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A ESTÉTICA DA MACHONA DA ROÇA E A SUA VIDA CÍNICA, SAPATÃO,

FUGITIVA: rompendo com a instituição heterossexual

Meu demônio colorido1 me disse uma vez na cama de


um motel que, na sua época, as mulheres que se
relacionavam com mulheres se nominavam como gays.

Lá em casa, nas prosas de família, minhas tias sentiam


tesão de falar mal da Maria-macho.

Ouvi uma coleção de estórias sobre a sapatão em rodas


de conversa: a sapatão sempre foi uma ser perigosa. Uma
espécie de mostra errática que atiçava medo nas
senhorinhas da igreja, de saia longa e cabelos brancos
curtinhos.

É chato para caralho ter que performatizar essa


feminilidade. Não é só sobre passar batom, calçar salto,
vestir saia, nascer em quartos rosas. É sobre suportar um
lugarzinho de merda em que nos olham de cima para
baixo:primeiro na bunda, depois mete os olhos no peito.
Vão à Me****rda!!!

Frente ao tema da pesquisa de doutorado: “A machona no território da roça e


sua captura institucional: estéticas e subjetividades”, tendo como objetivo a
rememoração de estórias da masculinidade feminina (female masculinity) [cis], surge
uma problemática institucional:como se constrói a subjetividade das mulheres situadas
na roça? Aproximando do campo da análise institucional e da experiência da
masculinidade feminina [cis] como analisador, apostamos ser possível cartografar e
levantar pistas sobre os processos pelos quais nos tornamos sujeitas ao assumir
autodenominações sexuadas, ou gênero com seus marcadores sociais de (classe
sexualidade, idade), construídas no espaço rural frente às suas estruturas de poder.

***

o nome da gente é tudo2


1
Hino sapatão: “Demônio colorido”, de Sandra de Sá.
2
Mãe 13/11/2022, áudio do WhatsApp. Mãe de quaro mulheres: Jaciara, Daniela, Gabriela e Jessica. Eu
com minhas quatro irmãs temos feito o revezamento de dormir com vovó Libia. Neste momento, Gabriela
assume essa tarefa após eu ter deixado todas as gavetas da vovó organizadas no período de quase um ano
em que estive em Minas Gerais. Deixo Gabis com essa função de organizar e arrumar as gavetas. No dia
13 de novembro de 2022, Gabriela saiu para uma festa na casa de uma amiga e não retornou para casa. As
6horas da manha, recebo, via WhatsApp, uma mensagem da minha mãe por áudio: Bom-dia, Jessica.
Então, quando Gabriela fala que vai sair, a vovó super entende, porque sair todo mundo tem o direito.
A escrita surge aqui como experiência de rememoração de transmissão de
memórias históricas de mortas anônimas já esquecidas no presente. Trago rastros de
estórias de subjetividades machonas, como Gambira e Raquel, como possibilidade não
de retornar ao passado e ver o que ele tem a nos dizer, mas daquilo que Jeanne Marie
Gagnebin (2014, p. 202) nos adverte, o qual Walter Benjamin defendia que
interroguemos menos o que o passado tem a nos contar, mas “[...] o porquê do interesse
do presente por este ou aquele evento do passado”. Frente a essa provocação de
Gagnebin (2014), a escrita fluxo é um encontro com experiências, a partir de três cenas
analisadoras 3
, que nos permite, no decorrer do texto, produzir análise. São cenas,
encontros ou acontecimentos, que movimentam a vida, e os caminhos que produzimos
andarilhando4, a saber:

ANALISADOR 1: No início da pandemia COVID-19 no ano de 2021


em isolamento na casa da vovó materna Libia, aconteceu, de um dia,
eu tirar uma manhã para arrumar uma de suas gavetas. Na ocasião,
encontrei um bilhete de autoria de minha tia por parte de pai,
conhecida como Gambira: „Meu dinheiro acabou, o motor do meu
fusca fudeu, tem como me emprestar um dinheiro para o conserto?‟ A
partir disso, meu interesse de querer escrever sobre ela aumentou.
Entende que a escrita possibilitaria não somente fazer o seu
sepultamento, mas, também, de falar quem foi Gambira atrás de um

Ninguém tem o direito de não sair. Mas, criatura, avisa, né? Dá um telefone, passa um zap. Agora, cê
pega esses uber de madrugada, esses homens. A gente não conhece. Tá acontecendo muita coisa ruim
hoje em dia. A gente vê tanta coisa. Olha os sequestros de meninas e estupros. Depois, joga o corpo
nesses matos aí e vai embora. Você não vê o que aconteceu com a doninha, aqui, no bairro
Bandeirantes? O que eles fizeram com ela? Até a língua dela, eles cortaram. Então, a gente só pensa o
que é ruim. Gabriela pode sair à vontade, mas ela tem que mandar mensagem, tem que avisar. Gabriela
deveria ter avisado, mandado uma mensagem. Hoje em dia, é muito fácil comunicar com as pessoas. Se
você não ligar, escreve mensagem. Diz:‘Mamãe, errei a mão aqui. Vou dormir aqui. Avisa a vovó”.
Aí, eu ajudaria ela, ligava para vovó de madrugada e falava. Mas, não! Não avisou. Eu ligo, dá caixa
postal. Aí, fica difícil, né? Isso é falta de respeito que a Gabriela está fazendo. Esquecer da vida
assim? Uai, pelo amor de Deus! Ela já não é mais criança, né, Jessica? Se fosse uma menininha de 13
anos. Quantos anos que a Gabriela, tem? Uai, avisava, né? Eu estava indo na missa agora, nem vou
mais. Tô aqui esperando, tô mandando mensagem sem parar e ligando. Ela não atende o telefone. O
que aconteceu com ela? Só espero que ela esteja bem”. PORQUE A MASCULINIDADE
HEGEMÔNICA PRODUZ A POLÍTICA DO MEDO? QUANDO UMA DE NÓS NÃO VOLTA PARA
CASA, OUTRAS JÁ SE DESESPERAM PENSANDO NO SEU FUTURO APAGAMENTO?
3
O analisador é um conceito muito caro para a análise institucional. Consiste em explicitar que é a partir
de uma experiência, de um acontecimento, de uma assembleia, de um encontro, de uma possível reunião,
que fará surgir com mais força uma possibilidade de análise, comparecendo, finalmente, o não dito ou
mesmo instituições invisíveis, que não estavam sendo vistas no derradeiro momento. Nessa perspectiva, o
analista institucional tem como tarefa levantar os analisadores, para tecer possíveis cartografias do
presente, os quais apontam as cumplicidades ou práticas e produções de subjetividades(LOURAU,1993;
LAPASSADE, 1979).
4
“O caminho se faz caminhando. Faça você mesmo o seu caminho” (CLARK, 1998, p. 24).
assassinato ocasionado por uma instituição heterossexual compulsória
e normativa.

