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O HOMEM DA CANETA BIC

Paul Lemoine

Há cerca de duas décadas, um homem de vinte e oito anos veio pro­


curar-me porque desejava livrar-se de um sintoma incômodo: não
conseguia fazer amor se não desenhasse no peito da mulher uns tra­
ços com uma caneta Bic. Esses traços, ele os chamava de tatuagens.
Não eram desenhos realmente, mas traços quaisquer. Por esse meio,
a ereção que sumia assim que ele a penetrava podia se manter. Essas
"tatuagens•• tinham valor de fetiche.
Se ele desejava se libertar de seu sintoma, era em grande parte
por causa das reações da mulher que não cedia sem mal-estar a essas
práticas extravagantes, e que temia que elas pudessem atingi-la pro­
fundamente.
"Faz meia hora, decidimos nos separar" , começou o paciente
no momento da primeira consulta. A esposa o acompanhava. A sepa­
ração realiza-se só alguns anos depois.

Carimbos e carrinhos elétricos

Bem depressa fica claro que essa necessidade de tatuagem tem sua
origem numa fala da mãe . "Se eu perdesse um de meus filhos na
multidão eu o reconheceria pelo sinal no braço" . Isso se referia ao
mais velho e ao caçula, porque o paciente, ele, estava desprovido de
sinal (na pele) . Todos os quatro estavam então numa feira, e ele se
tinha visto perdido entre os carrinhos elétricos que se entrechoca­
vam.
A primeira vez que ele aplicou "tatuagens" no corpo, estava
sentado junto de uma escrivaninha onde tinha diante de si, jovem

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228 clfnica lacan iana

colegial então, um carimbo da fábrica do pai. Ele o aplica no peito e


nas coxas (zona de seu corpo riJais erógena que o braço) e vai ao
pátio, e aí se mete a subir numa árvore, como Tarzan. Temia, e de­
sejava, ser visto pelos operários do pai. Depois volta para a sala e
masturba-se. Não cessará essa prática. Em outro dia, adulto, ele se
aplicou no escritório um carimbo de um chefe que lhe fazia medo e
que tem a inscrição: "Para classificar" , depois vai ao banheiro e
masturba-se. Pode-se perguntar se não se tratava, para ele, conside­
rando sua sensibilidade aos deslizamentos significantes, de se pre­
servar dos carrinhos elétricos de sua inf"
ancia.
Ele gozava não só dos carimbos cinzentos, mas coloria também
seu corpo com pintura a óleo e aí traçava também desenhos. Um dos
operários do pai, tatuado desde o serviço militar, tinha com ele uma
relação particular: iam urinar juntos num muro da fábrica. Era uma
maneira, pensava, de se virilizar, e conservou dessas práticas up1
forte erotismo uretral . Essas voltarão quando, tendo percebido ope­
rários tatuados, nosso paciente, já adulto, vai urinar num mictório e
depois volta para olhá-los com admiração. Mas a recordação de in­
fância que evoca quase sempre é de uma cena em que, tendo ele fi­
cado no leito até tarde, sua empregada, que arrumava a cama do ir­
mão caçula, lhe diz: "Se você borrar na cama, vou lambuzar você . "
E o caçula acrescentou: "Eu vou pintar você com minhas tintas . "
A consistência das tatuagens varia ao sabor dos eventos, e se
atenua, já vimos, quando marca a mulher com a caneta Bic. Mas não
se pode deixar de reparar seu caráter francamente anal . Quando ele
próprio imprime os textos literários que escreve, chama os tipos de
"incunábulos" . Ou quando fala de tatuar, trata-se de "inculcar" um
desenho embaixo da pele. Os lábios da pele se entreabrem sob o es­
tilete como um sexo feminino, para deixar passar o pigmento .

O amor da mãe

Tatuando-se, ele se identifica com a mulher, com a sua submissão no


ato sexual e fmalmente com a mãe de quem ele assim obtém o amor,
por estar marcado como os irmãos . Tatuar-se, segundo ele, é aviltar­
se para ser amado: "Aviltar-me no amor é submeter-me e tentar re­
viver . . . Sou castrado e tenho tatuagens, o que me assimila às mulhe­
res . "
A tatuagem para ele tem a mesma necessidade que qualquer
outro objeto no fetichista. É sua necessidade que lhe faz temer a cu-
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ra. "Se elimino as tatuagens, tenho medo de não ter mais sexo. Por
isso é que procuro um sexo não importa onde, até na máquina foto­
gráfica, por exemplo. Como compreender que o primeiro sexo que
eu recuso é o que tenho verdadeiramente? Se me amarro na tatuagem
é para procurar o gozo. Ele não é coisa de homem, pois que minha
mãe me fez compreender que eu não podia ter gozo com o meu sexo
masculino, era proibido."
De outra feita, ele acrescenta: "A tatuagem significa fazer
amor, ter gozo. A mulher tem com ela o que é preciso para fazê-lo,
eu não tenho, minha mãe me proibiu." A marca da mãe é mais im­
portante do que é, mais importante do que o real: "A tatuagem é um
símbolo lógico de uma coisa que eu precisava - simbólico da ine­
xistência do sexo da mulher, dirá ele por outro lado - um símbolo
histórico de uma coisa já passada. É na aurora de minha vida sexual
que se coloca o meu desvio. O operário de meu pai intervém apenas
como secundário.''
A marca com a qual ele se enfarpela tem efeito apenas temporá­
rio. Fica com nojo dela logo que ejacula; então precisa apagar tudo
rapidamente . Também os traços no peito da mulher não são perma­
nentes. Sua função erótica corresponde às oscilações de seu apetite
sexual.
Seu caráter temporário tem também como resultado preservá-lo
da castração defmitiva. "Se eu fosse amputado seria uma transfor­
mação irrevogável, eu nunca poderia voltar a ser o que sou. É a
mesma impressão que a tatuagem me dá." E, em outras palavras:
"Invento uma forma para poder realizar, sem realizá-la, essa sexua­
lidade. "
É também essa proteção que ele procura n a psicanálise: "Entre
a verdadeira tatuagem que seria o fracasso da minha vida - eu não
poderia fazer análise se fosse tatuado, seria a submissão total à mi­
nha mãe - e a imitação de tatuagem que me fazia atingir o orgasmo,
e era uma espécie de liberação, há uma diferença fundamental: a ta­
tuagem é, de um lado, a submissão à minha mãe; de outro lado, é a
renúncia temporária." Ele se preserva assim de uma transposição de­
fmitiva. Não naufraga na loucura. Tampouco cai na homossexuali­
dade, apesar de uma amizade de quatro anos com um antiquário ho­
mossexual, quando era estudante .
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Reação terapêutica negativa

