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FUNDAÇÃO DE ENSINO SUPERIOR DE OLINDA – FUNESO

UNIÃO DAS ESCOLAS SUPERIORES DA FUNESO – UNESF


CENTRO DAS HUMANIDADES
LICENCIATURA PLENA EM HISTÓRIA

ALYNNE CAVALCANTE BEZERRA DA SILVA

O SAGRADO E O SOBRENATURAL: UMA ANÁLISE DA RELAÇÃO ENTRE AS


ASSOMBRAÇÕES RECIFENSES E O CATOLICISMO

OLINDA
2012
ALYNNE CAVALCANTE BEZERRA DA SILVA

O SAGRADO E O SOBRENATURAL: UMA ANÁLISE DA RELAÇÃO ENTRE AS


ASSOMBRAÇÕES RECIFENSES E O CATOLICISMO

Monografia apresentada à banca


examinadora do curso de História,
como requisito para aquisição do título
de graduação da Fundação de Ensino
Superior de Olinda – FUNESO.

Orientadora: Prof.ª Eva Maria da Silva

OLINDA
2012
FUNDAÇÃO DE ENSINO SUPERIOR DE OLINDA – FUNESO
UNIÃO DAS ESCOLAS SUPERIORES DA FUNESO – UNESF
CENTRO DAS HUMANIDADES
LICENCIATURA PLENA EM HISTÓRIA

O SAGRADO E O SOBRENATURAL: UMA ANÁLISE DA RELAÇÃO ENTRE AS


ASSOMBRAÇÕES RECIFENSES E O CATOLICISMO

Monografia apresentada à banca


examinadora do curso de História,
como requisito para aquisição do título
de graduação da Fundação de Ensino
Superior de Olinda – FUNESO.

ALYNNE CAVALCANTE BEZERRA DA SILVA

Monografia aprovada em 18/12/2012 para obtenção do título de graduação.

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________________
Orientadora: Profª Eva Maria da Silva

_________________________________________________
Prof(a) Convidado (a)

_________________________________________________
Prof(a) Convidado (a)

OLINDA
2012
FUNDAÇÃO DE ENSINO SUPERIOR DE OLINDA – FUNESO
UNIÃO DE ESCOLAS SUPERIORES DA FUNESO – UNESF
P. N° 397 de 07/07/97 CNE, modificado pelo P. N° 14 de 06/03/98;
P N° 944 de 15/08/97 DOU de 18/08/97, alterada Portaria N° 174 04/03/98 DOU
06/03/98
Campus Universitário da FUNESO, S/N – Jardim Fragoso
BIBLIOTECA LUIZ DELGADO
FICHA CATALOGRAFICA

S586s Silva, Alynne Cavalcante Bezerra da

O sagrado e o sobrenatural: uma análise da relação entre as


assombrações recifenses e o catolicismo / Alynne Cavalcante Bezerra
da Silva - Olinda: FUNESO, 2012.

42f.

Monografia apresentada em comprimento das exigências para obtenção


do Título de Licenciatura Plena em História.

Orientadora: Eva Maria da Silva.

1. Assombração, 2. Mito 3. Religião / I Fundação de Ensino Superior de


Olinda II Título

CDU
Agradeço a minha família pelo apoio
durante a elaboração da monografia e
ao Pedro Campos, Roberto Beltrão e a
minha orientadora, Eva Maria da Silva.
Além de todas as pessoas que
estiveram envolvidas direta ou
indiretamente com este trabalho.
À memória de minha avó Rita Bezerra,
que desde cedo incutiu em mim o gosto
por coisas do além através de suas
histórias de assombração.
“Os mistérios que se prendem à
história do Recife são muitos:
sem eles o passado recifense tomaria o
frio aspecto de uma
história natural. E pobre da cidade ou
do homem cuja história
seja só história natural”.
(Gilberto Freyre)
LISTAS DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1: A Perna Cabeluda.......................................................................................13


Figura 2: O Boca de Ouro..........................................................................................18
Figura 3: Igreja do Sagrado Coração do Sufrágio.....................................................19
Figura 4: Impressão em fogo da mão de uma alma do além.....................................20
Figura 5: Esquema cíclico da assombração...............................................................21
Figura 6: Missa pelas almas.......................................................................................27
RESUMO

O passado do Recife abriga um rico e extenso acervo de contos, mitos, lendas e


causos assombrosos relatados pelos próprios cidadãos da cidade. As assombrações
do Recife, ao contrário do que pensa a opinião popular, foram extremamente
importantes no que tange à crença popular de maior aceitação nas principais
décadas de ocorrência desses casos – 50, 60 e 70. O cristianismo, mais
especificamente, o catolicismo, abrigava uma parcela significativa de adeptos que
foram vítimas de assombração. Com isso, entramos em um ponto analítico dos
fatos, pois segundo os dogmas e preceitos da religião citada, a crença em
assombração e coisas do além deve ser ignorada, no entanto, não era raro ver ou
ouvir algum relato de católico fugindo de assombração. Essa contradição religiosa e
popular causou um impacto no catolicismo e a religião teve que criar meios para se
auto-afirmar diante disso. O trabalho de pesquisa será realizado a partir dessa
contradição entre a religião e a crença em assombrações e nos principais métodos
usados pela igreja com a finalidade de salvaguardar sua hegemonia.

Palavras-Chave: Assombração. Catolicismo. Mito.


ABSTRACT

The past of Recife houses a rich and extensive collection of tales, myths, legends
and stories reported by the citizens of the city. The hauntings of Recife, contrary to
what thinks popular opinion, were extremely important when it comes to popular
belief most accepted in the decades leading to the occurrence of these cases - 50,
60 and 70. The christianity, specifically Catholicism, housed a significant number of
supporters that had been victims of haunting. With that, we get into a analytical point
of the facts, because according to the dogmas and precepts of religion mentioned,
the belief in haunting and things from beyond, should be ignored, however, it was not
uncommon to see or hear any reports of a catholic running away from haunting. This
contradiction popular and religious caused an impact on Catholicism and the religion
had to create ways to self-affirm about that. The research work will be conducted
from this contradiction between religion and belief in hauntings and the main
methods used by the church in order to safeguard its hegemony.

Keywords: Hauntings. Catholicism. Myth


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...........................................................................................................12
1. CATOLICISMO X ASSOMBRAÇÕES............................................................17
2. A IGREJA COMO “ANTÍDOTO” E PROTEÇÃO À ASSOMBRAÇÃO..........23
2.1 OS PRINCIPAIS SUBTERFÚGIOS.................................................................23
2.1.1 O PEDIDO DE REZAS E MISSAS..................................................................24
2.1.2 OS SINAIS E JARGÕES RELIGIOSOS..........................................................29
2.1.3 O USO DA TERMINOLOGIA “MILAGRE”.......................................................33
3. O IMPACTO DO CATOLICISMO NA ASSOMBRAÇÃO................................35
CONCLUSÃO............................................................................................................38
REFERÊNCIAS..........................................................................................................42
12

INTRODUÇÃO

Perna cabeluda, Papafigo, Boca d’Ouro, Mulher do Algodão... Quem


nunca viu ou ouviu alguma coisa a respeito das dezenas de assombrações que
assolaram a cidade do Recife em um passado não tão distante da nossa
contemporaneidade?
A cidade do Recife, entre suas pontes e casarões antigos, esconde um
riquíssimo acervo de mitos, lendas, crendices, contos e causos assombrosos
vivenciados pelos cidadãos. Não era raro ouvir relatos assustadores de algum pobre
coitado que teve o desprazer de cruzar com uma das muitas almas que vagavam
pela cidade em busca de ajuda, vingança ou só amedrontar.
Segundo o censo demográfico de religiões no Brasil feito pelo IBGE, nas
décadas de maior ocorrência dos casos de assombrações – 50, 60 e 70 – o
catolicismo representava uma média de 92% de adeptos, uma maioria incontestável
que se faz presente na atualidade, apesar da crise na religião.
Como religião cristã fundamentada na crença em um único Deus e em
Jesus Cristo, tomando como base a Bíblia Sagrada para encontrar seus dogmas e
preceitos, é possível encontrar no catolicismo uma contradição quando o acareamos
com as assombrações.
A questão principal a ser analisada com este trabalho de pesquisa são as
relações entre as assombrações do Recife e a crença popular católica – positivas ou
negativas. E sobre a crença em assombrações, a Bíblia é contundente: “Assim como
a nuvem se desfaz e passa, assim aquele que desce à sepultura nunca tornará a
subir” (Jó 7:9). Torna-se assim, cristalina a opinião cristã no que diz respeito à
aparição de fantasmas, de qualquer natureza, já que esses são oriundos da “pós-
morte”, atribuindo a essas aparições conceitos como alucinações, ilusões de ótica,
devaneios, etc.
No entanto, para antagonizar essa questão, através do sociólogo e
antropólogo pernambucano Gilberto Freyre, temos acesso aos primeiros relatos
formais de casos de aparições de fantasmas e outras criaturas fantásticas sob a
nomenclatura de Assombração. E seguidos a eles os primeiros focos de conflito
entre os preceitos religiosos e o acontecimento supranatural.
13