ANALISADOR 2: No início do ano de 2022, Raquel, mais conhecida


como machomaria da roça, é assassinada pela instituição
heterossexual compulsória e normativa. De tanto que exerceu a
coragem de viver, veio a óbito devido a um inchaço do coração5.

ANALISADOR 3: Outro acontecimento foi a experiência de um


término de relacionamento com duração de dois anos com outra
mulher. No nosso último encontro, ela comparece no volante
acelerando enquanto gritava: “Se você não descer do meu carro, eu
não vou parar! Não vou parar!” Na ocasião daquele dia, deparei com a
sua raiva e descontrole, cogitei a possibilidade de abrir a porta do
carro mesmo estando em alta velocidade, mas [...] após refletir por
alguns segundos, me lembrei que havia um doutorado para sustentar!
Aqui escrevo VIVA e alegre por não ter num momento de desespero
puxado a maçaneta daquela porta do carro. Tal experiência me fez
reconhecer que, ao sair do carro andando e respirando, era inevitável,
eu já havia morrido ali. A partir disso, como se reinventar? Como
bancar um fim de um relacionamento amando ela, mas reconhecendo
que juntas não produzimos vida saudável? Como elaborar minhas
cumplicidades, aceitando que era preciso sepultar o meu amor, é
acolher sua ausência? Precisei sair do lugar de dor e resgatar uma
saudade que abriria sorrisos quando se lembrava do nosso passado.
Confesso que bancar sua ausência e fazer o trabalho do sepultamento
de quem a gente ama foi uma experiência diferente de tudo que já
experimentei e vivi. Depois do término, perdi o gosto pela vida. Passei
a ter dificuldade de andarilhar pela cidade mineira. Sua ausência me
transformou em outra coisa, em tudo aquilo que eu não era antes.

Cabe ressaltar que, por meio dessa experiência de namoro, alguns atritos e
desentendimentos começaram entre nós a partir da entrada dela numa empresa de
trabalho. Ela começou a apagar minha existência ao seu lado em lugares públicos, e foi
me entregue um manual do que podia e o que não podia fazer. Sem julgamentos, eu me
questionei e ainda me questiono: como compramos modelos que apagam a nossa
própria existência e nos fazem ter vergonha daquilo que a gente é? O regime
heterossexual nos vende a felicidade para nos matar. E muitas de nós, ou se matam, ou
nos assassinam. Com tudo isso, o que é possível produzir de encantamento de vida, e
outros modos de compor a existência no mundo, dando passagem quando a gente não
morre? Nas palavras de Beatriz Gimeno (2003, p. 4):

Que importa o que uma mulher sente ou pensa se finalmente precisa


se ajustar à heterossexualidade para sobreviver? O que importa quais

5
A palavra “coragem” tem sua origem no latim coratium e possui o mesmo significado. Esse termo latim
é composto por cor, que significa “coração”, e pelo sufixo aticum.
relacionamentos estabelece com outras mulheres se é forçada a se
casar para se alimentar? O que importa o que as mulheres fazem,
pensam, dizem ou escrevem se o que conta é que a heterossexualidade
regula as relações sociais e econômicas de todas elas? Qualquer
desvio da norma, no caso das mulheres, por não ter consequências, é
considerado um desvio menor, uma estratégia pessoal para criar
pequenos espaços para respirar.

Desse modo, a heterossexualidade compulsória é um regime regulador. Ela não


só subordina as mulheres aos homens como também controla vidas e produz hostilidade
e violência das mais diversas possíveis. Por isso, frente às cenas analisadoras
referenciadas, a estética e o modo de vida simples das machonas da roça, Gambira e
Raquel, neste momento, me provocam a pensar numa escrita em que eu possa enterrar o
meu passado, viver meus lutos e sepultar minhas mortas.

