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VIDA EM COMUM:
fundamentos, cotidiano e encontros
dos Centros de Convivência com a cidade
PRIMEIRA EDIÇÃO
REALIZAÇÃO:
Belo Horizonte
2022
Copyright © Daniela Tonizza de Almeida | Giselle Campos Freitas Amorim
Maíra Paiva | Sandro Boaventura (organizadores), 2022.
Vários autores.
ISBN 978-65-88959-83-1
1. Política de Saúde Mental 2. Serviços de Saúde Mental 3. Rede de Atenção Psicossocial I.Título.
CDD: 362.10981
Os conceitos, afirmações e opiniões emitidos nos artigos publicados neste livro são de responsabilidade exclusiva de
seus autores.
Distribuição gratuita
Proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem autorização, por escrito, do(a)
autor(a) e da editora.
Este livro foi revisado segundo o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
A todos aqueles que nos ensinaram a resistir ao manicômio com seus
mantos bordados, tal Bispo, desenhos ou papéis pelas ruas, com
Gentileza, a salvação pelo lixo, com Estamira, bom brilhantismo e ágeis
sambas nos pés…
Aos usuários que tecem a rotina dos nossos serviços.
E se, de repente
A gente não sentisse
A dor que a gente finge
E sente
Se de repente
A gente distraísse
O ferro do suplício
Ao som de uma canção
Então, eu te convidaria
Pra uma fantasia
Do meu violão
Generosos presentes
palavra pede pele. pede passagem. pratica ponte entre pessoas. palavra
perto. preserva o pensamento. presta para o corpo. pira. paira. para o
tempo. possuir parte da palavra é pouco. é preciso ponto. pouso. peso.
composição. piscar e pisar a palavra no papel. palpitar. pulsar a palavra
no peito. passar a página. pintar a palma da mão. do pé. palavra causa
pacto. impacto. persiste. insiste. resiste. como pixo. como pintura. como
coisa pronta pra partir e ser. palavra é letra presente. reside em nós.
desata os punhos. permanece pronta. passa por tudo. por bordas. con-
tornos. transtornos. palavra é política. pacífica. periférica. cada palavra
tem sua própria história particular. porque percorreu passos. países.
delírios continentes. palavra liberdade é principal. porque luta. perturba.
provoca. potencializa. aponta para a arte. poesia desenhada. palavreada
com pincéis. haicais. telas. bordados. pingos de letras. pontas de lápis.
pensamentos poéticos convivem entre si. dançam próximo. conversam.
atuam. cantam sem pontuação. pedem prosa. poema é permitido em
linha. traço. rasgo. recorte. possui para si o ato de produzir voz. pre-
sença. palavra que é paisagem. retrato. artesanato da escrita. registro de
expressão. grafia possível. pedaço de som. textura de ilustração. palavra
que alinhava. apazigua. palavra catada vira manto. protege. o lugar de
fala de cada palavra é o encontro entre. o intervalo convivente. a cidade.
o cotidiano. lugar plural. toda palavra pede tratamento. quer cuidado.
partilha de afeto. saúde. invenção de vida. nome próprio para existir.
PARTE I
PELO ATO DE CONVIVER
UM MERGULHO NO BISPO.................................................................78
Stefano Fontana
A CONVIVÊNCIA AO PÉ DA LETRA.................................................80
Sandro Boaventura
HISTÓRIAS BORDADAS.........................................................................90
Regina Cazita
ARTE E LOUCURA...................................................................................93
Valéria Almeida
PARTE II
PELOS LITORAIS DA CONVIVÊNCIA
A CONVIVÊNCIA AO LITORAL........................................................157
Sandro Boaventura
O HOMEM “COLIBRI”..........................................................................262
Jéssica Amaral Rodrigues
O SONHO CONTINUA.........................................................................334
Sílvia Maria Soares Ferreira
Eustáquio Martins da Silveira
Ninjão com a Comunidade
PARTE III
PELA INVENÇÃO IMAGÉTICA DA LETRA
Fonte: Karina Ferreira
Parte I
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CONVIVER É UM ATO
31
Convivência tem rito, não tem atrito
É trem bonito quando é feito pelo coração
Convivência às vezes é chata mata
Mas desata sem data quantas vezes ata!
Quando a convivência se torna conveniência
Perde essência
Na convivência sempre tem outra chance outro lance
Convivência também é desgaste nervo futuro passado e acervo
A arte sublima a convivência
Põe-na numa condição acima
Convivência com arte é outra
Convivência faz parte de um tratamento da alma
Com mais calma tira os traumas
Melhora a saúde restabelece plenitude
A convivência não é só nós
Centros de Convivência
A família é um Centro de Convivência
E o Centro de Convivência se torna uma outra família
Fernando Siqueira1
Luiz Carlos Penna Chaves2
Vânia Dolher de Santa Inêz Souza Baker3
33
atendimento de todas as pessoas que necessitam de cuidados em saúde
mental em seus diferentes processos de adoecimento e sofrimento
mental. A Reforma psiquiátrica é um processo em curso, que apesar
dos muitos avanços em várias cidades do país, em especial em Belo
Horizonte, ainda sofre ameaças de retrocessos e ataques constantes
pelos que defendem o Hospital Psiquiátrico, que exclui e segrega as
pessoas das possibilidades da convivência nos territórios e do cuidado
em liberdade. O modelo sustentado pela Reforma Psiquiátrica Anti-
manicomial no Brasil é celebrado internacionalmente, sendo inclusive
utilizado como referência pela OMS em sua nova diretriz de saúde
mental lançada no dia 10 de Junho de 2021 (WHO, 2021). Esta dire-
triz orienta internacionalmente a substituição do modelo biomédico
pautado na internação por serviços abertos e comunitários.
A GRSAM desenvolve ações que sustentam os cuidados em saúde
mental através do funcionamento da Rede de Atenção Psicossocial
em Belo Horizonte (RAPS-BH) na lógica antimanicomial, articulada
em diversos pontos de cuidado, com forte investimento na ampliação
dessa rede, que se propõe a cuidar de pessoas de todas as idades, com
experiência de sofrimento mental e/ou em uso prejudicial de álcool e
outras drogas, de forma humanizada e privilegiando o tratamento em
liberdade, a singularidade, a conquista da cidadania e a inserção social.
A ética de Redução de Danos é orientadora do cuidado nos
diversos serviços da RAPS-BH. Redução de danos hoje é um conceito
ampliado, que vai além do uso de álcool e outras drogas, pois avança
para o entendimento dos estilos de vida, hábitos e discute alternativas
livres de escolha e possibilidades.
As ações de cuidado em saúde mental e de reabilitação psicosso-
cial oferecidas aos usuários dos serviços de saúde mental do SUS-BH,
possibilitam caminhos para a produção de vida e buscam não limitar
seus projetos terapêuticos à diminuição ou remoção dos sintomas
psiquiátricos, mas cuidam, promovendo a liberdade, a convivência, os
laços com o território e a cidade.
A RAPS-BH é composta pelos seguintes dispositivos, serviços
e programas:
Referências
Karen C. Zacché1
Rosimeire Silva (in memorian)
Introdução
40
posterior segregação do louco, que ao final do século XVIII passou a
ser percebido como doente mental com a invenção do saber médico
sobre a loucura (FOUCAULT, 1987). A Psiquiatria nasceu propondo
a exclusão de alguns indivíduos e assumiu as chaves da fortaleza do
confinamento, passando a não só se ocupar dos loucos, mas também
a exercer o mandato social de falar em nome desses. Pela boca da
Psiquiatria fala a razão e, em nome da razão, os “doentes mentais” são
segregados e excluídos do convívio social.
Entre nós, a história da Psiquiatria revelou os limites da desuma-
nidade com que o exercício deste poder conduziu a prática terapêutica.
Os lugares de tratamento não se distinguiam, em nada, da violência
cotidiana exercida nos campos de concentração, analogia essa estabele-
cida por Franco Basaglia no momento de sua visita a uma das institui-
ções psiquiátricas brasileiras, provocando inquietação e possibilitando
o início do processo de transformação do cenário do tratamento em
saúde mental.
Podemos afirmar que o tratamento moral nunca foi abandonado
como terapêutica no tratamento ofertado aos loucos, nem mesmo com
o desenvolvimento da indústria farmacêutica. Poderíamos supor que,
controlando os sintomas da doença mental com o uso dos recursos
medicamentosos, poder-se-ia abrir mão da prisão como condição
destinada a quem dela sofria; mas isso não aconteceu, pelo menos não
a partir daí.
O livro “Nos porões da loucura”, resultado de reportagens do
jornalista Hiram Firmino publicadas no jornal Estado de Minas em
1979, lançadas em livro em 1982 e nas quais é baseado o filme “Em
Nome da Razão” (1979), além de um livro mais recente, de 2013,
“Holocausto Brasileiro”, da jornalista Daniela Arbex, são documentos
preciosos para demonstrar que nos manicômios não imperava a ques-
tão dos cuidados. O que se constatava era, antes e acima de tudo, o
abandono e o descuido. A loucura trazia consigo a ruptura dos laços e
a internação fortalecia essa ruptura pela via do isolamento, oferecendo
um cotidiano sem vida e vazio de sentido. Somando-se a esse fato, vale
lembrar que a imagem que se construiu do louco ao longo do tempo foi
Referências
49
julgamento de valor, mas apenas a constatação de uma diferença no
modo de operar esses dispositivos.
Quando recebi o convite da Giselle eu nem perguntei para o que
era. Aceitei o convite e depois fui me dar conta de que era para contar
a história, para falar um pouco da história dos Centros de Convivên-
cia, e aí não tem como a gente também não se dar conta de quando a
gente é chamado para contar história é porque a gente está ficando um
pouquinho velho. Só conta a história quem já viveu, quem já passou
por ela. Recebi o texto de preparação do encontro3 e aí fiz um percurso
de leitura e fui me surpreendendo com várias coisas, especialmente na
fala dos usuários, e queria um pouco comentar esses pontos também.