E o que, de fato, ocorria quando alguém se defrontava com uma dessas


aparições? Na famosa obra, Assombrações do Recife Velho, do sociólogo já citado,
a reação mais comum das vítimas desses encontros desafortunados era quase
sempre pavorosa: Gritos, correrias, desmaios e, não raro, apego à crença. Isso
mesmo. Grande parte das pessoas que viram assombrações exprimia algum sinal
religioso, clamava por santos, agarrava rosários, pedia socorro ao próprio Deus. Ou
seja, se voltava à crença para remediar a situação desagradável e sem explicação.
Além de a Bíblia persuadir seus fiéis a não acreditar em fantasmas, ela
também propõe a ignorância dos seres mortos afirmando que eles nada sabem.
Algo que aumenta o confronto entre a crença e a ocorrência de assombrações, já
que muitos desses fantasmas surgiam com mensagens ou exortações para os vivos.
Veja na citação bíblica: “Porque os vivos sabem que hão de morrer, mas os mortos
não sabem coisa nenhuma, [...] mas a sua memória fica entregue ao esquecimento”.
(Eclesiastes 9:5).
Percebe-se que na citação acima, a Bíblia não se contenta em negar a
ciência dos falecidos, como também sugere que “a sua memória fique entregue ao
esquecimento”, ou seja, os vivos não devem recordar-se dos mortos, no entanto, o
que acontecia na prática, era bem diferente.
Na busca dos relatos de assombrações, feita a partir da análise da obra
de Freyre e de outros autores que trabalham a mesma temática, foi notada a
presença da história oral como uma das principais fontes de informações e com isso,
foi possível atribuir o conceito de mito para parafrasear a correlação entre
assombração e crença religiosa, pois mito, segundo Paulo de Carvalho Neto é a
“Narrativa da ação de um ser inexistente. É a representação mental e irreal de um
elemento com formas humanas” (apud. LÓSSIO, 2009. p. 44).
Sabe-se que, a experiência mítica e o próprio mito, receberam certa
insignificância motivada pela sua falta de provas ou explicações racionais, desse
modo, o acontecimento sobrenatural fica minimizado em relação à história,
propriamente dita, de determinada região (Nesse caso, o Recife) e isso faz com que
“as pessoas examinem o mito mais criticamente, porém quando se confrontam com
os mistérios da mente, se voltavam para o mito instintivamente” (ARMSTRONG,
2005, p. 71).
Racionalmente ou por instinto, as pessoas sempre acabam se voltando
para o mito, pois ele se torna exatamente a lacuna deixada pela falta de provas e
14

teorias científicas em relação ao sobrenatural do Recife, e pela falta de cuidado


sobre o tema dentro da religião que agraciou a maioria dos recifenses, e isso foi
comprovado nos resultados da pesquisa.
Armstrong diz que “O objetivo de um mito é tornar as pessoas mais
conscientes da dimensão espiritual que as rodeia e faz parte natural da vida” (p. 20),
no entanto, vamos observar a constante tentativa da igreja católica em domesticar a
crença Nesses mitos para que ela não fuja de controle e se torne uma ameaça à
religião, a saber, pela “difusão do espiritismo” (AZEVEDO, 2002, p.27), pois essa
ciência se torna mais eficaz na tentativa de impor uma explicação para as
assombrações por se dogmatizar em vertentes espiritualistas.
Fato que mostra a importância das assombrações para a história da
cidade. Elas, de fato, causaram um impacto importante no catolicismo, mas isso não
era facilmente notado no período delimitado à pesquisa.
Pois nas décadas em questão, os causos de assombrações acabaram
recebendo uma roupagem banalizada, sendo tratados muitas vezes como “história
da carochinha” (FREYRE, 1974, p.33) apesar da grande difusão nos meios de
comunicação, como foi o caso da Perna Cabeluda (ou Cabiluda, como era
popularmente chamada) que, mesmo com as várias versões para o surgimento
dessa, que é uma das mais famosas assombrações do Recife, foi propagada
através do rádio, que nos anos 70 era uma mídia popular e acessível a quase todos
os recifenses, entretanto, ainda assim, quando perguntados sobre a Perna
Cabeluda, as pessoas entrevistadas no documentário que leva esse título,

normalmente tratavam a lenda com sarcasmo. (A Perna Cabeluda. Dir.: Gil Vicente

[et. al.] 16’46”).

Figura 1: A Perna Cabeluda


Fonte: Blog Histórias Medonhas
15

Diante disso, Gilberto Freyre faz questão de citar o pensamento (talvez


com uma certa dosagem de exagero) do ensaísta inglês, Chesterton, quando ele diz
que “que uma lenda é obra de muitos e como tal deve ser tratada com mais respeito
do que um livro de história: obra de um único homem”. (Apud. FREYRE, 1974, p.
33). Obviamente, não há necessidade de levar essa citação ao pé da letra, mas tira-
se dela uma preocupação com a valorização dos mitos e lendas locais, a saber, da
história oral.
Com isso, o recorte nos casos de assombrações que tiveram ligação com
a crença na religião católica, poderá ser ampliado trazendo grande significação para
as lendas e mitos do Recife (quiçá do Brasil) de um modo geral.
O primeiro capítulo deste trabalho foi pensado para representar um
panorama geral, mas resumido sobre a visão católica em relação às assombrações
do Recife e ao espiritualismo de um modo geral, pois não seria coerente estudar as
relações entre esses dois temas sem uma prévia análise de como a crença católica
(analisada a partir de uma visão local, mas também pode ser tratada como crença
de massas por abrigar quase toda a população) enxergava as assombrações,
desprezando, é claro, a banalização atribuída ao tema e adequando-o ao contexto
espiritualista. Além de identificar como a igreja justificava o fato de contrariar os
preceitos bíblicos sobre a crença em fantasmas. Mais que isso, também será
exposta a situação da religião, pois existe esse problema dentro do catolicismo que
são os fiéis não praticantes (maioria) e os fiéis que praticam a religião apenas por
tradicionalismo ou obrigação. Esse tipo de adepto acaba ficando excluído dos reais
fundamentos da sua religião. A prova é tanta que na bibliografia consultada como
fonte de busca de casos não era raro encontrar pessoas católicas ignorantes à
prática espiritualista da igreja.
Posteriormente serão enumeradas as diversas reações, muitas vezes
instintivas, das pessoas que viram ou ouviram assombrações, relacionando-as
novamente com a igreja e encontrando nessas reações, subterfúgios do catolicismo
a fim de manter-se inabalável frente à todas as contradições propostas pelas
assombrações. Como também uma “saída” interessante encontrada pela religião
quando não podia explicar (com total veracidade) os fatos aos seus fiéis. Era
simplesmente alterar a nomenclatura do evento ou caso específico, por uma
terminologia (que no fundo significava a mesma coisa) mais sutil. Isso foi um grande
aliado da igreja católica.
16

Finalizando os capítulos, será feita uma inversão de lados. Muito será dito
à respeito do impacto que essa relação ‘catolicismo x assombração’ gerou dentro da
religião, mas é importante atentar para o que o catolicismo provocou sobre a crença
sobrenatural, tornando alguns de seus fiéis céticos sobre as assombrações e outras
coisas do além, mas essa situação foi contornada pelo velho ditado “Ver para crer”.
Após vivenciar a experiência assombrosa, não havia quem continuasse descrente.
Para concluir a introdução desta pesquisa, é importante salientar que não
é propósito do trabalho afirmar ou negar a existência dos casos estudados, muito
menos prestigiar ou desprestigiar as crenças e religiões aqui apontadas. Como base
fundamental da pesquisa, as assombrações do Recife não serão desmistificadas ou
exaltadas. A pesquisa limitar-se-á em analisar a experiência sobrenatural humana.
Se a vítima da assombração viu, de fato, um ser oriundo da pós-morte ou se a
mesma estava sob efeito de devaneios, ilusões de ótica, alucinógenos, etc. (Como
costumam afirmar os céticos) não cabe à pesquisa responder. Até porque todos
esses relatos foram colhidos através de história oral. E, não diminuindo a
importância dessa forma de busca de informações, mas a história oral é sujeita à
situações emocionais e à memória. Muitas pessoas, ao relembrar os fatos, retomam
as sensações do momento e acabam exagerando na narrativa e pode ocorrer, em
alguns casos, distorções do que realmente aconteceu.
Por isso, a motivação deste trabalho são as sensações, elucubrações e
inquietações causadas pela experiência assombrosa, incitando uma ruptura na zona
de conforto da crença do indivíduo, o que resulta na busca de auto-afirmação por
parte da crença.
17

