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A FÁBRICA DE ALMAS DANADAS:

O PURGATÓRIO COMO PORTAL DE ASSOMBRAÇÕES

ALYNNE CAVALCANTE BEZERRA DA SILVA1

RESUMO:
“Quem morre não volta!” Essa é uma frase que muitas das pessoas já ouviram em algum
momento de suas vidas, a saber, na infância, quando começam a ser incutidos os primeiros
temores em relação aos temas desconhecidos como a morte em si, e as assombrações. A
incredulidade a respeito de aparições assombrosas não é apenas reservada aos céticos;
também está presente nos dogmas de algumas religiões; por assim dizer, o cristianismo
romano ocidental. No entanto, independentemente de credulidades ou não, os relatos de
visões fantasmagóricas ou de mortos surgindo aos vivos para pedir por suas almas, foram
se amontoando ao longo de toda a história.
A criação do purgatório, no final do século XII foi a grande sacada da época. Se por um
lado existia uma sociedade temerosa em relação à dualidade céu-inferno como destino de
suas almas após a morte, por outro, havia finalmente, um elemento intermediário,
acessível, “seguro” e que legitimaria aos olhos da igreja, a aparição de assombrações.

Palavras-Chave: Purgatório. Morte. Assombrações.

ABSTRACT:
"Whoever dies does not return!" This is a phrase that many of the people have heard at
some point in their lives, namely, in the infancy, when begin to be induced the first fears
about unknown themes like death itself and the haunts. Unbelief about astonishing
apparitions is not only reserved for skeptics; it is also present in the dogmas of some
religions; so to speak, Western Roman Christianity. However, regardless of credulitys or
not, the reports of ghostly visions or of the dead appearing to the living to ask for their
souls have been piling up throughout history.
The creation of purgatory in the late twelfth century was the grand idea of the time. If on
the one hand there was a society fearful about the heaven-hell duality as the destination
of their souls after death, on the other hand there was finally an element intermediate,
accessible, "secure" and that would legitimize in the eyes of the church the appearance of
hauntings.

Keywords: Purgatory. Death. Hauntings.

1
Licenciada em História pela Fundação de Ensino Superior de Olinda – FUNESO, e especializada em
Ensino de História do Brasil pela FAINTVISA. E-mail: alynne.cbsilva@gmail.com
INTRODUÇÃO

Antes de iniciar qualquer estudo sobre o purgatório e as assombrações dele


advindas, se faz necessária uma breve introdução acerca dos temas que permeiam essa
discussão: morte, medo e religião. Afinal, estudar as assombrações exige um paralelo
estudo da morte. E quando se relaciona as assombrações à lógica do purgatório, se torna
indispensável, também, abordar as origens e motivações de sua criação no seio do
catolicismo. Por sua vez, o medo será um importante coadjuvante nessa trama, pois ele
irá atuar nas lacunas deixadas pela religião quando se trata da história do desconhecido
destino da alma após a morte.
Em muitas culturas antigas e nos conjuntos de crença de várias religiões,
predomina a ciência de uma espécie de vida após a morte ou imortalidade da alma. Seja
ela através da metempsicose2, do sono o qual alguns eleitos vão, um dia acordar e herdar
o paraíso, seja através das almas que espiam no purgatório. Todas essas hipóteses, é claro,
figuram um grande mistério. Tentar desvendá-lo é o denominador comum em quase todas
as religiões. Ora, as religiões têm como proposta final uma tentativa de ilustrar o destino
da alma após a morte, e, com isso, guiá-la por um caminho mais confortável que resulte
numa eternidade de gozo.
Se pudermos relacionar as religiões ocidentais e orientais, nota-se uma grande
inconsonância sobre a ótica da morte. Em geral, a religião ocidental possui uma visão da
morte inferiorizada, cheia de tabus, a qual a morte é um tema a ser evitado e o próprio ato
de morrer é visto como uma fraqueza; uma derrota.
Por sua vez, boa parte das religiões orientais, enxergam fraqueza na vida carnal
que tanto limita as faculdades mentais, forçando a alma, dotada de conhecimento, a
recomeçar o processo de aprendizado: “A vida consistia em viver morrendo, enquanto a
morte era, para a alma, a porta da liberdade” (NEGRAES, 1972, p. 17) Nessa ótica, a
morte figura um prêmio após as dificuldades da vida; a morte é um “regresso à casa”.