Mas antes, já que é para falar de história, certamente os Centros de
Convivência foram os dispositivos que tanto como coordenadora,
mas bem antes de coordenadora, eu tive o privilégio de acompanhar
a construção desses dispositivos na cidade. Muito antes de ser da saúde
mental eu já acompanhava essa empreitada e essa tentativa de construção
desses novos dispositivos.Vou dividir aqui, a memória com Betânia, da
tentativa de implantação do Centro de Convivência Oeste, quando eu
trabalhava ainda na Secretaria de Assistência Social e aí o que consegui
reter na minha memória desse percurso e dessa história marcava a saúde
mental, pelo que me lembro, com esses dispositivos a opção por criar
um lugar dentro da saúde mental, que já fizesse, a partir desses disposi-
tivos, um diálogo mais estreito com outras políticas públicas. No início
dos Centros de Convivência pude acompanhar, mais como militante
da luta antimanicomial e também como trabalhadora da assistência,
a tentativa de criar os dispositivos em parceria, principalmente com
política de cultura do município. Uma tentativa que não resultou muito
exitosa e que levou a uma reconfiguração da forma de organizar os
serviços. A expectativa era, naquele momento, que a cultura pudesse
financiar, como fazem em outros lugares no Brasil, os trabalhadores
dessas equipes, dada a configuração própria da política de cultura, o
seu modo de funcionamento absolutamente fragmentário e diverso da
3
Rosimeire Silva refere-se aqui a uma compilação de respostas de usuários, familiares e trabalhadores da
rede à pergunta sobre o tema do Encontro. A compilação e análise das respostas feita por Sandro Boaventura
e Giselle Amorim foi apresentada aos presentes por esta última no segundo turno do evento.
Obrigada!
5
Neste momento da conferência, Rosimeire fez leitura completa da Letra da música “Fantasia”, álbum
“Vida”, de Chico Buarque, 1980.
1
Usuário do Centro de Convivência Marcus Matraga e bacharel em Psicologia.
57
Seção 2
UM MERGULHO NO COTIDIANO:
OS VOOS NAS OFICINAS
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MUNDO DOS SONHOS
Máscaras de escravos
Rabiscos de um velho Picasso
Canções de antigos amigos que deixaram pra nós
Dó Re Mi Sol Lá Si faz
Um cachepô de flor para eu plantar
1
Usuário do Centro de Convivência Rosimeire Silva.
61
OFICINAS: A CONVIVÊNCIA QUE SE CONSTRÓI
A PARTIR DE UM FAZER JUNTO
62
Atividade humana: um direito e uma necessidade
Referências
Maíra Paiva1
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Minha maior dificuldade nessa época foi desenvolver uma prática
de trabalho arteterapêutico com pacientes de permanência tão flutuante.
As oficinas eram realizadas três vezes ao dia, em alas hospitalares dife-
rentes, com pacientes diagnosticados com vários sofrimentos mentais.
Além dessa rotatividade grande de pessoas internadas, o que
impedia estabelecer algum laço mais expressivo, era inviável produzir
qualquer projeto terapêutico em arte, de natureza mais subjetiva. Eu
me via sozinha nesse exercício do trabalho e sem a perspectiva de quase
nenhum compartilhamento com outros profissionais. O muro não me
possibilitou construir redes.
Desse “muro de dentro” só posso dizer sobre o choque. A com-
paração. A sensação que foi estar do lado de dentro e hoje do lado de
fora: “estar murada” era também estar assinada, só que pelos outros.
Cercada, ali, não é você mesma que assina seu próprio nome. Seu nome
se perde, como o corpo, contornado por tantos outros, confundido entre
achar-se e perder-se em um espaço que não se reconhece.
Stefano Fontana1
78
Na segunda-feira, às 8:30, estive na porta do Centro de Convi-
vência e lembro como Maíra, a ”formiga atômica”, apareceu no topo
da subida, perto do Centro de Convivência. Meu coração disparou,
sabendo que a “oficina de poesia” logo começaria e que eu e meus
colegas poetas iríamos escrever, declamar e ouvir nossos poemas em
uma mandala convivial.
Continuo a lembrar, minha pele agora canta em voz alta.
Estou tremendo.
Lembro-me do silêncio ensurdecedor em que nós, poetas, com-
pusemos nossos escritos. Naquele momento, naquele espaço, a respira-
ção da cidade estava suspensa; um silêncio que não era o de “prisão”,
mas uma catarse evocativa de uma rasa vedica2 , um lugar de sugestão
e ressonância coletiva.
Uma ação aparentemente de solitária imersão, onde prende-se a
respiração para descer, lá longe, envoltos em um misto de embriaguez e
medo, mas com a certeza de que certamente ninguém teria se afogado.
Sabíamos muito bem três coisas: que os poetas se apoiam uns nos
outros; que os poetas recolhem suas pedras preciosas para oferecê-las e
que essas pedras se tornariam colares poderosos no pescoço de outros
poetas. Colocamos os lápis no papel e começamos a declamar: bocas,
olhos, mãos, palavras.
Fecho minhas pálpebras e tudo está presente novamente.
Andorinha lê devagar, Grillo corre com as palavras, Billy sussurra,
Elon faz longas pausas, Calango do Serro acaricia as palavras e eu... eu
estou aqui, e abro os olhos.
Agora sim! Lembro-me bem o que permitia que a água da minha
nascente fluísse livremente quando estava no Centro da Convivência,
e como os jatos davam forma a uma fonte abundante e restauradora.
Agora minha pele fica em silêncio, um leve frio passa pelo meu
corpo. A memória está se transformando em saudade, em um sonho
lúcido do que seremos.
2
Rasa é um termo da tradição védica que se refere às artes performativas (incluindo a poesia) e significa
“sabor”, “gosto” que é evocado no corpo pela prática artística.
Sandro Boaventura1
1
Sujeito do p de palavra, poesia, performance e psicanálise. Monitor das oficinas de Letras, Teatro e
Performance nos Centros de Convivência Carlos Prates e Oeste da Rede SUS-BH/MG. Licenciado e
bacharel em Língua Portuguesa e suas literaturas pela Faculdade de Letras da UFMG. Ator formado pelo
Teatro Universitário da UFMG. Psicanalista.
2
Em nota da tradutora da edição em Português é explicado que o original em francês desta epígrafe é rico
em polissemias. Destaco para este texto, sobretudo, a observação de que lettres volées, do original, podem
ser tanto “cartas roubadas”, ou “voadas”, quanto as letras que voaram.
80
O que se pode, então, ter em vista da “letra” em Lacan para as nossas
oficinas de Letras? Mais, ainda: da noção de “letra” podemos extrair uma
orientação para outras oficinas dos nossos centros? Para responder a estas
questões recortamos de Lacan um pouco do seu comentário sobre o
misterioso conto “A carta roubada”, do escritor norte-americano Edgar
Allan Poe, seguindo as pistas deixadas por Lacan, tendo em vista também
a leitura dele feita pelo psicanalista Ram Mandil no primeiro capítulo
do livro Efeitos da letra: Lacan leitor de Joyce. Pelas pistas, vamos ver como
nos rastros de “A carta roubada” se revela o deslizamento de a letter,
uma carta-letra, para a litter, um lixo, deslizamento que se deu a partir
de trocadilho que fizeram em torno do escritor irlandês James Joyce.
No enredo do conto de Poe, os destinos de uma carta furtada, desviada
de uma rainha se dão, não pelo seu conteúdo – o qual fica, inclusive,
desconhecido para quem lê o conto – mas por sua materialidade, pelo
seu trânsito como objeto manuseável. Extraindo daí o destaque dado ao
“objeto manuseável”, o associaremos com apontamentos feitos por duas
psicanalistas sobre a relevância da “produção material”, de objetos com
um endereçamento, na prática das oficinas. Em seguida, acompanhare-
mos a experiência do cotidiano delas, em que esses objetos transitam
pelo Centro de Convivência nas mãos de um usuário e voam avulsos da
bagagem de uma outra até se tornarem o livro dela. Por fim, relatam-se
propostas e vivências ao “pé da letra” nas oficinas.
A partir da noção de “letra” em Lacan podemos encontrar uma
orientação para a prática das oficinas? No percurso de seu ensino, a noção
de “letra” é relevante desde “O seminário sobre ‘A carta roubada’”, de
1957, passando pelo artigo “Lituraterra”, de 1971. No primeiro, Lacan
diz:“A letter, a litter, uma carta, uma letra, um lixo. Fizeram-se trocadilhos,
no cenáculo de Joyce, com a homofonia dessas duas palavras em inglês”
(LACAN,1998, p.28). E retoma a questão no segundo, tomando em
seu artigo como ponto de partida o “equívoco com que Joyce (James
Joyce, digo) desliza de a letter para a litter, de carta letra/carta (traduzo)
para lixo” (LACAN, 2003, p.15). O lixo, como veremos em breve, a
ser tomado aqui no sentido daquilo que se destaca, do que se pode
manusear, sobre o que encontraremos ressonâncias nos relatos de casos
e das práticas nas oficinas presentes aqui na segunda parte deste texto.
Agradecimento
Referências
Regina Cazita1
90
Certa vez, propus uma atividade que consistia em construirmos
uma toalha de mesa, mais especificamente uma toalha de banquete
coletiva. Esta seria composta pela costura de pedaços de tecidos traba-
lhados por cada usuário e usuária. A ideia era juntar as singularidades, as
histórias de cada um contadas através dos traços e bordados delicados,
feitos cuidadosamente para compor aquele trabalho. Cada um teve
seu papel no projeto coletivo, sendo essa participação fundamental
para o processo criativo e integração dos usuários. Além de expressão
de maneira artística que eles brilhantemente colocavam nos bordados,
seria uma forma de aproximar ainda mais os usuários e promover a
conversa entre os estilos de cada um. Isso ajudou bastante na troca de
experiências e diálogo entre todos. Os usuários e as usuárias passa-
ram a conversar mais entre si e a se conhecerem melhor. A atividade
possibilitou que pudéssemos construir juntos uma história coletiva na
toalha de banquete de histórias expressadas no pedacinho de tecido
feito por cada um.
Aos poucos o entusiasmo tomou conta tanto da equipe quanto
dos usuários, que agora se interessavam em aprender novos pontos,
novas técnicas – de tudo um pouco para abrilhantar ainda mais os seus
trabalhos. No processo, as histórias em cada pedaço de tecido foram
alinhavadas todas juntas. Ao final, a toalha confeccionada pelos usuários
ficou linda, atraindo os olhares de todos! Além disso, o processo foi
gratificante e prazeroso. Pudemos compartilhar de experiências de vida
encantadoras; cada pedaço construído contava a singularidade de cada
um em um trabalho coletivo.