***

De acordo com Jack Halberstam (2008), a produção de masculinidades de


mulheres tem sofrido um apagamento frente ao discurso da homossexualidade, tendo
em vista que as suas identidades são enquadradas na nomenclatura da figura da
“lésbica”. Todavia, para a autora, há outras subjetividades, as quais borram o lugar do
ideal lésbico e que, também, seriam meras mulheres de entrar para a história, sendo
estas as ditas mulheres masculinas, mais conhecidas como machona, pedreira,
caminhoneira, Maria-macho, macha e açougueira. A partir disso, podemos ter uma
diferença das expressões e singularidades de compor a vida, não se resumindo a lésbica
como apenas um ideal de identidade a uma forma de gênero, pois as masculinidades
femininas são práticas que permitem e endossam o cruzamento do gênero.
Assim, a masculinidade feminina é um conceito significativo quando se passa a
refletir sobre a forma de viver o gênero e a sexualidade. É um conceito que, no Brasil,
foi esquecido, porque o termo “L”, da sigla dentro do discurso homossexual
(LGBTQI+), tomou uma certa proporção de higienização de existências que sujam esse
ideal e, logo, são demonizadas, mostrificadas. No Brasil, a masculinidade feminina
nunca teve um lugar especial. De fato, quando uma mulher suja esse lugar do feminino,
ela já é entendida e acessada como corpo estranho, que passa a experimentar a
hostilidade e a violência na carne. Sua coragem parrética6 de dizer a verdade e habitar a

6
Parrésia, no sentido foucaultiano, consiste em dizer a verdade. Com isso, temos a coragem da verdade,
de viver uma vida cínica, desavergonhada, uma vida de sapatão (FOUCAULT, 2011).
cidade acarreta o risco da sua própria existência, aonde mulheres são assassinadas por
simplesmente performatizar o masculino.
Dessa maneira, a partir de um encontro com Jack Halberstam, Paul Preciado,
Cassandra Rios e Judith Butler a respeito do tema da masculinidade feminina, tem-se
forçado a prática antropofágica, em a gente come para criar ou fazer filhes por trás.
Assim, surte como efeito pensar que a forma da masculinidade feminina está muito
presente no corpo de mulheres, que residem na zona rural (roça). Elas conseguem, ao
mesmo tempo, sujar o feminino performatizando o masculino e produzir um derradeiro
“troca-troca Kuir”. Ao irem exercer as tarefas braçais, como panhas de café, tirar o leite,
roçar o pasto, plantar verduras e frutas, e fazer cercas, etc performatizam o masculino,
colocando-se em disputa de território com a masculinidade, que, a princípio, produz
uma hospitalidade com elas. Mas, qual o preço dessa hospitalidade? Indagamos: o que
teria por trás de suas histórias? Quais estratégias e táticas de resistência elas têm a nos
contar? Como a sapatonice comparece em suas experiências? Lembramos, como nos
ensina Beatriz Gimeno (2003, p. 1): “Os modos de uma sapatão, pode ser uma escolha
política ou vital, um modo estético, ético e político de compor a vida, não
necessariamente sexual”.
Portanto, pensando aqui o modo estético como cuidado de si desenvolvido no
pensando de Michel Foucault (2006, 2011), a sapatão produz algumas práticas de
cuidado de si e modos de alcançar um modo de vida ético à medida que ela rompe com
o contrato sexual heterossexual, tornando-se uma fugitiva do regime. A partir da sua
estética e dos seus modos de compor a vida, ela funda uma nova forma de existência ao
se relacionar com outras mulheres. Sua vida pode ser vivida como prática libertadora e
de pertencimento ao mundo, uma derradeira vida que pinta uma (Korpa-política-tela) 7.
Mediante seu modo de dizer a verdade (parrésia) 8
e de se pôr em perigo,
performatizando a masculinidade num corpo feminino, ela suja e borra o lugar das
práticas do discurso feminino; por fim, constrói um modo de vida estético, ético e
político da machona. Por meio dessas práticas, a machona da roça é um perigo para a
sociedade, uma vez que ela rompe com o modelo ficcional do sexo ou gênero.
Nessa ótica de produção de discursos, a sexualidade e o gênero são ocasionados
por vontades da verdade, onde se tornam artificiais ou ficções inventadas, tornando um

7
Aqui, tenho pensado, com Leda Martins (2003), a respeito do corpo como um documento/arquivo.
8
Nas palavras de Michel Foucault (2011, p. 33): “[...] (o dizer-a-verdade, o direito de dar sua opinião e a
coragem de se opor à dos outros)”.
jogo de poder9. A ética da sapatão produz outros modos de compor a vida à medida que
se acopla com a experimentação de friccionar a vida pele com pele. Adia o fim do
mundo na tesourinha, 69, cipó, rodeio, balancinho, colada e apertada, dedada, sexo oral,
69 lateral, vibradores, cintaralho, e rompem, por fim, com a masculinidade CIS, não
dependendo do pintoficcional para sentir prazer ou gozar.
Elas, também, não dependem economicamente de um homem, pois vivem de seu
próprio dinheiro. Elas são acadêmicas dos saberes das encruzilhadas da rua. Vivem em
busca de bolsas de estudos para custear sua sobrevivência, porque têm um gosto pelos
estudos, principalmente pelos saberes insubordinados dos vencidos da história. Algumas
não sabem negociar a vida sem estar no espaço acadêmico. Ao mesmo tempo, se não
conseguem entrar nos espaços acadêmicos com bolsa, vão para as ruas vender bolos de
pote, pães, livros de poesia de sua autoria 10, ou trabalhar em klínicas clandestinas,
apostando numa “klínicas menor”11. Estão sempre produzindo estratégias e modos de
produzir encantamento e afirmar a vida.
Com tudo isso, elas rompem com acordos impostos goela abaixo pela
heterossexualidade compulsória. Sobre isso, Monique Wittig (2022) nos provoca a
pensar na sua teoria do pensamento lésbico de que a sapatão não seria uma mulher. Ela
é uma rasura, uma forasteira, uma fugitiva do regime heterossexual à medida que ela
produz uma estética que não reproduz a cópia de uma performatividade de gênero
normativa aos modos de um ideal na concepção heteropatriarcal. Ela, em si, rompe com
o contrato social heterossexual, pois, nas palavras de Monique Wittig (2022, p. 49):
“[...] A mulher não existe para nós: é apenas uma formação imaginária, enquanto as
„mulheres‟ são produto de uma relação social”.
Com isso, acreditamos que a maria-macho seja uma nova autodenominação de
mulher. Isto é, as “mulheres de bigode que nem o diabo pode”. Em vista disso,
almejamos habitar o território da roça, para localizar pessoas que poderão nos ensinar
modos outros de compor com o mundo, de sujar o lugar do feminino e da
masculinidade. Essas mulheres-bruxas, com suas práticas de cuidado de si, práticas
homoeróticas, modos de reinvenção da vida, receitas medicinais, espertezas para dobrar

