diferente com certeza. Mundos possíveis e mundos impossíveis. Com
outras tintas, no mínimo.
Por que diabos alguém vivendo um verdadeiro inferno na terra,
que muitas vezes é invisibilizado, que não se enquadra, que se diz “no
mundo da lua”, apartado, tratado como diferente... por que esse sujeito,
quando convocado a se expressar através de imagens, escolhe desenhar
uma flor? Escolhe cobrir a tela com cores vibrantes e variadas? Por que
esse sujeito ainda escolhe não deixar o papel em branco?
Recriar o mundo, organizar ou realizar o caos, fazer estremecer
a calmaria. Eis a expressão artística. Corajosa expressão.
No quase-sempre-sofrido caminho de escrever, várias perguntas
vão se movendo – em especial neste nosso mundo distópico: o que
é a loucura? E o que é a arte? Em que infinito coletivo essas linhas
paralelas se cruzam?
Ainda há lugar pra perguntas? Faz sentido? “O que anda pelas
cabeças”?
A conclusão que não me pega de cheio, me faz aceitar que nem
sempre é fácil ou simples encontrar estas respostas.

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 205


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
(Intervalo para um café e a movência das ideias)
No que diz respeito à minha experiência pessoal, acredito que
essas duas paralelas encontram um ponto de tangência na força e na
beleza do indivíduo, na potência da diversidade, na maneira sempre
única e interessante que cada um tem de ver e interagir com o mundo.
As soluções e criações surgem na tentativa de responder a perguntas
que nos são caras desde que o mundo é mundo: quem eu sou, por que
eu sou, pra onde vou... Salve, Homo Sapiens!
Para aquecer o coração, como diz o poeta: “Todo artista cultiva
mais perguntas do que respostas”.
(Mais um gole generoso de café pra arredondar as ideias)
Quorpo Santo, em sua obra teatral, fez um sem-número de per-
guntas a si e a toda a comunidade. A obra de Guimarães Rosa possui
mais interrogações e reticências do que propriamente pontos finais.
E Van Gogh? Van Gogh elaborava várias perguntas em suas cartas ao
irmão Theo. Umas delas, inclusive, ousava ele mesmo responder e nos
oferecer mais exclamações.
O que é desenhar? Como se chega a isso? É a ação de
abrir para si uma passagem através de uma parede de
ferro invisível, que parece estar entre o que se sente e
o que se pode. Como se deve atravessar essa parede?
Porque de nada adianta bater forte nela, deve-se minar
essa parede e atravessá-la com a lima, a meu ver lenta-
mente e com paciência.

O encontro da arte com a loucura, essa tangência criativa e


criadora, consiste na derrubada dessa parede, com a lima, lenta e
paciente. Numa via de mão dupla. Deixando livre o caminho entre
poderes e sentidos.
Ao perseguir alinhavar meu percurso, é muito significativo pra
mim algumas condições que tornam essa estrada mais interessante, mais
fascinante: a capacidade do indivíduo de reconstrução; seja falando de si
ou do mundo; a força do coletivo que não determina a destruição do
íntimo e do pessoal; a motivação em transformar conceitos e ideias; a
originalidade sempre presente, num momento em que olhamos para o

206 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
lado e tudo se transformou em cópia mal feita de si mesmo. Toda essa
originalidade que advém do encontro me fascina. Me nutre. Alimenta.
(Acabou o café. Um minuto para repor a xícara)
Acompanhei, em oficinas e outros processos e percursos, o ori-
ginal que aparece. De forma espontânea, sem teorizações. Sinais que se
apresentam dia a dia no trabalho e que produziram e produzem reflexões
outras, posturas outras... e me move à pergunta e, por isso, à pesquisa.
Não para achar algo inédito, nunca mostrado antes, e sim para quem
sabe revelar aquilo que, por ser tão individual e sincero, nos surpreende
por ser universal. E, sobretudo, entregar-se à aventura criativa.
“Surpreendente por ter sempre estado oculto, quando terá sido
o óbvio” (Caetano Veloso).
Essa aventura, muitas vezes efêmera... Uma das coisas que chama
a atenção nesse percurso pela saúde mental é a capacidade de todos os
envolvidos de se lançarem ao risco, sem pudor ou melindres.
Uma folha em branco é, com certeza, um mergulho, onde as
pessoas, sejam elas artistas ou leigos, se veem paralisadas pelo medo e
comumente preferem ali representar cenas e signos com os quais este-
jam familiarizadas, de modo a não darem chance para o erro. Criar é
um verdadeiro pulo em direção ao abismo. Um breve instante em que
nossos pés deixam de tocar o chão e não temos mais como voltar atrás.
É fácil vislumbrar, dentro de um percurso artístico, não só no campo
das artes plásticas, mas também na música, dança, teatro, a coragem com
a qual se atiram aqueles que se dispõem a realizar. Nesse momento, para
eles não há regras, nem amarras. Nesse sentido, um grande momento
de coragem, de se permitir quase que um pulo no abismo, a partir das
incertas-ideias-utópicas, foi sem dúvida a experiência de concepção,
desenvolvimento e concretização da Mostra de Arte Insensata.
“À Arte compete apontar para além dos limites impostos pela
dura realidade, na tentativa de buscar novos caminhos para o homem.”
(Manifesto Redemoinho)
Esse nome aliás – Insensata – diferente do que muitos enten-
deram e compreendem até hoje, pretendia dizer respeito a insensa-

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 207


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
tez de propor, àquela época, algo tão grande, tão amplo e, de certa
forma, tão ousado. Absolutamente não se propunha a encaixotar numa
expressão o que era realizado por portadores de sofrimento mental,
como uma espécie de subgrupo ou gaveta para entendimento. Arte
é Arte. E vice-versa.
Lembro-me que alguns tinham esse entendimento torto, fruto da
nossa formação em gavetas segregadoras, sobretudo durante a primeira
edição da Mostra de Arte Insensata, realizada na atual Funarte.
Foram três edições, três mergulhos, três experiências arriscosas,
como diria Guimarães Rosa. Sobretudo a última edição, realizada no
Espaço 104. Foram momentos de criativa intensidade, desde as primei-
ras reuniões no Centro de Convivência Rosimeire Silva, até a última
performance da última noite, na última edição. E nessa última edição
(que alimento na alma que não tenha sido realmente ainda a última)
assumi um papel de curadoria geral e, por consequência, um papel de
sugerir caminhos, conferir bordas mais definidas, mas que fossem porosas
o suficiente pra caber o mundo, além de cuidar de toda a identidade
visual e demais elementos unificantes. Foi uma aventura inventada no
feliz (de novo Guimarães Rosa)!
Em um dos textos, escrevi mais ou menos assim:
Piscar é abrir e fechar os olhos – viver é isto! Eis que,
numa piscadela só, quinze anos se passaram (à época) e
um mundo de beleza se abriu. Percebemos que tudo o
que conhecíamos e reconhecíamos como beleza eram
meros rasgos de luz parciais. O que tínhamos a nossa
frente era muito mais amplo. Olhares únicos e originais.
Surpreendências… Imagens que, entre uma e outra
dessas piscadelas, com certeza nos trouxeram a vida.
Múltipla e singular.

Durante o processo, tive o auxílio luxuoso dos companheiros-ca-


maradas Júlio Cesar Moreira e Maíra Paiva. Dividimos ideias, utopias,
dúvidas, surpresas, museus interiores e gabinetes cheios, lotados de
curiosidades, luzes, sombras e deslumbramentos!
(Peraí. Mais um café pra adoçar a saudade)

208 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
Enfim, mais algumas piscadelas e a vida seguiu impaciente.Tenho
então, hoje, a certeza – não sem perguntas várias – de que depois de
vivências singulares como essas, depois do contato com tanta rica
diversidade, talento e coragem que tenho em mim, muito mais do
que todos os sonhos do mundo (desculpa aí, Fernando Pessoa). Tenho
em mim, sobretudo, as marcas das utopias possíveis, das diversidades
inesquecíveis, das invenções incabíveis.
Tenho a certeza de que outro mundo é possível.

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 209


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
UM DOCE BALANÇO, UM MERGULHO, UM
SALTO, UM LUGAR DE SE AFOGAR, UM
SABER EMERGIR NOVO: ESTREIA DO TEATRO
NA REDE PÚBLICA DE SAÚDE MENTAL DE
BELO HORIZONTE

Juliana Saúde Barreto1

Substantivo Feminino.
Tecido.
De gente ou de malha, com aberturas regulares.
Resistente.
De Arte.
Entrelaçamento de fibras ligadas por nós.
Entrelaçamento de pontos que se cruzam no espaço.
Ponto e linha sobre o plano, muitos planos.
Amparo para liberdade de se lançar.
De trançado nem sempre simples e comum, resiste.
Sinônimo de barga, armadilha também pode ser seu nome.
Emalhar. Emaranhar.
Também novo jeito de firmar conexões com o mundo.
Real ou Virtual, sempre pontes.
De segurar, de prender, de conhecer, de fazer voar, de proteger.
Rede.

Nesses vinte anos de trabalho com arte e saúde mental não será
a primeira nem a última vez que conto e reverencio meu encontro e
minha experiência com o trabalho da rede pública de saúde mental
da cidade de Belo Horizonte, mais diretamente nos Centros de Con-
vivência deste serviço. Não me canso, não me esqueço, não sigo sem
1
Juliana Saúde Barreto é atriz, pedagoga, professora de yoga, através desses saberes pesquisa o brincar e a
poética da infância. Durante os últimos vinte anos se dedicou ao trabalho de acolhimento e criação em
arte e saúde na idealização e direção do Núcleo de Criação e Pesquisa Sapos e Afogados formado por
portadores de sofrimento mental.

210
antes pensar na força deste movimento, nos ensinamentos e no que
reverbera no meu trabalho ainda hoje. Para mim, como atriz, tudo
começa no desfile do 18 de maio de 2002, onde, a convite do Fórum
Mineiro de Saúde Mental, nas figuras de Ana Marta Lobosque e Mark
Nápoli, performo com parceiros das artes cênicas pelas ruas da cidade.
Na cabeça, uma gaiola e muitas chaves penduradas, pernas de
pau, o som de uma matraca. No figurino, uma tela gigante que me
vestia em um abraço ao corpo de outra atriz e assim nos fazíamos
uma. O grito por liberdade nas ruas da cidade me abrira os olhos, o
coração e a alma em um caminho sem volta. Encantamento imediato
por aquelas pessoas que pisavam firme, desejavam grande, se divertiam
leves, fazendo a revolução forte com sorriso largo. Estampado em cada
rosto uma história particular. Foi rápido querer fazer parte do bando.
Depois deste dia, no desfile do 18 de maio, mais uma vez apre-
sentamos eu, Miller Machado, Júnia Bessa e William Gomes dentro da
UFMG em outro evento do Fórum Mineiro de Saúde Mental. Desta
vez foi Rosimeire Silva quem fez o convite e na sequência me abre a
porta, chamando para uma prosa. Me perguntava como seria levar o
teatro como experiência para os Centros de Convivência da cidade,
que na ocasião eram oito ainda. Na conversa também me lembro de
Karen Zacché. Cuidadosas, me trouxeram três perguntas: “Como você
imagina ser e para que serve o Centro de Convivência?”; “Como você acha
que será o teatro para os usuários do serviço?”; “Você vai fazer laboratório com
eles?”. Risos. Expliquei como sentia o movimento do teatro naquele
espaço, sendo tudo tão novo para mim, que acabava de sair como atriz
do Centro de Formação Artística da Fundação Clóvis Salgado (meu
trabalho vinha da graduação em Pedagogia, das brincadeiras com a
“meninada” do ensino infantil, o que me ajudou bastante na compo-
sição entre arte e saúde mental). Também falei um pouco sobre “essa
tal história dos laboratórios” e como funciona para os atores. Topamos
inventar e descobrirmos juntas um jeito de fazer. “E não sei, só sei que
foi assim...” Começou aqui.
Minha primeira proposta foi criar dois polos, onde dois Centros
de Convivência seriam pontos de encontro para acontecer a oficina

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 211


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
de teatro, acolhendo os usuários dos demais Centros de Convivência.
Na última semana de cada mês fazíamos um giro entre todos os oito
Centros de Convivência demostrando o que nas oficinas havíamos
criado durante o mês e assim convidávamos outros usuários a partici-
parem também.
O teatro ainda não havia sido experimentado na maneira como
propus nas oficinas; existiam na rede oficinas de trabalhos corporais, de
dança, certamente com jogos teatrais, mas de maneira tímida. O desejo
pulsante de formar uma companhia de teatro foi o que eu trouxe com
força, entusiasmo e, claro, com todos os tropeços no caminho que muitas
vezes é “resvaloso” e sempre ensina, mas a coragem sempre seguiu junto
comigo, e segue até os dias de hoje como parceira.
Em um desses polos onde se reuniam atores dos Centros de
Convivência César Campos, Carlos Prates e Arthur Bispo, nasceu a
Companhia Momentânea de Teatro. Em um Auto de Natal idealizado
por um dos atores, estreamos nosso primeiro espetáculo, “Hoje é o Dia
de Santos Reis”, e claro que tinha Tim Maia na trilha. Luís Carlos foi
quem trouxe essa vibração no violão e rapidamente convenceu a todos
de que seria incrível. E foi. Sucesso de público e de bilheteria, com
gostosuras e gulodices na festa de final de ano no Centro de Convi-
vência César Campos. Aplauso garantido.
A Companhia seguiu criando e chegou a participar do 2º Encontro
de Serviços Substitutivos do Fórum Mineiro de Saúde Mental, na cidade de
Arcos, com o espetáculo “Mais de uma vez, mais de uma voz”, o que só
aumentava nosso desejo de seguir como grupo de teatro. A turnê já
estava desenhada. Deste lado da cidade, neste mesmo polo, acontecia uma
oficina despretensiosa para quem quisesse vivenciar o corpo teatral sem
ser ator. Aqui também as gerentes desses serviços, Karen Zaché, Silvia
Collen e Rogéria Diniz de Deus, se dedicavam na feitura dos figurinos,
da maquiagem, de toda produção, da elaboração do portfólio da com-
panhia, da promoção da circulação pela cidade, porque uma coisa era
certa: parte deles queria com força ser “atores de verdade”. Aguardavam
ansiosos pela assinatura de um contrato com a Coca-Cola enquanto
ensaiávamos o novo espetáculo, desta vez em um mergulho na cena

212 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
cultural da cidade, para nos apresentarmos na 3ª Zona de Ocupação de
Belo Horizonte com a montagem “Sapos e Afogados” onde personagens
inusitados invadiam o espaço e levavam ao público a seguinte questão:
“E tudo que doido faz é arte?”. Daqui também nasce outra história, que
mais tarde se tornou o que é hoje o Núcleo de Criação e Pesquisa
Sapos e Afogados, atuante desde 2004, de forma independente na cidade,
já não mais como parte da rede, embora tendo alguns de seus atores
como usuários do serviço.
Do outro lado da cidade o segundo polo que sediava os usuários
de mais quatro serviços (Pampulha, São Paulo, Providência e Barreiro),
o trabalho acontecia de forma divertida e intensa, mas ainda no formato
apenas de oficinas.
O que hoje vejo com mais segurança e que na época já apontava
como impossibilidade era o fato de um único monitor de teatro sustentar
e atender a toda a rede, uma vez que o trabalho tinha alcançado maiores
proporções. Nem todas as demandas nos polos conseguiam ser atendidas.
Em um desses lados, na Companhia Momentânea o ritmo era frenético
na produção, criação e circulação dos espetáculos. Se por um lado tudo
isso trazia um amadurecimento, por outro uma certa fragilidade se fazia
presente. Nem por isso o trabalho se mostrava incipiente, se pensarmos
que o que acontecia dentro da companhia ganhava ares profissionais no
fazer teatral, no trato com esse ofício e no diálogo com a cidade.
Eu propunha novos profissionais do teatro para atuarem nos
Centros de Convivência, podendo com isso ampliar as possibilidades
e quem sabe conceber coletivamente um espetáculo com direção
compartilhada, onde todos os Centros de Convivência pudessem se
dedicar a uma cena, por exemplo. Isso, na época, não era possível. Eram
muitos os sonhos e a esta altura eu já me permitia delirar, como bem
me ensinava e me ensina essa experiência da loucura, que assim como
o teatro também atravessa o corpo. Aprender com a loucura sempre
me trouxe os riscos, a dor e a delícia que no fundo acredito ser o que
todo ator deseja imensamente para transformar-se e assim transformar
tudo em volta, cumprindo parte do legado sagrado da arte.

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 213


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
Nesta parte da caminhada rupturas se fizeram necessárias, e embora
dolorida a decisão me trouxe a certeza de que o fazer teatral dentro
do Centro de Convivência para mim chegava ao fim e que o trabalho
seguiria comigo na minha trajetória como atriz e diretora. Renunciei
ao emprego, mas não do trabalho.
O espetáculo “Sapos e Afogados”, a convite de Ricardo Alves Jr.,
com apoio da Universidade dell Cine, virou filme de mesmo nome.
Os atores desse elenco (parte dos integrantes da Cia. Momentânea
e outros que se achegaram) seguiram juntos comigo, Ricardo e
Byron O’neil formando o que batizamos como Núcleo de Criação
e Pesquisa Sapos e Afogados, com trabalhos nas áreas teatral e audio-
visual. Realizamos um segundo filme, “Material Bruto”, e mais um
espetáculo, Caixa Preta, já acolhidos no Galpão Cine Horto. Após o
salto para fora da rede ficamos sem todo aporte que o serviço nos
oferecia para que a construção no teatro acontecesse, mas descor-
tinamos uma imensidão de liberdade para conquistar no cenário
cultural, e seguimos.
Conquistamos os prêmios nos festivais VII Cine Esquema Novo
(Brasil- RS) –Prêmio do Júri; Festival Internacional de curtas de Belo
Horizonte (Brasil-BH) – Prêmio de Melhor Curta Brasileiro pelo Júri
da Crítica; III Festival novos realizadores do Mercosul (Brasil-ES) –
Prêmio Caleidoscópio; Festival Internacional de Curtas de São Paulo
(Brasil-SP) – Prêmio Aquisição SESC TV; Mostra Curta Goiânia (Bra-
sil-GO) – Prêmio de Melhor Curta Brasileiro; FENAVID - Festival
de Vídeo Santa Cruz (Bolívia) – Prêmio de Melhor Direção, e Festival
luso-brasileiro de Santa Maria da Feira (Portugal) – Menção Honrosa.
Além do Prêmio Cultural LOUCOS PELA DIVERSIDADE – Edição
AUSTREGÉSILO CARRANO, na categoria GRUPOS AUTÔNO-
MOS, realizado pelo Ministério da Cultura por meio da Secretaria da
Identidade e da Diversidade Cultural em parceria com a Fundação
Oswaldo Cruz – FIOCRUZ, pelo trabalho desenvolvido. Este último
prêmio foi o que possibilitou seguirmos com nossa pesquisa e com
todo o trabalho, reinventando e ampliando as formas possíveis dentro da
produção teatral e a criação da cena, ressignificando o lugar da loucura

214 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
como potência criativa e reescrevendo novos nomes para os cidadãos
em sofrimento mental, agora também atores.
Nesse tempo, em uma participação na Faculdade FUMEC, em
um evento em comemoração ao dia do psicólogo, reencontramos
Rosimeire Silva, que pela voz dos atores dos Sapos e Afogados, par-
ticipantes da mesa do evento, toma conhecimento dos feitos e dos
saltos que continuamos com respeito e muita dedicação durante os
cinco anos após minha saída da rede. Dia importante para o coletivo
reencontrar sua madrinha, e para mim, que pude refazer o abraço e
assim seguirmos a “jagunçagem” na luta antimanicomial. Rose, que hoje
é presente em memórias, ainda ensina, sua risada ainda ressoa como
mantra em momentos preciosos para nós, um delírio auditivo afetivo
cheio de benção, evoé.
A saída da rede nos trouxe enormes desafios, é bem verdade, mas
também novas possibilidades e muitas conquistas. Certamente ficaram
deste tempo também contribuições para a própria rede no trabalho
com o teatro. Possibilidade de reinvenção, com a chegada de novos e
maior números de técnicos e monitores de teatro para assumirem as
oficinas e ampliar assim esse fazer nos serviços, sem descaracterizar o que
é peculiar e particular à arte teatral. Bem como ainda fazer possível e
levar em consideração a atenção à saúde mental do artista neste serviço.
Um cuidado para que a instituição não passe a produzir, portanto, o
que ela se dispõe a tratar.
Deixando vivo o que cada artista traz como força criativa e par-
ticular, fazendo com que a troca entre cada um desses sujeitos nesse
espaço de conviver aconteça, sendo cada vez mais causa de desejo. Onde
o que se cria a partir da diferença seja possibilidade de reinvenções
também nas políticas públicas, cerne do que pretende como essência
os Centros de Convivência quando trazem a arte como base.
Atualizar a dimensão do cuidado, onde o “artista na rede” se man-
tenha em seu posto de artista, podendo ocupar seu lugar com liberdade
na cena da cultura e da cidade, não sendo capturado como “artista da
rede” sem que isso signifique deixar de responder pelas suas funções
de funcionário público.

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 215


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
Que este seja cada vez mais um espaço de promoção da saúde e
sobretudo da reinvenção e da transformação na construção arte-vida.

216 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
TREM AVOA?
AFIRMO QUE SIM

Ana Paula de Matos Novaes1


Marcos Evando Martins dos Santos2
Mauro Sérgio Camilo3
Rogéria Pereira Ferreira4

Caro leitor:
O texto a seguir foi encontrado em um arquivo fixo do Centro
de Convivência Marcus Matraga. Escrito em 2002, foi uma tentativa
de registrar o início do surgimento do grupo musical Trem Tan Tan e
prestar contas. Foi preciso digitar o texto, atualizá-lo e acolher as diversas
emoções revividas. Na parte final seguirão depoimentos de três atuais
participantes do grupo, coautores do escrito. E, agora, finalizando-o,
recebo a visita de um ex-participante: roqueiro, baterista – e me dou
conta de que inúmeras pessoas que passaram pelo Trem não serão cita-
das aqui; então, preciso destacar que estão em outros registros, seja os
encartes dos dois CDs do Grupo, seja no DVD, que sempre cuidamos
com carinho para que a memória fosse preservada, além delas fazerem
parte dos nossos corações, muitas conversas e alguns inusitados encon-
tros, como o de hoje.

Trem Tan Tan: a primeira estação!

O projeto Trem Tan Tan teve início a partir das discussões acerca do
acervo sonoro, poético e musical dos participantes da Oficina de Música
do Centro de Convivência Venda Nova (atual CC Marcus Matraga),
1
Psicóloga, com especialização em saúde mental pela Escola de Saúde Pública de Minas Gerais. Gerente
do Centro de Convivência Marcus Matraga/regional Venda Nova.
2
Cantor, compositor e instrumentista do Trem Tan Tan.
3
Cantor e instrumentista do Trem Tan Tan.
4
Cantora e compositora do Trem Tan Tan.

217
que não era apropriado pela técnica, pela demanda dos usuários em
apresentar suas produções fora do universo local (aos moldes dos traba-
lhos de arte e artesanato), da definição por parte da equipe em priorizar
uma proposta que articulasse as demais oficinas na comemoração de
um ano do serviço e do entendimento de que projetos desta natureza
propiciam uma importante intervenção na cultura, contribuindo para
a desconstrução dos estigmas associados à loucura.
A oportunidade de participar do “I Festival e Congresso Arte
sem Barreiras” exigiu materializar parte da produção da oficina, e para
isso contatamos o estúdio Música & Companhia, da região de Venda
Nova, que de pronto nos apoiou. Gravamos duas músicas, que fizeram
parte do portfólio enviado à Comissão de Avaliação do Congresso.
A possibilidade de participação ampliada de usuários da saúde
mental no grupo que começava a se formar foi dirigida à rede e o
Centro de Convivência Providência (atual CC Rosimeire Silva) se
apresentou. Talvez pela proximidade física ou por ter o mesmo coor-
denador das oficinas ou pela relação próxima das coordenadoras na
época ou no atendimento da demanda dos usuários. O fato é que
conseguimos delinear um grupo de, aproximadamente, quinze usuá-
rios, para desenvolvermos o projeto, além de uma usuária do Barreiro,
trazida por um artista do Centro de Convivência Barreiro, conhecida
por suas composições inusitadas e “de sucesso”.
A primeira apresentação nos colocou várias questões – a expo-
sição pública dos usuários, o conceito de laço social no campo da
saúde mental, o enfrentamento dos medos, os efeitos terapêuticos
ou persecutórios que poderiam advir. Mas o diálogo e a construção
coletiva, num processo intenso de conversa, encontros e avaliação nos
colocaram diante de uma questão solucionada por uma das artistas do
serviço: “nós temos a obrigação de acreditar, até que nos provem o
contrário”. E assim foi.
Discutíamos da questão financeira aos “delírios”, a relação com a
mídia, o impacto da exposição pública com as apresentações, as fotos e o
projeto gráfico, a participação dos músicos convidados, o apoio da Regional

218 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
e Gerência de Saúde de Venda Nova, a divulgação, o incentivo/cachê, o
compromisso, respeito e envolvimento de cada um. Nesses encontros o
grupo se fortalecia, buscava outras informações de ordem histórica e política,
construindo coletivamente participação e cidadania. Concomitantemente,
a coordenação do Centro de Convivência propunha à Gerência de Saúde
a contribuição e acompanhamento do projeto. Esta, por sua vez, na pers-
pectiva da intersetorialidade, congregava diversos setores na construção
da proposta: cultura, desenvolvimento social, comunicação e coordenação
de saúde mental, o que avaliamos como positivo e fundamental.
Os “ensaios” passaram a acontecer no Parque Lagoa do Nado
como estratégia de circulação dos usuários por outros espaços sociais,
além de colocá-los em contato com outros artistas e ter o apoio da
coordenação desse importante espaço cultural da cidade. Os critérios
para participação dos usuários foram definidos: demanda, apropriação
técnica, interesse e compromisso. Certamente, a questão clínica de cada
caso foi, ao longo do trabalho, considerada e cuidada. Ressalto o caso
de Dos Anjos, usuário encaminhado por um serviço de urgência para
as oficinas do Centro de Convivência como estratégia de contribuir
para a sua organização física, psíquica, sua dificuldade de expressão e
fala, além de diminuir sua perambulação pela cidade. Sua demanda para
oficina de música não se sustentava devido, entre outros motivos, ao
mínimo de organização necessária; era raro cumprir datas e horários e
parecia se interessar mais pelo vale social. Numa de suas participações
na oficina, o coordenador descobre que Dos Anjos fazia um som com a
boca que lembrava muito a atual música eletrônica. Daí tivemos notícias
de suas “noitadas na quadra da Vilarinho”, onde se autointitulava “Bon
Jovi” (Bom Jovem?). A riqueza sonora, a língua inglesa reinventada, o
título muito sugestivo de “Maravilhas iguais”, nos provocou a chamar
um DJ para produzir a faixa. Em um dos ensaios, ao ouvir o som da
música, Dos Anjos abre um largo sorriso e passou a frequentar não só
a oficina, mas o grupo. Procurava confirmar as informações, apesar de
sempre solicitar chegar “um pouco mais tarde”. Na segunda apresentação
para o público, o coordenador chamou Dos Anjos de improviso e ele
apresentou suas variações sonoras, sendo muito aplaudido.

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 219


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
O Poeta, frequentador de quase todas as atividades do Centro de
Convivência que ocorriam no período da manhã, ficava pouco dentro
da oficina, circulando pelo espaço social do dispositivo, solicitando papel
e caneta, lendo e escrevendo compulsivamente. “Você quer crônica ou
poesia?”– ele perguntava e, em seguida, as apresentava para quem se
dispunha a escutar. Muito inteligente, quando da gravação do CD, o
Poeta foi ao estúdio com o grupo, e ao ser solicitado para falar sobre
arte e loucura construiu um eloquente discurso. A partir disso, a parte
percussiva e melódica da música foi construída para, no final, ressaltar
sua fala. No dia de um dos shows, depois de frequentar todos os ensaios,
aliás cobrando “compromisso sério” de todos, O Poeta não comparece.
Ao ser indagado sobre o fato, diz:“Você sabe: quem mais trabalhou para
este CD foi primeiro Babilak e, em segundo lugar, eu, Fábio Júnior”,
como se intitulava, desviando da pergunta original.
A erudição de Bella impressionava. Seu silêncio e quietude inicial
também. A história relatada pela irmã no acolhimento no serviço indi-
cava tratar-se de um caso típico de várias internações, pouco resultado
e muito sofrimento. O coordenador da oficina, atento a essas questões,
foi estabelecendo um vínculo de confiança – transferência – que possi-
bilitou, entre outras mudanças, um emocionante e emocionado relato
da trajetória das internações em hospícios e sua implicação na vida de
Bella. A música “Vento de Manicômio” contextualizou politicamente
o CD como uma das estratégias de trazer ao público esta temática.
Alegria chegou ao Trem Tan Tan trazido pelo seu diretor musical,
Babilak Bah, que o encontrou a caminho do Centro de Convivência,
muito eufórico, e achou que era o caso de tentar alguma abordagem
pela saúde mental, o que realmente aconteceu. Compositor de uma
música só, seu codinome já dizia muito a seu respeito: Alegria. Alegria
era seu nome. Acompanhou o Trem desde seu início, viu e viveu todas
as suas transformações e não faltava aos shows, onde fazia questão de
cantar a música de sua autoria e depois “descer para a plateia”, onde
frequentemente colocava as mocinhas para dançar. Nos últimos tempos
já não conseguia chegar ao final da música e era ajudado pelos demais
participantes. Virou estrela em 2020, junto às mais de seiscentas mil

220 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
pessoas levadas pela Covid-19 e o descaso do governo federal para
combater a pandemia. Sua alegria permaneceu em nós e sua compo-
sição diz muito sobre o Trem:
“O Trem Tan Tan
Na avenida desfilou
Para acabar com os preconceitos da sociedade
A toque de caixa, agogô e marcação
O Trem Tan Tan é a nossa redenção”
(“Trem Tan Tan na avenida”/Olavo Rita da Conceição)

O papel do artista se destacava – de compositor a propositor:


atento, respeitando e potencializando as diferenças e talentos individuais,
com a coragem de quem faz do vazio criação e beleza, sem os vícios
de quem é da área e colocando seus contatos e sua concepção de vida
e arte a serviço de algo maior - a Sociedade sem Manicômios.
Concomitantemente, a oficina de vídeo, coordenada por César
Maurício, colocou usuários filmando e entrevistando o grupo, registrando
parte do processo. Roberto Alvarenga, coordenador de Artes Plásticas, se
responsabilizou pela fotografia e pelo encarte do CD, que muita emoção
causou quando foi apresentado, além de ter cuidado do cenário.
Sônia Michalick e Carla Paulino assumiram os bastidores no dia
do lançamento – papel fundamental para a realização do show. Helbert,
auxiliar administrativo, contribuiu na organização e venda do CD. Vera
Lúcia Ferreira, gerente do Centro de Convivência Providência naquela
época, amiga e parceira. Geraldo Herzog, Maria Inês Oliveira, entre
tantos nomes citados no encarte do CD são pessoas que desde o início
acreditaram e deram força para o coletivo existir. Posteriormente, Maria
Betânia Guimarães, que veio a substituir Vera Lúcia, acompanhou e
contribuiu decididamente para que o Trem seguisse por outras estações.