Percebo que o trabalho desenvolvido no Centro de Convivência
tem efeitos de grande relevância na vida dos usuários. Desperta o inte-
resse em aprender coisas novas, levando a pesquisas, novos aprendizados,
um trabalho mais rico e diversificado, que pode favorecer para alguns
a geração de renda. O envolvimento com o trabalho nas oficinas traz
momentos de relaxamento, prazer, alegria e pausa no sofrimento. E na
convivência, abertura para novos amigos, namoros, casamentos, para
o convívio em geral, ampliando horizontes, levando a expectativas de
uma vida melhor e de outras conquistas.
Valéria Almeida2
93
Aos poucos se transformam numa linguagem pintada, bordada,
cantada, organizada e descolada do sofrimento imediato.
A arte expressa o insensato através da prática de uma produção
que muitas vezes aparece em estado bruto.
Em um momento, a voz grita, o desejo de se cortar aparece,
Rosa avisa. Então, a tinta vermelha é ofertada junto com as folhas de
papel. Logo, entorna na mesa, espirra no corpo, ensanguenta de rubro,
contendo, por um tempo, o desejo de morte.
Em outro momento é preciso emprestar o corpo ao delírio do
outro, pedindo licença aos “amigos invisíveis” para que ele possa dese-
nhar livremente, aliviando um sofrimento intermitente.
A experiência da arte por vezes também possibilita que pessoas
que circulam pela cidade, fazendo uso prejudicial de álcool e outras
drogas possam vivenciar o possível e reduzir seus excessos. Negociar,
renegociar, arriscar, ouvir, ofertar, encontrar laços onde as barras e bordas
aparecem sutilmente possibilitando um intervalo e um encontro com
um outro, com uma atividade, consigo mesmo...
Da mesma forma, os eventos, passeios e viagens são ações que
transformam, recolocam e permitem a todos se reconhecerem como
pessoas comuns.
Como diria Paul Gauguin:“Fecho bem os olhos para ver o que pinto”.
A produção artística tem a capacidade de aplacar o sofrimento da loucura.
Bispo do Rosário tinha que unir esses dois nomes próprios ligados
à tentativa humana de enfrentar a loucura e a fé.
Cavalos com pernas imensas, relógios derretidos, homem que
vira inseto, objetos suspensos no ar…
Dali, Kafka, Niemeyer…
Mas também Margarida. Circulante, flutuante, dita como desa-
justada, cômica, divertida, com rompantes agressivos e repetidos e, por
vezes, violentos e ameaçadores, especialmente aos olhos daqueles que
não conviviam de perto. Porém a aproximação e o afeto despertavam
uma “normalidade” desconhecida no espaço comum da oficina.
96
brincadeiras, lembranças, invenções, cantigas, lamentos, sorrisos, garga-
lhadas, choros, atritos, cafés. Enfim, abraços.
A busca é por elementos que permitam uma vida poética, procu-
rando o que nos faz florescer, o que nos faz amar e comunicar. Nosso
caminho é de perguntas; vamos descobrindo junt@s, com alegria e
liberdade, como brindar nossas diferenças e seguirmos com suavidade a
vida que nos é tão cara e preciosa. A linguagem performativa é utilizada
como meio de potencializar a expressividade do usuário do serviço
de saúde mental através das diversas leituras que propõe a oficina de
teatro-criatividade. Objetiva a produção de elementos criativos para ir
ao encontro com o coletivo nas interações de boa convivência: corpo,
voz, texto, dramaturgia, desenho, rascunho, encenação, costura, bordado,
jogos dramáticos e outros, para despertar curiosidade no olhar e aguçar
a criatividade. Processo que potencializa a socialização e inclusão. É
preciso provocar a percepção dos sentidos no cotidiano, mexer com
o simbólico e fazer a escuta de cada um e seu tempo, observando e
substituindo funções de acordo com suas limitações. Pontos como a
prontidão, a desinibição, a afetividade e os valores de cada um são esti-
mulados e apreciados com todos do grupo, visando o encontro com o
melhor de cada um que se dispõe a participar e conviver com o desafio
que é a produção de teatro além da cena.
O Teatro do Oprimido é a inspiração e referência que valoriza a
capacidade criadora, colocando os participantes sempre como sujeitos
ativos, nunca passivos, empoderando através de exercícios e técnicas
teatrais acessíveis, descontraídas e fundamentadas na transformação da
realidade através do diálogo. O Teatro do Oprimido utiliza recursos
dialéticos na produção e execução das propostas de trabalho com atores
e não atores.
O citado Teatro do Oprimido é uma metodologia desenvolvida
pelo teatrólogo brasileiro Augusto Boal (1931-2009). Um conjunto de
técnicas teatrais que buscam transformar o espectador em sujeito atuante
da ação dramática para o desenvolvimento da autonomia diante dos
fatos cotidianos, visando “desmecanizar” o corpo e as emoções, dando
lugar à imaginação de novas perspectivas. Parte da ideia de que todos
Referência
100
frutíferas, salas amplas para as diversas oficinas, sendo um local de refe-
rência para muitos usuários que frequentam e um espaço privilegiado
para a prática de atividade física. A estrutura física favorece a oferta de
diversas atividades na educação física: exercícios físicos, ginástica, aula
de yoga, futebol, vôlei, peteca, além de jogos e brincadeiras como a
queimada, boliche, ping-pong, totó, entre outras possibilidades. Existe
um cronograma de atividades semanais para o usuário se orientar e se
programar, mas que pode sofrer alterações de acordo com a avaliação
do professor.
A diversidade de experiências, histórias e expectativas que cada
usuário traz quando vem para o Centro de Convivência praticar atividade
física é muito grande. Isso é visível nas aulas, onde há, desde usuários
com muita habilidade e interesse, até os que talvez nunca tenham feito
aquela atividade e estão ali por curiosidade, pela convivência.
Muitos usuários demonstram interesse nas atividades de educação
física já ao ingressar no serviço, na entrevista com a gerente. Outros
despertam o interesse ao longo do tempo, vendo as aulas e o envolvi-
mento dos colegas.
Há usuários que, mesmo conscientes de que precisam se exercitar
por questões de saúde, recomendação médica, demonstram resistências
que podem ser vencidas pela convivência no dia a dia, conversas e,
assim, confiança no professor. Há também usuários que, talvez, nunca
tenham feito aulas de ginástica, o corpo descoordenado, debilitado
devido ao efeito das medicações e com muitas limitações, ficando, na
maioria das vezes, parados, sentados, sem vontade de movimentar-se,
mas que estão ali para participar de alguma maneira. Então, sempre fica
a reflexão: como a atividade física é importante para a saúde física e
mental, pois movimentar o corpo traz benefícios e estímulos mentais
que vão gerar uma qualidade melhor de vida para essas pessoas que
ficam muito ociosas na maior parte do tempo.
Melo (2014) destaca que a atividade física no campo da saúde
mental é eficaz como terapia não medicamentosa já que, com a prá-
tica de exercícios, o organismo libera hormônios como a serotonina e
Considerações finais
Mosaico.
Pedras, uma de cada vez colocadas em madeira e paredes coladas,
fica uma estampa para nossos olhos formatados em cores;
um visual perfeito,
fazendo das Pedras-flores em ângulos diferentes.
1
Usuário do Centro de Convivência Barreiro.
107
Da terra bem irrigada do jardim do Centro de Convivência
brota margarida-banana e limão.
Molhar e cuidar da terra.
Ela nos devolve em frutos e belas flores;
um olhar diferente para o limão e banana.
Saem sucos maravilhosos da terra,
tudo que se planta dá: chá de hortelã e erva cidreira.
Passeio na praia:
os usuários se organizaram juntos com o Centro de Convivência
e viajaram para o RJ.
Era só alegria,
tinham pessoas que estavam pela primeira vez no mar.
Ao olhar a praia e o barulho das ondas por um instante só...
o infinito do mar.
109
TRAVESSIA DA ESCURIDÃO
Rogério Gomes1
Tempos de privação
De solidão
Momentos nebulosos
O passado obscuro da loucura
Na travessia da escuridão
Ao longe uma luz
Tudo se fez passado
Agora o presente de convívio
Amigos
Alegria de uma nova vida
Nas feridas de hoje
Guardamos cicatrizes
De um tempo que não volta
Jamais!
1
Usuário do Centro de Convivência Cézar Campos.
111
CENTROS DE CONVIVÊNCIA DE BELO
HORIZONTE: DESATANDO NÓS, FAZENDO
LAÇOS, AFIRMANDO A LIBERDADE E
AVANÇANDO 1
112
um Centro de Apoio Comunitário, lugar, à época, da diversidade e
de encontros. Desses dois dispositivos surgiram tantos outros com a
premissa (pelo menos deveria ser) de acolhimento, inserção, garantia
de direitos, cidadania e cuidado. Cuidado em liberdade!
Passados 28 anos do início da Política de Saúde Mental na cidade,
já não temos muros. Não mesmo? E os muros simbólicos? E os que
insistem em fazer renascer o manicômio? Ficam algumas perguntas.
Outras surgem: como pensar o cotidiano do dispositivo Centro
de Convivência a partir da convivência e da arte na interlocução com
a cidade para além dos muros e portas abertas em uma cidade onde
a intolerância começa a rondar? Aqui cabe ressaltar que uma palavra
retorna insistentemente: liberdade. Sim, repito: liberdade é a palavra.
Só conseguimos avistar o que tinha além das portas e muros porque
nosso cuidado é em liberdade. E com liberdade ainda é possível ir
desconstruindo toda uma lógica do preconceito e do medo, que estão
associados às pessoas com sofrimento mental.
Centros de Convivência: um dispositivo que acolhe o sujeito
para, quem sabe, topar experimentar algo no campo da arte e da cul-
tura? Oficinas? Escolarização? Integração em espaços de participação
política? Passeios, visitas a exposições, viagens? Grupos musicais de
reconhecimento nacional? Atividades esportivas com direito a medalhas
e premiação? Inserção em projetos de geração de trabalho e renda?
Ah, não. Nada disso, então! Chegar, poder tomar um cafezinho, sentar,
observar o movimento mais tranquilo nas manhãs e intenso à tarde,
quando duas ou mais oficinas dividem o mesmo espaço e a música
do rádio faz alguns dançarem e convidarem a gerente pra balançar o
esqueleto? Espaço banal, de convívio, de pausa do sofrimento. Pausa
do sofrimento?
Bem, tem dias que o sofrimento emerge com toda a sua força.