9
Sam Bourcier (2020, p. 261), sobre isso, diz: “[...] as feministas, de todo modo, foram as primeiras não
mais apenas a descrever os efeitos de construção dos gêneros, mas a fazer compreender que a relação
sexo∕gênero tal como ela é imposta e regulada torna-se um jogo de poder”.
10
Publicação da obra “O cheiro do não dito”. Disponível em: https://katzeneditora.com.br/o-cheiro-do-
nao-dito
11
Sobre as práticas e ferramentas de uma “Klínica menor” situada numa ONG CLANDESTINA no
território de Minas Gerais, ver em:
https://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/aceno/article/view/13611
os homens cis, resistem com seus feminismos na roça, em cidades do interior de Minas
Gerais e do Espírito Santo.
Por fim, a machona da roça, a Maria-macho, ou mesmo a figura da sapatona
força uma vida imanente; uma experiência estética com outras sensações da fineza de
pele com pele, de olfato, de habitar a outra [mulher] no sentido de extrair dela toda força
e produção de reinvenção de vida possível. Somos uma “korpa-política-tela” arquiv-o.
Por isso, quando terminamos um relacionamento amoroso, o arquivo da outra é nosso
também. Saímos carregadas de imagens, álbuns de música, cenas analisadoras,
rememorações da infância, brincadeiras de criança, contação das primeiras experiências
sexuais com outras, bilhetes, filmes, caminhadas, gambiarras de métodos de prevenção
sexual, cartas, livros, encontros e conversas debaixo de pés de limão, cafés e muita
mais, muita prosa. Somos, sim, mostruosas-bruxas, porque estamos sempre ficcionando
a sexualidade nas gambiarras e colecionando muambas de arquivos das ex, das outras,
de nós. Somos um mundo, enfim!!!

Figura1: Bilhete da ex

Fonte: arquivo pessoal.

Nessa perspectiva, o discurso da heterossexualidade é posto em análise no


campo da análise institucional, provocando uma conversa com a machona no território
da roça, tendo em vista que o regime heterossexual é um dispositivo, uma tecnologia de
poder, que captura o desejo, produz subjetividades e apaga outros modos de vidas.
Todavia, de acordo com Cecília Coimbra (RODRIGUES, 2020, p. 8), por mais que
estejamos sendo governadas, em suas palavras, “novas possibilidades de vida sempre
acontecem”.
Frente a essas forças de vida que surgem frente à produção de discursos de
veridicção, técnicas de governabilidade e formas de práticas de si, que nos conduzem ao
modo de vida heteronormativo, dispomo-nos em suportar ouvir estórias de mulheres no
campo rural, que dizem de suas experiências, as quais tangem os campos do gênere e da
sexualidade, a partir da contação de histórias aos modos de Walter Benjamin (1995), em
que a narradora se transforma numa contadora de estórias que recolhe muambas, coisas
insignificantes, comoarquiv-o de gavetas para montar a história e contá-la a partir dos
vencidos. Nessa medida, surge o interesse em garimpar, catar e recolher essas estórias
de rememoração, que afirmem a vida e suas demais resistências de mulheres no campo
em prol de conduzir um arquivos nomeado como: “Mulher de bigode nem o diabo
pode”.
Entendemos que, mediante o discurso heterossexual, entendido aqui como uma
instituição, o qual ocasiona opressões entre o masculino e o feminino, onde “[...] a
masculinidade é a única ficção com poder político” (PRECIADO, 2008, p. 80),
ressaltamos que vazam instituintes e instituídos vencedores e vencidos como
movimentos de força. Assim, nesse sentido, a sapatão seria uma forma de resistência e
uma figura questionadora de tais práticas. Isso nos violenta ao pensarmos que a mulher
masculina, a machona da roça, experimenta uma hospitalidade em seu território, não
sendo o mesmo que acontece com a sapatona no ambiente de trabalho em empresas
formais, como faculdades privadas e MST, por exemplo. A hospitalidade transforma-se
em hostilidade.A lei da hospitalidade caracteriza aquele ou aquela que acolhe na
acolhida. Sobre isso, Jacques Derrida (2003, p. 69) comenta:

Digamos sim ao que chega, antes de toda determinação, antes de toda


antecipação, antes de toda identificação, quer se trate ou não de um
estrangeiro, de um emigrado, de um convidado ou de um visitante
inesperado, quer o que chega seja ou não cidadão de outro país, um
ser humano, animal ou divino, um vivo ou um morto, masculino ou
feminino.

