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TI PO CLÍN ICO E CASO Ú N ICO,

CONCE ITOS Q U E NÃO SE RECOBREM

Alicia Arenas
[NEL]

A concepção de tipo clínico surge da necessidade muito antiga de es­


tabelecer descrições das perturbações consideradas psicopatológicas,
uma tradição psiquiátrica que Freud acata, mesmo que lhe apresente
dificuldades. Mas essa tentativa de objetivação dos transtornos mentais
visando afinar e situar as di ferenças não é sem conseqüências, já que
qualquer marco de re ferência contém em si mesmo a tendência de redu­
zir complexos e fenômenos presentes na prática clínica. De tempos em
tempos, a psiquiatria entrega um novo manual, que hoje, mais do que a
força e a presença de alguns autores, como no passado, apresenta a força
da estatística e de suas con clusões, situando o diagnóstico como resultado
do discurso tecnológico e de suas variáveis. Lacan, preocupado com as
formas de descrição da psicanálise que não contribuíam para re forçar
os discursos dos que deviam excluir-se, es forçou-se por encontrar uma
perspectiva que lhes fosse êxtima.
Em 1918, com o caso d Jijome �õSLODo �as classificações uti­
lizadas na psicanálise se mostram falhas. Conhecemos o destino desse
paciente, que continuou em análise por toda sua vida, sem que, mesmo
hoje, haja um acordo entre os analistas a respeito de seu diagnóstico.
Trata-se de uma demonstração de como a dimensão do inclassificável se
instala nas tentativas de descrever os fenômenos psíquicos.
Os pós- freudianos tomaram posições distintas na tentativa de clas­
sificar e privilegiaram o sintoma, as fantasias, as defesas etc., de acordo

' FREUD, Sigmund. "Historia de una neurosis infantil" (1918). Em: Obras completas,
tomo li, Madrid: Biblioteca Nueva, 1973, p. 1941.

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com a visão de seus autores. Em vez disso, a posição de Lacan, que sem­
pre quis situar o propriamente analítico, foi a de se interessar pelo que
estaria além da nosografia. Foi assim que, inicialmente, ele introduziu
em seu ensino a noção de Outro simbólico, com a intenção de situar
uma dimensão própria baseada na relação do sujeito com a linguagem
e, em particular, o significante como re ferência. Encontramos no texto
" De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose" • um
Lacan preocupado em situar, com clareza, o estatuto do Outro simbólico
na neurose e na psicose, valendo-se da re ferência freudiana de Schreber,
à luz da série de fenômenos de código e de mensagem que participam em
seu delírio. O modo como, nesse artigo, Lacan situa as alucinações de
Schreber difere do modo usual como a psiquiatria as agrupa, pois ele as
trata como fenômeno de linguagem.
Nessa época, seu principal objetivo era demonstrar a alteridade,
estabe lecida no sujeito, da cadeia significante, assinalando que se tra­
tava de algo tão radical quanto os antigos hierógli fos, que permanecem
séculos sem serem deci frados. Ainda sem nomeá -lo, já situa aqui o real
que está em jogo para o sujeito, indicando ao mesmo tempo a capac i­
dade de o significante induzir um e feito de significação promotor de
sentido. Isso corresponde à primeira análise minuciosa e fetuada por
Lacan acerca do enunciado e da enunciação, e que lhe permitirá situar
o sujeito que fala na ordem de um universal: todo s atrave s sado s pela
lin gua gem, ao mesmo tempo que começa a delimitação das di ferenças
de um sujeito para outro.
O sujeito se relaciona com o Outro simbólico em um tipo de sustenta­
ção precária, que o leva a encontrar diferentes formas de vínculo. Lacan,
ao propor os quatro tipos de discurso em O Semin ário, livro 17: o avesso
da psi can ál ise J, estabelece a divisão subjetiva como agente no discurso
histérico, razão pela qual a histeria é considerada a estrutura de base da

• LACAN, Jacques. "De una cuesti6n preliminar a todo tratamiento posible de la


psicosis" (1958). Em: Escritos 2. Ciudad dei México: Siglo XXI, 1979, p. 217.
3 LACAN, Jacques. El Seminario, libro XVII: El envés dei psicoanálisis (1969- 70).

Buenos Aires: Paidós, 1992.