Um usuário com laços familiares fragilizados, em uso abusivo de subs-
tâncias, em abandono do tratamento, com uso irregular da medicação,
precisando de um banho quente de quem passou alguns dias a ermo
na rua e resolveu simplesmente aparecer: lugar de pertencimento!
Momento precioso pra tentarmos, então, refazer o laço, desatar alguns
Referências
Marta Soares1
Adriane Rodrigues2
I
“Não basta existir. É preciso também pertencer”
(Clarice Lispector)
120
nas conseguia enxergar o endereço impresso no convite, até que o
autor do ligeiro salto há instantes atrás saca da sua inseparável bolsa
uma... lupa!
Risos... risos... gargalhadas... Pura potência de vida!
II
Direito ao Amor: encontro de poder a felicidade!
IV
“Sou o que sou”
V
Luz, brilho, câmera, ação!
VI
Lugar para deixar memórias, inscrições, histórias ou
recortes de um tempo…
VII
Potência de vida que atravessa ou encurta caminhos
para outras margens…
Leila Rodrigues1
Cláudia Vânia da Silva2
A experiência do cotidiano
127
Siga conosco um pouco de um dia qualquer da semana!... O táxi
sai de uma residência terapêutica onde moram Rita e Vitorino. Outro,
de onde mora Amélia. Destino: Centro de Convivência Marcus Matraga.
Mimos e Afetos
O desabrochar da essência
Biscoitinho de palha
Agradecimentos
Referência
Leida Uematu1
1
Familiar, militante da luta antimanicomial.
131
Oficina de falar e ouvir
Ai, Festa de Aniversário! Por longos anos (acho que foram cinco),
sem interrupção, comemoramos os aniversariantes do mês no Marcus
Matraga com muita comida gostosa, sucos, refrigerantes, doces, bolo,
enfeites e até presente para os usuários. Ah, tinha música também: um
amigo e sua banda cover dos Beatles, um cantor, seleção de variadas
músicas escolhida pelos homenageados guardadas num pendrive ou na
memória, cantada ao vivo, em microfone aberto. Quem quiser, vai lá e
canta, recita, se expressa... E onde tem música, tem dança!
Eu, “dura que só” para dançar, fui chamada para o baile. Dancei
com um dos usuários, mas morri de vergonha. Nós dois ríamos muito
enquanto dançávamos. Ele sabia dançar, era muito bom, mas eu, muito dura.
Foi um alívio não pisar no seu pé! Eu dizia pra ele: “não desista de mim,
não!’’. Simpático, em todas as festas me chamava para dançar.Acho que ele
queria me ensinar a quebrar a dureza. Acredito, hoje, que ele conseguiu.
Atletas avulsos
Um artista à mesa
Pensando em mim
2
O Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais – CRMMG, a partir de uma vistoria nos Centros
de Referência em Saúde Mental - CERSAM’s, em 2020, fez um relatório para a Secretaria Municipal
de Saúde onde identificou irregularidades. Uma delas se refere à ausência do psiquiatra à noite e finais
de semana na escala dos CERSAM’s. Essa dita irregularidade está em total desacordo com o trabalho das
equipes de saúde mental nos CERSAM‘s e com a atual Política de Saúde Mental da cidade, pois o SUP
(Serviço de Urgência Psiquiátrica) é o serviço responsável pela retaguarda psiquiátrica dos CERSAM à
noite e aos finais de semana.
138
de novembro de 2014... 1ª viagem à praia dos participantes do Centro
de Convivência Rosimeire Silva – na época ainda Centro de Convi-
vência Providência.
Invadida pela responsabilidade, pela emoção, pela ansiedade e
pela chuva que caía incessantemente nesse dia, foi impossível conter
as lágrimas ao se aproximar a hora do embarque. Era noite e a chuva
fina não dava sinal de trégua, o que apertava ainda mais o coração, que
já se encontrava descompassado. De casa ao Centro de Convivência,
pensava em uma noite inteira de viagem de ônibus, com chuva, o que
aconteceria longe de um terreno conhecido, sem o apoio da rede local
no caso de emergências. Enfim, me sentindo responsável por essa que
me parecia, naquele momento, uma aventura e tendo de encarar um
desafio por nós construído.
Bastou chegar ao Centro de Convivência para que as providências
tivessem que ser tomadas e para que as lágrimas e a ansiedade dessem
lugar ao sorriso, à determinação, às palavras de otimismo, e que me
deixasse contagiar pelo entusiasmo de tantos que ali já me esperavam.
Ao me ver rodeada pelo alarido de dezenas de usuários que faziam dez
perguntas ao mesmo tempo, num misto de euforia, medo e expectati-
vas, junto a igual ansiedade dos familiares e profissionais que também
se lançavam nesta experiência pela primeira vez, só havia espaço para
assumir de maneira decidida o compromisso com todos ali assumido.
Naquele dia cuidamos – desde o jantar de antes da viagem, preparado
carinhosamente por vários da equipe –, até a checagem e identificação
da medicação de cada um, a autorização dos familiares, os documentos,
as etiquetas das bagagens, e repactuar as combinações. Era hora de sair,
e bastou sinalizar para que começasse a grande correria para entrar no
ônibus. Bagagens, caixas de refrigerante, água, sucos, biscoitos, salgados,
sanduíches, jogos, violão, pandeiro, caixa de som e muitos, muitos sonhos.
Já dentro do ônibus, hora de rezar juntos, pedir as bênçãos para
uma boa viagem, chamada dos presentes, procedimento que se repetiu
várias vezes, e sempre repactuar os combinados. Tudo era novidade: o
ônibus grande, com banheiro, televisão, as duplas formadas na poltrona
e as paradas na estrada, tão esperadas como a própria praia. A mesma
145
Agora eu anuncio Na virada do milênio
Quem “comanda” essa casa Novidade veio a mil
Com respeito e reverência Centro de Convivência Pampulha
Competência e consciência Foi o seu segundo nome
Apresento a vocês Na avenida Portugal
Wilma dos Santos Ribeiro A gente se estabeleceu
Quando fala em gerência Veio a música e o teatro
Ela é nossa referência Até a EJA aconteceu
Parte II
PELOS LITORAIS DA
CONVIVÊNCIA
151
Seção 1
153
PARA QUE NÃO SE ESQUEÇA
Lídia Martiniano1
155
VIVA A LUTA ANTIMANICOMIAL!
Poder viver a vida em um meio natural.
A CONVIVÊNCIA AO LITORAL1
Sandro Boaventura2
1.1 Encontros
157
rotina os encontros com a comunidade, nas suas mostras e participações
em eventos. A partir da convivência e seus encontros significativos,
mas esparsos e fragmentados na rotina, demandou-se parar um tempo
para um encontro que reunisse os trabalhadores dos nossos Centros
de Convivência.
Havia o desejo de encontrar e saber notícias, dificuldades e rotina
um do outro. Havia a demanda em enfrentar o difícil contexto político
em que a luta antimanicomial se encontra e os riscos de, após tantas
conquistas, ocorrer regressões no cuidado ao cidadão em sofrimento
mental. Havia a necessidade de entendimento do que é ser trabalhador
desse serviço: sua função e papel, tendo em vista a própria experiência.
É preciso a visibilidade, tornar conhecido o que é feito em sua rotina,
o entendimento das suas singularidades... Diante de tantas urgências,
a criar tantas expectativas, ficamos ansiosos para o nosso primeiro
encontro, e cheios de perguntas. Foi preciso, então, encontrar o centro
em que estas questões talvez se fizessem. Chegou-se, dessa forma, nas
discussões da comissão organizadora do I Encontro, da qual participei,
a um tema que nos pareceu ser mais elementar: qual é o lugar onde
os Centros de Convivência se encontram? Qual o papel dos Centros
de Convivência a partir do qual seja possível continuar a escrever sua
história e fazer seu trabalho e luta?
Surgiu, então,“I Encontro dos Centros de Convivência da Rede
SUS/BH-MG: seu lugar e papel na assistência ao cidadão em sofrimento
mental ou em uso prejudicial de álcool e outras drogas”, realizado em
01 de julho de 2015. Com um provocativo e ambíguo pronome “seu”
foi possível, então, perguntar ao mesmo tempo qual é o lugar e papel
deles, os Centros de Convivência, mas também qual é o nosso lugar e
papel em questão, daqueles que trabalham na Rede SUS-BH.
A partir do tema escolhido pela comissão organizadora na oca-
sião do I Encontro, este texto apresenta questões que atravessaram suas
discussões. Em seguida, lançando mão da metáfora do litoral no ensino
do psicanalista Jacques Lacan, proponho o lugar do Centro de Convi-
vência nas franjas de campos heterogêneos, tal como mar e areia, em
torno dos dois significantes que nomeiam este serviço substitutivo aos
2 Lugar litoral
Referências
165
diversos dispositivos e portas de entrada, segundo a expressão da sua
singularidade subjetiva na cidade aberta. Contudo, cada usuário guarda
consigo seu modo de chegar e de usar a Rede; ele o faz à sua maneira,
conforme suas coordenadas subjetivas.
No decorrer da pandemia que assola o planeta, o modo singular
como cada sujeito se serve da RAPS se evidencia. As restrições ao
convívio, sua ausência, instalam a crise no Centro da Convivência e
lançam luz sobre a hospitalidade da desordem que não se deixa guiar
pelas placas de trânsito e ruge alhures, em algum lugar entre o centro
e a sua ausência.
1 Introdução
177
para a preservação da vida. Todas as nossas atividades coletivas foram
suspensas do dia para a noite e o Centro de Convivência Oeste che-
gou a ficar fechado por quase um mês, apesar de acreditarmos que
esta não era a melhor opção, por se tratar de um serviço de saúde,
essencial, e referência para muitos usuários da rede de saúde mental
da regional Oeste.
Além da angústia diante desse acontecimento traumático para a
humanidade, fomos acometidos por uma angústia extra: como seguir
com nosso trabalho frente às restrições impostas e inevitáveis? Diante da
total ausência de referências sobre esse acontecimento traumático nos
vimos forçados a inventar novas formas de trabalho, de estar junto e de
cuidar, dia após dia. Invenções compartilhadas entre todos os Centros
de Convivência, construídas no coletivo, entre gerentes de Centros de
Convivência e GRSAM/ SMSA/ PBH (Gerência da Rede de Saúde
Mental da Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte) e em
equipe, em cada serviço. Fomos virados ao avesso, desvirados, revirados
e, se assim estávamos, nos restava oferecer, um a um, para cada um, a
oferta do laço, ainda que à distância.