2
Transmigração da alma de um corpo para outro; reencarnação.
Alguns filósofos, inclusive, compartilham dessa visão orientalizada da morte.
Sócrates, não obstante, encarava a vida como um retrocesso intelectual.
Independentemente das desigualdades com relação às religiões e suas visões sobre
os temas da morte, os mistérios e o sobrenatural estão sempre lado a lado com os temas
mortuários e nesse ínterim, o crescente sentimento de medo e temor.
Sutilmente, esse temor sobre a morte foi sendo imposto nas populações cristãs ao
associar a morte ao conceito de salvação da alma. Havia o medo relacionado ao que
Philippe Airès chamou de “morte de si”, havia o medo da “morte de ti” (algo que no
contexto desse trabalho pode ser direcionado ao medo dos fantasmas), e havia o medo de
ir para o inferno, motivado ainda mais pela iconografia medieval que retrata o inferno
como um local a ser extremamente temido, mesmo pelos fiéis.
Esse medo exacerbado da morte e de ser destinado ao inferno abriram espaço para
a igreja criar uma alternativa sensata e que viria a agradar à grande classe de fiéis, nem
tão bons e nem tão maus. Era o surgimento de um terceiro local que iria, finalmente,
acabar com a grande e extremamente polarizada dualidade céu-inferno, era o purgatório.

O PURGATÓRIO

O purgatório figura um conceito importante no período de seu surgimento, pois


ele viria criar uma categoria intermediária na sociedade (a saber, a sociedade cristã) a qual
as pessoas puderam rapidamente se identificar; uma a morada futura e transitória daqueles
que não eram tão bons nem tão ruins em vida; era a “antessala” do paraíso.
A ideia de purgatório surge no final do século XII junto com a época dos
mercadores, o que vem muito a calhar, pois o purgatório seria nesse contexto uma espécie
de “negociação” com o Todo-Poderoso: “aqueles que permaneciam na terra eram
capazes, por suas boas obras e suas orações, de ajudar as almas do purgatório a abreviarem
o tempo em que deviam purgar-se do que as conspurcava”. (DUBY, 1998, p. 133). Ou
seja, recebendo um determinado quantitativo de orações e sufrágios, tal alma conseguia
trocar esse “saldo” pela sua liberação das chamas purgatórias.
Parece que a igreja criou o purgatório numa grande sacada. Por um lado ele viria
legitimar os relatos de aparição de fantasmas, tão comuns na sociedade medieval; por
outro, a igreja lucrava enormemente com os sufrágios remunerados, as missas, as
indulgências pagas:

“a influência religiosa e material da igreja (...) sobre a sociedade leiga (...)


permitiu inculcar nos fiéis uma moral religiosa centrada nas noções de pecado,
de penitência, de salvação, que culminou, no fim do século XII, no nascimento
do purgatório”. (SCHMITT, 1999, p.11).
Nessa ótica “todo mundo sai ganhando”. Os vivos tinham abrigo nos dogmas
cristãos para justificar as assolações assombrosas; o que foi uma grande mudança
dogmática na época, pois essas experiências sobrenaturais eram atribuídas às crenças
pagãs, e a igreja, por sua vez, era reticente sobre o assunto. No entanto, quando lhe
conveio, essas crenças foram incorporadas em seus preceitos. Então o fiel podia agora
categorizar a assombração que viera a lhe assolar e ao convalescer, tinha a garantia de
não ir direto para o inferno, pois havia a chance de passar um período de expiação e
conseguir entrar no céu, mas não sem a determinante ajuda dos vivos.
Inocêncio III foi muito feliz ao dizer que “os vivos cuidam dos mortos porque eles
mesmos são futuros mortos”. (LE GOFF, 2017, p. 316). Depois de instaurada a lógica do
purgatório, as mudanças que ele proporcionou geraram um novo padrão de
comportamento religioso/cultural na época e a igreja, que arquitetou todo esse esquema,
saiu lucrando bastante. Era chegada a hora de cuidar dos mortos, a hora dos sufrágios:
proporcionar-lhes um minucioso funeral cristão, recitar fórmulas e preces; mandar dizer
missas por sua alma.
Mais tarde, com a reforma protestante, houve um tentativa de desacreditar a noção
do purgatório, entre outros motivos, por não haver citações dele na bíblia. Antes da
reforma, havia um texto que fazia alusão ao purgatório, estabelecido no concílio de
Florença:

In the matter of purgatory, it was decided that immediately at death the blessed
pass to the beatific vision (...). Souls in purgatory are purified by pain and may
be aided by the suffrages of the living. (Sobre a questão do purgatório, foi
decidido que imediatamente na morte o abençoado passa para a visão beatífica
(...). Almas no purgatório são purificadas pela dor e podem ser ajudadas pelos
sufrágios dos vivos).

Durante a reforma protestante, Martinho Lutero não chegou a negar a existência


do purgatório, porém fez severas críticas à igreja sobre o comércio de indulgências. E o
que seria o purgatório se não mais uma forma de arrecadar ganhos para a igreja?
Para trazer mais credibilidade à crença purgatorial, a igreja acrescentou um
decreto sobre o purgatório no concílio de Trento em 1563:

Tendo a Igreja Católica, instruída pelo Espírito Santo, segundo a doutrina da


Sagrada Escritura e da antiga tradição dos Padres, ensinado nos sagrados
concílios e atualmente neste Geral de Trento, que existe Purgatório, e que as
almas detidas nele recebem alivio com os sufrágios dos fiéis e em especial com
o aceitável sacrifício da missa, ordena o Santo Concílio aos Bispos, que cuidem
com máximo esmero que a santa doutrina do Purgatório, recebida dos santos
Padres e sagrados concílios, seja ensinada e pregada em todas as partes, e que
seja acreditada e conservada pelos fiéis cristãos.

A contrarreforma retoma a ideia de purgatório facilmente, já que ele era


amplamente aceito pela sociedade. Isso até o início de sua decadência, após a revolução
francesa e os ideais iluministas, quando o homem finalmente começa a questionar a
hegemonia da igreja sobre todos os aspectos de sua vida.
Não resta dúvida de que a igreja se aproveitou do medo dos fiéis para disseminar
o purgatório. Porque essa aceitação gritante de um terceiro local, notoriamente criado
pelos (e para) os homens? Por causa do medo! O medo de passar uma eternidade de dor
e sofrimentos infinitos. Esse medo do inferno fez as pessoas acreditarem, aceitarem e
defenderem o purgatório avidamente, pois a outra alternativa era demasiada extrema em
seus opostos. Categorizar, sem cometer erros e injustiças, toda uma sociedade
extremamente heterogênea e de potenciais pecadores, em: bons e ruins, é praticamente
impossível. Então o purgatório é totalmente racional dentro dessa lógica dualística radical
que estava por fim.
Mas, além de ser uma terceira opção à grande gama de fiéis nem tão bons e nem
tão maus, o terceiro lugar se tornou também um elo entre o mundo dos vivos e o além. O
purgatório vem criar um portal para toda a sorte de assombrações que tinham, ainda,
negócios a resolver na terra: mandar mensagens sobre o futuro, exortar os vivos sobre o
além, pedir sufrágios ou, simplesmente, aterrorizar algum pobre desavisado.

