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Ninguém tem o direito de não sair. Mas, criatura, avisa, né? Dá um telefone, passa um zap. Agora, cê
pega esses uber de madrugada, esses homens. A gente não conhece. Tá acontecendo muita coisa ruim
hoje em dia. A gente vê tanta coisa. Olha os sequestros de meninas e estupros. Depois, joga o corpo
nesses matos aí e vai embora. Você não vê o que aconteceu com a doninha, aqui, no bairro
Bandeirantes? O que eles fizeram com ela? Até a língua dela, eles cortaram. Então, a gente só pensa o
que é ruim. Gabriela pode sair à vontade, mas ela tem que mandar mensagem, tem que avisar. Gabriela
deveria ter avisado, mandado uma mensagem. Hoje em dia, é muito fácil comunicar com as pessoas. Se
você não ligar, escreve mensagem. Diz:‘Mamãe, errei a mão aqui. Vou dormir aqui. Avisa a vovó”.
Aí, eu ajudaria ela, ligava para vovó de madrugada e falava. Mas, não! Não avisou. Eu ligo, dá caixa
postal. Aí, fica difícil, né? Isso é falta de respeito que a Gabriela está fazendo. Esquecer da vida
assim? Uai, pelo amor de Deus! Ela já não é mais criança, né, Jessica? Se fosse uma menininha de 13
anos. Quantos anos que a Gabriela, tem? Uai, avisava, né? Eu estava indo na missa agora, nem vou
mais. Tô aqui esperando, tô mandando mensagem sem parar e ligando. Ela não atende o telefone. O
que aconteceu com ela? Só espero que ela esteja bem”. PORQUE A MASCULINIDADE
HEGEMÔNICA PRODUZ A POLÍTICA DO MEDO? QUANDO UMA DE NÓS NÃO VOLTA PARA
CASA, OUTRAS JÁ SE DESESPERAM PENSANDO NO SEU FUTURO APAGAMENTO?
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O analisador é um conceito muito caro para a análise institucional. Consiste em explicitar que é a partir
de uma experiência, de um acontecimento, de uma assembleia, de um encontro, de uma possível reunião,
que fará surgir com mais força uma possibilidade de análise, comparecendo, finalmente, o não dito ou
mesmo instituições invisíveis, que não estavam sendo vistas no derradeiro momento. Nessa perspectiva, o
analista institucional tem como tarefa levantar os analisadores, para tecer possíveis cartografias do
presente, os quais apontam as cumplicidades ou práticas e produções de subjetividades(LOURAU,1993;
LAPASSADE, 1979).
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“O caminho se faz caminhando. Faça você mesmo o seu caminho” (CLARK, 1998, p. 24).
assassinato ocasionado por uma instituição heterossexual compulsória
e normativa.
Cabe ressaltar que, por meio dessa experiência de namoro, alguns atritos e
desentendimentos começaram entre nós a partir da entrada dela numa empresa de
trabalho. Ela começou a apagar minha existência ao seu lado em lugares públicos, e foi
me entregue um manual do que podia e o que não podia fazer. Sem julgamentos, eu me
questionei e ainda me questiono: como compramos modelos que apagam a nossa
própria existência e nos fazem ter vergonha daquilo que a gente é? O regime
heterossexual nos vende a felicidade para nos matar. E muitas de nós, ou se matam, ou
nos assassinam. Com tudo isso, o que é possível produzir de encantamento de vida, e
outros modos de compor a existência no mundo, dando passagem quando a gente não
morre? Nas palavras de Beatriz Gimeno (2003, p. 4):
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A palavra “coragem” tem sua origem no latim coratium e possui o mesmo significado. Esse termo latim
é composto por cor, que significa “coração”, e pelo sufixo aticum.
relacionamentos estabelece com outras mulheres se é forçada a se
casar para se alimentar? O que importa o que as mulheres fazem,
pensam, dizem ou escrevem se o que conta é que a heterossexualidade
regula as relações sociais e econômicas de todas elas? Qualquer
desvio da norma, no caso das mulheres, por não ter consequências, é
considerado um desvio menor, uma estratégia pessoal para criar
pequenos espaços para respirar.
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Parrésia, no sentido foucaultiano, consiste em dizer a verdade. Com isso, temos a coragem da verdade,
de viver uma vida cínica, desavergonhada, uma vida de sapatão (FOUCAULT, 2011).
cidade acarreta o risco da sua própria existência, aonde mulheres são assassinadas por
simplesmente performatizar o masculino.
Dessa maneira, a partir de um encontro com Jack Halberstam, Paul Preciado,
Cassandra Rios e Judith Butler a respeito do tema da masculinidade feminina, tem-se
forçado a prática antropofágica, em a gente come para criar ou fazer filhes por trás.