Podemos entender com Derrida (2003) que todo sim está adepto a transmutar
num não. Isto é, hospitalidade pode, a qualquer momento, virar hostilidade. Pensemos
no exemplo de uma visita que, após alguns dias, a sujeita quebra o contrato,
permanecendo mais dias na casa, não ajudando a dona com os afazeres doméstico,
falando compulsivamente, não permitindo descanso para a proprietária do lar. Essa
mesma pessoa, que foi tão bem recebida como hóspede, virará uma estranha, uma
parasita dentro da casa.
Outro exemplo diz sobre o discurso de empresas heteronormativas, no qual
frisam: “Devemos vestir a camiseta da empresa” ou “Aqui é a sua segunda casa”. Esses
enunciados forçam a refletir que não devemos expor nossas experiências sexuais,
porque, ao expormos, serão, ao mesmo tempo, menos hospitaleiros. Assim, a sapatão
machona institucionalizada vai ser capturada por esses discursos do empreendedorismo
de si. Caindo na clandestinidade nas cidades do interior, passam a se reinventar e a
descobrir outras maneiras anônimas de viver e de se relacionar com outras mulheres. À
medida que ela é capturada por empresas ou instituições que produzem extratos duros,
que a forçam a tamponar sua sexualidade e suas vivências, por motivos de
sobrevivência, a sapatão institucionalizada é forçada a performatizar a feminilidade ou
mesmo se afirmar enquanto heterossexual. Ela passa a se vender por empregos,
apartamentos, carros um salário e planos de saúde. Ela está errada ao reproduzir um
suicídio em curso, cavando sua própria tumba?
Todavia, nossa intenção não é levantar, aqui neste trabalho, o que é certo ou
errado, mas contar histórias de pessoas que estão produzindo gingados, os quais vazam
outros modos de viver num regime heterossexual, recheado de opressões, privilégios,
mentiras, vontades da verdade cis e cumplicidades. Ao mesmo modo que a sapatão
institucionalizada tem que criar um rebolado, um gingado para sobreviver numa
instituição hétero, a machona da roça já faz isso a muito tempo, tendo em vista que seu
trabalho no campo exige que ela suje o lugar da feminilidade para produzir resistência,
estratégia e táticas de proteção. Com isso, afinal, quais mecanismos de força podemos
extrair de suas existências menores, aproximando-nos do paradigma da estética gambira
(gambiarra)?

ESTÉTICA GAMBIRA: gambiarrando e ficcionando gênere e a sexualidade


Figura 2: estética gambira: campo do homoerotismo

Fonte: montagem feita pela autora no Canva.

Os modos de estetizar o feminino/masculino fazem com que essas performances


produzam a binaridade, conduzindo a experiências de vontades da verdade de uma
“ficção”de um homem ou, de uma mulher no corpo a ponto de nos hostilizar. A mulher,
ao forçar uma estética sapão ou praticar uma relação homoerótica, está borrando o lugar
do feminino a partir de uma estética que estou cunhando aqui de “estética Gambira”.
Trata-se de pensar que tal estética propõe a ética de ficção do gênere a partir da
gambiarra, produzindo furdunço, alegria e cheiro de vida, até quando uma vida não
heteronormativa morre.
As gambiarras do gênere, num regime farmacoponográfico, entendem-se, aqui,
por: cintaralho, comprimidos hormonais, tutorial no YouTube, sutiã de bojos, perucas
compradas no camelô e roupas adquiridas em brechós, que compõem um manual de
mandigas para botar fogo e incendiar o regime da heteronormatividade.
Nossos corpes são marcados por nome, gênero, raça e sexualidade, que, por fim,
geram uma hospitalidade ou hostilidade no mundo. O modo como nos colocamos no
mundo, a partir do nome e da performance do gênero, nos faz questionar o limite entre a
hospitalidade e a hostilidade de pessoas não enquadrantes da norma. A narrativa de
Gambira nos coloca numa experiência de que a hospitalidade é enquadrada na normal
cis heteronormativa, enquanto que a hostilidade é um anulação e violência da existência
de um corpo no mundo.
A estética Gambira ganha força a partir de uma mulher trans, que produziu
cheiro de vida à base de gambiarra. Corre em meu sangue o sangue de Gambira. Ela
produziu um modo estético, ético e político de vida vivendo na roça. O cis-tema a
matou após se jogar frente a um trem numa cidade do interior de Minas Gerais. O dia
em que Gambi faleceu, lembro-me de que estava, no dia do ocorrido, na casa da avó
paterna Nilcia, no território da roça. Recordo que vó não dormiu naquela noite do
suicídio da Gambira. Naquela madrugada, o trem não parou de apitar. Não podíamos
imaginar que o trem apitava para Gambira se retirar dos trilhos de ferro. O buzinado
“BI! BI! BI!” acordava a cidade, e ela havia dado o recado: “Parem de nos matar”. Jota
Mombaça (2021, p. 13) diz: “Não vão nos matar agora, apesar de que já nos matam”.
Depois que Gambira se matou, quem reconheceu seu corpo e seus rastros na
existência? Quem sabia dos seus medos? Quem sabia dos seus sonhos? Quem sabia de
suas músicas prediletas? Quem sabia dos seus livros e autora preferidos? Quem sabia o
nome dos seus amantes? Seus homens? Quem, quem realmente hospedou Gambira no
mundo?
Naquele dia, o dia clareou de forma diferente. Saí da casa de vó cedinho e
retornei para a casa de meus pais localizada na cidade. Na hora do almoço, papai
chegou de bicicleta do seu trabalho laboral da roça como de costume. Avistei-o
cabisbaixo e chorando bastante. Nunca havia visto lágrimas escorrer no rosto daquele
homem negro, que sempre passava de durão. Minha mãe, ao vê-lo, disse: “O que foi,
benzinho?” Eu e as minhas três irmãs fomos correndo ao seu encontro.Colocamos sua
bicicleta num cantinho do terreiro e, num alvoroço, dizíamos: “Papai, porque cê chora?”
Ele ficou um bom tempo sem conseguir falar. Ali, naquele instante do dia, parou-se com
uma tristeza, que comia suas palavras.
Papai assentou-se calmamente num banco de cimento, feito com suas próprias
mãos, tirou suas botas fedidas e meias encardidas de barro e disse: “O trem pegou
Gambira! Destroçaram seu corpo”. Ao escutarmos aquelas palavras, soou um ruído
perturbador aos nossos ouvidos! Logo, ouvia-se o barulho de choros. Nossas lágrimas
de crianças se misturavam com as lágrimas de meus pais. Éramos seis corpos cantando
um canto de dor pela morte tão precoce de Gambira.
Ela, a Gambira, além de tia, era “uma” pessoa íntima de nós. Ela havia sido
nossa vizinha quando morávamos na roça. Antes de seu assassinato pelo cis-tema,
Gambi passou na nossa casa para deixar algumas cabeças de alface. Era cuidadosa com
nossa alimentação. Dizia sempre para papai: “Tem que ter sempre uma hortinha em
casa. Colher tudo fresquinho para essas meninas, meu irmão!” Enquanto criança
entende muito cedo que as pessoas morrem, ou que elas deixam de apostar na
existência, lá em casa nunca tiveram meias-palavras. Meus pais sempre foram francos e
diziam a verdade, permitindo-nos sentir os afetos de dor, tristeza, ausência, raiva e
frustração.
Logo após a notícia, minha mãe foi ao guarda-roupas escolher a melhor roupa
para nós irmos até o velório de Gambi. Faríamos, ali, a hospitalidade daquele corpo,
para, então, ser enterrada. Um corpo que, em vida, foi hostilizado, negado, e que, no
final, todos se reuniriam em “reza” para enterrá-lo. Eu não quis ir ao ritual. Optei por
passar a noite com vovó e vovô. Não quis ficar com a imagem da Gambira morta, muda
e seca num caixão. Logo ela, que não podia me avistar, que adorava inventar
brincadeiras comigo. Eu havia entendido que algo de muito sério havia acontecido com
Gambie que, na época, minha idade não me permitia elaborar muito bem. Contaram
que foi um acidente, não suicídio. Mas, por trás disso, havia um dispositivo causador da
sua morte. Depois de anos, fui entender que há uma instituição cis-tema heterossexual,
que moí corpos, que nos matam!
No dia do seu velório, sonhei a madrugada toda com ela. Foi melhor ficar com
as suas imagens no sonho do que ter ido até o ritual. Vovó Libia havia me dito uma vez
que, “depois que se morre, é uma alegria: se enterra e acabou”. Depois de uns bons
anos, fui entender a proporção desse enunciado. É que, quando se morre, enterramos
uma existência, um arquivo, e que, ao lembrar, é produzir fluxo de alegria, produzindo
uma memória do esquecimento.
Após algumas semanas, foram desmanchar o LAR-kilombo12 de Gambira. Essa
experiência da desarrumação do cantinho da casa da Gambira foi um ato de apagamento
da sua existência. Mexer nos pertences de uma morta é invadir as gavetas de arquivos
[fotografias, cartas, diários, anotações e bilhetes]. Meus pais contam que a casa de
Gambi era feita na gambiarra, assim como sua vida. Para uma vida que nunca foi
hospedada por ser quem foi, os arquivos viraram lixo, papéis sem importância. Acredito
que toda morta deveria ter o direito de ter seu arquivo recolhido e ser colocado num
museu-funeral para não cair em esquecimento. Nós, vivos, precisamos e necessitamos,
muitas das vezes, visitar esses arquivos de gaveta dos mortos, mortas, para produzir