Aos de fora, o convite

O convite aos músicos para contribuir no registro sonoro par-


tiu de uma avaliação da necessidade de envolver outros atores neste
processo. E nos surpreendeu. Não havia recursos para tal empreitada e

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 221


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
isso era logo esclarecido e, em nenhum caso, foi motivo de recusa. Um
primeiro objetivo com este convite foi criar harmonia em um som
essencialmente percussivo e discursivo. Um outro, provocar a ampliação
da discussão da urgência do fim dos manicômios em outros espaços
sociais. Nos ensaios a interação de usuários e músicos acontecia e, em
alguns momentos, emocionadamente, num interessante processo de
“solidariedade cultural”. Uma das músicas fez parte de um CD de
música eletrônica que foi distribuído pela TV Horizonte e do repertório
de shows do DJ Roger Moore, que a contextualizava para o público.
O pessoal do Galpão Cine Horto cedeu o espaço para ensaios
e apresentação do primeiro show do coletivo Trem Tan Tan, que, com
plateia lotada, emocionou a todos, todas e todes presentes naquela noite
de dezembro de 2001.
A imprensa local realizou a cobertura de forma cuidadosa, aco-
lhendo nossas preocupações. O termo “deficiente mental”, muito comum
nas matérias jornalísticas, foi substituído por “portador de sofrimento
psíquico/mental”, conforme nossa pontuação. Usuários deram entre-
vistas na rádio comunitária de Venda Nova, na Inconfidência (programa
Tutti Maravilha), na TV Minas, TV Câmara e PUC. Por fim, Babilak,
coordenador da Oficina de Música, testemunha da convivência e res-
peito com os loucos, finalizou a apresentação de forma emocionante
e improvisada: chamou todos os coadjuvantes ao palco e um usuário
do CC Providência (atual CC Rosimeire Silva), que não participava
do projeto, mas frequentava a oficina, para encerrar com um samba.
Nosso querido cantor, Roberto Carlos! E ele mandou:

“Vejam essa maravilha de cenário


É um episódio relicário
Que o artista, num sonho genial
Escolheu para este carnaval”
(“Aquarela Brasileira”/Martinho da Vila)

Duas décadas se passaram. O Trem Tan Tan entrou e saiu dos


trilhos.Viajou por várias estações, realizando shows em diversos palcos

222 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


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pelo Brasil:Vivo Rio e Sonora Brasil, no Rio de Janeiro; Itaú Cultural,
em São Paulo; Teatro Castro Alves, em Salvador, na Bahia; Festival da
Loucura, em Barbacena; Festival de Inverno de Conceição do Mato
Dentro, entre outras cidades de Minas. Nosso palco do coração, nas três
edições da Mostra de Arte Insensata, com a presença do compositor
Chico César cantando junto. Também já contou com a presença de
outros usuários e músicos da rede de saúde mental.
Alguns participantes saíram ao longo dessa trajetória, outros vira-
ram estrela e nos acompanham de longe, muito longe. Outros, daque-
les tempos longínquos, mantêm contato e falam em retornar, alguns
chegaram mais recentemente e é com eles que a palavra circula para
continuar essa história. Seguem, respectivamente, os depoimentos: de
Rogéria Ferreira Pereira, Marcos Evando Martins dos Santos e Mauro Sérgio
Camilo que, escritos de próprio punho, atualizam a história do coletivo
e dão dicas das trilhas a seguir.
Eu quero estar sempre com o pé no chão, com o microfone na mão
e alegrando os corações... “Eu fazia todo tipo de oficina, mas ainda não
tinha feito, na época, a oficina de música. Quando descobri que tinha
essa atividade, pedi à minha amada, gerente, empresária, Ana Paula, para
deixar eu participar. Naquela época o professor de música, Babilak
Bah, estava viajando, fazendo shows. Quando ele chegou, me recebeu
de braços abertos. Nesses ensaios eu cantei uma música nova: o “Melô
do Mandiocão”, que é uma receita cantada, ensinando fazer uma vaca
atolada. Ele viu que eu tinha inspiração, talento, e resolveu investir em
mim. Depois gravamos um CD e um DVD e agora estamos traba-
lhando com amor, carinho, união e fé para gravar novas composições.
Muitas vezes a gente faz show até de graça para levantar a autoestima
da plateia.Viajamos de avião, fomos a São Paulo, no Rio de Janeiro e
outras cidades, e todo mundo adorou a minha performance, a minha
apresentação, e a dos outros também. Aí o Trem Tan Tan virou realidade,
com fama, talento e sucesso. No Trem cada um tem seu brilho, cada
um tem seu momento de apresentar. Cada um tem o seu sucesso, o
seu fã clube e todos nós brilhamos no show.”

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 223


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
Esse é o trem que ouvi falar... “Descobri minha veia artística
dentro do espaço da saúde mental chamado Centro de Referência
em Saúde Mental (CERSAM Barreiro). Depois naveguei em várias
vertentes dessa maravilhosa construção cultural em mim.Vi surgir meu
dom para a poesia, o cantar, a composição e até mesmo representar e
assim comecei a circular pelos espaços onde os usuários do Centro de
Convivência Barreiro criavam belas expressões artísticas. Nesse tempo
ouvi falar de uma banda chamada “Trem Tan Tan” – Que trem é esse
que passa e eu não ouço, que eu procuro e não vejo? Quando menos
esperava, eis que um farol brilhante e um som muito vibrante se apro-
ximam de mim, sem que eu soubesse o que era, ou como era e em um
belo sábado quando eu, Marcos Alexandre e Raphael Sales, estávamos
apresentando um show intitulado “Bituca”, vi um indivíduo que nos
observava de longe. Depois soube que ele era o organizador dessa grande
locomotiva chamada Trem Tan Tan. Dias depois dessa apresentação que
aconteceu na “Semana de Arte e Loucura no Circuito Cultural da Praça da
Liberdade”, a gerente do Centro de Convivência Barreiro, Marise Hilbert,
me chama para me ofertar a possibilidade de participar de um novo
projeto, intitulado “Ritmo, corpo e palavra” - oficina ministrada por
Babilak Bah no espaço cultural Suricato. Ponderei alguns dias e entrei
nesta proposta sem muitas expectativas, mesmo porque, para mim, o
novo dá medo, às vezes, me falta estímulo, afinal eu tinha em mim o
ego “territorialista” e sempre fui companheiro, porém pouco sociável
com estranhos, e nesta nova trajetória teria que caminhar juntamente
com outros usuários dos nove Centros de Convivência. Quando ter-
minamos a oficina com uma belíssima apresentação, na qual dancei,
cantei e, principalmente, me complementei aos meus companheiros,
assim como eles a mim, descobri outra definição para convivência e
acho que ali se abriram as portas da emocionante locomotiva da alegria,
onde nós, usuários desconhecidos, fizemos a primeira composição com
Babilak Bah, música hoje conhecida como “Meus remédios”.Quando
eu achava que minha jornada estava sem novas expectativas, descobri
no grupo Trem Tan Tan outros objetivos a serem alcançados por mim e
pelo grupo. Hoje tenho um pouco mais de senso político, um interesse

224 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


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maior por descobrir e debater assuntos sociais, culturais e mundiais,
com a gentileza poética e a clareza. Fui prontamente aceito no grupo
e componho compulsivamente. Discutimos, atualmente, a necessidade
de termos um CNPJ para ampliarmos nosso campo de atuação e
recursos. Em 2019, realizamos 23 apresentações em espaços culturais
diversos e o Trem embalou meus melhores sonhos. Veio a pandemia
e nos mantemos atentos e fortes para, a partir de agora, iniciarmos a
gravação do novo CD: Trem Negreiro.”
Nos trilhos da nova vida… “Em 2003, como parte do meu tra-
tamento psicológico, fui encaminhado ao Centro de Convivência de
Venda Nova, hoje batizado de Marcus Matraga. Nos primeiros meses
procurei me identificar com alguma atividade, sem nenhum compro-
misso, e, desta forma, segui por um período. Com o passar do tempo,
além de outras oficinas, procurei a oficina de música, mais uma vez
sem nenhum objetivo plausível, porém o coordenador Babilak Bah
me convidou para participar do ensaio do Trem Tan Tan quando ele
teve conhecimento de que eu tinha sido músico na juventude. Levei
meu trompete estragado pelo tempo e mal cuidado. Ainda não sabia o
que efetivamente eu queria. Nos primeiros ensaios, eu simplesmente
participava sem interesse, que era limitado pela minha síndrome, pois,
em função dos inúmeros medicamentos, me sentia fora de sintonia
com o mundo real. No entanto, com o passar do tempo fui tomando
gosto pela música novamente e aceitando o desafio de criar arranjos
em músicas inéditas e releituras de outras do cancioneiro popular. O
interesse foi crescendo, devido à boa aceitação de todos, aumentando
gigantescamente quando ganhei do grupo um novo trompete e pude
me dedicar mais e tocar melhor. Ressalto com entusiasmo que tudo
no Trem Tan Tan foi uma evolução, com as apresentações dentro e fora
do Centro de Convivência. Os resultados mais marcantes para mim
foram as participações no “Projeto Loucos por Música”, que aconteceu
na cidade de Salvador e no Rio de Janeiro, onde dividimos o palco
com Toni Garrido, As Chicas, Margareth Menezes, João Bosco e Beth
Carvalho. Também a participação na “Mostra de Arte Insensata”, com a
ilustre contribuição do talentoso Chico César e outros nomes da cultura

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 225


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
local e artistas da rede de saúde mental. Pessoalmente, e como artista,
posso dizer que o grande feito desta minha trajetória e renovação foi
eu ter mais domínio sobre minha vida e o crescimento social. Esses
resultados pessoais são todos, na verdade, resultado da contribuição
do coletivo Trem Tan Tan. Já o principal resultado coletivo é levantar
a bandeira da luta antimanicomial, bem como a reinserção do indi-
víduo na sociedade, transformando-o em cidadão. O Trem Tan Tan é
um coletivo de compositores que prova a todo tempo que o que nós
fazemos é arte com amor, com qualidade, e desta maneira mostramos
ao mundo que é possível. Na atualidade, encontro-me num dilema
bastante inquietante, ao chegar aos 68 anos, pois não sei se tenho forças
para prosseguir nesta caminhada. Acho que minha contribuição já foi
dada. Talvez tenha chegado ao meu limite. Será? O Trem Tan Tan foi
uma alavanca que me impulsionou fortemente a ser como sou agora.
A prova disto é o reconhecimento social e o carinho de todos. Com
certeza o Trem Tan Tan vai continuar a impactar e a transformar muitas
vidas.Viva o Trem Tan Tan!”
Bons encontros, muitos passageiros. De tempos em tempos,
recursos e cachês. A circulação por outros espaços e cidades, cuidado
e liberdade: quem poderia prever? Eu juro que não. Mas afirmo que
sim. Trem tá no trilho. Trem sai do trilho. Trem avoa!

226 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
TREM TAN TAN: LOCOMOTIVA SONORA E A
RELAÇÃO COM A IMPRENSA

Babilak Bah1

Matéria intitulada “Lindo, Leve e Louco” (2002), ilustrava a


capa do Caderno de Cultura do jornal Hoje em dia, assinada pelo
saudoso jornalista e poeta Alécio Cunha e era a primeira de uma série
de matérias da imprensa cultural sobre a locomotiva sonora intitulada
Trem Tan Tan. No subtítulo da referida notícia, dizia-se em letras
garrafais: “Portadores de sofrimento mental do Centro de Convivência Venda
Nova mostram seu talento em CD fora do comum”. Desta forma, acon-
tecia a repercussão e a surpresa da imprensa cultural e do jornalismo
especializado diante do acontecimento inédito na história da reforma
psiquiátrica na capital de Minas Gerais. Desde o surgimento do grupo
Trem Tan Tan, como uma realização da interface saúde e cultura, há
um interesse por parte da imprensa local e do jornalismo cultural de
todo país, tanto na mídia impressa como na radiofônica e na televisiva.
Talvez por ser uma matéria jornalística de teor excêntrico, ou por
ser uma prática muito singular para a indústria da notícia, chamou
bastante a atenção o resultado de uma riquíssima experiência estética
gestada nos dispositivos antimanicomiais, projeto político que tem
como objetivo o fim da malha manicomial do estado e de todo o
território nacional.
Nunca é demais lembrar que Reforma Psiquiátrica não
é somente a construção de um sistema humanizado de
assistência à pessoa com transtornos mentais. É também
a promoção de uma mudança cultural, ou seja, mudar o
modo como a sociedade compreende e interage com a
loucura. A Reforma é, portanto, um movimento que se
desdobra em vários planos. (GLENS, 2017)
1
Músico, compositor, artista do ruído, diretor musical do coletivo Trem Tan Tan. Monitor do Centro de
Convivência Marcus Matraga.

227
É extremamente importante ressaltar a relação estabelecida com
a imprensa durante todo esse período de existência do grupo. Foi uma
situação excepcional que proporcionou uma preocupação constante e
real. Essa experiência nos exigiu um posicionamento, sobretudo uma
postura redobrada, especialmente para nós que estávamos na organização
do coletivo Trem Tan Tan, exigindo cautela e atenção.
Portanto, não é de se estranhar que o surgimento de um grupo
como resultado da política de saúde mental de Belo Horizonte e fruto
dos dispositivos da reforma psiquiátrica, tenha despertado interesse de
vários setores da sociedade, do mundo acadêmico ao universo cultu-
ral, dos especialistas do universo psi, pesquisadores da Antropologia,
fazedores de cinema, estudantes e estudiosos de vários ramos da área
das ciências humanas, da mídia independente e artistas diversos. Todos
curiosos na articulação entre arte e loucura, ou melhor, procurando
entender e conhecer os processos criativos, a linguagem e os conteúdos
apresentados pelo coletivo Trem Tan Tan, que se lançava como plata-
forma para criadores, produtores imagéticos, compositores de samba e
outras formas de se expressar com a música.
Consequentemente, como resultado do aparecimento do grupo
Trem Tan Tan, devido às atividades de produção de sentido, desenvolvidas
nos Centros de Convivência, indubitavelmente inaugurou-se um tempo
no qual a imagem do louco passa a ser divulgada numa perspectiva
bastante favorável e positiva. Desta forma, o portador de sofrimento
psíquico não só circula pela cidade colocando em exercício a sua liber-
dade, mas começa também a ocupar a mídia não apenas como uma
possibilidade de denúncia. Emerge, assim, uma realidade não existente
nos anos 1960/70, quando surgiram reportagens contundentes e fun-
damentais que serviram para denunciar as péssimas condições de vida,
os maus tratos, a cultura de segregação e higienista que acontecia nos
manicômios, como, por exemplo, a reportagem jornalística publicada
na Revista O Cruzeiro, intitulada “Hospital de Barbacena: A sucursal do
inferno” (1961). Assim como também a premiada reportagem de Hiram
Firmino, em 1979, que impulsionou o fim dos horrores do respectivo
manicômio localizado em Minas Gerais, que guardava características

228 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
de um campo de concentração. A reportagem jornalística foi transfor-
mada no livro “Nos porões da Loucura”(2014). Em contraponto a esse
tempo histórico, a iniciativa do coletivo Trem Tan Tan começa a ocupar
a mídia para falar dos processos positivos e relevantes dos dispositivos
antimanicomiais, sobretudo ao anunciar a importância da reforma e
do valor essencial que a arte começaria a desempenhar na vida desses
sujeitos, além de comunicar os processos de ressocialização e integra-
ção comunitária a partir do exercício da cultura e da aproximação e
convivência com a arte.
Essa é uma realidade que a Revista Trip, em 2002, estampa em
coluna sobre música intitulada “Salada Volume:Trip hop, downtempo, soul,
forró, dub, rock-roll e música de dar em doido”, matéria com a assinatura
e a direção do jornalista Bruno Torturra Nogueira. Mesmo diante da
conquista dessa coluna em veículo de comunicação especializado em
cultura, a manchete ainda revela subliminarmente um preconceito do
setor de comunicação com relação a essa inusitada produção oriunda
do campo da saúde mental. No entanto, o jornalista, movido por sua
intuição, corrige seu preconceito e desconhecimento ao solicitar depoi-
mento ao corajoso escritor Austregésilo Carrano Bueno sobre a música
produzida pelo Trem Tan Tan. Carrano, integrante do Movimento da
Luta Antimanicomial e autor do livro Canto dos Malditos (2001), no
qual conta sua experiência nos hospitais psiquiátricos e denuncia os
absurdos cometidos diariamente nessas instituições que deu origem
ao premiado filme “Bicho de Sete Cabeças” (2000), que teve enorme
repercussão nas salas de cinemas de todo o país.
Carrano descreve sua impressão e revela sua surpresa ao ouvir
outros cantos, indignados porém livres, e emociona-se com sons e
relatos provenientes da loucura cultivada em liberdade, como se pode
observar neste trecho:
Estou arrepiado ouvindo este CD. Não sei se é por vol-
tarem as lembranças... mas sinto uma mistura de alegria
e dor tão grande que até lágrimas escorrem. Esse grupo
de usuários do Centro é prova viva de que o modelo
que o movimento da Luta Antimanicomial defende está

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 229


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
certo. O disco é muito criativo, sons tirados de sucatas
que nos deixam perplexos. Vou levar para amigos e
familiares. (NOGUEIRA, 2002, p.116)

E conclui: “Parabéns aos meus companheiros da reforma psiquiátrica.”


(NOGUEIRA, 2002, p.116).
Sendo assim, vale dizer que durante a história do grupo, a convi-
vência e o interesse da imprensa foi um exercício muito valioso para o
seu amadurecimento, construção de seu discurso estético e engajamento
político. Por outra via, essa aproximação foi valiosa na perspectiva de
ampliar a divulgação das criações realizadas pelo coletivo. Em virtude
do nosso amadurecimento mediante essa aproximação, foi importante
saber utilizar a imprensa nos momentos precisos sem cair num oba-
-oba, sem se deixar levar pela empolgação, sem perder o senso crítico
e, obviamente, o rumo da história. Portanto, a utilização da mídia foi
de extrema importância, no sentido de afirmarmos o nosso trabalho
e ampliarmos as possibilidades de dizer à sociedade que havia outras
formas de fazer arte, e por consequência, existiriam outras subjetivi-
dades criativas e, com isso, fazer valer o estatuto da diferença. Em vista
disso, com essa aproximação, os meios de comunicação chegavam com
muita curiosidade e expectativa, em sua maioria quase todos ficavam
apaixonados com os personagens e suas histórias de vida.Testemunha-
mos muitos jornalistas se emocionarem, ficarem com os olhos cheios
de lágrimas e perderem o chão diante dos passageiros desse trem.
Outro importante documento produzido pela imprensa com
foco na cultura foi protagonizado pelo programa de estímulo Rumos
Itaú Cultural na edição de 2007/2008, que apresenta as reportagens
dos estudantes que frequentaram o laboratório on-line de jornalismo
cultural. Essa edição teve como objetivo realizar um mapeamento das
inscrições e a relação dos selecionados, professores, jornalistas, intelec-
tuais e entidades que contribuíram para o desenvolvimento da referida
edição. Entre as 17 selecionadas, estava uma reportagem intitulada “Uma
cabeça, muitas cabeças” (TOMAZ, 2007/2008), trazendo em seu sub-
título:“Além dos limites da terapia, integrantes da luta antimanicomial
enfrentam com arte a loucura do preconceito”. Seguindo a perspectiva

230 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
de ampliação e divulgação do trabalho, a reportagem ainda esboçava
em seu subtítulo um teor de preconceito colocando a loucura marcada
por um sentimento negativo. A reportagem e pesquisa foram realizadas
pelo estudante de jornalismo Tales Tomaz, que fez um paralelo com
um artista multimídia conhecido por Kayky Avraham, acolhido por
um CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) da cidade de São Paulo. A
reportagem procurava traçar um panorama da importância da arte no
tratamento de pessoas portadoras de sofrimento psíquico. A referida
reportagem trouxe uma entrevista com os usuários e jornalistas. No
ensaio jornalístico, há um depoimento com uma avaliação tanto crítica
como filosófica do importante crítico musical Arthur Dapieve sobre
a música produzida pelo grupo Trem Tan Tan: “[...] num tempo em
que a música peca pela falta de ousadia, poderíamos dizer de loucura,
o Trem Tan Tan oferece uma arte louca e, ao mesmo tempo visceral,
mas faz com qualidade”, conclui. (DAPIEVE, 2007/2008)
Uma produção documental e jornalística bastante significativa
que marca a história do Trem Tan Tan nesses 17 anos, sobretudo a
respeito da sua relação com a imprensa e o interesse do mundo aca-
dêmico, foi a realização do documentário produzido pelas alunas do
5º período de jornalismo do UniBH - Centro Universitário de Belo
Horizonte, intitulado Trem Tan Tan Nos Trilhos da Inclusão Social (2011).
No referido documentário, que foi produzido durante a 2ª Mostra
de Arte Insensata no Espaço Cento e Quatro, há vários depoimentos
importantes tanto de usuários e familiares, como também de alguns
artistas locais e de reconhecimento nacional. No transcorrer do docu-
mentário, há um depoimento valioso do compositor Chico César,
que aborda o valor da cultura no aspecto de promover a inclusão. O
compositor, que na época exercia o cargo de Secretário de Cultura
de Estado da Paraíba, sinaliza para a seguinte ref lexão:
A gente pode pensar nessa questão da cultura como
um resgate da cidadania, e podíamos aplicar isso, assim,
aos economistas, aos policiais, aos governantes, é trazer
esse pessoal acostumado a exercer poder e colocá-los no
dia a dia através da cultura, né, acho que a cultura nada

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 231


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
mais é do que se abrir a manifestação do outro, não é?
Então, assim, a cultura é um território onde ninguém
tem razão, a priori (CÉSAR, 2011).

O Trem chega ao Distrito Federal e, além de participar, anima a


Marcha dos Usuários a Brasília pela Reforma Psiquiátrica Antimanico-
mial, que aconteceu em 30 de setembro de 2009. Um acontecimento
político organizado pela Rede Internúcleos da Luta Antimanicomial
(RENILA) com o apoio de diversas entidades e do Conselho Federal
de Psicologia. Militantes da luta pelos direitos humanos se organizaram
e levaram para a capital do país cerca de 2.300 mil pessoas, dentre elas
usuários da saúde mental de 23 estados do Brasil, além de diversos
profissionais dos serviços substitutivos. Esse evento proporcionou um
lindo movimento que envolvia profissionais de saúde, familiares e
autoridades comprometidas com a reforma psiquiátrica. Mediante esse
acontecimento histórico, surgiu o interesse da grande mídia, através
do Profissão Repórter, da Rede Globo de Televisão, em realizar uma
cobertura da marcha e produzir uma reportagem com o grupo Trem
Tan Tan por intermédio da equipe do jornalista Caco Barcelos, em um
programa que procurava discutir a temática da loucura. Portanto, como
afirma Jessé Sousa, no livro “A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato”:
[...] a esmagadora maioria dos produtos da indústria
cultural e da mídia não se dirige ao conhecimento, que
transforma e emancipa o sujeito, mas sim aos conheci-
mentos de estereótipo, clichês e chavões que reproduzem
o mundo e os interesses que estão ganhando (SOUZA,
2017, p. 123).

Portanto, tendo essa compreensão e guiados por esse pensamento


crítico, assistimos descontentes ao programa que foi ao ar. Não sendo
de outro modo, nos gerou um sentimento ambíguo: ao mesmo tempo
em que ficamos um pouco alegres pela realização do programa, ficamos
também desapontados por não apresentarem a totalidade do trabalho
desenvolvido pelo Trem Tan Tan. O que gerou, inclusive, um desconforto
em um integrante do grupo que, na época, chegou a escrever um texto
crítico em um jornal local, em que demonstrava o seu descontentamento
com o programa “Profissão Repórter”.

232 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
Nesse mesmo trilho, numa perspectiva de um jornalismo cultural,
no sentido de revelar a notícia em seu aspecto híbrido, a partir de uma
paisagem que se alinha ao social e considera o diferente, valorizando a
cultura, em seu enfoque antropológico, que articulamos o registro que
marca a história de dez anos do grupo. Realizado em parceria com o
coletivo de imprensa Fora do Eixo, tornou-se possível que os artistas
do Centro de Convivência Marcus Matraga (Venda Nova) tivessem a
oportunidade de participar como protagonistas do vídeo comemorativo a
partir do show que aconteceu na Funarte-MG. Esse mini documentário
(2012), produzido pelo Coletivo Fora do Eixo, que hoje é conhecido
como Mídia Ninja, marca uma data importantíssima para a existência
histórica e cultural do Trem Tan Tan.
Esse novo Trem contesta a trajetória daquele que seguia a rota
da exclusão com destino a Barbacena, no qual “a loucura que desfilava
diante dos seus olhos não o impressionava, e sim as cenas de um Brasil
que reproduzia, menos de duas décadas depois do fim da Segunda
Guerra Mundial, o modelo dos campos de concentração nazistas”,
como afirma Daniela Arbex no livro “Holocausto brasileiro” (2013).
Ao contrariar essa perversa realidade, a locomotiva sonora nascida
na plataforma do serviço substitutivo, fruto da reforma psiquiátrica,
criava uma situação inusitada, singular, por uma via que dava acesso
aos trilhos da cidadania numa nova perspectiva, rumo à criação. Por
esses caminhos, impulsionado pelo gesto criativo, fomos tomados de
surpresa no período das comemorações que marcavam os dez anos de
aniversário do grupo em 2012. O fato relevante aconteceu nessa data
comemorativa quando surgiu o interesse despertado por um blogger
internacional que tinha como propósito a difusão do gênero musical
em World Music, batizado de “Berimbau Drum”. O site tinha também
como objetivo divulgar a música brasileira na Europa, principalmente
na Inglaterra, ao realizar uma matéria intitulada “A Trip that has lasted
10 years: Train Tan Tan is on the track for Social Inclusion” (2012).
Nesse horizonte inusitado, percorrido pela linha da loucura,
numa interlocução entre política e arte, numa travessia que determina
quase duas décadas de existência do Trem Tan Tan, consideramos que

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 233


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
ao percorrer esses caminhos e assumir os desafios do presente que
desbravamos futuros, estabelecemos novas realidades. Sem dúvida,
quebramos preconceitos, propomos formas originais de estar na vida.
Ao agir desta maneira, provocamos uma necessidade de intervir no
mundo, consequentemente, novas perspectivas se abrem, mediante a
resistência, sobretudo quando trilhamos com coragem. Conduzido
por tal característica, incorporamos com responsabilidade essa longa
caminhada construída a partir do respeito, tendo como princípios a
dignidade e a ética do cuidado. Por esses trilhos da reflexão, vale destacar
uma afirmação do escritor moçambicano Mia Couto: “O que faz andar
a estrada? É o sonho. Enquanto a gente sonhar a estrada permanecerá viva”
(COUTO, 2007). Sendo assim, com a realização de mais um sonho, que
foi a gravação do primeiro DVD do grupo, intitulado “Sambabilolado
e Outros Tan Tans” (2015), testemunhamos um momento valioso que
marca um riquíssimo processo instaurado com a imprensa, no qual,
nós que estamos na linha de frente da locomotiva, procuramos estabe-
lecer e sonhar no sentido de atravessar fronteiras, abrindo horizontes
e estradas contínuas, apesar de vivenciar inúmeros descaminhos, mas
sem desistir de impulsionar o nosso andar, enquanto o trem caminha
para outros montes.
Em dezembro de 2016, fechamos o ano com satisfação, já que o
grupo entrou na programação da Globo Minas, através do Programa
Globo Horizonte, que tem como aspecto fundamental divulgar novos
artistas e trabalhos artísticos relevantes que vêm ganhando notoriedade
no Estado de Minas Gerais e especialmente em Belo Horizonte. No
mês natalino daquele ano, numa vinheta de divulgação do programa, a
apresentadora Renata do Carmo anuncia:“A história do grupo mineiro
Trem Tan Tan é contada pelo Globo Horizonte neste domingo” (2016).
O programa aconteceu pela manhã, tendo uma repercussão muito
positiva para o grupo, essencialmente para a divulgação do DVD “Sam-
babilolado e outros Tan Tans”. Foi visto por um contingente de pessoas
que normalmente não tem acesso aos trabalhos que são produzidos
no serviço substitutivo, além de desconhecerem as atividades artísticas
e produtos realizados nos Centros de Convivência da rede pública de

234 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
saúde mental de Belo Horizonte e as reivindicações da reforma psi-
quiátrica. Assim, por essa via de comunicação, o coletivo Trem Tan Tan
mais uma vez amplia o seu trabalho numa perspectiva que leva para a
comunidade a questão de uma sociedade sem manicômio, ao amplificar
a discussão dos direitos humanos. A reportagem ficou hospedada no
site da Globo Minas, atingindo um índice alto de visitação no período
em que o programa foi apresentado.
Ao tentar escrever esse artigo e fazer uma análise sobre a questão
da imprensa como um objeto de reflexão em paralelo com a história
do grupo musical Trem Tan Tan, constatamos nessa convivência que
proporcionou inúmeras matérias produzidas pelo jornalismo especiali-
zado em cultura, o despertar do interesse pelo conjunto de histórias e
narrativas que fundamentam a existência do grupo e, especificamente,
a curiosidade pelo fenômeno da loucura. De fato, quaisquer que pos-
sam ser as possíveis motivações que levaram a imprensa a esse interesse,
entendemos que o grupo, além de proporcionar notícias interessantes
para a mídia e a imprensa brasileira destinada ao jornalismo cultural, vem
tendo um papel relevante ao promover uma discussão através do sensível,
do aspecto estético, ao ampliar o debate numa perspectiva política. Indo
na mesma direção, problematizou ainda a percepção dos profissionais
do jornalismo acerca de suas concepções sobre a loucura, forçando-os a
rever seus preconceitos. Desta forma, essa atitude do coletivo Trem Tan
Tan promove uma transformação no modo como o setor jornalístico
percebe e divulga a loucura. Firme com esse procedimento, provoca
uma revisão nos conceitos, no sentido de não legitimar os estereótipos.
Com isso procura eliminar a visão distorcida e gera um questionamento
em relação ao estigma do cidadão louco. Diante disso, é evidente que
parte do jornalismo, de forma subliminar, revela um preconceito que
está embutido em seu discurso. De certa forma, o Trem Tan Tan surge
como uma máquina do sensível, de signos, de cultura, sobretudo como
uma locomotiva de vida, movida pelo combustível do afeto. Por esses
motivos, reiteramos que esse empreendimento antimanicomial é de
suma importância para a desmistificação do louco. Não é exagero res-
saltar que o Trem Tan Tan se configura como um coletivo de cultura,

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 235


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
e assim, empoderado por essa condição, faz uma afronta a essa visão
deturpada, ao apontar novas perspectivas e possibilidades, não entendidas,
tanto pelo poder público quanto pelo setor cultural. Neste contexto,
podemos concluir esse mergulho reflexivo tendo como abordagem a
responsabilidade e a ética da imprensa, o que me faz lembrar Paulo
Henrique Amorim, no livro “O Quarto Poder” quando diz:“Nenhum
jornalista sobrevive às suas memórias” (AMORIM, 2015). Não sei se
esses profissionais da imprensa que procuraram o Trem Tan Tan para
realizar suas pesquisas e entrevistas guardam alguma lembrança do grupo
ou das pessoas que lá resistem e sonham. São histórias que nos marcam,
que nos tocam, impulsionam o Trem a descobrir novos trechos, outras
trincheiras e várias estações.

Referências

ARBEX, Daniela. Holocausto brasileiro. 4. ed. São Paulo: Geração Edi-


torial, 2013.
BERIMBAU DRUM: World Music Review. A trip that has lasted 10
years: Train Tan Tan is on the track for Social Inclusion. 2012. Disponível
em: <https://berimbaudrum.org/2012/11/16/a-trip-that-has-lasted-
-10-years-train-tan-tan-is-on-the-track-for-social-inclusion/>. Acesso em
28 de set. de 2021.
BUENO, Austregésilo Carrano. Cantos dos Malditos. Rio de Janeiro:
Rocco, 2001.
COUTO, Mia. Terra sonâmbula. São Paulo: Companhia das
Letras, 2007.
CUNHA, Alécio. Lindo, Leve e Louco: portadores de sofrimento men-
tal do Centro de Convivência Venda Nova mostram seu talento em CD
fora do comum. Belo Horizonte, Hoje em Dia, dez. 2002.
FIRMINO, Hiram. Nos porões da loucura: um contundente retrato dos
campos de concentração da psiquiatria brasileira. Ecológico, 2014.

236 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
GLENS, Mathias Vaiano. Os desafios atuais da reforma psiquiátrica.
Jornalistas Livres, 18 de maio de 2017. Disponível em: <https://jorna-
listaslivres.org/os-desafios-da-reforma-psiquiatrica/>. Acesso em 28 de
set. 2021.
NOGUEIRA, Bruno Torturra. Salada Volume: Trip hop, downtempo,
soul, forro, dub, rock’n’roll e música de dar em doido. Trip, número 110, p.
116, maio, 2002.
SOUZA, Jessé de. A elite do atraso: da escravidão à Lava-Jato. Leya, Rio
de Janeiro: 2017.
TOMAZ, Tales Queiroz. Uma cabeça, muitas cabeças: Além dos
limites da terapia, integrantes da luta antimanicomial enfrentam com
arte a loucura do preconceito. Rumos Itaú Cultural: Jornalismo Cultural
2007-2008.

