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COPYRIGHT © 2023 MARCELLA M.
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página lida. Esta é minha única fonte de renda e
eu mereço ganhar pelo meu trabalho.
 
Capa: Larissa Chagas
Revisão: Hanna Câmara
Diagramação: Lilly Design
Leitura Sensível: Sterlaine da Silva Viturino
Ilustrações dos brasões: Lilly Design
Ilustração do casal: Nia Oliveira
 
1.                     Romance Contemporâneo 2. New Adult 3.
Ficção I. Título
Playlist
Nota da Autora e Aviso de gatilho
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15.1
Capítulo 15.2
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22.1
Capítulo 22.2
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38.1
Capítulo 38.2
Capítulo 39.1
Capítulo 39.2
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Capítulo 46
Capítulo 47
Capítulo 48
Capítulo 49
Capítulo 50
Capítulo 51
Capítulo 52
Capítulo 53
Capítulo 54
Capítulo 55
Capítulo 56
Capítulo 57
Capítulo 58
Capítulo 59
Capítulo 60
Capítulo 61
Capítulo 62
Capítulo 63
Capítulo 64
Capítulo Bônus
Epílogo
Agradecimentos
Redes Sociais
 
 
 
 
 
 
 

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“Fortuna & Ascensão”
 
 
 

Sejam bem-vindos ao submundo de Las Vegas! A Vendetta e


a Timoria te receberão de braços abertos na cidade do pecado.
Primeiramente, preciso enfatizar que este livro é um Dark
Romance recomendado para maiores de 18 anos. É um romance
SÁFICO/LÉSBICO, ou seja, entre duas mulheres. Caso não seja
da sua preferência, não leia.
Esta história aborda um casal na máfia, então não esperem
um romance leve e tranquilo. Alessia e Lyanna são tudo, menos
tranquilas (risos). Aproveito para deixar claro que nada disso
aconteceria na vida real, em hipótese nenhuma, por inúmeros
motivos. Portanto, não esperem que os acontecimentos sejam
“semelhantes à vida real” ou reclamem que o livro é “muito
fantasioso”. É completamente fictício, já que, em primeiro lugar,
uma mulher jamais assumiria a liderança de uma máfia no mundo
real. Caso você prefira ler um romance mafioso mais verossímil,
recomendo a leitura de qualquer um que tenha como foco o
romance entre um homem e uma mulher. Não tenho a menor
intenção de retratar um submundo tradicional e dominado por
homens neste livro, muito pelo contrário; aqui, duas mulheres são
tão poderosas quanto os homens e até mais.
Antes de prosseguir com a leitura, é importante saber que
Fortuna & Ascensão tem diversos gatilhos, sendo eles: uso de
drogas lícitas e ilícitas, violência física e psicológica, menção e
execução de tortura, assassinato, crise de pânico, sexo, linguagem
imprópria, cenas gráficas e misoginia.
Por fim, quero esclarecer que não compactuo com os
acontecimentos e atitudes das personagens deste livro e não tenho
como objetivo a romantização do mundo do crime. Ele foi criado
para gerar entretenimento às pessoas que sempre sonharam em ler
um Dark Romance sáfico/lésbico, mas nunca encontraram algum
em meio aos tantos héteros espalhados no mundo literário.
Sem mais delongas, espero que você tenha uma ótima leitura
e que se divirta nessa loucura que é o amor de Alessia Romano e
Lyanna Bellini.
Com muito amor, Marcella
 
 
 
 
 
 
 
Para todos vocês que acreditam
em segundas chances e,
principalmente, para aqueles que
encontram sua força no amor.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
“eles dizem: ela foi longe demais dessa vez
não me culpe, o amor me deixou louca
se você também não fica, não está fazendo direito”
don’t blame me - taylor swift
 
 
 
 
 
Existe apenas uma coisa mais perigosa do que uma mulher
de coração partido: uma mulher com sede de vingança.
Por muito tempo estive em uma situação ainda pior, já que
meu coração não só estava partido, como também implorava por
vingança. Existem inúmeras combinações de sentimentos que
podem se tornar fatais, mas nenhuma outra se compara àquela. Os
dias, semanas, meses e anos que se passavam sem que eu
pudesse alimentar aquele sentimento tão intrínseco, o qual se
tornara o motivo pelo qual ainda me mantinha em pé, aumentavam
minha sede em níveis desastrosos e irreparáveis. Eu sabia, em
determinado ponto daquela trajetória, que seria impossível voltar
atrás.
Se não conseguisse me vingar, não conseguiria viver. Na
verdade, “não me vingar” não era sequer uma opção. Eu tinha que
conseguir, independentemente de quanto tempo levasse.
O sentimento me consumiu tanto que meu coração foi
deixado de lado. Não me importava mais com ele ou com os
milhares de pedaços que restaram do que um dia ele costumava
ser. Na verdade, eu não me importava com mais nada e nem
ninguém.
Meu jeito de ser não era muito diferente antes de tudo
acontecer, mas permiti que um lado emocional, vulnerável e
inocente crescesse dentro de mim, embora tivesse treinado muito
para que isso não acontecesse. Permiti que algumas barreiras, tão
estáveis durante tantos anos, caíssem. Me permiti ser alguém que
nunca deveria ter cogitado.
Aquele “alguém” mudou algo dentro de mim em todos os
aspectos que eu conhecia, mesmo que a maioria deles não
precisasse de nenhuma mudança. Não deveriam mudar.
Aquele “alguém” me arruinou. E depois da ruína, tudo em que
eu conseguia pensar era vingança.
Até que finalmente a tive.
 

“Bem-vindo ao meu lado escuro


Vai ser uma longa noite”
Dark Side | Bishop Briggs
 

Meus olhos percorrem as ruas agitadas onde os moradores


curtem a noite quente de sexta-feira. Passando pelos bares, vejo os
mesmos rostos de sempre tombando na calçada e rindo uns dos
outros. Nossos homens se espalham pelos estabelecimentos,
alguns na parte de dentro e outros vigiando do outro lado da rua
com um cigarro entre os dedos.
Olho para mim mesma no retrovisor e vejo os olhos
castanho-claros um pouco vermelhos. Minha boca, antes pintada de
escarlate, agora está inchada devido à força que fiz para arrancar o
batom. Não há mais nenhum resquício da maquiagem que usei
durante todo o dia, o que deixou meu rosto inchado e ruborizado. 
Não gosto nem um pouco da imagem que vejo no espelho,
mas infelizmente já a vi inúmeras vezes.
Saio do devaneio quando uma buzina alta soa atrás de mim e
percebo que o semáforo ficou verde. Respiro fundo, acelero e volto
a circular sem rumo. No mesmo minuto, meu celular toca e estico o
braço para pegá-lo no banco de passageiro.
O nome de Sophie na tela me traz uma onda instantânea de
alívio. Minha melhor amiga tem esse poder sobre mim — e sobre
qualquer outra pessoa, na verdade.
Coloco a chamada no viva-voz e atendo.
— Finalmente me atendeu! — ela exclama, se referindo às
dezenas de mensagens e ligações perdidas no meu celular.
— Estava ocupada — respondo, tentando não transparecer o
quanto me sinto destruída.
Demonstrar minha vulnerabilidade está longe de ser algo que
me agrada. Sophie e Kai são os únicos com quem me permito ser
honesta e transparente, mas às vezes escondo certas situações até
mesmo deles. Gosto de manter alguns momentos apenas para mim,
seja pelo significado ou pelo embrulho no estômago que sinto ao
pensar em contá-los a alguém.
— Está tudo bem? — pergunta, preocupada.
As vozes que ouço no fundo da chamada ficam cada vez
mais baixas conforme o barulho de seu salto alto indica que ela está
se afastando. Sophie está participando de um jantar com a Família
Montgomery, uma das nossas maiores clientes no país. Se não
tivesse surgido um problema no sistema de segurança de um
cassino hoje, eu também teria ido a Henderson, cidade vizinha de
Las Vegas e onde está acontecendo o evento.
Sophie estava tão animada para que passou a semana inteira
escolhendo um vestido. Ela ficou deslumbrante em todos os
cinquenta que experimentou, já que é uma das pessoas mais lindas
e atraentes que conheço. Sua pele é negra, as íris de um tom verde
claríssimo, as sardas são quase imperceptíveis e os cabelos
naturalmente cacheados estão com tranças twist há alguns meses.
Seu nariz é decorado por um piercing no septo e ela não tem tantas
tatuagens como Kai e eu, mas está longe de ter poucas.
Kai Jeon não se importa muito com eventos e coisas do tipo.
Ele tem uma coleção de ternos finos, então tudo que fez foi escolher
um e embarcar no avião. Mesmo assim, o cafajeste fica magnífico
em qualquer pedaço de pano. Sua pele alva é coberta por
desenhos, a boca pequena, a mandíbula quadrada e os olhos finos
castanhos. O rosto carrega dois piercings, um no canto do lábio
inferior e outro na sobrancelha. Se houvesse uma competição de
“cabelos mais hidratados da máfia”, o dele com certeza ganharia; é
escuro e sempre carrega um aspecto bagunçado, com fios caindo
pela testa.
— Estou cansada — digo, embora não seja o único motivo.
— Como estão as coisas aí? Kai conseguiu aquela expansão que
nós queríamos?
— Ele ainda está na sala de negociações com o Daryl, mas
parece que vai dar certo. Você sabe que Kai sempre consegue.
Assinto para mim mesma. Meu melhor amigo é o negociador
da máfia e também cuida das relações externas com aliados,
políticos, clientes e autoridades. Costumamos chamá-lo de
“Mensageiro da Elite” e seu trabalho é tão sigiloso que nem mesmo
eu sei de todas as missões e pessoas com quem ele lida.
Sophie é a responsável pelos carregamentos de mercadorias,
sejam elas nacionais ou internacionais. Juntos, os dois fazem um
trabalho invejável em manter a polícia — os pouquíssimos homens
que ainda não são corruptos — longe das nossas cargas. Sua
função faz com que ela também lide com a parte financeira da
organização.
Meu trabalho é minha paixão. Lidero a equipe de segurança e
sou responsável por todos os nossos sistemas, desde filmagens de
ruas até códigos que dão acesso aos nossos maiores cofres e
arsenais. Às vezes também quebro o galho no treinamento dos
Associados (homens que fazem trabalhos simples para nós, mas
que não compõem formalmente a Timoria, nossa organização, por
não terem provado o seu valor ainda).
— Damon está aqui — Wilson diz com desdém. — Em meia
hora, ele conseguiu me irritar tanto que quase quebrei uma taça de
vinho na cabeça dele. Estou pensando em encurralá-lo num quarto
e matá-lo de uma vez por todas.
Solto um riso baixo ao imaginá-la se segurando para não
xingar o cara. Damon Coleman é o filho do prefeito de Las Vegas,
um dos homens mais corruptos que já conheci e nosso parceiro de
negócios. A Família Coleman domina a política da cidade há
décadas e desde sempre trabalhamos juntos, ainda que eles
também façam negócios com a Vendetta. Por ser o prefeito,
permitimos que ele seja “neutro” e não escolha um lado.
Contanto que tenhamos o controle sobre a cidade, ele pode
se manter em cima do muro.
— Acho que se você o matasse, seria um pouco prejudicial
pra gente — debocho, ouvindo-a bufar. — E você? Conseguiu
alguma coisa além de se irritar com o babaca?
— Que pergunta óbvia, Lyanna — se gaba. — Se lembra
daquele carregamento grande que enviaríamos para os Grant, em
Washington? O braço direito deles está aqui e eu aproveitei para
bater um papo com o cara. Conduzi o assunto até onde queria e, no
fim, consegui negociar mais um caminhão de heroína. Mereço até
um aumento, não é?
— Caralho! — exclamo, impressionada. Um caminhão de
heroína equivale a muita, muita droga. E muito dinheiro. — Meu pai
vai beijar os seus pés e te jogar numa banheira de dólares, Sophie.
Meu pai, Alessandro Bellini, é o chefe da nossa máfia. Ele é
conhecido pela sua maestria em fechar negócios que parecem
impossíveis, além de não seguir o estereótipo de chefe cruel e
sedento por sangue.
— Estou contando com isso, amiga. Queria que você
estivesse aqui para conseguirmos ainda mais coisas. Todo mundo
está perguntando da feiticeira.
“Feiticeira” é um apelido que me foi dado na infância, quando
cometi meu primeiro crime cibernético ao invadir o sistema de uma
das maiores empresas de aviação do mundo para coletar
informações sigilosas de aviões governamentais. Toda a
organização começou a dizer que eu era uma feiticeira por
conseguir entrar em qualquer banco de dados e descobrir qualquer
informações. Uma coisa mágica. Apesar de não haver nenhum
misticismo no que faço, gostei bastante do apelido e ele perdura até
hoje.
— Queria estar aí também. Todo mundo da equipe ‘tá me
irritando hoje, parece que decidiram atingir o limite da
incompetência.
— Não deu certo o lance do cassino? Você não conseguiu
resolver?
— É claro que consegui, mas não sem dar alguns gritos. O
pessoal encarregado de lá não sabia me dizer como o sistema tinha
caído. O vírus estava no software, por isso os computadores
começaram a operar sozinhos, e nenhum deles percebeu. Se eu
não tivesse eliminado a tempo, aquele maldito vírus conseguiria
acesso a toda nossa rede. Como é possível, Sophie? Me diz se
estou errada?
— Não está — assegura. — Não entendo nada dessas
coisas, mas você nunca está errada sobre elas. Você sabe que sou
a favor de alguns gritinhos de vez em quando.
— As coisas andam estranhas. É a segunda falha no nosso
sistema em poucos meses… — divago, observando as ruas
movimentadas. — Estou pensando em ligar para Kiara, aquela
hacker famosa de Nova Iorque.
Wilson estala a língua no céu da boca, desdenhosa.
— Tenho certeza de que você é melhor do que ela, mas se
for te deixar menos paranóica, ligue. Ouvi dizer que a garota é boa
mesmo. Ah, você vai ao racha hoje? — ela muda de assunto e
escuto uma porta abrindo no fundo. Um arquejo escapa de Sophie e
sua voz sai abafada, mas ainda soa como um grito: — Meu Deus!
Que porra é essa, Coleman? Você trouxe ele para te comer no
banheiro feminino, sua idiota? Caiam fora!
— Sophie? — chamo, reprimindo uma risada, com o cenho
franzido em confusão.
— Damon estava fodendo a acompanhante do pai dele na
porra do banheiro feminino, Lyanna! — exclama, indignada. — Não
vou me estressar novamente com esse babaca. Continuando a
nossa conversa…
— Certo. — Rio baixo, balançando a cabeça em negação.
Algum dia, ela vai realmente matá-lo. — Não vou ao racha. Estou
cansada demais e nem um pouco no clima.
— Sério? Poxa, você estava tão animada para a volta das
corridas, Ly.
— Vai ter outra amanhã, eu acho. Agora que os caras
voltaram da Itália, o que não vai faltar é festa e corrida.
— Ainda bem! — ela brada, animada. — Não vejo a hora de
fazer o Kai comer poeira.
Há mais ou menos dois meses, vários dos nossos homens
foram à Europa em uma missão secreta. “Secreta” porque
pouquíssimas pessoas sabiam do motivo, por razões de segurança.
Através de uma quase imperceptível falha no nosso sistema,
descobri que a Cosa Nostra, máfia que comanda a Itália, tinha
conseguido invadir os Computadores Centrais e recolhido
informações valiosas sobre nossas mercadorias, negociações com
políticos e entre outras.
Meu pai decidiu enviá-los para não só fazer com que os
dados e qualquer cópia deles desaparecessem, como também para
se vingar da invasão — inesperada, inclusive, já que fazia um bom
tempo desde a última vez que tivemos problemas com eles. Na
época em que o grupo foi, eu estava desenvolvendo um sistema
mais impenetrável para que aquilo não se repetisse, então não pude
acompanhá-los. De qualquer forma, a missão foi um sucesso.
— Amiga, preciso ir. Depois nos falamos mais. Tente não
matar o Coleman, por favor — falo, me despedindo em seguida.
Clico no botão de encerrar a chamada e dirijo por quase dez
minutos até chegar ao bairro que dá acesso à estrada que leva até
minha casa. Porém, de repente, todas as luzes da cidade se
apagam. Os bêbados nos bares gritam e as pessoas na rua cessam
os passos devido ao susto. Estaciono no acostamento e saco o
telefone para ligar para alguém e perguntar se é de fato toda a
cidade ou apenas este bairro, só que não há nenhum sinal.
Observando à minha volta, vejo que os carros continuam
seus caminhos com a iluminação dos faróis. Já se inicia certo
tumulto na rua e dentro dos estabelecimentos, pois não é normal
haver um apagão na cidade.
Antes que eu saia do carro para ir até o soldado da Timoria
mais próximo, as luzes se acendem. Passo cerca de dois minutos
analisando tudo à minha volta e mando uma mensagem para Marco,
o nosso Underboss, pedindo para que ele mande sua equipe checar
as torres de energia do território.
Retomo o trajeto e não demoro mais do que vinte minutos
para chegar em casa. Quando estaciono na garagem subterrânea,
pego as duas armas do porta-luvas e encaixo uma no coldre da
parte traseira da minha saia xadrez, carregando a outra na mão
direita. Sempre andei armada por precaução e agora, depois de
termos assassinado alguns dos homens da Cosa Nostra, não posso
me dar ao luxo de estar desprotegida na minha própria casa, o
primeiro lugar onde eles viriam atrás de mim.
Contorno a garagem e espalmo a mão na parede, no exato
local onde instalei um painel que só é ativado com minhas digitais.
Após o reconhecimento ocular, a porta desliza e se fecha atrás de
mim quando caminho por um dos trajetos secretos até o interior da
casa. Seria arriscado e estúpido entrar pela porta por onde eles
esperam que eu entre.
O caminho acaba em frente à escada que liga o primeiro e
segundo andares. Em silêncio e com as duas armas em mãos,
passo um tempo com o ouvido na fresta da porta para me certificar
de que não ouço ninguém. Mesmo assim, depois que saio,
inspeciono todos os cômodos de cima e os de baixo.
Ao perceber que a casa está vazia, tiro a saia e as botas,
jogando-as no tapete da sala e ficando apenas com a regata branca
e calcinha antes de caminhar até a cozinha. Deixo as pistolas na
bancada, encho o fundo de um copo com uísque e me sento em um
dos banquinhos.
Enquanto beberico um gole, desbloqueio o telefone e clico no
contato de Marco. Depois de vários toques, a ligação cai na caixa
postal. Não é comum que Sartori não atenda ligações, já que sua
posição na hierarquia lhe faz ter contato com inúmeras pessoas
todos os dias, o dia inteiro. Com a testa franzida, levo o líquido
novamente à boca e o sinto queimar a garganta. Salto do banquinho
e ligo mais uma vez para ele enquanto coloco os pães na torradeira.
De novo, caixa postal.
Apoio os cotovelos no balcão, deixo o corpo arqueado e
insisto na ligação, um pouco mais apreensiva. Longos segundos se
passam até que ele finalmente me atende.
— Porra, finalmente — resmungo. — Está ocupado? Viu a
mensagem que te enviei?
— Bellini, onde você está?
Seu tom sério faz meu semblante cair.
— Por que a pergunta? Aconteceu alguma coisa, Marco?
— Onde você está? — insiste, soando aflito.
Marco Sartori nunca se desespera. Chega a ser insuportável
a forma como ele sempre, em qualquer circunstância, está calmo.
Um pressentimento cutuca a boca do meu estômago e um calafrio
atravessa minha coluna.
Há algo de errado.
— Me diga o que diabos está acontecendo, Sartori.
Então, acontece.
Em um ato rápido e ágil, desligo a chamada e jogo o celular
no balcão. Tento me virar e ergo o cotovelo direito para golpear a
têmpora, mas duas mãos firmes são mais velozes do que eu e
seguram meus pulsos, me imobilizando.
Impulsiono o pé a fim de chutar suas canelas e ouço um
resmungo irritado. Jogo a cabeça para trás e acerto o que presumo
ser um nariz, já que o som se assemelha ao de um osso golpeado.
Sou bastante forte, mas o indivíduo atrás de mim é ainda mais. Por
isso, mesmo tentando me soltar dos apertos, acabo cambaleando
quando as pernas alheias afastam as minhas e me deixam numa
posição vulnerável.
Um objeto gelado pressiona minha garganta com força o
bastante para interromper minha respiração por alguns segundos.
Disposta a não ceder e cega pela adrenalina, torço a mão e cravo
as unhas afiadas no dorso que segura meu pulso, conseguindo me
soltar. Levo-a até a faca e envolvo a lâmina, criando uma barreira
entre ela e meu pescoço.
O movimento faz com que o objeto seja pressionado ainda
mais contra minha garganta, deixando-me sem fôlego e cortando
meus dedos. Sinto a ardência instantânea e o sangue começando a
escorrer, tamanha é a força com que ele empurra.
O cano de uma arma é prensado contra minha nuca e elimina
qualquer chance que eu tinha de escapar. Não posso tomar
nenhuma decisão precipitada porque se eu me mover, posso ter a
garganta cortada ou os miolos estourados.
Como é possível que os malditos da Cosa Nostra tenham
conseguido se esconder de mim em minha própria casa? Como
esse bastardo escapou da minha inspeção?
Movida pela raiva, decido continuar lutando. Me sinto
convicta em deixar alguns hematomas e, com sorte, uma bala na
testa do homem atrás de mim. No entanto, quando uma voz familiar
sussurra ao pé do meu ouvido, toda e qualquer determinação em
lutar desaparece.
— Não se mexa, principessa.
Não pode ser. Não, não pode. Não pode, não pode, não
pode.
O choque é tão grande que sinto náuseas, meu corpo
congela e fica duro como pedra. Estou à sua mercê, embora não por
vontade própria, e a pressão da faca misturada à surpresa faz
minha visão escurecer e meus pulmões esvaziarem. Não consigo
respirar, raciocinar ou me mover. Tenho certeza de que vou vomitar
a qualquer momento.
Ficar vulnerável perto dela é quase um suicídio, então tento
me recompor e dou uma cotovelada na sua costela esquerda. A filha
da puta nem se move. Meu golpe parece não lhe provocar nada e
isso é tão frustrante quanto assustador.
Apesar disso, não tenho medo dela. Nunca tive.
Meus olhos escorregam até as armas no balcão. Se eu for
rápida ao tirar a mão da faca e alcançá-las antes de ter o pescoço
cortado…
— Não tente — ela adverte, num tom baixo. — Você é mais
inteligente do que isso.
— Lasciami andare prima che le cose si mettano male,
bastarda. Non voglio dover rimandare la tua testa a Vendetta[1] —
ameaço entredentes.
Sua risada baixa me faz trincar a mandíbula com força. O
sangue dos meus dedos desce pelo cabo da faca e pinga no balcão.
— Minha cabeça é bonita demais para ser cortada fora,
Bellini.
— Vai se foder, porra. E saia de perto de mim.
— Cuidado com as palavras — alerta, em um tom
intimidador. — Quem está em desvantagem aqui é você.
Como ela pôde sumir por cinco anos depois do que fez e
voltar de repente, me encurralando na minha própria cozinha para
me ameaçar?
— Foda-se! O que você está fazendo aqui? — vocifero,
mesmo que não seja exatamente isso que eu queira saber.
Tenho inúmeras perguntas para as quais nunca obterei uma
resposta. Até porque, elas nunca sairão da minha boca. Meu
orgulho não permitiria.
— Não posso te fazer uma visita?
Sua voz é fria como o inverno do Alasca.
— Prefiro que você nem respire o mesmo ar que o meu,
então sugiro que tire essa merda da minha garganta antes que eu
perca a porra da minha paciência.
Alessia Romano é a Underboss da nossa máfia rival, além de
ser a pessoa que mais odeio em todo o planeta.
É também minha ex-namorada e a única mulher por quem já
me apaixonei.
— Pode perder a paciência, pegar uma arma e apontá-la
para a minha testa, e mesmo assim não sentirei um pingo de medo
de você — desdenha, os lábios quase deslizando pelo meu lóbulo
enquanto o hálito gelado ricocheteia contra minha nuca.
Estou tremendo tanto que me enfurece. Se Alessia pudesse
ouvir as batidas aceleradas do meu coração, sentiria ainda mais
prazer em fazer seu típico joguinho mental comigo.
— Deveria, porque eu nunca, nem por um segundo, me
esqueci do que você fez. Se acha que vou hesitar em enfiar uma
bala na sua cabeça na primeira oportunidade, está enganada.
— Continua corajosa, não é? Está encurralada e sangrando,
mas tem a audácia de me ameaçar.
— E você continua sendo uma escrota, não é? Fodeu com a
minha vida, mas tem a audácia de aparecer na minha frente de
novo.
Sinto-a retrair o corpo.
— Por que voltou, Romano? Não acha que já fez o
suficiente? — Abaixo os olhos até os revólveres e continuo,
tentando distraí-la: — Tudo estava indo bem com você longe. Minha
vida estava melhorando. Faça um favor a todos nós e volte para o
buraco no qual você se escondeu como uma covarde.
Talvez ela tenha percebido as minhas intenções, já que tira a
faca da minha garganta e me vira rápido, nos deixando cara a cara.
Depois de tanto tempo, estou vendo seu rosto novamente.
Seus olhos verdes parecem vazios e se assemelham aos dos
piores assassinos que conheci; um corte, que aparenta já ser antigo
pela cicatrização, começa na lateral direita de sua testa e desce
pela região do olho até o meio da bochecha; a mandíbula é
quadrada e as maçãs do rosto são finas. O cabelo é a única coisa
que permanece preto como as madrugadas do inverno, atingindo o
nível de seus peitos.
No pescoço, encontro desenhos que enfeitam sua pele e
descem pelos ombros. Alessia já tinha várias tatuagens, mas parece
que lotou todo o corpo agora. O que me tira o fôlego, no entanto, é o
que preenche o centro de sua garganta: 1408.
É uma coincidência, digo a mim mesma. Por que ela tatuaria
isso, afinal?
— Por que voltou? — insisto, engolindo o nó na garganta, e
retorno aos seus olhos.
Sustentar nosso contato visual me corrói por dentro. Nos
velhos tempos, seu tom único de verde me fazia sentir segura.
Agora, me causa pânico.
— Cinismo não combina com você — sua voz é como um
chicote ardente, estralando tão perto dos meus lábios que tento me
afastar. A arma em minha nuca é substituída pela sua mão grande,
que me impede de mexer a cabeça. — Sabe que voltei por sua
causa, feiticeira. Não banque a dissimulada comigo.
Arqueio as sobrancelhas e rio em escárnio.
— Está de brincadeira com a minha cara? Não fiz nada para
você ou para sua máfia nojenta. Quero o máximo de distância
possível dessa escória.
O aperto fica mais forte, mostrando que ela não gostou da
ofensa. Abro um pequeno sorriso de lado, vislumbrando o tom
escuro se escondendo atrás das pupilas dilatadas. Apesar de não
sentir medo dela, é inegável que o rosto de Alessia se tornou mil
vezes mais assustador desde a última vez que a vi.
Se antes já fazia jus à fama, agora ela realmente se parece
com a aprendiz do Diabo.
— Controle essa sua língua afiada — alerta, cerrando as
pálpebras. — Eu não teria problemas em cortá-la.
— Acha que vai me assustar com tudo isso? — Levanto as
sobrancelhas. — Não sei porque voltou, Alessia, mas desapareça
de novo. Você morreu para mim e quero que continue assim.
— Para o seu azar, eu voltei para ficar.
Ela aproxima os lábios do meu ouvido e solta a respiração
contra minha pele. Aperto a mão livre em um punho, sentindo a dor
causada pelos cortes e o sangue respingando no chão. Seu
sussurro vem como uma ameaça, a qual não me provoca medo,
mas, definitivamente, me deixa em alerta:
— Não se engane, Lyanna. Sei que foi você e vou me vingar.
De abrupto, ela se afasta e caminha para longe. Fico
petrificada, ouvindo a porta da frente batendo com força. Minhas
pernas estão bambas, o coração acelerado e a respiração
descompassada. Sinto vontade de chorar ao mesmo tempo que
quero segui-la e desferir inúmeros socos em seu rosto.
Não faço ideia do que acabou de acontecer, mas tenho
certeza de uma coisa: o retorno de Alessia Romano não pode
significar nada menos do que guerra.
 