Kilombo, entendido aqui na perspectiva de Beatriz Nascimento (2021, p. 159): “De um modo geral,
12

definem-se quilombos como em todo o tempo de sua história eles fossem aldeias do tipo que existiam na
África, onde os negros se refugiavam para „curtir o banzo‟”.
rememoração. É angustiante ver famílias mais preocupadas com os bens materiais da
morta ao invés de seus arquivos de gaveta. Invadem suas casas, desarrumam sua casa,
jogam seus arquivos no lixo; por fim, apagam uma vida.
Com a desarrumação, houve doação dos seus pertences. Meus pais decidiram
pegar o colchão de casal onde ela dormia. Minha mãe também recolheu todos os seus
batons! Após isso, na noite que foram dormir no colchão, papai e mamãe não
conseguiram descansar. Relataram que viram Gambira a noite toda em sua frente. Pela
manhã, avistei minha mãe com olheiras e meu pai fumando, inquieto, confuso, com
medo, muito medo. Meu pai gritou: “Vou devolver o caraí desse colchão!” Minha mãe
o acompanhou na devolutiva. Outros irmãos de Gambira também relataram que viram
ela nos cafezais, e minha vó, à noite, avistava, da sua varanda, a luz acesa da casa de
Gambira. A família começou a ter que lidar com a existência de Gambira mesmo
estando morta. Se não enxergaram em vida, tiveram que enxergá-la depois da sua morte.
Ela, a Gambira, começou a tocar o terror! Era engraçado ouvir as estórias da Gambira.
Mesmo depois de morta, ela trazia um cheiro de vida, de alegria para nós.
Eu lembro que, após uns meses do acontecido de sua morte, sua irmã mais nova
foi lá em casa tomar café com mamãe. Lembro que estava ao lado delas e ouvia estórias.
A tia sentia orgulho e dor, porque foi a responsável por ficar com o cargo de ir até a
linha do trem reconhecer o corpo de Gambira. Ela diz que houve uma sessão de
fotografia, realizada pela polícia, do corpo destroçado. Eles entregaram a ela um
envelope com essas imagens. Afinal, qual sentido de entregar para os parentes da morta
imagens de seu destroçamento? O que a polícia desejaria com isso? Reconhecerem o
luto? Ou, tal prática, serve para atiçar ódio, pena, da morta? “Quem é o „nós‟ que
constitui o alvo dessas fotos de choque?” (SONTAG, 2003, p. 12).
Após, esse fato, ao ouvir aquele relato, avistei a cena de um fogo forte em uma
das paredes da casa. Essa imagem era semelhante a chamas de uma fogueira. Em
seguida, quando eu disse para elas, ambas não conseguiram acessar a imagem. Somente
eu via. Fiquei ali, apenas admirando a boniteza do fogo, que se espalhava pela aquela
parede de cimento, que, por uns minutos, ganhou vida. Era um sinal!!!