OS FANTASMAS DO PURGATÓRIO

A alma recém-chegada no purgatório tinha agora um longo e penoso caminho a


percorrer enquanto expia pelos seus pecado para conseguir entrar no paraíso.
O fogo purgatório e a expiação constantes não eram suficientes para purificar a
alma pecadora. Era preciso contar com a ajuda dos vivos através dos sufrágios para
garantir uma liberação antecipada. Porém, de que forma essa alma poderia, com razão,
solicitar essa indispensável ajuda? Ora, atravessando o grande portal purgatório que liga
o mundo dos mortos ao mundo dos vivos, aparecendo assombrosamente aos seus entes
de outrora e pedindo missas, preces, orações por sua pobre alma.
No entanto, fazer essa breve visita à Terra não era tão fácil: “essas aparições se
davam por permissão de Deus, raras vezes, e por milagre, para ensinamento e
confirmação da imortalidade da alma, para lição dos vivos ou para pedir socorro e
sufrágios”. (BRANDÃO, 1953, p. 8).
Nesse contexto de assombração indulgente é possível ilustrar um belíssimo
exemplo na consagrada obra do sociólogo pernambucano Gilberto Freyre “Assombrações
do Recife Velho” que traz relatos de vários casos de aparição de almas “materializadas”,
que após sua morte, voltavam à Terra na intenção de pedir por si:

“Costumava vagar um fantasma (...) a pedir missas. Missas para sua pobre
alma. (...) Chegava a visagem a fazer sinal com os dedos para indicar com
precisão matemática aos vivos o número de missas que desejava fôssem
mandadas dizer por sua alma” (FREYRE, 1974, p.76).

Conforme foi abordado anteriormente na citação de Brandão, as aparições de


fantasmas tem apenas o caráter de ajudar ou pedir ajuda. Delumeau também defende a
permissão divina para tais aparições: “Deus pode permitir que as almas dos mortos se
mostrem aos vivos sob aparências de seu corpo de outrora” (2009, p. 125). E mais: “Os
fantasmas vêm instruir a igreja militante, pedir orações que os libertarão do purgatório ou
admoestar os vivos para que vivam melhor”. (id. p. 126).
O problema é que isso nem sempre acontecia aos desafortunados que se viam
assombrados por um defunto. Vovelle fala que os mortos nos rodeiam, vivem a “vida”
deles em paralelo com a dos vivos. Ainda mais: tem negócios a resolver com os seus
próximos. Dessa forma, se utilizam dessa “permissão divina” para encontrar seus
convivas:

Esse encontro é temido, pois (...) mesmo que haja exemplos de defuntos
indulgentes, há mais casos de mortos reivindicativos, que solicitam as ajudas
e prestações – ou as orações dos vivos – para que possam finalmente “soltar-
se” dos laços que os detêm, como há também os mortos simplesmente
agressivos, sanguinários até (2010, p. 31).