Antonio Gramsci
183
convencer as demais pessoas envolvidas no projeto terapêutico dela:
“Ela quer ter o filho, quer criá-lo, tem esse direito e conseguirá, se a
se a ajudarmos”. Acordou com a família de Eliza a concordância em
dar o mínimo de apoio, conversou com a equipe do CERSAM, que
abraçou a causa. Articulou com o Centro de Convivência, local em
que ela tinha importante referência, a acompanhar e apoiar seu desejo.
Coube a todos, então, a tarefa de inventar alternativas.
Foi inserida em permanência dia e hospitalidade noturna. Ter-
ceiro desafio que passou a ser constante: a articulação da rede de saúde.
Foi inserida primeiramente para a realização do pré-natal, que Eliza
fez certinho, sempre acompanhada e orientada pelos profissionais.
Foi reduzindo o cigarro até parar de fumar e deixou as drogas. Nesta
época, começou a participar das aulas da Educação de Jovens Adultos
-EJA no CERSAM e também no Centro de Convivência, onde fez
um vínculo tão forte, que foi um dos pontos que possibilitou toda
essa trajetória.
Em maio de 2011 entrou em trabalho de parto e foi acompanhada
pela auxiliar de enfermagem no Hospital Risoleta Neves. Nasceu Claú-
dio Roberto. Nasceu nesse momento também uma mãe. O que fazer
agora? Como cuidar? Dúvidas que toda mãe ao sair da maternidade
carrega dentro de si. Mas lá se foram eles rumo à construção de uma
nova família. Nos primeiros meses foi rigorosamente acompanhada por
sua Técnica de Referência e uma estagiária (que eram chamadas de
“Super Nani”) e por todos do CERSAM e do Centro de Convivên-
cia. Esquema tático de revezamento:Técnica de referência, gerente do
Centro de Convivência, Professora do EJA, madrinha da criança que
à época trabalhava no Centro de Convivência, toda a enfermagem,
que se revezavam inclusive nos finais de semana, para curar umbigo,
dar banho, acompanhar nas consultas, orientar sobre a amamentação e
cuidados com o bebê... Assim vai se alinhavando uma história recheada
de conversas, telefonemas, negociações, choros, sorrisos e fraldas... muitas
fraldas. A ansiedade de Eliza vai aos poucos diminuindo à medida que
os choros começam a ser decifrados e que ela percebe o poder que a
amamentação tem: na dúvida, dá o peito que ele para de chorar! E como
6
Trecho da música “Tá combinado” (Caetano Veloso, 1986).
Rose Ramos1
1
Usuária do Centro de Convivência Marcus Matraga
189
Seção 2
ENTRELACES DO SENSÍVEL:
CENTRO DE CONVIVÊNCIA, ARTE E CULTURA
191
DIFERENÇAS
Hugo Leone1
1
Usuário do Centro de Convivência Cézar Campos.
193
CULTURA E BEM-ESTAR SOCIAL: UMA
CONQUISTA ESTÉTICA
Luciana Salles1
194
real e pacificadora dentro da nossa diversidade e que nos desperte do
torpor de saber demais.
Os instrumentos para atingir o lugar da experiência muitas vezes
habitam uma dimensão sutil. E no campo da sutileza, a arte detém esse
poder de despertar, posto que é grito, mas também convite ao silêncio.
Que se constitui processo, mas também resultado e, ainda, instrumento
na construção da coletividade e da expressão.
Meu primeiro contato com a produção artística dos usuários da
rede de saúde mental do município de Belo Horizonte foi por meio
da “Mostra de Arte Insensata”, culminância do primoroso trabalho
realizado pelos Centros de Convivência. A espontaneidade estética
das obras criadas na liberdade da desrazão devolveu-me o sabor da
experiência bruta, tão diferente da apreciação artística resultante das
relações mercantis que levam ao dirigismo, que hoje norteia o ambiente
cultural brasileiro, ao menos na sua dimensão formal.
Mas, para além de me colocarem como sujeito dessa experiência,
essas obras tiveram o poder de desvelar quem as produziu, descons-
truindo um imaginário que me levava a acreditar na incapacidade das
pessoas com sofrimento mental, mas, sobretudo, pontuando o seu direito
à cidade e fazendo ecoar a luta por uma sociedade antimanicomial.
Movida por essa espécie de revelação e manejando uma engrena-
gem que me cabia naquele momento, aderi a esse movimento e propus,
no âmbito do Circuito Liberdade, complexo cultural que na ocasião
reunia cerca de dez espaços expositivos ao redor da Praça da Liberdade,
em Belo Horizonte, uma exposição desses trabalhos distribuídos nessa
variedade de centros culturais. Por meio dessa articulação, nascia a
Mostra Arte e Loucura, no Circuito Liberdade, realizada de abril a julho
de 2017, atingindo um expressivo número de visitantes no tempo em
que esteve em cartaz.
Contudo, a construção de uma compreensão que reconheça a
dimensão cultural como algo que compõe a base da sociedade e que,
portanto, estabelece o tecido social e constitui-se em uma fonte inesgo-
tável na geração de riquezas, é um desafio diário para os trabalhadores
Referência
Júlio Moreira1
Maíra Paiva2
197
insensatos em suas criações e únicos em suas (re)invenções de vida, se
faz plural na história da rede de saúde mental e seu trabalho com a arte.
Por isso, para dizer desse acontecimento, mostramos também nosso
olhar, como monitores-artistas e trabalhadores da saúde. Começamos
com esse relato a partir do convite, feito em 2012, para integrarmos
a Comissão Organizadora. Os artistas da rede que compuseram essa
equipe foram Wesley Simões, Júlio Moreira e Maíra Paiva, apoiados
também pelas gerentes de Centro de Convivência Karen Zacché e
Giselle Amorim, com a tarefa de pensar o conceito, escolher as obras,
construir a expografia e montar a exposição da Terceira Mostra de Arte
Insensata – “Tato, Trato e Retrato”.
Após formada essa equipe, o desafio foi visitar os nove Centros
de Convivência para observar a produção e escolher, dentre os diversos
objetos, bordados, desenhos, pinturas, fotografias e esculturas, o que
coubesse na ideia de pluralidade, porém, revelando a singularidade de
cada sujeito e cada serviço.
A seleção dos trabalhos foi intrigante e difícil ao mesmo tempo.
Encarar e analisar cada obra neste processo foi como estar frente a
frente com o artista que a produziu, conhecê-lo pelo lado de dentro e
se deixar seduzir por suas expressões. E eram muitas. Diante de tantos
trabalhos, seguimos procurando pontos que se ligavam, linhas que con-
vergiam, cores que se mesclavam, conversas. Uma avaliação criteriosa
com um único propósito: unir as singularidades. E era incrível como
“as peças iam se encaixando” como em um grande quebra-cabeça. Ao
final desta apuração tivemos um imenso mosaico com formas ricas e
acabamento perfeito. E, num “quebrar e colar de peças” para produzi-lo,
despedaçamos também uma série de paradigmas sobre a incapacidade
e periculosidade dos cidadãos em sofrimento mental. Aqui, diante de
tanta preciosidade, por um momento a arte nos faz esquecer o sofri-
mento, e só enxergamos os artistas e suas obras. Extraímos e reunimos
o melhor deles.
“Empresta-me Teus Olhos?” foi o título do texto escrito de maneira
muito poética pelo Wesley. Ele nos guiou, de forma muito delicada, para
um trabalho de curadoria, desenhada com a maior diversidade possível,
Wesley Simões1
204
plenos pulmões e o centro cultural ainda não passara de projeto (hoje
realidade, ainda bem). A aposta da Secretaria de Saúde estava correta.
A conversa-pensamento esquenta e sublinha um sentimento
que, eu sinto ainda hoje, permeia toda essa trajetória de conquistas do
projeto de saúde mental do Município de Belo Horizonte: o sonho.
É esse sonho que eu vi e vejo, como fio invisível de Ariadne ( Ops,
na verdade de São Doidão a conduzir os participantes de uma oficina
de arte ao longo desse tempo). Seja, enquanto ali estava, no dia a dia,
ou agora, acompanhando de mais além. O Sonho: a liga dos pontos, o
engate, fio dourado bordando a relação Arte e Loucura.
O artista (aí é preciso separar arte e produto cultural), seja ele
acadêmico, surrealista, cubista, engajado, artista popular, autodidata
ou não, traz em sua obra, em sua relação com o mundo, um descon-
tentamento, uma real vontade – revelada ou escondida – de recriar o
mundo. O sonho de um mundo, não necessariamente melhor, mas
diferente com certeza. Mundos possíveis e mundos impossíveis. Com
outras tintas, no mínimo.
Por que diabos alguém vivendo um verdadeiro inferno na terra,
que muitas vezes é invisibilizado, que não se enquadra, que se diz “no
mundo da lua”, apartado, tratado como diferente... por que esse sujeito,
quando convocado a se expressar através de imagens, escolhe desenhar
uma flor? Escolhe cobrir a tela com cores vibrantes e variadas? Por que
esse sujeito ainda escolhe não deixar o papel em branco?
Recriar o mundo, organizar ou realizar o caos, fazer estremecer
a calmaria. Eis a expressão artística. Corajosa expressão.
No quase-sempre-sofrido caminho de escrever, várias perguntas
vão se movendo – em especial neste nosso mundo distópico: o que
é a loucura? E o que é a arte? Em que infinito coletivo essas linhas
paralelas se cruzam?
Ainda há lugar pra perguntas? Faz sentido? “O que anda pelas
cabeças”?
A conclusão que não me pega de cheio, me faz aceitar que nem
sempre é fácil ou simples encontrar estas respostas.
Substantivo Feminino.
Tecido.
De gente ou de malha, com aberturas regulares.
Resistente.
De Arte.
Entrelaçamento de fibras ligadas por nós.
Entrelaçamento de pontos que se cruzam no espaço.
Ponto e linha sobre o plano, muitos planos.
Amparo para liberdade de se lançar.
De trançado nem sempre simples e comum, resiste.
Sinônimo de barga, armadilha também pode ser seu nome.
Emalhar. Emaranhar.
Também novo jeito de firmar conexões com o mundo.
Real ou Virtual, sempre pontes.
De segurar, de prender, de conhecer, de fazer voar, de proteger.
Rede.