***
Figura 3: Raquel

Fonte: Acervo Sueli Vilas Boas

O sinal da estética e experiências de vida de Gambira me leva até os modos de


vida de outra existência menor. Dessa vez, é de mais uma machona, conhecida como
Raquel Vilas Boas. Uma mulher negra, cis, sapatão e mãe. Raquel é filha de Nazaré,
que é companheira de Geraldo Vilas Boas. Engravidou-se e deu o nome à criança de
Raquel. Nazaré, conhecida como puta, trabalhava atrás dos muros do bar “Tião do
Jovem”, num povoado conhecido como Faisqueira. Era ali, naquele bar, que, após uma
jornada de trabalho no campo, os homens se encontravam para beber cachaça, falar mal
dos patrões e trepar com Nazaré. As fofocas a respeito do bar narram que, depois da
meia-noite, todo mundo comia todo mundo. Mamãe havia proibido a ida de papai por
lá. Mas, sabíamos que, no escondidinho, todo mundo frequentava aquele bar, até mesmo
mamãe frequentou na sua adolescência. Todos iam e pediam segredo. Aqueles e
aquelas, que ali pisavam, viviam experiências com a puta Nazaré e surubavam depois da
meia-noite. A cachaça, feita pelas mãos de Ordália, conhecida como “Vem capeta”, era
uma das bebidas mais procuradas na região da roça. O dispositivo da fofoca, e da
cachacinha tão bem aguçado e saboreado pelos mineiros, nos possibilitava saber um
pouco da força e das experimentações daquele bar localizado no território da roça!
O interior, a roça, tem também suas experimentações, suas experiências, que
possibilitam agenciamentos e acoplamentos de afirmação de vida. Uma sapatão sabe por
onde andar e por onde se reinventar nesse chão de terra, que ora nos recebem tão bem,
hospitalizando, ora hostilizando nossos desejos e modos de ser.
Geraldo, o filho mais novo dos nove irmãos de Adalmar e José, tinha permissão
para frequentar o bar, diferentemente do que acontecia com as suas irmãs. Foi em umas
idas ao bar que ele se apaixonou por Nazaré. Resolveram viver a vida juntos. No
momento, Nazaré estava grávida, e Geraldo assumiu a criança como filha. O homem
também aceitou a profissão de Nazaré, porque sabia que era através do seu trabalho que
a comida chegava à casa. Homens casados e ditos de família iam ao bar trepar com
Nazaré. Ela passou a ser hostilizada pela família. Mas, enquanto trabalhava, dizia:
“Pagando bem, só vem”. Não escondia de ninguém os nomes dos casados que iam até o
bar do “Tião do Jovem”. Ensinou sua filha Raquel a escrever nos troncos das árvores as
iniciais dos homens casados que procuravam por ela no bar. Isso tudo gerou mais
hostilidade das pessoas por Nazaré, Raquel e Geraldo.
Sua filha, a criança Raquel, cresceu inventando brincadeiras no bar. Aprendeu a
ler e a escrever com a mãe, que a orientava pôr, sílaba por sílaba, nos troncos das
árvores, os nomes dos homens casados que trepavam com ela. Na adolescência, Raquel
engravidou. Ninguém nunca soube quem era o pai da criança. Foi mãe solo. Raquel,
com seu estilo de vida macha, estava sempre de blusão, short, boné e cabelinho
curtinho. Sua presença confundia as pessoas. É homem? Mulher? Ela dizia: “Maria-
macho”. Com o nascimento da sua filha, já na infância, passou também a vestir a
criança com roupas masculinas. As pessoas fofocavam: “Essa aí é Maria-machinho
igual à mãe, né!” Mas, afinal, seria estratégia? O que haveria por trás dessa prática? Um
estilo de vida sapatão?
As irmãs do tio Geraldo reconheciam Raquel como sobrinha, haja vista que seu
irmão a criou desde criança. Nas rodas de conversa da família, o nome da Maria-macho
sempre aparecia! Havia um discurso de medo, menosprezo e hostilidade que
assombrava as mulheres nas rodas de fofoca. A identidade sapatão colou na existência
de Raquel por ela nunca ter se permitido performatizar o feminino. Mas, afinal, porque
aquele corpo atiçava medo? Porque uma mulher, ao performatizar o masculino, causava
tanto ódio nas pessoas? Porque, quando uma mulher não compra as práticas e discursos
do feminino, ela é simplesmente apagada, e a nomeiam como sapatão? O que o estilo,
ou a estética vital de vida de uma sapatão, pode no ensinar para enfrentar o regime
heterossexual?
Já ouvi inúmeras vezes: “Tudo bem gostar de mulher. Só não vai virar o homem
da relação?” Aliás, as pessoas acham que a gente sofre por ser sapatão, ou sofremos por
não ser homem? Por que dói tanto na heterossexualidade compulsória quando uma
mulher borra esse lugar frágil de merda do feminino? Se eu sou uma mulher que me
relaciono sexualmente com outra mulher, sei que, quanto mais feminina eu for, mais
aceita serei estando com outra mulher no meu ciclo familiar ou nas ruas. Isso ocorre,
porque passamos despercebidas, como duas amigas qualquer. O problema é quando
produzimos gestos de afeto ou de carinho, ou performatizamos a masculinidade. Com
isso, a qualquer momento, podemos ser agredidas. A rua passa a ser um lugar de risco
para um casal sapatão.
A instituição heterossexual funciona à base de fórmulas ficcional e receitas
binárias. Produções de discursos frente a um casal de sapatão, aonde existe ativa e a
passiva, sendo uma mais masculina que a outra feminina, nos colocam em uma
experiência totalmente binária da heterossexualidade compulsória. Surgem perguntas,
como: qual de vocês está produzindo o papel do homem (ativa) na relação?, sendo ativa
a figura que penetra e que acopla no masculino. A instituição heterossexual não acessa
politicamente outras práticas de sentir prazer e gozar, que vão além da penetração. O
pênis, no discurso da sapatão, irá se metamorfosear em dedos ou cintaralho. Todavia, o
sexo vai além da penetração. Somos adeptas a colar os lábios. As xanas lokas 13 têm nos
mostrados outras formas de sentir prazer, o que nos permite gozar da heterossexualidade
compulsória. Ao romper com o discurso da ativa/passiva de quem penetra ou come,
bagunçamos e gambiarramos o gênere e a sexualidade, haja vista que a masculinidades
feminina fala de um lugar da política da reinvenção.
Raquel soube, bem criança, sobre essa política da reinvenção. No final do ano de
2021, encontrei-me com ela. Havia, por trás daquele corpo, um cheiro surreal de vida.
No início de 2022, ela veio a falecer. Veio a óbito após seu coração inchar. Sua coragem
a levou aos limites da vida. Não é por acaso que a palavra “coragem” tem sua origem no
latim coratium e possui o mesmo significado de “coração”.