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neurose. Freud, por sua vez, sempre considerou a neurose obsessiva como
um dialeto da histeria.
Na introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Es critos,
Lacan diz:
[ ... ] o que decorre da mesma estrutura não tem forçosamente o mes-
mo sentido. É por isso que só existe análise do particular: não é de )
um sentido único, em absoluto, que provém uma mesma estrutura,
sobretudo não quando ela atinge o discurso.
Não existe senso comum da histérica e aquilo com que neles ou
nelas joga a identificação é a estrutura, e não o sentido, como se lê
perfeitamente pelo fato de que ela incide sobre o desejo, isto é, sobre
a falta tomada como objeto, e não sobre a causa da falta. [ ... ]
Os sujeitos de um tipo, portanto, não têm utilidade para os outros )
do mesmo tipo. E é concebível que um obsessivo não possa dar o !
menor sentido ao discurso de outro obsessivo. 4

A referência a algo que está mais além da estrutura orienta Lacan


nesse momento, pois situa a causa da falta, assinalando o lugar que ocupa
a falta na histeria, um tipo de gozo particular próprio da estrutura e vin­
culado ao sintoma histérico. Precisamente, o que não está situado aqui é
uma dimensão que não é possível de se apreender pelo discurso.
Na intervenção da Escola do Campo Freudiano de Caracas, atual
Nueva Escuela Lacaniana (NEL), no volume do IV Encontro Internacional
do Campo Freudiano sobre a histeria e a obsessão, no artigo "O Outro
na histeria e na obsessão", os relatores dizem: "A histeria é, finalmente,
uma teoria implacável, jã que, ao abrir entre o saber e o gozo uma fron­
teira impossível de suturar, dã fé da lógica de ferro da qual é a mais viva
encarnação: hã significante, mas não alcança a nomear o Outro sexo"5 •
Essa fronteira impo s s ível de sut urar dã conta da problemática que se

GJ\ACAN, Jacques. "Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos"


(1975). Em: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p. 554.
5
ARENAS, Alicia; BRODSKY, Graciela e outros. "Histeria y obsesión". Em: El Otro
en la histeria y la obsesión. Buenos Aires: Manantial, 1985, p. 49.

TIPO CLINICO E CASO ÚNICO, CONCEITOS QUE NÃO SE RECOBREM I Alicia Arenas 59
apresenta na experi ência analítica, em que o lugar do Outro, ocupado
pelo sujeito suposto saber, apesar de capaz de oferecer abe rtura ao campo
simbólico via sentido, faz presente o real como impossível de alcançar e
também de classificar, pois não há saber possível em que possa sustentar
sua ultima descrição.
>J-- · O que se apresenta em cada caso como não remetendo ao Outro ,
1 não re ferido à identificação com o campo do Outro, e por isso mesmo
ligado ao real da prática, revela-se, na realidade, inclassificável, já que
r exige encontrar uma interpretação própria a cada um. Trata-se, para a
psicanálise de orientação lacaniana, de como se orientar e reordenar o
\
caso, tendo como base o real que está em jogo.
A di ferença entre o sintoma freudiano e o sinthoma lacaniano tem
sido ressaltada como duas perspectivas clínicas a serem di ferenciadas.
O primeiro situa no fim do percurso analítico a dimensão de travessia
da fantasia, estabelece a existência de uma verdade a ser encontrada no
sintoma, um gozo do qual se deve ria separar. O segundo, o sinthoma,
associa-se à afirmação lacaniana " Há gozo", a qual sublinha a presença
de um tipo de gozo de que o sujeito não pode se separar totalmente, mas
apenas aprender a lidar com ele. Este assinala que o mais singular do ser
que f ala está do lado do que, con frontado à não relação sexual, permite­
lhe sustentar-se, isto é, a dimensão do gozo. Essa forma de gozo, fora da
lei do significante, não permite encontrar saída pela via da decifração ou
da separação; é preciso inventar novas formas de conexão que permitam
assumir e saberfazer com o mais próprio do sintoma.
Em razão de todos esses antecedentes, no argumento do atual En­
\ contro Americano, diz-se: " Há sintomas típicos, entretanto o sentido de
i um mesmo sintoma é diferente em sujeitos di ferentes e está articulado às
J experi ências individuais de cada um". De que modo, então, o caso único
pode ser o novo paradigma de um tipo clinico ou, in clusive, um novo tipo
clínico como exceção à regra, como pura experiência individual?
De acordo com esse ponto de vista, um toxicômano, uma anoréxica,
um depressivo, ainda que pensados como sujeitos que se sustentam em seu
sintoma enquanto forma tipificada de laço com o Outro, por meio da qual
se dá uma solução so cial a sua vida pela via identificatória, encontrariam

