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Livro: Aprendendo a viver por Clarice Lispector

VERGONHA DE VIVER

Há pessoas que têm vergonha de viver: são os tímidos, entre os quais me incluo.
Desculpem, por exemplo, estar tomando lugar no espaço. Desculpem eu ser eu. Quero
ficar só! grita a alma do tímido que só se liberta na solidão. Contraditoriamente quer o
quente aconchego das pessoas. Vai, Carlos, vai ser gauchena vida. (Não sei se estou
citando Drummond do modo certo, escrevo de cor.)
E para pedir aumento de salário – a tortura. Como começar? Apresentar-se com fingida
segurança de quem sabe quanto vale em dinheiro – ou apresentar-se como se é, desajeitado
e excessivamente humilde.
O que faz então? Mas é que há a grande ousadia dos tímidos. E de repente cheio de
audácia pelo aumento com um tom reivindicativo que parece contundente. Mas logo
depois, espantado, sente-se mal, julga imerecido o aumento, fica todo infeliz.
Sempre fui uma tímida muito ousada. Lembro-me de quando há muitos anos fui passar
férias numa grande fazenda. Ia-se de trem até uma pequeníssima estação deserta. Donde
se telefonava para a fazenda que ficava a meia hora dali, num caminho perigosíssimo, rude
e tosco, de terra batida e estreito, aberto à beira constante de precipícios. Telefonei para a
fazenda e eles me perguntaram se queria carro ou cavalo. Eu disse logo cavalo. E nunca
tinha montado na vida.
Foi tudo muito dramático. Caiu uma grande chuva de tempestade furiosa e fez-se
subitamente noite fechada. Eu, montada no belo cavalo, nada enxergava à minha frente.
Mas os relâmpagos revelavam-me verdadeiros abismos. O cavalo escorregava nos cascos
molhados. E eu, ensopada, morria de medo: sabia que corria risco de vida. Quando
finalmente cheguei à fazenda não tinha força de desmontar: deixei-me praticamente cair
nos braços do fazendeiro. Nessa fazenda que recebia hóspedes e que era maravilhosa com
seus bichos, sofri horrores. Só depois de uns três dias é que comecei a conversar com os
outros hóspedes e a me descontrair na hora das refeições, pois eu tinha vergonha de comer
na frente de estranhos e muita fome.
Lá estava um japonês que me perguntou se eu jogava xadrez. Respondi audaciosamente
que ele me ensinasse, que eu aprenderia logo e jogaria com ele. E de repente me vi tendo
que enfrentar tantas regras de jogo e com vergonha de não aprender. Mas logo em seguida
aprendi superficialmente a jogar. Acontece que, creio eu, por puro acaso dei um xeque-
mate no japonês que não quis mais jogar comigo. Senti-me infeliz, achava que o japonês
não me perdoaria e que não gostava de mim. Fiquei muito tímida com ele. Foi pois com
enorme espanto que o ouvi dizer na hora da despedida, com uma delicadeza toda oriental
que não elogia na cara, o que seria sufocante para a minha timidez. E ele disse: “Agradeço
aos seus pais por terem feito você.”
De 12 para 13 anos mudamo-nos do Recife para o Rio, a bordo de um navio inglês. Eu
não sabia ainda inglês. Mas escolhia no cardápio ousadamente os nomes de comida mais
complicados. E me via tendo de comer, por exemplo, feijão branco cozido na água e sal.
Era o castigo de minha desenvoltura de tímida.
E quando eu era pequena em Recife meu encabulamento nunca me impediu de descer
do sobrado, ir para a rua, e perguntar a moleques descalços: “Quer brincar comigo?” Às
vezes me desprezavam como menina.
Com sete anos eu mandava histórias e histórias para a seção infantil que saía às quintas-
feiras num diário. Nunca foram aceitas. E eu, teimosa, continuava escrevendo.
Aos nove anos escrevi uma peça de teatro de três atos, que coube dentro de quatro folhas
de um caderno. E como eu já falava de amor, escondi a peça atrás de uma estante e depois,
com medo de que a achassem e me revelasse, infelizmente rasguei o texto. Digo
infelizmente porque tenho curiosidade do que eu achava de amor aos nove precoces anos.
Livro: Um dia vamos rir de tudo por Ruth Manus
30 MINUTOS NA VIDA DE UMA PESSOA COM DIFICULDADE DE
CONCENTRAÇÃO