VÍDEOS

FORA DO EIXO TVFDE. 10 anos de Trem Tan Tan. 2012.Vídeo do


show comemorativo dos 10 anos da Banda Trem Tan Tan na Funarte MG.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=YfkgvVCT-a0>.
GLOBO HORIZONTE. Canal G1 da Globo Play. Disponível em:
<https://globoplay.globo.com/v/5501496/>.
UNIBH. Trem Tan Tan - Nos Trilhos da Inclusão Social. 2ª Mostra
de Arte Insensata, no Espaço Cento e Quatro. Documentário produzido
pelas alunas do 5º período de jornalismo do UNIBH. 2010. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v= HBWfOCpzDRw & t=19s>.

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 237


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
COMO VEMOS A CIDADE DENTRO DE
NÓS MESMOS?

Billi1

A pisada, minha passarela


Meu corpo tangiu-se em
Amoras e embriões
De onde consigo caminhar.
Onde esconde minha
Convivência da cidade
O meu corpo nu, porém santo?
Milhares e milhares
De pisadas da cidade
Que vive dentro de mim;
Lá fora o universo
Enfeitando a moradia de Deus
Aqui dentro da minha cidade.
Minha cidade é o meu corpo inocente
E sem vida,
A vida é só uma fachada,
A cidade, porém, somos todos
E mais todos...
Sem ninguém!

1
Escritor, usuário do Centro de Convivência Arthur Bispo do Rosário.

238 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
Seção 3

ENTREMUNDOS DO SABER:
CENTRO DE CONVIVÊNCIA E EDUCAÇÃO

239
SONHARINA

Brenda Behôri1

Sou Sonharina.
Como ritmos
Cheiro melodias
E bebo chá de liberdade.

1
Artista, usuária do Centro de Convivência Carlos Prates.

241
ARTE & EDUCAÇÃO: UMA EXPERIÊNCIA NOS
ESPAÇOS DA SAÚDE MENTAL DO SUS/PBH

Paulo Sérgio Thomaz1

Los Niños y los locos


son los únicos que dicen la verdad,
por eso, a los primeros los “educan”
y a los segundos los encierran
Fuera, Bicho!

Deparei-me com a frase acima grafitada num muro da cidade de


Buenos Aires faz bastante tempo e não imaginava que ela retornaria,
tão vigorosa e pertinente, para minha experiência com oficinas de
arte-educação no espaço da saúde, mais especificamente para pessoas
em sofrimento mental nos Centros de Convivência, em parceria com
a Secretaria Municipal de Educação. Como resposta a uma antiga
demanda dos usuários, essa parceria permitiu incluir, no espaço do
Centro de Convivência, o Projeto EJA (Educação de Jovens e Adul-
tos). O EJA forma e incentiva os usuários do serviço na ampliação de
seus projetos de vida, desconstruídos ao longo de seus percursos, não
só pelas contingências de sofrimentos e vulnerabilidades associadas à
sua condição de saúde, mas, principalmente, pela ausência de políti-
cas públicas que marcaram o período anterior à reforma psiquiátrica
no Brasil. Os longos períodos de internação manicomial produziram
uma massa de pessoas excluídas e sem direitos, inclusive à condição
de sujeitos.
O que proponho, ao longo deste texto, é descrever a experiência
a partir de minha vinculação com os Centros de Convivência, produ-
zindo espaços com oficinas de arte e ampliação de parcerias com os
educadores do projeto EJA no intuito de enfrentar os enormes desafios
da desinstitucionalização das pessoas em sofrimento mental.
1
Músico instrumentista, formado pela EMUFMG. Atua há mais de 19 anos nos Centros de Convivência
Carlos Prates e Cézar Campos.

242
Uma referência importante

Certa ocasião, tive o privilégio de acompanhar um grupo de


usuários do Centro de Convivência Carlos Prates ao Museu de Artes e
Ofícios, onde aconteceria uma palestra com o Educador Popular Tião
Rocha2. A partir desse encontro, e impressionado com as palavras desse
mestre genuíno, senti-me causado pelo tema apresentado por ele, uma
provocação incessante que me levou, posteriormente, a buscar saber um
pouco mais sobre sua “Pedagogia da Roda”. Tomei conhecimento de
seu fecundo e reconhecido trabalho desde a criação do Centro Popular
de Cultura e Desenvolvimento (CPDC), o qual “incomoda aqueles que
não querem sair do lugar”, uma vez que, conforme ressaltou Rocha,
“professor é aquele que ensina e educador é aquele que aprende”.
Saí dessa palestra com uma ideia estruturante para contextua-
lizar meu trabalho junto às pessoas em sofrimento mental no Centro
de Convivência, ao perceber que as demandas trazidas pelos usuários
advêm de históricos de vida marcados por muitos episódios de ina-
dequação aos modelos pedagogizantes e massificados, com currículos
fossilizados, sempre excludentes e que não reconhecem sujeitos com
aptidões diversas e diferenciadas.Tais aptidões encerram uma potência
que não cabe no quadrado de uma formatação definida por um saber
ameaçador e excludente. Na maior parte da experiência que marca a
educação formal, não se educa; só se escolariza.
Vivemos, cotidianamente, entre polaridades de um modelo que
busca eficientes, mas diante dos desafios éticos da solidariedade e res-
peito, termina por condenar uma boa parte de seus demandados ao
estigma de deficientes. Não podemos e sequer temos esse direito de não
reconhecer as diferentes formas de aprendizagem. Uma lição impor-
tante que aprendi nesse meu percurso como oficineiro nos Centros de
Convivência, veio da percepção de uma melhor estratégia que tinha ao
meu alcance, qual seja, deixar de lado essa referência da “ensinagem”
institucionalizada e me disponibilizar a construir, numa via de mão dupla,
2
Tião Rocha é seu nome; Sebastião é apelido. Antropólogo (por formação acadêmica), educador popular
(por opção política) folclorista (por necessidade), conforme ele se define.

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 243


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
uma aprendizagem sem hierarquia e distante da figura do professor. Fui
provocado a posicionar-me como um mediador em tempo real com
as experimentações que vão surgindo nessas vias de transferência do
afeto que não se encerra e nem começa no que eu suponho saber na
abordagem de cada oficina. Nas reflexões de Tião Rocha, “educação
só acontece no plural. Não existe educação no singular, pois, para que
haja educação é necessário, no mínimo, duas pessoas”.
O Centro de Convivência é um local de possibilidades infinitas,
sempre renovadas nos pressupostos da arte como instrumentação, do
artista como mediador de cada movimento, de inúmeras singularidades
que ampliam as possibilidades de uma clínica ampliada e compartilhada
que se constrói em rede.
Ao abrirmos nossa caixinha de ferramentas, temos a clareza da
necessidade de articulações intersetoriais que potencializem nossas
ações. “Os recursos de natureza clínica, incluindo medicamentos, de
moradia, de trabalho, de lazer, por meio do cuidado nos programas
de reabilitação psicossocial” (MENDONÇA, 2005, p. 31) são impres-
cindíveis para marcar o percurso do usuário dos serviços na rede de
assistência. Nós, os agentes trabalhadores no espaço Centro de Con-
vivência, construímos, cotidianamente, laços que vão se consolidando
a partir não só das oficinas, mas de todas as formas de articulação que
favorecem o acolhimento dos usuários em outros pontos da rede. Ao
trabalharmos com conceitos de subjetividade, temos a oportunidade
de um (re)conhecimento das diversas habilidades que envolvem não
somente a nossa prática de mediação entre o usuário e seu fazer, mas
no sentido de apontar para um interesse pela vida das pessoas sob o
cuidado ampliado dessa instituição que as acolhe por uma via referen-
ciada do tratamento clínico.
Atentemo-nos para esta frase, da psiquiatra Ana Maria Fernandes
Pitta, por ocasião de uma palestra para trabalhadores de saúde mental:
“Crescera em mim uma infinita humildade de querer apenas compartir
com aquelas pessoas um espaço de continência, tolerância e, quem sabe,
poder fazê-las se sentirem melhores ao viver suas vidas (...)”. Trata-se
da defesa de uma tolerância diante da alteridade. “Tolerância, não no

244 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
sentido de conivência, e sim de convivência” (MOEBUS, 2005, p. 34),
daquilo que possa ser um pressuposto para se construir as virtudes, na
forma de um conhecimento.
E então, a partir dessas premissas, sinto-me mais seguro para des-
crever essa experiência tão viva e de um extraordinário êxito frente aos
desafios de se ampliar as ofertas nas atividades dos Centros de Convi-
vência da saúde mental PBH-SUS através de uma parceria importante
entre a arte e a educação, no projeto do EJA.

Descrevendo uma prática

Iniciamos as atividades de oficinas de música para os alunos do


EJA nos primeiros meses de 2016. Já havíamos nos encontrado, as
professoras Rosilane Mota, Neuza Ribas e eu, para algumas atividades
pontuais, de datas e comemorações no Centro de Convivência e fora
dele. Foi então que amadurecemos essa proposta de formalizarmos
um encontro semanal, todas as terças-feiras, no segundo período de
nossas atividades, com demandas específicas de alunos das classes
na educação e dos usuários frequentes na oficina de musicaliza-
ção. A minha ideia inicial era desenvolver as noções básicas de uma
boa audição de canções de todos os gêneros e aspectos rítmicos e
melódicos na música brasileira, com ênfase na cultura popular e no
folclore nacional. Tínhamos aí uma proposta muito pertinente na
mediação daquilo que é parte construtiva dos saberes que cada um
dos participantes trazia de suas vivências cotidianas, vindas da escuta
do rádio, da televisão e de todos os meios de acesso que lhes são
possíveis. Experimentamos, também, alguns exercícios envolvendo o
próprio corpo, naquilo que os levariam à percepção rítmica através
da dança e assim seguimos, desenvolvendo atividades que pudessem
adentrar aos conceitos formais de uma possível alfabetização musical,
com exercícios que os apresentassem aos símbolos e signos da escrita
musical, construção de instrumentos e objetos sonoros a partir de
sucatas, para exprimir concretamente as propriedades e cores do som
(timbre, duração intensidade e altura).

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 245


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
A partir dessa liberdade de experimentação, seguimos construindo
uma “pedagogia da roda”, onde todos pudessem se perceber dentro
dela, movidos por uma soma de energias e conhecimentos que cir-
culavam com as informações valorosas de todos os presentes. “Quem
comanda é o conteúdo, são os desejos, é a ideia concretizando-se com
o conceito de trocas, de aprender juntos; é na soma (1+1=3) onde se
produz o milagre da educação”, reiterando as palavras e o entusiasmo
do mestre Tião Rocha.
A partir dessa experiência posso afirmar que não há um ambiente
propício ao desenvolvimento humano, com uma potência tão dinâ-
mica, a ponto de DESLO(u)CAR as noções de todos aqueles que se
designam ao papel de educador. As palavras de Tião Rocha, quando
afirma que “o professor é aquele que ensina e o educador aquele que
aprende”, referenciaram a minha mediação como exercício e prática
nas oficinas e deslocaram-me da posição de suposto saber nessa relação
com os usuários, reafirmando meu papel com a “nome-ação” de um
“Oficineiro”. Desta forma, educar se torna um significante novo em
minha prática nas oficinas.

Considerações finais

A falência do modelo educacional brasileiro, por sua tradição em


ser um aparelho do mercado, na perspectiva de formar alunos apenas
para cumprir provas, se estender em currículos e diplomas, do assédio
pela ideologia de gestão e eficiência econômica, trata estudantes como
consumidores, o que tem repercutido em adoecimento, patologização
e exclusão de boa parte da população em idade escolar.
Atualmente, ao nos depararmos com esse momento político gol-
peando todas as aspirações que vínhamos construindo, particularmente os
modelos de inclusão social humanistas, que contribuíram para ascendente
valorização das classes outrora desfavorecidas, voltamos aos períodos
autoritários e de desprezo às muitas conquistas que ocorreram durante os
governos progressistas.Testemunhamos uma série de retrocessos, dentre os
quais destacamos a diminuição de programas de cotas na educação e da

246 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
presença marcante da arte popular na cena cultural. Houve um momento
de expansão reconhecida que promoveu o surgimento de grupos fora
desse eixo influenciado pela elite financeira e seu corporativismo que
sempre marcou a identidade cultural brasileira. A presença do rap, dos
sambas de roda, do coco, funk e tantos outros gêneros musicais surgidos
nos espaços periféricos da urbanização são amostragens que legitimam
muito da nossa diversidade cultural. E nesse momento de assalto às polí-
ticas públicas, caminhamos para um desafio ainda maior nesse espaço
de trabalho. O direito à educação e à cultura como elementos na for-
mação das identidades tornam-se ainda mais necessários na mediação
desses sujeitos que, pela via do acesso à saúde, encontram oportunidades
imprescindíveis de legitimar sua condição de cidadão.
Diante disso, avançamos na perspectiva de ampliação dessa ofi-
cina Arte Educativa, permitindo uma parceria singular, por seu caráter
intersetorial, suportados e referenciados na clínica ampliada da rede de
serviços públicos do município.
Além das oficinas de artes, as festas comemorativas, as assembleias,
reuniões da equipe de trabalho na discussão do nosso fazer criativo,
suportes pela via da supervisão em saúde mental, deslocamentos com
os usuários na cidade e para além dela em viagens já permitiram a uma
centena de pessoas que nunca tinham visto o mar, a apropriação da
praia como espaço público de garantias da circulação de todos, para
usufruto dessa imensa felicidade.
Essa intersetorialidade entre a Educação e a Saúde tem nos apon-
tado um caminho com fluxos intermináveis que produzem vida e
bem-estar coletivo a esses sujeitos, muitos deles condenados por longo
tempo às grades e aos muros. Hoje, diante da acessibilidade plena às
ruas, podem ir a uma padaria, a reuniões da associação que os representa
(ASUSSAM - Associação dos Usuários dos Serviços de Saúde Mental),
frequentar espaços diversos da cidade, como teatros, cinemas e inumerá-
veis acontecimentos culturais e artísticos da agenda municipal e entorno.
Contrário ao discurso de quem quer tirar os meninos da rua,Tião
Rocha argumenta, conforme pude registrar de sua palestra:

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 247


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
(…) não quero tirá-los de lá e sim mudar a rua, pois ela
é o lugar da cidadania, da manifestação cívica, por onde
passam as procissões religiosas, onde se comemoram
títulos de futebol, onde há o ato público, a festa popular,
a passeata pela greve e manifestação pelos direitos da
criança, pelos direitos humanos.

E aí acrescento que a rua é também o lugar por onde passa o


desfile do 18 de maio, Dia Nacional da Luta Antimanicomial com o
nosso enredo de “Liberdade ainda que Tan Tan”, um grande aconte-
cimento que toma as ruas de Belo Horizonte, manifestando liberdade
e reverenciando as enormes conquistas de uma luta que se faz perma-
nente a cada ano.
É muita felicidade para nós todos, trabalhadores da Arte e
da Educação, nos enxergarmos nesse lugar, onde cabem infinitas
possibilidades, para nós e para os usuários. Uma via de mão dupla que
caracteriza os fundamentos de tratar a loucura em liberdade.
O Movimento da Luta Antimanicomial faz lembrar que, como
todo e qualquer cidadão, estas pessoas têm o direito fundamental à
liberdade, a viver em sociedade, além do direito a receber cuidado e
tratamento sem que para isto tenham que abrir mão de sua cidadania.

Referências

MENDONÇA, Angela Maria. Acolhimento em Saúde Mental. OLYM-


PIA, Cadernos de Saúde Mental de Ouro Preto. 01 dez. 2005.
MOEBUS, Ricardo. Tratando com tolerância. OLYMPIA, Cadernos de
Saúde Mental de Ouro Preto, Ouro Preto. 01. dez. 2005, p. 33-34.

248 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
UM OLHAR REFLEXIVO SOBRE O TRABALHO
INTERSETORIAL: SAÚDE E EDUCAÇÃO JUNTAS
NO PROCESSO DE INSERÇÃO SOCIAL E DE
CONSTRUÇÃO DA AUTONOMIA

José Álvaro Pereira da Silva 1


Wilma dos Santos Ribeiro 2

Este texto trata da possibilidade de atuação conjunta dos setores


de Saúde e Educação nos Centros de Convivência, que constituem um
importante equipamento da rede de atenção psicossocial surgido com
a Reforma Psiquiátrica dos anos 1990 no Brasil. Os autores detalham
a experiência de parceria entre o Centro de Convivência Nise da Sil-
veira, localizado na Pampulha, em Belo Horizonte, e a Rede Municipal
de Ensino da mesma cidade, por meio de uma turma de Educação de
Jovens e Adultos que funciona no referido Centro. O trabalho tem
como perspectiva a reinserção social dos frequentadores do Centro
por meio de atividades que buscam valorizar a identidade e reforçar a
autonomia dos educandos. O texto destaca algumas vantagens do fun-
cionamento da turma de EJA no Centro, tendo em vista características
e necessidades específicas dos educandos(as), muitos dos quais passam
por sofrimento mental devido a causas diversas.
A redemocratização do país na década de 1980, a promulgação
da Constituição Federal de 1988 e a implantação do Sistema Único de
Saúde (SUS) constituíram um cenário favorável para a Reforma Psi-
quiátrica no Brasil com o surgimento, na década de 1990, dos primeiros
serviços substitutivos aos hospitais psiquiátricos, que já apresentavam
uma mudança de paradigma no tratamento das pessoas em sofrimento
mental. Essa mudança, em linhas gerais, refere-se à realização do tra-
1
Professor da Educação de Jovens e Adultos no Centro de Convivência Nise da Silveira. Professor de
Geografia da Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte.
2
Terapeuta Ocupacional, com Especialização em Saúde Mental na Terapia Ocupacional pela UFMG.
Gerente do Centro de Convivência Nise da Silveira da Regional Pampulha/ SMSA/ PBH, até novem-
bro de 2021.

249
tamento em liberdade, no qual não se trata exclusivamente a doença,
mas promove-se a reinserção social dos sujeitos. A lei federal 10.216 de
6/04/2001 versa sobre a proteção e direitos das pessoas portadoras de
sofrimento mental e redireciona o modelo assistencial de saúde mental.
Os Centros de Convivência fazem parte da rede de atenção
psicossocial, e além das variadas oficinas de arte e artesanato e outras
atividades ofertadas para pessoas em sofrimento mental, usuárias ou
não de álcool e outras drogas, articulam parcerias, realizam estratégias
e ações que podem impactar positivamente na reinserção social de seus
frequentadores. A parceria com a Educação se dá por meio de uma
turma da Educação de Jovens e Adultos (EJA) do ensino fundamental
que funciona no Centro de Convivência Nise da Silveira, contemplando
uma demanda de muitos frequentadores para retornarem aos estudos.
Alguns deles abandonaram precocemente a escola devido ao início
das crises de sofrimento mental e/ou por terem iniciado o consumo
excessivo de drogas, o que dificultou sua adaptação às normas escolares,
tornando difícil sua permanência nesse espaço.
A EJA é uma modalidade educacional específica da Educação
Básica, voltada para os sujeitos jovens, adultos e idosos que, historica-
mente, tiveram negado o direito à educação. Em relação às características
da EJA assim entendida, Cury (2000) esclarece:
O termo modalidade é diminutivo latino de modus
(modo, maneira) e expressa uma medida dentro de uma
forma própria de ser. Ela tem, assim, um perfil próprio,
uma feição especial diante de um processo considerado
como medida de referência.Trata-se, pois, de um modo
de existir com característica própria. Esta feição especial
se liga ao princípio da proporcionalidade para que este
modo seja respeitado. A proporcionalidade, como orien-
tação de procedimentos, por sua vez, é uma dimensão da
eqüidade que tem a ver com a aplicação circunstanciada
da justiça, que impede o aprofundamento das diferenças
quando estas inferiorizam as pessoas. Ela impede o cresci-
mento das desigualdades por meio do tratamento desigual
dos desiguais, consideradas as condições concretas, a fim
de que estes eliminem uma barreira discriminatória e se

250 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
tornem tão iguais quanto outros que tiveram oportuni-
dades face a um bem indispensável como o é o acesso
à educação escolar. (BRASIL, 2000, p. 26)

A EJA no Centro de Convivência incorpora essas dimensões


abordadas por Cury (2000) na perspectiva de construção da autonomia
dos usuários, proporcionando várias dimensões importantes de suporte
para a reinserção social. Uma delas é o estímulo constante para que os
educandos circulem e utilizem os diferentes espaços públicos (parques,
praças, museus, teatros, cinemas, centros culturais, academias da cidade,
etc.), na perspectiva de ampliar a sua mobilidade espacial e afirmar o
seu direito à cidade. Esse trabalho educativo é baseado na premissa de
que os serviços públicos devem ser ofertados de forma articulada, numa
lógica intersetorial, e, portanto, defende a inseparabilidade entre saúde,
produção de conhecimento e produção de subjetividade. Isto significa
que, ao transitar pelos diversos espaços públicos da cidade e construir
conhecimentos sobre eles, os usuários ascendem à condição de sujeitos
do conhecimento, pois constroem saberes sobre o território e passam
a agir sobre ele com mais autonomia e confiança.
Após a obtenção do certificado de conclusão do ensino fundamen-
tal os alunos/usuários são apoiados e encorajados a dar prosseguimento
aos estudos na escola regular.A importância do funcionamento da turma
da EJA no espaço do Centro de Convivência Nise da Silveira deve-se
à possibilidade que ele representa de contornar fatores que dificultam a
frequência à escola, como: o uso de medicação psiquiátrica que dificulta
a frequência do turno escolar noturno, a falta de recurso para pagar o
transporte para a escola e, o mais relevante, a falta de credibilidade em si
mesmo em relação ao potencial de aprendizagem. A turma de EJA em
tela é caracterizada pela presença de alunos/usuários que sabem ler e
escrever, bem como alunos que ainda não foram alfabetizados. O papel
do professor tem sido o de acolher essa diferença e outras que surgem
no processo, como lidar com o aluno que quer sair várias vezes da sala
de aula, que se incomoda com a fala e a participação dos colegas, que
traz em seu corpo e memória muitas marcas da exclusão social, que
reproduz preconceitos em relação à mulher e em relação à diversidade
de gênero e sexualidade, entre outras questões.

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 251


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
Nas aulas, os alunos são estimulados a se manifestar e expressar
sua leitura de mundo, refletindo sobre uma variedade de temas, como a
luta antimanicomial, saúde mental em liberdade, liberdade e autonomia,
Dia Internacional da Mulher, movimentos sociais e a luta por direitos
na cidade, direito à cidade, diversidade de gênero e sexualidade, política
e cidadania, saúde integral, racismo, economia solidária, indústria far-
macêutica e seus impactos sobre a vida dos usuários de medicamentos,
relações familiares, diferentes perfis de família, direitos constitucionais,
população em situação de rua, a história de vida de cada um e o
processo de constituição das identidades, entre outras temáticas cujo
conhecimento ajude a fortalecer os sujeitos para enfrentarem as dife-
rentes situações de vulnerabilidade a que estão submetidos diariamente.
Nessa lógica de uma educação humanizadora, cada usuário do Centro
de Convivência é reconhecido como sujeito sociocultural, portador de
saberes da experiência que dialogam com os conhecimentos científicos
numa relação horizontal, sem hierarquia, e produz conhecimentos a
partir do protagonismo de cada um. A concepção expressa no presente
trabalho busca desenvolver princípios de solidariedade e de autonomia
do sujeito; portanto, entende a educação como princípio de solidarie-
dade, não como meritocracia e competição, e por isso dialoga com o
que diz o geógrafo Milton Santos:
A educação não tem como objetivo real armar o cidadão
para uma guerra, a da competição com os demais. Sua
finalidade, cada vez menos buscada e menos atingida, é
a de formar gente capaz de se situar corretamente no
mundo e de influir para que se aperfeiçoe a sociedade
humana como um todo. A educação feita mercadoria
reproduz e amplia as desigualdades, sem extirpar as
mazelas da ignorância. Educação apenas para a produção
setorial, educação apenas profissional, educação apenas
consumista, cria, afinal, gente deseducada para a vida
(SANTOS, 1987, p. 126).

Com base nessa concepção de educação, algumas das questões


que hoje se colocam para pensarmos a diversidade dos sujeitos que
chegam à turma de EJA do Centro de Convivência são: o que fazemos
para conhecer os sujeitos da EJA? Como esses sujeitos aprendem? Que

252 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
metodologias utilizamos para trabalhar com a diversidade? O que faze-
mos para entender e superar os processos históricos que inferiorizam
esses sujeitos? O que fazemos para fortalecer a identidade do educando
da EJA e ajudá-lo a superar as manifestações racistas, sexistas, homofó-
bicas, discriminatórias, preconceituosas, ainda tão presentes em nosso
cotidiano? Que projetos de presente e futuro eles têm?
Os educandos da Educação de Jovens e Adultos geralmente são
homens e mulheres trabalhadores/as, empregados/as e desempregados/as
ou em busca do primeiro emprego; filhos/as, pais, mães e mesmo avós;
moradores urbanos, muitas vezes de periferias, favelas e vilas; pessoas
que pernoitam em abrigos ou estão em situação de rua3, lutam pelo
direito à moradia por meio das ocupações urbanas, lutam pelo direito
ao tratamento em liberdade, no caso dos acometidos por problemas
de saúde mental, e fazem parte de tantas outras lutas denunciando as
ausências do poder público. São sujeitos sociais e culturais quase sempre
marginalizados nas esferas socioeconômica e educacional, privados do
acesso à cultura letrada e aos bens culturais e sociais, o que compro-
mete uma participação mais ativa no mundo do trabalho, da política e
da cultura. Vivem no mundo urbano, industrializado, burocratizado e
escolarizado, mas em geral trabalhando em ocupações não qualificadas
ou desempregados, à espera de uma vaga de trabalho. Trazem a marca
da exclusão social, particularmente em relação ao sistema de ensino, e
por isso apresentam, em geral, um tempo maior de escolaridade devido
a repetências acumuladas e interrupções da vida escolar. Como seres
sociais e históricos, trazem elementos da memória que os constitui, mas
são também sujeitos do tempo presente e que projetam muitos desejos
de realização para o futuro.
3
O conceito de população em situação de rua consta do decreto federal Nº 7.053, de 23 dezembro de 2009,
que institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua – PNPR. Esse conceito é resultado
do diálogo do Governo Federal com representantes da sociedade civil e expressa uma concepção mais
alargada de quem são esses sujeitos, pois os reconhece como um grupo populacional diverso, que possui
em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de
moradia convencional. Esse grupo utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de
moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento, os
“abrigos”, para pernoite temporário ou como moradia provisória. Esse conceito é importante porque
informa que a rua não é o lugar natural desses sujeitos, mas expressa uma condição social produzida pela
ausência de políticas públicas.

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 253


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
O processo educacional pensado com esses sujeitos possibilita uma
reflexão sobre os problemas que afetam a vida de cada um deles. Esses
educandos passam a refletir não apenas sobre a necessidade, mas sobre
a possibilidade de mudança. Isto acontece porque a educação é um
elemento fundamental para o desenvolvimento pessoal. Ela é também
considerada o caminho para formar pessoas sensíveis às questões que
afetam tanto a todos quanto a grupos minoritários, para formar pessoas
para a prática da liberdade e para o exercício da cidadania. E, ainda, é
o caminho para a mobilização social, sem a qual as mudanças não se
viabilizam, a modernização não distribui seus frutos e não se superam
as desigualdades e a exclusão.
É importante lembrar que, historicamente, a instituição escolar
tem apresentado dificuldades em lidar com a pluralidade e a diferença,
tendendo para a homogeneização e padronização dos conhecimentos
e comportamentos, o que, também historicamente, tem contribuído
para invisibilizar os sujeitos que se distanciam dos padrões hegemônicos
reproduzidos e/ou construídos no espaço escolar. De fato, essa lógica
excludente contribuiu para que os sujeitos participantes do estudo
aqui apresentado interrompessem sua trajetória escolar em diferentes
momentos, retornando agora, nesse espaço do Centro de Convivência,
em busca dos sonhos que foram interrompidos. O diálogo com esses
sonhos e o respeito às diferenças desses sujeitos é que tem permitido a
construção de uma prática educativa flexível, sempre construída a partir
da necessidade de acolher os diversos saberes produzidos pelos sujeitos
educandos na perspectiva de um processo emancipatório.
Nessa perspectiva, Arroyo (2017) nos convida a pensar com os
sujeitos da EJA sobre o direito à memória, para que os educandos pos-
sam pensar a si próprios e entender os violentos processos históricos de
opressão vividos por eles, assim como construir memórias e identidades
que fortaleçam a sua identidade.
O direito à memória é um direito humano pouco traba-
lhado nas escolas. Chegam adolescentes, jovens-adultos
com trajetórias densas desde a infância gravadas em suas
memórias; chegam carregando passados pesados, persis-

254 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
tentes de opressão, segregação. Até chegam resistentes a
um passado escolar negativo. Não teriam direito a que
os currículos lhes garantissem o direito a entenderem-se
nessas memórias? Como desconstruir tantas memórias
negativas, desumanizantes? Como valorizar memórias
humanizantes? (ARROYO, 2017, p. 193)

A articulação entre Saúde e Educação tem possibilitado propor


vários projetos que objetivam melhorar a qualidade do processo de
ensino-aprendizagem, permitindo construir o currículo na perspectiva
da promoção de saberes que ajudem os educandos a enfrentar as vulne-
rabilidades sociais a que estão submetidos. Nossa preocupação é que as
atividades pedagógicas desenvolvidas com esses educandos envolvam a
aprendizagem dos saberes culturais, científicos e a formação ética, com
o objetivo de que esse conhecimento sirva para o enfrentamento dos
desafios cotidianos, na perspectiva de construção de caminhos possíveis
de acesso aos direitos e de construção de uma vida com mais dignidade.
A partir dessa experiência intersetorial os estudantes têm assumido
o lugar de protagonistas do processo de produção do conhecimento.
Tudo tem sido construído coletivamente, no sentido de produzir uma
consciência crítica em relação às memórias de trabalho dos educandos
e à sua valorização, com vistas ao fortalecimento dessa dimensão da
identidade dos estudantes da EJA. Com o desenvolvimento desse trabalho
temos observado a elevação da autoestima dos estudantes, pois o mesmo
produz nos usuários do Centro de Convivência Nise da Silveira um
sentimento de liberdade – neste caso a liberdade de produzir conhe-
cimentos a partir de suas histórias de vida, de suas vivências, de seus
projetos de vida individuais e coletivos, seus sonhos e suas aspirações.

Referências

ARROYO, M. G. Passageiros da Noite: do trabalho para a EJA, itinerá-


rios pelo direito a uma vida justa. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2017.
BRASIL. Decreto Lei nº. 7053, de 23 dezembro de 2009. Institui a
Política Nacional para a População em Situação de Rua. Diário Oficial da

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 255


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 24 de dezembro de 2009. Dis-
ponível em http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/ 2009/
decreto/d7053. htm acesso em 27/11/2019.
BRASIL. Parecer CNE/CEB 11/2000. Diretrizes Curriculares Nacio-
nais para a Educação de Jovens e Adultos. Diário Oficial da Repú-
blica Federativa do Brasil. Brasília, DF, seção 1e, 09 jun 2000.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17 ed., Rio de Janeiro: Paz e
Terra. 1987.
SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. São Paulo: Nobel, 1987.

256 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
INTERSETORIALIDADE: UMA TRAMA DE
DESAFIOS E REALIZAÇÕES NA EDUCAÇÃO DE
JOVENS E ADULTOS EM VENDA NOVA

Sirla Alves

Em memória de José Macedo Rocha, que depois de 26


anos de internação compulsória, passou pela vivência da
liberdade e cuidado em rede.
À Eliza e Claudinho que, sob o olhar amoroso de Andréia
de Jesus, tecem cotidianamente um novo jeito de ser mãe,
filho e irmão.
Ao Centro de Convivência Marcus Matraga, pelas ensinanças
de profissionalismo e acolhimento.