Essa citação vem concretizar uma grande soma de relatos de pessoas que tiveram
algum encontro com uma assombração do além, pois os mortos eram “capazes de
atormentar ou ajudar os vivos” (REIS, 1991, p. 90).
Para dar ainda mais intensidade aos estudos dos fantasmas do purgatório, cabe
aqui abrir espaço para um texto interessantíssimo, apesar de muito tendencioso ao
catolicismo.
O manuscrito do purgatório, escrito pelo Monsenhor Ascânio Brandão é um
verdadeiro manual quando se trata das assombrações do purgatório. Nele estão contidos
numerosos relatos de um íntimo contato entre duas religiosas de certo convento. Uma
viva, a outra morta, padecendo no purgatório e aparecendo à sua correspondente em certas
datas com a finalidade de pedir por si e dizer ensinamentos e dogmas do catolicismo.
Há que se abrir um parêntese em relação ao texto do manuscrito, pois ele é
extremamente tendencioso aos dogmas cristãos romanos. Além de ser decisivo sobre o
caráter das aparições de “verdadeiras” almas do purgatório as quais aparecem aos vivos
por permissão divina. Sobre qualquer outro tipo de aparição relatada: “Está provado que
se trata do demônio (...) sinal certo do demônio (...) é pura ilusão isto ou coisa diabólica”.
(1953, p. 12).
Em relação a essa culpabilidade atribuída pelo manuscrito ao demônio, é
importante apresentar um contraponto na fala de Taillepied citado por Delumeau: “Elas
[as aparições] intervêm então na ordem de Deus ou ao menos, se resultam da operação
do demônio, na permissão divina”. (2009, p. 128).
Ora, alma do purgatório ou aparição demoníaca, há que se admitir que ambas
aconteceriam sob permissões divinas. O que ainda permanece incógnito é o motivo pelo
qual os texto católicos omitem tal esclarecimento.
Para exemplificar essas aparições de cunho demoníaco, cabe citar um caso narrado
pelo já mencionado, Gilberto Freyre. É o relato de um rapaz recifense que teve um soturno
encontro com o Bôca-de-ouro: “Quem havia de lhe surgir (...) com nova gargalhada de
demônio zombeteiro a escancarar o rosto inchado de defunto e a deixar ver dentes
escandalosamente de ouro? Bôca-de-ouro. O fantasma roxo e amarelo”. (1974, p. 31).
Nota-se claramente, através do destaque, que o fantasma ou mesmo demônio
narrado por Freyre tinha a intenção única de assustar quem o avistasse. Sobre os
fantasmas de um modo geral, Delumeau acrescenta que “Uns são bons e vêm no ar. Para
nos fazer saber a vontade dos deuses. Os demais, ao contrário, trazem à Terra: pestes,
febres, langores, tempestades e trovão. Fazem som no ar para nos assustar”. (2009, p.
120).
Voltando alguns séculos na linearidade temporal dos relatos de visões
assombrosas, nos deparamos com Santo Agostinho e sua grande resistência em admitir a
aparição de fantasmas, no entanto, ele abre uma exceção: “Se é preciso admitir (...) a
possibilidade de algumas aparições, elas não têm relação com mortos ordinários, mas com
personagens excepcionais, como os santos”. (AGOSTINHO, apud, SCHMITT, 1999, p.
25).
Esse cuidado de Santo Agostinho em não admitir as aparições se deve ao fato de
não equiparar ao catolicismo preceitos do paganismo (aparição de fantasmas ordinários),
pois essa crença só foi incorporada ao catolicismo séculos mais tarde, com a criação do
purgatório.

APARIÇÕES DE CARÁTER PRECOGNITIVO


Apesar do que foi visto anteriormente, nem sempre as assombrações surgiam com
a intenção de pedir sufrágios ou assustar os vivos. Algumas delas vinham à terra trazer
relatos sobre acontecimentos que estavam por vir. Geralmente se tratava de anunciar a
morte próxima de alguém ou simplesmente mostrar que alguma tragédia estava para
acontecer.
Há um relato interessantíssimo sobre um jovem, que, três dias após sua morte,
aparece em sonho ao seu irmão. O jovem morto confirma que está no paraíso e diz que
veio buscar seu pai. Este morre quatro dias após esta aparição. “Esses mortos informam
aos vivos sobre a morte e os mortos, mas não lhes pedem sufrágios”. (SCHMITT, 1999,
p. 23).
Sobre esse exemplo, além da aparição se categorizar como um “fantasma da idade
média central” (id.), há na citação, a informação de que o jovem morto estava no paraíso
e não no purgatório, motivo pelo qual não carecia de sufrágios. Isso traz à tona um trecho
de Brandão, onde ele diz que “Deus permite estas aparições para consolo dos vivos e para
excitar a compaixão”. (BRANDÃO, 1953, p.18). Se atribui, ainda ao conhecimento dos
mortos a precognição ou “adivinhação do futuro”. O jovem morto citado por Schmitt veio
informar a morte de seu pai que só ocorreria quatro dias depois.
Em alguns casos, o fantasma não precisa se expressar para trazer a trágica
mensagem: “sem dizer nenhuma palavra, fazem sinal de cabeça a um dos convivas, que
infalivelmente morre alguns dias depois”. (DELUMEAU, 2009, p. 128).
A obra “Assombrações do Recife Velho” está repleta de toda sorte de exemplos a
esse respeito: “Do Palácio do Govêrno do Estado de Pernambuco se conta que quando
estão para acontecer desgraças (...) aparece um vulto escuro e alto” (1974, p. 80). Sobre
esse vulto: “Quando êle aparece é para anunciar desgraça. Não falha. Apareceu a Zé
Bezerra que morreu logo depois”. (id. p. 83).
Havia também no Recife esse velho sobrado no qual aparecia um fantasma de
mulher “mas só ao homem a quem estivesse para acontecer desgraça ou infelicidade”.
(ibid. p.100).
Que é sabido sobre o vasto conhecimento e até mesmo a precognição de algumas
almas dos mortos, não há dúvidas. No entanto há também na literatura fantástica relatos
dos mortos que vêm anunciar sua própria morte a alguns poucos eleitos detentores de
certa sensibilidade e em momentos desavisados.
Foi o caso de uma senhora do interior de Pernambuco que estava de passagem
pelo Recife. Em um momento de descanso, a tal senhora, diz Freyre:

“Deu um grito que assustou a casa inteira (...) à dona acabara de aparecer a
figura do tio barão envolvida num largo lençol branco todo manchado de
sangue. Horas depois chegavam ao Recife notícias (...) O Barão de Escada fora
assassinado. (1974, p.39-41).

Esses são apenas alguns dos poucos relatos encontrados sobre mortos que
careciam deixar suas mensagens aos vivos. Prova de precognição, cuidado para com seus
entes e mais importante: Prova de que uma vez dada a permissão à alma do purgatório
para voltar à Terra, ela aqui, possui um certo “livre arbítrio” para fazer o que lhe convém.
A maioria dos casos constatados na vasta literatura mostra que esses fantasmas possuem
mesmo um grande desejo de vingança, a saber, por não ter recebido o devido cuidado e
minucias em seu sepultamento.
Esses fantasmas os quais são privados de um bom funeral, acabam se tornando
almas amarguradas e rancorosas. Dessa forma, se tornam más e tem a intenção única de
assombrar os vivos. No entanto havia uma forma de tentar prevenir, se não a aparição de
fantasmas, ao menos de definir que seu caráter seja feliz e benevolente.
O MEDO DOS FANTASMAS E O CUIDADO COM OS MORTOS

“Definitivamente, a crença que mais se fortaleceu entre os séculos IV e IX e que


criou o terreno mais favorável ao nascimento do purgatório foi a prática de preces e, mais
amplamente, dos sufrágios pelos mortos”. (LE GOFF, 2017, p. 203).

Bem antes da criação do purgatório, já se acreditava em fantasmas. As sociedade


antigas cultivaram padrões culturais de cuidado para com os mortos durante gerações e
isso se reflete, inclusive, até o cotidiano, embora a finalidade dessas ações possa ter se
modificado de uma época/sociedade para a outra. Acontece que “um dos objetivos dos
cultos funerários era impedir que os defuntos voltassem para perturbar os vivos”. (AIRÈS,
2012, p. 41).
As sociedades medievais (e até o século XIX) tinham tanto medo dos fantasmas
que reproduziram isso no cuidado com os mortos e até mesmo com os moribundos. Criou-
se uma série de ritos e fórmulas repletos de simbolismo que, para a citada sociedade,
ajudariam a alma recém desligada do corpo, a encontrar mais facilmente o caminho para
o céu e, consequentemente, não tornar-se um fantasma malfazejo.
Para melhor ilustrar esse pensamento, imaginemos o seguinte cenário: Uma
pequena casa, numa pequena vila. Há um velho senhor que convalesce em seu quarto. A
morte já é esperada pelo moribundo e por seus familiares. Um padre é chamado para ouvir
a última confissão do doente e em seguida aplica-lhe a comunhão e a extrema-unção, ritos
indispensáveis para que a alma encontre o caminho do céu. Enquanto isso, na sala, os
familiares e amigos aguardam, com tristeza, a morte certa, num momento um tanto
incerto, porém próximo, indagando rezas e preces para que a alma entre no céu. A morte
chega até a pequena casa. Ignoremos, pois o sentimento da perda. Há velas acesas tanto
no quarto do morto, como em toda a casa como símbolo para que a alma não atravesse
no escuro, ou para iluminar seu caminho até o céu. Todos os recipientes com água são
desprezados, pois a alma, na tentativa de saciar sua sede, poderia ali, se afogar; ou por ter
a alma se banhado nessas águas e deixado nelas os seus pecados de outrora. Um vez que
o corpo saísse para cortejo fúnebre e, em seguida, sepultamento, um parente se prestava
a varrer a casa de trás para a frente com intenção de expulsar dali a alma do morto.
Esse pequeno cenário totalmente ilustrativo nos serve de exemplo para alguns dos
muitos ritos que se propagaram de geração para geração e eram repetidos sem o menor
questionamento. Mas, qual era a finalidade disso? Há para essa questão duas respostas.
A primeira, como cortesia ao espírito do parente querido; para facilitar sua entrada
no céu. A segunda resposta está intrínseca na primeira: para a alma entrar no céu, logo,
não necessitaria voltar os vivos sob formas de fantasma. O que era de fato importante era
“facilitar o trespasse por medo de ver a alma do agonizante demorar-se ali onde já não
devia permanecer”. (DELUMEAU, 2009, p. 132).
Essa cultura mortuária foi (e é) tão intensa e fortemente difundida que, inclusive,
nos dias cotidianos, ainda há resistência, a saber nas pequenas cidades interioranas de
religião predominantemente católica.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar de ser um tema um pouco evitado pelas pessoas, a morte, os fantasmas e