“Você estará correndo porque estou chegando


E vou te comer vivo”
Monsters | Ruelle

Em menos de cinco minutos, consigo me trocar, lavar a mão e


sair em disparada até a garagem. No caminho, vejo os seguranças
desacordados — não mortos, pelo menos. Religo o celular, encontro
quase dez ligações perdidas de Marco e digito uma mensagem no
grupo que tenho com Sophie e Kai. Embora eles estejam no jantar
dos Montgomery, o assunto é urgente. Preciso deles em Las Vegas
o quanto antes.
Lyanna Bellini: Ela voltou.
Ligo para Marco e entro na garagem. Logo nos primeiros
passos, estagno e aperto o aparelho entre os dedos. Na parede, em
um tom vermelho que não duvido ser sangue, há uma pichação.

TI SONO MANCATA, PRINCIPESSA?


(Sentiu minha falta, princesa?)
Aquela filha da puta.
Não posso sequer perder tempo me perguntando como ela
conseguiu passar pelo meu sistema de segurança e não só invadir a
minha casa, como também desacordar todos os seguranças e
pichar a porra da minha garagem. Em segundos, entro na BMW e
canto pneus pelas ruas de Las Vegas. Estou dirigindo tão rápido e
cometendo tantas infrações de trânsito que se não fosse quem eu
sou, estaria preocupada em ser presa.
— Lyanna?! — Marco exclama ao atender. — Por que você
desligou na minha cara, porra?
— Temos problemas. Onde você está?
— Estou no galpão D com alguns soldados. Preciso que você
venha aqui. Agora. — Crispo as sobrancelhas diante da sua
entonação séria. Em um instante, faço a ligação entre a volta de
Romano e o desespero atípico de Sartori.
Ainda que eu não saiba sobre o que Alessia estava falando, é
inevitável ficar preocupada com seu retorno. Seja lá o que ela
acredita que eu fiz, é algo fodido o bastante para fazê-la aparecer
depois de cinco anos.
A sua máfia, chamada Vendetta, é nossa arqui inimiga há
quase um século. No início de tudo, as duas faziam parte da Cosa
Nostra e é a partir daí que toda a inimizade surgiu. Um longo tempo
de tirania e crueldades injustificáveis fizeram com que um extenso
grupo de pessoas, autointitulado “Ribelli”, se rebelasse contra a
família fundadora. Por motivos óbvios, o grupo não conseguiu
vencer e foi obrigado a fugir para os Estados Unidos.
Na época, em decorrência da legalização da fabricação e
comércio de bebidas alcoólicas após o fracasso da Lei Seca, as
organizações locais estavam enfraquecidas e em busca de novas
atividades. Por isso, não foi difícil guerrear contra os diversos
grupos que surgiram em meio aos conflitos econômicos e em
poucos meses a área foi dominada. Os sobreviventes se juntaram a
nós, o que facilitou para que nosso domínio se expandisse como
uma praga por todo o país. Apesar de sermos italianos, toda essa
situação fez com que ganhássemos a fama de máfia norte-
americana, não italiana.
Até que as coisas começaram a dar errado.
Discordâncias no Conselho surgiam e se tornavam cada vez
maiores. Alguns homens não aceitavam as decisões tomadas,
embora fossem votadas nas reuniões, até que a situação atingiu o
ponto em que havia dois lados diferentes dentro da máfia. Era uma
verdadeira Guerra Fria dentro da organização.
Quatro meses depois, um membro tomou a iniciativa de tudo
e a guerra começou. Muitas pessoas morreram, muito dinheiro foi
desperdiçado e muito território dividido. Nenhum dos dois queria
abrir mão de Las Vegas, já que era a cidade onde o negócio era
mais forte e rico, então, depois de muita briga e sangue derramado,
foi decidido que ambos ficariam ali contanto que as delimitações de
área fossem respeitadas.
Por um tempo, elas foram. Contudo, como qualquer outra
coisa no mundo do crime, o acordo foi quebrado diversas vezes.
A última foi há cinco anos.
Alessia é filha de Dante Romano, o chefe. Sua máfia é cruel e
sanguinária, além de ser um pouco maior do que a nossa. A
reputação que eles criaram fez com que pouquíssimas pessoas
tivessem a coragem de enfrentá-los e se meu pai não fosse um
negociador tão bom, provavelmente teríamos perdido alguns
negócios para eles.
No que pareceu ser duas horas, enfim avisto o galpão
afastado da civilização. Ele é rodeado por árvores, numa área
deserta, cercado por grades de ferro. Há vários carros no
estacionamento, o triplo do que eu esperava.
Estaciono e me abaixo para abrir o portão, sequer me dando
ao trabalho de fechá-lo por estar focada nas silhuetas reunidas à
minha frente. Caminho depressa em direção à roda e vejo Marco no
centro, gesticulando enquanto conversa com os homens. Ao notar
minha presença, ele para de falar e todos se voltam para mim.
O silêncio que prevalece é sufocante. Um pressentimento
terrível cutuca a boca do meu estômago.
— O que está acontecendo? — pergunto, me aproximando.
Ninguém responde. Em vez disso, olhares curiosos recaem
sobre minha mão, que voltou a sangrar no caminho para cá.
— Sartori? — insisto, arqueando as sobrancelhas.
Após um suspiro, ele passa os dedos por entre os fios de
cabelo e diz:
— É a Vendetta. Aconteceu um incêndio.
O cenho franzido demonstra minha confusão. Eu já imaginava
que seria algo relacionado a eles, mas não esperava que fosse um
incêndio. Ele me estende um tablet e ao pegá-lo vejo uma foto um
pouco desfocada, mas que mostra com clareza as chamas altas e
amareladas que parecem estar por todos os cantos. Está longe de
ser um incêndio pequeno.
Não levo mais do que cinco segundos para reconhecer o
prédio, ainda que somente algumas partes dele estejam livres do
fogo. É um dos cassinos mais importantes da Vendetta. Uma
lâmpada acende na minha cabeça e as peças começam a se
encaixar.
Alessia pensa que fui eu a responsável pelo incêndio.
 

“No coração dela há um buraco


Há uma marca preta em sua alma
Nas mãos dela está o meu coração
E ela não vai me deixar ir até que esteja cheio de cicatrizes”
Horns | Bryce Fox
 

8 anos atrás
 
A tequila queima minha garganta quando esvazio o copo em
um único gole.
Coloco-o de volta no balcão com um barulho alto, respiro
fundo e chamo o barman com o indicador. A música dos anos 80
toca baixinho no jukebox, o bar é pouco iluminado e o cheiro de
maconha se alastra por todo o lugar. Apesar disso, é perfeito para o
momento e combina mil vezes mais com o modo como me sinto.
— Mais um, Srta.? — o garoto, que não parece ter mais de 20
anos, pergunta.
— Uísque sem gelo — peço.
Puxo uma nota do bolso da saia de couro e deixo no balcão.
Ele vira a garrafa no meu copo, o enche até a metade e se afasta. O
moleque deve saber que não tenho idade para beber, mas ninguém
de fato se importa.
Completei dezoito anos há exatos quarenta e seis minutos.
Estou comemorando a primeira hora do meu aniversário sozinha em
um bar, rodeada por três homens quase dormindo de tão bêbados,
quatro adolescentes fumando um beck e duas mulheres trocando
carícias numa mesa do fundo.
Mesmo assim, sempre adorei vir aqui. O que mais gosto é
que fica em Corn Creek, uma comunidade fora dos limites de Las
Vegas, então não preciso me preocupar com nada relacionado à
máfia e territórios alheios. Por ser uma área minúscula e
insignificante, nenhuma organização quis desperdiçar dinheiro e
tempo para dominá-la.
Aqui não sou a filha do don da Timoria. Sou apenas Lyanna
Bellini, uma mulher que sequer tem idade suficiente para estar
bebendo da forma que está, mas que só deseja esquecer de
qualquer coisa sobre o mundo porco no qual ela vive.
Coloco os pés no apoio do banquinho, deixando meus joelhos
na altura do quadril e facilitando o acesso à arma que tenho dentro
da bota de cano alto. Apenas para verificar, sou sutil ao deslizar a
mão para dentro e tocá-la. Ainda que não tenha visto nenhuma
ameaça ao redor, sempre estou em alerta.
Tiro o maço da bota e acendo um cigarro. Deixo o isqueiro
vermelho no balcão, puxo a fumaça e observo o barman preparando
as bebidas. Ele parece tão infeliz quanto eu, mesmo que seja
impossível nossos motivos serem sequer semelhantes.
Sortudo, penso.
Saio do meu devaneio quando a porta range ao anunciar que
um novo cliente chegou. Bebo outro gole do uísque, sentindo a pele
quente e ruborizada. Acho que minha maquiagem ainda está um
pouco borrada nos olhos, mas eu não poderia ligar menos. Tudo
que me importa é afogar as mágoas na bebida e na estrada,
dirigindo para um lugar tão distante que nem vou me lembrar do
caminho de volta.
O assento ao meu lado é ocupado e imediatamente fico
desconfiada, afinal, há diversos banquinhos disponíveis e alguém
escolheu sentar ao meu lado. Será que não está claro como a luz do
sol que quero apreciar a solidão?
— Um copo de conhaque.
Uau. A voz feminina é rouca e sexy pra caralho.
Dou mais uma tragada no cigarro e mantenho a atenção na
parede à frente, repleta de garrafas. Ao afastá-lo da boca, percebo
que a ponta está manchada de vermelho por conta do meu batom, o
que me faz apanhar o tubinho no decote e abri-lo com uma mão só.
Passo a cor escarlate pelos lábios, não precisando de um
espelho para pintar minha boca do jeito certo. Depois, guardo a
embalagem e observo o cigarro repousando entre os meus dedos
no balcão.
O quão fodida minha vida está — e o quão bêbada estou —
para que minha única preocupação no momento seja borrar o meu
batom se continuar fumando?
— Estou impressionada — a rouquidão soa ao meu lado.
Tenho a impressão de que a frase foi direcionada a mim e,
por isso, viro o rosto devagar.
Quando meus olhos recaem sobre ela, o corpo enrijece e
quase saco a arma. Fico sem fôlego devido à surpresa, mas tento
esconder a reação instantânea que atravessa minha espinha. Não
conhecia sua voz, porém conheço muito bem esse maldito rosto.
Espero que seja a porra de uma alucinação, é o que
mentalizo. De todos os bares ao redor de Las Vegas — ou melhor,
do país —, ela tinha que vir logo neste, no mesmo horário que eu?
Não é nenhuma coincidência. Nada nunca é coincidência com
ela.
Apesar disso, não consigo sentir raiva ao vislumbrar seus
olhos me estudando com atenção. De maneira involuntária, sinto o
estômago revirar quando as íris verdes escorregam até a minha
boca e a observam por longos segundos.
— Nunca conheci uma mulher capaz de passar um batom tão
bem sem a ajuda de um espelho.
Não gosto da sensação de tê-la encarando meus lábios. Não
gosto da sensação de tê-la tão perto de mim. Não gosto de nada
relacionado a ela, embora seja a primeira vez que a vejo
pessoalmente.
— Você não deve conhecer muitas mulheres
impressionantes, então — revido, em um tom que cambaleia entre a
ignorância e a curiosidade.
Ela solta um riso baixo, quase inaudível, e fico incomodada
com a forma como sou examinada. É como se estivesse satisfeita
em me ver aqui, com essa roupa, esse batom e lhe respondendo
dessa forma.
É a primeira vez que encontro Alessia Romano, a filha do
chefe da máfia rival, cara a cara. Passei anos vendo-a somente por
fotos, pois meu pai nunca me permitiu encontrá-la e muito menos
confrontá-la. Mesmo sendo apenas dois anos mais velha do que eu,
Alessia tem uma reputação asquerosa desde os seus quatorze
anos, quando — dizem as más línguas — assassinou alguém pela
primeira vez.
Desde então, ela vem construindo seu nome à base de morte,
tortura e sangue. É a pessoa mais sem escrúpulos que já vi.
— Conheço muitas — responde, umedecendo os lábios
carnudos com a língua. — Mas nenhuma tão impressionante quanto
você.
Franzo o cenho em completa aversão. Não preciso me
esforçar para entender o joguinho que ela está fazendo. Me sinto
ofendida por Romano pensar que sou manipulável e que me
conquistaria com seu charme tão barato.
Apesar de tudo, não posso negar que ela é a mulher mais
atraente que conheço. Sua beleza é equivalente ao seu mau
caráter.
Lembro-me de observar nas fotografias o fato de que seus
olhos verdes têm um tom escuro no centro e alguns pontos mais
claros nas bordas. O cabelo escuro cai em camadas até abaixo dos
ombros e a pele é decorada com algumas tatuagens, ainda que elas
não estejam à mostra agora.
— Por favor, não me faça vomitar antes do décimo copo —
desdenho, revirando os olhos.
Por alguma razão, ela sorri.
Tento vasculhar em minha memória alguma foto na qual ela
sorri, mas não encontro nada. Não consigo me recordar de uma
única fotografia em que Romano tinha a expressão semelhante a
essa.
Por que diabos ela está sorrindo para mim?
Por que diabos ela está sorrindo?
— Acredito que eu não precise me apresentar. — O barman
chega com sua bebida. — Tenho a impressão de que você já me
conhece.
— Para o meu total desprazer, conheço. Se sabe disso, por
que se sentou ao meu lado?
Ela bebe seu conhaque sem quebrar o nosso contato visual.
De canto de olho, noto que meu cigarro já se apagou.
Alessia devolve o copo ao balcão e leva a mão até o bolso da
jaqueta de couro. De imediato, escorrego os dedos para dentro da
bota, repousando o indicador no gatilho da arma.
Porém, o que vejo é completamente oposto de tudo que eu
esperava.
É uma bolsinha transparente. Cheia de batons vermelhos.
— Que porra é essa?! — pergunto, espantada.
— Não é óbvio? São batons vermelhos.
Sinto vontade de vomitar em seu colo.
— Caramba, obrigada por esclarecer. Eu jamais teria
percebido que são batons vermelhos.
Não há nada de divertido na minha fala, mas Alessia sorri
mais uma vez.
Por um lado, meu ego fica ferido ao notar que a Vendetta me
vê como alguém tão manipulável. Por outro, quero entrar em seu
joguinho e manipulá-la de volta para descobrir aonde isso nos
levaria.
— Não sabia que você usava batons vermelhos — alfineto.
— Não uso. São para você.
Solto um riso nasalado e incrédulo.
— Se acha que vou aceitar isso, precisa acordar e voltar para
a realidade.
— É um presente. — Enquanto a vejo beber mais um gole,
desvio o olhar para a bolsinha no balcão. — Um presente de
aniversário.
Tenho que me controlar para não esmagar todos aqueles
batons com o punho.
— Seus pais nunca te disseram que é mal educado recusar
um presente? — continua, com a maior cara de pau possível.
— Porra, você só pode estar de brincadeira comigo. — Bufo,
rolando os olhos. — Por favor, pare de desperdiçar o meu tempo
com esse teatrinho. Não tem coisas mais importantes para fazer?
— Não — responde, sem hesitar. — E não sou fã de
brincadeiras, Bellini. Sei que você gosta de batons vermelhos e
pensei que seria um bom presente de aniversário.
Cretina.
Ela deve ter investigado cada maldito passo meu em todos os
anos da minha vida. Por mais desconfortável que isso me deixe, não
vou ser hipócrita e condená-la. Afinal, fiz a mesma coisa com ela.
O problema é que fui pega desprevenida, já que não
esperava que nada disso acontecesse hoje ou em qualquer outro
dia. Ainda acho que estou alucinando porque, cacete, há alguma
outra explicação para toda essa loucura?
Viro a cabeça e olho ao redor, checando todos os cantos do
bar e o lado de fora. Há alguma coisa errada. Seus capangas
devem estar em algum lugar, esperando para me sequestrar e me
usar como moeda de troca.
Eles não podem, na verdade, mesmo que eu não duvide de
nada vindo da Vendetta. Estamos em um território neutro e é um
acordo entre as organizações que nada pode ser feito nesse tipo de
área. É chocante o fato de essa regra ser respeitada.
Só que eles não têm  escrúpulos, muito menos princípios.
Não é impossível que essa mulher esteja tentando me sequestrar ou
até mesmo me assassinar para mandar um recado ao meu pai.
Tivemos um grande desentendimento há pouco menos de dois
meses e o sangue derramado ainda deve estar fresco na memória
deles.
— Não há ninguém além de mim aqui — ela assegura, como
se lesse os meus pensamentos.
— Tenho todos os motivos do mundo para acreditar em você,
não é mesmo? — ironizo. — Não tenho dúvidas de que você
revelaria que pretende me sequestrar e mandar minha cabeça para
o meu pai.
— Estou pouco me fodendo para o seu pai. — Dá de ombros,
acabando com o líquido do seu copo em um único gole. —
Alessandro precisa crescer muito para apresentar qualquer ameaça
a mim.
Meu sangue borbulha em fúria. Ela é tão arrogante que me
deixa enjoada.
— Quem foi que te colocou nesse pedestal? — indago. —
Foram os cachorrinhos que te seguem de um lado para o outro ou
os inúmeros homens que querem enfiar um anel no seu dedo para
herdar a sua máfia?
Ao contrário do que eu esperava, Alessia sorri. A diversão
parece genuína em seu rosto.
— Pensei que você fosse boa no que faz. — Estreito os olhos
em confusão e ela continua: — Mas se não sabe que não tenho
nenhum tipo de interesse em homens, não é uma feiticeira tão boa
assim.
Ah, isso. É claro que sei disso. Todo mundo sabe, embora
alguns prefiram fingir que não.
— Ou será que sabe? — ela cutuca, repetindo o meu ato de
semicerrar as pálpebras. — Procurou sobre isso, Bellini? Ficou
curiosa para saber quem frequenta a minha cama?
— Vai se foder — rosno, virando o uísque de uma vez só. —
Você pensa muito sobre si mesma, Romano. O mundo não gira ao
seu redor, especialmente o meu.
— E você? — Minha provocação é ignorada. — Quem
frequenta a sua cama, Bellini? Homens? Ou mulheres? Ou os dois?
— Você não cansa de ser ridícula? — Elevo o tom, mas me
recomponho. Não quero atrair nenhuma atenção para nós. — Não
te interessa com quem eu me relaciono.
— E se interessar? — Sua voz cai alguns decibéis e ela se
inclina em minha direção. — E se eu estivesse interessada em
saber com quem você se relaciona?
Sinto as bochechas ruborizarem e o corpo queimar. Abro a
boca para respondê-la, só que nenhuma palavra sai. Estou caindo
no seu jogo e não posso permitir que aconteça. Por isso, já que
deixou de ser um segredo há um tempo, respondo:
— É esse o motivo, então? Seu chefe quer saber se pretendo
me casar com algum homem importante e selar uma aliança entre
Famílias? — Me aproximo do seu rosto e sussurro perto dos seus
lábios: — Passe o recado de que a herdeira da máfia só come
bocetas, mas isso não a impede de acabar com qualquer um que
cruzar o seu caminho.
O sorriso que cresce em sua boca é tão grande que me
desconcerta. Por alguma razão, Romano parece satisfeita e feliz.
— O recado é para mim — murmura, e acredito que ela nem
esteja se esforçando para esconder a satisfação. Mesmo que eu
saiba que é puro fingimento. — E agradeço muito por ele.
Reviro os olhos e me afasto, deixando a postura ereta. Desvio
o olhar e ergo o copo para o barman, sinalizando que quero outra
dose. Ele vem e enche o vidro, porém, não passa despercebido por
mim que seus músculos retraem quando ele mira Alessia e os
passos ficam apressados conforme caminha para a outra
extremidade do balcão. Como se estivesse com medo e fugindo
dela.
— Você fez alguma coisa para o garoto? — indago, fitando-a.
Tenho a impressão de que seus olhos nunca desviaram de mim.
— Não. Não gasto meu tempo com pessoas irrelevantes.
— Acha meu pai irrelevante, mas eu não? — Arqueio a
sobrancelha direita.
— Você é mil vezes mais relevante e interessante do que o
seu pai.
Ela pega meu cigarro, há muito tempo esquecido, e tira um
isqueiro do bolso da jaqueta de couro. Ele tem o formato de uma
carta de baralho e é preto com detalhes em dourado.
— Você… — Romano traga a fumaça, o cotovelo esquerdo
apoiado no balcão e o corpo parcialmente virado para mim. Após
expeli-la, murmura: — Você é promissora.
— Promissora? — Assisto-a anuir. — O que diabos isso
significa?
Ela sorri de lado, mas não responde. O silêncio recai sobre
nós e me deixa desconfortável, então desvio a atenção para os
adolescentes chapados na minha diagonal. Solto o ar numa
respiração funda e devagar, praguejando a mim mesma por deixar o
desconforto explícito.
— Você é tão arisca quanto uma gatinha selvagem — sua voz
quebra a quietude, mas mantenho os olhos longe dos dela. —
Assim como eu esperava.
Após bebericar mais um gole do álcool, cruzo os braços. O
movimento acentua meus seios e, de esguelha, a vejo descendo o
olhar até eles.
— Você só pode estar sob efeito de algum alucinógeno para
acreditar que me importo com sua opinião sobre mim.
— Vai recusar o meu presente, então? — Mais uma vez,
ignora a alfinetada. — Não seja mal educada.
É inevitável rir. Involuntariamente, deslizo os orbes até ela.
— Não pense que sou burra, Romano. Sinto o fedor de
manipulação impregnado em cada centímetro seu.
— Ah, sim. Arisca como uma gatinha selvagem.
Se ela continuar me chamando assim, vou esmagar os seus
miolos na parede.
— Se quer me dar um presente, vá embora. Será o melhor
que eu poderia receber.
Ouço-a estalando a língua no céu da boca e não lhe dou
tempo para retrucar.
— Você tem cinco minutos para explicar o que é tudo isso. E
se houver algum homem me esperando do lado de fora, juro pelo
meu sangue que vou arrancar os seus olhos com as unhas e servi-
los no jantar.
Como a sádica que é, minha fala parece diverti-la e delineia
sua boca em outro sorriso.
— Seria um pecado me privar de olhar para você, feiticeira.
Bato a mão com força no balcão, mas o estrondo não provoca
nenhuma reação nela. Me aproximo e sussurro, ignorando o
embrulho no estômago causado pelos pequenos centímetros que
nos separam:
— Quatro minutos.
Seu sorriso fica ainda mais largo. E eu fico ainda mais
irritada.
— Se não vai aceitar os batons, me deixe te presentear com
outra coisa — sussurra.
Posso estar alucinando, mas noto a malícia escorregando por
cada uma das palavras.
— Não quero nada que venha de você ou da sua máfia. Vá
embora.
— Não estou aqui em nome da minha máfia. Me deixe te
presentear.
— Por quê? — pergunto, a curiosidade genuína. — Pare um
segundo e pense se qualquer pessoa acharia isso normal, Romano.
É a primeira vez que nos vemos e somos inimigas. Tenho certeza de
que você nunca aceitaria um presente meu e, assim como eu,
acreditaria ser um rastreador ou alguma bomba. Estou errada?
Ela sorri de forma tão provocativa, com o lábio inferior entre
os dentes, que sinto as pernas estremecerem. Seus olhos descem
até minha boca e não saem de lá nem mesmo quando sussurra:
— Você ficaria surpresa com a quantidade de coisas que
estou disposta a aceitar de você, Bellini.
Puta merda.
Ela percebe o efeito vergonhoso que a frase surte em mim e
volta a me esquadrinhar. Faz um tempo desde a última vez que tive
uma mulher na minha cama e é somente por isso que aperto as
coxas uma contra a outra.
— Vá embora — ordeno, tão baixo que é quase inaudível. —
Não quero você aqui.
— Peça de novo — ela devolve no mesmo tom, os olhos
brilhando em lascívia. — Mas dessa vez, seja um pouco mais
convincente.
— Chega! — vocifero. — Esse seu teatro é ridículo, inferno.
Vá embora.
Ela respira fundo e devagar. Sua expressão cai e se fecha,
voltando à que vejo em todas as fotografias. Em seguida, se levanta
e dá os primeiros passos em direção à porta, mas os cessa no meio
do caminho e me olha por cima do ombro.
Por alguns segundos, Alessia não diz nada. Quando sua voz
ecoa novamente, não é sobre nada do que acabou de acontecer,
tampouco compreendo o que quer dizer:
— Não confie em ursos.
Um dia depois, na minha festa de aniversário, meu tio — cujo
apelido é Bear — me presenteia com um colar de ouro.
Uma semana depois, descubro que havia uma câmera no
colar.
Uma semana e algumas horas depois, ele é brutalmente
assassinado por Alessia.
“É um novo amanhecer
É um novo dia
É uma nova vida para mim
E estou me sentindo bem”
Feeling Good | Michael Bublé
 