Assim, surte como efeito pensar que a forma da masculinidade feminina está muito
presente no corpo de mulheres, que residem na zona rural (roça). Elas conseguem, ao
mesmo tempo, sujar o feminino performatizando o masculino e produzir um derradeiro
“troca-troca Kuir”. Ao irem exercer as tarefas braçais, como panhas de café, tirar o leite,
roçar o pasto, plantar verduras e frutas, e fazer cercas, etc performatizam o masculino,
colocando-se em disputa de território com a masculinidade, que, a princípio, produz
uma hospitalidade com elas. Mas, qual o preço dessa hospitalidade? Indagamos: o que
teria por trás de suas histórias? Quais estratégias e táticas de resistência elas têm a nos
contar? Como a sapatonice comparece em suas experiências? Lembramos, como nos
ensina Beatriz Gimeno (2003, p. 1): “Os modos de uma sapatão, pode ser uma escolha
política ou vital, um modo estético, ético e político de compor a vida, não
necessariamente sexual”.
Portanto, pensando aqui o modo estético como cuidado de si desenvolvido no
pensando de Michel Foucault (2006, 2011), a sapatão produz algumas práticas de
cuidado de si e modos de alcançar um modo de vida ético à medida que ela rompe com
o contrato sexual heterossexual, tornando-se uma fugitiva do regime. A partir da sua
estética e dos seus modos de compor a vida, ela funda uma nova forma de existência ao
se relacionar com outras mulheres. Sua vida pode ser vivida como prática libertadora e
de pertencimento ao mundo, uma derradeira vida que pinta uma (Korpa-política-tela) 7.
Mediante seu modo de dizer a verdade (parrésia) 8
e de se pôr em perigo,
performatizando a masculinidade num corpo feminino, ela suja e borra o lugar das
práticas do discurso feminino; por fim, constrói um modo de vida estético, ético e
político da machona. Por meio dessas práticas, a machona da roça é um perigo para a
sociedade, uma vez que ela rompe com o modelo ficcional do sexo ou gênero.
Nessa ótica de produção de discursos, a sexualidade e o gênero são ocasionados
por vontades da verdade, onde se tornam artificiais ou ficções inventadas, tornando um
7
Aqui, tenho pensado, com Leda Martins (2003), a respeito do corpo como um documento/arquivo.
8
Nas palavras de Michel Foucault (2011, p. 33): “[...] (o dizer-a-verdade, o direito de dar sua opinião e a
coragem de se opor à dos outros)”.
jogo de poder9. A ética da sapatão produz outros modos de compor a vida à medida que
se acopla com a experimentação de friccionar a vida pele com pele. Adia o fim do
mundo na tesourinha, 69, cipó, rodeio, balancinho, colada e apertada, dedada, sexo oral,
69 lateral, vibradores, cintaralho, e rompem, por fim, com a masculinidade CIS, não
dependendo do pintoficcional para sentir prazer ou gozar.
Elas, também, não dependem economicamente de um homem, pois vivem de seu
próprio dinheiro. Elas são acadêmicas dos saberes das encruzilhadas da rua. Vivem em
busca de bolsas de estudos para custear sua sobrevivência, porque têm um gosto pelos
estudos, principalmente pelos saberes insubordinados dos vencidos da história. Algumas
não sabem negociar a vida sem estar no espaço acadêmico. Ao mesmo tempo, se não
conseguem entrar nos espaços acadêmicos com bolsa, vão para as ruas vender bolos de
pote, pães, livros de poesia de sua autoria 10, ou trabalhar em klínicas clandestinas,
apostando numa “klínicas menor”11. Estão sempre produzindo estratégias e modos de
produzir encantamento e afirmar a vida.
Com tudo isso, elas rompem com acordos impostos goela abaixo pela
heterossexualidade compulsória. Sobre isso, Monique Wittig (2022) nos provoca a
pensar na sua teoria do pensamento lésbico de que a sapatão não seria uma mulher. Ela
é uma rasura, uma forasteira, uma fugitiva do regime heterossexual à medida que ela
produz uma estética que não reproduz a cópia de uma performatividade de gênero
normativa aos modos de um ideal na concepção heteropatriarcal. Ela, em si, rompe com
o contrato social heterossexual, pois, nas palavras de Monique Wittig (2022, p. 49):
“[...] A mulher não existe para nós: é apenas uma formação imaginária, enquanto as
„mulheres‟ são produto de uma relação social”.