Fevereiro de 2011. Chego ao Centro de Convivência Marcus


Matraga (CCMM) cheia de expectativas em relação a meu novo traba-
lho como professora da Educação de Jovens e Adultos (EJA) da Rede
Municipal de Ensino de Belo Horizonte.
Dando continuidade ao extinto Projeto Brasil Alfabetizado, do
Governo Federal, a Secretaria Municipal de Educação (SMED) de
Belo Horizonte havia implementado o Projeto EJA-BH. O objetivo
era oferecer uma Escola potente e conectada com a cidade, abrangendo
as nove Regionais Administrativas. Assim, a Educação vai rompendo os
muros e a rigidez da Escola Tradicional e passa a se fazer presente em
diferentes lugares da Cidade: Casas de Longa Permanência, agências
bancárias, Regionais Administrativas, Centros Culturais, Associações de
Moradores, Centros de Convivência e em um Centro de Referência
em Saúde Mental (CERSAM), sendo este o da Regional Venda Nova.
Essa efervescência na Educação também se estendia a outras áreas
do Conhecimento, entre elas o tratamento em liberdade dos cidadãos
em sofrimento mental, preconizado pela Lei 10.216, de 06 de abril de
2001. Foi nesta conjuntura que iniciamos nossa primeira turma de EJA
no Centro de Convivência.

257
Contra o frio do concreto, o calor do afeto

Desde julho de 2007, eu trabalhava também como Professora, no


Centro de Referência em Saúde Mental de Venda Nova (CERSAM
VN).A experiência de três anos e meio no CERSAM me deu segurança
para iniciar o trabalho no CCMM, já incorporando algumas estratégias
que, com a prática e a revisão cotidiana desta, fui desenvolvendo.
Tão logo percebi o quanto o ambiente tradicional na sala de
aula era limitador para o sujeito ali matriculado passei a fazer algumas
atividades como pintura, desenho, jogos e cantoria nos espaços abertos.
Ali fui percebendo que a participação se dava de forma mais espon-
tânea. Aos poucos, então, passamos a realizar todas as nossas atividades
no espaço externo, que era organizado de forma circular, com mesas,
cadeiras e quadro negro. Com a saída da sala de aula para o espaço
aberto, qualquer usuário que estivesse presente ali no horário da aula
tinha o direito de participar da atividade proposta, independentemente
de ser ou não matriculado. Desde então, consolidou-se um grupo que
se tornou o fio condutor do trabalho, que eram os estudantes oficial-
mente matriculados, mas sem impedimento da participação das demais
pessoas interessadas nas atividades propostas para aquele dia.
Nosso trabalho pedagógico era todo realizado através de eixos
temáticos e atividades significativas. Os conteúdos disciplinares (Geo-
grafia, Ciências, Português e os demais, eram trabalhados, na medida do
possível, a partir dos eixos temáticos). O material de uso do estudante
era organizado de forma diferenciada, visando o atendimento de todos:
os estudantes matriculados tinham o caderno individual, com seu nome
registrado na capa. Para aqueles que participavam ocasionalmente,
criamos o “Caderno coletivo”.

Mas, como assim? Uma escola fora da Escola?

Cada turma da EJA BH, aberta nos diferentes espaços da cidade, era
oficialmente matriculada em uma Escola da Rede Municipal de Ensino.
No nosso caso, ambas as turmas (CERSAM e Centro de Convivência

258 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
Marcus Matraga) eram referenciadas na Escola Municipal Antônia Fer-
reira. Sendo assim, o registro do trabalho se dava no diário de classe e os
direitos garantidos aos demais estudantes eram também garantidos nessas
chamadas “Turmas Externas”. Os estudantes recebiam anualmente o kit
escolar, com cadernos e livros didáticos, incluindo dez livros de Literatura,
sendo também garantido o direito à certificação no Ensino Fundamental.
Nesse processo, a direção da escola, as gerências dos equipamentos de
saúde mental onde funcionavam as turmas, o núcleo de EJA da SMED
e a professora estabeleceram uma fecunda parceria, visando oferecer o
melhor que podíamos naquele contexto. Assim, vários estudantes foram
certificados, “com toda pompa e circunstância”. E muita coisa bonita e
marcante aconteceu nessa nossa reinvenção de escola!

“Ando viajando na viagem de fugir com você…” (Celso


Fonseca)

Dentre as muitas experiências interessantes, sem dúvida as mais


lembradas eram as saídas organizadas para diferentes lugares, dentro e fora
de BH. Assim, com ônibus, ingressos e alimentação cedidos pela Escola,
fomos a cinemas, teatros, parques e também visitamos várias cidades.
Fomos a Itabira, depois de fazermos um trabalho associando poemas
de Carlos Drummond com a Música Popular Brasileira, tendo como
referência um disco do cantor Belchior, em que ele musicou poemas
de nosso Poeta. Conhecemos Barbacena e o Museu da Loucura, depois
de estudarmos a História da Luta Antimanicomial Brasileira.Visitamos
ainda Catas Altas, Ouro Preto, Santa Bárbara, Mariana, Congonhas,
Sabará, Gruta da Lapinha, Lagoa Santa.
Todas as viagens eram, sem exceção, precedidas de estudos, refle-
xões e combinados, que de modo geral funcionavam muito bem. Na
primeira aula, após o retorno, fazíamos sempre a avaliação da atividade,
considerando diferentes aspectos. É importante registrar aqui que tudo
isso só foi possível em ambas as turmas porque profissionais do Centro
de Convivência e CERSAM foram verdadeiros parceiros nessa jornada,
para garantirmos a saída com os cuidados e segurança necessários.

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 259


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
Além de mim, como professora, tínhamos o acompanhamento
e apoio irrestrito da gerência e oficineiros do CCMM, funcionários
da Enfermagem e estagiários de Terapia Ocupacional do CERSAM,
entre outros. Como vocês podem observar através deste relato, a partir
de 2011, quando assumo a turma de EJA do CCMM, as atividades
extraclasse passam a envolver as duas turmas concomitantemente. A
partir daí algo também muito interessante passa a acontecer: quando
um estudante do CC precisava ficar em permanência dia no CER-
SAM, este tinha garantido seu direito de participar da aula lá e ter sua
presença registrada na sua turma de origem. Importante registrar aqui
que nesta caminhada os estudantes conheceram a Escola onde eram
matriculados, fizeram apresentações para os professores da EJA-BH na
Secretaria Municipal de Educação e também na UFMG. Em ambos
os espaços, puderam fazer relatos, cantar, recitar poemas e apresentar
textos produzidos por eles.

“Sou eu quem vou seguir você do primeiro rabisco até


o beabá…” (Chico Buarque)

Por duas vezes recebemos jovens encaminhados pelo Centro de


Saúde. Em ambos os casos, eles precisavam de acompanhamento per-
manente de um adulto. A solução que encontramos foi propor às mães
que os acompanhavam, cotidianamente, a se matricularem também. Eu
diria que essa experiência foi profundamente significativa para todos
nós. Formamos ali uma teia de apoio incondicional para aqueles três
Jovens e suas digníssimas mães. O Centro de Convivência se tornou
para eles o local de aprendizado, escuta, orientação e acolhimento.

Lúcida Escrita

“As vozes pensam e sentem, mas hoje eu também penso e sinto;


e antes era tudo uma coisa só!” (J. M. B. L – Estudante certificado)
Ao longo dessa trajetória como professora na Saúde Mental, fui
guardando textos marcantes, profundos, bonitos, que eram produzidos

260 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
ali, em princípio, apenas com a intenção de preservá-los. Mas em 2012,
numa das reuniões de equipe do Centro de Convivência, decidimos
organizar essa produção em um “livro”, cujo título escolhido pela
maioria foi “Lúcida Escrita”. Nele foram publicados poemas, histórias
de vida, fotos, relatos da inserção dos estudantes na História e na cultura
das cidades visitadas. Depois de formatado e impresso nosso “livro”,
elaboramos e distribuímos os convites e organizamos a pauta para o
lançamento, com apresentação dos textos pelos próprios estudantes:
Tudo isso regado com música e comes e bebes, além da presença de
parentes e demais convidados.

“Na volta do barco é que sente o quanto deixou de


cumprir” (Chico Buarque)

Chico Buarque, nesta música, expressa muito bem aquele momento


em que, tendo já realizado algo, nos colocamos a refletir sobre o quanto
fizemos e deixamos de fazer. Hoje, já aposentada, na volta do barco,
fico a pensar sobre minha ação pedagógica: o quanto realizei e ajudei
a realizar. Também penso sobre o quanto deixei de cumprir como
professora, que fez a opção político ideológica pela escola pública. Mas
uma coisa é certa: a Educação de Jovens e Adultos na Saúde Mental
em Venda Nova, neste período, inspirava-se na Educação Dialógica e
Libertadora, preconizada pelo Educador Paulo Freire. Buscava também
a permanente interlocução com o Movimento da Luta Antimanicomial
em Belo Horizonte e no Brasil.
Quero finalizar este texto dizendo o quanto foi importante
para mim e para a qualificação de meu trabalho a participação em
espaços de formação e aprendizado na Saúde Mental. Sem dúvida,
as reuniões de equipe, a participação nas discussões de casos na
Supervisão Clínica, a organização do 18 de Maio, a Conferência
Nacional, o Fórum Mineiro de Saúde Mental e as leituras que
realizei neste período foram, sem dúvida, fundamentais para minha
formação e atuação.

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 261


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
O HOMEM “COLIBRI”

Inspirado e dedicado a Sérvio Andrade Duarte,


usuário do Centro de Convivência São Paulo

Jéssica Amaral Rodrigues1

Certa vez, conheci um homem-colibri que vivia seu interno


mundo veloz. Ouvi dizer que era do seu feitio ser falante e ligeiro,
que o caos delineava suas delicadezas e na costura de movimentos ele
criava coisas únicas em palavras, versos, vontades tecendo linhas em
ninhos coloridos.
Por fortes ventos e tempestades passou. Porém, em uma das
tentativas de resistir às intempéries da natureza, teve suas asas e a visão
machucadas. O que seria de um colibri ferido, sem movimentar seu
ritmo interior ou poder continuar tecendo as cores e não cores que
encontrava pelo caminho?
De forma misteriosa, como tantas vezes a natureza age, resolveu
tentar novamente bater as asas. Não eram como antes, mas ainda conse-
guiam levá-lo para alguns lugares, deslocá-lo para suas próprias jornadas,
deixá-lo em movimento. Afinal, ele ainda era um colibri.
Se reinventou. Se apaixonou pelo vermelho fogo das flores da
eritrina-candelabro, que florescem do inverno à primavera. Pelo azul
intenso da Amor Perfeito Gigante Azul, e o preto intenso das raízes
pelo chão. Suas criações, nessas três cores – azul vermelho e preto,
iam se formando. Começou criando cubos, com traços simétricos, e
a partir disso surgiam traços e tamanhos diferentes. Criou incontáveis
cubos tricolores.
Resolveu deslocar daquelas formas, pois ao retornar aos voos
percebia a extensão para se explorar ao seu redor. Ele captava ligeiro
os caminhos que percorria e pertencia. Desta forma, desenhou trajetos
1 
Jornalista, monitora da Oficina de Mídias e Fotografia no Centro de Convivência São Paulo

262 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
e mapas, para entender onde encontrava suas cores. Singelas cores, que
marcavam sua reinvenção.
Todos os outros pássaros sabiam que, onde havia um ninho daque-
les ele era do homem colibri.Vermelho, azul, preto. Para alguns pode
parecer pouco, porém aos olhos do colibri aquelas cores movimenta-
ram suas asas e seu olhar novamente. Desafiado pela vida, resolveu ser
desafiador ousando em sua caótica simplicidade. Como um mistério
da natureza, segue se reinventando. Dizem que agora observa formas
e as desenha em suas cores favoritas e o colibri segue na constante
descoberta de ser quem é.

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 263


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
Seção 4

ENTRE PRÁTICAS DA CIDADANIA:


CENTRO DE CONVIVÊNCIA E TRABALHO

265
RENASCENDO

Diego Luiz1

Em meio a uma sociedade cada vez mais adoecida, o Centro de


Convivência tem uma função de fundamental importância: resgatar
pessoas que por motivos diversos perderam o sentido na vida.
Através da arte, do diálogo aprendemos a respeitar as diferenças,
até porque a maior doença é o preconceito.
Quando fiz a entrevista com a gerente para ser avaliado eu não
tinha a dimensão de como isso mudaria os rumos da minha trajetória.
Comecei a socializar com os profissionais do sistema e usuários, e
aos poucos, com as demais pessoas, até mesmo com integrantes do meu
grupo familiar, na qual eu tinha uma espécie de barreira psicológica.
Profissionalmente eu estava desiludido, pois não conseguia me
colocar no mercado de trabalho na minha área de formação, e isso estava
me deixando sem humildade pois não aceitava qualquer emprego, até
que depois de várias oficinas e experiências incríveis me foi apresen-
tado um projeto que tinha como objetivo captar pessoas para diversas
funções de trabalho.
A partir daí pude conhecer um outro mundo, o mundo cor-
porativo; hoje estou trabalhando de carteira assinada, com todos os
meus direitos.
Meus hábitos também mudaram bastante: comecei a cuidar do
sono, da alimentação, da espiritualidade e da parte física.
Todas essas conquistas foram regadas com bastante música, con-
versas, contos, literatura em geral, artesanatos de todos os gostos, sempre
com muita disciplina e entusiasmo, respeitando o momento de cada
um. A troca de experiências que acontecem em uma oficina é algo
que só quem vive é que conhece o ganho psicológico e emocional
que se tem; você chega com várias dificuldades e sai com a certeza de
1
Usuário do Centro de Convivência Barreiro.

267
que vale a pena viver, os relacionamentos interpessoais se sobrepõem
ao fechamento e o individualismo.
Quem faz parte do Centro de Convivência Barreiro logo no
primeiro dia de contato é contaminado por um vírus, e o objetivo é
espalhar esse vírus para o mundo inteiro. Quem tem o direito de ter
um tratamento em liberdade e humanizado com certeza vai transmi-
tir o vírus do amor, da paz, da dignidade e outros bons sentimentos
para as outras pessoas, contribuindo para o crescimento da sociedade
como um todo.
Agradeço a todos os envolvidos neste processo e firmo o meu
compromisso de divulgar este trabalho até o último dia da minha vida.

268 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
BAZARES VIRTUAIS EM TEMPOS DE PANDEMIA:
ESTRATÉGIAS DE EMPREENDEDORISMO E
PARCERIAS ENTRE CENTROS DE CONVIVÊNCIA
E INCUBADORA DE EMPREENDIMENTOS
ECONÔMICOS E SOLIDÁRIOS

Aleixo da Cruz1
Ana Rita Gonçalves2
Bruno Soriano Velano3
Daniela Ramos Garcia4
Danielle Campos dos Santos Domingos5
Luciana Lopes Melo6

A Incubadora de Empreendimentos Econômicos e Solidá-


rios (IEES) é uma estratégia da Gerência da Rede de Saúde Mental
(GRSAM) de Belo Horizonte, que se dedica à promoção do empreen-
dedorismo e geração de trabalho e renda orientados pelos princípios
da economia solidária. A especificidade dos princípios da economia
solidária visa atender aos usuários da Rede de Atenção Psicossocial
(RAPS) que desejam trabalhar, por meio de um modelo que considere
e valorize suas condições singulares (objetivas e subjetivas) de produção
e organização entre pares.
O acesso de usuários da saúde mental à capacitação, comercia-
lização, divulgação e reconhecimento de sua produção são alguns dos
1
Aleixo da Cruz é designer, figurinista e artista plástico. Técnico em Publicidade pelo AEC e SENAC.
Faz parte da equipe da IEES desde 2012.
2
Ana Rita Gonçalves de Souza é atriz, gestora cultural e produtora de eventos. Graduada em Comunicação
Social/Eventos. Integra a equipe IEES desde novembro de 2015.
3
Bruno Velano Soriano é psicólogo, publicitário. Pós-graduado em Comunicação e Marketing. Faz parte
da equipe IEES desde novembro de 2015.
4
Daniela Ramos Garcia é atriz, filósofa e artista plástica. Mestre em Artes pela UEMG. Coordenadora
da IEES desde 2020.
5
Danielle Campos dos Santos Domingos é administradora de empresas. Graduada em Administração. Faz
parte da equipe IEES desde 2012.
6
Luciana Lopes de Melo é técnica Executiva da IEES. Está na equipe IEES desde 2019.

269
objetivos da IEES ao apoiar iniciativas de serviços e usuários da rede
de saúde mental que visam garantir a ampliação da participação social
no mundo do trabalho, pela via do empreendedorismo e economia
solidária, configurando um dos aspectos da reabilitação psicossocial.
A IEES atualmente apoia as seguintes iniciativas: Associação
Suricato; geração de trabalho e renda no Campo AD7, que se des-
dobra em Ateliê de Geração de Trabalho e Renda para usuários dos
CERSAM AD8 e Unidade de Acolhimento Transitório Adulto (UAT);
Maladeza – para usuários vinculados ao Consultório de Rua de Belo
Horizonte, e Juventude & Aprendizagem para o Mundo do Trabalho
para jovens vinculados aos CERSAMI9 e Unidade de Acolhimento
Transitório infanto-juvenil (UATi).A IEES também está acompanhando
a concepção do Espaço de Inclusão Produtiva (Eipro) do CIAM10, que
foi inaugurado em julho de 2021. Outras frentes ainda estão se dese-
nhando com o apoio da IEES, por meio de consultorias, para propostas
relacionadas ao empreendedorismo, geração de trabalho e renda para
usuários da RAPS.
Dentre as iniciativas citadas, destaca-se o apoio à Associação
Suricato, organização figurada como vanguarda de empreendedorismo
na saúde mental do Brasil. A Suricato é uma associação de usuários e
familiares da rede de saúde mental de Belo Horizonte, que desde 200411
se constituiu em cinco núcleos de produção: Marcenaria, Mosaico,
Costura & Bordado, Culinária e Espaço Cultural. Atualmente, o apoio
da Equipe da IEES à Suricato se configura no acompanhamento da
gestão do plano de trabalho do convênio da Associação com o Fundo
Municipal de Saúde da SMSA, além de ações em educação e empreen-
dedorismo que visam o desenvolvimento da Associação. Para tanto, a
equipe de monitores da IEES acompanha as atividades dos núcleos de
produção da Associação Suricato, além de apoiar a gestão da entidade por
meio de ações, oficinas de capacitação, captação de recursos e parcerias.
7
Campo Álcool e Drogas.
8
Centro de Referência em Saúde Mental Álcool e Drogas.
9
Centro de Referência em Saúde Mental Infantil.
10
Centro Integrado de Atendimento à Mulher.
11
Ano em que o Estatuto da Associação de Trabalho e Produção Solidária - Suricato foi registrado em cartório.

270 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
Umas dessas ações, em parceria com a rede de saúde mental, são
os bazares organizados junto aos Centros de Convivência, colaboração
que visa a promoção e a visibilidade da produção artística e artesanal
dos usuários dos Centros de Convivência e dos núcleos de produção
da Suricato. A iniciativa coletiva ocorreu, ao longo de alguns anos, no
hall da Secretaria Municipal de Saúde e em algumas edições contou
também com a presença da produção do projeto Arte da Saúde.
Em virtude da pandemia do Covid-19 essas iniciativas sofreram
seus primeiros cortes. Belo Horizonte foi uma das primeiras cidades do
país a adotar as medidas de segurança sanitária mais restritivas, ao fechar
o comércio não essencial e restringir a circulação das pessoas. Ações
que se tornaram modelo de redução de contaminações e mortes pelo
coronavírus, em um período em que a única forma de prevenção, eram
o isolamento e o distanciamento social. Os impactos da pandemia ainda
são incalculáveis; no entanto, frente a esse enorme desafio, inventamos
estratégias para minimizar as consequências dessas paralisações.
É interessante destacar aqui a recente introdução das atividades
virtuais em nossa rotina, o que demarcou a aceleração compulsória
do uso de tecnologias de comunicação e instrumentalização digital
em todos os campos que envolvem o cotidiano, principalmente do
trabalho, seja em espaços públicos ou privados. Esse contexto planetário
demandou a capacitação em massa para o uso de plataformas digitais
de comunicação e comercialização de produtos e serviços.
O uso das tecnologias virtuais, no campo do trabalho, são uma
novidade para as instituições, para muitos profissionais e, principalmente,
para os usuários e familiares acompanhados pela rede de saúde mental.
As práticas virtuais entraram na rotina das pessoas e dos serviços e, no
caso dos Centros de Convivência, garantiram a continuidade do vínculo
com os usuários. Já a Incubadora teve como principal desafio pesquisar
e desenvolver estratégias de empreendedorismo e economia solidária
atreladas às práticas virtuais.
É importante localizar que a discussão sobre a criação de uma
loja virtual para a comercialização das produções dos usuários dos
Centros de Convivência e da Associação Suricato é relativamente

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 271


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
antiga, mas nos vimos estimulados a avançar nas discussões e passar
para as experimentações.
Desta forma, o primeiro Bazar Virtual de Natal ocorreu via Face-
book no final de 2020. O meio, já utilizado para a divulgação dos
eventos, tornou-se o local de acontecimento do próprio evento! O
processo de pré-produção do Bazar de Natal teve como objetivo alinhar
as estratégias de postagem dos produtos na página e a administração
das conversas/vendas com os clientes. Primeiramente, definiu-se uma
equipe de monitores e gerentes responsáveis pelas imagens, pelas pos-
tagens e pelo atendimento virtual. A escrita da legenda foi padronizada
com nome do serviço, nome e valor do produto e contato para vendas.
Padronizações, escalas e até promoções foram estudadas e divulgadas. A
estratégia alcançou altos índices de visualização do evento, mobilizou
mais de dois mil convidados, muitos pedidos e venda relativamente
expressiva para uma primeira iniciativa, tudo isso em tempos pandêmicos!
Essa primeira experiência, produzida de maneira completamente
remota, aproximou intensamente as equipes dos Centros de Convi-
vência e a equipe da Incubadora, estreitando laços para a realização
dessa novidade. Muitos contatos entre os técnicos dos serviços foram
necessários para alinhar a qualidade das imagens, padronizar as legendas,
organizar a escala de postagens, divulgar o evento e sobretudo adminis-
trar a página do evento no Facebook. No entanto, algumas exigências
técnicas da plataforma se apresentaram como dificultadores do processo,
demandando um esforço muito maior do que o programado inicial-
mente, centralizando o trabalho no editor da página12. Por outro lado,
as conversas com os clientes foram descentralizadas, ocorrendo com
cada serviço, o que gerou muitas perdas de pedidos. Nos últimos dias
do Bazar, algumas retiradas foram direcionadas para o Espaço Cultural
Suricato, aberto exclusivamente para atender os clientes que optaram
por esse tipo de retirada.
Finalizamos o Bazar Virtual de Natal 2020 com a certeza de
que a iniciativa renderia frutos. Apesar das vendas não terem atingido
o mesmo volume dos bazares presenciais dos anos anteriores, foram
12
Cabe ressaltar que ser administrador da página e editor da página são ações diferentes.

272 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
significativas para inaugurar o modelo virtual. Mas percebemos que,
apesar da escolha pelo Facebook ter sido feita pela sua familiaridade, a
plataforma revelou dificuldade de usabilidade que não tínhamos como
contornar. Decidimos, então, nos arriscar em outras plataformas para o
próximo evento. Isso se deu no Bazar das Mães. Migramos o evento para
o WhatsApp Business, plataforma comercial que tem ganhado muitos
adeptos e que, por sua ampla utilização como rede social, facilitaria o
acesso e a utilização para nosso público em específico.
Sendo assim, reformulamos a produção do evento e desenvol-
vemos novas práticas de organização, divididas em pré-produção com
treinamentos da equipe de vendas, execução e pós-produção do bazar.
Em primeiro lugar, compartilhamos o estoque de imagens dos produtos
em uma pasta do drive e elaboramos uma planilha de produtos capaz
de ser atualizada em tempo real durante as vendas. Para sua efetividade,
inventamos uma linguagem colorida. Cada cor sinalizava o status de
disponibilidade do produto: amarelo em negociação; rosa aguardando
comprovante de pagamento; vermelho vendido. A partir do estoque no
drive, o catálogo do aplicativo foi montado e atualizado diariamente com
a renovação de exibição dos itens, dinâmica similar à de uma vitrine.
As estratégias de conexão da equipe de vendedores merecem
destaque, já que o modelo de operação se deu em duplas por turnos:
um no computador e outro no celular, ambos geograficamente sepa-
rados e virtualmente conectados através do compartilhamento de QR
Codes, procedimento que demandou treinamentos da equipe, tanto para
conexão quanto para a utilização das pastas e planilhas compartilhadas.
Desse modo, durante a organização e execução do Bazar Virtual
das Mães, mergulhamos em outras questões. Diferentemente do primeiro
Bazar, desta vez todas as ações foram centralizadas nos vendedores que
captavam os pedidos, localizavam produtos, faziam reservas até a efe-
tivação dos pagamentos e articulavam o local de retirada. O trabalho,
antes disperso, se concentrou na escala mínima permitida pelo aplicativo
(dois atendentes). A tarefa gigante de concentrar todas as informações
primordiais se fez necessária. Por incrível que pareça, já abrimos a loja
com 70 pedidos na fila! Damos início a uma semana intensa de reno-

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 273


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
vação dos itens expostos no catálogo, ajustes entre as informações das
planilhas e as legendas do catálogo, conferência da codificação, entre
tantos outros detalhes que compõem a dinâmica das vendas on-line.
Certo é que esta estratégia foi reconhecida como a mais adequada e
deu gosto e vontade de fazer mais!
Sendo assim, em junho veio o Bazar dus’Amô, em referência ao Dia
dos Namorados e, em agosto, o Bazar dos Pais, ambas iniciativas inéditas,
justamente para navegarmos na experiência virtual que já tínhamos
decifrado. Nas edições seguintes aprimoramos a linguagem colorida
das planilhas de produtos e que se estendeu às etiquetas das conversas
no Whatsapp, agilizando a localização de clientes para continuidade de
processos de solução de pendências e dúvidas. O catálogo, antes renovado
apenas ao final do dia, passou a se renovar praticamente em tempo real,
mediante a venda de algum item. A reposição é praticamente imediata.
Hoje, o principal desafio dos bazares virtuais é a retirada dos
produtos, uma vez que o estoque de imagens para a plataforma de
vendas é virtual (centralizado), mas o estoque físico está distribuído
pelos serviços da cidade, nos locais de origem de sua produção. Por
enquanto, desenvolvemos uma logística de retiradas que consiste em
agendar retirada no Centro de Convivência de origem ou retirada na
sexta-feira13 na Sede da Suricato, pois ainda não há meios de financiar
entregas a domicílio. Quando os clientes compram produtos sortidos
de vários Centros de Convivência, geralmente há uma articulação
entre os serviços para que a retirada seja feita em apenas um local. Para
garantir isso, na sexta-feira pela manhã os representantes dos Centros
de Convivência encontram-se na Sede da Suricato para entregar os
produtos cuja retirada está agendada para ocorrer na Suricato. Nessa
mesma ocasião, os Centros de Convivência buscam o conjunto de
produtos destinados a serem retirados nos Centros de Convivência
referenciados pelo cliente. Assim se estabelece, mais uma vez, uma rede
de trocas entre os serviços, que atravessam a cidade para melhorar o
atendimento e reduzir o deslocamento do cliente.
13
Os bazares virtuais geralmente têm a duração de quatro dias, de segunda a quinta, sendo a sexta feira
destinada às retiradas ou vendas somente no local de origem dos produtos.

274 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
A complexidade da logística da retirada dos produtos, por incrí-
vel que pareça, demonstra que os desafios físicos de deslocamento dos
produtos ainda são maiores que os desafios virtuais.
Incubar ações como os Bazares Virtuais, fruto da parceria entre
Centros de Convivência e IEES, têm apontado para o desejo de orga-
nizar com maior regularidade os eventos, promover lançamentos de
produtos e garantir uma maior cobertura do calendário anual. A cada
evento aprimoramos as técnicas de gestão de vendas on-line e estreitamos
os laços entre serviços. Nosso próximo passo é envolver os usuários
e associados14 na execução dos bazares virtuais, através de oficinas de
instrumentalização digital.Afinal, já se anuncia a necessidade de conciliar
a retomada dos eventos presenciais atrelados às vendas on-line; portanto,
a pesquisa de estratégias de empreendedorismo em tempos de realidade
híbrida é o horizonte que se apresenta.
Localizar a Incubadora de Empreendimentos Econômicos e Soli-
dários (IEES) como fomentadora de inovação, idealização de projetos,
acompanhamento, implementação e suporte de formas de inclusão social
pelo trabalho foi o passo decisivo para enriquecer e fortalecer ainda mais
a RAPS de Belo Horizonte. Da mesma maneira que a construção de
vínculo está para o cuidado em liberdade, a construção e fortalecimento
de parcerias está para o empreendedorismo e economia solidária. Por
isso, o relato de experiências dos Bazares Virtuais em tempos de pande-
mia é uma celebração da histórica e profunda parceria entre a IEES e
os Centros de Convivência; que pretende seguir revelando potenciais
e desenvolvendo ideias que irão brotar e frutificar!

14
Os usuários dos Centros de Convivência e associados da Associação Suricato confeccionam os produtos
dos bazares. Nos bazares presenciais os usuários colaboradores trabalhavam como vendedores, recebendo
comissão pelas vendas.

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 275


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
PROJETO DE INSERÇÃO NO MERCADO FORMAL
DE TRABALHO: A EXPERIÊNCIA DOS CENTROS
DE CONVIVÊNCIA DE BELO HORIZONTE

Giselle Campos Freitas Amorim1


Ana Paula Novaes2
Daniela Tonizza de Almeida3
Isabel Cristina Silviano Brandão4
Karen Christina Zacché5
Maria Betânia de Lima Guimarães6
Maria Eliza Vasconcelos7
Marise Hilbert Santos8
Marta Soares9
Wilma dos Santos Ribeiro10

“Comer, amar, caminhar, falar, trabalhar,


tudo isso é a nossa vida cotidiana, a grandiosa
banalidade do viver, trocando afetos e mercadorias.”
Benedetto Saraceno

1
Psicóloga com Especialização em Saúde Mental pela Escola de Saúde Pública de MG. Gerente do Centro
de Convivência Oeste/ SMSA (Secretaria Municipal de Saúde) / PBH (Prefeitura de Belo Horizonte).
2
Psicóloga com Especialização em Saúde Mental pela Escola de Saúde Pública de MG. Gerente do Centro
de Convivência Marcus Matraga, da Regional Venda Nova/ SMSA/ PBH.
3
Terapeuta Ocupacional, Doutora em Psicologia pela UFMG. Gerente do Centro de Convivência Carlos
Prates, SMSA/ PBH.
4
Terapeuta Ocupacional, Mestre em Psicologia pela PUC Minas. Gerente do Centro de Convivência
Cezar Campos, da Regional Centro Sul / SMSA/ PBH.
5
Psicóloga. Gerente do Centro de Convivência Arthur Bispo do Rosário, da Regional Leste/ SMSA/ PBH.
6
Terapeuta Ocupacional. Ex-Gerente do Centro de Convivência Rosimeire Silva da Regional Norte/
SMSA/ PBH. Atualmente aposentada.
7
Farmacêutica. Ex-gerente do Centro de Convivência Carlos Prates da Regional Noroeste/ SMSA/
PBH. Atualmente aposentada.
8
Psicóloga. Gerente do Centro de Convivência Barreiro/ SMSA/ PBH.
9
Terapeuta Ocupacional. Gerente do Centro de Convivência São Paulo da Regional Nordeste/ SMSA/ PBH.
10
Terapeuta Ocupacional, com Especialização em Saúde Mental na Terapia Ocupacional pela UFMG.
Ex Gerente do Centro de Convivência Nise da Silveira da Regional Pampulha/ SMSA/ PBH,
atualmente aposentada.