 
Assim como o cigarro entre os meus lábios, estar de volta tem
gosto de ruína.
Quando o carro se aproxima do enorme portão de ferro na
parte traseira da propriedade — já que a entrada principal é
destinada apenas aos civis —, os guardas endireitam a postura e
colocam discretamente o dedo no gatilho das AK-47 posicionadas
nas bandoleiras. Não os culpo e nem me importo.
Paro o veículo, solto a fumaça e abaixo o vidro. O homem alto
se inclina para me enxergar melhor, franze as sobrancelhas e
semicerra as pálpebras. Noto que ele já me reconheceu, mas está
tentando descobrir de onde. Meu rosto está bem diferente das fotos
que ele deve ter visto.
— Nome? — Sua atenção se prende em minha cicatriz, como
a da maioria das pessoas.
— Alessia Romano.
No mesmo segundo, seus olhos se arregalam tanto que
quase caem em meu colo. Ele está tão petrificado que parece ter
visto um morto ressuscitado. Por mais exagerado e estúpido que
isso soe para mim, alguns de fato terão esse pensamento.
Afinal, a maioria deles pensa que estou morta.
Ao ouvir meu nome, os outros se aproximam de maneira sutil.
Diversos olhares curiosos me esquadrinham em uma tentativa
engraçada de adivinhar se sou realmente Alessia Romano ou
apenas uma impostora. A dúvida é justificável.
— Per l'amor di Dio…[2] — sussurro, reviro os olhos e levanto
a mão. — Faça o reconhecimento logo. Não tenho o dia todo.
O homem puxa o aparelho do bolso, mirando-me sem piscar,
e vira a tela para mim. Coloco a palma sobre o ecrã e ele
rapidamente se ilumina na cor verde, mostrando os meus dados e
uma foto.
Uma foto de quando eu tinha vinte anos e não fazia a menor
ideia do que aconteceria até chegar aos vinte e oito.
Ele engole em seco, nitidamente nervoso. Faço uma nota
mental de repreender os soldados por serem tão expressivos, já que
os demais estão iguais.
— Ei, garotão. Me tire uma dúvida? — Mexo o indicador em
um convite de aproximação e, hesitante, ele se inclina um pouco
mais na janela. Então, sussurro: — O que está esperando para abrir
a porcaria do portão?
É patética a rapidez com que ele fica ereto e envia um sinal
com a mão para o responsável, que está dentro da cabine, liberar a
minha passagem. Em cinco segundos, canto pneus e adentro o
perímetro do lugar onde cresci.
O maior cassino e resort da Vendetta: Fortuna.
Percorro o longo trajeto de pedra e estaciono em uma das
poucas vagas disponíveis — está lotado, é claro, o normal de uma
sexta-feira à noite. Saio do carro, ajeito o paletó preto e levanto a
cabeça para admirar a enorme construção luxuosa que ostenta
grandes janelas de vidro blindado, paredes brancas e arquitetura
moderna.
O Fortuna engloba vários blocos de prédios e este no qual
estou, bem como os quatro ao redor, são usados exclusivamente
pelas pessoas do crime. A área dos civis é mais afastada, a quase
cinco minutos de carro, dividida da nossa por muros e outro portão.
Não fazemos os mesmos trajetos ou frequentamos os mesmos
lugares que eles para evitar confusões.
Se não fosse assim, arrumaríamos mais problemas do que
consigo imaginar.
Inicio o caminho até o Prédio Principal e subo os degraus.
Quando paro em frente à porta, os guardas se movem depressa,
abrindo-a e liberando minha passagem. Presumo que os colegas já
tenham espalhado a notícia de que a filha do chefe voltou.
Nunca fui fã de clichês, mas minha volta ao Fortuna acontece
como em um filme norte-americano: em câmera lenta, com
sussurros indiscretos e olhares curiosos enquanto caminho pelo
carpete vermelho.
Tudo está exatamente igual. Eu já sabia que estaria, porém é
diferente ver com meus próprios olhos em vez de fotografias.
Reconheço diversos rostos de clientes antigos e vejo alguns
novos, os quais embora nunca tenham me conhecido, eu já os
conheço. Sei sobre cada um deles, suas fortunas, dívidas e
segredos.
Estive longe, mas nunca ausente. Deixei que todos
acreditassem que ou eu estivesse morta, ou tivesse sido deserdada
por Dante Romano. Nenhuma das opções era a correta.
Eles não faziam ideia da verdade.
Cruzo o hall de entrada, atravesso a Sala de Lazer e chego
ao elevador. Conforme o espero, mantenho os olhos fixos na porta
de metal à frente e os ouvidos atentos às conversas ao meu redor.
Se eles não me reconheceram como Alessia Romano, então ficaram
chocados com a cicatriz no meu rosto. Não me importo, na verdade,
só que é cômico vê-los sussurrando e apontando para mim como se
eu fosse cega ou surda.
Entro no cubículo — para a minha surpresa, vazio — e aperto
o botão da cobertura. O painel solicita o reconhecimento ocular e eu
o faço. Após um minuto, as portas se abrem e eu arqueio a
sobrancelha ao ser recebida por no mínimo dez homens armados.
— Essas são as boas-vindas que eu recebo?
— Saia do elevador, encoste sua testa na parede, coloque as
mãos para cima e não se mova — um deles, o que está no centro,
diz.
Só pode ser brincadeira.
— Fico satisfeita em saber que vocês agem dessa forma
diante de uma ameaça, mas não sou uma. Já que a notícia ainda
não chegou aqui em cima, vou repetir: sou Alessia Romano.
Eles enrugam as sobrancelhas em confusão e se entreolham
de canto. Dante renovou quase toda a equipe do Prédio Principal,
pois nenhum deles tinha esse trabalho quando fui embora.
— Alessia?!
Automaticamente, viro a cabeça e procuro a dona daquela
voz familiar. Encontro-a em frente a uma das portas, no lado direito,
pálida e petrificada ao me ver.
Yuna Yamazaki. Minha melhor amiga e uma das
pouquíssimas pessoas por quem sangrei de saudades nos últimos
anos.
Ando depressa em sua direção e ninguém tenta me impedir.
Pela reação dela, eles devem ter percebido que sou eu mesma.
Alcanço-a em dois segundos, puxo-a para um abraço e a aperto
tanto que sou capaz de machucá-la. Nenhuma de nós se importa,
no entanto, e Yuna retribui com a mesma intensidade ao envolver os
braços em meu pescoço.
— Não acredito que você voltou — ela sussurra, a voz
trêmula e embargada. — Você está aqui. Porra, você está mesmo
aqui ou estou alucinando?!
— É claro que estou — respondo no mesmo tom, acariciando
seu cabelo escuro.
Yuna se afasta e vejo sua expressão espantada mais de
perto. Consigo contar nos dedos das mãos a quantidade de vezes
que a vi chorando desde que a conheço e agora, assistindo aos
seus olhos lacrimejados, sei que ela está se segurando para não
derrubar nenhuma lágrima na frente dos homens atrás de nós.
— Yuna? O que está…
Direciono o olhar para cima do seu ombro e abro um grande
sorriso ao me deparar com Jayden King. Ele arregala os olhos,
deixa os papéis que segurava caírem e se aproxima em um passo
largo.
Sou arrancada dos braços de Yuna com força e colocada nos
dele, que me apertam ainda mais forte do que apertei Yamazaki.
Jayden se afasta logo em seguida, segura em meus ombros e me
encara fixamente por uma fração de segundo.
Então, ele ri. Tão alto que quase me faz rir junto.
— Cazzo, eu sabia! Você está viva, sua pilantra!
É assim que ele demonstra carinho. E é minha coisa favorita
nele.
— Caralho, eu não acredito. — Jay passa a mão na cabeça
coberta por fios escuros, um deles caindo pela testa. A pele clara
perdeu um pouco da cor com o choque. — A gente ‘tá sóbrio, então
não é uma alucinação. Mas não consigo acreditar.
— Eu voltei de verdade. Vamos entrar para conversar.
Eles assentem e me levam para dentro de uma das Salas de
Reuniões. A porta é fechada e o silêncio nos rodeia enquanto os
dois pares de olhos me estudam em completa surpresa. Não posso
evitar de me divertir com a reação deles.
Jayden balança a cabeça de um lado para o outro, incrédulo,
sorri de orelha a orelha e cobre a boca com as mãos. Depois de
muito tempo, tenho uma sensação boa de pertencimento. Estar de
volta ao lado dos dois me faz sentir em casa.
— Puta merda, acho que estou sonhando — diz, rindo.
— Não está, Jay — garanto, me aproximando.
Ele gargalha, me puxa novamente para um abraço apertado e
Yuna se junta a nós, formando um abraço triplo. Ficamos alguns
segundos assim, demonstrando um carinho genuíno e uma saudade
dolorosa. Não somos o trio mais carinhoso e grudento do mundo,
longe disso; porém, depois de tanto tempo sem trocar uma palavra
com duas das pessoas mais importantes em minha vida, não
consigo manter a postura de megera fria e cruel.
Ainda quero dizer algumas palavras a eles, só que não é o
momento apropriado.
— Pensei em vocês todos os dias — confesso, ignorando o
nó na garganta. — Sei que desapareci e não dei sinal de vida, mas
não os abandonei. Vou explicar tudo. Temos muito o que conversar,
seus bandidos.
King bagunça o meu cabelo e dou um peteleco na sua nuca.
Yuna rola os olhos, mas sorri tanto quanto nós dois. Uma lágrima
escorre pela sua bochecha e enxugo-a com o polegar.
— Se sumir de novo, vou te caçar e matar você — ela
ameaça, o rosto retorcido em uma careta de choro. Eu rio baixo e
ela me dá um leve soco no ombro. — É sério, Alessia. Foi um
inferno.
— Não vou a lugar nenhum — asseguro. — Já fiquei tempo
demais longe.
— Ok… — A mudança no tom de Jayden me faz fitá-lo. Ele
troca um olhar hesitante com nossa amiga antes de dizer: — A
gente queria muito conversar com você agora, mas precisamos te
contar uma coisa.
— Eu já sei.
O temor é substituído por confusão tão rápido que chega a
ser engraçado.
— Você sabe? — Yamazaki indaga. — Alessia, me escuta.
Acho que você não entendeu sobre o que queremos falar…
— Yuna, eu entendi.
Ambos me estudam em silêncio. Acontece mais uma troca de
olhares, como se perguntassem um ao outro “será que ela
enlouqueceu?”. Eu respiro fundo, puxo uma das cadeiras que
rodeiam a enorme mesa de vidro e me sento.
Cruzo os braços, apanho o maço do bolso interno do paletó e
acendo um cigarro. Aproveito o momento silencioso para olhar ao
redor e examinar a sala onde me sentei inúmeras vezes. É idêntica
a qualquer sala de reunião de uma empresa grande, a única
diferença é que as nossas têm entradas e compartimentos secretos.
E um mini bar no canto.
— Alessia, o que você sabe? — Jayden corta o silêncio.
Deslizo os olhos até os dois e solto a fumaça. Ao contrário
deles, meu semblante está fechado, porque apesar de toda a
emoção em revê-los, temos uma merda enorme para lidar agora.
— Eu sei do incêndio no Orleans.
Eles se mantêm calados, como se esperassem por uma
continuação. Eu lhes dou uma ao dizer:
— E sei que Dante está morto.
 

“Não há como parar agora


Não há como recuar
Nós atiramos para matar”
Shoot to Kill | Tommee Profitt
 

 
Os cassinos são intocáveis e é uma questão moral não
chegar perto deles. Por isso, estamos fodidos.
Esse não é o único motivo, na verdade. O problema é que
Alessia é obcecada por cassinos e tudo que os compõem,
especialmente os jogos dentro deles. Sua obsessão é tão antiga e
intensa que todos sabem que entrar numa partida com Romano é
pedir para perder dinheiro e dignidade, mas, mesmo assim, ela
costumava receber convites frequentes para jogar. Sua presença se
tornou quase como a de uma verdadeira celebridade mundial.
O maldito incêndio no Orleans vai fazê-la perder a porra da
cabeça, que já é perturbada o suficiente.
— Alguém acionou a polícia. Provavelmente um civil — um
dos subordinados de Marco diz, atraindo minha atenção. — E pelo
que eu ouvi, eles não estão nada felizes com esse escândalo.
— Alguma morte? — pergunto, para saber a proporção do
estrago.
— Algumas — Sartori revela. Praguejo baixinho, passo a mão
no rosto e ele continua: — Joey e Martha estão tentando descobrir
mais informações. Por enquanto, o que sabemos é que nenhum
aliado deles se feriu.
Não sei se isso é bom ou ruim, para ser sincera.
— O que isso significa para nós? — uma mulher questiona.
— Depende — é Marco quem responde. — Se foi um
problema interno que causou o incêndio ou algum rival com quem
eles estão lidando agora, não significa nada para nós. Mas…
— Se eles acharem que fomos nós — continuo sua fala —,
significa muita merda.
Eles acham, penso. É melhor não dizer nada aos soldados
ainda, não antes de contar para Kai e Sophie.
— Vou conversar com o don para saber se fazemos uma
Reunião Extraordinária. — Sartori aponta o indicador para cada um
deles ao dizer: — Não abaixem a porra da guarda, me entenderam?
Enquanto esperam uma ordem, não pisquem os malditos olhos em
serviço. Se eles decidirem nos atacar, precisamos estar preparados.
Todos assentem e Marco os dispensa com a mão.
— Lyanna, vamos. — Ele aponta a escada com a cabeça e
eu o sigo.
Há um único corredor no segundo andar com algumas portas,
que são pequenas salas usadas como armazém. Entramos na
última e eu me sento na borda da mesa de madeira, assistindo-o
fechar a porta.
— O que diabos aconteceu? — indaga, exasperado.
Não temos uma relação tão íntima assim, já que nossas
rotinas e idades são bem diferentes e é difícil encontrar coisas que
nos aproximem ao ponto de eu vê-lo como um segundo pai, por
exemplo. Mas ele sempre cuidou de mim. Quando meu pai não
estava, era Marco quem se certificava de que eu não estava me
metendo em encrencas.
— Meu celular descarregou — minto.
Não quero contar para ele sobre Alessia antes de conversar
com meus amigos. Marco não faz ideia de que já me envolvi com
ela no passado e certamente teria um colapso se soubesse que
Romano invadiu a minha casa e me fez sangrar.
Sartori espreme as pálpebras, se aproxima em passos
rápidos e levanta minha mão ensanguentada em frente ao meu
rosto.
— Você está sangrando, Lyanna. Não minta para mim.
— Marco, sabe que te respeito pra caramba, mas há coisas
que não posso te dizer.
Solto meus dedos de seu aperto, me levanto e caminho até
uma das estantes. Começo a procurar por qualquer coisa que possa
me ajudar e encontro um kit de primeiros socorros. Antes que eu o
abra, Sartori arranca a caixa e me puxa em direção à mesa. Assisto-
o fazer todos os passos do curativo em meio ao silêncio pesado.
— Está bravo comigo, né? — pergunto.
— É claro que sim — entredentes, ele afirma. — “Coisas que
não posso te dizer”? Que papo é esse, Lyanna?
— Vai me dizer que você não tem segredos? — Arqueio a
sobrancelha e ele me olha por um instante. — Que não esconde
nada das pessoas?
Ele envolve a atadura em minha mão, que tem algumas
partes cobertas por gaze, e cola o final com fita. Quando acaba,
fecha o kit e me encara de braços cruzados.
— Sou o Underboss da máfia, Bellini. Se não escondesse
nada, já teria sido assassinado.
— ‘Tá vendo? Assim como a sua, minha função também
requer alguns segredos. — Dou de ombros, salto da mesa e
caminho até a porta. — Obrigada pelo curativo, zio[3].
No corredor, escuto sua voz gritar:
— Não pense que terminamos essa conversa, Lyanna!

Assim que souberam do incêndio, Kai e Sophie saíram do


jantar e voaram de volta para Las Vegas. Meu pai convocou uma
Reunião Extraordinária do Conselho e todos já estão na sala, exceto
meus amigos. Tenho certeza de que a maioria desses homens está
furioso com Alessandro por ter marcado esta reunião — alguns
parecem bêbados ou chapados —, em especial porque o motivo
dela não foi revelado.
É sexta-feira à noite, afinal. Ninguém estava planejando
dormir, muito menos ter reunião.
Não tive a oportunidade de conversar com Kai e Soph ainda,
então, por enquanto, não expliquei sobre a mensagem que enviei
mais cedo. Como se lessem meus pensamentos, a porta é aberta
com força e os dois entram, eufóricos, ainda com as roupas de gala.
Os olhos de Kai correm pela sala até encontrarem os meus e
Sophie o puxa pelo braço até as duas cadeiras vagas. As conversas
cessam e meu pai se levanta do seu assento, na ponta da mesa.
Seus olhos azuis escrutinam cada um dos nossos rostos,
demorando um pouco mais no meu. Seu olhar sério parece querer
me dizer várias coisas, as quais não entendo. Nosso curto momento
é interrompido quando ele solta uma respiração profunda e começa:
— Irmãos, os convoquei esta noite para dar uma notícia
inesperada. Não gostaria de interromper a diversão de ninguém,
mas acredito que o assunto exija total atenção e urgência.
Franzo as sobrancelhas e procuro Sophie, que me devolve a
expressão confusa. Ela dá de ombros, como se não soubesse de
nada. Pensei que meu pai tivesse convocado a reunião para falar
sobre o incêndio, mas sua postura rígida, o tom ríspido e olhar duro
respondem a pergunta que fiz a mim mesma mais cedo.
É sobre a volta de Alessia. Ele sabe.
— Irmão, não poderia esperar? — Ernesto, meu tio e um dos
capos, indaga. Sua voz embolada e os olhos vermelhos indicam que
ele está drogado. — Estava no meio de uma foda gostosa. Deixe-
me dar uma dica para vocês, senhores: as prostitutas da Fremont
Street sabem chupar um pau como ninguém.
Reviro os olhos, sentindo náuseas.
— Que apropriado falar sobre boquetes em uma reunião —
ironizo, e seu sorriso é substituído por uma carranca.
— O que disse, menina?
— Meu nome é “Lyanna”, não “menina”. — Lanço-o um olhar
ameaçador. — Estamos no mesmo grau de hierarquia, Ernesto. Na
verdade, estou acima de você por ser a herdeira dessa máfia. Me
trate com respeito ou terá problemas muito piores do que uma foda
interrompida.
— Parem — como imaginei, meu pai nos repreende. — Não é
hora para discussões.
— Sim, senhor — ele diz, como um verdadeiro cachorrinho.
— Como eu ia dizendo… — Seu tom é ainda mais severo
agora. Estou começando a ficar preocupada com o que vem a
seguir. — A notícia que trago é uma incógnita para nós. Ao mesmo
tempo que é boa, também é ruim. Pode nos beneficiar ou nos
destruir.
Sim, penso, com certeza é sobre ela.
— Dante Romano foi assassinado.
Quando suas palavras são derramadas em mim como um
balde de água fria, sinto como se estivesse prestes a vomitar. O
embrulho no estômago é tão forte que preciso colocar a mão na
boca para impedir que eu de fato vomite na mesa.
Penso que a situação não pode piorar, mas logo sou refutada:
— E pela hierarquia da máfia, Alessia Romano será a nova
don da Vendetta.
 