os temores a esse respeito são extremamente importante para a construção da identidade
cultural de um povo.

Todas as sociedade possuem “regras”, ritos e padrões de comportamento diante


dos temas mortuários. Cada atitude diante da morte e cada reação diante da lógica da
aparição de assombrações são elementos determinantes no momento de decifrar a
simbologia e identidade cultural de cada época/sociedade.

O olhar do historiador aos fantasmas do purgatório é uma forma de estudar o


particular, o pequeno. É desvendar as intenções de uma alma ordinária que usa a
permissão de Deus para vir à Terra e concluir algum assunto que não pôde ser
concretizado em vida. Em Schmitt: “Em um pensamento religioso por muito tempo
dividido por um dualismo fundamental (...) não havia muito lugar para os fantasmas, para
as revelações oníricas e ambivalentes dos mortos ordinários” (1999, p. 17). Resgatar essas
histórias traz mais um viés ao estudo da cultura popular das sociedades contemporâneas
ao apogeu do purgatório.

Muita ênfase ainda há que ser dada aos fantasmas do purgatório ao longo da
história. Em um contexto histórico religioso por tanto tempo condenatório e reticente
sobre as aparições de fantasmas, onde estes não tinham vez ou voz dentro do catolicismo,
ao contrário, eram desacreditados e condenados; e mais tarde, vê-los tornarem-se
protagonistas de uma nova categoria à fé cristã ocidental, é algo grande.

O purgatório tanto como terceiro local quanto como portal de assombrações,


incitou uma verdadeira mudança de paradigmas dentro da religião católica, e na crença
dos fiéis. Além disso, “o purgatório modificou a atitude dos cristãos diante dos últimos
momentos da vida. Ele dramatizou esta última fase da existência terrena, carregando-a de
uma intensidade mesclada de terror e esperança”. (LE GOFF, 2009, p. 542).
Os fantasmas do purgatório suscitaram um novo padrão de comportamento na
sociedade. Suas aparições eram tão temidas que tentar evitá-las também originou um novo
padrão de comportamento em relação à prática fúnebre, depositando nela, um simbolismo
ainda mais marcante que o já empregado nas Cidades Antigas de Coulanges. No entanto,
apesar de ser um encontro temeroso e funesto, a aparição de assombrações também pode
ser uma graça aos que receberam sua visita e propagaram sua mensagem, trazendo à
contemporaneidade um pouco do sobrenatural que tanto enriquece qualquer narrativa
histórica. E como disse Gilberto Freyre “pobre da cidade ou do homem cuja história seja
só história natural”.

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Editora Schwarcz, 1999.

VOVELLE, Michel. As almas do purgatório ou o trabalho de luto. São Paulo: UNESP,


2010.

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