1. CATOLICISMO X ASSOMBRAÇÕES

A religião católica foi escolhida para protagonizar a dualidade com as


assombrações, pelo motivo óbvio de que entre as décadas de 50 e 70, a maioria da
população se declarou católica. Esse é um fato incontestável, inclusive na
atualidade. O problema é que, quando limitamos essa maioria espantosa de
católicos declarados, para apenas aqueles católicos que realmente praticam a
religião, esse número caí significativamente.
Como já foi aludido neste trabalho, o catolicismo é uma religião cristã,
com preceitos e dogmas normatizados pela Bíblia Sagrada. A Bíblia, por sua vez, é
clara quanto à crença em assombrações; isso também foi comprovado. No entanto,
nos perguntamos se todos os católicos têm conhecimento disso.
A partir da leitura de alguns artigos e livros que visualizam a situação do
catolicismo no Brasil, foi percebido que essa religião acabou ficando tradicional a
ponto de ter um grande número de fiéis passivos (ou não praticantes). A religião
acabou se tornando uma obrigação às pessoas.
Isso fica claro no pensamento de João Camilo de Oliveira Torres:

O católico brasileiro não lia a Bíblia, o católico brasileiro não participava


dos sacramentos, e apenas assistia remotamente à Missa, como um
espetáculo, em língua estrangeira, no qual se executavam atos cujo
significado desconhecia e cujo mistério respeitava. Ia-se à missa por
obrigação como tanta gente vai à Ópera, sem saber italiano e sem
entender muito de música. Mas, é obrigação (Apud. CÂMARA NETO,
2003, p. 3).

Como religião de tantos não praticantes, tantos outros que praticam por
obrigação e poucos que exprimem, de fato, sua fé nas práticas e preceitos, é
importante perceber que, quantitativamente falando, o catolicismo sempre estará em
alta, mas qualitativamente, vemos um grande déficit na mentalidade religiosa de
seus seguidores. Além da falta de apego às práticas religiosas, esse déficit poderia
ser explicado pela falta de leitura bíblica. Os adeptos do catolicismo, em suma, não
possuem a prática de “buscar na fonte”, para adquirir o devido conhecimento sobre a
crença a que se apega.
18

Câmara também trabalha esse desapego ao contato com a bíblia por


parte da maioria dos católicos, e o enfatiza citando HAUCK,

Sobre o contato do povo com a Bíblia, afirma João Fagundes Hauck que
este era feito [...] tão somente por meio de representações, mormente na
época da Semana Santa e Natal. Estabelecia-se dessa forma entre a
população e o Evangelho um relacionamento “de cunho folclórico,
festivo, nos reisados e congadas, e na apresentação do presépio. (idem).

Com uma maioria de fiéis “auto-tolhidos” do conhecimento sobre sua


religião, perde-se uma noção crítica e de interpelações por parte desses fiéis. E é
nessa lacuna que o catolicismo se faz reafirmar quando confrontado com as
assombrações.
Ora, de acordo com citação da Bíblia, “quem desce à sepultura nunca
tornará a subir” com isso, a religião não deve creditar a crença em fantasmas, pois,
segundo o dicionário Caldas Aulete, entende-se por fantasmas a “suposta aparição
de pessoa que já morreu”. Chega-se então, a um paradoxo dentro da religião, já que
o catolicismo não só acredita como também usufruía da crença em assombrações
na intenção de salvaguarda.
Mas, na prática, esse preceito não era seguido pela igreja. Jean
Delumeau, em A História do Medo no Ocidente, escreveu um ensaio “Os
Fantasmas” e nele, trouxe vários casos relatados por cronistas e outras situações
que provam a crença da igreja nesses fantasmas.
Ora, havia um padre que rezava missas diariamente pelos mortos. Um
superior soube da prática e proibiu-a. Caso que repercutiu mal, já que esse bispo foi
assolado por fantasmas que só o libertaram quando ele prometeu permitir essas
missas. “Apologia da oração pelos defuntos, certamente; mas, ao mesmo tempo,
testemunho da crença nos fantasmas”. (p.122)
O que, então, diria a igreja católica sobre essa contradição? Bem,
Delumeau explica essa crença em fantasmas alegando que o apego à citação
bíblica que nega a possibilidade da existência de fantasmas é apenas defendido
pelas igrejas reformistas, cabendo ao catolicismo se apegar apenas nas passagens
que salvaguardem sua opinião dogmática. (Na verdade, isso não é exclusividade do
catolicismo; é prática de quase todas as religiões).
19

Delumeau diz que o catolicismo, para tentar explicar a crença em almas


do além, afirma que “Deus pode permitir que as almas dos mortos se mostrem aos
vivos sob as aparências de seu corpo de outrora” (p.125). Ainda acrescenta que
esses espíritos voltariam à Terra com a finalidade de exortar os vivos, ou seja, Deus
concederia essa graça a um espírito com a finalidade de ajudar alguém. Mas o que
dizer sobre os chamados espíritos zombeteiros, que vagam pela cidade com a única
intenção de amedrontar suas vítimas, como é o caso do “Boca de Ouro” (Figura 2).
Segundo Roberto Beltrão,

O Boca de Ouro é um ser misterioso que, sob as vestes de boêmio,


esconde [em sua aparência] um misto de zumbi e demônio [...] é uma
assombração cujas primeiras aparições datam do início do século XX [...]
Talvez seja a alma penada de um malandro que cometeu todos os
pecados da boêmia [...] ou talvez seja a encarnação de um espírito
maligno. (2010, p.25)

Figura 2: O Boca de Ouro


Fonte: O Recife Assombrado

Para essa “classe” de espíritos, com caráter maligno, a igreja não teria
uma explicação senão atribuir-lhes a nomenclatura de demônio, já que esse termo é
muito utilizado no catolicismo, a saber, conhece-se muito sobre a terminologia citada
a partir dos famosos padres exorcistas.
Porém, mesmo com tantas tentativas de fuga no momento de encontrar
explicações para o que é encoberto, todas essas tentativas acabam desembocando
no mesmo lugar, já que Delumeau também fala sobre os demônios e sobre a
também permissão divina para que estes tomem emprestados corpos de cadáveres
(com a ajuda de feiticeiras) para aparecer aos vivos para o bem destes. (p.125).
20

É aí que se volta ao mesmo ponto. A nomenclatura de demônio,


erroneamente utilizada para justificar o aparecimento de espíritos zombeteiros, é
aceita pela ignorância de alguns seguidores do catolicismo, mas quando se estuda
esse tema e tenta-se encontrar a “fuga” para esse último contraponto, nos
deparemos com uma enorme barreira confortável ao catolicismo. E nessa barreira
está escrito: “As coisas encobertas são para o Senhor”. (Deuteronômio 29:29). E fica
aqui, uma lacuna deixada pela falta de respostas.
Legitimar ou não legitimar a crença em assombrações dentro do
catolicismo? É uma questão que parece difícil de responder teoricamente, mas na
prática, essa isso acontecia (e acontece) sem muito recato.
Não é atual a relação do catolicismo com vertentes espiritualistas. Toma-
se como uma grande prova disso a igreja do Sagrado Coração do Sufrágio em
Roma (Vide Figura 3), fundada pelo padre Júlio Chevalier no ano de 1854, que
carrega no nome a sua finalidade, já que sufrágio significa ato de piedade pelos
mortos ou missa pelas almas dos mortos.

Figura 3: Igreja do Sagrado Coração do Sufrágio


Fonte: Confraria de São João Batista

Não é apenas a Igreja do Sagrado Coração do Sufrágio que faz alusão


aos mortos. No dia 15 de Novembro de 1893, houve um incêndio curioso dentro
dessa igreja, que só pôde ser explicado sobrenaturalmente, já que não havia nada
inflamável no local. O extraordinário é que, depois do fogo ter sido controlado, notou-
se que as chamas gravaram uma imagem curiosa no mármore do altar. Seria o rosto
21

de alguma alma que sofria no purgatório. O acontecimento era a prova de um evento


paranormal insólito. Foi a partir disso que o padre Victory Juet decidiu fundar um
museu que se tornou público recentemente depois de uma reportagem feita pelo
pesquisador brasileiro Clóvis Nunes e editada e transmitida pelo programa da Rede
Globo, Fantástico. Trata-se do Museu das Almas do Purgatório, onde estão
guardadas dezenas de peças recolhidas pelo próprio padre Juet em toda a Europa
provando a comunicação e o aparecimento de mortos.