Nesses vinte anos de trabalho com arte e saúde mental não será
a primeira nem a última vez que conto e reverencio meu encontro e
minha experiência com o trabalho da rede pública de saúde mental
da cidade de Belo Horizonte, mais diretamente nos Centros de Con-
vivência deste serviço. Não me canso, não me esqueço, não sigo sem
1
Juliana Saúde Barreto é atriz, pedagoga, professora de yoga, através desses saberes pesquisa o brincar e a
poética da infância. Durante os últimos vinte anos se dedicou ao trabalho de acolhimento e criação em
arte e saúde na idealização e direção do Núcleo de Criação e Pesquisa Sapos e Afogados formado por
portadores de sofrimento mental.
210
antes pensar na força deste movimento, nos ensinamentos e no que
reverbera no meu trabalho ainda hoje. Para mim, como atriz, tudo
começa no desfile do 18 de maio de 2002, onde, a convite do Fórum
Mineiro de Saúde Mental, nas figuras de Ana Marta Lobosque e Mark
Nápoli, performo com parceiros das artes cênicas pelas ruas da cidade.
Na cabeça, uma gaiola e muitas chaves penduradas, pernas de
pau, o som de uma matraca. No figurino, uma tela gigante que me
vestia em um abraço ao corpo de outra atriz e assim nos fazíamos
uma. O grito por liberdade nas ruas da cidade me abrira os olhos, o
coração e a alma em um caminho sem volta. Encantamento imediato
por aquelas pessoas que pisavam firme, desejavam grande, se divertiam
leves, fazendo a revolução forte com sorriso largo. Estampado em cada
rosto uma história particular. Foi rápido querer fazer parte do bando.
Depois deste dia, no desfile do 18 de maio, mais uma vez apre-
sentamos eu, Miller Machado, Júnia Bessa e William Gomes dentro da
UFMG em outro evento do Fórum Mineiro de Saúde Mental. Desta
vez foi Rosimeire Silva quem fez o convite e na sequência me abre a
porta, chamando para uma prosa. Me perguntava como seria levar o
teatro como experiência para os Centros de Convivência da cidade,
que na ocasião eram oito ainda. Na conversa também me lembro de
Karen Zacché. Cuidadosas, me trouxeram três perguntas: “Como você
imagina ser e para que serve o Centro de Convivência?”; “Como você acha
que será o teatro para os usuários do serviço?”; “Você vai fazer laboratório com
eles?”. Risos. Expliquei como sentia o movimento do teatro naquele
espaço, sendo tudo tão novo para mim, que acabava de sair como atriz
do Centro de Formação Artística da Fundação Clóvis Salgado (meu
trabalho vinha da graduação em Pedagogia, das brincadeiras com a
“meninada” do ensino infantil, o que me ajudou bastante na compo-
sição entre arte e saúde mental). Também falei um pouco sobre “essa
tal história dos laboratórios” e como funciona para os atores. Topamos
inventar e descobrirmos juntas um jeito de fazer. “E não sei, só sei que
foi assim...” Começou aqui.
Minha primeira proposta foi criar dois polos, onde dois Centros
de Convivência seriam pontos de encontro para acontecer a oficina
Caro leitor:
O texto a seguir foi encontrado em um arquivo fixo do Centro
de Convivência Marcus Matraga. Escrito em 2002, foi uma tentativa
de registrar o início do surgimento do grupo musical Trem Tan Tan e
prestar contas. Foi preciso digitar o texto, atualizá-lo e acolher as diversas
emoções revividas. Na parte final seguirão depoimentos de três atuais
participantes do grupo, coautores do escrito. E, agora, finalizando-o,
recebo a visita de um ex-participante: roqueiro, baterista – e me dou
conta de que inúmeras pessoas que passaram pelo Trem não serão cita-
das aqui; então, preciso destacar que estão em outros registros, seja os
encartes dos dois CDs do Grupo, seja no DVD, que sempre cuidamos
com carinho para que a memória fosse preservada, além delas fazerem
parte dos nossos corações, muitas conversas e alguns inusitados encon-
tros, como o de hoje.
O projeto Trem Tan Tan teve início a partir das discussões acerca do
acervo sonoro, poético e musical dos participantes da Oficina de Música
do Centro de Convivência Venda Nova (atual CC Marcus Matraga),
1
Psicóloga, com especialização em saúde mental pela Escola de Saúde Pública de Minas Gerais. Gerente
do Centro de Convivência Marcus Matraga/regional Venda Nova.
2
Cantor, compositor e instrumentista do Trem Tan Tan.
3
Cantor e instrumentista do Trem Tan Tan.
4
Cantora e compositora do Trem Tan Tan.
217
que não era apropriado pela técnica, pela demanda dos usuários em
apresentar suas produções fora do universo local (aos moldes dos traba-
lhos de arte e artesanato), da definição por parte da equipe em priorizar
uma proposta que articulasse as demais oficinas na comemoração de
um ano do serviço e do entendimento de que projetos desta natureza
propiciam uma importante intervenção na cultura, contribuindo para
a desconstrução dos estigmas associados à loucura.
A oportunidade de participar do “I Festival e Congresso Arte
sem Barreiras” exigiu materializar parte da produção da oficina, e para
isso contatamos o estúdio Música & Companhia, da região de Venda
Nova, que de pronto nos apoiou. Gravamos duas músicas, que fizeram
parte do portfólio enviado à Comissão de Avaliação do Congresso.
A possibilidade de participação ampliada de usuários da saúde
mental no grupo que começava a se formar foi dirigida à rede e o
Centro de Convivência Providência (atual CC Rosimeire Silva) se
apresentou. Talvez pela proximidade física ou por ter o mesmo coor-
denador das oficinas ou pela relação próxima das coordenadoras na
época ou no atendimento da demanda dos usuários. O fato é que
conseguimos delinear um grupo de, aproximadamente, quinze usuá-
rios, para desenvolvermos o projeto, além de uma usuária do Barreiro,
trazida por um artista do Centro de Convivência Barreiro, conhecida
por suas composições inusitadas e “de sucesso”.
A primeira apresentação nos colocou várias questões – a expo-
sição pública dos usuários, o conceito de laço social no campo da
saúde mental, o enfrentamento dos medos, os efeitos terapêuticos
ou persecutórios que poderiam advir. Mas o diálogo e a construção
coletiva, num processo intenso de conversa, encontros e avaliação nos
colocaram diante de uma questão solucionada por uma das artistas do
serviço: “nós temos a obrigação de acreditar, até que nos provem o
contrário”. E assim foi.
Discutíamos da questão financeira aos “delírios”, a relação com a
mídia, o impacto da exposição pública com as apresentações, as fotos e o
projeto gráfico, a participação dos músicos convidados, o apoio da Regional
Babilak Bah1
227
É extremamente importante ressaltar a relação estabelecida com
a imprensa durante todo esse período de existência do grupo. Foi uma
situação excepcional que proporcionou uma preocupação constante e
real. Essa experiência nos exigiu um posicionamento, sobretudo uma
postura redobrada, especialmente para nós que estávamos na organização
do coletivo Trem Tan Tan, exigindo cautela e atenção.
Portanto, não é de se estranhar que o surgimento de um grupo
como resultado da política de saúde mental de Belo Horizonte e fruto
dos dispositivos da reforma psiquiátrica, tenha despertado interesse de
vários setores da sociedade, do mundo acadêmico ao universo cultu-
ral, dos especialistas do universo psi, pesquisadores da Antropologia,
fazedores de cinema, estudantes e estudiosos de vários ramos da área
das ciências humanas, da mídia independente e artistas diversos. Todos
curiosos na articulação entre arte e loucura, ou melhor, procurando
entender e conhecer os processos criativos, a linguagem e os conteúdos
apresentados pelo coletivo Trem Tan Tan, que se lançava como plata-
forma para criadores, produtores imagéticos, compositores de samba e
outras formas de se expressar com a música.
Consequentemente, como resultado do aparecimento do grupo
Trem Tan Tan, devido às atividades de produção de sentido, desenvolvidas
nos Centros de Convivência, indubitavelmente inaugurou-se um tempo
no qual a imagem do louco passa a ser divulgada numa perspectiva
bastante favorável e positiva. Desta forma, o portador de sofrimento
psíquico não só circula pela cidade colocando em exercício a sua liber-
dade, mas começa também a ocupar a mídia não apenas como uma
possibilidade de denúncia. Emerge, assim, uma realidade não existente
nos anos 1960/70, quando surgiram reportagens contundentes e fun-
damentais que serviram para denunciar as péssimas condições de vida,
os maus tratos, a cultura de segregação e higienista que acontecia nos
manicômios, como, por exemplo, a reportagem jornalística publicada
na Revista O Cruzeiro, intitulada “Hospital de Barbacena: A sucursal do
inferno” (1961). Assim como também a premiada reportagem de Hiram
Firmino, em 1979, que impulsionou o fim dos horrores do respectivo
manicômio localizado em Minas Gerais, que guardava características
Referências
VÍDEOS
Billi1
1
Escritor, usuário do Centro de Convivência Arthur Bispo do Rosário.
ENTREMUNDOS DO SABER:
CENTRO DE CONVIVÊNCIA E EDUCAÇÃO
239
SONHARINA
Brenda Behôri1
Sou Sonharina.
Como ritmos
Cheiro melodias
E bebo chá de liberdade.
1
Artista, usuária do Centro de Convivência Carlos Prates.
241
ARTE & EDUCAÇÃO: UMA EXPERIÊNCIA NOS
ESPAÇOS DA SAÚDE MENTAL DO SUS/PBH
242
Uma referência importante
Considerações finais
Referências
249
tamento em liberdade, no qual não se trata exclusivamente a doença,
mas promove-se a reinserção social dos sujeitos. A lei federal 10.216 de
6/04/2001 versa sobre a proteção e direitos das pessoas portadoras de
sofrimento mental e redireciona o modelo assistencial de saúde mental.
Os Centros de Convivência fazem parte da rede de atenção
psicossocial, e além das variadas oficinas de arte e artesanato e outras
atividades ofertadas para pessoas em sofrimento mental, usuárias ou
não de álcool e outras drogas, articulam parcerias, realizam estratégias
e ações que podem impactar positivamente na reinserção social de seus
frequentadores. A parceria com a Educação se dá por meio de uma
turma da Educação de Jovens e Adultos (EJA) do ensino fundamental
que funciona no Centro de Convivência Nise da Silveira, contemplando
uma demanda de muitos frequentadores para retornarem aos estudos.