“Nós poderíamos ter tido tudo


Você teve o meu coração na palma da sua mão
E você brincou com ele
Você vai desejar nunca ter me conhecido”
Rolling in the Deep | Adele
 

 
Não sei muito bem o que aconteceu depois que meu pai
revelou sobre a morte de Dante. Tudo passou como um borrão e só
me lembro de ter sido arrastada para longe quando a reunião
acabou. Entrei em estado de choque.
Agora, uma hora depois, estou encarando a mesinha de
centro da minha sala. Sophie e Kai me trouxeram até o meu
apartamento, mas nenhuma palavra saiu da minha boca ainda.
Ainda assim, eles se mantiveram ao meu lado, respeitando o meu
tempo.
Não sei o que seria da minha vida sem Kai Jeon e Sophie
Wilson. Os dois dividem o meu coração desde que os conheço,
ainda que nossas histórias individuais não sejam nem um pouco
parecidas.
Minha aproximação com Kai foi a coisa mais natural e
genuína do mundo a partir do momento em que um dos meus tios e
sua esposa o tiraram de um orfanato abusivo e o trouxeram até nós.
Não me recordo de não tê-lo ao meu lado em nenhum período após
a sua chegada — quando eu tinha apenas cinco anos —, o que nos
fez crescer juntos tanto na vida quanto na organização. No início, eu
estava relutante e com certo medo de lutar contra ele, já que era
bem maior do que eu, mas Kai não desistiu. Se ele não tivesse
irritado aquela garotinha medrosa apenas para que ela desse um
soco em seu nariz, o meu primeiro bem sucedido, eu não saberia
fazer o que faço hoje.
O contrário aconteceu também. Jeon nunca foi muito bom na
área tecnológica e eu, que sou obcecada por computadores desde
que me entendo por gente, o ensinei todas as coisas básicas que
ele precisava saber.
Por outro lado, minha relação com Sophie não começou tão
bem assim. A família dela sempre fez parte da Timoria, só que os
três costumavam morar em Boston, outra região que dominamos.
Por ordens do meu pai, eles vieram para Las Vegas e nunca mais
foram embora, mas nossa amizade não nasceu de uma maneira
natural. Muito pelo contrário, a criança mais hiperativa e abusada de
toda a organização — ela — não saiu do meu pé por longos meses
depois que aprendi a andar e falar, só que eu era mil vezes mais
retraída e tímida, então nunca dei bola. Isso nunca a impediu de
insistir, contudo, e quando percebi já não conseguia mais passar
nenhum dia sem a sua companhia e seus monólogos incessantes.
Soph se encantou por Kai no mesmo segundo em que se juntou a
nós, dois anos depois que o conheci.
Desde os meus sete anos, tenho os dois ao meu lado. Não
consigo pensar em um mundo onde eu exista longe deles.
— Lyanna, pelo amor de Deus, fala alguma coisa — Sophie
implora, pela vigésima vez, sentando-se ao meu lado.
Entreabro a boca para falar e a fecho segundos depois,
incapaz de formular uma frase. Minha mente é preenchida somente
por uma que, apesar de pequena, é devastadora: Alessia Romano é
a nova chefe da máfia.
É por isso que ela voltou. Não por mim, pelos seus amigos,
pela sua irmã ou por qualquer outra razão além da liderança. É claro
que Alessia nunca permitiria que outra pessoa ocupasse o trono da
Vendetta.
— Estamos tentando respeitar o seu tempo de digerir a
informação, mas estou quase arrancando os meus cabelos de
preocupação, Ly — Kai declara, sentando-se na mesinha à minha
frente. Desde a reunião, ele está pálido e chocado como poucas
vezes já vi.
Respiro fundo e engulo o nó na garganta.
— Alessia invadiu a minha casa.
A informação não parece surpreendê-los.
Eles são os únicos que sabem sobre Alessia e eu. A princípio
eu não pretendia contar a ninguém, já que acreditava ser apenas
um sexo casual ou um lapso de consciência passageiro. Porém,
conforme nossa relação crescia, não consegui lidar com o
sentimento angustiante de culpa e vergonha. Afinal, eu estava
literalmente me deitando com a arqui-inimiga e tinha plena ciência
de que aquilo era uma baita traição contra minha própria máfia. Eles
não demoraram para perceber a mudança em meu comportamento,
além dos meus sumiços sem explicação, e fui obrigada a contar
tudo.
Kai reagiu tão negativamente que me senti ainda pior.
Ficamos alguns dias sem nos falar até que ele pediu desculpas e
fizemos as pazes. Sophie me deu diversos conselhos e disse que
não achava ser uma boa ideia, mas estaria ao meu lado para
qualquer coisa.
Eu deveria ter escutado eles. Se tivesse, não teria tido minha
vida destruída cinco anos atrás.
— Lyanna… — Wilson sussurra, junto de um suspiro
profundo, e segura minhas mãos. — Nos explique tudo, amiga.
Precisamos saber o que fazer.
Então, eu explico. Começo com a ligação de Marco e vou até
a pichação na garagem, sem pular nenhum detalhe. Entre uma
palavra e outra, sinto a náusea ainda mais forte e o peito dolorido.
— Por que ela acharia que foi você? — minha amiga
pergunta quando finalizo o monólogo. — Só porque nossas máfias
são inimigas? A Vendetta coleciona vários inimigos por aí, não
somos os únicos. Acha que ela tem alguma prova de que foi você?
— Não, é impossível — garanto. — Porque não fui eu.
— Se você fez isso, Lyanna, pode nos contar.
— Tá de brincadeira comigo?! — exclamo, ofendida.
— Calma, eu não quis te ofender. Só quero que você saiba
que pode nos contar qualquer coisa.
— E eu sei, mas você está insinuando que incendiei aquele
maldito cassino. É quase como me chamar de burra.
Ele respira fundo e retrai os ombros. Seus olhos caem e
percebo que ele se arrependeu do que disse.
— Eu sei, me desculpe. Só quero…
— Não importa — o interrompo. — Precisamos descobrir
quem está por trás disso e limpar a nossa barra. Por mais que eu os
deteste com todo o meu ser, não podemos enfrentar a Cosa Nostra
e a Vendetta ao mesmo tempo.
— E se for eles? — Sophie sugere. — E se for a Cosa
Nostra? Eles odeiam os Romano tanto quanto nos odeiam.
Confesso que sempre acreditei que eles tentariam nos destruir
novamente, mesmo que tenham “desistido” há um tempo.
Uma lâmpada acende em minha cabeça.
— Talvez eles estejam armando para nós. Pensem comigo:
se Alessia está tão convicta que sou a culpada, é porque algo a
levou até mim. Porém, não fui eu, então alguém está tentando me
incriminar para que ela e a Vendetta acreditem que fomos nós. Isso
acarretaria numa guerra entre nossas organizações, o que nos
enfraqueceria e tornaria fácil nos atacar e…
— E nos derrubar — Sophie complementa e eu assinto. —
Caralho, faz todo o sentido. A Cosa Nostra quer se vingar de nós há
décadas e desde que nossa atuação nos Estados Unidos solidificou,
eles querem tomar nosso lugar. 
— Talvez seja uma vingança pelos soldados que matamos
nos últimos meses — acrescento. — De qualquer forma, é bem
provável.
— Concordo — Kai fala. — Mas acho melhor reunirmos
provas concretas antes de levarmos isso ao Conselho.
Seu celular toca e ele solta um resmungo baixo quando vê a
tela. Não consigo enxergar quem está ligando antes que ele se
levante e se afaste, saindo do nosso campo de visão.
— Acha que alguém mais sabe? — Sophie pergunta. —
Sobre Dante… e Alessia.
— Acho que não. — Solto uma lufada de ar e jogo a cabeça
para trás, no encosto do sofá.
— Não paro de pensar em como ela descobriu. Tenho certeza
de que ela estava em contato com o pai durante todos esses anos,
mas pelo que parecia, ninguém mais sabia do seu paradeiro. Quem
será que a avisou?
— Você acha mesmo que ninguém sabia onde ela estava? —
indago, mirando o teto. — Eu achava que sim, mas, pensando bem,
duvido que só Dante soubesse. Ninguém consegue se esconder tão
bem assim.
O celular de Sophie também toca e eu giro a cabeça para vê-
la grunhir baixo.
— É o Marco. Preciso atender, amiga.
Fico sozinha na sala, torcendo para que a sensação ruim não
demore a passar.
 

Solto a fumaça e mantenho os olhos presos na tela do


notebook. O sol começa a nascer do lado de fora, iluminando a sala
escura. Visto apenas calcinha e sutiã enquanto fumo um baseado e
reflito tanto que sinto os neurônios derretendo.
Revisei o sistema de segurança para desvendar como Alessia
passou por ele e quase soltei uma gargalhada incrédula ao
descobrir que ela desligou a porra da eletricidade de toda Las
Vegas.
Foi ela a responsável pelo apagão que presenciei. Os dois
minutos levados até as luzes se acenderem novamente foram os
que ela usou para entrar na minha casa. Quero desferir um soco em
sua boca por ter invadido minha residência, mas não posso negar
que sua determinação foi impressionante.
Se ela desligasse a energia do bairro, não seria suficiente.
Projetei o sistema para capturar a próxima fonte de energia caso a
primária falhasse, então o único jeito de desconectá-lo é deixando
toda a cidade sem energia.
E ela deixou.
Depois disso, rastreei o endereço de um dos e-mails secretos
que a Vendetta utiliza para trocar informações sigilosas e o hackeei
com facilidade.
“É COM PESAR que a Vendetta informa a todos que
Dante Romano, nosso honrado e ilustre don, infelizmente veio a
óbito na noite passada em decorrência de problemas cardíacos.
A Vendetta convida todos os amigos, familiares,
associados, membros e aliados para que compareçam ao
memorial e velório de nosso eterno chefe. Contamos com o
apoio e presença de todos.
Informar-se sobre local e horário com o respectivo
mensageiro.”
Solto um riso baixo e reviro os olhos.
— Problemas cardíacos… — desdenho. — Idiotas.
Apesar de não ser a primeira vez que vejo alguma
organização mentindo sobre o verdadeiro motivo de uma morte,
ainda não sei o porquê de a Vendetta ter escondido a verdade. Mas
vou descobrir.
Quero e preciso descobrir tudo. É imprescindível que as
coisas estejam claras, bem como as provas sejam concretas e
irrefutáveis, quando Alessia assumir a liderança da máfia. Se houver
qualquer assunto mal resolvido entre nós, nem mesmo a melhor
vidente do país será capaz de prever o que aquela lunática vai fazer.
Viro a cabeça para a direita, onde o corredor leva até a
cozinha, e me lembro do que aconteceu naquele cômodo no dia
anterior. As palavras ácidas e venenosas derramadas em minha
orelha fazem todo sentido agora e se tornaram mil vezes mais
perigosas também.
Não é preciso conhecê-la muito bem para chegar à conclusão
de que Alessia acredita que a Timoria assassinou Dante — e para
ser sincera, não seria nem um pouco impossível. Embora ela seja
obcecada por cassinos, minha intuição me dizia que aquilo não era
suficiente para fazê-la reagir daquela forma.
Trago o baseado e releio o e-mail pela trigésima vez.
Dante Romano foi assassinado. O maior filho da puta do
submundo finalmente teve o que merecia.
É inegável que me sinto frustrada e infeliz por não ter sido a
responsável pela sua morte. Nos últimos cinco anos, criei inúmeros
cenários onde eu o assassinava da forma mais cruel, lenta e
satisfatória possível. Sonhei com o dia em que o torturaria por horas
ininterruptas, rasgaria seu corpo e arrancaria cada um dos seus
órgãos com as mãos.
Coloco o computador de lado, me levanto e caminho até a
enorme parede de vidro que me fornece uma visão privilegiada da
cidade, já que minha casa fica em uma colina. O nascer do sol é de
tirar o fôlego daqui, mas nada se compara à imagem da cidade
iluminada e agitada nas noites de fim de semana.
Las Vegas é o meu lugar preferido no mundo. Se eu
recebesse uma ordem para me mudar a trabalho, não aceitaria.
Nunca desrespeitei uma ordem, mas não seria capaz de morar em
qualquer outro lugar.
Alessia compartilha desse mesmo sentimento, e é por isso
que nunca consegui me livrar das milhares de perguntas sobre o
seu sumiço. Uma vez, ela me disse que gostaria de morrer em
Vegas e se morresse em qualquer outro lugar, sua alma não
encontraria paz. Então por que ficou tanto tempo longe daqui, da
máfia que ela sempre disse ser o motivo pelo qual estava viva?
Suspiro e massageio as têmporas. Minha cabeça dói como o
inferno e sei que nenhum remédio vai resolver o problema, já que
ele tem nome e sobrenome. Preciso parar de pensar nela, senão
vou realmente passar mal.
Volto ao sofá e pego o celular no mesmo segundo em que ele
se acende com uma ligação de Kai.
— Ei — falo, ajeitando-me no estofado. — Já acordou?
— Não dormi — confessa com a voz rouca e cansada. —
Você está melhor?
— Na medida do possível, sim. — Trago o beck e solto a
fumaça. — E você? Como estão as coisas aí?
Depois que saíram da minha casa, ele e Sophie foram até o
nosso esconderijo secreto — o porão de um restaurante
abandonado — para investigar algumas coisas. Tentei me juntar a
eles, mas os dois me proibiram com a justificativa de que eu
precisava descansar.
— Você não está melhor — ele acusa, ignorando minha
pergunta.
— E por que isso importa? Estando bem ou não, preciso
aceitar o fato de que ela voltou e agora é a pessoa mais poderosa
da Vendetta. Não se preocupe comigo, Kai, já sou bem grandinha
para lidar com minhas merdas.
Ele respira fundo do outro lado da linha.
— Estou indo aí com a Sophie. Ela também não dormiu.
— Não. Eu vou sair.
Não pretendo ir a lugar algum, mas preciso ficar sozinha.
Preciso organizar os meus pensamentos e me acalmar, senão vou
acabar tomando atitudes das quais me arrependerei depois.
— Vai o caralho, Lyanna! Já estamos indo, fique aí.
Ele desliga na minha cara e eu bufo alto. Deixo o celular de
lado e deito a cabeça no encosto, mal percebendo quando meus
olhos se fecham de exaustão. Tiro um rápido cochilo, o qual é
interrompido por uma sequência de sons estranhos no lado de fora.
Resmungo e esfrego os olhos, me levantando para ir até a porta.
Apesar de estar usando só uma lingerie, não é nem de longe a
primeira vez que meus amigos me veem assim.
Só que as coisas mudam de um segundo para o outro.
No meio do caminho, um som alto e explosivo me lança para
trás e caio com força no tapete. Sinto dor instantânea na lombar e
não enxergo ou ouço nada além de um ruído. Começo a tossir
devido à poeira, mas graças aos treinamentos consigo ignorar a dor
e me recompor a tempo de cambalear até a escada enquanto vejo
minha porta, agora estraçalhada, caindo em pedaços no chão do
hall.
Alguém explodiu a porra da minha porta.
Subo apenas os primeiros degraus antes dos tiros
começarem e tento desviar de todos, abaixando e me esgueirando
pela escada. Quando estou prestes a virar o corredor do segundo
andar, uma bala passa de raspão em meu braço.
Grunho alto pela dor e aperto os olhos com força, o que me
faz tropeçar e cair no carpete. Me levanto depressa, tiro o primeiro
quadro da parede e jogo-o longe, fazendo o reconhecimento digital
do cofre enquanto os tiros reverberam próximos de mim.
Pego e coloco o colete à prova de balas com certo esforço,
encaixo uma Glock no coldre e seguro a AK-47. Posiciono-me atrás
da parede no final da escada, coloco o carregador no fuzil e puxo o
ferrolho para trás a fim de acionar a arma. Com a respiração
ofegante e a dor latejante no ombro, deixo só metade do rosto para
fora e disparo inúmeras vezes lá embaixo. Vejo uma silhueta
masculina atrás do batente, do lado de fora, e miro naquela região.
Ele logo revida e sou obrigada a recuar por alguns segundos.
Onde estão os malditos seguranças?
Eu poderia apenas enrolar tempo o suficiente para que os
meus amigos cheguem e matem o cara, mas quero que seja eu a
enfiar uma bala em sua cabeça. O filho da puta explodiu a minha
porta, está fazendo um baita estrago na minha casa e me fez
sangrar. Tudo isso enquanto estou vestindo uma maldita lingerie.
É uma questão de honra.
Volto a atirar em sua direção e ele se esconde, o que me dá a
oportunidade de descer a escada. Não tenho muitas alternativas,
então decido cessar os disparos quando paro ao lado do batente,
onde sei que ele vai se revelar para atirar. Mantenho a arma
levantada, na posição de disparo, e o dedo firme no gatilho.
Em menos de dois segundos, quando uma pequena parte de
sua cabeça é exposta, enfio mais de dez balas na sua testa.
Nossa proximidade faz com que seu sangue — que é muito
— jorre em meu rosto e o cubra de vermelho. A força dos disparos o
lança com força para trás e o corpo cai duro no chão. Permaneço
um minuto escondida atrás da parede, caso ele esteja
acompanhado, até que coloco o olho esquerdo para fora e olho ao
redor.
Os poucos soldados que protegem a minha casa estão
caídos no chão, baleados na testa. Presumo que o cara tenha
usado um silenciador, pois não ouvi barulho de disparos e sim de
algo semelhante a uma luta corporal.
Além deles, não há mais ninguém, mas não quero arriscar.
Ajo depressa e agarro o pé do infeliz, arrastando-o para o lado de
dentro. O trajeto de sangue mancha meu piso e me deixa ainda
mais irritada. Solto-o no hall e o examino por inteiro, rasgando suas
roupas e procurando por qualquer coisa que esteja prestes a
explodir — o que, felizmente, não encontro.
Mas encontro outra coisa, uma que me provoca tanta dor
quanto o ferimento em meu ombro.
A tatuagem da Vendetta.  
“Tenho estado confuso ultimamente
Vendo minha juventude escapar
Somos jovens demais para isso?”
Softcore | The Neighbourhood
 

10 anos atrás
 
Jones empurra dez fichas roxas para frente com o sorriso
largo e presunçoso direcionado a mim. Não esboço nenhuma
reação à afronta, mantendo o rosto impassível e entediado.
— Mais cem mil, Alessia. Está na hora de apimentar as
coisas — ele provoca, sorrindo em pura arrogância.
Na mesa, as quatro cartas comunitárias repousam no centro.
Os demais jogadores, que já desistiram, nos escrutinam em silêncio.
Assim como eu, eles apostam com Jones há um bom tempo e
conhecem exatamente o tipo de jogador que ele é: provocativo,
tagarela e soberbo.
O completo oposto de mim.
O que eles não perceberam, no entanto, pois estavam
ocupados discutindo sobre um novo contrato de mercadorias, é que
os olhos de Jones decaíram por um milésimo de segundo em suas
cartas após as três comunitárias serem estendidas. Ao mesmo
tempo, sua respiração travou, tão rápido que qualquer iniciante
jamais teria percebido. Desde então, ele não fecha a maldita boca,
zombando de cada um de nós de várias maneiras diferentes.
O que significa que ele está blefando e não tem porra
nenhuma em mãos.
O dealer[4] abre a quinta e última carta comum, mostrando um
Q de espadas. Sem mover um único músculo facial, empurro cinco
fichas roxas adiante, sinalizando que aumento cinquenta mil na
aposta. Benedict solta um riso baixo, como se já gritasse vitória, e
cobre a quantia que aumentei.
Então, é hora de mostrar nossas duas cartas individuais.
Quando viro as minhas e ele quebra o contato visual para avaliá-las,
abro o primeiro sorriso de toda a partida ao ver seu semblante
caindo devagar.
Tenho um Ás e um K de espadas. Na mesa, além de duas
outras, há um Q, J e 10 de espadas.
Fiz um Royal Flush[5] e ganhei seiscentos mil dólares.
Os outros quatro jogadores riem alto da derrota de Jones,
dando tapinhas orgulhosos em meu ombro. Com os olhos
estreitados e um olhar fulminante, o homem de quase sessenta
anos levanta o indicador e chama um dos seus homens para perto.
Três maletas pretas são colocadas à minha frente conforme
Benedict é caçoado pelos seus irmãos. Tenho certeza de que ele
está se segurando para não sacar a arma e me dar um tiro, já que é
um dos piores perdedores que conheço. Todas as vezes que perdeu
para mim — e não foram poucas —, ele sempre pareceu capaz de
me estrangular a qualquer momento.
Mesmo assim, insiste em apostar comigo. Não recuso jogos,
tampouco dinheiro, então nunca reclamo.
— Você não aprende nunca, Jones — meu tio, Giorgio, caçoa
entre risos baixos. O charuto pende no canto da sua boca à medida
que ele inclina a garrafa de uísque e enche seu copo. — A garota
acaba com a sua raça toda vez, porra. Pare de ser estúpido.
A garota.
Ser chamada de “garota” está no topo da lista de coisas que
ativam minha raiva primitiva. Alguns dos meus tios, membros do
Conselho da Vendetta, têm esse infeliz hábito desde que comecei a
me envolver na organização.
— Alessia — corrijo, atraindo seu olhar. — Não “garota”.
Alessia.
Tenho dezoito anos, mas já faço mais pela organização do
que os cinco reunidos e, mesmo assim, não recebo metade do
respeito que soldados mais novos, inexperientes e frouxos recebem.
Não importa o que eu faça, sinto que para a maioria das pessoas
nunca estarei no mesmo nível de qualquer homem, embora eu já
tenha salvado a vida de inúmeros deles. E nunca tenha precisado
da ajuda de nenhum.
Giorgio sorri largo e ergue o copo em concordância.
— Perdoe-me, querida. Força do hábito.
Se eu sacasse a arma da cintura e atirasse em seu ombro,
também poderia dizer que era força do hábito?
— A garo… Alessia já tirou mais de cinco milhões de dólares
de todos nós, irmãos — meu outro tio, Mario, diz com um sorriso. No
fundo, parece que ele está caçoando de mim. — Deveríamos
colocá-la como nossa representante nas partidas externas.
As palavras atraem minha atenção de imediato. Crispo as
sobrancelhas, tentando entender se ele está falando sério ou se é
só mais uma de suas brincadeiras. Diante da minha reação, ele
meneia a cabeça para cima e para baixo.
— Sou um velho de cabeça dura, mas reconheço quando
vejo uma mina de ouro. — Ele se vira para Giorgio, aponta o copo
em sua direção e continua: — Já pensou em vê-la arrancando
milhões de dólares dos ratos da Cosa Nostra?
— Está louco? Eles a comeriam viva — o outro responde,
como se ele não tivesse perdido duzentos mil dólares para mim
quando eu tinha quatorze anos. — A garota é boa, mas ninguém
supera os jogadores deles.
É a maior mentira que já saiu da sua boca e todos nós
sabemos disso.
Estou prestes a retrucá-lo quando sou interrompida pela porta
sendo aberta. Não preciso olhar por cima do ombro para saber
quem está caminhando até nós, pois a reação de meus tios já
revela.
— Irmão! — Giorgio se levanta, cumprimenta-o com um
aperto de mãos e aponta para as maletas. A postura despojada,
com uma mão no bolso e a outra segurando o copo, me irrita. —
Sua filha acabou de arrancar sessenta mil dólares do Jones. O
otário está quieto há quase cinco minutos, não é um milagre?
Deslizo os olhos até Dante e encontro seu semblante
fechado. Ele não gosta que eu aposte com os meus tios. Em sua
opinião, é “desrespeitoso” tirar dinheiro da própria família. Um
grande discurso hipócrita, afinal eles apostam entre si a todo
momento.
O real problema é outro; é tudo que ouço e descubro durante
as partidas. Apesar de ser praticamente uma executora da máfia,
eles ainda me veem como alguém inferior e, por isso, não se
importam em conversar abertamente sobre os negócios na minha
frente. Desde que comecei nos jogos, descobri informações que
alguém na minha posição — apenas uma soldada, por enquanto —
nunca teria acesso.
Eles acreditam que nunca vou ser mais do que isso e esse é
o pior erro que poderiam cometer.

Viro o shot de tequila goela abaixo, bato o copo no balcão de


madeira e chamo o barman com os dedos. Duvido que ele tenha
mais de dezesseis anos, mas quem sou eu para julgar o moleque?
Na sua idade eu já tinha álcool, sangue e droga nas mãos.
— Uísque com gelo — peço.
Assim como da primeira vez, seus olhos castanhos
escrutinam todas as partes ensanguentadas da minha roupa, bem
como as mãos. Ele não consegue disfarçar o pavor que atravessa
seu semblante, mas finjo não perceber. Não me importo, na
verdade.
Depois de assentir, corre para longe. Examinando ao redor,
agradeço por não ter quase ninguém no bar. Encontrei-o por acaso,
no caminho de volta da missão, e embora tenha o aspecto velho e
um cheiro desagradável, a falta de clientes me agrada. Já basta o
garoto quase mijando nas calças por chegar perto de mim.
Através da pequena janela à minha paralela, vejo um carro
estacionando em frente ao bar. Enfio uma mão por dentro da
jaqueta, onde uma arma repousa no coldre, e saco a faca da cintura
com a outra. Deixo-as escondidas enquanto a figura, que noto ser
feminina, faz o caminho até o interior do lugar. Está um completo
breu lá fora, então não consegui enxergar o seu rosto.
Quando a porta range e eu tenho uma visão mais clara da
mulher, fico indecisa entre rir do destino ou dizer a ela que é um
péssimo dia para me seguir e tentar me colocar numa armadilha.
Os cabelos castanhos balançam à medida que seus passos a
levam até um dos banquinhos enferrujados, em frente ao balcão.
Estou sentada no último assento, isolada dos demais e na sua
diagonal, onde a luz fraca quase não alcança e me deixa um pouco
escondida. Por isso, acho que ela não vai me ver.
Sua roupa me faz cerrar as pálpebras; parece que ela saiu de
um evento importante e veio direto para cá, um bar velho e
fedorento fora de Las Vegas. Seu vestido curto é preto, as alças
finas caem em um decote quadrado e ele brilha tanto que quase me
cega, mesmo de longe. Acredito que ela esteja usando uma
maquiagem básica, já que a única coisa que consigo enxergar com
clareza é o batom vermelho em seus lábios.
É a primeira vez que vejo Lyanna Bellini pessoalmente.
Já a vi inúmeras vezes antes, mas só em fotografias. É a
primeira vez cara a cara, afinal, ela ainda tem dezesseis anos e
Alessandro não permite que ela atue em campo, segundo as más
línguas.
Vejo-a murmurar algo para o garoto, que tem a postura
oposta à usada comigo. Enquanto posso jurar que ele vai se cagar
de medo a qualquer momento quando o chamo, ele parece
hipnotizado por Lyanna.
Ele corre para entregar a minha bebida, sequer me olhando
desta vez, e reviro os olhos ao notar seu claro desespero para
atendê-la. Se ele soubesse que está interessado na herdeira da
máfia e que há não só uma, mas duas mafiosas em seu bar, cagaria
na calça.
Lyanna abaixa a cabeça e começa a mexer no celular. Quero
chegar mais perto para analisá-la e descobrir se ela está aqui por
coincidência do destino ou se cinquenta homens armados estão do
lado de fora à minha espera.
Praguejo baixinho e tomo um gole do uísque. Respiro fundo e
percorro os olhos ao redor, demorando-me um pouco mais na
janela. Ela dirigiu até aqui sozinha? Não é possível. Há algo de
errado.
Um som chama minha atenção e minhas sobrancelhas quase
atingem o teto quando encontro sua careta chorosa. Ela coloca a
mão na boca, para ocultar outro soluço, e acho a cena esquisita pra
caralho.
Há duas opções: 1) Alguma merda aconteceu e suas lágrimas
são, de fato, verdadeiras; ou 2) É uma armadilha. A segunda me
parece muito mais provável, afinal, por que Bellini escolheria esse
lugar insalubre, no fim do mundo, para afogar as mágoas?
— Está tudo bem? — o menino pergunta, preocupado,
colocando um copo do que presumo ser vodca na frente dela.
Pelo visto, todos os adolescentes do submundo são fodidos
da cabeça. Eu não esperava que ela estivesse inclusa, para ser
sincera; sua vida parece um grande conto de fadas. Aposto todo o
dinheiro que ganhei na última semana que Lyanna nunca enfiou
uma faca no peito de alguém.
Até porque, pelo que ouvi, ela é uma nerd; prefere mexer em
computadores do que atuar em campo. A parte virtual é
imprescindível nas missões, não posso negar, mas acredito que ela
precise encontrar um equilíbrio se quer alcançar o alto escalão da
máfia algum dia.
Em resposta à pergunta do pirralho, sua cabeça meneia em
afirmação. Porém, o gole único e desesperado que ela dá diz o
contrário. Soltando uma lufada de ar, levanta o copo em direção ao
garoto, pedindo por mais.
Arranco o celular do bolso e digito uma mensagem para
Jayden.
Alessia Romano: Consegue descobrir se aconteceu alguma
merda na Timoria hoje? Nas últimas horas, pra ser mais exata.
Ele visualiza, mas não responde. Nos cinco minutos que se
passam, Lyanna bebe mais um copo e seu rosto sofre diversas
mudanças de humor. Ela foi do semblante choroso ao sério, do sério
para o furioso e do furioso para o inexpressivo.
A tela se ilumina com a resposta de Jay.
Jayden King: Ainda não tenho detalhes, mas parece que
está rolando um jantar na casa dos Bellini com outra família. Estou
tentando descobrir quem são. Por quê?
Volto a fitá-la. Sua atenção está concentrada na tela do
celular, os dedos digitam em frenesi e as sobrancelhas estão
crispadas em raiva. Pondero sobre fazer ou não o que minha
curiosidade — e minha intuição — pede, até que resolvo ceder.
Alessia Romano: Consegue acessar as mensagens de
Lyanna Bellini? As desse exato momento. Não pergunte o porquê.
Torço para que ela não esteja usando um celular descartável
ou tenha um sistema forte instalado no aparelho. Apesar de saber o
quão filha da puta estou sendo, preciso ter certeza de que não é
uma armadilha.
E também não me importo. Ela é uma inimiga e não hesitaria
em fazer a mesma coisa comigo.
Jayden King: Caralho, tô me sentindo mal pelo que acabei
de ler. Vou pro inferno junto com você.
Ele manda uma foto da tela do computador com as
mensagens. Lyanna está conversando com uma tal de “Sophie”, a
qual me recordo ser sua melhor amiga.
Ly, cadê vc?
Sinto mt pelo q aconteceu, amiga :(
Seu pai não fez por mal, ele ñ sabe…
Sophie, ñ me importo se ele sabe ou ñ.