Figura 4: Impressão em fogo da mão de uma alma do além


Fonte: Confraria de São João Batista

Também há que se levar em consideração de que essa crença e essa


ligação espiritualista da igreja católica, apesar de não ser conhecida por muito de
seus fiéis, não é encoberta, muito menos atual. A prova é tanta que o Museu foi
fundado a mais de 100 anos e alguns padres chegaram a escrever livros com a
temática da chamada transcomunicação, que consiste em fazer contato com o
espírito dos mortos. O mais conhecido é o padre francês François Brune, autor de
“Os mortos nos falam” e “Linha Direta do Além”.
Ficou claro que essa ligação entre o catolicismo e o espiritismo existe. O
problema é que durante o período delimitado para estudo das relações entre o
catolicismo e as assombrações, a maioria dos católicos não tinha acesso a essa
informação.
As práticas espíritas no catolicismo não são, de todo, secretas. Mas
também não são compartilhadas nos momentos de missa. O católico que vai à
22

missa está diante de um roteiro pré-estabelecido por entidades superiores que


excluem o espiritualismo e injetam nas missas apenas as mensagens e exortações
que lhe são cabíveis.
É tanto que o católico que desconhecia as dimensões espirituais e míticas
que o rodeia, quando se deparava com a assombração não sabia o que fazer se não
procurar uma fuga ou um auxílio divino.
É um ciclo vicioso.
A assombração assola o homem, o homem sente medo, o medo o faz
buscar auxílio na igreja, e igreja acopla a assombração.

Figura 5: Esquema cíclico da assombração


Fonte: Acervo pessoal

E no centro de todo esse esquema está a mentalidade tradicionalista. O


homem atua como parte deste esquema, mas a mentalidade arraigada de tradições
antigas, incutidas pela própria igreja através de um cristianismo antigo, pôde ser
percebida nas atitudes das vítimas das assombrações no Recife.
23

2. A IGREJA COMO “ANTÍDOTO” E PROTEÇÃO À ASSOMBRAÇÃO

O católico – praticante ou não, que ia à igreja ou não – poderia não


acreditar abertamente, mas no fundo todo mundo tem medo de assombração, e
mesmo com a falta de instrução na religião, instintivamente, as pessoas tinham um
“escudo” protetor contra toda e qualquer ameaça do além.
O homem, quando se vê em uma situação sobrenatural ou sem
explicação lógica, tem como “antídoto” algo tão sobrenatural quando a própria
aparição: A crença, a igreja, a religião, ou, resumindo todos os conceitos, a fé.
Voltando ao Gilberto Freyre, é possível encontrar alguns casos
interessantes de vítimas de assombração sendo resgatadas daquela situação
quando buscavam no auxílio no sagrado da igreja, que, naquele momento, era o
único disponível.
É quando nota-se a equiparação de igreja e assombração, pois mesmo
com o caráter sagrado da igreja, ela é, essencialmente, tão sobrenatural quando as
assombrações, pois as crenças arraigadas nessa religião se valem de muitos
conceitos sem explicação natural, logo, passa a ser tratado de igual para igual.
Um exemplo disso aconteceu com o Zé Cambinda, quando avistou um
cavalo fantasma e viu-se sozinho numa estrada erma à meia-noite. Não havia
solução natural para livrá-lo do horror que a assombração o provocou, então ele
“benzeu-se três vezes [e] ali mesmo na estrada, rezou uma oração” (GRIZ, 1969, p.
130).
Por mais que a religiosidade tente incutir uma negação à acontecimentos
os quais ela não consiga oferecer uma explicação fundamentada, todo indivíduo
vítima de assombração, sabe que está lidando com algo “do além”, então busca no
além, a fuga do seu infortúnio.

2.1 Os Principais Subterfúgios

No momento da assombração, a vítima vê-se sozinha, desamparada. É


quando busca auxilia na sua fé. Quando trazemos esse contexto para a vítima
24

católica ou religiosa, uma série de tentativas de se livrar daquele infortúnio era


exprimida e a maioria delas sempre estava relacionada (ou até mesmo equiparada)
com o sobrenatural.
Era buscar auxílio na crença, mesmo ignorando o fato de que a igreja
abriga vertentes espiritualistas, mas que por falta de envolvimento e conhecimento
de sua própria religião, muitos acabam passando a vida inteira sem descobrir, no
entanto, (voltamos ao instinto o qual Armstrong tanto fala), a vítima não via outra
forma de pedir socorro se não unindo a fé individual com a fé na religião. E essa
combinação era decisiva no momento assombroso.
Conforme será aludido mais adiante, todas as sensações, expressões e
atos exprimidos pela pessoa assombrada, durante e depois do acontecimento, que
tinham ao menos uma leve faísca de envolvimento com a fé, religiosidade ou o
catolicismo, propriamente dito, acabou, no fim das contas, sendo um grande aliado
da religião.
E o interessante disso, é que, dentro da periodização estudada, a igreja
não precisou fazer nada para que isso acontecesse. A reação da vítima estava
incutida através da já citada, mentalidade ligada às tradições antigas.
Poder-se-á dizer que, uma pessoa religiosa ao ver um vulto originado por
qualquer coisa; sombra, luz, alucinação ou fantasma, inconscientemente é ativado
um “mecanismo de defesa” para livrá-la de tal situação. Essa mecanismo de defesa
pode muito bem ser um sinal da cruz, um beijo no rosário, um clamor à algum santo
de devoção, enfim, foram inúmeras as ações exprimidas por essas pessoas. E isso
acontecia de maneira natural. Não era prática de a igreja orientar as pessoas sobre
como reagir diante de uma assombração, mas o instinto de auto-proteção, o medo e
a mentalidade tradicionalista direcionavam o indivíduo ao sagrado.
E dava certo!

2.1.1 O Pedido de Rezas e Missas

Foi ressaltado anteriormente sobre a explicação da igreja católica a fim de


justificar a aceitação na crença de espíritos que voltam à Terra para ajudar ou pedir
ajuda.
25

Por “pedir ajuda” entende-se, pedir rezas ou missas, pois, segundo as


tradições católicas, as almas que não foram para o céu ou o inferno, estão
padecendo no purgatório e necessitam das orações dos vivos (muitas vezes, do
perdão também, quando se trata de almas que fizeram mal e morreram se receber o
perdão) para conseguir descansar em paz.
Partindo do próprio Gilberto Freyre, encontramos uma infinidade de
relatos de assombrações que simplesmente estariam em busca de ajuda.
Muitas dessas aparições confirmam, inclusive, a versão católica sobre a
existência de um purgatório. E é exatamente nesse estado em que as almas
poderiam, com a permissão divina, vir à Terra.
É importante lembrar o caso do “velho Suassuna pedindo missa” que
ganhou um capítulo destacado no livro de Gilberto Freyre:

Dizia-se que pelos corredores da casa [...] costumava vagar um fantasma


de velho alto e muito branco: a alma do próprio visconde a pedir perdão a
escravos que maltratara. Também a pedir missas. Missas para sua pobre
alma de rico arrependido dos pecados contra os negros. Chegava a
visagem a fazer sinal com os dedos para indicar com precisão matemática
aos vivos o número de missas que desejava fôssem mandadas dizer por
sua alma pela pessoa a quem aparecesse: três, quatro, às vezes cinco
missas. (1974, p. 75-76).