MINUTO 1: VOU me sentar aqui nessa cadeirinha, abrir o computador e responder logo
aqueles e-mails atrasados. Em 5 minutos acabo com isso.
MINUTO 2: Esse teclado está mesmo sujo. Preciso limpar. Deixa eu ver se tem um
lenço de papel aqui na gaveta (…) Nossa, que gaveta bagunçada! HAHA, GENTE, OLHA
ESSA FOTO. De 2002. No Guarujá. Deixa eu tirar uma foto dessa foto e mandar pra minha
irmã.
MINUTO 3: (no WhatsApp)
PESSOA: HAHAHA LEMBRA DESSE DIA?
IRMÃ DA PESSOA: hahahahahahaha não foi o dia que você passou mal porque comeu
3 churros?
PESSOA: Isso!!! Churros do Gordo, comi um de doce de leite, um de chocolate e um
de goiabada!!!
IRMÃ DA PESSOA: já nos falamos direito, que estou em reunião.
MINUTO 4: Que que eu estava procurando nessa gaveta mesmo? Enfim, não lembro.
Vou responder logo aqueles e-mails.
MINUTO 5: Deixa só eu ver as notícias antes.
MINUTO 6: Gente. E essa história do cara que desapareceu no Acre e deixou livros
criptografados e uma estátua do Giordano Bruno?
MINUTO 7: Google: Giordano Bruno
MINUTO 8: Muito interessante mesmo a filosofia do Giordano Bruno. O Gui se
interessaria muito por isso. Vou mandar pra ele.
MINUTO 9: OI GUIIIIIII
MINUTO 10: Deixa eu responder os e-mails aqui.
MINUTO 11: Olha, chegou um e-mail da livraria. Hoje tem promoçãorelâmpago online.
Ai, meu Deus. Não vou nem abrir. Vou responder meus emails aqui que eu já tô atrasada.
MINUTO 12: Vou só pegar uma aguinha.
MINUTO 13: Melhor comer alguma coisa também, senão não aguento até o almoço.
Um iogurte.
MINUTO 14: Bom esse iogurte. Será que tem muita gordura? Deixa eu dar uma
olhadinha nos ingredientes e na tabela nutricional.
MINUTO 15: Google: Gordura saturada é a que faz bem ou mal?
MINUTO 16: Os e-mails. Vou responder.
MINUTO 17: Abro o primeiro e-mail. O remetente se chama José Carlos Bahia.
MINUTO 18: BAHIA!!! Gente, eu esqueci de olhar aquela promoção que tinha no site
das passagens!!!
MINUTO 19: Decolar.com
MINUTO 20: Acabou a promoção, droga.
MINUTO 21: Mas olha esse pacote pra Patagônia… Glaciar Perito Moreno… Glaciares
Viedma e Upsala… Laguna Nimez…
MINUTO 22: Google: temperatura Patagônia outubro
MINUTO 23: (WhatsApp)
PESSOA: Amor, o que você acha de irmos para a Patagônia em outubro?
AMOR: A gente não tá guardando o dinheiro da obra?
PESSOA: Ah, é.
MINUTO 24: Deixa eu responder aqui pro José Carlos Bahia.
MINUTO 25: Tinha ficado de ligar pra minha mãe. Não posso deixar minha mãe
esperando.
MINUTO 26: OI MÃÃÃEEEE
MINUTO 27: PERAÍ MÃE QUE EU QUERO TE CONTAR DE UMA RECEITA DE
BERINJELA
QUE VI NA INTERNET TÔ ABRINDO O VÍDEO AQUI NO COMPUTADOR
RAPIDINHO
MINUTO 28: Tastemade Brasil
MINUTO 29: Deixa eu voltar aqui pro e-mail.
MINUTO 30: “Ok, José Carlos, fico no aguardo”. Pronto. Agora só falta responder os
outros 6 e-mails. Em 5 minutinhos resolvo isso.
Livro: Um dia vamos rir de tudo por Ruth Manus
QUANDO FOI A ÚLTIMA VEZ QUE VOCÊ FEZ ALGO PELA PRIMEIRA VEZ?