276
Introdução

A conquista do trabalho é uma questão que diz respeito a todos,


faz parte da luta pela justiça social e não pode ser concebida apenas
como resposta a uma necessidade, mas como produção de sentido, de
valores subjetivos e de troca. Buscamos formas de inclusão social pelo
trabalho, apesar deste não ser nem tão disponível e nem tão flexível,
para suportar nossas demandas individuais e coletivas.
O trabalho pode promover uma articulação do campo de interesses,
necessidades e desejos, podendo ser meio de sustento e de realizações
pessoais, de acordo com o sentido e valor atribuído a ele pela sociedade
e por cada um de nós.
O contexto legislativo constitui um fator de fundamental impor-
tância para a inclusão no mercado de trabalho das pessoas com deficiên-
cia. A Lei Brasileira de Inclusão das Pessoas com Deficiência (BRASIL,
2015), ao adotar o conceito de pessoa com deficiência previsto na
Convenção da Organização da Nações Unidas (ONU), “reconhece a
deficiência como um conceito em evolução, que resulta da interação
entre as pessoas e as barreiras devidas às atitudes e ao ambiente, que
impedem a plena e efetiva participação na sociedade em igualdade de
oportunidades.” (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE, 2009).
Considerando que as pessoas com sofrimento mental sempre
encontraram barreiras de acesso ao mercado formal de trabalho devido
a preconceitos e estigmas, o foco das ações de reabilitação psicossocial
passa a ser a remoção dessas barreiras. Neste sentido, a Lei nº 8.213/1991,
que prevê cotas para pessoas com deficiência em empresas de médio
e grande porte (BRASIL, 1991) é fundamental para garantir o acesso
e inclusão no trabalho.
O presente trabalho relata a experiência dos Centros de Convi-
vência de Belo Horizonte no Projeto de Inserção no Mercado Formal
de Trabalho, coordenado pela Superintendência Regional do Trabalho
de Minas Gerais (SRT-MG). Buscamos retomar seu início desde as
reuniões preparatórias para a formulação de critérios, fluxos, responsa-
bilidades, acompanhamento, monitoramento, até os resultados e fatores

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 277


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
determinantes para o sucesso do projeto, destacando a contribuição dos
Centros de Convivência.

Trabalho e Reabilitação Psicossocial

A reabilitação psicossocial é um processo de reconstrução de


exercício pleno de cidadania, através de estratégias de ampliação da
contratualidade nos cenários habitat, rede social e trabalho com valor
social (SARACENO, 2001). Implica numa ética de solidariedade que
facilite aos sujeitos efetuar trocas afetivas, sociais e econômicas, de
modo a viabilizar o melhor nível possível de autonomia para a vida
na comunidade. Por meio dessas trocas materiais e afetivas se cria
uma rede de negociação, a qual aumenta a participação e o poder de
contratualidade. Para tanto, deve englobar todos os atores da rede de
cuidado: usuários, famílias, comunidade, serviços. Trata-se de apostar
na potência dos sujeitos, reconhecendo seu patrimônio de riscos e
proteções e acompanhando-os na construção de espaços negociáveis,
articulados e flexíveis.
Orientados por esses princípios, os Centros de Convivência de
Belo Horizonte vão se consolidando como pontos de ancoragem,
amarração, enlaçamento e construção de possibilidades que visam à
reinserção social das pessoas em sofrimento mental ou em uso preju-
dicial de álcool e outras drogas.
Os Centros de Convivência ocupam um lugar estratégico na
RAPS, possibilitando a sustentação necessária para que o usuário possa
retomar seus projetos de vida, favorecendo sua entrada e circulação nos
campos da arte, cultura, trabalho, estudo e lazer, do acesso aos direitos
comuns a todo cidadão. Os usuários atravessam os limites colocados
pelo sofrimento mental, assumindo sua diferença e singularidade, reve-
lando suas potencialidades, estimulando laços e transformações em suas
relações sociais.
Conforme ressalta a Linha Guia de Cuidado em Saúde Mental:
“Nos Centros de Convivência, as pessoas ousam enfim querer coi-
sas que lhes pareciam para sempre negadas. Posto em ação o desejo,

278 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
cruzam o umbral da porta que liga o homem à cultura” (MINAS
GERAIS, 2006, p.74).

O Projeto de Inserção no Mercado Formal de Trabalho


em Belo Horizonte

Em 2014, a SRT-MG, através da Auditoria Fiscal do Trabalho,


buscou a Gerência da Rede de Saúde Mental da Secretaria Municipal
de Saúde de Belo Horizonte (GRSAM/SMSA/PBH) e o Serviço
Nacional de Aprendizagem Comercial de Belo Horizonte (SENAC BH)
para discussão e formatação deste projeto. Os Centros de Convivência
foram os serviços da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) convida-
dos para participar. O objetivo era incluir as pessoas em sofrimento
mental em empresas interessadas no cumprimento da Lei de Cotas,
através da aprendizagem profissional. O projeto foi construído com
base em experiência existente no Rio Grande do Sul e é coordenado
por Patrícia Siqueira, auditora fiscal do trabalho. A SRT-MG, SENAC,
GRSAM/SMSA/PBH, Centros de Convivência e o Supermercado
Verdemar participaram de uma série de reuniões para formatação do
projeto piloto, que teve início em outubro de 2014.
As discussões transcorreram na formulação dos critérios, defini-
ção das funções de cada parceiro, adequação do conteúdo do curso e
organização de cronograma para sensibilização das pessoas envolvidas:
diretoria, setor de recursos humanos, gerentes e supervisores.
A sensibilização dos envolvidos na empresa foi um momento
rico para apresentação da RAPS e, principalmente, para desconstruir
preconceitos. Inicialmente, 15 usuários vinculados aos Centros de
Convivência foram encaminhados para o Supermercado Verdemar. Os
usuários foram contratados como Aprendizes, recebendo formação pro-
fissional através do SENAC durante um ano, de forma concomitante à
prática na empresa. Após o período de aprendizagem, foram efetivados
em cargos diversos, ampliando a carga horária de trabalho.
O projeto piloto revelou resultados positivos, de acordo com a
avaliação de usuários, familiares, da rede de saúde e de todos os parceiros

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 279


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
envolvidos. Novas vagas foram abertas no Supermercado Verdemar e
várias outras empresas aderiram ao projeto.
Para participar, o usuário deve estar vinculado ao Centro de Con-
vivência, com quadro clínico estável, em tratamento em dispositivos de
cuidado em saúde mental, não estar aposentado ou afastado pelo INSS e,
principalmente, ter o desejo de se inserir ou retornar ao mercado formal
de trabalho. Os gerentes dos Centros de Convivência compartilham a
indicação com os profissionais de referência dos usuários e fazem o seu
encaminhamento e acompanhamento desde o momento da indicação,
trabalhando suas ansiedades e expectativas iniciais durante o processo
de aprendizagem e após a efetivação em novos cargos.
O acompanhamento se dá através das reuniões mensais com os
parceiros envolvidos, reuniões com os usuários inseridos no trabalho em
cada Centro de Convivência e atendimentos individuais. Esse acompa-
nhamento tem como objetivo a mediação, a escuta atenta, apoio, iden-
tificação e intervenção imediata em relação às dificuldades que possam
surgir no dia a dia, além da discussão constante com a rede de saúde.
A sensibilização das empresas acontece sempre que se iniciam
novas turmas e novas parcerias, mas também é um processo contínuo.
Neste projeto, compete aos Centros de Convivência a preparação, o
encaminhamento, o acompanhamento dos usuários, a mediação e a
sensibilização das empresas. Cabe ao SENAC BH e à Rede Cidadã
a formação profissional na fase de aprendizagem e às empresas uma
postura acolhedora, inclusiva, desconstruindo barreiras e preconceitos.
É da competência da SRT-MG coordenar, buscar novos parceiros,
sensibilizar, articular e monitorar e cabe a todos os envolvidos um
acompanhamento e monitoramento próximos.

Resultados observados

De setembro de 2014 a agosto de 2021, os Centros de Convivên-


cia de Belo Horizonte fizeram 299 encaminhamentos para as empresas
parceiras, os quais resultaram em 259 contratações. Atualmente, 168

280 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
usuários se mantêm trabalhando através do Projeto11. Muitos se mantêm
desde o início; alguns foram promovidos, outros tomaram novos rumos.
Para além dos dados numéricos, é necessário destacar aquilo que
é vivenciado no cotidiano e que nem sempre é possível quantificar.
Percebemos que a eliminação de barreiras para acesso das pessoas em
sofrimento mental ao mercado formal de trabalho foi capaz de favo-
recer a ampliação de seu poder de contratualidade, o exercício pleno
de cidadania, a autonomia, a independência e a construção de novos
projetos pessoais. Muitos usuários retomaram os estudos, melhoraram
suas condições de moradia, suas relações familiares, constituíram novas
famílias e ampliaram suas relações sociais.
Além disso, destacamos que tem sido possível a desconstrução
de mitos e preconceitos em relação às pessoas com sofrimento mental,
favorecendo o reconhecimento, por parte das empresas, do compro-
metimento e competência desses profissionais e dos efeitos positivos
dessa interação no ambiente de trabalho. Conforme ressaltou o gerente
de uma das empresas: “Se todos os funcionários tivessem esse perfil e
caráter, estaríamos com a empresa muito à frente”.
Vale ressaltar também breves fragmentos de casos e depoimentos
de alguns usuários inseridos no projeto e de seus familiares.
O Sr. Antônio, por exemplo, tem 64 anos e ingressou como
aprendiz no Hermes Pardini, em 2015, sendo efetivado em 2016, onde
continua até hoje. Teve sua primeira crise logo após um acidente de
carro que matou seus dois irmãos, em 1978 e, em seguida, foi desligado
da empresa onde trabalhava devido à desestabilização psíquica. Desde
então, segue em tratamento na RAPS.
Selma, sua irmã, relata que após o ingresso no trabalho, sua medi-
cação foi revista e pôde prescindir do Haloperidol. Ela conta que desde
que foi para o Centro de Convivência Rosimeire Silva, em 2004, a vida
de Antônio mudou. Os amigos, passeios, viagens, eventos, melhoraram
muito a qualidade de vida de Antônio. Para Selma, o trabalho trouxe
a Antônio um novo ânimo na vida. Ele se sente importante e útil. O
trabalho contribuiu para aumentar muito a sua autoestima.
11 
Texto escrito em agosto de 2021.

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 281


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
Para o Sr. Antônio,“o Centro de Convivência foi que me impul-
sionou para a vida, para ter mais desenvolvimento e responsabilidade”.
E sobre o trabalho, ele diz que ganhou uma ocupação, que é o que o
preenche e que o faz levantar cedo e já ter um compromisso. Quer
trabalhar até se aposentar.
Outro caso emblemático é o de Gladstone. Iniciou como aprendiz
em 2019, depois de tentar por anos a fio entrar no mercado de trabalho,
sem êxito, desde 2015. Nas palavras de Gladstone, o trabalho é o que
dá gosto de viver. Fala da importância de executar uma determinada
tarefa em prol de um conjunto de ideias e de colher os frutos do tra-
balho prestado, investindo em suas necessidades pessoais e nas despesas
alimentícias de sua filha, contribuindo, assim, para retomar uma relação
rompida há muito tempo. Hoje faz planos para o futuro, como voltar
aos estudos e se capacitar melhor para o mundo do trabalho.
Para Ragner, 32 anos, usuário do Centro de Convivência Oeste,
que foi promovido recentemente no Supermercado Verdemar,
[...] o trabalho representa a dignidade, a capacidade,
ativa seus talentos e dons (...) me sinto útil. O Centro
de Convivência Oeste apareceu no momento ideal da
minha vida, onde eu tive a oportunidade de ingressar
no projeto do mercado de trabalho. Muitos postos já
haviam se fechado, mas foi no projeto que tive uma
nova chance. (RAGNER)

Os relatos de pessoas que tiveram suas vidas ressignificadas pelo


trabalho são inúmeros. Através do trabalho, buscam se reestruturar no
cotidiano, nas relações, na capacitação e no planejamento de suas vidas,
encontrando a reinserção na sociedade de fato e de direito. Esses depoi-
mentos ilustram, de maneira clara e viva, a relevância da inserção no
trabalho, em consonância com os pressupostos da reabilitação psicossocial.

Fatores determinantes para o sucesso do projeto

A partir desses resultados, identificamos alguns fatores que são


determinantes para o sucesso do projeto.

282 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
O ponto de partida deve ser o desejo do usuário e não algo
prescritivo, que esteja do lado de quem encaminha com expectativa de
adaptação ao social. O usuário indica o caminho e nós acompanhamos,
apoiamos, mediamos. Trabalhar não é fácil para ninguém; há que ter
desejo e apoio para sustentar essa escolha.
A coordenação do projeto pela SRT-MG, através da Auditoria
Fiscal, que opera em total consonância com os princípios da inclusão,
da cidadania, da defesa dos direitos fundamentais a todo cidadão tem
sido fundamental para a sustentação deste trabalho.
A sensibilização inicial e contínua das empresas, identificando
barreiras, pontos críticos e intervenção a tempo propicia ambientes
mais acolhedores, favorece o convívio das diferenças e permite o esta-
belecimento de uma cultura mais inclusiva nas empresas.
O acompanhamento próximo por todos os parceiros nos permite
tratar os impasses, ajustar os rumos e fortalecer as parcerias.
O apoio e escuta atenta dos usuários nas diversas fases do projeto
favorece a adaptação, a inserção e o fortalecimento da sua autonomia.
O trabalho em rede nos possibilita sensibilizar os parceiros com
os quais compartilhamos o cuidado na rede de saúde para a importância
do trabalho e de outras conquistas na vida dos usuários, assim como para
a necessidade de intervir assertivamente quando se identifica o risco
de desestabilizações, ampliando o sentido e o alcance do tratamento
em saúde mental.

Considerações finais

Os Centros de Convivência, orientados pelos pressupostos da


reabilitação psicossocial, ao promoverem articulações intersetoriais
para favorecer a inserção no mercado formal de trabalho, se afirmam
no contexto da RAPS de Belo Horizonte como um dispositivo capaz
de provocar deslocamentos em outros campos sociais de modo a fazer
caber a diferença. Dessa forma, extrapola sua função sanitária e inventa
lugares sociais onde as trocas sejam possíveis.

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 283


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
Mas não é só fazer caber. Sustentar um lugar social tem exigido
se colocar como parceria presente e potente nos enfrentamentos dos
desafios cotidianos, tornando possível a realidade da inclusão.

Referências

BRASIL. Lei 8213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de


Benefícios da Previdência Social e dá outras providências. Brasília: Presi-
dência da República, 1991. Disponível em: https://docs.google.com/docu-
ment/d/1qVgj_9WrQYQCelVK_bihEz7LtnlhzUzB/edit# Acesso em 12
de set. 2021
BRASIL. Decreto nº 6949, de 25 de agosto de 2009. Promulga a
Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência
e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março
de 2007.Brasília: Presidência da República, 2007. Disponível em: http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d6949.htm.
Acesso em 12 de set. 2021
BRASIL. Lei 13146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de
Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência),
Brasilia: Presidência da República, 2015. Disponível em: http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm. Acesso em
12 de set. 2021.
MINAS GERAIS. Secretaria de Estado da Saúde. Atenção em Saúde
Mental - Linha Guia. Belo Horizonte: [s.n.]: 2006.
SARACENO, Benedetto. Libertando Identidades: Da Reabilitação
Psicossocial à Cidadania Possível. Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Te Corá
Editora, 2001.

284 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
EFETIVIDADE DO DIREITO AO TRABALHO:
PARCERIA FISCALIZAÇÃO DO TRABALHO –
CENTROS DE CONVIVÊNCIA

Patrícia Siqueira Silveira1

Um homem se humilha
Se castram seu sonho
Seu sonho é sua vida
E vida é trabalho
E sem o seu trabalho
O homem não tem honra
E sem a sua honra
Se morre, se mata
Não dá pra ser feliz2
Gonzaguinha

Escrever sobre a experiência da Auditoria Fiscal do Trabalho com


os Centros de Convivência é escrever sobre dois aspectos vivenciados
com esses profissionais, integrantes da rede de serviços substitutivos aos
hospitais psiquiátricos: o pessoal e o profissional. Sob o ponto de vista
acadêmico, profissional, muito há a ser relatado, uma vez que a expe-
riência desenvolvida faz da teoria, prática, demonstrando a aplicação
de uma legislação existente e mostrando sua eficácia. Já a experiência
pessoal é rica, traz valor e sentido à profissão, conforta nos momentos
em que a lei ou sua aplicação parecem não ser suficientes para garantir
direitos fundamentais.
Para que se compreenda essa união, é necessário abordar o con-
texto legal que aproximou a Fiscalização Federal do Trabalho da Rede
de Atenção à Saúde Mental e fez dessa parceria um projeto de empre-
1
Especialista em Direito do Trabalho, Auditora Fiscal do Trabalho. Coordenadora do Projeto de Inclusão
de Pessoas com Deficiência e Reabilitadas no Mercado de Trabalho - Superintendência Regional do
Trabalho em MG.
2
GONZAGUINHA. Guerreiro Menino (Um Homem Também Chora). CBS, 1983. Nº Álbum: 138254
/ Lado A / Faixa 1.

285
gabilidade garantidor de autonomia, dignidade e resgate de direitos,
mormente o direito ao trabalho.
São atribuições dos Auditores Fiscais do Trabalho, de acordo
com o Regulamento de Inspeção do Trabalho, Decreto 4552/2002
(BRASIL, 2002):
[...] Art. 18:
I - verificar o cumprimento das disposições legais e regula-
mentares, inclusive as relacionadas à segurança e à saúde
no trabalho, no âmbito das relações de trabalho e de
emprego, em especial:
[...]
d) o cumprimento dos acordos, tratados e convenções
internacionais ratificados pelo Brasil;

Dentre essas disposições encontram-se a Convenção sobre os


Direitos das Pessoas com Deficiência – Convenção da ONU recep-
cionada pelo Brasil com status constitucional, a “Lei de Cotas”, apelido
concedido ao artigo 93 da Lei 8213/91 (BRASIL, 1991), que dispõe
que todas as empresas com 100 (cem) ou mais empregados devem
preencher um percentual de 2 a 5% de seus cargos com trabalhadores
com deficiência, e a Lei 13.146/2015 (BRASIL, 2015), Lei Brasileira
de Inclusão, que regulamenta dispositivos da Convenção e também
define conceitos e critérios para as cotas.
Na fiscalização da chamada “Lei de Cotas”, muitos desafios são
impostos à fiscalização, em que pese a legislação brasileira ser moderna e
robusta. Os empregadores confrontam a exigência da obrigação legal por
preconceito com relação às pessoas com deficiência, desconhecimento
das suas potencialidades, capacitismo, mas também pela sua invisibilidade.
Não são raras as alegações de não existência de pessoas aptas para o
trabalho que preencham os critérios das cotas.
Registre-se que, até a ratificação da Convenção da ONU, em
2009, a legislação infraconstitucional brasileira utilizou uma tipologia
fechada que demarcou o campo de abrangência das políticas públicas
de inclusão das pessoas com deficiência (COSTA, 2011). Entre outros
segmentos, as pessoas com transtorno mental não eram contempladas
nessa lista.

286 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
Entretanto, nas discussões sobre o conceito de deficiência durante
a Convenção, grupos e entidades se destacaram, a exemplo da Rede
Mundial de Usuários e Sobreviventes de Psiquiatria – World Network
of Users and Survivors of Psychiatry - WNUSP, exigindo que, pelas bar-
reiras e discriminação enfrentadas, as pessoas com transtornos mentais
(deficiência psicossocial) fossem também inseridas no novo conceito
de deficiência – conceito social, e consequentemente, nas políticas
destinadas a essas pessoas. A Convenção traz então um novo conceito
para deficiência, englobando nesse rol as pessoas com deficiência psi-
cossocial. A deficiência passa a ser aferida não só sob o ponto de vista
médico, das limitações funcionais, mas também com foco nas barreiras
impostas pelo ambiente e pelas atitudes.
A Organização Mundial de Saúde alerta que as pessoas com
deficiência psicossocial nos países em desenvolvimento têm como
principais problemas os estigmas e a exclusão e se encontram entre os
grupos mais marginalizados e mais vulneráveis, enfrentando a pobreza
e a violação dos direitos humanos. As deficiências psicossociais estão
associadas com taxas de desemprego que podem chegar a 90%. Além disso,
essas pessoas não têm oportunidades de educação e emprego para que
possam realizar seu pleno potencial. O estigma, a discriminação, a falta
de experiência e formação profissional impedem o acesso ao trabalho
(ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE, 2005).
A fiscalização do trabalho, ciente do arcabouço legal existente,
com o dever de exigir o cumprimento da obrigação legal das cotas
para pessoas com deficiência, não poderia ficar silente, compactuando
com a marginalização, estigma e invisibilidade dessas pessoas. Por que
não aproximar quem tem o dever de contratar de quem tem direito a
oportunidade de trabalho? Mas como fazer essa aproximação?
Nessa consulta à Rede de Atenção à Saúde Mental de Belo Hori-
zonte, a Superintendência Regional do Trabalho em MG foi apresentada
ao trabalho dos Centros de Convivência, dando início, em 2014, ao
Projeto de Inclusão Formal no Trabalho das Pessoas com Sofrimento
Mental. O projeto conta com outras parcerias, como o SENAC e a

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 287


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
Rede Cidadã, responsáveis pela qualificação profissional desse público
e, obviamente, com as empresas empregadoras.
O objetivo deste relato, entretanto, não é descrever o Projeto, hoje
já conhecido e premiado através das empresas contratantes, mas sim
documentar quão imprescindível, fundamental, é a parceria e atuação
dos Centros de Convivência.
Apesar da política das cotas para emprego incluir as pessoas com
sofrimento mental, hoje isso ainda é desconhecido por muitos e, no que
se refere à empregabilidade, o estigma ainda é imenso. Até o início do
projeto com os Centros, muito raramente alguma empresa apresentava
a contratação de um trabalhador nessa condição. Dar conhecimento
aos empregadores de que a lei os incluía no rol de beneficiados não
apagava o medo e receio existentes com relação à loucura.
Nos Centros de Convivência, na reinserção social dessas pessoas
surge – para aqueles que têm interesse e se encontram, sob o olhar
atento das gerentes e equipes que os acompanham, com o perfil ade-
quado – a oportunidade para ingresso no mercado formal. As empresas
contratantes sentem-se apoiadas, encorajadas, confiantes, e a fiscalização
tem segurança em oferecer para as mesmas uma forma de trabalho
apoiado, que as ajuda no cumprimento da Lei, ao mesmo tempo que
dá visibilidade àqueles discriminados. As empresas, através de seus
empregados, passam a conviver com esse público, e com a convivência
paradigmas são quebrados no ambiente laboral. Sabe-se que muitos
empregados nas diversas empresas integrantes do projeto sentiram-se
seguros em revelar serem portadores de sofrimento mental após terem
conhecimento que as empregadoras estavam abertas para esse público.
É uma forma de trabalho apoiado. Os usuários, além do
trabalho, continuam a frequentar os Centros e a receber dos mesmos
o acompanhamento necessário para enfrentar e vivenciar o trabalho.
Busca-se a autonomia, mas a acolhida sempre existe.
Importante que se compreenda que a Lei Brasileira de Inclusão
garante às pessoas com deficiência um ambiente de trabalho seguro e
inclusivo, sendo considerado discriminação a não concessão de adap-

288 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
tações razoáveis (COSTA, 2011). Ou seja, devem ser garantidos proce-
dimentos desde a seleção, que viabilizem a contratação e permanência
no emprego. Destaque-se a possibilidade de flexibilidade de horários,
que permite que o trabalhador, por exemplo, tenha condições de
manter a frequência aos Centros de Convivência, tratamento médico
e psicológico, além de adequar-se aos efeitos colaterais existentes com
a medicação utilizada.
Além disso, ciente das peculiaridades do transtorno mental, a
empresa pode monitorar as funções a serem exercidas pelo trabalhador,
de forma a alocá-lo em funções com menor incidência de situações
de estresse (COSTA, 2011). Tanto na questão da jornada de trabalho
quanto nas funções a serem exercidas, as decisões são compartilhadas
com as gerentes dos Centros de Convivência.
Parte do projeto, e essencial, é a preparação das equipes das
empresas que recebem os trabalhadores com sofrimento mental. Isso
é exigido pela fiscalização e deve fazer parte dos projetos de inclusão
das empregadoras. Cabe aos Centros fazerem a sensibilização dessas
pessoas, desmistificando a loucura e acolhendo os questionamentos.
Como resultado indireto e não quantificado, tem-se verificado, nos
últimos anos, um aumento da contratação de pessoas com transtornos
mentais em Belo Horizonte e região, resultado da divulgação no meio
empresarial da potencialidade laboral deste público.
Essa união de esforços de quem deve contratar e de quem tem
direito a oportunidades iguais de trabalho, utilizando-se do conceito
aristotélico de igualdade material, tem demonstrado a efetividade e
necessidade da política de cotas para as pessoas com transtornos mentais.
Belo Horizonte traz um avanço quando a política pública municipal de
apoio à saúde mental compreende a saúde num contexto amplo, nele
incluído o trabalho e a dignidade que o mesmo proporciona.
Por fim, impossível não mencionar a experiência pessoal de
acompanhar o trabalho das equipes dos Centros de Convivência e a
inclusão de cerca de 300 (trezentas) pessoas com sofrimento mental
no mercado formal de trabalho. Vivenciar o trabalho como etapa da
reabilitação psicossocial, perceber essas pessoas sentindo-se perten-

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 289


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
centes à sociedade, criando laços, compartilhar junto aos Centros de
Convivência e seus usuários da Luta Antimanicomial, são experiências
que enriquecem como pessoa, fazendo com que a Auditoria seja uma
ferramenta de luta por algo bem maior que a simples aplicação da lei.

Referências

BRASIL. Lei 8213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos


de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências. Brasília:
Presidência da República, 1991. Disponível em: https://docs.google.com/
document/d/1qVgj_9WrQYQCelVK_bihEz7LtnlhzUzB/edit# Acesso
em 12 de set. 2021
BRASIL. Lei 13146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de
Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência),
Brasilia: Presidência da República, 2015. Disponível em http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm. Acesso em
12 de set. 2021.
BRASIL. Decreto 4552, de 27 de dezembro de 2002. aprova o
regulamento da Inspeção do Trabalho. Brasília: Presidência da República,
2002. disponível emhttp://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/
d4552.htm. Acesso em 12 de set. 2021.
COSTA, Ana Maria Machado da. O reconhecimento da Pessoa com
Transtorno Mental Severo como Pessoa com Deficiência: Uma
questão de Justiça. 15 de junho de 2011. Disponível em http://www.inclu-
sive.org.br/?p=20021 . Acesso em 15 de setembro de 2021
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Livro de Recursos da
OMS sobre Saúde Mental, Direitos Humanos e Legislação, 2005.
Genebra: WHO Library. Disponível em https://www.who.int/men-
tal_health/policy/Livroderecursosrevisao_FINAL.pdf. Acesso em 12 de
set. 2021.

290 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
A MAGIA DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA

Sergei Teixeira1

O Centro de Convivência Oeste e seu programa de reinserção


no mercado de trabalho mudaram minha vida!
Quando, em 2017, cheguei no Centro, estava desiludido com a
vida. Estava desempregado e não via solução para a minha vida. Estava
deprimido e sem esperanças. Com o convívio quase diário com outras
pessoas, eu sentia uma motivação para sair de casa, me levantar cedo
e respirar um novo ar. Sentia falta dos amigos e monitores quando eu
faltava. As atividades eram prazerosas. Eu realmente amava estar lá. Fui
melhorando de saúde progressivamente.
Quando fiquei sabendo da possibilidade de me reinserir no mer-
cado de trabalho pelo Centro, primeiro fiquei hesitante, pois ainda estava
me sentindo muito inseguro. Mas meus colegas estavam felizes com os
empregos que haviam adquirido. Então, resolvi me arriscar. Entreguei
meu currículo para a Giselle, gerente do Centro. Foi uma mágica. Em
poucos dias surgiu uma vaga para o Hospital Felício Rocho. E me
chamaram para a entrevista! Este programa é um convênio com os
Centros, empresas, instituições formadoras e o Ministério do Trabalho.
Então, depois de ser chamado para o Hospital, comecei minhas aulas
na Rede Cidadã como Aprendiz. Fiz a formação teórica e prática, até
que... fiz uma seleção e fui promovido a Técnico de Suporte Júnior, que
é dentro da minha área de atuação, pois sou Técnico em Informática.
Minha vida mudou radicalmente. Hoje me sinto um ser produtivo
e apto a reassumir meu papel na sociedade.
Será que teria chegado onde estou sem a intervenção do Estado?
Muito se fala sobre “enxugar” o serviço público, cortar gastos e priva-
tizar. Mas será que a iniciativa privada teria interesse na saúde mental,
na reinserção do indivíduo? Só almejam lucros!
1
Técnico em Informática. Técnico de Suporte Júnior no Hospital Felício Rocho. Usuário do Centro
de Convivência Oeste.

291
Em muitos setores, como Educação e Saúde, há a necessidade
da atuação do Governo, a fim de garantir aos mais necessitados uma
qualidade de vida digna, reduzindo as desigualdades promovidas pelo
capitalismo. Foi através da lei de cotas para aprendizes e para pessoas
com deficiência que resgatei minha dignidade.
Deixo aqui manifestada minha gratidão pelas políticas sociais de
reinserção no mercado de trabalho e na sociedade – como os Centros
de Convivência – em parceria com outras instituições.
É muito importante a manutenção desses direitos adquiridos, que
estão sob ameaça atualmente. Vamos ficar alertas à política e exercer
nosso poder de voto com sabedoria. Gratidão a todos os envolvidos
nesta minha conquista!

292 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
Seção 5

ENTRE PARCERIAS DE FORMAÇÃO:


CENTRO DE CONVIVÊNCIA E UNIVERSIDADE

293
MÁSCARA DA PALAVRA

Adrienne Luz1

Nós usamos a escrita como forma de nos exprimirmos,


mas ocultamos, em palavras, o sentimento.
Por quê?
Respondo:
Dentro das palavras vivemos nosso “fogo”, nossos sentimentos.
Se ocultarmos isso, mostramos a “palavra”, não o sentimento dela.
Assim, somente escrevemos, não “sentimos” a escrita.
As palavras são “ganchos” que nos ancoram.
Muitas vezes tememos escrever,
pois às vezes escrevemos coisas que depois nos arrependemos.
Isso nos deixa temerosos.
Mas não deixemos que as palavras nos amedrontem.
Soltemo-las ao léu, deixemo-las mostrar o que realmente são.
Palavras são sentimentos, são luz interior que possuímos!
Deixemos esta “luz” nos iluminar.

1
Usuária do Centro de Convivência Carlos Prates. Futura jornalista, sonhadora e participativa.

295
ENCONTROS, DIÁLOGOS E ARTE: A PARCERIA
ENTRE O CURSO DE PSICOLOGIA DA PUC-MG E
O CENTRO DE CONVIVÊNCIA CARLOS PRATES

Maria Eliza Vasconcelos Silva1


Maria Helena Camargos Moreira2

Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome.


Clarice Lispector

1 Introdução

Já faz algum tempo que se iniciou a parceria entre o curso de


Psicologia da PUC-MG – Unidade Coração Eucarístico e o Centro
de Convivência Carlos Prates, através de visitas, encontros e eventos
culturais e científicos.
Relembrando o começo da história, à época um grupo de estu-
dantes realizava estudos acerca da saúde mental no Brasil, percorrendo
a história da criação dos manicômios, das lutas e conquistas, até alcançar
os serviços substitutivos.
A proposta de uma visita a um desses serviços surgiu com o
propósito de, para além dos estudos teóricos, conhecer de perto o
funcionamento, as ações cotidianas e interagir com os frequentadores,
proposta esta prontamente acolhida pela gerente da Unidade.
Nas discussões preparatórias para a visita, o diálogo em roda
pareceu o modo mais apropriado para interagir com os frequen-
tadores, acompanhado de um lanche e um sarau musical, uma vez
que, sabidamente, a arte é um dispositivo muito presente no fazer de
tais serviços.

1
Gerente do Centro de Convivência Carlos Prates até julho de 2020.
2
Professora do Curso de Psicologia da PUC-Minas, Unidade Coração Eucarístico. Organizadora das
visitas ao Centro e eventos mencionados.