Alguns deles abandonaram precocemente a escola devido ao início
das crises de sofrimento mental e/ou por terem iniciado o consumo
excessivo de drogas, o que dificultou sua adaptação às normas escolares,
tornando difícil sua permanência nesse espaço.
A EJA é uma modalidade educacional específica da Educação
Básica, voltada para os sujeitos jovens, adultos e idosos que, historica-
mente, tiveram negado o direito à educação. Em relação às características
da EJA assim entendida, Cury (2000) esclarece:
O termo modalidade é diminutivo latino de modus
(modo, maneira) e expressa uma medida dentro de uma
forma própria de ser. Ela tem, assim, um perfil próprio,
uma feição especial diante de um processo considerado
como medida de referência.Trata-se, pois, de um modo
de existir com característica própria. Esta feição especial
se liga ao princípio da proporcionalidade para que este
modo seja respeitado. A proporcionalidade, como orien-
tação de procedimentos, por sua vez, é uma dimensão da
eqüidade que tem a ver com a aplicação circunstanciada
da justiça, que impede o aprofundamento das diferenças
quando estas inferiorizam as pessoas. Ela impede o cresci-
mento das desigualdades por meio do tratamento desigual
dos desiguais, consideradas as condições concretas, a fim
de que estes eliminem uma barreira discriminatória e se
Referências
Sirla Alves
257
Contra o frio do concreto, o calor do afeto
Cada turma da EJA BH, aberta nos diferentes espaços da cidade, era
oficialmente matriculada em uma Escola da Rede Municipal de Ensino.
No nosso caso, ambas as turmas (CERSAM e Centro de Convivência
Lúcida Escrita
265
RENASCENDO
Diego Luiz1
267
que vale a pena viver, os relacionamentos interpessoais se sobrepõem
ao fechamento e o individualismo.
Quem faz parte do Centro de Convivência Barreiro logo no
primeiro dia de contato é contaminado por um vírus, e o objetivo é
espalhar esse vírus para o mundo inteiro. Quem tem o direito de ter
um tratamento em liberdade e humanizado com certeza vai transmi-
tir o vírus do amor, da paz, da dignidade e outros bons sentimentos
para as outras pessoas, contribuindo para o crescimento da sociedade
como um todo.
Agradeço a todos os envolvidos neste processo e firmo o meu
compromisso de divulgar este trabalho até o último dia da minha vida.
Aleixo da Cruz1
Ana Rita Gonçalves2
Bruno Soriano Velano3
Daniela Ramos Garcia4
Danielle Campos dos Santos Domingos5
Luciana Lopes Melo6
269
objetivos da IEES ao apoiar iniciativas de serviços e usuários da rede
de saúde mental que visam garantir a ampliação da participação social
no mundo do trabalho, pela via do empreendedorismo e economia
solidária, configurando um dos aspectos da reabilitação psicossocial.
A IEES atualmente apoia as seguintes iniciativas: Associação
Suricato; geração de trabalho e renda no Campo AD7, que se des-
dobra em Ateliê de Geração de Trabalho e Renda para usuários dos
CERSAM AD8 e Unidade de Acolhimento Transitório Adulto (UAT);
Maladeza – para usuários vinculados ao Consultório de Rua de Belo
Horizonte, e Juventude & Aprendizagem para o Mundo do Trabalho
para jovens vinculados aos CERSAMI9 e Unidade de Acolhimento
Transitório infanto-juvenil (UATi).A IEES também está acompanhando
a concepção do Espaço de Inclusão Produtiva (Eipro) do CIAM10, que
foi inaugurado em julho de 2021. Outras frentes ainda estão se dese-
nhando com o apoio da IEES, por meio de consultorias, para propostas
relacionadas ao empreendedorismo, geração de trabalho e renda para
usuários da RAPS.
Dentre as iniciativas citadas, destaca-se o apoio à Associação
Suricato, organização figurada como vanguarda de empreendedorismo
na saúde mental do Brasil. A Suricato é uma associação de usuários e
familiares da rede de saúde mental de Belo Horizonte, que desde 200411
se constituiu em cinco núcleos de produção: Marcenaria, Mosaico,
Costura & Bordado, Culinária e Espaço Cultural. Atualmente, o apoio
da Equipe da IEES à Suricato se configura no acompanhamento da
gestão do plano de trabalho do convênio da Associação com o Fundo
Municipal de Saúde da SMSA, além de ações em educação e empreen-
dedorismo que visam o desenvolvimento da Associação. Para tanto, a
equipe de monitores da IEES acompanha as atividades dos núcleos de
produção da Associação Suricato, além de apoiar a gestão da entidade por
meio de ações, oficinas de capacitação, captação de recursos e parcerias.
7
Campo Álcool e Drogas.
8
Centro de Referência em Saúde Mental Álcool e Drogas.
9
Centro de Referência em Saúde Mental Infantil.
10
Centro Integrado de Atendimento à Mulher.
11
Ano em que o Estatuto da Associação de Trabalho e Produção Solidária - Suricato foi registrado em cartório.
14
Os usuários dos Centros de Convivência e associados da Associação Suricato confeccionam os produtos
dos bazares. Nos bazares presenciais os usuários colaboradores trabalhavam como vendedores, recebendo
comissão pelas vendas.
1
Psicóloga com Especialização em Saúde Mental pela Escola de Saúde Pública de MG. Gerente do Centro
de Convivência Oeste/ SMSA (Secretaria Municipal de Saúde) / PBH (Prefeitura de Belo Horizonte).
2
Psicóloga com Especialização em Saúde Mental pela Escola de Saúde Pública de MG. Gerente do Centro
de Convivência Marcus Matraga, da Regional Venda Nova/ SMSA/ PBH.
3
Terapeuta Ocupacional, Doutora em Psicologia pela UFMG. Gerente do Centro de Convivência Carlos
Prates, SMSA/ PBH.
4
Terapeuta Ocupacional, Mestre em Psicologia pela PUC Minas. Gerente do Centro de Convivência
Cezar Campos, da Regional Centro Sul / SMSA/ PBH.
5
Psicóloga. Gerente do Centro de Convivência Arthur Bispo do Rosário, da Regional Leste/ SMSA/ PBH.
6
Terapeuta Ocupacional. Ex-Gerente do Centro de Convivência Rosimeire Silva da Regional Norte/
SMSA/ PBH. Atualmente aposentada.
7
Farmacêutica. Ex-gerente do Centro de Convivência Carlos Prates da Regional Noroeste/ SMSA/
PBH. Atualmente aposentada.
8
Psicóloga. Gerente do Centro de Convivência Barreiro/ SMSA/ PBH.
9
Terapeuta Ocupacional. Gerente do Centro de Convivência São Paulo da Regional Nordeste/ SMSA/ PBH.
10
Terapeuta Ocupacional, com Especialização em Saúde Mental na Terapia Ocupacional pela UFMG.
Ex Gerente do Centro de Convivência Nise da Silveira da Regional Pampulha/ SMSA/ PBH,
atualmente aposentada.
276
Introdução
Resultados observados
Considerações finais
Referências
Um homem se humilha
Se castram seu sonho
Seu sonho é sua vida
E vida é trabalho
E sem o seu trabalho
O homem não tem honra
E sem a sua honra
Se morre, se mata
Não dá pra ser feliz2
Gonzaguinha
285
gabilidade garantidor de autonomia, dignidade e resgate de direitos,
mormente o direito ao trabalho.
São atribuições dos Auditores Fiscais do Trabalho, de acordo
com o Regulamento de Inspeção do Trabalho, Decreto 4552/2002
(BRASIL, 2002):
[...] Art. 18:
I - verificar o cumprimento das disposições legais e regula-
mentares, inclusive as relacionadas à segurança e à saúde
no trabalho, no âmbito das relações de trabalho e de
emprego, em especial:
[...]
d) o cumprimento dos acordos, tratados e convenções
internacionais ratificados pelo Brasil;
Referências
Sergei Teixeira1
291
Em muitos setores, como Educação e Saúde, há a necessidade
da atuação do Governo, a fim de garantir aos mais necessitados uma
qualidade de vida digna, reduzindo as desigualdades promovidas pelo
capitalismo. Foi através da lei de cotas para aprendizes e para pessoas
com deficiência que resgatei minha dignidade.
Deixo aqui manifestada minha gratidão pelas políticas sociais de
reinserção no mercado de trabalho e na sociedade – como os Centros
de Convivência – em parceria com outras instituições.
É muito importante a manutenção desses direitos adquiridos, que
estão sob ameaça atualmente. Vamos ficar alertas à política e exercer
nosso poder de voto com sabedoria. Gratidão a todos os envolvidos
nesta minha conquista!
293
MÁSCARA DA PALAVRA
Adrienne Luz1
1
Usuária do Centro de Convivência Carlos Prates. Futura jornalista, sonhadora e participativa.
295
ENCONTROS, DIÁLOGOS E ARTE: A PARCERIA
ENTRE O CURSO DE PSICOLOGIA DA PUC-MG E
O CENTRO DE CONVIVÊNCIA CARLOS PRATES
1 Introdução
1
Gerente do Centro de Convivência Carlos Prates até julho de 2020.
2
Professora do Curso de Psicologia da PUC-Minas, Unidade Coração Eucarístico. Organizadora das
visitas ao Centro e eventos mencionados.
296
2 Porta aberta e boas-vindas
4 Rodas de prosa
5 Em meio às árvores
6 No palco: palestrando
Um lugar de “rexistência”
303
Tal movimento, independentemente do uso que cada qual faz
de seus recursos, vem a sublimar sentimentos e emoções através da
arte e da manifestação. Durante as oficinas de Mi, eu a acompanhava
desenhando em alguma tela ou riscando novos panos para que ela
pudesse bordar, e nisso desenterrei minha paixão infantil pela simples
tarefa de se desenhar por prazer, algo que há muito tempo já não fazia.
E mesmo apenas como acompanhante, acabei me tornando também
usuário: fiz uso, e com prazer, do território e dos recursos, se tornando
um momento terapêutico tanto para Mi quanto para mim. Conheci os
demais usuários e participei, junto aos moradores que acompanhava,
de diversas atividades, confraternizações, reuniões, discussões e mesmo
protestos em prol da melhoria do dispositivo – o que me permitiu
ouvir muitas histórias sobre a importância do C.C.SP para a vida de
seus usuários.
Como devem ter percebido através deste texto, me apropriei de
tais valores artísticos/políticos.