É importante fazer um grifo para a frase “a quem aparecesse” desta


citação, pois cabe aqui uma análise. Quando a alma do velho Suassuna apareceu,
ela pôde obviamente encontrar refúgio no local onde era seu lar em vida. No entanto
não coube ao velho escolher a quem aparecer. Ele tinha apenas o propósito de se
desculpar pelos pecados cometidos e pedir missas pela sua alma. A notar pela
quantidade de missas que ele indicava, possivelmente a sua alma não estava em
paz por causa dos pecados cometidos durante sua vida, dessa forma, só o perdão e
as missas poderiam tirar aquela alma da situação desagradável na pós-morte.
Esse é um caso acolhido pela crença católica. De acordo com as
explicações dessa religião, provavelmente o espírito do Suassuna teve a permissão
do próprio Deus para conseguir libertar-se dos seus pecados.
É interessante abrir um parêntese nesse caso de almas que pedem ajuda.
Nessas situações, a análise micro-histórica, a que o historiador italiano Carlo
26

Ginzburg usa em muitas de suas obras, se faz importante, pois quando nos
distanciamos do caso regional, encontramos situações semelhantes, longínquas em
tempo e espaço, entretanto poder-se-á atribuir-lhes as mesmas explicações; tirar-
lhes as mesmas interpelações. Em “Os Andarilhos do Bem”, é encontrado um fato
semelhante aos acontecimentos do Recife. Tomemos como exemplo o caso da
chamada “Anna, a Ruiva”, italiana que via e falava com fantasmas. Em um dos seus
encontros, “a morta lhe havia pedido para transmitir à mãe as suas últimas vontades:
[...] fazer peregrinações a alguns santuários” (2010, p.57).
Note-se que a aparição do além, nesse caso não pede especificamente
uma missa ou uma reza, mas “peregrinações a alguns santuários”. Claro que se
deve levar em consideração o fato de que isso ocorreu em período e lugar diferentes
do nosso recorte de estudo. Mas nota-se um padrão nas aparições de fantasmas.
Esse padrão é voltar-se ao sagrado. Pedir missa, pedir reza, fazer peregrinação à
santuários. Todas essas ações bebem da mesma fonte. Todas essas ações buscam
o auxílio no sagrado, na religião, na fé.
E a mãe da morta realiza o desejo da filha para ajudá-la e para “acalmar o
seu próprio espírito” (idem).
É percebível que nessa situação, a preocupação em atender ao pedido
sacro da alma do além não é só o de fazer o bem unicamente à tal alma, mas o bem
a si próprio. O fantasma tendo encontrado a paz, sua vítima, conseqüentemente,
também a encontra.
Nos relatos reunidos pelo jornalista Roberto Beltrão em seu livro “Histórias
Medonhas d’O Recife Assombrado 1” há também um bom punhado de assombrações
pedindo missas e rezas. Entre eles, o caso de uma assombração que suplicava por
rezas:

Certa noite, enquanto o meu avô trabalhava em seu escritório, minha avó
retirou-se para o seu aposento, que ficava de frente. Já havia deitado
quando, de repente, viu aproximar-se da beira de sua cama a figura de uma
jovem mulher. Era muito alta, bastante magra e suplicava à minha avó que
rezasse por ela. (p.39).

1
Dois livros do jornalista Roberto Beltrão lançados no mesmo ano foram utilizados na pesquisa
bibliográfica, então, para não confundir o leitor durante as citações ao longo do texto, elas serão
tratadas da seguinte forma:
BELTRÃO, Roberto. Histórias Medonhas d’O Recife Assombrado. 2ed. Bagaço: Recife, 2007.
_____. Estranhos Mistérios d’O Recife Assombrado. Bagaço: Recife, 2007b.
27

E os pedidos de missas não param por aí. Observe esta passagem onde
o fantasma manda um recado para determinada pessoa:

Dias depois, o casal voltou a procurá-la. Disse-lhe que o estranho sujeito da


escada tinha aparecido novamente e, desta vez, mandara um recado escrito
à mão num pedaço de papel: ‘Diga a Lecinha (o apelido da dona da casa)
que mande rezar uma missa para mim. Sou o irmão dela (BELTRÃO,
2007b, p. 23).

É desonesto falar sobre almas pedindo rezas e missas sem citar algo
bastante comum no mundo assombroso e que também se associa ao pedido de
missa: As botijas.
Segundo Roberto Beltrão “a botija é um tesouro em dinheiro, ouro ou
prata que foi escondido em uma residência ou terreno por uma pessoa que já
morreu” (ibidem p. 67), e a tradição de enterrar botijas era bastante comum nas
décadas em questão. O que é interessante ressaltar é que quando um falecido
escondia uma botija, o seu espírito ficava preso ao seu bem material, e isso o
impedia de descansar em paz. Para se livrar desse fardo,

O espírito deve manifestar o desejo de que determinada pessoa ache a


riqueza escondida. A mensagem é transmitida em forma de aparição de um
fantasma, ou por meio de um sonho em que o morto passa as coordenadas
e pede que sejam rezadas missas para ele poder entrar no Céu, visto que
padece no Purgatório para espiar seus pecados. Se não for assim, será
impossível determinar o paradeiro da botija, pois ela estará encantada.
(ibidem, p.68).

Percebe-se aqui a grande “responsabilidade” do escolhido para encontrar


a botija: Fazer o fantasma entrar no Céu.
E é por esse mesmo motivo que muitas vítimas dessas e outras
assombrações não esperam nem o pedido da alma e tomam a iniciativa de
encomendar a missa por vontade própria: “[...] Na semana seguinte mandou rezar
uma missa em intenção da tia avó”. (BELTRÃO, 2007, p. 23).
Dentro desse ínterim, é interessante salientar uma experiência
assombrosa, porém bastante interessante na família do próprio Gilberto Freyre. Era
28

o fantasma de um garotinho negrinho bastante sorridente, cuja presença, ou invés


de causar medo, trazia afeto aos moradores do local. Mas, como salientou um amigo
da família, não era salutar que a criança ficasse na residência então “recomendaram
que uma missa fosse rezada na casa para encaminhar a pobre alminha perdida de
volta à luz” (BELTRÃO, op. cit. 2007b, p. 27).

Figura 6: Missa pelas almas


Fonte: Tradição Católica

Quando a missa foi realizada, a assombração nunca mais apareceu


novamente. Isso não apenas nesse, mas em todos os casos outrora citados.
É exatamente essa a impressão que se tira nos casos escolhidos para
figurar um dos meios de remediar a assombração: Rezar e encomendar missas
foram fortes “antídotos” à assombração.
Entretanto, pôde se perceber que o recorte feito aqui para os casos de
assombração são todos ligados ao contexto aceito pelo catolicismo. O espírito aflito
que aparecia, causava pavor, isso é indiscutível, mas o pavor era amenizado
quando a vítima entendia a intenção da assombração – pedir ajuda. Uma ajuda que
populariza a religião católica, por isso, a prática de missas pelos mortos é tão
abertamente realizada. (Lembremo-nos das missas de sétimo dia).
Como se sabe “Pedir missa pelos pecados é um dos mais antigos e
legítimos instrumentos utilizados pela igreja católica no seu esforço para domesticar
as crenças em fantasmas” (BENZAQUEN, 2010, p.4) e como o desaparecimento da
assombração coincide com a encomenda da missa, o resulto indiscutível dessa
combinação Fantasma-Missa era favorável à igreja.
29

2.1.2 Os Sinais e Jargões Religiosos

Rezar ou encomendar missas, como foi mostrado, era uma atitude muito
comum para “remediar” a assombração; fazê-la encontrar a paz para que não mais
assole sua vítima. Mas quando essa assombração não surge às pessoas com a
intenção de pedir ajuda ou até mesmo de ajudar? Viu-se que o catolicismo
encontrou lacunas na Bíblia onde ele pôde incutir explicação para a aparição desses
fantasmas que necessitam dessas rezas para que cessem seus lamentos pós-morte
e eles encontrem o caminho da paz.
Porém, Freyre, pesquisadores e cronistas trazem à tona uma classe
diferente de aparições. São assombrações que surgem com a intenção única de
aterrorizar suas vítimas. Dentro dessa classe encontramos fantasmas e outras
criaturas fantásticas que povoaram o imaginário recifense nas décadas de 50, 60 e
70.
Diante dessas situações, as quais as vítimas não recebiam um simples
pedido de missa ou de reza, mas, ao contrário, eram assoladas por sustos, gritos,
risos fantasmagóricos e, em alguns casos mais extremos, agressões físicas, como
buscar, na crença religiosa, uma saída para esse momento assustador?
A solução era bem simples e instintiva: “Benzer-se, fazer o pelo-sinal”.
(FREYRE, 1974, p.126).
Mas é interessante ressaltar que, quando se tratava de espíritos
sofredores pedindo socorro às suas vítimas, a primeira intenção era, de fato, ajudar.
Mesmo sentindo medo. Porém, quando trazemos a assombração para a classe
dessas “aparições malignas”, a primeira reação, nem sempre foi buscar auxílio na
crença, mas antes de tudo, tentar fugir por outros caminhos.
Voltando à narrativa de Gilberto Freyre sobre uma tal “cabra cabriola”,
que nada mais era senão um “bicho de arrepiar de medo ao mais bravo menino.
Deitava fogo pelos olhos, pelas ventas e pela boca” (p. 6).
Ao ouvir rumores de que a cabra cabriola estava por perto, “Gritavam por
pai, por mãe, por vó, por sinhama, por bá; ou se escondiam por baixo dos lençóis;
ou rezavam a Nossa Senhora, faziam o pelo-sinal, diziam o padre-nosso”. (idem)
Nota-se nessa citação de Freyre que, por se tratar de um ser fantástico e
muitas vezes desconhecido pelas pessoas que se contentavam com o que ouviam
30

falar (Afinal, ninguém queria ter o desprazer de cruzar com tal bicho), a solução para
fugir do medo provocado pelo simples rumor de suas aparições, as pessoas
buscaram um tipo de fuga sim, mas percebe-se uma ordem de importância no
momento dessa fuga:

1. Pai;
2. Mãe;
3. Vó;
4. Sinhama;
5. Bá;
6. Esconder-se por baixo dos lençóis;
7. Rezar por Nossa Senhora, fazer o pelo-sinal, dizer o padre-nosso.