296
2 Porta aberta e boas-vindas

No dia combinado para a vista, logo à chegada ao Centro a


emoção escapava dos olhares do grupo visitante. Alguns frequentadores
se postavam próximo à guarita e esboçavam sorrisos e expressões de
boas-vindas.Atravessando a quadra de esportes, logo à frente os canteiros
da horta e alguns exemplares de plantas ornamentais eram um toque a
mais da estética do cuidado e chamavam a nossa atenção. Mais alguns
passos e já estávamos no salão das oficinas.
Postados em volta da mesa comprida, os frequentadores se dedi-
cavam a construções artesanais variadas. Enquanto as mãos deslizavam
sobre tecidos, papéis e outros objetos, a prosa corria solta. Ao nos verem
entrar, alguns expressaram gestos de receptividade, ao mesmo tempo
em que exibiam as produções. Com cumprimentos e rápida troca de
palavras, dirigimo-nos à cozinha para organizar as bandejas de quitutes
e outros “mimos” que havíamos preparado.
Hora do lanche! Sentados em volta da mesa, a prosa se iniciava
com comentários sobre os sabores e emendava para curiosidades dirigidas
aos estudantes, que circulavam entre os presentes com as bandejas. A
partir de então, convidados a expor sobre como funcionava o Centro
e o significado para a própria história de vida, a conversa correu solta.
As ações cotidianas, os passeios e os laços afetivos eram reiterada-
mente mencionados como argumento sobre a importância do Centro
de Convivência para a melhoria das condições de saúde e a recons-
trução dos projetos de vida. Nos depoimentos era, também, por vezes,
destacado o contraponto entre as vivências no Centro e nas instituições
manicomiais, relembradas com emoção por alguns dos participantes.
Ao final, no sarau, os músicos do serviço se uniram aos músicos
estudantes e, na cantoria, juntaram- se todos os participantes.

3 Desbravando o novo espaço

É sabido que as visitas, passeios em espaços públicos e a participação


em eventos da cidade constituem uma iniciativa usual e importante nos

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 297


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
Centros de Convivência. Com base em tais experiências, que tinham
grande adesão dos usuários, o desejo de visitar a PUC foi formulado
durante o lanche. Para tanto, ficou combinada a elaboração de um
planejamento conjunto entre as duas instituições.
Na Universidade, fazia-se próximo um evento científico que
congregaria professores e alunos do curso. Para tanto foram convidados
os frequentadores do Centro, que fariam uma apresentação artística. No
dia combinado, eles chegaram com seus instrumentos afiados. Para a
maioria, tudo era novidade, desde os jardins bem cuidados, os espaços
abertos da cantina, os corredores repletos de jovens e a disposição das
salas de aula. Na abertura do evento eles encantaram os presentes com
o seu talento. Foram alvo de muitos aplausos.

4 Rodas de prosa

A partir daí seguiram-se outros encontros com formatos diferen-


tes nas dependências da PUC. Os lanches no Centro, regados a prosa,
também seguiram acontecendo.
Para falar sobre a escola que funciona no Centro, para alunos
da Disciplina Psicologia da Aprendizagem, os frequentadores foram
convidados a voltar à PUC. Na ocasião, eles mencionaram os modos
de ensinar e de aprender que captavam o interesse e atenção.
O gosto por aprender era destacado por todos, que viam no
Conhecimento uma forma de ampliar a autonomia nas ações cotidianas,
de que citavam alguns exemplos: a assinatura da carteira de trabalho,
a leitura dos cartazes com ofertas de produtos no supermercado, o
reconhecimento do letreiro do ônibus. E alçar ainda outros voos pro-
piciados pela apropriação dos conhecimentos, como escrever poemas,
cartas, informar-se sobre os acontecimentos e até mesmo decodificar
a bula do medicamento indicado.
Também eram ressaltadas pelos expositores as visitas a espaços
diferenciados, com o objetivo de ampliar os temas em estudo, como
aconteceu na ida ao Museu de Guimarães Rosa. Entremeando a expo-
sição, ainda brindaram os presentes com o seu talento musical.

298 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
E já que pulsava o desejo de aprender, foi aventada uma visita
ao Museu de Ciências Naturais (o Museu de Ciências Naturais da
PUC-MG desenvolve atividades culturais e artísticas para o público
externo. No caso das visitas do Centro houve um empenho da Direção)
como possibilidade de novas descobertas. Como aconteceu em outros
momentos, para isso foram iniciados os preparativos, que envolveram
os profissionais e monitores do Museu, os estudantes de Psicologia
e monitores de oficinas do Centro. O Museu se tornou, a partir de
então, o cenário de diversas atividades, entre visitas ao acervo, rodas de
conversa, participação em eventos científicos.

5 Em meio às árvores

As atividades no Museu se desdobraram, de um modo geral, nos


seguintes momentos: acolhida dos visitantes por monitores da Casa e
estudantes de Psicologia, com um lanche e, logo após, a roda nos espaços
abertos, sob as árvores frondosas. Em alguns desses momentos ocorreram
discussões sobre temas ligados à saúde mental, como a obra de Nise da
Silveira, a história e o significado do dia 18 de maio e também sobre
textos literários, como os contos “O alienista”, de Machado de Assis, e
“Soroco, sua mãe e sua filha”, de Guimarães Rosa.
Para esses últimos foi feita uma leitura prévia na escola do Centro.
Nesses momentos, a trama dos contos evocava experiências pessoais,
experiências no Centro e a importância da participação nas lutas coleti-
vas para a efetivação e ampliação dos direitos proclamados na Reforma
Psiquiátrica.
Após as conversas, o grupo seguia para a visita ao acervo do
Museu, momento de novas descobertas e muitas indagações. Num des-
ses momentos, em meio aos fósseis gigantes, um frequentador, usando
um objeto como se fosse um microfone improvisado, apresentou uma
música composta por ele próprio em homenagem à professora, que foi
motivo de muita emoção para todos que participavam da experiência
e visitantes de fora.

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 299


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
No retorno à escola do Centro, havia muito o que falar sobre a
visita ao Museu, e as informações colhidas se desdobravam em novos
temas de estudo. Também para os estudantes de Psicologia e monito-
res do Museu a questão da saúde mental era tema gerador de muitos
estudos, descobertas, interesses ampliados.
Em outras ocasiões, no auditório do Museu os frequentadores do
Centro participaram de eventos científicos, como ocorreu na discussão
do documentário “Em nome da razão”, que contou com a participação
do diretor, Helvécio Ratton. Na ocasião, sob os olhares de admiração da
plateia, apresentaram uma performance criada na Oficina de Letras do
Centro. Nas exposições que se seguiram eles participaram ativamente
com perguntas, depoimentos sobre vivências em manicômios e relatos
de experiências no Centro de Convivência.

6 No palco: palestrando

Seja como integrantes de rodas de conversa, fazendo a abertura


artística de eventos ou participando de exposições de trabalhos artesanais,
as visitas à PUC foram se realizando com desenvoltura cada vez maior
dos frequentadores do Centro na circulação nos espaços do campus,
interagindo com os estudantes e trabalhadores.
Outra forma de participação se deu na condição de palestrantes,
compondo mesas em eventos acadêmicos. No auditório lotado por
estudantes e professores, relatavam experiências, abordavam temas
relacionados à saúde mental, sempre contando com muito interesse e
atenção da plateia acadêmica.
E, no 18 de maio, lá estavam novamente juntos, estudantes e
frequentadores do Centro, no desfile anual da cidadania das pessoas
em sofrimento mental. Precedendo o desfile, na confecção das fan-
tasias se encontravam nas oficinas do Centro. Nesses momentos a
prosa corria solta, até que, chegando o grande dia, na avenida todos
sambavam juntos.

300 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
7 De lá e de cá: um balanço da parceria

Ao longo da história da implantação da reforma psiquiátrica, par-


ticularmente em Belo Horizonte, os Centros de Convivência têm-se
constituído como dispositivos da maior relevância para processar a reinserção
no trabalho, na educação, na cultura, e ampliar a circulação na cidade.
Sabendo-se que os princípios que regem o funcionamento da rede
de assistência em saúde mental somente se efetivam pelo compromisso,
competência e sensibilidade nas ações diárias dos profissionais que
atuam nas unidades, surge uma questão importante: como os Centros
de Convivência podem contribuir para a formação de profissionais
aptos para isso?
Nesse aspecto, em se tratando da formação acadêmica, ainda que
os estudos teóricos sejam importantes, as experiências em contextos
reais de práticas e a interação com as pessoas em sofrimento mental são
fundamentais para a compreensão das amplas questões que envolvem
as temáticas da saúde mental. A propósito, vale ressaltar que o estigma
sobre as pessoas em sofrimento mental, associado à longa história de
apartação e violência perpetrados pelos manicômios, ainda se acha
entranhado no imaginário social. A tal situação não está imune a Uni-
versidade. As expressões de surpresa e perplexidade dos estudantes ao
longo das visitas evidenciavam que, para além das discussões e estudos
teóricos processados anteriormente, a desconstrução do preconceito e
estigma se fazia de fato pela experiência em campo e, particularmente,
na interação face a face com os frequentadores do Centro. Ao mesmo
tempo em que se dava, nestes momentos, a construção de atitudes e
habilidades fundamentais, como a escuta e a empatia.
Da parte do Centro, a adesão dos frequentadores às atividades
no espaço do serviço e da PUC, além da interação social e do pro-
tagonismo nos eventos, fomentava sonhos de um dia, quem sabe, vir
a fazer parte da Universidade. Alguns, por iniciativa própria, fora da
agenda de visitas, retornavam para circular nos espaços coletivos, rever
pessoas que se tornaram conhecidas ou mesmo usufruir dos serviços
de assistência oferecidos ao público externo.

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 301


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
Da parte dos estudantes, também novos sonhos e compromissos
se gestavam através das experiências em ambos os contextos: quem
sabe um dia atuar no campo da saúde mental, com o compromisso, a
sensibilidade e a competência que se mostravam visíveis nas equipes
profissionais. Tal desejo fazia com que o conhecimento sobre a saúde
mental alçasse novos sentidos.
Por tudo que foi dito, seguimos em parceria construindo
novas trilhas.

302 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
CARTA AO CENTRO DE CONVIVÊNCIA
SÃO PAULO

Luiz Filipe Alves Rocha1


(Urano)

Um lugar de “rexistência”

Por dois anos estive como estagiário da residência terapêutica do


Concórdia, e neste período tive a oportunidade de acompanhar diver-
sos moradores em atividades no Centro de Convivência São Paulo.
Uma dessas moradoras, Mi, adora participar das oficinas de bordado,
tendo o costume de ir duas vezes por semana, inclusive! Devido a sua
dificuldade de locomoção, porém, necessita de um acompanhamento
mais próximo e o auxílio de um andador.
E lá íamos nós. Era sempre uma aventura o caminho: entrar e
descer do carro; acessar o ambiente interno, visto o entorno não ser
muito acessível, com pavimento erosado; caminhar até sala vencendo
os pequenos obstáculos, de passinho em passinho… mas sempre com a
recompensa bem merecida no fim: poder aprofundar seu conhecimento
e colocar em prática sua delicada arte e rever colegas, educadores e
parceiros daquele lugar que, como o próprio nome indica, é um Centro
de Convivência. Um convívio que propicia a troca de conhecimen-
tos entre os próprios usuários junto às referências locais, tendo a arte
como instrumento terapêutico para a vida, dando corpo àquilo que
não se nomeia – os usuários fazem dali seu ponto de referência, como
um lugar de “rexistência” (rexistência pois possuem a necessidade de
resistir à opressão social que oprime a existência destes como sujeitos
de direito, para se existir como se é, no qual encontram os recursos
necessários para se expressarem).
1
Estagiário de Psicologia do Serviço Residencial Terapêutico Concórdia.

303
Tal movimento, independentemente do uso que cada qual faz
de seus recursos, vem a sublimar sentimentos e emoções através da
arte e da manifestação. Durante as oficinas de Mi, eu a acompanhava
desenhando em alguma tela ou riscando novos panos para que ela
pudesse bordar, e nisso desenterrei minha paixão infantil pela simples
tarefa de se desenhar por prazer, algo que há muito tempo já não fazia.
E mesmo apenas como acompanhante, acabei me tornando também
usuário: fiz uso, e com prazer, do território e dos recursos, se tornando
um momento terapêutico tanto para Mi quanto para mim. Conheci os
demais usuários e participei, junto aos moradores que acompanhava,
de diversas atividades, confraternizações, reuniões, discussões e mesmo
protestos em prol da melhoria do dispositivo – o que me permitiu
ouvir muitas histórias sobre a importância do C.C.SP para a vida de
seus usuários.
Como devem ter percebido através deste texto, me apropriei de
tais valores artísticos/políticos.
Claro que ficamos todos limitados, devido à pandemia que nos
reprimia em casa, e alguns dos usuários nem mesmo podem afirmar
ter uma casa. O dispositivo continuou, mas ficamos bastante tempo
afastados por isso, não podendo colocar os moradores em risco. Con-
forme a vacinação, temos retomado aos poucos, porém é chegada a
hora do meu desligamento do estágio. O que tenho a fazer é agradecer
pela oportunidade de conhecer de perto e também de participar, pela
acolhida do dispositivo aos moradores e também a mim.
Finalizo com a certeza de que tal oportunidade somou ao meu
crescimento pessoal e profissional/acadêmico, estando prestes a me
formar, com a clareza de querer continuar fazendo parte dos serviços
substitutivos à prática manicomial.

Manicômios nunca mais!


Liberdade ainda que tan tan!

304 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
A FORMAÇÃO EM SAÚDE MENTAL E
PSIQUIATRIA NA COMUNIDADE – UM GESTO
PROFISSIONAL EM MÚLTIPLAS DIMENSÕES

Enio Rodrigues da Silva1

1 A inter-relação entre campos epistêmicos e


hipóteses em movimento

Este texto é resultado de um ponto de vista profissional e singular,


a partir de minhas experiências de trabalho nas redes abertas de Belo
Horizonte/MG e Betim/MG, de formação médica na universidade
de medicina José do Rosário Vellano - Unifenas/BH, além de mes-
trado e doutorado na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
(SILVA, 2010, 2016).
Trata-se de um diálogo sobre a formação médica – a partir do
ensino da Saúde Mental e da Psiquiatria na comunidade –, tomando
como cenário a inter-relação entre a Rede de Atenção Psicossocial
(RAPS) de Belo Horizonte e a universidade Unifenas/BH. Pensar
e planejar o encontro da universidade com a loucura é um desafio
contemporâneo, uma ética, uma postura, uma tomada de decisão. Em
outras palavras – um gesto profissional em múltiplas dimensões.
Partimos de algumas hipóteses para subsidiar as reflexões aqui
propostas. A primeira, que a medicina, tradicional e historicamente,
construiu suas bases epistemológicas voltadas para os aspectos objetivos,
perscrutando suas origens focadas na investigação anátomo-patológica
de doenças. O resultado desta operação tem sido a busca pelas evidências
científicas, pesquisando um substrato orgânico para justificar os sin-
tomas clínicos, categorizá-los, estabelecendo diagnósticos e propondo
terapêuticas, tendenciosamente, endurecidas. A segunda, no contexto
1
Psiquiatra. Professor de Saúde Mental e Psiquiatria da Unifenas/BH. Mestre em Psicologia Social (FAFICH/
UFMG). Doutor em Educação (FAE/UFMG). Ex-trabalhador da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS)
de Belo Horizonte/MG e trabalhador da rede de Betim/MG.

305
da Saúde Mental, inicialmente, localizando a Psiquiatria para abrir a
hipótese que até o momento ela apresenta respostas tradicionais para
questões impossíveis e insuportáveis veiculadas pelo encontro com a
loucura. Isso reflete, inicialmente, nos processos de formação médica,
cujo ensino da Psiquiatria tende a se restringir na abordagem do sofri-
mento mental do ponto de vista biomédico e terapêutico focado na
prescrição medicamentosa.
Assim, as reflexões apresentadas partem dessas hipóteses para
propor um gesto profissional de formação em Psiquiatria argumentado
e debatido na direção da Saúde Mental, da Reforma Psiquiátrica e da
Luta Antimanicomial (AMARANTE, 1995; LOBOSQUE, 2020; SILVA,
2010, 2016, 2017), provocando aberturas epistemológicas neste campo
do conhecimento. Um processo de formação em serviços através de
uma parceria que extrapola dez anos de existência entre a Unifenas/
BH e RAPS de Belo Horizonte/MG. Um gesto profissional que pro-
move uma interrogação epistemológica à Psiquiatria, perscrutando sua
abertura em direção à comunidade, abrindo portas para outros saberes e
para o encontro da loucura com estudantes de medicina na cidade, na
comunidade, no território e seus diversos serviços em rede de Saúde
Mental. Um diálogo estreito entre saberes e práticas, que começa a
partir do Centro de Convivência da Saúde Mental.
Tratamos esse assunto através da Ergologia, uma das Clínicas do
Trabalho (BENDASSOLLI; SOBOL, 2011). Escolhemos a Ergologia
(SILVA, 2016), uma vez que ela propõe analisar as situações de traba-
lho de forma pluridisciplinar e do ponto de vista da atividade. Para a
Ergologia, trabalhar é se apresentar; é fazer escolhas no menor detalhe
possível do cotidiano da vida; é colocar de si no aqui-agora das situa-
ções; é gerir as infidelidades do meio; é ressignificar a distância entre o
prescrito e o real;, é promover um debate de normas e valores, além de
criar um espaço-tempo de diálogo tripolar entre saberes constituídos,
investidos e o desconforto intelectual para o bem viver.
Segundo os princípios ergológicos de ergoformação (SCHWARTZ;
DURRIVE, 2010), trabalhar é também formar novos trabalhadores.
Uma dialética entre dar e receber, entre as instruções/normas e as opor-

306 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
tunidades, tirando proveito da experiência, ainda que seja ela a menor
e mais simples possível, aparentemente. Segundo os autores, o papel do
ergoformador é permitir ao indivíduo em aprendizagem construir suas
próprias questões no encontro com o real, tirar partido da situação e
colocá-la em sinergia com o coletivo no curso da atividade.
É dentro deste contexto teórico-metodológico que a nossa postura
universitária visa criar um espaço-tempo de encontro do estudante
de medicina com a vida como ela é, a partir do encontro com a
loucura, circulando pela cidade, tomando os dispositivos da RAPS/BH
como pontos de passagem. Pretendemos formar médicos generalistas
trabalhadores para o SUS, que saibam, além de diagnosticar e medicar,
romper com o estigma e o preconceito com relação ao cliente da Saúde
Mental, escutando as pessoas, seus sofrimentos, e construindo casos
clínicos em nível de compartilhamento multiprofissional.

2 Gesto e atividade em Saúde Mental e Psiquiatria

O conceito de gesto profissional genérico e em Psiquiatria é


resultado de um trabalho conceitual e original de minha tese de douto-
rado, a partir das Clínicas do Trabalho, em especial a Ergologia (SILVA,
2016). Uma tese dividida em duas partes. A primeira aborda o conceito
genérico de gesto profissional – que serve a qualquer métier. A segunda,
a singularização da informação genérica no campo da Saúde Mental
e da Psiquiatria.
Para início de conversa, interessa os mecanismos constituin-
tes da ação – contra a inércia do fazer – que se refere àquilo que
tem um início e fim determinados. Diferente da atividade que é
considerada “um élan de vida e de saúde, sem limite predefinido,
que sintetiza, atravessa e liga o que as disciplinas têm representado
separadamente: o corpo e o espírito; o individual e o coletivo; o
fazer e os valores; o privado e o profissional; o imposto e o desejado,
etc.” (SCHWARTZ, 2007, p. 19). Ela se refere aos mais variados
elementos cognitivos que mobilizamos, aquilo que extrapola o fazer

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 307


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
aqui e agora, promovendo uma inter-relação do presente com o
passado, projetando o futuro.
Assim, podemos dizer que o gesto profissional genérico é a
manifestação do resultado da síntese do debate de normas travado no
interior da atividade desde o espaço micro ao macro dos contextos
de trabalho. Expressão física de um ato e também a manifestação e o
resultado da somatória dos saberes investidos no corpo. Gesto é ativi-
dade na medida em que faz síntese de debate de normas em múltiplas
dimensões que se entrecruzam. O gesto é propriamente a maneira de
expressão de uma atividade.
Por outro lado, o gesto profissional em Psiquiatria é a singulari-
zação da informação genérica no contexto da história da Psiquiatria
e da Saúde Mental. Uma síntese do encontro da Psiquiatria com
cinco perspectivas teórico-metodológicas: as ciências da natureza,
da vida e do homem, o movimento da Antipsiquiatria e a Ergologia,
segundo Gaston Bachelard, Georges Canguilhem, Michel Foucault,
David Cooper e Yves Schwartz, que nos reorientam frente ao recorte
epistemológico em direção ao processo de engendramento do gesto pro-
fissional em Saúde Mental e Psiquiatria. O primeiro estabeleceu suas
bases na filosofia das “ciências da natureza”, da matéria (a matemática,
a física, a química); o segundo, na filosofia das “ciências da vida” (a
biologia, a anatomia, a fisiologia, a patologia); o terceiro, a filosofia
das “ciências do homem”, e o quarto, a experiência da Antipsiquia-
tria (COOPER, 1967). O quinto, a Ergologia como uma filosofia
da vida no trabalho. Refere-se a um movimento epistemológico
que prepara o gesto profissional em Psiquiatria, inclusive este de
formação que apresentamos.
Em outro sentido, voltamos a todo esse contexto histórico, a par-
tir do rigor epistemológico de Canguilhem (1995), do ponto de vista
ergológico, de não investigar determinada hipótese no campo da saúde,
somente por um único viés, quer seja ele biomédico ou subjetivo. Para
o autor, saúde não é ausência de doença e o anormal não se restringe
ao patológico. Antes, propõe uma investigação ampliada do objeto de
pesquisa sob todos os pontos de vista possíveis.

308 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
2.1 Três tempos de um gesto profissional de
formação em Saúde mental e Psiquiatria

A reforma curricular da Unifenas/BH em Saúde Mental e Psi-


quiatria respeita o rigor epistemológico acima apresentado e se divide
em três tempos – etapas que acompanham a abordagem clínica da
loucura em nível de complexidade e fluxo da rede.
Preocupados em combater o estigma e o preconceito do estu-
dante de medicina com a loucura, antecipamos essa problemática para
o segundo período do curso de medicina, a partir da Prática Médica
na Comunidade (PMC). Nossos alunos e alunas frequentam os Centros
de Convivência da RAPS de Belo Horizonte por um semestre. Eles
alternam entre estudos teóricos sobre a Saúde Mental e a Psiquiatria
na universidade em oficinas e visitas a estes centros de arte comunitária
semanalmente. Se há uma regra bem definida é aquela de desfocar a
doença mental para encontrar o sujeito e sua história de vida, inclusive
de sofrimento mental. São ofertados aos estudantes estratégias técnicas
e clínicas de estabelecer uma relação com os clientes no sentido de
permitir que estes digam aquilo que precisam dizer e não aquilo que
o percurso tradicional de formação em medicina demanda saber para
diagnosticar e medicar o sofrimento. Em outro sentido, um exemplo
de inversão epistemológica de produção de conhecimento no campo
da formação em Saúde Mental e Psiquiatria (SILVA, 2016), valorizando
a fala de clientes e estudantes. Assim, a suposta pergunta – o que você
tem? é substituída para – quem é você? Estruturalmente, os professores se
dividem entre as oficinas temáticas e visitas aos centros com os estu-
dantes semanalmente, supervisionando-as.
A segunda etapa, no sétimo período, a estratégia do ambulatório
é apresentada na universidade em termos de Grupos Temáticos (GT),
Seminários e Treinamentos de Habilidades (TH), apresentando os
quadros clínicos psiquiátricos mais comuns e abordagens medicamen-
tosas necessárias. O processo tem duração de cinco semanas. Acontece
também de forma alternada o processo de matriciamento em Saúde
Mental na rede básica. Um mecanismo bastante industrioso, uma vez

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 309


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
que requer uma expertise do professor/orientador em ensinar o aluno,
acolhendo o paciente em seu sofrimento e transmitindo o conheci-
mento em Saúde Mental e Psiquiatria em regime de apoio matricial
às equipes de Saúde da Família da UBS.
A terceira etapa, o internato no décimo segundo período. É o
momento do encontro do estudante com o paciente em crise nos CAPS
III – CERSAM’s 24h – Centros de Referência em Saúde Mental.Tem
duração de cinco semanas e carga horária de 20 horas. Da mesma forma,
os professores alternam atividades teóricas na universidade em regime
de seminários com visitas aos CERSAM’s.Vale ressaltar que os servi-
ços que recebem os estudantes contam com um supervisor psiquiatra,
contratado pela universidade – que se dedica a reforçar determinados
conteúdos teóricos e sustentar o trabalho dos mesmos, supervisionando
suas atividades.
Este texto tem foco na primeira etapa, preparando o terreno
para as etapas seguintes. De forma que, ao chegar no final do curso, o
estudante conheça a maioria dos dispositivos da RAPS, experimentando
o trabalho em equipe e compreendendo o fluxo do paciente na rede,
a partir da crise e para além desta. (ALMEIDA, NOGUEIRA, 2018)

3 A PMC – Prática Médica na Comunidade – o


território, a universidade, a cidade e uma
metodologia possível

A PMC conta com uma equipe de professores que não tem a


exigência de ser composta somente por médicos. Atualmente, somos
dois psiquiatras, um deles egresso desse mesmo processo de formação,
um psicólogo e uma enfermeira. Revezamos as atividades de oficinas
cognitivas na faculdade e visitas aos Centros de Convivência. Partimos
da seguinte pergunta como norteamento de nosso processo de trabalho:
o que faz um estudante de medicina no Centro de Convivência da
Saúde Mental? Relaciona-se com o usuário, o frequentador, o cliente
do serviço. Porém, uma relação assistida, coordenada, dirigida pelos
professores da Unifenas, oficineiros e gerentes desses centros.

310 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
Esta atividade é desenvolvida a partir de alguns objetivos: a)
apresentar o cenário da história do antigo manicômio aos princípios
da Reforma Psiquiátrica e Luta Antimanicomial; b) promover um
raciocínio clínico sobre o lugar da Saúde Mental e da Psiquiatria no
contexto da medicina; c) estudar e compreender as leis e portarias
que sustentam a criação de RAPS; d) reconhecer os dispositivos que
compõem as redes e seus funcionamentos; e) sensibilizar e preparar o
estudante de medicina para o encontro com a loucura e a criação de
redes de Saúde Mental; f) contribuir para a formação de um profissional
médico trabalhador do SUS, sensível e implicado com as questões da
loucura e mais humanizado em suas atividades; g) compreender o fun-
cionamento do Centro de Convivência e suas atividades terapêuticas;
h) estudar e compreender o trabalho em equipe; i) relacionar com os
clientes a partir de suas histórias de vida, sem o prévio (re)conhecimento
de seus diagnósticos.
Para cumprir tais objetivos valemo-nos dos princípios da meto-
dologia PBL (Aprendizagem Baseada em Problemas) – um mecanismo
de formação ativa onde o aluno vivencia atividades práticas desde o
início do curso, construindo seu próprio conhecimento. Em meu ponto
de vista, esse processo formativo é ressignificado pelo método ergo-
lógico de Análise Pluridisciplinar das Situações de Trabalho (APST),
do ponto de vista da atividade a partir do Dispositivo Dinâmico a Três
Polos (DD3P). O Polo 1 - os saberes constituídos, as evidências sobre
Saúde Mental e Psiquiatria. O Polo 2 - aquele dos saberes investidos de
pacientes e estudantes, mobilizados na escuta da experiência singular de
sofrimento; na produção de subjetividades de pacientes e pesquisadores;
nas reflexões sobre o uso de medicamentos; nos aspectos dinâmicos
e históricos de vida pessoal e laboral; no funcionamento psíquico do
paciente frente às organizações estruturais impostas a ele. Finalmente,
o Polo 3 - as disposições ético-epistemológicas, o desconforto intelectual,
o debate de normas e valores acerca da articulação de saberes e fazeres
na atividade para o bem comum, o “viver juntos” no enfrentamento
teórico-prático, biomédico, político, social e cultural referentes a essa
doença (SCHWARTZ; DURRIVE, 2007; TRINQUET, 2010).

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 311


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
Ao longo de todos esses processos, a RAPS vai sendo apresentada
ao estudante, a partir do Centro de Convivência, de forma clínica e
argumentada. Praticamente, o convite é feito ao estudante para participar
das oficinas terapêuticas do serviço, sem qualquer imposição, garantindo
delicadeza na relação e apoio na apresentação da loucura, ampliando
a compreensão e complexidade da atividade profissional em Saúde
Mental e Psiquiatria. Entrar no trabalho do ponto de vista da atividade,
a partir das oficinas terapêuticas, compreendendo-as como uma ponte,
um veículo para reinserção social, ocupação da cidade e do território.

3.1 Saberes e campos de práticas a partir do Centro


de Convivência

Em termos teóricos, apresentamos os seguintes conteúdos nas


oficinas cognitivas:
• Oficina Cognitiva 1 – A Reforma da assistência em Psi-
quiatria – objetiva identificar os marcos constituintes da
história da loucura, do Manicômio, da Psiquiatria e um
panorama da Reforma Psiquiátrica brasileira e experiências
de outros países.
• Oficina Cognitiva 2 – A Reabilitação Psicossocial – objetiva
identificar os mecanismos e princípios norteadores de criação
de RAPS, a partir do conceito de Reabilitação Psicossocial,
de oficina terapêutica e sua importância para a inserção do
portador de sofrimento mental na cultura e na cidade.
• Oficina Cognitiva 3 – O normal e o patológico – objetiva
estudar um exemplo de rigor epistemológico, conceituar saúde
e doença mental; refletir sobre o normal-anormal, patológi-
co-não-patológico em Saúde Mental.
• Oficina Cognitiva 4 – Histórias de Vida – objetiva praticar os
princípios da metodologia de pesquisa em histórias de vida,
preparando e qualificando o encontro do estudante com os
clientes a partir de suas histórias e não de suas doenças.

312 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
• Oficina Cognitiva 5 – Rede de Atenção Psicossocial – obje-
tiva identificar os equipamentos constituintes da RAPS em
Belo Horizonte, a partir de leis e portarias; compreender o
funcionamento dos mesmos e o fluxo dos clientes entre eles;
compreender a importância da construção coletiva do Projeto
Terapêutico Singular (PTS).
• Oficina Cognitiva 6 – Serviços Residenciais Terapêuticos –
objetiva estudar a portaria que orienta a criação de Serviços
Residenciais Terapêuticos (SRT); visitar e compreender os
processos de funcionamento da residência; diferenciar os con-
ceitos de desospitalização e desinstitucionalização.
• Oficina Cognitiva 7 – Economia Solidária e Saúde Mental –
objetiva compreender o conceito de economia solidária e o
contexto no qual ela se insere; compreender a centralidade do
trabalho, dos empreendimentos solidários para a reinserção social.
• Oficina Cognitiva 8 – Política e Assistência no campo Álcool
e outras Drogas: objetiva identificar as leis e portarias que
orientam essa política e os dispositivos de atenção na RAPS;
identificar os modos de ser e existir da População em Situação
de Rua (PSR); diferenciar internação involuntária e interna-
ção compulsória; compreender e diferenciar as estratégias de
Redução de Danos e de Abstinência como políticas de atenção
ao usuário de álcool e outras drogas.
Em termos práticos, as visitas semanais aos Centros de Convi-
vência são embaladas pela metodologia a seguir. Sempre que possível,
ao chegar no serviço, fazemos uma roda de conversa para dar as boas-
vindas, desejar um bom dia, um momento de ocasião de palavra,
o primeiro contato com o cliente. Neste momento, os alunos são
convidados a serem proativos, atentos para a situação e a atividade.
Fazemos uma rodada de apresentação e, em seguida, partimos para as
oficinas ou ficamos ali conversando com o cliente, respeitando o tempo
necessário para esse encontro, estabelecendo uma relação no mesmo
pé de igualdade, assegurando a devida assimetria, sem qualquer tipo de
hierarquia, reconhecendo histórias de vida (BARROS, SILVA, 2002).