Claro que ficamos todos limitados, devido à pandemia que nos
reprimia em casa, e alguns dos usuários nem mesmo podem afirmar
ter uma casa. O dispositivo continuou, mas ficamos bastante tempo
afastados por isso, não podendo colocar os moradores em risco. Con-
forme a vacinação, temos retomado aos poucos, porém é chegada a
hora do meu desligamento do estágio. O que tenho a fazer é agradecer
pela oportunidade de conhecer de perto e também de participar, pela
acolhida do dispositivo aos moradores e também a mim.
Finalizo com a certeza de que tal oportunidade somou ao meu
crescimento pessoal e profissional/acadêmico, estando prestes a me
formar, com a clareza de querer continuar fazendo parte dos serviços
substitutivos à prática manicomial.
305
da Saúde Mental, inicialmente, localizando a Psiquiatria para abrir a
hipótese que até o momento ela apresenta respostas tradicionais para
questões impossíveis e insuportáveis veiculadas pelo encontro com a
loucura. Isso reflete, inicialmente, nos processos de formação médica,
cujo ensino da Psiquiatria tende a se restringir na abordagem do sofri-
mento mental do ponto de vista biomédico e terapêutico focado na
prescrição medicamentosa.
Assim, as reflexões apresentadas partem dessas hipóteses para
propor um gesto profissional de formação em Psiquiatria argumentado
e debatido na direção da Saúde Mental, da Reforma Psiquiátrica e da
Luta Antimanicomial (AMARANTE, 1995; LOBOSQUE, 2020; SILVA,
2010, 2016, 2017), provocando aberturas epistemológicas neste campo
do conhecimento. Um processo de formação em serviços através de
uma parceria que extrapola dez anos de existência entre a Unifenas/
BH e RAPS de Belo Horizonte/MG. Um gesto profissional que pro-
move uma interrogação epistemológica à Psiquiatria, perscrutando sua
abertura em direção à comunidade, abrindo portas para outros saberes e
para o encontro da loucura com estudantes de medicina na cidade, na
comunidade, no território e seus diversos serviços em rede de Saúde
Mental. Um diálogo estreito entre saberes e práticas, que começa a
partir do Centro de Convivência da Saúde Mental.
Tratamos esse assunto através da Ergologia, uma das Clínicas do
Trabalho (BENDASSOLLI; SOBOL, 2011). Escolhemos a Ergologia
(SILVA, 2016), uma vez que ela propõe analisar as situações de traba-
lho de forma pluridisciplinar e do ponto de vista da atividade. Para a
Ergologia, trabalhar é se apresentar; é fazer escolhas no menor detalhe
possível do cotidiano da vida; é colocar de si no aqui-agora das situa-
ções; é gerir as infidelidades do meio; é ressignificar a distância entre o
prescrito e o real;, é promover um debate de normas e valores, além de
criar um espaço-tempo de diálogo tripolar entre saberes constituídos,
investidos e o desconforto intelectual para o bem viver.
Segundo os princípios ergológicos de ergoformação (SCHWARTZ;
DURRIVE, 2010), trabalhar é também formar novos trabalhadores.
Uma dialética entre dar e receber, entre as instruções/normas e as opor-
5 Avaliando a formação
7 Considerações finais
320
no sentido que quero escrever com se fosse um Machado de Assis
E o Centro de Convivência é onde eu fico em ambas realidades
Que independente de tudo
somos muito parecidos seja negro ou branco
Mas eu sei que eu tenho capacidade para escrever aquilo que sinto.
Mas, às vezes, como foi dito pelo monitor,
eu tenho capacidade para escrever como a leitura surte
efeito em mim
Da qual eu fico mais perto de ir além
E o Centro de Convivência veio
Eu mas com a cabeça para fazer julgamentos sociais mais claros.
Este é um ponto diferente
Que é o meu.
ENTREMEIOS DA LUTA
ANTIMANICOMIAL:
CENTRO DE CONVIVÊNCIA E POLÍTICA
323
MANIFESTO CONVIVENTE
Preâmbulo
Artigo I: De convivente
2
Este manifesto, inspirado em “Os Estatutos do Homem”, de Thiago de Mello, foi redigido em 2015 e
2021 pelas e pelos poetas conviventes das Letras do Centro de Convivência Carlos Prates (por ordem
alfabética): Adrienne Luz, Cleide Reis, Douglas Guieiro, Eustáquio Martins, Ninjão com a Comunidade,
Heloísa Pereira, Jackie Gonçalves, Júlia Maria Antunes, Júlio César Rodrigues, Leonardo de Souza, Sulamita
dos Santos, Reginaldo de Tarso e Rubem Furtado. Orientação e edição do monitor Sandro Boaventura.
325
Artigo II: Do acordar
Artigo V: Da saúde
Ricardo Evangelista1
329
As pessoas chamadas de loucas, há pouco tempo tinham como
única alternativa serem tratadas em hospitais, distantes de suas famílias
e do convívio em comunidade. Até a segunda metade do século XX
predominou no Brasil a discriminação e o controle do louco. Dominar
os “foras da ordem e do progresso e dos bons costumes da tradicional
família brasileira”, predominando um processo segregacionista, cruel
e violento. Essas pessoas eram consideradas “desajustadas” e “inconve-
nientes”, os “perturbadores da ordem”,“indesejados”, seres “perigosos e
anormais”, os tais “fora do padrão”. Assim, muitos seres humanos foram
desrespeitados em seus direitos básicos, internados em instituições à força
e esquecidos por meses, anos e décadas, em muitos casos. Esses hospitais
se transformaram nos famosos manicômios. Em Minas Gerais, o mais
conhecido foi o Hospital Colônia de Barbacena, denominado um dia
de “sucursal do inferno”, e que nas palavras da escritora e jornalista
Daniela Arbex, seria o “Holocausto brasileiro”. O Hospital Colônia foi
fundado em 1903, onde morreram 60 mil pessoas.
Ao Hospital Colônia eram levadas todas as pessoas que fugiam ao
padrão comportamental inventado para a época, tratadas como rebel-
des, indigentes e desviantes. Bastava uma bebedeira pela cidade para
serem enfiadas nos “trens de doido” e enviados rumo a Barbacena. A
experiência histórica a que me refiro esteve presente em minha família.
Meu tio, Oswaldo Alves de Almeida, depois de desaparecido
morreu no Hospital Psiquiátrico de Barbacena, de insuficiência cardíaca,
aos 33 anos de idade, em 10/08/1969, conforme certidão de óbito em
minha posse. Nos últimos anos venho me dedicando ao estudo dessa
dolorida memória familiar, pesquisando sobre o tema e o período, a
fim de escrever registro sobre “Quem matou Oswaldo?”. O objetivo
é valorizar a memória social para as gerações futuras.
É a história de uma família, é uma história de muitas famílias
mineiras e brasileiras. Sempre me despertou a curiosidade a respeito
da morte de meu tio Osvaldo. Falavam que ele era doente. Mas que
diabos de doença era aquela? Falavam sobre um tio que ficava parado
no mesmo lugar, sem sair para fazer necessidades fisiológicas durante
um, dois, três dias. Contavam histórias das internações de Osvaldo no
2
Refere-se a junho 2021.
334
Centro de Convivência Carlos Prates, UBS Padre Eustáquio, Unidade
de Referência Secundária, CREAB – Centro de Reabilitação, Centro
Municipal de Oftalmologia, CES – Centro de Educação em Saúde,
Alta Complexidade, INSS, CERSAM Noroeste– Centro de Referência
em Saúde Mental e CERSAMI Noroeste – Centro de Referência em
Saúde Mental Infanto-juvenil.
Conforme os usuários do Centro de Convivência já haviam
relatado em Assembleia, “muitas pessoas do interior vêm se consultar
no PAM – Padre Eustáquio ou no INSS e ficam o dia inteiro sem
comida”. E no preenchimento do questionário a população comentou
que a abertura do refeitório popular também iria abrir postos de trabalho
para a população.
No final de setembro de 2015 entregamos o relatório e os ques-
tionários preenchidos ao gerente dos Restaurantes Populares e este nos
informa que a conjuntura da prefeitura está bem complicada. Que nós
participássemos do próximo PPAG na Câmara de Vereadores.
No final de 2017 acionamos a gerente Eliza, do Centro de Con-
vivência Carlos Prates, para que nós, usuários, pudéssemos ocupar as
páginas do PPAG na Câmara com a demanda de um restaurante popular
na região. E foi um movimento muito bonito. Mais de quarenta pedidos
escritos pelos usuários do Centro de Convivência e ASUSSAM-MG.
A proposta, em termos de orçamento, estava subestimada e não
foi aprovada, mas o vereador do PT, Pedro Patrus, conseguiu uma
emenda parlamentar de Um Milhão e Quinhentos Mil Reais para a
realização do projeto.
Fizemos então um abaixo-assinado para pressionar o prefeito
Alexandre Kalil. Na ocasião, muitos usuários do Centro de Convivência
ficaram desanimados, mas a população dos prédios abaixo do Centro
de Convivência se mobilizou e ajudou a preencher o abaixo-assinado.
“Ninjão com a Comunidade”, usuário do Centro de Convivência
Carlos Prates e também da ASUSSAM-MG, deu uma força bacana
no recolhimento de assinaturas. Eustáquio, Elaine, professora do EJA,
usuária Adrienne, a gerente Eliza, dentre outros, contribuíram também.
Introdução
337
relação ao contexto sociopolítico e econômico atual, a fim de resgatar
alguns dos fundamentos que sustentam as práticas na Rede de Atenção
Psicossocial de Belo Horizonte.
Considerações finais
Referências
349
Pra chegar o amanhã
Cantarei a liberdade ainda que Tam tam
Parte III
PELA INVENÇÃO
IMAGÉTICA DA LETRA
351
Sua loucura | Antônio Francisco-Lau | bordado sobre projeção cartográfica, 37,5 x 55 cm, 2021 |
Centro de Convivência Cezár Campos
353
Escritos | Zé Maria | caneta sobre papel, 21 x 30 cm, 2017 | Centro de Convivência Barreiro
Cultura | Rodrigo Ribeiro | intervenção de giz sobre parede, 2,4 x 2,80 m, 2021 |
Centro de Convivência Carlos Prates
Sem Título | Marília Maciel | bordado sobre americano cru, 26 x 23 cm, 2021 |
Centro de Convivência Nise da Silveira
Editora Ramalhete
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