É importante salientar que, nesses casos, houve uma resistência das


pessoas em relação ao pedido de ajuda à crença, pois se percebe em primeiro
plano, a evocação às entidades familiares (Pai, mãe e avó), em seguida aos
cuidadores ou pessoas que estavam próximas, ligadas à vítima (Sinhama e bá),
surge então uma tentativa de fuga material (Esconder-se por baixo dos lençóis),
para, só então, buscar uma ajuda tão “sobrenatural” quanto a própria assombração:
Rezas e sinais de cruz. É quando o inconsciente ativa aquele mecanismo de defesa
incutido pelo tradicionalismo cristão ocidental.
Nas décadas estudadas, o Recife estava povoado dessas criaturas
fantásticas, equiparadas aos fantasmas. Falamos na cabra cabriola, bicho regional.
Mas não se pode deixar de falar nos famosos lobisomens, pois a “capital das
assombrações” também teve algumas versões para essa criatura.
Quem protagonizou um interessante caso assombroso de encontro com
um lobisomem, foi a Josefina Minha-Fé, o bicho amarelento e fedorento:

Estraçalhou o vestido da negrota [...] enquanto ela gritava de desespêro.


Que a acudissem pelo amor de Deus. Que a socorresse sua Madrinha,
Nossa Senhora da Saúde, que era sua fé! ‘Minha Madrinha’! ‘Minha
Madrinha! Minha Fé! Minha Fé! (ibidem, p. 34)
31

E o apego à crença foi o que salvou Josefina, pois, segundo Freyre, o tal
lobisomem tinha mais medo de Nossa Senhora da Saúde “que do próprio Nosso
Senhor”. (idem).
Josefina Minha-Fé passou a carregar no nome uma prova de devoção. No
seu caso, à Nossa Senhora da Saúde (Santa que faz parte do acervo sacro católico)
que a livrou da temível situação, que, por sinal, foi presenciada por terceiros, que
depois desse dia, passaram a acreditar em lobisomens e outras criaturas.
Além de forma de remediar uma situação, o apego à crença pode também
servir como prevenção. Ainda em Freyre, há um exemplo disso e que se torna bem
mais abrangente, pois os sinais religiosos possuem uma preparação ainda maior
que nos outros casos já citados, a saber, pelo uso de velas e cânticos para afastar a
ameaça de um bode vermelho e maligno, diziam ser enviado pelo próprio “capeta”:

Naquela tarde acenderam-se na casa velas ao Menino Deus e aos santos e


não apenas luzes de lamparina de azeite como nos dias comuns. Velas que
arderam a noite inteira. Queimou-se incenso. Cantou-se ladainha. Rezou-se
longamente. Rezas contra o Maligno. Orações pelas almas penadas. (p.73)

Não podemos negar que a “fé” seria o motor de toda essa confiança que
as pessoas tinham ao executar esse tipo de ação diante da assombração. E não o
faziam apenas quando se deparavam com um fantasma, mas também quando havia
alguma ameaça de que determinado local abrigava uma assombração. Realizar
alguma ação de cunho religioso, ou desferir algum dos famosos jargões de apelos
às inúmeras entidades cânones, servia como “prevenção”.
Numa cidade essencialmente católica e povoada por criaturas
desconhecidas, a solução era se prevenir desses mistérios apelando para a crença:

Pelo sim, pelo não, vale mais o excesso de cuidado que o descaso com
o desconhecido. E providências tão simples podem reverter situações
malfazejas. Tudo isso sob a invocação de Nossa Senhora da Conceição,
do Menino Jesus, da Trindade máxima, Deus, Jesus, Espírito Santo.
(QUINTAS, 2009, p. 21)

Era bem melhor se antecipar à assombração que “pagar para ver”, por
isso que passavam pela calçada do sobrado mal-assombrado da Rua de Santa Rita
32

Velha, “[...] As mulheres benzendo-se, fazendo o pelo-sinal. Os meninos correndo”.


(FREYRE, 1974, p.126).Aos homens, bastava a valentia; não exprimiam
religiosidade alguma ao passar pela calçada assombrada do sobrado, mas Freyre
não nega o receio destes. Principalmente se a caminhada for de noite. Bem, e às
crianças, que ainda não estavam arraigadas na tradição religiosa de pedir ao
socorro divino, só restava apelar para a fuga mesmo.
Diante das assombrações eminentes, também houve quem se valesse da
imagem de santos de devoção para se resguardar da visão horrenda, como é o caso
de “Seu” Bira, que aceita um emprego de vigia noturno numa firma assombrada,
que, após perceber a presença de seres fantasmagóricos no lugar logo no primeiro
dia de trabalho, decidiu se preparar: “Além da faca que sempre o acompanhava,
trouxe uma pequena imagem de São Benedito, de quem era devoto. Pediu ao santo
que o resguardasse dos fantasmas”. (BELTRÃO, 2007b, p. 47). No caso do seu
Bira, o seu santo de devoção demorou um pouco para atender ao pedido do fiel,
mas esse é, de fato, um caso à parte, já que as nossas citações mostram que o
apego à crença a partir dessas imagens religiosas era, em suma, eficaz.
Todos os casos citados pelas obras de referência acabam de certa forma,
se encaixando na explicação da igreja para tais afirmações. Foi visto que a igreja
tinha saída para as assombrações que buscam ajuda, alegando que tudo acontecia
por permissão divina. No início do trabalho foi lançada uma questão sobre as
aparições que não queriam pedir ajuda e muito ajudar, apenas assustar.
Para esses continua-se a utilizar a nomenclatura de demônio, o que os
torna toleráveis por parte dos fiéis que depositam sua fé, nesse momento, nos
padres exorcistas. É tanto que Freyre narra o pensamento das pessoas sobre o
supracitado, bode vermelho: “Um desses misteriosos bodes que há séculos se
supõem enviados de Satanás aos homens esquecidos de Deus e do próximo”. (p.
73).
Enfim, são muitas tentativas de explicação para essas criaturas que
povoaram o imaginário recifense, mas todas elas deságuam na terminologia
abrigada pelo catolicismo, mostrando que o trabalho da igreja continuou dando
certo.

2.1.3 O Uso da Terminologia Milagre


33

Foi estudado anteriormente, o fato de a igreja utilizar-se de terminologias


diferentes, a fim de tornar os fatos horrendos, mais sutis. Aceitos pelos fiéis.
Isso não só aconteceu com as criaturas fantásticas e malvadas, mas
também houve outra classe de aparições que poderia ser facilmente encaixada nos
espíritos que ajudam as pessoas que lhe tem apreço.
Gilberto Freyre trouxe um caso merecedor de atenção sobre essa
artimanha religiosa.
Estava o pobre José Pedro deitado ao ar livre, naquele estado entre estar
dormindo e estar acordado. Foi quando, em meios às nuvens, avistou a nítida
imagem de Nossa Senhora do Carmo, de quem era devoto.
A santa apontava para uma nuvem que tinha a forma de um bicho no qual
José Pedro deveria jogar para sair da pobreza,

O recifense pobre esfregou os olhos: não era um sonho. A santa lá estava e


a nuvem com forma de bicho, também. Gritou então o afilhado de Nossa
Senhora do Carmo pela mulher. Que corresse! Que viesse ver!
Assombramento! Milagre! Pulou da cama. Mas nisso a santa se sumiu. [...]
O recifense é que não cabia em si de assombrado e de contente. (p. 89)