60 A VARIEDADE DA PRÁTICA
nesse mesmo sintoma a forma única, singular, de não renunciar àquilo
\
cujafalta tornaria vão o universo6 , sua forma de gozo como ponto em
que, de fato, prescindem do Outro.
Na Conversação d �: Arcachon 7, �i Her estabeleceu dois momentos \
na clínica: um nominali st a, quànclo
recebemos o paciente em sua sin- \
gularidade, sem compará -lo com ninguém, como alguém inclassificável \
por excelência, e outro estruturalista, quando nos re ferimos a tipos de
)
sintomas e à existência da estrutura. A passa��m do singular ao estrutural,
no entanto , necessariamente deixa algo de fora, algo que não pode passar
à cadeia significante para representar -se perante o Outro.
O problema aqui reside no fato de que o aspecto mais singular de
cada sujeito o separa do Outro e de qualquer possibilidade de laço nesse
ponto. No sintoma, fazem-se presentes os S do Outro, mas sua função,
a função do sintoma para um sujeito, não tem relação de solidariedade
1

com a de outro sujeito que participe do mesmo tipo de sintoma.


Por essa razão, tipo clínico e caso único são dois conceitos que,
apesar de poderem estar presentes simultaneamente em um mesmo
sujeito, não se recobrem. Para a psicanálise de orientação lacaniana a
classificação dos tipos clínicos ��ite, sobretudo, conhecer a relação do
sujeito com o Out i:Q, sem que, por isso, o mai�_auti�t � ��-seu gozo d �!xe _
tudo descoberto.
A noção de sinthoma exigiu de Lacan a fastar-se das tipificações e
\
destacar a singularidade. Por isso, ele teve de tomar, primeiro, a pers-
pectiva da fora cl us ão generalizada e da pluralização dos nomes do Pai, !
ilustrada por James Joyce de modo exemplar, ao lhe permitir situar o I
conceito de suplência como modo único em que alguém encontra uma
maneira de sustentar-se.
Quando Lacan questiona a perspectiva de situar as suplências que
o ser que fala é capaz de implementar para si, responde a um problema

6
LACAN, Jacques. "Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente
freudiano" (1960). Em: Escritos. Ob. cit., p. 834.
7
MILLER, Jacques-Alain e outros. Los inc/asificables de la clínica psicoanalítica:
Conversación de Arcachon. Buenos Aires: Paidós/ICBA, 1999, p. 404.

TIPO CLÍNICO E CASO ÚNICO, CONCEITOS QUE NÃO SE RECOBREM I Alicia Arenas
clínico contempor âneo : os sujeitos que chegam hoje aos psicanalistas d e
orientaç ão lacaniana muitas vezes carregam consigo vários diagnósticos
anteriores, em geral provenientes do D SM IV.
Curiosamente, isso f ala não de di ferentes perspe ctivas diagnósticas,
mas de uma dificulda de crescente em estabelecer diagnósticos em face das
mani festações sintomáticas de nossa época, que mostram precisamente a
instabilidade das i dentificações. O que realmente ocorre é que a noção d e
diagnóstico se extingue diante de um emp uxo classificatório, que só faz
contabilizar os traços provenientes da estatística, afetada por numerosos
fatores, entre os quais a f alsidade dos diagnósticos que o psi- b usiness,
ao privilegiar os processos administrativos em detrimento dos clínicos ,
termina por pro duzir.
Que o último ensino de Lacan termine, segundo Jac ques-Alain Mille r8,
dando prioridade a psicose como a estrutura é algo que, em última ins ­
t ância, estabelece que a psicanálise de orientação lacaniana considera a
perspe ctiva do real do gozo ineludível na clínica e também uma marca que
não se pode dialetizar, isto é, com a qual o sujeito tem de aprender a viver .
Perspectiva, em geral, não compartilhada pelas psicoterapias e, menos
ainda, por orientações psicanalíticas distintas da orientação lacaniana .
O único de cada caso na psicanálise é algo que irá surpreender o psi ­
canalista, um ponto em que não lhe se rve o já sabi do ou o já classifica do .
Trata-se, portanto, do achado do que não pode ser articulado, separa do,
ou seja, de algo que é, nele, a alíngua.

Tradução: Paola Salinas

8
MILLER, Jacques-Alain. "Cours de Orientation Lacanienne III, 9". Aula de 29 de
novembro de 2006. Inédito.

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