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 313


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
Os saberes constituídos acima apresentados são ressignificados
ao longo das visitas, embasando o encontro com outros dispositivos.
A partir do Centro de Convivência, visitamos os alguns serviços de
Saúde Mental do território: os CERSAM’s, as Residências Terapêuticas,
compreendendo o lugar da UBS, do SUP e das UPAS. Finalmente, faze-
mos um encontro na Suricato – um momento de síntese e de festa, de
celebração do encontro com a loucura e revisão dos objetivos da PMC.

Cenas cotidianas da formação

Ao longo da experiência, ficamos atentos à imprevisibilidade e


espontaneidade da relação em estabelecimento. Sempre há um convite
aqui e ali durante as atividades. Ao percebermos a situação, nós, profes-
sores, não recuamos. Abrimos espaço para que os estudantes consigam
sustentar este encontro e suas variabilidades. Diversos são os exemplos
decorrentes desta relação.
Apresentamos o desenho de algumas atividades. Cuidamos de
participar da organização do 18 de maio - dia nacional da Luta Anti-
manicomial. Cortamos tecidos, pintamos alegorias, cantamos o samba-
-enredo e vamos às ruas no “carnaval da loucura”. A partir do projeto
Diálogos com a Cidade, do Centro de Convivência Pampulha, entre-
vistamos pessoas nas ruas e dentro da Unifenas e da UFMG. Em um
dado momento, uma cena: uma usuária se aproxima de uma estudante,
percebendo o cuidado desta consigo mesma, unhas pintadas, brincos e
cabelos penteados chamam atenção do encontro. Cenas dos próximos
capítulos - a estudante traz ao Centro de Convivência seu estojo de
cuidados pessoais e compartilha o cuidado com a cliente. Em outro
espaço, em sala de aula da EJA, uma estudante consegue separar um
desentendimento entre dois clientes, um momento de arrepiar a alma
e demonstração de firmeza e delicadeza da aluna. Um dia desses, outra
aluna, percebendo a situação de rua de um cliente e sua dor decor-
rente de uma hérnia inguinal, trata de mobilizar uma consulta com um
professor cirurgião da faculdade que trabalha em um hospital da rede
SUS, acompanhando-o na atividade. Outro dia, fomos convidados por

314 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
uma cliente para irmos à sua casa tomar um café e conhecer a nova
academia de ginástica de sua filha. Lá estivemos presentes.
Não perdemos a oportunidade de participar do teatro, das rodas
de música com o orientador do grupo São Doidão, o bordado, a pin-
tura, a poesia e a ocasião de palavra de uma oficina de letras. Nossos
estudantes são de origem de vários estados brasileiros. Em um dado
momento, decidimos fazer um encontro de finalização das atividades,
convidando-os a trazerem um prato típico de seus estados para com-
partilhar e explicar aos clientes. Comida, explicações, alegrias e culturas
tomaram conta da atividade. Em visita a um CERSAM, uma usuária
convida um aluno para cair com ela na piscina. Responde ele que
talvez aquele não fosse o momento e continuaram conversando. Por
ocasião de finalizar o semestre de formação, convidamos as gerentes e
clientes dos Centros de Convivência para assistirem as apresentações
dos estudantes na faculdade – um momento de síntese e provocação
para novas etapas.
São alguns exemplos de momentos de relação, de delicadeza e
instituintes da criação, de novas formas de relacionar, da novidade – um
gesto heterológico inacabado (SALLES, 2013) de formação e em múl-
tiplas dimensões, na direção da criatividade, da astúcia, da humanização
(OSTROWER, 2014; GUEZ 2014; GUÉRIN, 2011) no campo da
medicina, a partir da Saúde Mental e da Psiquiatria (BARRETO, 2016).

5 Avaliando a formação

Em todo esse percurso ergoformador, nós, os professores, estamos


atentos às respostas dos estudantes. Não contamos com uma avaliação
cognitiva formal. Desde o início, propomos a escrita de um Portfólio
longitudinal – cuidando de normas para se escrever, mas assegurando a
primazia da expressão da subjetividade, onde a reflexividade vai se fazendo
entre os saberes constituídos e investidos, provocando o engajamento
coletivo, sempre respeitando o tempo de cada um na atividade. Ressal-
tamos a importância de trazer o colorido para a escrita, a tradução da
experiência em palavras – um desafio necessário para a formação. Este

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 315


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
Portfólio será reaberto lá no sétimo e décimo segundo períodos. De
forma que, ao final do curso de medicina, o aluno dispõe de um valioso
instrumento de formação e de apresentação de si na atividade profissional.
Em nossa experiência, depois de finalizada essas três etapas –
recebendo algumas respostas na movimentação de vários egressos –,
percebemos a importância deste percurso de formação para o médico
generalista. Situação esta que reforça nossa implicação com a formação
em Saúde Mental e Psiquiatria, através da parceria com a RAPS de
Belo Horizonte/MG.

6 A experiência remota em visibilidade

A pandemia de Covid-19 provocou em todos nós mecanismos


de renormalização da atividade de trabalho, modificando o curso da
ergoformação. Fomos todos convocados a ficar mais tempo na frente
de telas de computadores. Assim, as horas de trabalho se misturaram
com o tempo de descanso no ambiente familiar, ampliando o estresse
físico e emocional. Novas normas de vida e de trabalho nos foram
impostas, provocando-nos a falsa ilusão de termos mais tempo para o
cotidiano da vida.
Neste contexto, nós, professores, tivemos que rapidamente nos
apropriarmos de tecnologias remotas de formação. Em seguida, cuidar
de traduzir o encontro real com a loucura para o contexto virtual –
mesmo sabendo ser esta uma atividade impossível aos moldes ergo-
lógicos. Estudamos o funcionamento de novas plataformas de ensino
remoto, convidando gerentes e clientes dos Centros de Convivência
para fazermos lives formadoras de opinião. Uma atividade nada fácil,
porém possível e rica de realização.
Há quem diga de prejuízo para a formação em tempos de pande-
mia. Prefiro compreender que a experiência remota jamais substituirá o
real, nem mesmo o real da atividade (Clot, 2006) – aquilo que sonhamos
realizar e fracassamos, que não percebemos, que requer esforço e repe-
tição para se realizar, que fazemos em substituição ao que se precisa, de

316 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
fato, fazer, etc. Em outro sentido, compreendemos a experiência remota
como transformação daquilo que esperamos compreender no curso da
formação humana (SCHWARTZ, 2000; CLOT, 2006).

7 Considerações finais

O ensino-aprendizagem através da Saúde Mental e do movimento


Psiquiatria, Democracia e cuidado em liberdade foi a base das argumenta-
ções deste texto. O gesto de formação em medicina aqui apresentado
caminha na direção de romper com a disciplinarização do ensinamento
de conteúdos clássicos da Saúde Mental e da Psiquiatria.Valorizamos
a inter-relação de saberes, compreendendo que algo sempre escapará
no curso da atividade, reservando um lugar especial para os campos
de práticas.
Por este motivo, a Ergologia foi trazida em sua originalidade
indisciplinar e desconforto intelectual de desafiar os saberes formais
para valorizar a experiência humana. Contra um ensino mortificado,
exemplificado pelo manicômio, propomos um ensino vivo e ativo,
na criação de currículos vivos, rompendo com a disciplinarização
da aprendizagem e valorizando o ensino através do encontro com
as Redes de Atenção Psicossocial e as cidades. Apostamos que essas
matérias aqui apresentadas por si só de nada contribuem se não forem
contextualizadas frente ao impossível que o real nos apresenta como
desafio. Há que se provocar um encadeamento curricular de saberes e
fazeres para além daqueles tradicionalmente propostos pela medicina.
O gesto de formação que apresentamos nos impõe diversos
desafios clínicos e políticos. Abrir espaços nos currículos deve signifi-
car a abertura da universidade, dos saberes e de espaços na cidade para
o encontro com a loucura. Desconstruir o encarceramento histórico
da loucura, provocando uma prática aberta e viva de sentido. Ensinar
qualquer luta que seja é tarefa difícil, senão inglória e impossível. Res-
ta-nos não desistir da transmissão da experiência como uma ética do
cuidado e formação em liberdade.

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 317


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
Referências

ALMEIDA, Daniela Tonizza; NOGUEIRA, Maria Tereza Granha (Orgs.).


Attraversiamo. Saberes e experiências sobre o trabalho em saúde mental.
Belo Horizonte: Editora Instituto DH, 2018.
AMARANTE, Paulo. Loucos pela vida: a trajetória da reforma
psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1995.
BARRETO, Francisco Paes. O bem-estar na civilização. Curitiba: PR:
Editora CRV, 2016.
BARROS,Vanessa Andrade; SILVA, Lilian Rocha. A pesquisa em
história de vida. In: GOULART, Iris Barbosa. (Org.). Psicologia
organizacional e do trabalho: teoria, pesquisa e tema correlatos. São
Paulo: Casa do Psicólogo, 2002. p. 133-146.
BENDASSOLLI, Pedro Fernando; SOBOLL, Lis Andréa Pereira (Org.).
Clínicas do trabalho. São Paulo: Atlas, 2011.
CANGUILHEM, Georges. O normal e o patológico. 4. ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1995.
CLOT,Yves. A função psicológica do trabalho. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2006.
COOPER, D. Psiquiatria e antipsiquiatria. São Paulo:
Perspectiva, 1967.
FOUCAULT, M. História da loucura. 5. ed. São Paulo:
Perspectiva, 1997.
GUÉRIN, Michel. Philosophie du geste: essai philosophique. Paris:
Actes Sud, 2011.
GUEZ, Olivier. Éloge de l’esquive. Paris: Éditions Grasset, 2014.
LOBOSQUE, Ana Marta. Intervenções em Saúde Mental. Um percurso
pela reforma psiquiátrica brasileira. Editora Hucitec, São Paulo, 2020.
OSTROWER, Fayga. Criatividade e Processos de Criação. Petrópolis:
Vozes, 2014.

318 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
SALLES, Cecília Almeida. Gesto inacabado: processo de criação artística.
São Paulo: Intermeios, 2013.
SCHWARTZ,Yves; DURRIVE, Louis (Org.). Trabalho e Ergologia:
conversas sobre a atividade humana. Rio de Janeiro: EDUFF, 2007.
______. Trabalho e Ergologia: conversas sobre a atividade humana. Rio
de Janeiro: EDUFF, 2010.
SILVA, Enio Rodrigues da. A atividade de trabalho do psiquiatra no
CAPS – Centro de Atenção Psicossocial: pois é José... Dissertação
(Mestrado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Filosofia
e Ciências Humanas, Belo Horizonte, 2010.
______. O gesto profissional em psiquiatria: o Centro de Atenção
Psicossocial como território de trabalho. 2016. Tese (Doutorado) –
Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Educação, Belo
Horizonte, 2016.
______; BARROS,Vanessa Andrade de. (2007). Reflexões sobre a
atividade de trabalho do psiquiatra no CAPS – Centro de Atenção
Psicossocial. Revista Trabalho & Educação, Belo Horizonte, v. 26, n. 2, p.
85-102, 2017.
TRINQUET, Pierre. Trabalho e educação: o método ergológico.
Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n. esp., p. 93-113, ago. 2010.
Disponível em: <http://www.histedbr.fe.unicamp. br/revista/edicoes/38e/
art07_38e.pdf>. Acesso em: abr. 2016.

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 319


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
PONTO DIFERENTE

Leandro Henrique Angelo1

Eu sou negro, pobre, da periferia.


Lá passam os carrões ouvindo Racionais MCs
“Negro drama, entre o sucesso e a lama”.
Somos vítimas da sociedade.
Ainda muito subjugados.
O branco tem mais privilégios, condição de vida melhor.
Eu falo do racismo porque mexe comigo.
Eu acho que sou sensível à causa.
Claro que não sou uma máquina pra ficar computando
quem é mais rico se preto ou se branco
e que a medir por mim
eu vejo mais gente branca em condições sociais melhores de
que gente negro.
Não que ache que é só o dinheiro que importa, mas é como eu vejo
Pode ser até que eu vejo tudo por um olhar caótico
Mas é como me parece.
A leitura tem uma coisa importante para mim
Por causa que quem escreve se torna imortal
E o tempo passa, para mim, de maneira mais rica.
Tem que ter talento para fazer poesia.
Não é rimando lé com cré
Que seja somente isso.
Eu achava que poesia concreta era falar da realidade:
da desigualdade social, racismo
e, outra coisa que me incomoda muito hoje, que é o sexismo.
As vezes sai de maneira onde eu não consigo exprimir tudo
Como a minha mente quer fazer uma coisa
E por preciosismo
1
Usuário do Centro de Convivência Oeste.

320
no sentido que quero escrever com se fosse um Machado de Assis
E o Centro de Convivência é onde eu fico em ambas realidades
Que independente de tudo
somos muito parecidos seja negro ou branco
Mas eu sei que eu tenho capacidade para escrever aquilo que sinto.
Mas, às vezes, como foi dito pelo monitor,
eu tenho capacidade para escrever como a leitura surte
efeito em mim
Da qual eu fico mais perto de ir além
E o Centro de Convivência veio
Eu mas com a cabeça para fazer julgamentos sociais mais claros.
Este é um ponto diferente
Que é o meu.

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 321


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
Seção 6

ENTREMEIOS DA LUTA
ANTIMANICOMIAL:
CENTRO DE CONVIVÊNCIA E POLÍTICA

323
MANIFESTO CONVIVENTE

Coletivo da oficina de Letras do Centro de Convivência Carlos Prates2

Preâmbulo

Eu sou ao contrário e gosto de ver tudo contrário


(a)o amor invade quando a lei vira amizade.
Este documento visa deixar a liberdade sair, fluir...

Artigo I: De convivente

Fica decretado que qualquer convivente tem o direito de:


Conviver em bons estilos com as pessoas
Ouvi-los sempre que for possível
Notar, anotar as coisas do dia-a-dia
Viver e usufruir o belo, o bom da vida
Inteirar de boas notícias
Viver com qualidade
Esforçar sempre no ofício
Nascer de novo, reviver
Ter em mente os assuntos do cotidiano e falar a partir do
que aprender
Êxtase, arrebatamento, enlevo, crescimento!

2
Este manifesto, inspirado em “Os Estatutos do Homem”, de Thiago de Mello, foi redigido em 2015 e
2021 pelas e pelos poetas conviventes das Letras do Centro de Convivência Carlos Prates (por ordem
alfabética): Adrienne Luz, Cleide Reis, Douglas Guieiro, Eustáquio Martins, Ninjão com a Comunidade,
Heloísa Pereira, Jackie Gonçalves, Júlia Maria Antunes, Júlio César Rodrigues, Leonardo de Souza, Sulamita
dos Santos, Reginaldo de Tarso e Rubem Furtado. Orientação e edição do monitor Sandro Boaventura.

325
Artigo II: Do acordar

Fica acordado que todo ser humano terá direito de contemplar


o amanhecer.
Fica decretado que todo ser humano será livre para pensar e
manifestar seus pensamentos.
Foi-se decretado que haverá cereal até o cume dos montes.
Fica acordado que sobre o mar tento nadar sem afogar e que a
alegria vem pela manhã.
Fica decretado que o sol iluminará as cabeças lúdicas de conviventes.

Artigo III: Do amor

Fica decretado que o amor sempre vença.


Fica decretado que todo ser humano terá direito a se apaixonar
sem ser chamado de bobo.
Fica decretado que conviventes buscarão o amor, namorando
uns aos outros.
Fica decretado que todos aqueles que namoram, noivam e se
casam sejam românticos com seus pares amorosos.
Fica decretada na lei do justo a amizade e que nunca se abandona
um amigo.

Artigo IV: Da paz

Fica decretada tolerância em todas suas formas e que a felicidade


seja para todos sem distinção de cor, raça, sexo e orientação sexual.
Fica decretado que as armas possam atirar pétalas de flores, no
lugar de munições.
Fica decretado que o homem que vive em conjunto é sempre
feliz, ajuda ao próximo e a si mesmo.

326 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
Fica decretado que todos os seres sejam justos, não sendo neces-
sária a aplicação de regras.
Fica decretado que todo ser humano não sentirá mais medo,
principalmente quando está sendo perseguido.
Fica decretado que todo aquele que crê em Deus creia tam-
bém no homem.
Fica decretado que a violência doméstica acabará na casa de
conviventes.
Fica decretado que a paz reine a cada dia para que os dias infe-
lizes se acabem.
Fica decretada a virtude e a paz no coração, a alma que celebra
cantando alegria, alegria!

Artigo V: Da saúde

Fica decretado que tenha saúde na vida de cada um.


Foi-se decretado que ninguém dirá “estou doente”.
Fica decretado que em vez de doenças possa reinar a cura.
Fica decretado que a resiliência prevalecerá nas cabeças de
conviventes.
Fica decretado que nenhum livro seja publicado se ele for fonte
de desespero e do vazio na alma.
Fica decretado que todos serão alegres sem a “marca” da tristeza
em seus corpos.

Artigo VI: Da natureza

Fica decretado que a natureza é fonte de inspiração.


Fica decretado que todas as formas de natureza sejam respeitadas
plenamente em todos seus gêneros e que não modifiquemos os locais
onde se encontram.
Fica decretado que flores brotarão nas bocas de conviventes.

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 327


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
Fica decretado que as flores são a paisagem e a imagem da natu-
reza. Que são para que brotem com a chuva que cai para apaisar o
amor de todos!

Artigo VII: Do livramento

Fica decretado que ser feliz é amar a vida.


Fica decretado que todo ser humano terá direito à diversão desde
que não infrinja direitos alheios.
Fica decretado que todos os educadores compreendam que educar
é conduzir uma pessoa ensinando-a a conduzir-se.
Fica decretado que o Brasil será livre de qualquer desigualdade
social e racial.
Fica decretado que as crianças sejam a alegria do mundo e que
o homem sorria como uma criança brincando na chuva.
Fica decretado que as pessoas de baixa renda pobres sejam repletas
de alegria, com renda, saúde e educação.

Artigo final: Da livração

Nós, conviventes, usuárias e usuários dos serviços do SUS, sus-


citamos saúde para todos, inclusive mental.
Nós nascemos livres. Mas nossa liberdade ainda que tantã nos
veio tardiamente, depois de retiradas as grades manicomiais, para ali-
viar a mente.
Temos anseios. Temos esperança. Temos sonhos que conferem
sentido à vida.
E sonho é aquilo que ainda não pôde acontecer, mas que forceja
irromper e fazer história.
Este decreto é irrevogável e não poderá parar de ser modificado
sem prévia consulta aos outros seres...
Decreto que, a partir desta data, todos estarão em poesia!

328 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
QUEM SÃO OS SÃOS?

Ricardo Evangelista1

“Escolho meus amigos não pela pele ou outro arquétipo


qualquer, mas pela pupila.
Tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante.
A mim não interessam os bons de espírito nem os maus
de hábitos.
Fico com aqueles que fazem de mim louco e santo…”
Oscar Wilde

Antes de relatar minha experiência com o tema é imprescindí-


vel recordar a história. Recordar de coração e com razão. Assim é este
modesto relato.
A loucura é construção social que varia no tempo e na História.
É uma condição humana. Na Antiguidade ocidental a loucura que
cantavam os poetas era sagrada. Eram a ponte com o estranho e o des-
conhecido. As palavras do louco eram respeitadas como um saber. Até a
Idade Média a loucura era uma manifestação das forças cósmicas, ligadas
ao sobrenatural. Não se separava loucura de razão. Os loucos não eram
encarcerados, mas escorraçados das cidades, embarcados e transportados
para lugares distantes, em naus dos loucos de Bosch (ver pintura do artista
brabantino Hieronymus Bosch, 1450 — 1516). No século XVII são
excluídos e amontoados em hospitais gerais. O louco devia ser punido,
era perturbador da ordem, do status quo. No início do século XIX a
loucura passou a ser reduzida a uma doença mental e passa a ser tratada
por médicos psiquiatras. Período das internações forçadas e impostas pelo
sistema. Agora o louco é excluído dentro da cidade. Correções através
dos remédios e castigos em hospitais psiquiátricos. Assim nos ensina a
história da loucura, tão bem escrita por Michel Foucault.
1
Mineiro de BH. Poeta. Sociólogo. Agente público da PBH com 30 anos de carreira, meia dúzia de livros
de poesia, com especialidade em Cultura Afro-brasileira. Parceiro/colaborador do Centro de Convivência
Pampulha, atual Nise da Silveira.

329
As pessoas chamadas de loucas, há pouco tempo tinham como
única alternativa serem tratadas em hospitais, distantes de suas famílias
e do convívio em comunidade. Até a segunda metade do século XX
predominou no Brasil a discriminação e o controle do louco. Dominar
os “foras da ordem e do progresso e dos bons costumes da tradicional
família brasileira”, predominando um processo segregacionista, cruel
e violento. Essas pessoas eram consideradas “desajustadas” e “inconve-
nientes”, os “perturbadores da ordem”,“indesejados”, seres “perigosos e
anormais”, os tais “fora do padrão”. Assim, muitos seres humanos foram
desrespeitados em seus direitos básicos, internados em instituições à força
e esquecidos por meses, anos e décadas, em muitos casos. Esses hospitais
se transformaram nos famosos manicômios. Em Minas Gerais, o mais
conhecido foi o Hospital Colônia de Barbacena, denominado um dia
de “sucursal do inferno”, e que nas palavras da escritora e jornalista
Daniela Arbex, seria o “Holocausto brasileiro”. O Hospital Colônia foi
fundado em 1903, onde morreram 60 mil pessoas.
Ao Hospital Colônia eram levadas todas as pessoas que fugiam ao
padrão comportamental inventado para a época, tratadas como rebel-
des, indigentes e desviantes. Bastava uma bebedeira pela cidade para
serem enfiadas nos “trens de doido” e enviados rumo a Barbacena. A
experiência histórica a que me refiro esteve presente em minha família.
Meu tio, Oswaldo Alves de Almeida, depois de desaparecido
morreu no Hospital Psiquiátrico de Barbacena, de insuficiência cardíaca,
aos 33 anos de idade, em 10/08/1969, conforme certidão de óbito em
minha posse. Nos últimos anos venho me dedicando ao estudo dessa
dolorida memória familiar, pesquisando sobre o tema e o período, a
fim de escrever registro sobre “Quem matou Oswaldo?”. O objetivo
é valorizar a memória social para as gerações futuras.
É a história de uma família, é uma história de muitas famílias
mineiras e brasileiras. Sempre me despertou a curiosidade a respeito
da morte de meu tio Osvaldo. Falavam que ele era doente. Mas que
diabos de doença era aquela? Falavam sobre um tio que ficava parado
no mesmo lugar, sem sair para fazer necessidades fisiológicas durante
um, dois, três dias. Contavam histórias das internações de Osvaldo no

330 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
Hospital Santa Maria. Diziam que em crise era levado pela radiopa-
trulha, no início dos anos 60.
Em minha família tinha um ente querido que morrera no Colônia.
Como morreu? Ou quem matou? A partir daí fui fazendo conexões
com o histórico da família e mais ainda aguçou a minha necessidade
por respostas a essas perguntas. Fiz estudos, entrevistei parentes, vi
documentário, li e reli vários livros sobre o Hospital Colônia de Bar-
bacena, conversei com pessoas próximas a Osvaldo. Quando vi o filme
de Helvécio Ratton, “Em nome da razão”, nos anos 90, me impactei
profundamente. Depois vieram muitos livros sobre os tempos da Dita-
dura e a formação como sociólogo foram me despertando para escrever
sobre o assunto e engajando com a causa.
Ao longo de minha carreira como trabalhador do serviço público
da PBH (Prefeitura de Belo Horizonte) entrei em contato com a
luta antimanicomial na região da Pampulha, nos anos 90. Cheguei a
desenvolver diversas oficinas de poesia/escrita criativa com pessoas com
sofrimento mental no Centro de Convivência da Regional Pampulha,
sob coordenação e a convite da terapeuta ocupacional Wilma Ribeiro.
Trabalhava em minhas vivências a fala, o desenho, a escrita, as expressões
diversas, valorizando a memória e a criatividade de cada participante
com suas singularidades e respeito mútuo, o ritmo e a metáfora, a beleza
da palavra. Participei também como jurado das escolhas do samba da
luta, fiz palestra e contribuí para os Concursos da Piralógica Poética ao
longo desses últimos anos. Destaco que um dos muitos momentos
impactantes foi a participação, como arte-educador, na inesquecível
3ª Mostra de Arte Insensata da PBH, em oficinas com mais de trinta
pessoas, entre homens e mulheres, idosos e jovens, cada qual com sua
rica história de luta (2012). Lembro do tema “Tato, trato e retrato”. Foi
emocionante! O desafio proposto: a partir de um “se olhar no espelho”,
pendurado na parede, relatar a história de vida de cada participante, em
verso ou prosa. A riqueza de histórias, de afetos e expressões e olhares
do que é viver e sofrer numa sociedade transpassada pelo racismo, pelo
preconceito de classe, pela aporofobia (pobrefobia), pela misoginia,
pela homofobia, pelo segregacionismo, o negacionismo e a violência

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 331


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
cotidiana e permanente são infinitas e assustadoras. Experiências estas,
individuais e coletivas, que foram sedimentando a sensibilidade e minha
parceria com o Centro de Convivência, que hoje me faz participar da
memória dessa luta tão fundamental para cidade e o país.
Infelizmente, o Brasil continua uma “máquina de moer gente”,
como disse um certo dia o antropólogo Darcy Ribeiro. O Brasil oficial
é feito de silêncios, invisibilidades, histórias mal contadas, omissões e
morticínios.Vivemos um looping da barbárie social em plena pandemia
do Coronavírus.
Hoje percebemos o processo constante de sucateamento e
privatizações da coisa pública. Com a saúde mental não tem sido
diferente. A partir de 2018 o governo federal dá continuidade ao
processo de desconstrução da política de saúde mental, assim como
de todo o serviço público brasileiro. Propõe a indicação de ampliação
de leitos em hospitais psiquiátricos e comunidades terapêuticas den-
tro da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), incentivando assim o
retorno à lógica manicomial. O Ministério da Saúde também passa a
financiar a compra de aparelhos de eletroconvulsoterapia, objetivando
desfigurar a política de saúde mental e afrontar as diretrizes da política
de desinstitucionalização psiquiátrica, prevista na Lei 10.216/2001.
E concretamente deseja levar adiante o projeto de privatização da
Saúde, desmontagem do SUS e a corrosão das instituições democrá-
ticas do país.
Segundo diversos estudiosos e especialistas, a proposta do governo
Bolsonaro-Guedes é o prosseguimento da desconstrução da Rede de
Atenção Psicossocial (RAPS), com a inclusão dos hospitais psiquiá-
tricos como forma de execução desse desmonte. Aponta, dessa forma,
para enorme retrocesso nas conquistas da Reforma Psiquiátrica (Lei nº
10.216 de 2001). No Brasil tudo é mais complexo e a onda reacionária
está nos desafiando. Soma-se a visão mercadológica (negocionismo), que
predomina no campo medicamentoso (multinacionais das farmácias,
lobbies políticos poderosos), aliada ao falso moralismo dos costumes e
sofisticação da exclusão e da eugenia social (vide caso do escândalo da
vacina e da cloroquina em plena pandemia da Covid).

332 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
Nesses tempos de COVID 19, no qual hoje escrevo, após meio
milhão de pessoas mortas em junho2, observando luto e sofrimento
físico e mental de sequelados, exige-se de nós todos uma luta constante,
com coragem, criatividade e imaginação política e organização para
enfrentar essa onda de retrocessos em todos os campos. A pandemia da
Covid traz a urgente e necessária retomada da presença do Estado na
condução da crise, põe em pauta na ordem do dia a temática da Saúde
Pública e a valorização do Sistema Único de Saúde (SUS).
Os movimentos sociais são a essência de contestação e um dos
caminhos possíveis para a denúncia de tantas desigualdades que recaem
sobre o nosso povo, vitimando em sua maioria idosos, pobres e negros
e negras do Brasil periférico. Pois além do vírus, a bala e a forme estão
diariamente presentes em grande parte da sociedade. Sabemos que falar
de desrazão e limitações não é fácil numa sociedade tão competitiva e
escamoteadora de suas feridas, com tantas fomes físicas. Mas é um pro-
blema coletivo. Falar de sofrimento mental é falar de danos irreparáveis,
de sofrimento profundo no corpo e na alma humana.
Portanto, falar de Luta Antimanicomial é falar da luta de direitos
humanos e de respeito à vida. É clamar por respeito à construção difícil
e tortuosa da cidadania brasileira.
Viva a memória de nossa gente aguerrida, que não se nega a se
olhar no espelho e luta destemida!
Lutar é possível e necessário! Seja com poesia, palavra, som, ima-
gem, gesto, ação e a persistência de ficar vivo num país de cemitérios,
desmatamentos e despedidas.
A luta não tem fim!

2 
Refere-se a junho 2021.

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 333


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
O SONHO CONTINUA

Sílvia Maria Soares Ferreira


Eustáquio Martins da Silveira
Ninjão com a Comunidade1

A ASUSSAM-MG – Associação dos Usuários dos Serviços de


Saúde Mental de Minas Gerais foi fundada em 1994, no calor do
movimento da Luta Antimanicomial. Tem por objetivo lutar pelos
direitos dos portadores de sofrimento mental e seus familiares, pela
Luta Antimanicomial e pelos Direitos Humanos.
Em agosto de 2015, Eustáquio Martins, usuário do Centro de
Convivência Carlos Prates, comparece à reunião da ASUSSAM-MG
com o encaminhamento da Assembleia de Usuários daquele serviço,
onde os usuários constatam a demanda, não apenas do Centro de Con-
vivência, mas de onze serviços públicos no entorno e comunidade em
geral, de construção de um restaurante popular na regional Noroeste.
Os usuários apontavam a quadra de esportes desativada do INSS como
o local da possível instalação de um refeitório popular, nos moldes do
refeitório na Câmara de Vereadores, que fornecia 900 (novecentas)
refeições diárias.
Na ASUSSAM-MG deliberamos procurar a gerência da Secretaria
de Segurança Alimentar, cujo gerente, na gestão do prefeito Márcio
Lacerda, nos informa que o projeto de construção de um restaurante
popular na Estação São Gabriel, futura nova rodoviária de Belo Hori-
zonte-MG, encontra-se engavetado.
O gerente nos pede para fazer um levantamento da demanda
da região, fazendo um questionário sobre o interesse e necessidade
da população.
Usuários de onze serviços públicos foram entrevistados pela
ASUSSAM-MG e pelos usuários do Centro de Convivência. São eles:
1
Integrantes da Associação de Usuários dos Serviços de Saúde Mental de Minas Gerais (ASUSSAM).

334
Centro de Convivência Carlos Prates, UBS Padre Eustáquio, Unidade
de Referência Secundária, CREAB – Centro de Reabilitação, Centro
Municipal de Oftalmologia, CES – Centro de Educação em Saúde,
Alta Complexidade, INSS, CERSAM Noroeste– Centro de Referência
em Saúde Mental e CERSAMI Noroeste – Centro de Referência em
Saúde Mental Infanto-juvenil.
Conforme os usuários do Centro de Convivência já haviam
relatado em Assembleia, “muitas pessoas do interior vêm se consultar
no PAM – Padre Eustáquio ou no INSS e ficam o dia inteiro sem
comida”. E no preenchimento do questionário a população comentou
que a abertura do refeitório popular também iria abrir postos de trabalho
para a população.
No final de setembro de 2015 entregamos o relatório e os ques-
tionários preenchidos ao gerente dos Restaurantes Populares e este nos
informa que a conjuntura da prefeitura está bem complicada. Que nós
participássemos do próximo PPAG na Câmara de Vereadores.
No final de 2017 acionamos a gerente Eliza, do Centro de Con-
vivência Carlos Prates, para que nós, usuários, pudéssemos ocupar as
páginas do PPAG na Câmara com a demanda de um restaurante popular
na região. E foi um movimento muito bonito. Mais de quarenta pedidos
escritos pelos usuários do Centro de Convivência e ASUSSAM-MG.
A proposta, em termos de orçamento, estava subestimada e não
foi aprovada, mas o vereador do PT, Pedro Patrus, conseguiu uma
emenda parlamentar de Um Milhão e Quinhentos Mil Reais para a
realização do projeto.
Fizemos então um abaixo-assinado para pressionar o prefeito
Alexandre Kalil. Na ocasião, muitos usuários do Centro de Convivência
ficaram desanimados, mas a população dos prédios abaixo do Centro
de Convivência se mobilizou e ajudou a preencher o abaixo-assinado.
“Ninjão com a Comunidade”, usuário do Centro de Convivência
Carlos Prates e também da ASUSSAM-MG, deu uma força bacana
no recolhimento de assinaturas. Eustáquio, Elaine, professora do EJA,
usuária Adrienne, a gerente Eliza, dentre outros, contribuíram também.