Nesta citação vê-se que, de fato, houve a aparição de um ser oriundo de


um mundo desconhecido, vindo da pós-morte, aparição espectral, enfim, uma
aparição que se encaixa no contexto de assombração.
No entanto há que se analisarem três pontos importantes nessa aparição
de Nossa Senhora do Carmo:
1. Figura sacra: Nossa Senhora do Carmo não seria aqui um espírito
qualquer; é a aparição de uma santa, que por sinal, era a santa de
devoção da pessoa assolada;
2. Surgida nas nuvens: Segundo a narrativa, o homem viu a santa
descendo do céu e envolta em nuvens, algo que remeteria à qualquer
um a imagem bíblica da figura de Jesus Cristo;
3. Caráter de ajuda: A santa apareceu para determinada pessoa com a
finalidade de tirá-lo do estado de pobreza a que fazia parte. É tanto que
o homem jogou no bicho e ficou rico graças à santa.
34

Mesmo a aparição da santa tendo causado medo, haja vista a primeira


impressão do homem: “Assombramento! Milagre!”. Nota-se que antes de nomear a
aparição com a palavra milagre, ele mostra o real sentimento primário, o medo. Por
isso a chama de assombramento.
Além disso, passado o susto inicial do homem e, de acordo com os três
pontos analisados nessa aparição, ela perde a característica de assombração,
mesmo tendo estereótipos para isso, e recebe o conceito de milagre.
De acordo com o dicionário Priberam milagre é um “facto sobrenatural
oposto às leis da natureza” e assombração é o “terror causado pela aparição de
coisas sobrenaturais”. Basicamente a mesma coisa. Porém, dentro do seio da igreja,
se aceita facilmente a palavra “milagre”, mas não a palavra “assombração”.
Nesse ínterim, o que seria um milagre senão uma assombração
travestida, maquiada?
Os preceitos bíblicos católicos não aceitam a crença em assombrações,
porém admitem, aceitam e até se valem da crença em milagres, somando assim,
mais um ponto favorável. Mais uma área de atuação. Mais uma maneira de manter
essas crenças sob controle.
35

3. O IMPACTO DO CATOLICISMO NA ASSOMBRAÇÃO

No início do trabalho, foi citada a importância dos mitos na construção de


um pensamento crítico em relação ao sobrenatural, ou à religião.
O homem, em suma, sente a necessidade de encontrar refúgio e/ou
explicações para o mundo sobrenatural que o rodeia. Armstrong cita essa busca
“instintiva” do homem a fim de encontrar resposta para os mistérios envoltos não
apenas na religião, como também nos fenômenos sobrenaturais que assolaram uma
parcela interessante de recifenses nas décadas acolhidas pela pesquisa.
Foi falado bastante acerca dos impactos que as assombrações causaram
no catolicismo, mas mudando a ordem dos fatores, temos um resultado diferente,
pois a crença demasiada na religião, também causou um impacto nas experiências
sobrenaturais dos recifenses.
Mesmo tendo um forte envolvimento com o espiritualismo, nos preceitos
que eram pregados nas missas aos fiéis, não se falava de assuntos espirituais. A
maioria dos católicos tem conhecimento apenas das missas de sétimo dia, ou
missas encomendadas aos mortos e isso acabou gerando na mentalidade religiosa,
um bloqueio na hora de aceitar ou até mesmo acreditar nos fatos assombrosos.
Era gerada, inconscientemente, uma espécie de “negação prévia” aos
fatos sobrenaturais.
Disso, tira-se um exemplo retratado pelo jornalista Roberto Beltrão no livro
“Estranhos Mistério d’O Recife Assombrado”.
É um caso de um senhor muito católico, mas que, como grande maioria
dos seguidores desta religião, não conhecia de fato, o pensamento do catolicismo
sobre a ligação desse mundo com o “mundo do além”:

Um senhor que era católico ferrenho, desses como antigamente mesmo,


que iam à missa toda semana e não acreditavam de jeito algum em coisas
que não fossem ‘católicas’. Assombração, então, piorou. Isto ele não queria
nem saber. (BELTRÃO, 2007b, p. 81).

Acontece que esse senhor que não queria saber de assombração,


acabou sendo vítima e lhe custou um pouco de tempo para acreditar no que
36

acontecera. O fato é que esse senhor voltava do trabalho todos os dias com um bom
amigo. No dia em questão, o amigo falecera pela manhã, mas o senhor católico não
havia tomado conhecimento dessa morte. Ignorante, tomou o caminho de costume
para voltar para casa, acompanhado pela alma do amigo, falecido horas antes.
De tão cético sobre coisas que não fossem “católicas”, esse senhor nem
percebeu que se tratava de uma assombração. Ao chegar a casa, recebeu a notícia
da morte através de sua esposa e “com todo seu catolicismo, olhou para ela (com
aquela cara dizendo ‘tá doida, é’?)”. (Ibidem, p. 82). Só acreditou quando leu o
obituário no jornal.
Percebe-se que essa falta de informação dentro da religião, acabada
gerando uma negação nas pessoas ou até um ceticismo em relação ao
sobrenatural. Algo que poderia ser evitado se todas as práticas da igreja fossem
translúcidas aos seus fiéis.
Vale ressaltar que, apesar desse impacto que gerou, à início, um pouco
de ceticismo nos católicos, quando esses tinham a sua própria experiência e
vislumbravam o sobrenatural, mesmo em negação, a crença era creditada à
assombração. É a execução do velho ditado “Ver para crer”. E essa experiência nem
precisava ser especificamente com o cético. Foi mostrado o caso da Josefina Minha-
Fé que foi atacada por um lobisomem. Pois bem, Freyre cita que esse ataque
aconteceu na frente de outras pessoas: “[...] Aos gritos da negrota, acudiram os
homens que estavam à porta da venda. Inclusive, o português que, não acreditando
em bruxas, passou a acreditar em lobisomem”. (p. 34).
O coração não sente o que os olhos não mostram, já dizia o dito popular,
mas quando o indivíduo defrontava-se com a aparição, não havia ceticismo que
resistisse.
Dessa forma, analisa-se que o impacto da negação que a religião
causava na assombração durava até o momento da ocorrência. Entretanto, muito
embora muitos recifenses tenham presenciado essas situações, nesse vai-e-vem de
opiniões sobre a existência (ou não) de espíritos e criaturas fantásticas, o maior
impacto (e mais negativo) deixado na assombração e, ainda hoje, sentido, foi a
banalização desses casos.
Ao falar de assombração recifense, não são poucos os que a tratam com
trivialidade, o que é lamentável, a saber, por tudo que foi estudado até agora.
37

No Recife, inclusive, alguns logradouros acabaram perdendo o nome


original porque este fazia alusão à assombração.
Esse aspecto também é mencionado por Freyre quando ele nos remete
ao velho sítio, outrora chamado de “Encanta-Môça”, alusão à uma iaiá, que, fugindo
do marido, acaba se “encantando” nos mangues do Pina. A região onde a moça se
perdeu era um sítio, que acabou recebendo o nome de Encanta-Moça. Porém, anos
depois,

Iniciada a fase atual de transporte aéreo, uma companhia ou empresa


pioneira quis fazer do velho ermo, moderno campo de aviação. Deu-se
então o seguinte fato: burgueses progressistas do Recife envergonharam-se
do nome do sítio antigo que recordava uma simples história de moça
encantada em fantasma. Envergonharam-se do nome mágico de Encanta-
Moça. Os mais salientes trataram logo de substituí-lo por nome que soasse
moderno e lógico. E o próprio Instituto Arqueológico, chamado pelos
burgueses progressistas a dar parecer sobre o assunto, concordou em que
se mudasse aquele nome vergonhosamente arcaico para o de Santos
Dumont. Encanta-Moça nada tinha de histórico, argumentava o Instituto
para concordar com os burgueses progressistas. Nada significava para a
história da cidade. Era lenda. História da carochinha. (p. 32-33).