Ele me arranjou um casamento!!!!

Eu ñ sabia de NADA sobre isso e ele só jogou na mesa do jantar

que fez um acordo c o David pra me casar c o filho dele.

Caramba, tenho 16 anos!!!! Ñ é cedo demais pra ele me

enfiar num casamento de negócios???


N to defendendo ele, tbm achei ridículo!
Mas vc sabe como as coisas funcionam…
Ñ to nem aí, Soph. Ñ vou me casar com ele

ou c qualquer outro homem.


Meu pai vai ter q aceitar.
Releio no mínimo cinco vezes e, mesmo assim, não sei se
interpretei as últimas mensagens da maneira correta. Bellini pode ter
dito isso porque não tem nenhum interesse em se casar algum dia,
mas… ela também pode ter dito isso porque não se interessa por
garotos.
Passo o polegar na sobrancelha em um gesto nervoso e
reflexivo. De todas as possibilidades que cogitei, nenhuma passava
perto disso.
Lyanna estava chorando porque seu pai a colocou em um
casamento arranjado, não porque estava encenando para que eu
caísse numa armadilha. Ela não deve fazer ideia de que estou aqui,
assistindo ao seu sofrimento e lendo seu desabafo.
Meu estômago revira, por algum motivo, e decido ir embora.
Deixo o dinheiro no balcão e saio em silêncio, sem atrair a atenção
dela. Do lado de fora, espio o carro luxuoso no qual ela veio e chego
à conclusão de que, definitivamente, Bellini roubou o primeiro carro
que viu na garagem do pai e fugiu do jantar.
Mais tarde, quando acendo um cigarro na varanda do quarto
após transar com uma mulher qualquer, ainda estou pensando em
seu rosto coberto de lágrimas e nas mensagens que eu li.
Talvez nós duas tenhamos algo em comum, afinal de contas.
E por alguma razão, isso me instiga.
“Me diga o que eu preciso fazer
Para me afastar de você
Para me impedir de desmoronar
Ladeira abaixo com você”
Devil Side | Foxes
 

 
Kai e Sophie chegam cinco minutos depois e falam comigo
aos berros, mas não consigo me mover. Não consigo piscar, respirar
ou falar. Tudo que consigo fazer desde que encontrei a tatuagem é
encará-la.
Ela enviou alguém para me matar.
Não Dante. Ela.
— LYANNA! — Sophie grita, agachada ao meu lado.
A explosão e os tiros devem ter afetado a minha audição,
pois é como se ela estivesse a quilômetros de distância. Mesmo
assim, viro o rosto devagar e me deparo com seus olhos verdes
arregalados em puro desespero. Escuto um murmuro e presumo
que seja Kai falando com ela, já que Wilson quebra nosso contato
visual e olha para o lado. Alguns segundos depois, seu olhar desce
até um ponto específico do corpo morto.
Até a tatuagem.
Minha visão embaça e por mais estúpida que isso me faça
sentir, percebo que estou chorando. Minhas lágrimas carregam
raiva, frustração e dor. Raiva, muita raiva.
Ela enviou alguém para me matar.
Eu deveria, mas não consigo acreditar. Depois de tudo, não
deveria ser tão chocante assim, só que a parte racional do meu
cérebro parece anestesiada, recusando-se a acordar para a
realidade de que não significo nada para ela.
Nunca signifiquei.
— Lyanna! — Sinto um aperto em meu braço e Sophie tenta
me levantar. — Lyanna, levanta, precisamos te tirar daqui!
Me coloco em pé, solto um soluço baixo e começo a
cambalear até a escada. Estou tão desnorteada que tropeço duas
vezes no caminho e só não caio porque duas mãos firmes envolvem
minha cintura.
— Lyanna — é Kai quem me segura e diz: — Nossos homens
já estão a caminho, mas nós precisamos ir. Você foi baleada, pelo
amor de Deus! Vamos logo!
— Vocês podem ir — respondo em um sussurro. — Eu tenho
que fazer uma coisa.
— Nem fodendo! — exclama, colocando seu corpo alto em
frente ao meu para bloquear a passagem. — Não vou te deixar ir a
lugar nenhum desse jeito! Você está sangrando e seminua, per
l’amor di Dio!
Não me importo com a minha falta de vestimenta. A única
coisa na qual consigo pensar é nela.
— Kai… — Respiro fundo e aperto a AK-47 entre os dedos
para extravasar a dor no ombro. — Te dou cinco segundos para sair
do meu caminho ou vou atirar em você.
Não vejo seu rosto e nem preciso. Conheço-o bem o
suficiente para saber que ele está me olhando da forma mais
reprovadora possível.
— Você vai atrás dela.
Não é uma pergunta, mas uma afirmação. Me viro, vou até a
mesinha de centro da sala e apanho a chave do carro. Caminho até
a porta da garagem, que fica nos fundos, e Kai me segue até o
carro. Ignorando-o, eu entro e fecho a porta.
E ele faz o mesmo.
Repouso a arma no colo desnudo, passo as costas das mãos
nos olhos e pisco forte para desembaçar a vista. Meu rosto ainda
está coberto de sangue, mas não me importo. O ferimento em meu
ombro também sangra um pouco e suja meu banco. E, mais uma
vez, não me importo.
— Saia do carro — ordeno, olhando-o pela primeira vez.
Sua expressão parece lançar milhares de facas em minha
direção.
— Você vai enfrentar a Vendetta desse jeito, Lyanna? E de
lingerie? — indaga, incrédulo.
— Foda-se. Saia do carro.
— Se acha que vou te deixar ir atrás dela nesse estado e
sozinha, não me conhece.
— Ela enviou alguém para me matar, porra! — berro, batendo
com força no volante. — Se acha que vou sentar e chorar no meu
sofá, não me conhece!
Jeon suspira, balança a cabeça em negação e coloca as
mãos no rosto.
— Saia da merda do carro, Kai! Isso não é sobre você!
Sem dizer nada, ele me obedece e bate a porta com força.
Não dou-lhe tempo para repensar e canto pneus, saindo da
garagem e correndo muito mais do que o permitido em lei.
Minha mente é a réplica perfeita de uma noite de tempestade
violenta. Há uma parte de mim que está muito, muito triste, só que
mal consigo enxergá-la em meio a raiva primitiva e devastadora.
Alessia enviou alguém para me matar.
Como ela pôde jogar tão baixo? Como pôde ser covarde ao
ponto de enviar alguém ao invés de fazer si mesma o trabalho?
A tela multimídia do painel se ilumina e vejo que Sophie está
me ligando. Deixei o celular em casa, mas por conta de um
aplicativo que desenvolvi e instalei no carro, consigo monitorar o
telefone no veículo mesmo estando longe.
Não vou atender, contudo. Meus amigos querem me impedir
de fazer algo que reconheço ser impulsivo e imprudente, só que
eles não entendem. Não entendem o quanto essa tentativa de
assassinato me machucou — e não porque ainda sinto algo por
Alessia, mas porque percebi mais uma vez o quanto fui e continuo
sendo irrelevante. Todas as coisas que fiz e tudo que arrisquei para
estarmos juntas não significaram nada.
Às vezes, eu gostaria de ser menos emotiva. Gostaria de ser
capaz de enterrar essa parte bem fundo dentro de mim, como ela
fez.
Quando chego no limite do bairro que separa nossos
territórios, piso no acelerador e entro na área rival. Os soldados são
discretos e se camuflam entre o povo, o que não me deixa saber se
já fui notada. Embora, seja claro que fui, já que estou dirigindo um
carro de luxo a pelo menos 100 km/h em rodovia urbana, passando
nos sinais vermelhos e quase provocando dezenas de acidentes de
trânsito.
Minha respiração está tão ofegante que sinto dor no peito ao
respirar, o ferimento lateja cada segundo mais, jorrando sangue, e o
colete à prova de balas me sufoca. Por isso, apenas com a mão
direita, arranco-o com raiva e jogo no banco do passageiro.
Tenho plena consciência de que vou me colocar na mira de
homens armados — e inimigos — apenas de lingerie e com o rosto
coberto de sangue, assim como meu ombro e minhas mãos. E
mesmo assim, não consigo me importar.
Em cinco minutos, avisto o enorme terreno do Fortuna. Sei
que a entrada principal, a da frente, é apenas para os civis e a de
trás, para o submundo. Apesar de acreditar que eles merecem um
escândalo, não vou encontrar Alessia nos prédios comuns, então
sou obrigada a dar a volta e pegar o caminho para os fundos.
Sequer estou tão próxima assim do portão quando todos os
homens formam uma barreira humana e levantam suas armas. Não
entendo por que eles não começam a atirar, mas agradeço a
gentileza.
Nem mesmo quando freio bruscamente, saio do carro e ergo
minha AK-47, eles atiram. Talvez seja porque o pânico fica
escancarado no semblante de cada um deles ao descer os olhos
pelo meu corpo seminu ou, em uma hipótese menos provável, por
ordens superiores.
— Abaixe a arma e coloque as mãos para cima — um deles,
o qual presumo ser o líder do grupo, ordena em um tom alto e firme.
— Quero Alessia Romano aqui — falo, puxando o ferrolho do
fuzil para trás e assistindo-os fazer o mesmo. — Agora.
— Abaixe a arma — ele repete, dando um passo adiante.
Mal sabe o loiro que já lidei com pessoas muito mais
ameaçadoras do que ele.
— Que tal abaixar a sua? — desdenho, levantando as
sobrancelhas.
De esguelha, vejo o cara da ponta colocando a mão no
ouvido, provavelmente no fone usado para se comunicar com os
demais. Depois, ele se aproxima do outro em passos hesitantes,
sem tirar os olhos dos meus, e sussurra algo em seu ouvido.
O provável líder franze de forma sutil as sobrancelhas e
responde no mesmo tom baixo. Não consigo escutar, mas eles
parecem receosos.
Antes que possamos trocar mais uma farpa, o portão é aberto
depressa e avisto uma figura masculina, alta e musculosa
atravessando os soldados para se aproximar de mim.
Jayden King.
Sempre gostei dos amigos de Alessia. Jayden e Yuna sempre
me trataram bem e, segundo ela, nunca disseram nenhuma merda
sobre o nosso relacionamento. Todo mundo da Vendetta é bem mais
imprudente e “foda-se” do que nós, então o insano não os assusta;
os instiga.
Seus olhos se mantêm nos meus e desconfio que seja por
respeito, já que é impossível não notar que estou usando apenas
calcinha e sutiã.
— Chame ela — exijo. — Chame ela, King.
— Não está em posição de exigir nada, Bellini — ele revida,
arisco. — Está no nosso território, apontando sua arma para nós.
— Você tem três minutos, Romano! — aumento o tom,
torcendo para que Alessia esteja me vendo ou ouvindo de alguma
maneira. — Três minutos ou vou estourar o miolo de todos eles,
começando pelos do seu melhor amigo.
Jayden espreme os olhos e morde o interior da bochecha.
— Pelo seu próprio bem, Bellini, abaixe a arma.
— Ela tem dois minutos — contesto, ignorando-o.
— Alessia está ocupada. Abaixe a arma e vamos…
O portão é aberto com tanta força que até mesmo os
soldados dão um sobressalto com o barulho. Meu corpo estremece
quando a vejo correndo em minha direção, o semblante furioso
como nunca vi antes e os olhos, num tom escuro de verde,
fulminantes.
Mas quando nota o que estou vestindo, seus passos
estagnam e a mandíbula aperta. É satisfatório pra caralho
contemplar a fúria em seu rosto. O sentimento vacila, no entanto, ao
desviar sua atenção até o ferimento em meu ombro.
Ainda lateja. Ainda sangra. E ainda dói menos do que o que
ela fez.
Alessia volta a avançar em passos fundos e violentos. Sua
jaqueta de couro é arrancada com raiva conforme fica cada segundo
mais próxima de mim até que seu peito pressiona o cano do fuzil.
Com a expressão raivosa, envolve a jaqueta em meus ombros no
que acredito ser uma tentativa de esconder meu corpo seminu.
Levanto a arma e aponto para a sua testa. O movimento faz
seus homens avançarem em ameaça, prontos para enfiar uma bala
na minha cabeça. No mesmo segundo, ela levanta o dedo indicador
e respira fundo. Fecha os olhos por uma fração de segundo e, ao
reabri-los, se dirige a eles ao ordenar:
— Não se aproximem e abaixem as armas.
Nada. Ninguém se move.
— Qual é a parte de “abaixem as armas” que vocês não
entenderam, porra? Vou precisar cortar a mão de cada um?
Os homens obedecem, mas mantém os dedos nos gatilhos.
Sinto vontade de dar um, dois, três, inúmeros socos na cara
dela. Se minhas mãos não estivessem ocupadas, jogaria aquela
jaqueta estúpida no chão e pisaria em cima. O perfume que emana
da peça revira o meu estômago e parece intensificar a minha cólera.
— Elliot — fala, em um tom contido.
O loiro, que continua mais à frente dos demais, responde:
— Sim, chefe?
— Vejo que há um ferimento de bala no ombro de Bellini.
Alessia se vira, bloqueando uma parte da minha visão por ser
mais alta do que eu. Assisto-a sacar um revólver da cintura e franzo
o cenho em confusão.
— Então… — Ela puxa o ferrolho para trás, ativando a arma.
— Qual de vocês precisarei matar?
Porra, ela só pode estar de brincadeira comigo.
— Nenhum de nós atirou nela, chefe. — Não consigo vê-lo,
mas o nervosismo em sua voz trêmula é explícito. — Ela chegou
assim, cheia de sangue, baleada e… e…
E seminua.
— Espero mesmo que não tenha sido nenhum de vocês. Não
sejam estúpidos de machucarem a filha do inimigo se não
estivermos em guerra.
Se estivéssemos, ela permitiria, então?
— Não vamos levá-la para o subsolo? — um deles pergunta.
O subsolo da Vendetta é famoso e muito frequentado por
Alessia. Nunca o conheci, mas a fama diz que ela, especialmente na
sua época de Executora, cometeu inúmeras atrocidades naquele
lugar.
— Essa decisão não cabe a você — diz, ríspida. — Entrem.
Ela se vira para mim e vejo a veia do pescoço saltada, as
pupilas dilatadas e o olhar mortal. Está furiosa, mas não tanto
quanto eu. Nem perto.
— Alessia… — Jayden começa e é interrompido pela mão
dela, decorada com diversos anéis, levantando-se no ar.
— Leve-os para dentro, King. Não vou repetir a porra da
ordem.
Não tenho certeza se todos já sabem sobre a morte de Dante
e a consequente liderança de Alessia, porém, mesmo se não
souberem, são obrigados a obedecerem-na.
Sem contestar, Jayden leva todos consigo e fecha o portão.
Ela segura no meu pulso e nos puxa para longe, sem se importar
com o fuzil ainda em minhas mãos. Quando já estamos afastadas o
suficiente, começa:
— Tem noção do que acabou de fazer, porra? — vocifera. —
Tem noção da situação na qual você nos colocou vindo até aqui?
Acha que os meus homens não vão dizer por aí que tentei proteger
a inimiga? Desde quando você é estúpida, inferno?
— Se me chamar de estúpida novamente, vou atirar nessa
sua cara imunda até ficar irreconhecível.
Alessia respira fundo, passa as mãos pelo rosto e balança a
cabeça de um lado para o outro, parecendo incrédula. Depois, seu
olhar alcança o meu.
— Quem fez isso com você? Me dê um nome e vou torturá-lo
até não restar uma gota de sangue em seu corpo.
Minha mão atinge sua bochecha esquerda com força.
Seu rosto não se move com o impacto, mas as pálpebras
fecham por dois segundos antes de cravarem nas minhas. A região
fica vermelha no mesmo segundo, com o formato da minha mão
marcado.
— Não finja que se importa — quase cuspo as palavras. —
Não seja cínica.
— Não estou sendo — afirma, entredentes.
Meu tapa feriu seu orgulho. Ela está se segurando para não
liberar seus demônios.
— Juro pela minha própria vida, vou dar outro tapa na sua
cara se continuar com essa merda. Aja como a adulta que você é e
assuma o que faz, caralho! Passou cinco anos longe e se tornou
uma maldita covarde? — Soco seu peito com força, usando a mão
livre, e ela solta uma respiração profunda. — Vamos lá, admita o
que você fez!
Dou mais um soco. Depois, mais outro. Mais outro e mais
outro, até que minha visão volta a ficar embaçada e sinto as
lágrimas escorrendo pelas bochechas. Sem perceber, comecei a
gritar enquanto tentava descontar a raiva e a tristeza nos golpes em
seu peito.
— Você não tinha nenhum direito de voltar! — berro. — Não
tinha o direito de voltar para a minha vida depois do que fez! Não
tinha o direito de me usar para conseguir o que queria!
Alessia segura meus pulsos, me impedindo de continuar.
Soluço alto e puxo os braços em um solavanco, me livrando do seu
aperto.
— Não tem ideia do quanto odeio você — digo, enxugando o
rosto.
Aproveitando os dedos ensanguentados, os levo até sua
bochecha e espalho o líquido vermelho em sua pele. Ao contrário do
que eu esperava, ela não tenta me impedir de tocá-la mais uma vez.
— Esse é o sangue do homem que você enviou para me
matar, sua covarde. Na próxima vez, terei o seu na minha mão.
No mesmo instante, sua expressão muda drasticamente. A
falsa confusão que a preenche me deixa ainda mais furiosa.
— De que porcaria você está falando, Bellini?
— Já avisei, Romano, pare com esse cinismo insuportável. —
Pressiono o cano do fuzil em seu peito e Alessia o segura com
força, mas não tenta afastá-lo. Engano dela pensar que eu não
apertaria o gatilho. — Quero destruir você. Quero te fazer sentir tudo
que senti quando você fez aquilo e sumiu; quando cinco anos se
passaram sem que eu recebesse uma explicação, um pedido de
desculpas ou qualquer merda que fosse. Tudo que senti hoje,
quando vi a tatuagem da sua máfia no homem que tentou me
assassinar em minha própria casa.
Sua cabeça balança de um lado para o outro freneticamente
e algo semelhante a desespero brilha em seu olhar.
— O quê?! Não sei do que você está falando! — esbraveja.
— Acha que sou esse tipo de pessoa, Bellini? Sabe muito bem que
nunca enviei ninguém para fazer o meu trabalho. Sujo minhas
próprias mãos desde que me entendo por gente e você sabe disso.
Cogito, por um segundo, acreditar nela. A agonia parece tão
crível e verdadeira que, no fundo, me pergunto se devo acreditar.
Minha visão embaça e respiro fundo para engolir o choro.
Alessia nunca foi de demonstrar sentimentos de forma explícita,
quaisquer que fossem, mas agora… agora, ela parece — e soa —
tão apavorada que mexe comigo. Mexe com a minha cabeça e com
a determinação que construí no caminho até aqui.
Ela está te manipulando, uma vozinha sussurra no meu
ouvido.
— Estou cansada, cansada pra caralho de lidar com você —
confesso, reprimindo um soluço. — Você desapareceu como a porra
de uma covarde depois de me destruir, mas nunca, nem por um
segundo, consegui te tirar da minha cabeça. Pensei nas diversas
formas de me vingar e tentei, inferno, tentei muito descobrir algo. Fui
obrigada a conviver com a realidade de que você sairia impune pelo
que fez e isso me enfiou em um buraco muito, muito escuro. Um
buraco que você nunca será capaz de entender, porque é
desumana demais para isso.
— Lyanna…
— Não! — Empurro o cano e vejo sua respiração falhar. —
Você não me chama pelo meu nome ou por qualquer apelido,
entendeu?
Ela cerra a mandíbula e fecha os olhos. Sua respiração está
tão ofegante quanto a minha, embora por motivos completamente
diferentes.
— Quando percebi que você enviou um soldado qualquer
para me matar, mesmo eu não tendo feito nada todos esses anos,
me senti um lixo. — Balanço a cabeça e sorrio em ironia. — Foi
você quem me destruiu, Alessia. Foi você quem acabou com tudo
entre nós da forma mais cruel possível. Foi você, não eu. E agora,
por suposições ridículas da sua cabeça, decide enviar um filho da
puta à minha casa?
— Não. Enviei. Ninguém.
— Acha que vou acreditar que seus homens agiram por conta
própria? Eles são um bando de cachorros domésticos, Romano, só
faltam lamber a porra da sua bunda.
Ela tenta afastar o fuzil que nos separa, mas não permito.
— Vá em frente — me incentiva, os olhos brilhando em
desafio. — Se me odeia tanto, me mate agora. Te garanto que não
terá outra oportunidade nunca mais, Bellini.
Só que seria fácil demais. Fácil e rápido, nada semelhante à
vingança que tanto planejei.
— Você não merece morrer assim. — Abaixo a arma e
Alessia entende como um sinal para se aproximar. Em resposta aos
seus dois passos adiante, dou dois passos para trás. — Seria muito
rápido e indolor. Você merece a pior das mortes e, acredite em mim,
você terá.
Tiro sua jaqueta dos ombros e a jogo nela. A peça bate em
seu peito e cai direto no chão.
— Se mexer comigo novamente, não virei sozinha. E não vou
hesitar da próxima vez.
Me viro e caminho até o carro. Entro, bato a porta e ligo o
motor. Antes de dirigir para longe, digo:
— Não se esqueça de ir ao médico. Ouvi dizer que
problemas cardíacos são hereditários.