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 335


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
O projeto encontrou obstáculos, com o fechamento de alguns
restaurantes populares, e em 2020 veio a pandemia. Então, a Prefeitura
precisou atender demandas emergenciais.
Em 2020, Pedro Patrus foi reeleito. Ele pretende anexar esse pro-
jeto à LOA (Lei Orçamentária Anual). Mas, como ele disse, mesmo que
tenhamos a verba desse projeto é preciso convencer o prefeito de sua
execução.Também a “Gabinetona BH” abriu inscrições para emendas
populares, e estamos escrevendo esse projeto para o PPAG 2022-2025.
A conquista de direitos humanos e sociais é fruto de intensas
batalhas, e delas não podemos jamais recuar. Com a parceria dos movi-
mentos sociais e o apoio dos serviços de saúde mental da RAPS BH
a luta continua. Sigamos juntos e mobilizados!

336 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
“ELES PASSARÃO... NÓS, PASSARINHO!”:
UMA ANÁLISE DOS DESAFIOS ATUAIS PARA A
LUTA ANTIMANICOMIAL

Daniela Tonizza de Almeida1


Giselle Campos Freitas Amorim2

“Todos esses que aí estão


Atravancando meu caminho,
Eles passarão…
Eu passarinho!”
Mario Quintana

Introdução

A criação e expansão dos serviços comunitários de saúde mental


ampliaram significativamente as possibilidades de desinstitucionalização
de pessoas submetidas a longos períodos de internação psiquiátrica,
bem como o acesso ao cuidado em liberdade para toda a população
com experiência de sofrimento mental e uso problemático de álcool
e outras drogas. Entretanto, depois de mais de quarenta anos de lutas
e avanços na construção de uma sociedade sem manicômios, o movi-
mento de reforma psiquiátrica brasileiro enfrenta, atualmente, uma série
de desafios para sua continuidade. Acontecimentos políticos recentes e
disputas entre diferentes grupos por financiamento estatal para serviços
orientados por lógicas distintas têm influenciado as políticas públicas,
acarretando precarização dos serviços territoriais e comprometendo o
projeto antimanicomial.
Este capítulo tem como objetivo circunscrever brevemente o
panorama histórico da reforma psiquiátrica brasileira, situando-o em
1
Terapeuta Ocupacional. Doutora em Psicologia pela UFMG. Gerente do Centro de Convivência
Carlos Prates.
2
Psicóloga, com Especialização em Saúde Mental pela ESP-MG (Escola de Saúde Pública de Minas
Gerais). Gerente do Centro de Convivência Oeste.

337
relação ao contexto sociopolítico e econômico atual, a fim de resgatar
alguns dos fundamentos que sustentam as práticas na Rede de Atenção
Psicossocial de Belo Horizonte.

O campo da Saúde Mental e os desafios para a continui-


dade da Reforma Psiquiátrica Brasileira

O campo da Saúde Mental surge em meio à crítica à racionali-


dade científica moderna, apontando tanto para uma ruptura epistemo-
lógica com os saberes e práticas psiquiátricas tradicionais quanto para
a invenção de novos conceitos e tecnologias capazes de responder às
demandas que surgem quando se aceita com radicalidade o desafio do
cuidado em liberdade.
Esse movimento de contestação da Psiquiatria como saber com-
petente e do hospital como locus natural para o tratamento da loucura
já vinha se desenvolvendo desde a segunda metade do século XX em
países como Inglaterra, França, EUA e Itália, os quais investiram na
criação de serviços de saúde comunitários extra-hospitalares. O repú-
dio aos genocídios perpetrados durante a Segunda Guerra Mundial
contribuiu para fomentar os Estados-providência e uma consequente
reformulação da assistência psiquiátrica nesses países (DESVIAT, 1999).
No Brasil, o movimento de reforma psiquiátrica inspirou-se,
especialmente, na experiência italiana de desinstitucionalização, única
que, na prática, foi capaz de romper totalmente com a lógica mani-
comial. Conforme indicava Basaglia (1991), “colocar a doença entre
parênteses” para que possa emergir o homem em sua relação com o
corpo social exige não só a desconstrução do aparato psiquiátrico e sua
substituição por outros meios de cuidado e acolhimento, mas a própria
transformação social.
Esse campo encontrou condições de desenvolver-se a partir do
movimento da Reforma Sanitária, o qual possibilitou a criação do
Sistema Único de Saúde (SUS) (BRASIL,1990). O movimento de
luta antimanicomial, que se inicia em 1978 a partir de denúncias de
trabalhadores e usuários acerca da violência e dos maus tratos existentes

338 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
nos hospitais psiquiátricos tradicionais, ganha força nesse cenário com a
ampliação de redes e serviços substitutivos ao longo dos anos de 1990.
A aprovação da Lei 10.216 (BRASIL, 2001) regulamenta os
direitos da pessoa com experiência de sofrimento mental e redireciona
o modelo assistencial em saúde mental prioritariamente para serviços
comunitários. Esta Lei fornece as bases para um alinhamento da Política
Nacional de Saúde Mental com as diretrizes da reforma psiquiátrica,
oferecendo-lhe maior sustentação e visibilidade.
Mais recentemente, a Portaria 3088/MS (BRASIL, 2011) ofe-
receu as diretrizes para a consolidação de Rede de Atenção Psicosso-
cial (RAPS), a qual deve funcionar de forma articulada à Rede SUS,
obedecendo aos seus princípios de regionalização e hierarquização e
garantindo aos usuários acesso a todos os dispositivos. Embora essa
portaria traga avanços normativos importantes, ao sancionar a inclusão
de Comunidades Terapêuticas e garantir a permanência do Hospital
Psiquiátrico (Serviço Hospitalar de Referência) como parte da rede,
deixa o caminho aberto para o fortalecimento de discursos de caráter
médico, judicial e religioso que reivindicam a remanicomialização
da assistência, principalmente pelo viés das drogas, com violação dos
direitos humanos de usuários com grave sofrimento mental e/ou em
uso prejudicial de drogas.

Práticas e discursos em disputa no cenário neoliberal

Todos os avanços na efetivação da reforma psiquiátrica enfrentam,


desse modo, um embate, intensificado nos últimos anos, com distintos
interesses corporativos, partidários e financeiros que atuam na manuten-
ção de práticas que promovem a internação e o isolamento dos usuários.
No plano político mais amplo, é notória a crise que o país atravessa,
desde 2016, com a ruptura do processo democrático. Essa ruptura foi
resultado de um golpe parlamentar, respaldado em legislação de exceção,
que deslegitimou e derrubou um governo eleito, através de amplo acordo
de interesses entre a elite financeira, a mídia, setores da oposição no

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 339


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
Congresso Nacional e o aparelho jurídico-policial do Estado (SOUZA,
2016; ANTUNES, 2018). Desde então, o papel do Estado na proteção
social vem sendo restringido paulatinamente, especialmente por meio
do congelamento do teto de gastos com saúde e educação por vinte
anos (BRASIL, 2016). Essa política tende a favorecer a precarização e
insuficiência da oferta dos serviços públicos e a facilitar a privatização
da assistência (SILVA; BATISTA; SANTOS, 2017).
Somam-se a isso reformas trabalhistas que vêm incidindo em
progressiva perda de direitos sociais, fragilizando os direitos dos traba-
lhadores através da terceirização irrestrita direta ou indireta (BRASIL,
2017a) e da flexibilização total dos contratos de trabalho e a prevalência
do negociado sobre o legislado (BRASIL, 2017b).
No campo do trabalho em Saúde, a contratação das Organizações
Sociais (OS) tem se tornado prática cada vez mais comum em muitos
municípios, eliminando o concurso público, contribuindo diretamente
para essa flexibilização e precarização dos vínculos trabalhistas, para o
enfraquecimento sindical, a perda da autonomia dos profissionais no
âmbito do SUS, a ênfase nas ações tecnicizadas e emergenciais, o assis-
tencialismo e o clientelismo (SILVA; BATISTA; SANTOS, 2017). A
precarização é intensificada não só no aumento dos contratos tempo-
rários, nos baixos salários e na terceirização da gestão dos serviços, mas
também no sucateamento das condições de trabalho e no impedimento
da necessária ampliação das equipes para atender ao aumento crescente
de volume e complexidade do trabalho.
No bojo desses retrocessos, o campo da saúde mental vem enfren-
tando fortes embates com setores mais conservadores. A um conjunto
de forças de alguns setores privados – que tentam enfraquecer o SUS,
aumentando as dificuldades para o seu pleno funcionamento e servindo
para justificar sua terceirização e privatização (BOLONHEIS-RAMOS;
BOARINI, 2015) – associa-se o progressivo aumento de financiamento
público para instituições de repressão e controle, em detrimento do
fortalecimento da RAPS.
A droga, enquanto dispositivo biopolítico, vem garantindo as
condições de possibilidade para a reedição de uma articulação do

340 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
poder médico-judicial para internações compulsórias de usuários
de crack, especialmente os que estão em situação de rua. Ambos os
saberes, médico e judicial, ao resguardarem a relação entre loucura
e periculosidade, estigmatizam o usuário e justificam intervenções
coercitivas que, em nome da proteção da vida, recaem de modo estra-
tégico sobre as populações mais vulneráveis, especialmente negros e
pobres (AZEVEDO; SOUZA, 2017).
Esse embate pelo viés das drogas, a princípio, se dá principalmente
com uma pressão das Comunidades Terapêuticas por financiamento
público e reorientação do modelo assistencial. Esse movimento, apesar
da resistência de setores mais progressistas, culmina na aprovação de
uma Política Nacional sobre Drogas contrária à legalização de drogas
consideradas ilícitas e às estratégias de redução de danos, focada na
abstinência e no apoio às Comunidades Terapêuticas e na repressão e
combate ao tráfico (BRASIL, 2019). Embora tal política não possa ser
considerada necessariamente nova, trata-se de uma lógica que retorna
revigorada, funcionando de forma totalmente distinta daquela orientada
pelos direitos humanos e princípios da reforma psiquiátrica.
Atualmente, corporações médicas se articulam politicamente
para a reconfiguração da RAPS. A tentativa de desmonte da Reforma
Psiquiátrica Brasileira se torna cada vez mais explícita por meio de
uma série de ações orquestradas por tais grupos para aprovar mudan-
ças legislativas e, ao mesmo tempo, desacreditar a reforma psiquiátrica
perante a opinião pública.
Uma dessas ações foi a aprovação da Portaria 3588/MS (2017),
que altera a configuração da RAPS, opondo-se às deliberações das Con-
ferências Nacionais de Saúde e de Saúde Mental e às recomendações
do Conselho Nacional de Saúde, instâncias máximas de participação e
controle social do SUS. Trata-se de um documento que prevê o redi-
recionamento de recursos públicos para hospitais psiquiátricos públicos
ou conveniados através de substantivo reajuste de diárias hospitalares e o
retorno de ambulatórios especializados que funcionam em uma lógica
diferente daquela do cuidado no território e que podem contribuir
diretamente para ampliação da medicalização dos problemas sociais.

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 341


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
O que está em jogo, mais do que uma disputa por modelo de
atenção e financiamento, é o conceito de saúde. De um lado, como
valor sem dimensão, direito universal e dever do Estado, diretamente
associado ao direito à liberdade e à vida, conforme prevê a Constituição
Federal (BRASIL, 1988). De outro lado, a saúde como mercadoria, ou
seja, como produto do trabalho humano colocado à venda para aten-
der interesses corporativos, de acordo com o que é mais relevante para
o mercado e o que pode produzir lucro – planos de saúde, indústria
farmacêutica, setor hospitalar privado, comunidades terapêuticas.
Associada ao seu valor de mercadoria, as práticas de saúde, nessa
perspectiva, também servem como medida de controle da população
marginalizada. Desloca-se, dessa forma, o objetivo de promover e pro-
teger a saúde para o de tratar doenças e restringir a liberdade de alguns
grupos populacionais.
A orientação de redução do Estado, das políticas sociais e dos
gastos públicos contrasta com os ideais do SUS, que preveem o acesso
universal a todo cidadão, assegurando a resolutividade de todas suas
necessidades de forma equânime (BRASIL, 1990). É dessa forma que o
neoliberalismo incide sobre a vida social, aprofundando a desigualdade
e banalizando a injustiça. A ideologia neoliberal opera na subjetividade
das pessoas, transformando cidadãos de direito em consumidores, que
passam a ser responsabilizados pela aquisição de bens e serviços de
Saúde, Educação e Segurança, cabendo ao Estado intervir apenas em
situações extremas.

A realidade de Belo Horizonte

Inspirada pela experiência italiana, a cidade de Belo Horizonte


assumiu, desde a década de 1990, o compromisso com um projeto
antimanicomial ambicioso que contou com grande investimento para
o fechamento dos hospitais psiquiátricos e o desenvolvimento de estra-
tégias de desinstitucionalização dos usuários. Além disso, implementou
ampla rede de serviços substitutivos, constituindo-se como referência
internacional de cuidado em liberdade. Atualmente, conta com uma

342 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
ampla rede assistencial que permite prescindir do Hospital Psiquiátrico
e das Comunidades Terapêuticas para sua articulação.
Nesse sentido, em um contexto macrossocial de crise política e
econômica, em que valores democráticos estão colocados em ques-
tão e os avanços normativos e institucionais da reforma psiquiátrica
brasileira encontram-se fortemente ameaçados, a RAPS de Belo
Horizonte é frontalmente atacada por se manter sustentando, no
cotidiano dos serviços, o desafio diário do cuidado em liberdade.
Sobre os ataques recentes à RAPS de Belo Horizonte, é neces-
sário reafirmar, primeiramente, que a rede de saúde mental de Belo
Horizonte é robusta, potente e viva. Essa rede segue os princípios
do direito à liberdade e à vida, do direito de não ser confinado nos
inóspitos e monstruosos hospícios, prescindindo destes e inventando
lugares e formas de fazer a loucura caber e circular na cidade. E é
exatamente isso que incomoda tanto os grupos retrógrados, anti-
democráticos e com ares fascistas que buscam excluir e segregar a
diversidade da cena da cidade. A cada hospício fechado, a cada lugar
de confinamento derrubado, vociferam e clamam por seu retorno.
Entretanto, essa rede potente persiste e insiste, não cede às tentativas
de golpe. Ela cresce, resiste, transmite e ensina que a loucura cabe na
cidade, doa a quem doer.
Essa rede e essa luta sustentada por muitos é tecida e construída
a muitas mãos. Usuários, familiares, trabalhadores, gestores, movimen-
tos sociais, controle social e parceiros são incansáveis nessa construção
e luta diárias. São muitos os trabalhadores investidos em construir e
sustentar essa potência e beleza. Nessa rede, não cabe corporativismo,
mas construção coletiva.
Os efeitos e resultados desse trabalho são evidentes e, ao mesmo
tempo, pouco divulgados pela mídia, quase sempre atrelada aos interesses
de grupos conservadores. Esses efeitos não estão apenas nos números
de atendimentos, de serviços criados, de dados frios e de objetivos
cumpridos. Eles estão fundamentalmente na beleza e na delicadeza dos
detalhes de cada ponto da rede:

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 343


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
• na importância dos projetos de vida retomados por aqueles
que passaram anos confinados e que agora têm uma casa para
chamar de sua;
• nas construções e ações de cuidado traçadas nos territórios da
cidade pelas equipes de saúde da família e saúde mental das
unidades básicas de saúde;
• nas intervenções firmes e decididas dos Centros de Referência
em Saúde Mental (CERSAM) para acolher e tratar a crise,
sem aprisionar;
• nas ações potentes dos “anjos de branco”, equipes dos Con-
sultórios de Rua, para resgatar a dignidade e visibilidade dos
sujeitos segregados e tratados como resto pela sociedade;
• na acolhida dedicada das Unidades de Acolhimento Transitório;
• nas intervenções carregadas de esperança e afeto do Arte da
Saúde - Ateliê de Cidadania;
• na aposta e investimento da Incubadora de Empreendimentos
Econômicos e Solidários, ao propor o empreendedorismo
para aqueles julgados incapazes;
• nas potentes ações de reabilitação psicossocial dos Centros
de Convivência, ao facilitar, fomentar e acompanhar os
sujeitos nas retomadas de laços e projetos de vida interrom-
pidos, tais como estudos e trabalho (através da Suricato e do
bem-sucedido Projeto de Inserção no Mercado Formal de
Trabalho). Na ampliação da circulação social, da autonomia
e resgate da cidadania, do estímulo à geração de renda e
produção artística e cultural e seu impacto na representação
social da loucura. A insistência em fazer caber a loucura
na cidade e dela se exibir plena, absoluta e livre. Grupos
culturais, mostras de arte insensata, festivais de música,
exposições, ocupação de importantes espaços culturais da
cidade, revelação de talentos e aptidões e de muitas des-
cobertas e invenções para seguir em frente, ultrapassando
barreiras e desconstruindo preconceitos.

344 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
Contribuindo nessa tessitura, temos os gestores que apoiam, ali-
nhavam, costuram, ajustam rumos, monitoram e estão juntos na busca
de soluções para os problemas e percalços. E, principalmente – grande
efeito e conquista –, o protagonismo dos usuários, que prescindem da
tutela do outro para dizer, desenhar e batalhar pela rede que querem,
merecem e sustentam.
Temos, enfim, os valentes, guerreiros e determinados atores do
controle social e dos movimentos sociais, que são quem podem e
devem, numa conjuntura democrática, acompanhar, fiscalizar, avaliar,
monitorar e denunciar os pontos de impasse e a necessidade de ajustes.
Não podemos esquecer dos parceiros, advindos dos mais diversos
campos, que nas interfaces da nossa construção cotidiana se engajam
nessa luta conosco, abrindo caminhos e possibilidades.
Portanto, caberia a tais grupos “atravancadores” cuidarem do que
lhes compete de fato: das atrocidades, violações de direitos, abusos e
desvios tantas e repetidas vezes denunciados e escancarados nos espa-
ços de reclusão e segregação que são os manicômios e comunidades
terapêuticas.

Considerações finais

Se há quarenta anos o entusiasmo da reconstrução democrática


estabeleceu novos alicerces para uma sociabilidade pautada na garantia
de direitos universais para as pessoas com experiência de sofrimento
mental, hoje o esforço dos trabalhadores é não sucumbir face ao avanço
das forças neoliberais e conservadoras que ferem as instituições que
emergiram desse processo, não permitindo que as fraturas objetivas
destruam as possibilidades de ação individual e coletiva.
Enfrentar tais desafios exige organização política e fortalecimento
de movimentos sociais em defesa não só de uma política de saúde
mental que respeite a singularidade e os direitos sociais dos usuários
e trabalhadores, mas de um projeto de sociedade que enfrente com
coragem as desigualdades sociais para que não se elimine a possibilidade
de convivência.

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 345


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
A nossa luta é por delicadeza. A nossa luta é permanente. Por
uma sociedade sem manicômios.

Referências

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de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018. E-book (Mundo do
Trabalho).
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Internação compulsória de pessoas em uso de drogas e a
Contrarreforma Psiquiátrica Brasileira. Physis: Revista de Saúde
Coletiva [on-line], n. 27, v.3, p. 491-510, 2017. Disponível em https://
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BASAGLIA, Franco. As instituições da violência. In: BASAGLIA,
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Rio de Janeiro: Edições Graal, 1991, p. 99-134.
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Altera o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para instituir
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346 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


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funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências.
Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm Acesso em 15 ago. 2021.
______. Lei 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e
os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona
o modelo assistencial em saúde mental. Brasília, DF: Presidência da
República, [2001]. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
leis/leis_2001/l10216.htm acesso em 15 ago. 2021.
______. Lei 13429, de 31 de março de 2017. Altera dispositivos da
Lei nº 6.019, de 3 de janeiro de 1974, que dispõe sobre o trabalho
temporário nas empresas urbanas e dá outras providências; e dispõe sobre
as relações de trabalho na empresa de prestação de serviços a terceiros.
Brasília, DF: Diário Oficial da União, [2017] a. Disponível em https://
www.normaslegais.com.br/legislacao/lei-13429-2017.htm Acesso em 15
ago. 2021.
______. Lei 13467, de 13 de julho de 2017. Altera a Consolidação das
Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de
maio de 1943, e as Leis nos 6.019, de 3 de janeiro de 1974, 8.036, de
11 de maio de 1990, e 8.212, de 24 de julho de 1991, a fim de adequar
a legislação às novas relações de trabalho. Brasília, DF: Diário Oficial
da União, [2017] b. Disponível em https://www.normaslegais.com.br/
legislacao/Lei-13467-2017.htm Acesso em 15 ago. 2021.
______. Ministério da Saúde. Portaria nº 3.088, de 23 de dezembro de
2011. Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento
ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack,
álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde. Brasília,
DF: Ministério da Saúde, [2011]. Disponível em https://bvsms.saude.gov.
br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt3088_23_12_2011_rep.html. Acesso em
15 ago 2021.

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 347


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
______. Portaria nº 3.588, de 21 de dezembro de 2017. Altera as
Portarias de Consolidação no. 3 e nº 6, de 28 de setembro de 2017, para
dispor sobre a Rede de Atenção Psicossocial, e dá outras providências.
Brasília: Diário Oficial da União, [2017]. Disponível em https://bvsms.
saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2017/prt3588_22_12_2017.html Acesso
em 15 ago. 2021.
DESVIAT, Manuel. A Reforma Psiquiátrica. Rio de Janeiro:
Fiocruz, 1999.
SILVA, Agnes Carine; BATISTA, Jessica Helen Santos; SANTOS, Wene
Carolina Mota. Desmonte e sucateamento do SUS: o ataque
neoliberal à política de saúde no Brasil. In: 7º. SEMINÁRIO DA
FRENTE NACIONAL CONTRA A PRIVATIZAÇÃO DA SAÚDE,
Maceió:UFAL, 2017. Anais eletrônicos [...] Maceió, 2017. Disponível
em http://www.seer.ufal.br/index.php/anaisseminariofncps/article/
viewFile/4009/2847 Acesso em 15 ago. 2021.
SOUZA, Jessé de. A Radiografia do Golpe: entenda como e por que
você foi enganado. Rio de Janeiro: Leya, 2016.

348 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
NÃO ME CALO NEM NO PRANTO1

Coletivo Centro de Convivência Barreiro2

Faz escuro em todo canto


Não me calo nem no pranto
Depois do golpe
Eu me levanto
É preciso anoitecer
Pra chegar o amanhã
Cantarei a liberdade ainda que Tam tam

Tanta coisa se passou


Busquei na história
Um motivo para lembrar
Lá em Bauru a utopia começou
Sonhos pra realizar
Sou criatura
Sem temer eu vou criar
Minha loucura te coloca para sambar
Minha arte não atura
Hospital que quer trancar

Faz escuro em todo canto


Não me calo nem no pranto
Depois do golpe
Eu me levanto
É preciso anoitecer
1
Samba-enredo campeão da Escola de Samba Liberdade ainda que Tam Tam para o Desfile do 18 de maio,
Dia Nacional da Luta Antimanicomial, em 2017.
2
Diego Hemétrio (Músico, Monitor das oficinas de música nos Centros de Convivência Arthur Bispo
do Rosário e Barreiro); Marcos Evando Martins (Cantor, Compositor e Instrumentista do Trem Tan Tan,
usuário do Centro de Convivência Barreiro); Raphael Sales (Cantautor, Músico, Monitor das oficinas de
música nos Centros de Convivência Barreiro e Oeste), e Rogério Rodrigues de Carvalho (usuário do
Centro de Convivência Barreiro).

349
Pra chegar o amanhã
Cantarei a liberdade ainda que Tam tam

Tempo vai e tempo vem


Muitos perigos rodeando a cidade
Vão condenando preto pobre de verdade
Até quando vão levar
Nossas crianças sem direito de sonhar?
E não me tire o que não pode me dar
Eu sou cidadão do mundo e não deixo de cantar
Ano passado eu sofri
Me golpearam, mas ainda estou aqui
O povo luta, vai ficar e resistir
O temeroso nunca vai nos iludir

350 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
Fonte: Márcia Assis

Parte III

PELA INVENÇÃO
IMAGÉTICA DA LETRA
351
Sua loucura | Antônio Francisco-Lau | bordado sobre projeção cartográfica, 37,5 x 55 cm, 2021 |
Centro de Convivência Cezár Campos

353
Escritos | Zé Maria | caneta sobre papel, 21 x 30 cm, 2017 | Centro de Convivência Barreiro

354 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
Escritos | Zé Maria | caneta sobre papel, 21 x 30 cm, 2018 | Centro de Convivência Barreiro

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 355


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
Camisas de futebol | Carlos Eduardo (Amaral) | técnica mista, 30 x 42 cm, 2020

Violão | Carlos Eduardo (Amaral) | caneta e lápis de cor, 40 x 40 cm, 2021 |


Centro de Convivência Arthur Bispo do Rosário

356 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
Sem Título | João Pereira | gravura e monotipia, 13 x 15,5 cm, 2019 |
Centro de Convivência Rosimeire Silva

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 357


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
A cadeira | Edmundo Veloso | nanquim e canetinha, 29 x 42 cm, 2021 |
Centro de Convivência Arthur Bispo do Rosário

358 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
Sem Título | Vicente Antônio | desenho, 30 x 42 cm, 2019 | Centro de Convivência Rosimeire Silva

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 359


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
Cachorro do mato | Antônio Francisco e Sônia Cristófaro | bordado e colagem sobre papel,
14,5 x 20,5 cm, 2021 | Centro de Convivência Cezár Campos

Presas em si | Rafael Bruno | colagem sobre papel, 29,5 x 21 cm, 2021 |


Centro de Convivência Cezár Campos

360 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
Quanto custa seu silêncio | Inácio Arnoni | grafite sobre papel, 20,5 x 28,5 cm, 2021 |
Centro de Convivência Cezár Campos

Travessia da Escuridão | Rogério Gomes | colagem, 20,5 x 28,5 cm, 2021 |


Centro de Convivência Cezár Campos

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 361


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
O cara | Fábio Henrique | nanquim sobre papel, 21 x 30 cm, 2021 |
Centro de Convivência Arthur Bispo do Rosário

362 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
A Boca | Jerry Antônio | nanquim, 21 x 30 cm, 2021 | Centro de Convivência Arthur Bispo do Rosário

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 363


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
Sem Título | Farley Francy | nanquim sobre giz
pastel, 21 x 30cm, 2020

Sem Título | Farley Francy | nanquim sobre giz pas-


tel, 21 x 30 cm, 2020 | Centro de Convivência Oeste

364 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
Mulher sentada | Eloy Arruda | nanquim sobre papelão, 15 x 15 cm, 2020

Homem sentado | Eloy Arruda | nanquim sobre papelão, 15 x 15 cm, 2020 |


Centro de Convivência Oeste

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 365


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
Sem Título | Carlos Pape | colagem e monotipia, 23 x 25 cm, 2019 |
Centro de Convivência Rosimeire Silva

Sem Título | Odete Fernandes | colagem e monotipia, 22 x 24 cm,


2019 | Centro de Convivência Rosimeire Silva

366 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
Sem Título | Christiano Gomes | colagem e desenho, 14 x 19 cm,
2017 | Centro de Convivência Rosimeire Silva

Sem Título | Adélio Franco | colagem e desenho, 14 x 19 cm,


2017 | Centro de Convivência Rosimeire Silva

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 367


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
Sem Título | Jack Gonçalves | acrílico sobre tela, 60 x 70 cm | Centro de Convivência Carlos Prates

368 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
Sem Título | Jack Gonçalves | lápis de cor sobre papel, 29,7 x 42 cm

Sem Título | Jack Gonçalves | lápis de cor sobre papel, 29,7 x 42 cm

Sem Título | Jack Gonçalves | lápis de cor sobre papel, 29,7 x 42 cm |


Centro de Convivência Carlos Prates

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 369


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
Sem Título | Gilberto Rizzon | Sem Título | Gilberto Rizzon |
guache sobre jornal, 33 x 46 cm | guache sobre jornal, 38 x 53 cm |
Centro de Convivência Marcus Matraga Centro de Convivência Marcus Matraga

Sem Título | Marcio Gonçalves | Sem Título | Marcio Gonçalves |


acrílica sobre papel couchê, 32 x 46 cm | acrílica sobre papel couchê, 32 x 46 cm |
Centro de Convivência Marcus Matraga Centro de Convivência Marcus Matraga

370 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
Sem Título | Intervenção coletiva no Viaduto Santa Tereza | 2016 |
Centro de Convivência Rosimeire Silva

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 371


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
Sem Título | Nilo Fernando | lápis de cor sobre papel, 29 x 42 cm, 2020 |
Centro de Convivência Arthur Bispo do Rosário

Cultura | Rodrigo Ribeiro | intervenção de giz sobre parede, 2,4 x 2,80 m, 2021 |
Centro de Convivência Carlos Prates

372 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
Sem Título | Davi Nascimento | caneta esferográfica sobre
papel, 20 x 31 cm, 2017

Sem Título | Davi Nascimento | caneta esferográfica sobre papel,


21 x 30 cm, 2017 | Centro de Convivência Arthur Bispo do Rosário

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 373


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
Sem Título | Rose Ramos | tinta acrílica e bordado sobre tela, 53 x 60 cm |
Centro de Convivência Marcus Matraga

374 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
Baleia em alto mar | Antônio Francisco | bordado sobre projeção cartográfica, 37,5 x 55 cm, 2021 |
Centro de Convivência Cezár Campos

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 375


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
Sem Título | Marcio Gonçalves | bordado em tecido,
15x18cm | Centro de Convivência Marcus Matraga

Sem Título | Gilberto Rizzon | bordado em tecido, 15


x 18 cm | Centro de Convivência Marcus Matraga

Sem Título | Marcio Gonçalves | bordado em tecido,


15x18cm | Centro de Convivência Marcus Matraga

376 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
Eu me esqueci | Izabel | bordado sobre tecido, 13 x 16 cm, 2018 |
Centro de Convivência Arthur Bispo do Rosário

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 377


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
Meu redor | Igor Alves | bordado sobre tecido, 70 x 80 cm, 2020 | Centro de Convivência Oeste

378 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
Sem Título | Maria Luzia Vieira | bordado sobre americano cru,
36 x 34 cm, 2021 | Centro de Convivência Nise da Silveira

Sem Título | Juliana de Paula Soares | bordado sobre americano cru,


34 x 38 cm, 2021 | Centro de Convivência Nise da Silveira

Sem Título | Marília Maciel | bordado sobre americano cru, 26 x 23 cm, 2021 |
Centro de Convivência Nise da Silveira

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 379


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
Andar com fé eu vou | Trabalho coletivo | bordado sobre
tecido, 97 x 160 cm, 2017 | Centro de Convivência Barreiro

Minas é bão | Claudia Aguiar da Cruz | 38 x 52 cm, 2016 |


Centro de Convivência Barreiro

380 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
10 atitudes | Itamar Martins (Bombrilhão) | bordado sobre tecido | Centro de Convivência São Paulo

VIDA EM COMUM: FUNDAMENTOS, COTIDIANO E ENCONTROS 381


DOS CENTROS DE CONVIVÊNCIA COM A CIDADE
Sem Título | Rose Ramos | bordado em tecido, 25 x 37 cm | Centro de Convivência Marcus Matraga

382 DANIELA TONIZZA DE ALMEIDA | GISELLE CAMPOS FREITAS AMORIM


MAÍRA PAIVA | SANDRO BOAVENTURA (ORGANIZADORES)
Esse livro foi impresso no formato 15,5x21,5 cm, em papel pólen bold 90g,
tipologia Gill Sans, na Gráfica XXX.

Belo Horizonte, agosto de 2022.

IMPRESSO NO BRASIL/PRINTED IN BRAZIL

Editora Ramalhete
www.editoraramalhete.com.br | www.lojaeditoraramalhete.com.br

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