Com isso, acreditamos que a maria-macho seja uma nova autodenominação de
mulher. Isto é, as “mulheres de bigode que nem o diabo pode”. Em vista disso,
almejamos habitar o território da roça, para localizar pessoas que poderão nos ensinar
modos outros de compor com o mundo, de sujar o lugar do feminino e da
masculinidade. Essas mulheres-bruxas, com suas práticas de cuidado de si, práticas
homoeróticas, modos de reinvenção da vida, receitas medicinais, espertezas para dobrar
9
Sam Bourcier (2020, p. 261), sobre isso, diz: “[...] as feministas, de todo modo, foram as primeiras não
mais apenas a descrever os efeitos de construção dos gêneros, mas a fazer compreender que a relação
sexo∕gênero tal como ela é imposta e regulada torna-se um jogo de poder”.
10
Publicação da obra “O cheiro do não dito”. Disponível em: https://katzeneditora.com.br/o-cheiro-do-
nao-dito
11
Sobre as práticas e ferramentas de uma “Klínica menor” situada numa ONG CLANDESTINA no
território de Minas Gerais, ver em:
https://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/aceno/article/view/13611
os homens cis, resistem com seus feminismos na roça, em cidades do interior de Minas
Gerais e do Espírito Santo.
Por fim, a machona da roça, a Maria-macho, ou mesmo a figura da sapatona
força uma vida imanente; uma experiência estética com outras sensações da fineza de
pele com pele, de olfato, de habitar a outra [mulher] no sentido de extrair dela toda força
e produção de reinvenção de vida possível. Somos uma “korpa-política-tela” arquiv-o.
Por isso, quando terminamos um relacionamento amoroso, o arquivo da outra é nosso
também. Saímos carregadas de imagens, álbuns de música, cenas analisadoras,
rememorações da infância, brincadeiras de criança, contação das primeiras experiências
sexuais com outras, bilhetes, filmes, caminhadas, gambiarras de métodos de prevenção
sexual, cartas, livros, encontros e conversas debaixo de pés de limão, cafés e muita
mais, muita prosa. Somos, sim, mostruosas-bruxas, porque estamos sempre ficcionando
a sexualidade nas gambiarras e colecionando muambas de arquivos das ex, das outras,
de nós. Somos um mundo, enfim!!!
Figura1: Bilhete da ex
Podemos entender com Derrida (2003) que todo sim está adepto a transmutar
num não. Isto é, hospitalidade pode, a qualquer momento, virar hostilidade. Pensemos
no exemplo de uma visita que, após alguns dias, a sujeita quebra o contrato,
permanecendo mais dias na casa, não ajudando a dona com os afazeres doméstico,
falando compulsivamente, não permitindo descanso para a proprietária do lar. Essa
mesma pessoa, que foi tão bem recebida como hóspede, virará uma estranha, uma
parasita dentro da casa.
Outro exemplo diz sobre o discurso de empresas heteronormativas, no qual
frisam: “Devemos vestir a camiseta da empresa” ou “Aqui é a sua segunda casa”. Esses
enunciados forçam a refletir que não devemos expor nossas experiências sexuais,
porque, ao expormos, serão, ao mesmo tempo, menos hospitaleiros. Assim, a sapatão
machona institucionalizada vai ser capturada por esses discursos do empreendedorismo
de si. Caindo na clandestinidade nas cidades do interior, passam a se reinventar e a
descobrir outras maneiras anônimas de viver e de se relacionar com outras mulheres. À
medida que ela é capturada por empresas ou instituições que produzem extratos duros,
que a forçam a tamponar sua sexualidade e suas vivências, por motivos de
sobrevivência, a sapatão institucionalizada é forçada a performatizar a feminilidade ou
mesmo se afirmar enquanto heterossexual. Ela passa a se vender por empregos,
apartamentos, carros um salário e planos de saúde. Ela está errada ao reproduzir um
suicídio em curso, cavando sua própria tumba?
Todavia, nossa intenção não é levantar, aqui neste trabalho, o que é certo ou
errado, mas contar histórias de pessoas que estão produzindo gingados, os quais vazam
outros modos de viver num regime heterossexual, recheado de opressões, privilégios,
mentiras, vontades da verdade cis e cumplicidades. Ao mesmo modo que a sapatão
institucionalizada tem que criar um rebolado, um gingado para sobreviver numa
instituição hétero, a machona da roça já faz isso a muito tempo, tendo em vista que seu
trabalho no campo exige que ela suje o lugar da feminilidade para produzir resistência,
estratégia e táticas de proteção. Com isso, afinal, quais mecanismos de força podemos
extrair de suas existências menores, aproximando-nos do paradigma da estética gambira
(gambiarra)?