“Você deveria me ver usando uma coroa


Eu vou mandar nessa cidade de
Me veja fazer eles se curvarem
Um por”
you should see me in a crown | Billie Eilish
 

Espalho as cartas em formato de meia lua. Após olhar para


cada uma delas, junto-as e embaralho novamente. Repito o
processo mais três vezes até que a porta é aberta com força. Se
não estivesse tão absorta no baralho, teria arremessado meu copo
em seja lá quem foi audacioso o suficiente para entrar no meu
escritório sem bater.
— Alessia, pelo amor de Deus — Jayden diz, se
aproximando. — Você destruiu a porra do escritório inteiro!
— Não exagere — murmuro, distribuindo as cartas na
superfície.
Não importa quantas vezes eu embaralhe e quantos cortes
faça no baralho, a maldita Dama de Espadas aparece todas as
vezes. É como uma maldição que me persegue.
— O Conselho já está na sala — informa.
No dia anterior, convoquei uma Reunião com o Conselho da
Vendetta. Contudo, eu não esperava que Lyanna aparecesse como
um furacão na minha porta e me desconcertasse completamente.
Depois que ela foi embora, eu estava tão furiosa que precisei
jogar minha arma longe para não atirar no primeiro idiota que visse.
Todos que me encontraram no caminho deram um passo para trás,
como se estivessem com medo, e descontei toda minha ira no que
costumava ser a sala de Dante.
É minha agora, então posso fazer a porcaria que eu quiser
com ela. Por isso, destruí tudo.
Preciso descobrir quem foi o responsável pela tentativa de
assassinato dela. Não vou dormir, comer ou até mijar enquanto não
souber quem são os traidores. Seria mais fácil se Lyanna me
deixasse ver o cara que matou, mas ela atiraria no meu peito antes
que eu pudesse pisar em frente à sua porta.
Preciso dos nomes. Preciso levá-los ao subsolo e me divertir
como nos velhos tempos. Preciso lhes dizer que ninguém toca no
que é meu; ninguém machuca quem é minha. E depois de
vislumbrar o choque em seus rostos, preciso rasgar suas gargantas
e cravar minha inicial em suas bochechas.
— Eles estão impacientes — Jay prossegue, na esperança
de que eu guarde o baralho e lhe dê atenção. Não posso, no
entanto, pois ainda preciso me acalmar. — Posso dar uma desculpa,
se você preferir.
— Não — respondo, virando a carta no topo do monte entre
os meus dedos. Quando vejo que não é uma Dama, suspiro em
alívio. Coloco o baralho no estojo e o guardo no bolso da jaqueta. —
Vamos.
King me segue em silêncio até chegarmos à maior Sala de
Reuniões do Fortuna. Enfrentá-los será um verdadeiro inferno e eu
pretendia estar calma e paciente para quando este momento
chegasse, só que é o oposto de como estou.
Não consigo pensar em nada além de Lyanna. Estou cega de
raiva e não tenho ideia de como serei capaz de conduzir uma
reunião tão importante sem atirar em algum dos homens que não só
me subestimam, como também querem tomar o meu lugar.
Giro a maçaneta, porém, antes que consiga abrir a porta, Jay
segura meu pulso. Olho-o por cima do ombro e ele diz:
— Se não estiver bem, feche o zíper da jaqueta. Vou
entender como um sinal para interromper a reunião e tirá-los daqui,
ok?
Assinto, ainda que não planeje interromper nada. Apesar de
tudo, é um momento crucial para o futuro da organização.
Mais uma vez, minha entrada é interrompida. No entanto,
desta vez, por alguém que não deveria estar aqui.
— Alessia?
Meu corpo congela e estremece. Encontro-a mais à frente, no
começo do corredor, e meus pulmões esvaziam. Estou sem ar e
petrificada, assistindo-a se aproximar em passos desesperados.
Quando me alcança, Jayden dá alguns passos para o lado e nos
deixa cara a cara.
Seus braços me envolvem em um abraço tão apertado que
meu peito dói. Retribuo, serpenteando sua cintura, e fecho os olhos
ao descansar o queixo no topo de seus cabelos loiros. Com uma
facilidade absurda, me sinto mais calma apenas ao sentir seu
perfume. O mesmo de antes.
— Você voltou — murmura, a voz abafada pelo meu peito.
Ouço-a soluçar e chorar. — Você voltou, Alessia.
Planto um beijo em seus fios e ela afasta o rosto, me olhando
de baixo. Sempre foi mais baixa do que eu, mas cresci ainda mais
nos últimos anos, então ela precisa erguer a cabeça para me olhar
de tão perto. Um sorriso enorme cresce em sua boca, tão grande
que faz seus olhos formarem uma linha fina.
— Oi, Barbie — sussurro, deixando um beijo em sua testa. —
Senti sua falta.
— Senti sua falta, Ale.
Sienna Romano é a pessoa que eu mais amo no mundo.
Minha irmã é o oposto de mim: expressiva, sorridente e positiva
demais. Quando eu tinha sua idade, vinte e um, já tinha uma
reputação horrenda em todo o submundo. Ela, por outro lado, é
como a princesa da máfia, querida e protegida por todos, embora
não precise de proteção. Fiz questão de ensiná-la a lutar e se
defender desde os seus sete anos, quando eu tinha apenas
quatorze. Dante e eu sempre tentamos protegê-la das sujeiras do
crime, mas sabíamos que não poderíamos cuidar dela pra sempre.
Por isso, lhe ensinei tudo que sabia.
Quando fui embora, ela tinha apenas dezesseis. Ainda era
uma pirralha, mas já era mais esperta do que muitos soldados mais
velhos. Apesar de ter doído como o inferno, sei que Jayden e Yuna
cuidaram bem dela.
— Não acredito que você voltou. Temos que dar uma festa
para comemorar! — Ela se afasta e meu semblante cai.
A notícia de Dante ainda não se espalhou, então eu sabia
que Sienna não descobriria tão rápido. Por isso, meus planos
consistiam em encontrá-la na hora do almoço, depois de sua aula
de tênis, e contar. Não quero que ela descubra por ninguém além de
mim, o que parece difícil agora que ela está aqui, no Fortuna. De
alguma forma, ela soube que eu voltei e veio correndo para me
encontrar.
Não posso lidar com isso agora, quando tenho todo um
Conselho me esperando do outro lado da porta. A conversa com
Sienna tem que ser entre quatro paredes, em um momento mais
calmo e propício. Não posso jogar a bomba em seu colo agora e
sumir dois minutos depois.
— Barbie, posso te pedir um favor? — Ela franze as
sobrancelhas, confusa, já notando que há algo de errado. — Pode
acompanhar Jayden até o meu apartamento?
Ela intercala o olhar entre nós dois. O sorriso de antes
morreu, dando lugar aos pontos de interrogação explícitos em seu
rosto. O problema de ter sido sua professora é que ela conhece
minhas táticas, incluindo a de agora: ganhar tempo.
— Alessia, o que houve? — indaga baixo, respirando fundo.
— Por favor, Sienna, me espere no meu apartamento. Tenho
uma reunião agora, mas vou para lá assim que acabar. Por favor?
— quase imploro.
Para a minha sorte, ela assente. Jayden coloca a mão em
seu ombro e ela se vira devagar, ainda me encarando enquanto
caminha para longe. Quando eles somem do meu campo de visão,
pego o celular e envio uma mensagem para King:
Alessia Romano: Tire o celular dela sem que ela perceba e
tranque a porta. Não quero que ela descubra por outra pessoa.
Assim que sair daí, volte para a reunião.
Guardo o aparelho, respiro fundo e estalo o pescoço. Então,
eu entro.
Todos os olhares se voltam para mim e meu coração acelera
com a adrenalina. Todos os rostos conhecidos me causam um
rebuliço no estômago e a sensação de revê-los é inexplicável, muito
mais avassaladora do que eu esperava.
Me recomponho e caminho até a cadeira na ponta. Jayden
vai ocupar o meu lado esquerdo e Yuna já está à minha direita, me
olhando com preocupação. Estou inquieta demais para me sentar,
então permaneço em pé, atrás da cadeira, com os braços atrás do
corpo.
Nunca ouvi um silêncio tão ensurdecedor. Apesar da
insatisfação estampada no semblante de alguns, mantenho o queixo
erguido e a postura ereta.
— Você voltou, garota — Giorgio diz, fumando seu charuto.
— Pensei que tivesse morrido.
— Isso te deixaria satisfeito? — pergunto, levantando as
sobrancelhas.
De todos os meus tios, acho que Giorgio é o menos
detestável. Mesmo assim, ele é tradicionalista, o que significa que
não concorda com uma mulher na chefia da máfia. As poucas
mulheres no alto escalão já desagradam esses homens, quem dirá
uma na maior posição que existe em nossa hierarquia.
— Continua a mesma, pelo visto — desdenha, sorrindo de
lado. — Vamos lá, comece a Reunião.
— Me deixe te dar um conselho, Giorgio. Guarde o tom de
autoridade para os seus filhos, porque se usá-lo comigo mais uma
vez, será a última. — Seu sorriso morre e ele parece surpreso pela
minha resposta. — Antes mesmo de ir embora, eu já era sua
superior. Agora, você responde diretamente a mim e me deve
obediência. A autoridade máximo aqui sou eu, está me entendendo?
A reação dele e dos demais é impagável. Tão satisfatória que
quase me faz sorrir.
— Fui clara? — pergunto, exigindo uma resposta, e ele anui.
— Não é assim que você deve responder.
— Sim, chefe — murmura, transbordando irritação.
— Ótimo. Agora, podemos começar.
 

Os seguranças se mantêm no final do corredor enquanto


destranco a porta e entro, sendo recepcionada pelo silêncio. Vou até
a sala de estar e encontro Sienna sentada, abraçando os joelhos e
encarando a televisão desligada. Em passos vagarosos, me
aproximo e sento ao seu lado.
— Está tudo bem? — questiono, preocupada com a
possibilidade de ela já saber sobre Dante.
Sienna vira o rosto devagar até conectar os olhos azuis aos
meus. Ela herdou os olhos da nossa mãe e eu, os de Dante.
Quando os vejo lacrimejados, sua pele pálida e a boca trêmula, sei
que ela descobriu. De alguma forma, ela já sabe.
— Escondeu isso de mim? — sua voz sai tão baixa que
quase não escuto. — Escondeu a morte dele de mim?
— Eu ia te contar agora. — Suspiro. — Eu sinto muito,
Sienna. Queria ter sido eu a te contar, mas…
— Foi por isso que você voltou, não é? — De repente, sua
entonação muda. É acusadora e cortante como uma faca. — Só
para reivindicar a liderança.
Abro a boca para respondê-la, mas minha irmã é mais rápida.
— Você não voltou porque percebeu que me abandonou por
cinco anos, ou porque seus melhores amigos viveram um inferno
por anos tentando descobrir o que aconteceu com você e nunca
chegaram a lugar nenhum. Você voltou para ser a chefe da máfia,
Alessia. É tudo o que te importa, não é?! — ao final da frase, ela já
começara a gritar.
— Sienna, você está em choque, eu entendo…
— Não! — me interrompe, levantando-se. Vejo as lágrimas
escorregando pelas suas bochechas, ruborizadas pela raiva. — Não
estou em choque! Estou puta porque você me deixou e sumiu por
cinco anos sem dar nenhuma notícia, como se todos nós fôssemos
insignificantes! Tenho certeza de que qualquer lugar do mundo tem
sinal de celular hoje em dia, mas mesmo assim você não pôde fazer
uma mísera ligação para a sua irmã? E agora você decide voltar em
um momento bem conveniente. — Ela ri, irônica. — Me diga, você
ao menos está triste pela morte do papai?
Eu tinha me esquecido do quanto era estranho ouvi-la se
referindo a ele como “papai”. Ela amava Dante de uma maneira que
nunca fui ou serei capaz de entender. Com ela, ele não era nada do
que era comigo, até porque eu o mataria antes de permitir que ele a
fizesse passar por qualquer merda que passei. Ainda assim, esteve
muito longe de ser o pai do ano. Fui eu quem ajudou em sua criação
e fui eu quem a ensinou tudo que ela sabe a respeito do nosso
mundo enquanto Dante fumava charutos e fodia prostitutas todas as
noites.
Ela era carente pela atenção do pai e eu detestava, mas
entendia. Sienna não tem memórias afetivas da nossa mãe, já que
ela foi assassinada por uma gangue rival quando minha irmã tinha
três anos. A falta de uma figura materna vivendo numa realidade tão
bruta quanto a nossa a afetou bastante, então ela fazia de tudo para
ter a figura do pai por perto. Só que ele tinha outras prioridades,
como levar suas inúmeras namoradas em viagens e me deixar
sozinha no ninho de cobras que nosso Conselho sempre foi.
A fama de Dante Romano não é mentirosa. Ele era, de fato,
um verdadeiro diabo. A questão é que ele só dava ordens, bárbaras
e sempre violentas, mas não sujava as próprias mãos. Desde que
matei alguém pela primeira vez, eu trabalhava como sua executora.
Só não tinha o título formal, porque na época quem o carregava era
meu primo, mas Dante dava mais trabalhos para mim do que para
ele. Ninguém fazia o serviço tão bem quanto eu.
— Não está — ela constata. — Não está triste, porque você
não se importa. Só se importa em ser a chefe.
— Sienna, cuidado — advirto, mordendo o interior da
bochecha para não ser rude com ela. Sei que sua reação é
decorrente do choque em saber que ele está morto, então faço de
tudo para relevar. — Não tire conclusões precipitadas de algo que
sequer falei uma palavra sobre. Você é muito mais importante para
mim do que uma liderança e não há nenhuma comparação, na
verdade. É ridículo você fazer essa acusação.
— Ridículo? — Mais uma vez, ela ri em escárnio. O som
embrulha meu estômago e faz meu sangue ferver. — Ridículo é
você ter me abandonado por cinco anos!
Furiosa, me levanto. Ela está passando dos limites e não sou
de ferro.
— Ridículo é você me acusar de te abandonar quando Dante
fez isso por dezesseis anos e você nunca se incomodou, muito pelo
contrário. — Ela arregala os olhos e seus lábios tremem. Não tenho
tempo para me arrepender do que falei, pois decido continuar: — Eu
pretendia ter uma conversa calma e adulta com você, mas não
consegui dizer uma palavra antes de escutar um monte de merda.
Tem noção de como me sinto ao te ouvir dizendo tanta porcaria,
Sienna? Você sequer se pergunta o motivo de eu ter sumido por
cinco anos e não ter dado nenhum sinal de vida, mesmo sempre
fazendo questão de estar ao seu lado e te proteger?
Balanço a cabeça em negação, sentindo um enorme nó na
garganta. Não costumo me magoar com facilidade, mas sinto como
se tivesse levado um soco no estômago. Mesmo que inconsciente,
eu tinha expectativas para a nossa primeira conversa; idealizei um
cenário em que ela choraria em meu ombro e eu diria que tudo
ficaria bem, porque eu estava de volta e nunca mais sairia do seu
lado.
— Me faça um favor e nunca mais abra a boca para dizer que
me importo mais com a máfia do que com você. Aceito ser xingada
dos piores nomes possíveis, mas nunca aceitarei que repita isso.
Giro sobre os calcanhares, me afasto e saio do apartamento.
Uma lágrima desce pela minha bochecha e eu a limpo com raiva,
sacando o celular do bolso para mandar uma mensagem a Jay e
Yuna.
“Quarenta e quatro mentiras
Eu não sinto nada
Na maior parte do tempo”
44 Lies | Two Feet
 

— Deixou ela sozinha? — King pergunta com os olhos


arregalados.
— Se está preocupado, vá cuidar dela — retruco, revirando
os olhos. — Quem sabe ela não tenha algumas merdas para te
dizer também.
— Alessia, você acabou de voltar depois de cinco anos —
Yuna entra na conversa. — E ela acabou de saber que o pai morreu.
Está realmente surpresa por ela ter surtado? Acho que qualquer um
no lugar dela surtaria.
— Ela disse que só me importo com a posição de don e que
esse é o único motivo por eu ter voltado — repito o que falei há
cinco minutos. — E vocês estão defendendo ela, porra? É sério?
— Mas…
— Sim, Jayden, eu voltei por causa da morte de Dante e a
posição de chefe. Mas esse não é o único e especialmente não o
principal motivo. Sienna acreditar que me importo mais com a
liderança do que com ela dói mais do que ter uma faca enfiada na
panturrilha.
Yuna levanta as sobrancelhas e abre um sorriso de lado. Sei
que ela está prestes a amenizar o clima, como sempre tenta fazer
quando algum de nós se exalta.
— Isso foi bem específico, gata. Já foi esfaqueada na
panturrilha?
Solto uma lufada de ar e bebo outro gole do uísque. Faz meia
hora que chegamos na Midnight, uma das casas noturnas da
Vendetta. Não está aberto para o público ainda, mas como pertence
a nós e era a mais próxima, chamei os dois para virem aqui na
tentativa de me acalmar. Meus seguranças estão próximos, em uma
distância que nos garante a privacidade para conversar sem sermos
ouvidos.
Estou odiando ter um monte de caras me seguindo de um
lado para o outro. A sorte é que consigo despistá-los com facilidade
e às vezes até os dispenso, dizendo para “tirarem uma folga”. Ser
herdeira da máfia sempre me obrigou a ter no mínimo dois soldados
ao meu lado, pelo menos até começar a ascender na organização e
conseguir diminuir a frequência com que era vigiada e protegida.
— Eu já estava puta depois de lidar com o Conselho — digo,
bufando. — São onze horas da manhã e já quero meter bala em
alguém.
A reunião foi exatamente como eu esperava. Tive
pouquíssimo apoio, somente o de quem se preocupa mais com a
tradição hierárquica do que com a minha reputação e meu passado.
Nunca puxei o saco de ninguém para conseguir alguma coisa e
sempre deixei clara minha aversão a eles, o que os fez desenvolver
a mesma aversão a mim. Todos os meus tios, sem exceção,
tentaram me afrontar. Benedict Jones, o maior filho da puta da
nossa organização, foi o mais corajoso de todos e me acusou de ter
matado Dante para roubar o seu lugar, além de ter sacado sua arma
e apontado para mim.
Não o matei, mas o expulsei do Conselho e de qualquer outra
posição que ele pudesse ter na máfia. A partir de hoje, Jones não
passa de um homem cujo sobrenome é Romano. Nada mais. Se ele
e sua família vão falir, passar fome ou morrer, não dou a mínima.
Depois que determinei sua expulsão, parece que os outros
enfiaram seus rabinhos entre as pernas e abaixaram a bola. Sei que
qualquer um deles pode tentar me matar a qualquer momento por
não me acharem digna da posição de don e por isso eu deveria
aceitar os diversos seguranças que costumavam seguir Dante de
um lado para o outro, mas nunca conseguiria viver com alguém no
meu pé. Acho que os mataria nos primeiros cem metros percorridos.
Também há o testamento, no qual sou decretada como a
herdeira legítima à liderança. Além disso, a opinião dos nossos
aliados tem um peso enorme e eu fiz um ótimo trabalho em agradá-
los durante muitos anos, mesmo que nunca acreditasse ou
almejasse o cargo de chefe.
Um dia eu precisaria deles, independentemente do motivo. E
esse dia chegou.
— Aí, me responde. — Jay se inclina para frente, os braços
apoiados na superfície, e estreita os olhos. — Por que não matou o
Jones?
— Porque isso começaria uma guerra naquela sala, no
Conselho e na Vendetta. Se eu não acabasse com um tiro no peito,
teria que lidar com o escândalo de ter matado um capo no meu
primeiro dia como chefe. Acha que isso seria bom para o nosso
futuro?
— É verdade — concorda, assentindo. — Não vou negar que
eu gostaria que você tivesse feito. Na verdade, eu quase fiz, mas
não sabia se você ficaria contente.
Jayden é o responsável por organizar e liderar as missões em
campo, o capo da Força Bruta — não é uma equipe específica ou
fixa, mas todos os soldados designados para tal missão. Ele sempre
foi obcecado por exercícios, treinamento e academia, o que lhe deu
músculos grandes e uma incrível habilidade de matar alguém só
usando a mão. Nós temos muitas coisas em comum, principalmente
nossos defeitos, e é por isso que nos demos bem desde o início.
Yuna é Diretora de Finanças, então toda a parte financeira da
Vendetta está sob responsabilidade dela. Se algum número estiver
fora do lugar, uma transação suspeita for feita ou o cachê não esteja
de acordo com nossas operações, é ela quem vai me alertar sobre o
problema. Costumo dizer que Yamazaki é a pessoa mais inteligente
que eu conheço e que sua afinidade com números é assustadora.
Eu nunca seria capaz de fazer o que ela faz. E para acrescentar, a
nerd também sabe lutar como ninguém.
Os dois ocuparão o topo da hierarquia comigo em breve,
quando minha liderança for oficializada. Ainda assim, vou mantê-los
em seus atuais cargos de alguma forma, já que foi a condição que
os dois me deram. Precisarei nomear outra pessoa para co-ocupar
as posições, mas eles ainda terão certo controle sobre o trabalho.
Os dois sempre estiveram comigo. Jayden nasceu dois anos
depois de mim e Yuna, três. Nossas famílias eram bem próximas,
então crescemos e vivemos tudo juntos. Por isso, desde sempre
somos conhecidos como os “Trigêmeos Siameses”.
— Vou ligar para o Donovan hoje — enuncio. — Tenho uma
lista infinita de pessoas para quem preciso ligar, mas vou começar
por ele.
— Se prepare para lidar com o Simmons — Jay diz, fazendo
uma carranca. — Se ele falar alguma merda, faço questão de matá-
lo.
— Ele não vai falar nada — Yuna garante, convicta. — Nós
fazemos o trabalho da polícia em limpar as ruas, bancamos aqueles
marmanjos e desviamos dinheiro sem deixar rastros. Tudo que
Simmons faz é coçar o saco em seu escritório. Mesmo que ele não
goste da situação, vai continuar fazendo negócios com a gente.
— Obviamente. — Reviro os olhos. — Simmons é inofensivo,
apesar de ser um nojento.
— Você tem que se preocupar com o Conselho. — Yuna leva
o copo aos lábios. — Nossos parceiros de negócios não vão
quebrar os contratos, mesmo que não concordem com você no
poder. No final, dinheiro sempre é mais importante do que
princípios.
Ela não faz ideia do quanto está certa.
— Vamos mudar de assunto — peço. Se continuarmos
discutindo sobre coisas burocráticas, não vou conseguir me acalmar
para lidar com tudo que preciso hoje. — Me atualizem das suas
vidas.
Acendo um cigarro e estendo o maço para Jayden, que pega
um e rouba o meu isqueiro. Nós tragamos a fumaça ao mesmo
tempo que Yuna prende o cabelo, que alcança a altura dos seios,
em um rabo de cavalo. A franja longa cai nas laterais do seu rosto e
aproveito para observá-lo, percebendo que ela continua sendo uma
das mulheres mais bonitas que conheço, só que agora carrega
traços mais adultos e atraentes. Seu rosto é tão fino que eu
costumava ter medo de quebrá-lo quando lutávamos juntas; a boca,
nem tão fina e nem carnuda, sempre com um gloss brilhante; seus
olhos monólitos são tão escuros que a íris quase se confunde com a
pupila, mas, mesmo assim, seu olhar é tão marcante e sensual que
faz milagres; ambos os seus braços são fechados de tatuagens,
assim como a coluna e alguns dos dedos.
— Ah, não — resmunga, balançando a cabeça em negação.
De repente, sua expressão se ilumina e ela sorri de forma perversa.
— Na verdade, Jayden tem algo muito interessante para contar.
Caralho, eu esperei tanto por esse momento.
Fito Jayden, que estreita as pálpebras em reprovação. Ele
também ficou ainda mais bonito nos últimos anos com sua barba
aparada, os olhos verde-claro e os cabelos pretos sempre com
aspecto de pós-foda. De bônus, os poucos fios da sua franja nunca
saem de sua testa e lhe dão a possibilidade de passar os dedos
calejados no cabelo a fim de jogá-la para trás, um movimento que
faz quase cem por cento da população cair aos seus pés. Assim
como eu, ele tem mais tatuagens do que Yuna, algumas na cor
vermelha.
— O que você andou aprontando, King? — Arqueio a
sobrancelha direita e ele solta a fumaça do cigarro. Seu pomo-de-
adão sobe e desce, demonstrando nervosismo.
— Porra nenhuma! Yuna, não fala merda.
Yamazaki ri alto e levanta o copo em sua direção, lhe
apontando o dedo indicador. A satisfação estampada em seu rosto é
tão explícita que fico realmente curiosa para saber sobre o que eles
estão falando.
— Você não vai esconder isso dela por muito tempo. Para de
ser idiota, King, acha mesmo que a Alessia tem moral para te
julgar?
Jayden bufa, tamborilando os dedos sobre a mesa. Crispo as
sobrancelhas, intrigada, intercalando o olhar entre os dois. Bebendo
meu uísque, vejo-o levantar os ombros em derrota e soltar:
— Transei com a Sophie Wilson um tempo atrás.
O silêncio é tão pesado que quase posso ouvir a respiração
descompassada dele
— Não vai dizer nada? — pergunta.
— Se eu me importasse com quem você fode, provavelmente
diria que você perdeu a cabeça — provoco, dando de ombros. —
Mas não me importo, apesar de estar impressionada. Sabe que
aquele babaca do Jeon é apaixonado por ela, não sabe? Se você
ainda está inteiro para contar a história, presumo que ele não saiba
disso.
— O quê?! — os dois exclamam ao mesmo tempo.
— Pois é — afirmo, balançando a cabeça.
Nós continuamos a conversa por mais meia hora e consigo
relaxar um pouco, me sentindo melhor por ter um momento
descontraído antes do inferno realmente começar.
 

