RESUMO:
“Quem morre não volta!” Essa é uma frase que muitas das pessoas já ouviram em algum
momento de suas vidas, a saber, na infância, quando começam a ser incutidos os primeiros
temores em relação aos temas desconhecidos como a morte em si, e as assombrações. A
incredulidade a respeito de aparições assombrosas não é apenas reservada aos céticos;
também está presente nos dogmas de algumas religiões; por assim dizer, o cristianismo
romano ocidental. No entanto, independentemente de credulidades ou não, os relatos de
visões fantasmagóricas ou de mortos surgindo aos vivos para pedir por suas almas, foram
se amontoando ao longo de toda a história.
A criação do purgatório, no final do século XII foi a grande sacada da época. Se por um
lado existia uma sociedade temerosa em relação à dualidade céu-inferno como destino de
suas almas após a morte, por outro, havia finalmente, um elemento intermediário,
acessível, “seguro” e que legitimaria aos olhos da igreja, a aparição de assombrações.
ABSTRACT:
"Whoever dies does not return!" This is a phrase that many of the people have heard at
some point in their lives, namely, in the infancy, when begin to be induced the first fears
about unknown themes like death itself and the haunts. Unbelief about astonishing
apparitions is not only reserved for skeptics; it is also present in the dogmas of some
religions; so to speak, Western Roman Christianity. However, regardless of credulitys or
not, the reports of ghostly visions or of the dead appearing to the living to ask for their
souls have been piling up throughout history.
The creation of purgatory in the late twelfth century was the grand idea of the time. If on
the one hand there was a society fearful about the heaven-hell duality as the destination
of their souls after death, on the other hand there was finally an element intermediate,
accessible, "secure" and that would legitimize in the eyes of the church the appearance of
hauntings.
1
Licenciada em História pela Fundação de Ensino Superior de Olinda – FUNESO, e especializada em
Ensino de História do Brasil pela FAINTVISA. E-mail: alynne.cbsilva@gmail.com
INTRODUÇÃO
2
Transmigração da alma de um corpo para outro; reencarnação.
Alguns filósofos, inclusive, compartilham dessa visão orientalizada da morte.
Sócrates, não obstante, encarava a vida como um retrocesso intelectual.
Independentemente das desigualdades com relação às religiões e suas visões sobre
os temas da morte, os mistérios e o sobrenatural estão sempre lado a lado com os temas
mortuários e nesse ínterim, o crescente sentimento de medo e temor.
Sutilmente, esse temor sobre a morte foi sendo imposto nas populações cristãs ao
associar a morte ao conceito de salvação da alma. Havia o medo relacionado ao que
Philippe Airès chamou de “morte de si”, havia o medo da “morte de ti” (algo que no
contexto desse trabalho pode ser direcionado ao medo dos fantasmas), e havia o medo de
ir para o inferno, motivado ainda mais pela iconografia medieval que retrata o inferno
como um local a ser extremamente temido, mesmo pelos fiéis.
Esse medo exacerbado da morte e de ser destinado ao inferno abriram espaço para
a igreja criar uma alternativa sensata e que viria a agradar à grande classe de fiéis, nem
tão bons e nem tão maus. Era o surgimento de um terceiro local que iria, finalmente,
acabar com a grande e extremamente polarizada dualidade céu-inferno, era o purgatório.
O PURGATÓRIO
In the matter of purgatory, it was decided that immediately at death the blessed
pass to the beatific vision (...). Souls in purgatory are purified by pain and may
be aided by the suffrages of the living. (Sobre a questão do purgatório, foi
decidido que imediatamente na morte o abençoado passa para a visão beatífica
(...). Almas no purgatório são purificadas pela dor e podem ser ajudadas pelos
sufrágios dos vivos).
OS FANTASMAS DO PURGATÓRIO
“Costumava vagar um fantasma (...) a pedir missas. Missas para sua pobre
alma. (...) Chegava a visagem a fazer sinal com os dedos para indicar com
precisão matemática aos vivos o número de missas que desejava fôssem
mandadas dizer por sua alma” (FREYRE, 1974, p.76).
Esse encontro é temido, pois (...) mesmo que haja exemplos de defuntos
indulgentes, há mais casos de mortos reivindicativos, que solicitam as ajudas
e prestações – ou as orações dos vivos – para que possam finalmente “soltar-
se” dos laços que os detêm, como há também os mortos simplesmente
agressivos, sanguinários até (2010, p. 31).
Essa citação vem concretizar uma grande soma de relatos de pessoas que tiveram
algum encontro com uma assombração do além, pois os mortos eram “capazes de
atormentar ou ajudar os vivos” (REIS, 1991, p. 90).
Para dar ainda mais intensidade aos estudos dos fantasmas do purgatório, cabe
aqui abrir espaço para um texto interessantíssimo, apesar de muito tendencioso ao
catolicismo.
O manuscrito do purgatório, escrito pelo Monsenhor Ascânio Brandão é um
verdadeiro manual quando se trata das assombrações do purgatório. Nele estão contidos
numerosos relatos de um íntimo contato entre duas religiosas de certo convento. Uma
viva, a outra morta, padecendo no purgatório e aparecendo à sua correspondente em certas
datas com a finalidade de pedir por si e dizer ensinamentos e dogmas do catolicismo.