Esse envergonhamento em relação ao sobrenatural fez o Recife perder


não só o Sítio Encanta-Môça, mas muitos outros lugares que referenciavam
importantes lendas, mitos e acontecimentos sobrenaturais. O que é lamentável, já
que as bases da história cultural da cidade se solidificam a partir da criação desse
imaginário mítico e lendário.
38

CONCLUSÕES

Não só o catolicismo, mas a grande maioria das religiões possui um


importante papel de coesão social e esse mérito não pode ser negado. Entretanto,
como pôde ser percebido com este trabalho, o catolicismo possui inúmeras
vertentes que não são amplamente divulgadas aos seus fiéis. Uma delas,
especificamente, foi decisiva durante a pesquisa.
A relação entre espiritualismo e catolicismo é secular. Provas disso foram
citadas no decorrer do trabalho e muitas outras ainda estão à espera de pesquisas
mais aprofundadas.
Igrejas dedicadas aos mortos, calendário de missas pelas almas, museus
com provas materiais da comunicação entre vivos e mortos, padres autores de livros
com temáticas espíritas, enfim, muitas comprovações de que duas doutrinas de
diferentes naturezas estão se unindo.
Porque, então, nas missas e eventos católicos, essa relação não é
difundida? Sabemos que as divergências entre as religiões cristãs são fruto de
diferentes interpretações bíblicas e essas diferenças vão aumentando
demasiadamente e o número de igrejas e “neo-religiões” idem.
Para melhor estudar esse tema, foi feita uma relação com as
assombrações do Recife a fim de encontrar as artimanhas da igreja para manter sua
maioria inquestionável. Entre outros motivos, porque o Recife tem a fama de “Cidade
mais assombrada do Brasil”, comparando-se às cidadelas europeias que respiram o
sobrenatural e o fantástico.
Em todos os casos de assombração do Recife que foram recortados e
visto através do prisma católico, que compreendeu e compreende a maioria dos
recifenses, foi notada a busca de refúgio dentro dessa religião. Porém essa busca
não foi premeditada pela vítima da assombração, pois, como foi dito, a ligação entre
catolicismo e espiritismo não era amplamente divulgada, no entanto, quando a
vítima se percebia em uma situação sobrenatural, buscava no sagrado da igreja, a
fuga para se livrar do medo causado pela assombração.
Fazendo um paralelo entre tudo que foi aludido neste trabalho, com a
temática do medo, trabalhado por Jean Delumeau, podemos encontrar algumas
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repostas para esse medo de assombração, se relacionarmos a ele, o medo da morte


e do desconhecido “pós-morte”.
A mentalidade cristã ocidental, já vem “equipada” com a certeza da morte
e dos dois caminhos para onde se vai quando essa morte tão certa e incerta (é um
paradoxo necessário, pois há a certeza da morte e há a incerteza sobre quando ou
como ele se mostrará) chegar. O céu e o Inferno, tão mencionados na Bíblia, eram
os únicos caminhos para as almas dos mortos. Mas, com as diferentes
interpretações do livro sagrado do cristianismo, a igreja católica trouxe uma terceira
opção para os espíritos, que era o purgatório. Lugar para onde as almas boas, mas
que não estão totalmente dignas do Céu, ficariam por um tempo para espiar seus
pecados cometidos em vida e por isso, poderiam ir e vir à Terra com a intenção de
pedir perdão e pedir missas para ajudá-los a encontrar o caminho do céu.
Lembrando que isso acontecia com a prévia permissão divina.
Essa criação do purgatório foi favorável à igreja para servir de contra-
argumento à Bíblia quando ela diz que “quem desce à sepultura não volta à Terra”.
Então, quando aparições de fantasmas eram relatadas, a igreja justificava alegando
que eram as almas que ainda estavam no purgatório e precisavam de missas e
rezas para entrar no céu.
Trazendo esse pensamento para as assombrações, poder-se-á atribuir o
grande medo da morte, ou pior, da pós-morte à essas assombrações. Isso por dois
motivos: Primeiro que a assombração é na maioria das vezes uma visão horrenda e
sobrenatural, isso, por si só já causa um susto inicial que gera medo às suas
vítimas. Além disso, a assombração é derivada de uma alma oriunda dessa pós-
morte tão temida, é uma alma que já foi julgada, mas não entrou no céu. Talvez a
vítima tema mais o fato de ver na assombração algo que possa vir a ser o seu
futuro, que o próprio horror da visão fantasmagórica.
Por esse motivo que os instintos afloram e o fazem buscar auxílio no
sagrado da igreja; pedindo socorro aos santos, à Deus; benzendo-se; agarrando
rosários ou outros objetos sacros, enfim, mostrando, de fato, o temor à
assombração, mas mais ainda ao sagrado, como forma de afirmar que não deseja
tal sorte para sua alma quando de sua morte. São os instintos de autoproteção
falando mais alto.
E quando a aparição se vai, depois de executar todo esse ritual de apego
às crenças, a vítima faz rezas pela alma do morto que o assombrou, ou encomenda
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uma missa para que este encontre a paz. Tudo isso deságua para esse mecanismo
de defesa. A vítima faz com a assombração tudo que possa para livrar-se da
aparição, caso ela queira voltar; ou para que, no futuro, não precise passar pelo
temível purgatório antes de encontrar o céu.
Mas quando a igreja se deparava com situações que não se encaixariam
à classe de almas necessitadas de ajuda, como foi aludido, havia a prática de tratá-
las como demônios. Outra crença abrigada pela igreja, já que, para a classe de
demônios, havia a remediação a partir dos padres exorcistas.
Demônios, almas penadas, espíritos zombeteiros, criaturas fantásticas,
enfim, todos esses rótulos partem de um denominador comum: O Sobrenatural.
Como título desse trabalho “O Sagrado e o Sobrenatural”, tratamos o
sagrado como a igreja ou a religião e o sobrenatural como as assombrações do
Recife. No entanto sabe-se que a religião abriga também o conceito de sobrenatural
por abrigar práticas não naturais ou não explicáveis, racionalmente falando, como os
exorcismos e o próprio Museu das Almas do Purgatório.
Mais complicado é, então, analisar a situação de um cético ou ateu diante
da assombração. Se não há esse medo de ir para o purgatório, ou pior, para o
inferno, o que provocaria o medo instintivo nesse tipo de vítima?
Roberto Beltrão trouxe um relato de ataque da famosa Perna Cabeluda
(que não se encaixaria, nesse contexto, à espíritos ou almas, já que a Perna
Cabeluda é fruto de criação popular, o que a caracteriza como lenda, mas pode ser
tratada tal como os lobisomens; criaturas fantásticas).
A Perna desmembrada de um corpo que a sustente, aterrorizou um
professor de física que estava de passagem pelo Alto de Santa Isabel e sofreu o
infortúnio de ter o seu carro quebrado num local que não conhecia muito bem. Ao
sair do automóvel para buscar ajuda, o professor sentiu que alguém/algo o
perseguia, “Anos de crença nas verdades da ciência, de apego ao materialismo
racionalista, desmoronaram quando o professor distinguiu a figura insólita da ‘Perna
Cabeluda’. Abobalhado com a descoberta, o mestre foi alvo fácil do chute que a
assombração desferiu bem no seu traseiro”. (BELTRÃO, 2007b, p.57).
Não foi objeto da pesquisa buscar os casos de quebra de ceticismo, mas
é interessante mencionar isso, já que também houve a presença do medo. Medo do
desconhecido, medo da visualização de algo nunca antes acreditado? Só um estudo
mais aprofundado poderá responder a essa questão.
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Mas o fato é que as assombrações do Recife tiveram um importante papel


no contexto de trazer à tona esse imaginário fantástico, trazer a consciência mítica
para perto e mostrar essa outra face do catolicismo.
Se espíritos aflitos buscando ajuda e criaturas fantásticas, de fato,
assolaram dezenas de recifenses, ou se tudo não passou de devaneios ou ilusões
de ótica, não cabe responder. No entanto as reações dessas aparições foram
sentidas e foram reais. Reais a ponto de estimular os instintos míticos.
Assim, encontra-se mais um motivo para empregar à Assombração do
Recife uma maior significância, já que ela foi um elemento motor de mudança de
paradigma. Mesmo que isso tenha fortalecido, de certa forma, o catolicismo à
medida que as pessoas o buscavam no momento do medo, mas, por outro lado,
estimulou e muito a crença na dimensão mítica, trazendo visibilidade não só aos
mitos, mas às lendas e ao sobrenatural, de um modo geral.
Ao estudar esse tema, o maior objetivo foi mostrar a importância das
Assombrações do Recife na construção do pensamento religioso das pessoas
exaltando essa busca sobrenatural no momento do medo como forma de
autoproteção, além de aguçar os sentidos à espiritualidade do catolicismo, que
deveria agregar essas crenças dentro das missas com a finalidade de renovação de
preceitos, apesar de que o roteiro de missas é algo secular e segue um padrão
pensado para abarcar apenas o que deve ser divulgado.
Em todo caso, fazer uma relação entre o catolicismo e as assombrações
do Recife, é fazer uma relação entre o sagrado e o sobrenatural, podendo atribuir
esse conceito às situações semelhantes onde haja uma crença de massas e outra
crença que necessite de aceitação para se afirmar dentro da crença que abriga a
maioria dos indivíduos.
Nesses casos, há que se atribuir ainda mais importância ao sobrenatural
recifense, pois foi a partir dele que a cidade pôde ter base para a construção do
acervo mítico regional, fazendo do Recife uma cidade mágica, meio bruxa, que
enfeitiça, quebranta, e tira as forças, como já dizia Nilo Pereira.
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