 
Eu tinha planos de conversar com Sienna hoje. Jayden e
Yuna me convenceram de que era melhor não prolongar a briga, já
que acabei de voltar e minha irmã precisa de apoio. No entanto,
pouco tempo antes do velório, fui até a casa de Dante, onde ela
mora, e Sienna não abriu a porta do seu quarto para mim. Sei que
ela estava em casa porque os seguranças me confirmaram que ela
não saiu, então eu só estava sendo ignorada.
O cemitério foi fechado para o velório e somente mafiosos
são autorizados a entrar. A sala onde estamos é enorme, mas nem
quilômetros de distância seriam capazes de me impedir de ouvir os
soluços altos vindo de Sienna, que está ao lado do caixão. Está
fechado, já que o corpo de Dante estava completamente deformado,
dissecado e mutilado, então não pôde ser colocado ali. O caixote é
só uma formalidade da cerimônia, pois as partes que restaram serão
enviadas direto à sala de cremação.
Detesto vê-la assim e não poder fazer nada. A sensação de
impotência é tão grande que, em uma hora, acabei com um maço
de cigarro. No mesmo segundo em que pisei no maldito cemitério, já
fui bombardeada por pessoas e monólogos. Ouvi mais condolências
do que sou capaz de aguentar, apertei mãos de mais homens do
que gostaria e tive que fingir que não estava mais focada em minha
irmã do que nas histórias de infância de Dante.
É claro que recebi dezenas de perguntas indiretamente
ligadas ao meu desaparecimento. Eu já esperava que as pessoas
me abordassem para questionar sobre isso, e também sabia que
elas ficariam ainda mais curiosas quando vissem minha cicatriz. Foi
o que aconteceu.
Todos os nossos aliados estão aqui, alguns enviaram
representantes. Pouquíssimos deles vieram até mim, o que significa
que terei uma longa noite pela frente repleta de apertos de mãos e
promessas de negócios solidificadas. Apesar de preferir ocupar o
meu tempo com missões em campo, reconheço a necessidade da
parte burocrática e entediante. Por isso, abro um sorriso de lado e
coloco em ação tudo que aprendi ao longo dos anos com Dante.
Um corpo ocupa o espaço à minha esquerda, encostando-se
na parede assim como eu. De esguelha, vejo os longos cabelos
loiros e o vestido preto com mangas longas e luvas. Não preciso me
virar para saber quem é.
— Seu retorno é a notícia mais comentada desde que El
Chapo foi capturado — ela zomba. — Como se sente com a fama?
Após dar uma olhada ao redor, giro a cabeça. A primeira
coisa que encontro são os olhos azuis fixos em mim. Depois, o
sorriso oblíquo.
Chloe Ventura é minha prima de terceiro ou quarto grau. Aos
seus vinte e sete anos, ela é uma figura importante na nossa
subdivisão de Ohio. Apesar de não nos encontrarmos com tanta
frequência, temos histórias.
— Você está… — Ela examina cada centímetro do meu
rosto. — Diferente.
Com “diferente”, ela quer dizer “com uma cicatriz na metade
do rosto”.
No começo, eu detestava, mas hoje exibo a cicatriz com
orgulho. Ela faz com que as pessoas se intimidem e criem diversos
cenários do contexto em que a ganhei. Todos as fazem pensar duas
vezes antes de mexer comigo.
— E você continua a mesma — rebato, ganhando um sorriso
de lado.
— Por acaso, tem um desses pra mim? — Aponta para o
cigarro com o queixo.
Pego o maço no bolso traseiro da calça social e lhe estendo
um, o qual ela apanha e posiciona entre os lábios. Depois de
acendê-lo com o isqueiro, traga enquanto me encara.
— Deve ter passado por uns bocados, hein? — diz, soltando
a fumaça. — Posso ceder à curiosidade de perguntar sobre isso ou
vou perder o meu tempo?
— Vai perder o seu tempo — confirmo, vendo-a dar de
ombros.
— Eu já imaginava. Como estão as coisas no Conselho?
Diferente dos demais, sinto que Chloe não pergunta pelo
puro prazer da fofoca. Ela realmente se preocupa comigo e com a
Vendetta.
— Você deve imaginar.
— “Uma mulher não pode ser chefe da máfia”? — indaga, e
eu concordo com um aceno. Chloe revira os olhos. — Deus, não
aguento mais esses escrotos do século passado. Não estão velhos
demais para trabalhar, aliás? Você deveria lhes dar uma folga,
Alessia. Aposentadoria e tudo mais.
Prenso os lábios para não sorrir e ela me lança uma
piscadela antes de murmurar:
— Se quiser me colocar na nova geração, estarei a uma
ligação de distância.
— Sempre muito direta — digo, sorrindo amarelo. — Me
lembrarei disso, Chloe.
Sua expressão fica mais séria ao revelar:
— Você tem o total apoio dos homens de Ohio. Todos lá te
adoram… até mesmo os anciões.
— É uma das minhas subdivisões preferidas — confesso, e
ela joga o cabelo para trás do ombro em um ato teatral a fim de se
gabar. — Não se ache.
Ela se vira de frente para mim, com um ombro apoiado na
parede, e cruza os braços. O movimento faz com que o decote do
vestido realce seus seios, mas não permito que meus olhos
escorreguem até lá.
— Andei coletando algumas informações hoje — sussurra. —
Vou te entregar uma lista detalhada sobre o que andam falando e os
homens com quem você deve tomar cuidado. Nenhum deles vai
declarar publicamente que pretende fazer algo, mas eles
pretendem. Confie em mim.
Chloe Ventura é perigosa, o tipo de pessoa que você deve
manter distância se pretende manter seus segredos a salvo. Ela tem
olhos e ouvidos em todos os lugares possíveis e era a primeira
pessoa para quem eu ligava quando tinha problemas com alguém
de fora. Costumo chamá-la de “Il Ragno”[6], já que ela criou e
expandiu suas teias de aranha por todo o submundo.
— Il Ragno… — provoco, arrancando um sorriso maroto dela.
— Sempre ao seu dispor. — Ela toca meu ombro, deslizando
os dedos pelo meu braço enquanto pisca devagar. — Pensei em ir
até o seu apartamento mais tarde para te entregar o documento.
— Sabe que tenho um escritório, não sabe?
— Estou ciente, mas não quero correr o risco daquelas folhas
caírem em mãos erradas até chegarem a você.
Uma boa desculpa, porém, ainda é só uma desculpa.
Respiro fundo e desvio o olhar. Chloe está implicitamente me
convidando para transar e eu não poderia ligar menos. A última vez
que ficamos juntas foi há muito, muito tempo, e não sei por que ela
pensa que eu aceitaria o convite num momento como este.
— Obrigada, mas estou bem — digo, analisando as pessoas
ao redor.
Ouço o choro de Sienna e meu estômago embrulha.
— Sério? — ela soa um pouco incrédula, como se estivesse
cem por cento convicta de que eu aceitaria. — Algum motivo
específico?
Além de Dante ter morrido e minha organização estar um
completo caos?
— Não me leve a mal, Chloe — volto a olhá-la —, mas não
entendo por que você achou que eu aceitaria quando faz uma
década desde a última vez que nos deitamos juntas.
Ela cerra as pálpebras e fica em silêncio por alguns
segundos.
— Existe uma mulher — conclui, e faço um ótimo trabalho em
disfarçar a tensão nos ombros.
— Existem várias.
Só existe uma.
— Se existissem várias, não teria nenhum problema em eu
ser uma delas. Mas, pelo que parece, existe um problema. Não
tente me manipular, Alessia.
— Não estou tentando fazer nada além de dizer que não
estou a fim de transar com você.
Chloe respira fundo e estuda meu rosto. Reviro os olhos,
trago o cigarro e fito minha irmã. Sua testa está apoiada no topo do
caixão enquanto soluços altos escapam da sua garganta. Quando
soube que o corpo de Dante não poderia ser exibido devido ao
estado em que o assassino o deixou, ela ficou devastada.
É melhor que ela mantenha a memória do corpo intacto e
inteiro do pai. Nunca permitiria que Sienna o visse daquele jeito,
pois sei que a imagem lhe perseguiria pelo resto da vida.
— Deixarei os papéis no seu escritório — ouço a voz ao meu
lado novamente.
Vejo-a se afastar e solto uma lufada de ar. Se eu não tomar
cuidado, Chloe pode descobrir meu segredo.
“Coração acelerado
Vou te colocar nesse ritmo
Vou ficar em sua mente
Volte sempre”
Cravin’ | Stileto
 

8 anos atrás
 
— Você não vai.
Meu sangue borbulha em indignação.
— É sério? Qual desculpa vai usar agora?
Ele me ignora, veste o sobretudo e caminha para longe. Sinto
como se tivesse levado um soco no estômago, mas não desisto.
Sigo meu pai até a roda na qual meus tios estão conversando e
gesticulando de maneira nervosa e até preocupada, eu diria.
Antes que ele possa se juntar, me coloco à sua frente e
interrompo seus passos de abrupto. Ele cambaleia para trás e me
fulmina com o olhar, nem um pouco contente com minha insistência.
— Não gosto de te desobedecer — começo, mantendo o
queixo erguido e a postura ereta. — Mas estou cansada de ouvir a
desculpa de que sou mais valiosa nos computadores do que em
campo, porque ela só é usada em uma circunstância. O Sr. me
coloca em todas as missões, menos nas que são contra a Vendetta.
Posso saber por quê? Acha que não sou boa o suficiente para lutar
contra eles? Sou boa em combate corporal e você sabe disso, pai.
Pare de me tratar como se eu fosse morrer caso chegue perto de
alguém daquela máfia.
Minhas palavras o impactam e seus ombros caem. Não
costumo usar esse tom com ele, só que é inevitável. Meu pai nunca
permitiu que eu me envolvesse em nada relacionado à Vendetta e
sempre achei que era um instinto superprotetor devido à história das
organizações, mas não consigo entender os seus motivos agora que
tenho dezoito anos e sei lutar mais do que muitos dos soldados
medíocres que ele leva para o combate.
Não sou fraca e muito menos burra. Ele, mais do que
ninguém, sabe disso.
— Lyanna… — murmura, respirando fundo e passando os
dedos entre os fios castanhos. — Eles são perigosos, filha, mais do
que você imagina. Não posso arriscar que você se machuque.
Solto uma risada sarcástica.
— Sério, pai? Eu tinha recém dezessete anos quando o Sr.
me enfiou em um território inimigo para hackear computadores e
roubar dados, sabendo muito bem que eles poderiam me matar a
qualquer momento. Prefiro que fique quieto em vez de mentir para
mim.
— Exatamente. Já te coloquei em situações perigosas, mas
nenhuma delas era tão perigosa quanto levá-la a um combate
contra a Vendetta. Não consegue entender que eles vivem para
derramar o nosso sangue, Lyanna? Não consegue?
Cerro os dentes e fecho as mãos em punho. Detesto a
mensagem implícita que suas palavras carregam — a de que sou
estúpida. O modo como ele fala deles é tão exagerado que me
provoca ainda mais raiva.
— E você não consegue entender que posso derramar o
sangue deles também, pai? Não consegue enxergar que não sou
uma criança indefesa? — elevo a voz involuntariamente. — Acha
que eu teria medo de enfrentar qualquer um deles só porque são
“cruéis e imprudentes”? Pelo amor de Deus, pare de tratá-los como
se fossem malditos Deuses do submundo!
Ele abre a boca para retrucar, mas o interrompo:
— Sinto muito, mas não vou te obedecer hoje. E se tentar me
impedir, é melhor arrumar outra feiticeira para a Timoria.
Dou as costas e inicio os passos para longe. Vejo todos os
olhos cravados em nós, alguns assustados e outros curiosos.
— Lyanna Bellini! — ouço-o gritar, mas ignoro.
Enquanto saio pela porta do Ascension, rápido o bastante
para que meus seguranças não me alcancem tão depressa, escuto
sua voz autoritária ordenando que todos os homens me proibissem
de dar um passo para fora do território. Para o azar dele, não tenho
o costume de obedecer a ninguém além do meu chefe.
E hoje, se não obedecerei nem a ele, quem dirá a qualquer
outra pessoa.
 
 
Limpo o sangue do canto da boca e me escondo atrás do
pilar. Os tiros ricocheteiam contra o concreto e produzem um
barulho alto, o material sendo destruído e jogado para longe
conforme recebe os disparos.
É inútil respirar fundo, já que minha respiração está tão
ofegante que sinto o peito doer. Puxo o carregador do fuzil e vejo
que tenho quatro munições para atravessar o estacionamento e
subir ao meu destino. Depois, posso recarregá-lo novamente, mas
primeiro tenho que alcançar as escadas. Já estou há muito tempo
aqui no subsolo, lutando e trocando tiros com esses babacas.
A Timoria já deve estar chegando. Preciso alcançar a
cobertura antes deles.
Então, conto até cinco e corro. Desvio dos disparos e revido
até quando minha munição permite antes de acabar. Sinto dor na
panturrilha do que presumo ter sido um tiro de raspão e grunho alto
ao tropeçar, mas consigo me jogar para trás da parede a tempo de
não ser baleada.
Meu corpo se choca com força contra o chão, as costelas
doem e tenho uma rápida falta de ar devido ao impacto na coluna.
Não posso desistir agora, não quando estou tão perto, mesmo com
o corpo dolorido e um possível ferimento de bala.
Me levanto depressa, abro a porta e a tranco atrás de mim,
embora saiba que eles vão arrombar em poucos segundos. Subo as
escadas de três em três degraus, segurando a alça da mochila
como se minha vida dependesse dela.
Em partes, depende. Dentro dela há mais armas, alguns
explosivos e um pen drive, tudo que preciso para obter sucesso na
missão.
Perco as contas de quantos degraus eu subo, porém não
posso pegar o elevador. Eles estarão me esperando com um
arsenal de fuzis mirando no meu peito. Por isso, ainda que esteja
com a visão embaçada pelo esforço e o peito quase explodindo,
continuo subindo e subindo e subindo e subindo.
Quando vejo a porta de emergência sinalizando o corredor da
cobertura, encosto o corpo na parede, fecho os olhos e passo
longos segundos tentando normalizar a respiração descompassada.
É como se a qualquer momento meu coração fosse rasgar o peito e
pular para fora.
Abro um largo sorriso. Amo a adrenalina. Amo pra caralho.
Daqui de cima, é impossível ouvir qualquer movimentação
dos primeiros andares. No entanto, sei que não vai demorar para
que eles me alcancem, então abro a bolsa e pego um dos meus
fuzis favoritos, o T4. Fecho o zíper, deixo as alças firmes nos
ombros e abro a porta devagar, a arma colada ao corpo em uma
posição de fácil manuseio caso eu precise atirar.
Diante do silêncio, caminho pelos corredores. Não me
preocupo com as câmeras, já que congelei as filmagens e inseri um
vírus no sistema de segurança do prédio que não levará menos do
que uma hora para ser excluído.
Em passos cuidadosos, chego até a porta que leva ao hall —
onde há a porta principal, que dá acesso ao interior da cobertura em
si. Passo um tempo com o ouvido nela, tentando capturar qualquer
barulho que seja.
Sequer consigo ouvir minha própria respiração. Está tudo
completamente silencioso, como em uma cena de filme de terror.
Não sou estúpida, sei que há alguém me esperando do outro lado;
um, dez ou trinta homens armados até os dentes.
Me certifiquei de atrair todos ao estacionamento, até mesmo
os seguranças que guardam a porta da cobertura. Ainda assim, é a
Vendetta. Eles com certeza enviaram mais pessoas para cima,
especialmente porque já devem imaginar do que estamos atrás.
Posiciono o T4 e repouso o dedo no gatilho. Com um suspiro
pesado, chuto a porta e quase começo a disparar.
Quase, porque não há ninguém. Nem uma maldita silhueta.
— Mas que merda…? — sussurro, confusa, avançando no
hall com a arma em posição.
Um calafrio percorre a coluna quando minha intuição grita.
Contudo, embora eu tente virar o corpo a tempo, não sou rápida o
suficiente; um objeto gelado pressiona com força minha têmpora
esquerda e ouço o barulho do ferrolho de uma arma, o que significa
que ela foi acionada e está pronta para atirar.
— Não achou que seria tão fácil assim, achou?
Essa filha da puta.
Cerro os dentes e fito-a de canto. Só consigo capturar os
coturnos pretos e a calça jeans escura, mas imagino que haja um
sorriso diabólico em seus lábios.
— Na verdade, não — confesso, tentando ganhar tempo
conforme calculo todas as possibilidades em minha cabeça. —
Esperava encontrar mais de vocês, inclusive. É só você que preciso
nocautear para passar por aquela porta?
Seu riso baixo provoca outro calafrio na minha espinha, mas
dessa vez é diferente. É mais intenso.
— Só eu, gatinha selvagem. Mas não se engane, não vou
pegar leve. Esperei muito tempo para lutar com você.
Por alguma razão, sua fala me tira o fôlego.
Faz quase dois meses desde que a vi pela primeira vez, no
meu aniversário de dezoito anos. Quase dois meses que venho
tentando não pensar no que aconteceu naquele bar, mas quase
sempre falho. A incerteza sobre quais eram as intenções de
Romano me corroeu todos os dias.
Quando saí, não havia ninguém. Nenhum dos seus homens
me esperava do lado de fora.
Ela realmente queria me presentear, eu acho. Na verdade,
não faço ideia. Não faz o menor sentido para mim, e é justamente
por isso que não consegui tirar aquela maldita noite da cabeça.
Também foi impossível não pensar nela quando, algumas
horas depois de eu ter descoberto o que meu tio fez, ela o
assassinou brutalmente. A princípio, fiquei sem reação; depois, me
perguntei como diabos ela descobriu o que ele tinha feito; por
último, tentei imaginar o porquê. Por que ela se importou a ponto de
matá-lo? Por que ela se importou, em primeiro lugar?
Alessia Romano era uma completa incógnita.
— Esperou muito tempo para me machucar? — alfineto,
virando o rosto devagar. O cano da arma não acompanha o
movimento e se fixa em minha testa.
Seus pontos esverdeados são como duas esmeraldas. Na
última vez, estavam um pouco mais claros do que hoje. Mesmo
assim, é uma tonalidade perigosa; até mesmo seus olhos são feitos
para atrair suas presas.
— Quero descobrir se preciso me preocupar com você —
responde, espremendo os olhos.
Sei que está se referindo às minhas habilidades de luta,
porém, não posso perder a oportunidade de trazer o assunto à tona:
— Parece que você se preocupou bastante comigo quando
assassinou Pietro.
O sorriso que cresce gradativamente no canto dos seus
lábios me diz que ela já esperava por essa resposta. Ela sabia que
eu o mencionaria.
— Já que você não aceitou os batons, decidi dar outro
presente de aniversário.
Levanto as sobrancelhas.
— Não preciso que você se intrometa na minha vida, sei me
cuidar sozinha. Se você não o tivesse matado, eu teria.
— Teria? — desdenha, e fico irritada.
— Teria matado até você se pudesse, Romano.
Ela adora o desafio. Adora o ódio e a provocação.
— Eu gostaria de vê-la tentar, Bellini.
Meu sobrenome é como veneno em sua língua. Ao contrário
das farpas que trocamos, sua expressão se ilumina a cada nova
frase que falo; ela gosta de ser desafiada, gosta de me ver a
ameaçando sem nenhum medo. Acho que não deve ser comum, já
que ela não falhou em criar uma reputação tão desprezível ao ponto
de as pessoas abaixarem a cabeça quando ela passa.
Sem mais reflexões, decido agir. Levanto o braço num
movimento rápido e golpeio sua arma, que voa para o outro lado do
hall. Giro o corpo e Alessia prevê meu próximo golpe, segurando
meu pulso com força. Ignoro a dor na panturrilha e levanto a perna,
chutando sua barriga. Ela cambaleia e quase cai, me levando junto
devido aos dedos enrolados em meu braço. Vejo sua respiração
falhar, mas a bastarda não demonstra nenhum sinal de dor.
Na verdade, há um maldito sorriso em seu rosto.
Como um animal que finalmente pegou a sua presa, ela torce
meu braço com força e posso jurar que ele vai quebrar a qualquer
instante. Solto um grito, meu sangue borbulha e jogo o T4 no chão
para usar a mão livre e lhe dar um soco no nariz. Ela é mais rápida,
desviando do golpe e segurando meu pulso.
Em um segundo, ela consegue girar o meu corpo e colá-lo ao
dela. Sinto seu peito em minhas costas, a respiração quente e
ofegante contra a minha nuca e o gosto ácido na boca. Alessia usa
meu próprio braço para me dar um mata leão e eu ofego, mas a
adrenalina não me deixa parar.
Impulsiono o pé para trás e acerto sua canela, fazendo-a
cambalear. Aproveito o rápido afrouxamento, me abaixo e viro,
saindo do mata leão e ficando cara a cara com ela novamente. Seus
dedos apertam meu pulso, me impedindo de me afastar, e me
puxam com força contra si.
Meu peito bate contra o dela e sua mão segura minha nuca,
apertando alguns fios de cabelo. Dou uma cotovelada em suas
costelas, Alessia resmunga baixinho e franze as sobrancelhas.
O semblante irritado, mas ao mesmo tempo divertido, me
desconcerta. Não posso focar em seu rosto, senão vou perder o
foco.
Jogo a cabeça para frente com força e ela grunhe alto quando
acerto seu nariz. Tenho certeza de que, se não o quebrei, pelo
menos o farei sangrar pela próxima hora. Em vez de revidar com
outro golpe, Alessia entrelaça os dedos em meu cabelo e os aperta
com força, arrancando um grito sufocado da minha garganta e
puxando minha cabeça para trás.
Desse ângulo, consigo olhá-la sem precisar erguer o queixo.
No entanto, me arrependo de cravar as íris nas suas.
Me arrependo amargamente, pois o brilho que encontro nelas
me faz estremecer; a excitação que preenche seu olhar me tira um
arquejo e me obriga a apertar as coxas. Não faço ideia do motivo,
mas nós duas parecemos satisfeitas em lutar uma contra a outra.
— Gatinha selvagem — debocha em um sussurro, rindo
baixo.
Seu nariz começa a sangrar e ela não parece nem um pouco
preocupada com isso.
— Isso é tudo que você tem para mim? — sua voz transborda
provocação e estímulo.
Se não fosse pela dor no corpo e o ferimento na panturrilha,
eu poderia passar horas lutando com ela. Sempre gostei do corpo a
corpo, mas há algo diferente no combate físico com Romano; algo
que me instiga e me acende por inteiro.
No entanto, sinto que ela está pegando leve. Que não está
lutando como lutaria contra outros inimigos.
— Não pegue leve — ordeno entre respirações ofegantes. —
Consigo aguentar tudo que você tem para me oferecer.
Ela sorri, o lábio inferior preso entre os dentes e o sangue do
nariz escorregando até a boca. O aperto em meu cabelo não
diminui, mas não reclamo. Posso estar alucinando e prefiro culpar a
adrenalina que me deixa bêbada, pois não há outra explicação para
a euforia que sinto ao tê-la me agarrando desse jeito.
— Tenho certeza de que consegue — responde, o timbre
baixo e malicioso.
Suas pupilas estão dilatadas e ela me esquadrinha como se
estivéssemos em uma caça. O peito sobe e desce tão rápido quanto
o meu, colado ao dela. Em algum momento, sua perna voou para o
meio das minhas e, em outro momento, eu a montei.
— Como se sente sangrando por minha causa? — provoco.
— Bem pra caralho — responde, sorrindo como uma filha da
puta.
Somos arrancadas da nossa bolha ao escutar passos cada
vez mais altos. São os homens da Vendetta subindo as escadas
atrás de mim. Praguejo baixinho e me preparo para voltar a lutar, só
que desta vez preciso desmaiar Alessia para entrar na cobertura
antes de ser pega por eles.
Trocamos um olhar intenso e cheio de interrogações, que é
quebrado pouco tempo depois quando ela se afasta, segura meu
braço e me arrasta.
O quê?
— O quê?! O que você está…
Então, ela abre a porta da cobertura, nos coloca para dentro e
tranca.
Devo estar com a maior cara de interrogação do universo.
Encaro-a em completa confusão, sem saber o que falar ou fazer.
Minha mente se transforma num completo vazio e sequer consigo
me achar estúpida, porque estou ocupada demais lidando com o
choque.
— Você enlouqueceu?! — exclamo. — O que diabos…
De um segundo para o outro, sou empurrada com força
contra a porta. Uma mão cobre minha boca à medida que seu corpo
se aproxima, mas não o suficiente para colar ao meu. Ofego alto e
ergo os olhos, encontrando os seus a centímetros de distância.
— Quietinha, princesa.
Vozes altas invadem o hall atrás de nós. Meu coração bate
acelerado e começo a ficar em pânico, porém, não consigo me
mover. O que ela está fazendo? Por que está me escondendo dos
seus próprios homens, que estão tentando me impedir de roubar os
nossos dados dos computadores da sua máfia?
As íris esverdeadas encaram a porta enquanto ouço meu
nome sendo proferido diversas vezes do outro lado. Escrutino seu
rosto, observando o sangue escorrendo pela boca. Como se
sentisse meu olhar queimando, ela desliza os orbes até os meus.
Posso jurar que paro de respirar por uma fração de segundo.
Não tenho ideia do que está acontecendo aqui — e com o meu
corpo —, mas percebo que não pode continuar; sua presença me
sufoca, o corpo tão próximo do meu me deixa em chamas e a
confusão me distrai.
Não posso me distrair, e Alessia está sendo uma distração
enorme.
— Me solte — tento falar contra sua mão, o que a faz apertá-
la ainda mais contra minha boca.
Protesto em um resmungo e ela franze as sobrancelhas,
descontente com minha teimosia.
— Fique quieta, feiticeira — sussurra, voltando a atenção
para a porta.
Em meio à adrenalina e ao choque, não tenho tempo para
digerir a informação de que ela sabe o meu apelido de infância.
Ouço seu nome saindo da boca dos homens, só que é difícil
compreender o que eles estão falando. Pelo semblante fechado,
presumo que ela já imagine o que seja.
Romano aproxima a boca do meu ouvido e meus músculos
retraem em tensão.
— Preste atenção — sua entonação baixa envia um arrepio
pela minha coluna. — Não vou permitir que você chegue perto da
Sala de Comando e se precisar te machucar para isso, eu
machucarei. Nós sabemos exatamente onde sua máfia está agora;
Azue Avenue, não é?
Meu sangue congela. Ela poderia estar blefando, mas nosso
grupo está concentrado naquela avenida.
— Em cinco minutos, vamos explodir o galpão com todos eles
dentro. Se quiser salvá-los, sugiro que dê o fora daqui enquanto
ainda sou boazinha e a deixo ir sem entregá-la aos homens ali de
fora.
Esperando por uma resposta, ela libera minha boca. Contudo,
os dedos permanecem na minha mandíbula, como se estivessem
prontos para tampá-la novamente se necessário.
— Por que está me escondendo? — indago, furiosa. — Se
pretende me entregar aos seus cachorrinhos, por que está me
escondendo deles, porra? Não acha que é hipócrita demais da sua
parte?
Sem responder, ela me puxa pelo braço. Estou muito
desconcertada para analisar cada canto do apartamento e quando
mal percebo, já estamos adentrando um quarto. Sem dizer nada, ela
arrasta uma estante de livros para o lado e revela uma passagem
secreta. Após fazer o reconhecimento digital, a porta desliza para o
lado.
Ela me empurra para dentro e diz:
— Você vai sair na rua de trás.
Ela está me deixando ir?
Prometi a mim mesma que não voltaria ao nosso território
sem os dados das mercadorias, mas preciso avisar o meu pai.
Preciso tirá-los de lá a tempo, senão todos vão morrer.
Alessia percebe minha hesitação e me prensa contra a
parede, aproximando o rosto do meu.
— Vou deixar uma coisa clara — sussurra, perto demais dos
meus lábios. — Não vou te deixar viva porque tenho alguma
consideração pela sua máfia; pelo contrário, eu desprezo e mataria
cada um deles sem pensar duas vezes.
— Sua… — começo, irada, e ela me interrompe:
— Estou te deixando viva porque ninguém além de mim vai
tocar em você. Sou a única que vai te fazer sangrar, me entendeu?
Quando você pensar em nos enfrentar de novo, saiba que estará
enfrentando apenas a mim. E acredite, Bellini, sou muito pior do que
todos eles juntos.
Ela não estava mentindo.
Uma semana depois, quando tentamos invadir a cobertura
novamente para destruí-la — já que com certeza os dados não
estavam mais lá, mas não podíamos arriscar que estivessem
escondidos em outro lugar do apartamento —, alguns homens da
Timoria usaram a passagem secreta por onde saí. Dei a desculpa
de que a encontrei num mapa no sistema de segurança e ninguém
questionou.
Porém, quando eles chegaram do outro lado, uma bomba
explodiu.
Alessia sabia que nós voltaríamos e sabia que eu aproveitaria
aquele caminho para invadir. Ela me fez usá-lo de propósito para
que todos eles morressem.
E foi por isso que nos encontramos pela terceira vez.
 