Kilombo, entendido aqui na perspectiva de Beatriz Nascimento (2021, p. 159): “De um modo geral,
12
definem-se quilombos como em todo o tempo de sua história eles fossem aldeias do tipo que existiam na
África, onde os negros se refugiavam para „curtir o banzo‟”.
rememoração. É angustiante ver famílias mais preocupadas com os bens materiais da
morta ao invés de seus arquivos de gaveta. Invadem suas casas, desarrumam sua casa,
jogam seus arquivos no lixo; por fim, apagam uma vida.
Com a desarrumação, houve doação dos seus pertences. Meus pais decidiram
pegar o colchão de casal onde ela dormia. Minha mãe também recolheu todos os seus
batons! Após isso, na noite que foram dormir no colchão, papai e mamãe não
conseguiram descansar. Relataram que viram Gambira a noite toda em sua frente. Pela
manhã, avistei minha mãe com olheiras e meu pai fumando, inquieto, confuso, com
medo, muito medo. Meu pai gritou: “Vou devolver o caraí desse colchão!” Minha mãe
o acompanhou na devolutiva. Outros irmãos de Gambira também relataram que viram
ela nos cafezais, e minha vó, à noite, avistava, da sua varanda, a luz acesa da casa de
Gambira. A família começou a ter que lidar com a existência de Gambira mesmo
estando morta. Se não enxergaram em vida, tiveram que enxergá-la depois da sua morte.
Ela, a Gambira, começou a tocar o terror! Era engraçado ouvir as estórias da Gambira.
Mesmo depois de morta, ela trazia um cheiro de vida, de alegria para nós.
Eu lembro que, após uns meses do acontecido de sua morte, sua irmã mais nova
foi lá em casa tomar café com mamãe. Lembro que estava ao lado delas e ouvia estórias.
A tia sentia orgulho e dor, porque foi a responsável por ficar com o cargo de ir até a
linha do trem reconhecer o corpo de Gambira. Ela diz que houve uma sessão de
fotografia, realizada pela polícia, do corpo destroçado. Eles entregaram a ela um
envelope com essas imagens. Afinal, qual sentido de entregar para os parentes da morta
imagens de seu destroçamento? O que a polícia desejaria com isso? Reconhecerem o
luto? Ou, tal prática, serve para atiçar ódio, pena, da morta? “Quem é o „nós‟ que
constitui o alvo dessas fotos de choque?” (SONTAG, 2003, p. 12).
Após, esse fato, ao ouvir aquele relato, avistei a cena de um fogo forte em uma
das paredes da casa. Essa imagem era semelhante a chamas de uma fogueira. Em
seguida, quando eu disse para elas, ambas não conseguiram acessar a imagem. Somente
eu via. Fiquei ali, apenas admirando a boniteza do fogo, que se espalhava pela aquela
parede de cimento, que, por uns minutos, ganhou vida. Era um sinal!!!
***
Figura 3: Raquel
13
Gel lubrificante.
Aquele corpo que era tanto menosprezado, que causava repulsa, medo, era,
agora, um corpo morto. As tias quiseram ir até o velório e sepultar seu corpo. A Maria-
macho estava sempre na boca delas.
No velório, pessoas da família chegavam até o seu corpo e faziam o sinal da
cruz. O ritual ocorria frente a ruídos e fofocas. Vovó e tias cochichavam uma para outra:
“É, né! Morreu! Coitadinha! Que Deus tenha misericórdia e receba ela no céu” Um tio
careca se aproximou do caixão. Ele retirou o chapéu e permaneceu intacto durante o
velório todo.
Algumas mulheres que moram na rua entraram no local, ficaram em frente do
corpo e fizeram o sinal da cruz. Por fim, choraram. Despediram-se de Raquel
agradecendo-a por tudo. A “política da amizade de rua” continua sendo uma rede, uma
aliança quando não há hospitalidade dentro de casa, não há acolhimento.
Logo, o padre chegou e fez o ritual da igreja. Jogou água benta no corpo. Alguns
cochicharam: “Deus tenha misericórdia dela!”
Raquel foi uma vida que incomodou. Sua morte, naquele dia, me conectou com
a morte de Gambira. Mais uma vez, porque a estética e os nossos modos de ser quando
a gente não reproduz as práticas heteronormativa nos leva para uma linha tênue, onde a
família só vai olhar para o nosso rosto num caixão? A gentes, que somos um bando,
lutamos por uma hospitalidade no mundo, mas não quando se MORRE.
INCONCLUSÃO
CLARK, Lygia. Lygia Clark & Hélio Oiticica: Cartas, 1964-74. Organização Luciano
Figueiredo. Prefácio Silviano Santiago. 2. ed. Rio de Janeiro: Ed. da UERJ, 1998.
SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. Tradução Rubens Figueiredo. São Paulo:
Companhia das Letras, 2003.