Há que se abrir um parêntese em relação ao texto do manuscrito, pois ele é
extremamente tendencioso aos dogmas cristãos romanos. Além de ser decisivo sobre o
caráter das aparições de “verdadeiras” almas do purgatório as quais aparecem aos vivos
por permissão divina. Sobre qualquer outro tipo de aparição relatada: “Está provado que
se trata do demônio (...) sinal certo do demônio (...) é pura ilusão isto ou coisa diabólica”.
(1953, p. 12).
Em relação a essa culpabilidade atribuída pelo manuscrito ao demônio, é
importante apresentar um contraponto na fala de Taillepied citado por Delumeau: “Elas
[as aparições] intervêm então na ordem de Deus ou ao menos, se resultam da operação
do demônio, na permissão divina”. (2009, p. 128).
Ora, alma do purgatório ou aparição demoníaca, há que se admitir que ambas
aconteceriam sob permissões divinas. O que ainda permanece incógnito é o motivo pelo
qual os texto católicos omitem tal esclarecimento.
Para exemplificar essas aparições de cunho demoníaco, cabe citar um caso narrado
pelo já mencionado, Gilberto Freyre. É o relato de um rapaz recifense que teve um soturno
encontro com o Bôca-de-ouro: “Quem havia de lhe surgir (...) com nova gargalhada de
demônio zombeteiro a escancarar o rosto inchado de defunto e a deixar ver dentes
escandalosamente de ouro? Bôca-de-ouro. O fantasma roxo e amarelo”. (1974, p. 31).
Nota-se claramente, através do destaque, que o fantasma ou mesmo demônio
narrado por Freyre tinha a intenção única de assustar quem o avistasse. Sobre os
fantasmas de um modo geral, Delumeau acrescenta que “Uns são bons e vêm no ar. Para
nos fazer saber a vontade dos deuses. Os demais, ao contrário, trazem à Terra: pestes,
febres, langores, tempestades e trovão. Fazem som no ar para nos assustar”. (2009, p.
120).
Voltando alguns séculos na linearidade temporal dos relatos de visões
assombrosas, nos deparamos com Santo Agostinho e sua grande resistência em admitir a
aparição de fantasmas, no entanto, ele abre uma exceção: “Se é preciso admitir (...) a
possibilidade de algumas aparições, elas não têm relação com mortos ordinários, mas com
personagens excepcionais, como os santos”. (AGOSTINHO, apud, SCHMITT, 1999, p.
25).
Esse cuidado de Santo Agostinho em não admitir as aparições se deve ao fato de
não equiparar ao catolicismo preceitos do paganismo (aparição de fantasmas ordinários),
pois essa crença só foi incorporada ao catolicismo séculos mais tarde, com a criação do
purgatório.
“Deu um grito que assustou a casa inteira (...) à dona acabara de aparecer a
figura do tio barão envolvida num largo lençol branco todo manchado de
sangue. Horas depois chegavam ao Recife notícias (...) O Barão de Escada fora
assassinado. (1974, p.39-41).
Esses são apenas alguns dos poucos relatos encontrados sobre mortos que
careciam deixar suas mensagens aos vivos. Prova de precognição, cuidado para com seus
entes e mais importante: Prova de que uma vez dada a permissão à alma do purgatório
para voltar à Terra, ela aqui, possui um certo “livre arbítrio” para fazer o que lhe convém.
A maioria dos casos constatados na vasta literatura mostra que esses fantasmas possuem
mesmo um grande desejo de vingança, a saber, por não ter recebido o devido cuidado e
minucias em seu sepultamento.
Esses fantasmas os quais são privados de um bom funeral, acabam se tornando
almas amarguradas e rancorosas. Dessa forma, se tornam más e tem a intenção única de
assombrar os vivos. No entanto havia uma forma de tentar prevenir, se não a aparição de
fantasmas, ao menos de definir que seu caráter seja feliz e benevolente.
O MEDO DOS FANTASMAS E O CUIDADO COM OS MORTOS
Muita ênfase ainda há que ser dada aos fantasmas do purgatório ao longo da
história. Em um contexto histórico religioso por tanto tempo condenatório e reticente
sobre as aparições de fantasmas, onde estes não tinham vez ou voz dentro do catolicismo,
ao contrário, eram desacreditados e condenados; e mais tarde, vê-los tornarem-se
protagonistas de uma nova categoria à fé cristã ocidental, é algo grande.
REFERÊNCIAS
AGOSTINHO, Santo. O cuidado devido aos mortos. São Paulo: Paulus, 2002.
Disponível em:
<http://minhateca.com.br/Cibelle/Documentos/Livros/SANTO+AGOSTINHO/o+cuida
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DELUMEAU, Jean. História do Medo no Ocidente. São Paulo: Companhia das letras,
2009.
DUBY, Georges. Ano 1000, ano 2000: na pista de nosso medos. São Paulo: Fundação
Editora da UNESP, 1998.
KOVÁCS, Maria Júlia. Educação para a Morte. Temas e Reflexões. São Paulo: Casa
do Psicólogo, 2003.
NEGRAES, Edith C. (Trad.) O Livro dos mortos do Antigo Egito. São Paulo: Hemus
– Livraria Editora Ltda., 1972.
REIS, João José. A Morte é uma Festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do
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SCHAFF, Philip. The papal schism and the reformatory councils. 1378–1449. In:
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Disponível em: <http://www.ccel.org/s/sch~Paff/history/6_ch02.htm#_edn1>. Acesso
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SHARPE, Jim. A história vista de baixo. In: BURKE, Peter (Org.). A escrita da história:
Novas perspectivas. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992.