“A CADA DIA QUE VIVO, mais me convenço de que o desperdício da vida está no
amor que não damos, nas forças que não usamos, na prudência egoísta que nada arrisca e
que, esquivando-nos do sofrimento, perdemos também a felicidade.”
Foi a frase – que rola pela internet atribuída a vários autores diferentes que minha amiga
amada pediu para pintarem na parede do quarto quando começou a quimioterapia. E ela
viveu todos os seus dias intensamente, com um sorriso no rosto, pedindo pra ficar mais um
pouco.
Até que um dia ela se foi. E eu, aos 18 anos, me prometi que viveria por mim e por ela.
Que não teria medo de arriscar e que nunca faria da minha vida um mero encadeamento
de dias. Estou tentando.
Então, diariamente, uma pergunta martela na minha cabeça: quanto tempo perdemos?
E quanto tempo ainda vamos perder?
Porque me falta tempo; porque acordo cedo amanhã; porque estou com enxaqueca;
porque estou de dieta. Com excesso de zelo, excesso de cautela, excesso de fé na ideia de
que sempre pode ficar para amanhã.
Chega, vai. A vida é só uma e passa correndo. Quando a gente vê, já passaram as chances
e tudo o que sobra na cabeça é um triste e fosco rol de hipóteses não tentadas e de riscos
não corridos.
E essa conversa não é necessariamente sobre projetos grandiosos. É simplesmente sobre
sopros de liberdade. Sobre uma vida mais feliz por ter menos regras intransponíveis.
É sobre pegar um cinema sozinho, de preferência numa terça-feira.
Sobre comprar uma passagem poucas horas antes do voo. E ir só com a roupa do corpo.
Sobre voltar da padaria com um sonho pro porteiro do prédio.
Sobre ir de pijama à garagem buscar aquele negócio que ficou no carro.
Sobre entrar no elevador com a toalha de banho enrolada na cabeça.
Sobre comer jiló, javali, jaca, jacaré.
Sobre pedir desculpas por um erro de 2002.
Sobre pegar insetos nas mãos.
Sobre ligar, dizer que sente falta, que sente muito, que sente que pode ser agora.
Sobre comprar aquela peça de roupa que você sempre namorou, mas que acha
inadequada para a sua idade ou para o seu tipo físico.
Sobre fazer caretas para as crianças da van escolar no trânsito.
Sobre parar num bar e tomar uma, duas, três cervejas só na sua companhia, em horários
incomuns.
Sobre deitar na cama, dormir de roupa, sem escovar os dentes.
Sobre finalmente mandar pessoas tóxicas à merda.
Sobre cortar curtinho, pular do alto, nadar no fundo.
Sobre um belo dia resolver mudar e fazer tudo o que se quer fazer, se libertando daquela
vida vulgar que a Rita Lee cantou.
Sobre não se render mais um dia à tal prudência egoísta que nada arrisca da frase lá do
início.
Porque é fácil levar uma vida banal e queixar-se dela. Mas será que quando a vida não
é fantástica a culpa é do destino ou a culpa é nossa? Eu não sei se a vida é curta, mas sei
que essa vida é uma só. E que o tempo não volta.
A gente tem que fazer o que tem que ser feito. Pode ser hoje. Façamos ser hoje.

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