Mas também se protege da psicanálise. Revolta-se contra toda inter­


venção de minha parte, se bem que fique em Paris por minha causa.
Também teme ficar marcado por mim, e entretanto vai conhecer um
bastante longo período de acalmia, durante o qual sua sexualidade
volta ao normal, com outra mulher que não a sua. Não precisa tatuá­
la para fazer amor. �ssa mulher se amarra nele e gostaria de casar
com ele. Então ele rompe e se encontra de novo sozinho no arrabal­
de distante onde foi se entocar depois do fracasso de seu casamento.
Continua portanto a recusar toda saída feliz para seu tratamento, e
nesse sentido essa aventura é apenas um acting out de seu trata­
mento .
Sua mulher finalmente partiu com seu antigo amante: um ho­
mem que ela encontrara em Paris enquanto o paciente fazia o serviço
militar. Sua ligação à sua fann1ia era tanta que ele preferia passar as
licenças na cidade vizinha, onde residiam os seus, a ir para junto da
mulher.
Ainda não falei do pai. Ele descreve de maneira grotesca as
relações dele com a mãe, mas ele . é entretanto personagem impor­
tante nem que fosse só pela identificação do paciente: "Minha mãe
ficava por baixo, ar pouco contente, e meu pai se esforçava por ci­
ma. Eu o julgava pouco forte sexualmente, certamente porque estou
nesse caso, talvez também devido ·
às detestáveis alusões de minha
mãe. Era um goza-pouco."
Sem dúvida alguma ele me põe no mesmo plano que ele quan­
do me denigre: "O senhor certamente não é o analista que eu preci­
sava, sua voz, seu físico . . . " Ele me desafia de poder fazer seja o que
for para ele. E fico impotente diante de sua reação terapêutica nega­
tiva, reação que mantém senão seu conforto pelo menos sua segu­
rança.
Seu caso não cessa de me encucar desde que ele me deixou, há
mais de dez anos. O acaso fez que seu irmão caçula viesse me con­
sultar também, por impotência sexual . Não ousei insistir para ter no­
tícias do outro. Só sei que está vivo. A impotência parece ser o caso
dos homens dessa fann1ia. Não foi suficiente a esse irmão estar mar­
cado no braço para escapar dos problemas sexuais de seu irmão se­
gundo.
Que teria sido necessário para ter bom êxito? Restaurar sem
contestação o lugar do pai, isto é, que eu me tomasse na análise a
mãe autenticando o Nome-do-Pai. Mas isso é apenas suposição de
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escola, pois o paciente preferia gozar da castração da mulher, graças


à tatuagem-fetiche, a afrontar a angústia da castração masculina.
A prática da tatuagem era um verdadeiro rito para evitar o con­
fronto com a angústia. Rito esconjuratório que lembra muito os ritos
da neurose obsessiva, da qual se aproxima o fetichismo, como se sa­
be.
Em seu texto de 1956 sobre o fetichismo, Lacan e Granoff in­
sistem no caráter artificial do fetiche e no malogro do Édipo. A ima­
gem que nessa observação simboliza a castração feminina em nada
se aparenta a um descanso natural (pé, perna, roupa) no caminho do
sexo da mãe. Ela é sem dúvida artificial: é uma palavra que garante
a escrita que a transcreve, e que transforma essa escrita em súnbolo
erótico.
Quanto ao malogro do Édipo, é do tipo encontrado no malogro
homossexual. Os pais conservaram toda a sua importância e a trian­
gulação edipiana se faz, exceto que é na palavra prevalente da mãe,
e não na do pai, que vai se fundamentar a segurança do sujeito. To­
das as condições estavam reunidas, para fazer desse paciente um
homossexual. Mas o fetichismo interveio para impedir essa evolu­
ção e esconjurá-la.

A palavra e a escrita

Resta que este caso nos interroga sobre as relações da palavra e da


escrita. A escrita dá à palavra sua transcrição simbólica. Mas essa
transcrição toma no paciente outro rosto, faz dele um súnbolo eróti­
co. É a originalidade desta história.
Não se deve confundir porém os traços de tatuagem-fetiche
tendo valor pessoal com os sinais da escrita que têm valor universal.
O paciente faz unicamente �so da escrita para dobrá-la por decreto
para seus fins particulares. E bem nisso que sua escrita permanece
fetichista.

PAUL LEMOINE

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