13
Gel lubrificante.
Aquele corpo que era tanto menosprezado, que causava repulsa, medo, era,
agora, um corpo morto. As tias quiseram ir até o velório e sepultar seu corpo. A Maria-
macho estava sempre na boca delas.
No velório, pessoas da família chegavam até o seu corpo e faziam o sinal da
cruz. O ritual ocorria frente a ruídos e fofocas. Vovó e tias cochichavam uma para outra:
“É, né! Morreu! Coitadinha! Que Deus tenha misericórdia e receba ela no céu” Um tio
careca se aproximou do caixão. Ele retirou o chapéu e permaneceu intacto durante o
velório todo.
Algumas mulheres que moram na rua entraram no local, ficaram em frente do
corpo e fizeram o sinal da cruz. Por fim, choraram. Despediram-se de Raquel
agradecendo-a por tudo. A “política da amizade de rua” continua sendo uma rede, uma
aliança quando não há hospitalidade dentro de casa, não há acolhimento.
Logo, o padre chegou e fez o ritual da igreja. Jogou água benta no corpo. Alguns
cochicharam: “Deus tenha misericórdia dela!”
Raquel foi uma vida que incomodou. Sua morte, naquele dia, me conectou com
a morte de Gambira. Mais uma vez, porque a estética e os nossos modos de ser quando
a gente não reproduz as práticas heteronormativa nos leva para uma linha tênue, onde a
família só vai olhar para o nosso rosto num caixão? A gentes, que somos um bando,
lutamos por uma hospitalidade no mundo, mas não quando se MORRE.

INCONCLUSÃO

Levei muita porrada por escorregar e me desviar da performance feminina.


Houve muita produção de bagunça na cabeça de meus pais, que sempre afirmaram lá
em casa: “Ora, essa criança é um moleque”. Vim ao mundo frente a uma trepada de
duas pessoas iluminadas. Uma vez, papai e mamãe me contaram que, ao voltarmos para
casa, me colocaram atrás da charrete. Em meio aos galopes do cavalo, eu caí. Fiquei
para trás
numa noite. Eles não se deram conta de que haviam me perdido no meio do caminho.
Quando chegaram em casa, foram dar conta de que eu não estava atrás da charrete, onde
haviam me colocado. Voltaram rápido. Eles contam que me encontraram pelo barulho
do meu choro. Dizem que eu estava roxa de tanto chorar! Hoje, penso que qualquer um
poderia ter me pego ali e levado para outra casa, outros braços, ou, eu poderia ter sido
devorada por lobos e onças, algo do tipo. Mas, não! O destino e o acaso me levaram,
novamente, para a mesma casa, para os mesmos braços, para o meu berço. Sou feliz e
grata por ser filha de ambos. Consigo perdoar mamãe todas as vezes que ela não me
hospedou, todas as vezes que ela olhou para minha companheira e a chamou de “amiga”
não reconhecendo que ela era minha “namorada”. Também, consigo perdoar meu pai
por todas as vezes que ele disse que eu não iria conseguir, porque era uma mulher.
Consigo perdoar e esquecer, e acho que este texto é fruto de um encontro com o perdão,
com o esforço de rememoração para esquecer. Por mais que ousemos falar de
resistência, há práticas que nos escancaram na pele uma cicatriz, uma ferida. Por isso,
tatuarei na pele a Sol, e já tatuei a girassol, Ubuntu, a data que vim ao mundo,
reconhecendo que o mundo não é meu trauma como diz Jota Mombaça (2021), mas o
mundo é um barato, meu território de encantamento, reconhecendo que muitas das
cenas analisadoras me permitiram “morrer” para florir girassóis. Todavia, sei bem as
marcas de encontros que me geraram maus e, por fim, bons encontros. Foi no dia 12-12-
1992 que vim ao mundo. Dezembro é tempo de renascer. Parafraseando Hannah Arendt
(2019) ela diz ao como: “Alegrai, quando uma criança vem ao mundo, pois há novas
possibilidade do mundo tornar a começar”. Por ora: “Que ninguém me dê piedosas
intenções, ninguém me peça definições! Ninguém me diga: „Vem por aqui!‟”
Figura 4 Eu, aos 11 anos de idade

Fonte: Arquivo pessoal


Referências

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