 

 
“Não ouse olhá-lo nos olhos
Enquanto nós dançamos com o demônio esta noite
Rastejando através de minha pele
Sentindo seus olhos frios e mortos
Roubando a minha vida”
Dance With The Devil | Breaking Benjamin
 

 
Quatro dias se passaram desde que minha porta explodiu e
levei um tiro. O ferimento em meu ombro não foi tão grave, mas
precisei dar alguns pontos e manter o braço em repouso — o que é
uma grande merda, já que meu trabalho exige imprescindivelmente
que eu o use. Além de Sophie e Kai, o único que sabe sobre a
tentativa de assassinato é Marco. Fui obrigada a contar para ele, já
que meus seguranças morreram e, uma hora ou outra, as pessoas
notariam. Então, para que a notícia não chegasse ao meu pai, fui
até Sartori e implorei para que me ajudasse a encobrir.
É claro que ele fez um milhão de perguntas, ameaçou
inúmeras vezes contar para Alessandro e tentou me convencer de
morar em outra casa, protegida por dezenas de soldados e vigiada
vinte e quatro horas por dia. Meio que uma prisão.
E é claro que eu recusei, além de ter conseguido mantê-lo de
boca fechada. Garanti que tudo estava sob controle e o ataque foi
resultante de uma briga em um bar. Duvido que Marco tenha
acreditado na desculpa de que “um pessoal com quem troquei
alguns socos me seguiu até a minha casa”, mas pelo menos desistiu
do interrogatório.
Se meu pai sonhar que fiz aquilo no portão do Fortuna, ferida
e sozinha — e seminua —, eu sofreria uma grave punição. Nenhum
soldado que já quebrou as regras saiu impune. Se não houver uma
ordem e a pessoa agir sozinha, por vontade própria, há apenas
duas opções: ela é exilada ou morta.
Não quero ser exilada, muito menos morta. Por isso, torci
para que os homens de Alessia não espalhassem aquilo. Fofocas
correm rápido demais.
Faz quatro dias que não tenho notícias dela. Quatro dias que
as coisas estão estranhamente calmas no mundo exterior, mas
dentro de mim, tudo fica ainda mais caótico. Dormi pouquíssimas
horas nesses quatro dias e tive dor de cabeça e nos olhos devido à
quantidade de tempo que passei em frente ao computador —
investigando e tentando encontrar algo suspeito em nossa área.
Nada. Tudo está calmo e esquisito demais.
À essa altura, a Vendetta já deveria ter feito algo. Soube que
eles estão ocupados com a transição de chefes e toda a burocracia,
porém, ainda é estranho. Não me parece certo.
Kai desce as escadas e se senta ao meu lado no sofá. Ele
chegou há meia hora, dando a desculpa de que estava por perto e
queria verificar meu ferimento. Eu sei que o que ele realmente quer
é conversar, já que o clima entre nós está ruim desde sexta-feira.
A televisão transmite uma série qualquer, o notebook em meu
colo exibe inúmeros códigos e o ar-condicionado deixa o clima
agradável. O relógio marca oito da noite e é quarta-feira, um dos
dias fixos em que há corrida. Combinei com Sophie que nós iríamos,
mas não tenho certeza se Kai vai.
— Vai à corrida? — ele pergunta, como se lesse os meus
pensamentos.
— Sim e Sophie também. Você? — Não tiro os olhos da tela,
mas vejo de soslaio seu olhar cravado em mim.
— Vou. Vamos nós três.
Assinto e voltamos ao silêncio. Detesto quando as coisas
ficam assim entre nós dois. 
— Então… — ele quebra a quietude, limpa a garganta e se
ajeita no sofá. É nítido que está nervoso. — Me desculpe se eu fui
um otário na sexta-feira. Eu só… estou muito preocupado com você,
Lyanna. Sei o quanto a volta dela está te afetando e tenho medo do
que ela pode fazer. Você estava baleada e completamente fora de
si, por isso agi daquela forma. Eu só queria te proteger, você sabe,
não é?
Viro a cabeça e encontro seus olhos escuros um pouco
arregalados. Kai não é a melhor pessoa para se ter conversas
sérias; ele é do tipo “ignorar e seguir a vida”. Deve ser por isso que
nenhum dos seus relacionamentos durou mais do que um mês.
— Ela não vai me machucar de novo — asseguro. — E se ela
tentar, está ciente de que não só vou envolver a Timoria nisso, como
também não vou hesitar em matá-la.
Ele respira fundo, passa o polegar no queixo e desvia o olhar.
Está tão inquieto que sou obrigada a colocar o computador de lado,
me virar de frente para ele e perguntar:
— Por que está assim?
— Não é óbvio? — rebate, mirando o curativo em meu
ombro. Por estar usando regata, a atadura que envolve a região fica
visível. — Mesmo que você acredite que ela não vai te machucar, eu
discordo. O que ela fez com você há cinco anos, Lyanna… Como
pode dizer que ela não vai te machucar? Alessia é a pessoa mais
poderosa da Vendetta agora, ouso dizer que uma das mais
poderosas de todo o mundo do crime. Como pode acreditar que ela
não vai te machucar?
A mínima menção de sua liderança já cria um nó em minha
garganta.
— Ela fez aquilo e saiu impune, desapareceu como a porra
de uma covarde. Não consigo… — sua voz aumenta de volume a
cada palavra, a irritação se tornando explícita. — Não consigo
aceitar que ela te destruiu e nunca pagou por isso. Agora está de
volta, sem mais nem menos, e não vamos fazer nada sobre isso?
Não vamos nos vingar pelo que ela fez?
— Kai, esse assunto é entre mim e ela. — Seus lábios finos
friccionam em insatisfação. — Não cabe a você se vingar por mim.
Sou eu, e apenas eu, que tenho o direito de fazer isso, entende?
— Toda a organização sofreu com o que ela fez, Lyanna. —
Cerro as pálpebras em advertência e ele suspira. — Eu sei que você
foi a principal, não estou invalidando o seu sofrimento. Nunca faria
isso. Só… queria poder te ajudar. Deus sabe o que estou disposto a
fazer para cair no soco com aquela babaca.
— Não seja estúpido, Kai. Alessia não teria problema nenhum
em te machucar e não sei qual dos dois eu mataria primeiro caso
ela fizesse isso.
Para descontrair o clima, ele levanta o braço e flexiona o
bíceps com uma careta convencida.
— Acha que ela é páreo para esse bebê aqui?
— Acho. — Reviro os olhos em diversão. — Ela treina desde
que aprendeu a andar. Você sabe que ela é forte pra caramba.
— Está escolhendo o lado dela? — indaga, arqueando uma
sobrancelha.
— Claro que não.
O canto da sua boca cai e passamos alguns segundos
calados. Deixo um suspiro pesado escapar e fito o estofado. Minha
cabeça está tão cheia que não consigo ter paz nem mesmo
dormindo; tenho sonhado com Romano desde que ela voltou.
— Quando chegamos aqui… — ele volta a falar, em um tom
baixo e chateado. — Pensei que te encontraria morta, ou quase.
Não posso viver sem você e Sophie. Nós três… sempre será nós
três. Não um ou dois, três. Não posso perder vocês, Lyanna, e farei
tudo que estiver ao meu alcance para que isso nunca aconteça.
Abro um sorriso genuíno, levanto a cabeça e me aproximo
dele. Envolvo os braços em seu pescoço e apoio a bochecha em
seu peito, sentindo-o abraçar minha coluna. Um beijo casto é
deixado no topo da minha cabeça e eu fecho os olhos, ouvindo as
batidas aceleradas de seu coração.
— Está tudo bem, Kai — minto, pois nada está bem dentro de
mim. — Eu vou lidar com ela, não se preocupe.
Não menciono o fato de que independentemente do que
aconteça, sei que vou acabar com o coração quebrado novamente.
 

 
Sophie volta correndo para o meu lado e me estende uma
long neck, a minha terceira. Não demoro para dar o primeiro gole e
nós voltamos para o meio da multidão concentrada embaixo da
grande estrutura velha do que costumava ser um posto de gasolina.
Algumas vezes, sou obrigada a dispensar meus seguranças
para poder me divertir em paz. Apesar dos protestos de meu pai,
seria extremamente desconfortável ter alguém no meu pé nos meus
momentos de lazer. Por isso, não é a primeira vez que despisto os
homens para sair com os meus amigos. Acho que eles e até mesmo
Alessandro já se acostumaram.
Duas corridas já aconteceram e a terceira começa em alguns
minutos. Kai disse que viria, mas um imprevisto aconteceu e ele
teve que cuidar de alguma coisa. Não entrou em detalhes, então
não sei se é algo relacionado à situação na qual estamos.
Diversos carros estão espalhados, todos servindo de assento
para as pessoas. As caixas de som tocam uma música alta e
sensual e a fumaça dos cigarros e dos becks já se propagou pela
maior parte do espaço. Às vezes, me sinto estranha nesse tipo de
lugar, como se já não pertencesse mais a ele. Desde que entrei no
Conselho, acho que me acostumei com a realidade dos meus tios,
os quais só trabalham, apostam e fodem. A maioria aqui é composta
por soldados e apenas um ou outro capo mais novo, como Sophie e
eu.
Tenho apenas vinte e seis, mas toda a responsabilidade da
máfia me faz sentir como se tivesse quarenta.
Nós nos juntamos ao pessoal da equipe de Sophie e
começamos a conversar, no aguardo da próxima corrida. Porém, a
música cessa de repente e alguns gritos soam próximo da estrada.
Olho por cima do ombro e percebo uma movimentação estranha, o
que me faz caminhar até lá com Wilson no meu enlaço.
Quando chego ao acostamento, uma moto freia de abrupto e
desliza de lado até parar na minha frente. O piloto está inteiramente
coberto de preto, dos dedos enluvados ao capacete, o que
impossibilita que as pessoas saibam quem é.
Mas eu sei. Não preciso que nenhuma parte de seu corpo
esteja exposta para reconhecê-la, porque reconheço o modo como
ela pilota uma moto. Reconheço tudo que ela faz, embora não goste
disso.
— Quem é você? — uma voz masculina pergunta. — Tire o
capacete agora!
Todos entram na defensiva, colocando as mãos nos coldres e
se aproximando de nós. Engulo em seco e respiro fundo, vendo
meu próprio reflexo no vidro fumê de seu capacete. Tenho certeza
de que ela está me encarando de volta, no entanto, e é por isso que
não desvio o olhar.
O que Alessia está fazendo aqui, inferno?
Sua mão larga o guidão e adentra o bolso externo da jaqueta
de couro. Ouço alguns revólveres sendo ativados atrás de mim, mas
Romano não se importa. Ela me estende um pedaço de papel
dobrado e eu reluto em apanhá-lo por uma fração de segundo.
Quando pego e desdobro a folha, sinto o coração saltar.
“Não diga nada, apenas suba. Ninguém pode saber sobre
isso.
Venha comigo, por favor. Há algo que você precisa ver.”
Cerro a mandíbula e ergo o queixo. Sinto os dedos trêmulos e
a garganta fechada, um claro sinal de que ainda não me recuperei
do que aconteceu quatro dias atrás. Não sei se consigo olhar para a
cara dela novamente tão cedo, porém, de alguma forma, capto
naquelas palavras um tom sério demais para ignorar.
Não é uma boa ideia, uma voz sussurra em meu ouvido.
Desde que a conheço, vi Romano usar “por favor”
pouquíssimas vezes.
— Suba — ouço-a sussurrar para que apenas eu escute.
Viro o rosto para encontrar Sophie, que nos observa de cenho
franzido e olhar questionador. Em nossa breve troca de olhares,
consigo senti-la me perguntando se tenho certeza.
Não tenho, mas minha intuição me diz que é necessário.
Então, a contragosto, subo na moto. Mantenho a maior distância
possível do corpo de Alessia e seguro nas alças com força. Decido
não olhar para ninguém enquanto ela dá partida e voa para longe,
porque sei que posso me arrepender da loucura que acabei de
cometer.
 

“Quando você me trata daquele jeito


Até onde posso dizer, é meio louco
Que você se importe de alguma forma
Foi você quem me derrubou”
like that | Bea Miller
 

 
Alessia dirige por meia hora até chegarmos em seu destino,
que é um barracão fora dos limites de Las Vegas. Meu coração não
desacelerou em nenhum momento do trajeto, assim como meu
corpo se manteve duro como pedra. Não estava nos meus planos
andar de moto com ela nunca mais.
Era algo que fazíamos com frequência e uma das minhas
coisas preferidas em nossa relação. Na estrada, não havia
rivalidade e guerra; enquanto o vento gélido batia contra meu rosto
e eu gritava em deleite, abrindo os braços e jogando a cabeça para
trás, minha única certeza era que aquela mulher fazia tudo valer a
pena.
Agora, o sentimento é tão contrário que embrulha meu
estômago.
Quando ela estaciona e desliga o motor, salto depressa da
moto e tento regular a respiração antes que Romano perceba. Ela
faz o mesmo e levanto o olhar, assistindo-a tirar o capacete. Seu
cabelo cai pela coluna e os dedos penteiam a parte da frente,
jogando-o de um lado só.
Sigo-a até o interior e ela arrasta o portão de ferro, me dando
passagem para fechá-lo em seguida. A escuridão nos envolve por
um segundo antes das luzes se acenderem. A princípio, parece com
qualquer outro barracão no qual já estive.
Ainda calada, ela me conduz até a outra extremidade do lugar
e abre uma porta de madeira. Vejo um enorme lance de escadas
descendo e sendo engolido pela escuridão. Olho para ela e hesito.
— Não vou descer se não me explicar.
— Não é uma armadilha e não vou te machucar — promete, e
não acredito. — Apenas desça.
Puxo o ar e espremo as pálpebras. Não tenho um
pressentimento ruim na boca do estômago, mas ainda acho toda
essa situação esquisita e suspeita. Romano percebe minha
relutância, pois continua:
— Não temos todo o tempo do mundo. Vou descer primeiro.
Então, ela desce e não vejo outra alternativa além de segui-
la. Fecho a porta atrás de mim e nós voltamos para a escuridão, que
é logo substituída pela claridade quando alcançamos um chão e um
interruptor é acesso. Há um longo corredor à frente pelo qual
passamos, dobramos várias esquinas e quando penso que
chegamos a algum lugar, mais uma aparece.
Começo a ficar nervosa. Deslizo a mão por baixo do cós da
saia, tocando as três bainhas de faca no coldre de couro preso à
minha coxa. Sinto-me um pouco mais segura tocando-as e recolho a
mão, ainda mantendo os dedos próximos o suficiente para
conseguir sacar as facas caso necessário.
Abro a boca para perguntar onde diabos ela está me levando,
até que finalmente paramos em frente a uma porta. O cheiro é tão
ruim que revira meu estômago e franzo meu nariz em incômodo.
Aqui embaixo é muito, muito frio, o que me causa calafrios por estar
usando uma saia plissada e blusa de alças finas.
Seus dedos alcançam a maçaneta, mas ela se vira para mim
antes de girá-la.
— O que vou te mostrar não pode sair daqui — a seriedade
em sua entonação me faz estremecer. — Falo sério, Bellini. Não
pode falar para ninguém, nem mesmo Jeon ou Wilson. Se abrir a
boca, vai causar problemas para nós duas.
Enrugo a testa em confusão e ela abre a porta. Ao escorregar
os olhos até o interior da sala enorme, solto um arquejo alto e
incrédulo. O calafrio que percorre meu corpo não é decorrente do
frio, mas do choque.
Em passos receosos, me aproximo e sinto a presença de
Alessia atrás de mim.
— Riccardo de Luca e Sebastian Romano — murmura em
meu ouvido.
Dois corpos estão, literalmente, pregados a uma cruz. Os
rostos estão desfigurados, há uma forte marca de corda nos
pescoços e as barrigas exibem inúmeros cortes. As mãos foram
cortadas e a nudez deixa visível que não há nenhuma parte de seus
troncos sem algum tipo de ferimento. Os pregos estão enfiados ao
longo dos braços e no meio da testa, e presumo que a força
utilizada para fazê-los atravessar o corpo e fincar na madeira tenha
sido mais primitiva do que consigo imaginar.
Já vi muitas pessoas torturadas por Alessia, mas nenhuma
assim. Embora ela tenha agido de forma selvagem, não consigo
sentir pena desses homens ao me recordar do fato de que eles são
tios dela.
Saber que ela fez isso com alguém da própria família me
agrada mais do que deveria.
— Passei três dias investigando todos os meus homens. Um
por um. — sussurra, e um arrepio atravessa minha coluna quando
sinto seu corpo quase colado ao meu. — Foram eles que enviaram
aquele homem à sua casa.
Ela fez isso com eles… por minha causa.
Meu coração quase sai pela boca. Estou tão abalada,
chocada e eufórica que não consigo tirar os olhos deles.
— Eles acreditavam que seu pai matou Dante — explica. —
Então enviaram aquele homem para se vingar de Alessandro.
Puxo o ar e o odor forte de sangue fresco atinge meu cérebro.
Deve ter acabado de acontecer, já que algumas gotas de sangue
ainda caem dos cortes até o chão.
— Devo acreditar na sua palavra? — desdenho, me virando
de frente para ela.
Um grande — enorme — erro. Alessia está mais próxima do
que eu imaginava e nossos narizes quase tocam um no outro
quando levanto a cabeça para olhá-la. Tento dar um passo para trás
em reflexo, mas sua mão envolve meu braço e me puxa para perto.
— Não toque em mim — digo, só que não faço esforço para
me soltar.
Por que não faço esforço para me soltar?
Suas pupilas estão dilatadas, cobrindo o tom claro de verde.
Através dos olhos que sequer piscam, noto que ela ainda está
absorta na euforia da tortura.
— Sebastian era consigliére e Riccardo era um dos mais
antigos capos da Vendetta — sussurra. — Matei soldados bons por
você. Mateis meus tios por você.
— Não te pedi para matar ninguém — retruco. — Não me
meta nisso.
— Você não precisa me pedir nada, Bellini, não consegue
entender? Faço qualquer merda por você, até a mais estúpida e
inconsequente possível.
Endureço a mandíbula e entreabro a boca para responder,
mas desisto. Sou incapaz de formular uma resposta para essa frase.
— Deveria ter enviado eles para mim, afinal, eu fui a vítima —
falo, o queixo erguido em presunção. — Eu é quem deveria ter
matado esses filhos da puta, não você.
— Eles eram meus. — Ela inclina o rosto para frente e a
ponta de seu nariz escorrega na do meu. Minha respiração falha, as
pernas estremecem e praguejo a mim mesma por não conseguir
mover um músculo sequer a fim de me afastar dela. Seu sussurro
bate contra minha boca: — Eles eram meus e machucaram o que é
meu. Ninguém toca em você e fica vivo para contar a história,
Bellini. Nem mesmo alguém do meu próprio sangue.
— Não sou sua — firme, digo. — O único sentimento que
sinto por você é repulsa. Não seja ridícula de pensar que existe
qualquer outro espaço para você dentro de mim.
Ela ri baixo e nasalado.
— O que você não entende, principessa, é que sempre foi e
sempre será minha. Não importa o que aconteça, quanto tempo
passe ou qual sentimento exista no seu coração. No fundo, sabe
que semanas, meses e malditos anos não vão mudar o fato de que
cada centímetro da sua alma pertence a mim.
Sua mão sobe até minha nuca, apertando-a, e ofego. Alessia
abre um sorriso diabólico de canto, provavelmente adorando
vislumbrar a reação involuntária do meu corpo.
— Você é tão perturbada e iludida que me dá pena —
murmuro, quase cuspindo as palavras. — Ouça com atenção:
Nunca mais serei sua.
— Ouça você com atenção: Não me importo com seu ódio e
suas ameaças. No final do dia, não importa o que você faça ou diga,
continuará sendo minha. — Ela desliza o nariz pela minha
mandíbula e mordo a bochecha para extravasar a raiva, tão forte
que sinto o gosto metálico do sangue. — Se qualquer outra pessoa
entrar no meu caminho, Lyanna, vai ter um fim pior do que o dos
meus tios. Vou destruir todas as mulheres que encostaram em você
nos últimos anos até você entender que ninguém toca no que é
meu.
— Pode matar toda a população do país e nem assim vou ser
sua.
Seus olhos brilham.
— Quer? Quer que eu mate o país inteiro por você?
— É claro que não! — esbravejo. — Nada que você fizer vai
mudar isso, Romano. Depois que você…
— Não termine — ordena, ríspida e séria, afastando o rosto
para cravar os olhos nos meus. — Não termine a porra da frase.
— Não aguenta ouvir sobre suas próprias atitudes?
Levo a mão livre até sua mandíbula e aperto, deixando seu
rosto à minha mercê. Alessia intensifica a força em minha nuca, mas
não me intimido.
— Quero provas — ordeno. — Quero provas de que foram
eles e você não tem nada a ver com aquilo. E não pense que muda
alguma coisa, porque não muda. Só quero ter certeza de que não
preciso ir atrás de você mais uma vez.
Alessia umedece os lábios e sorri.
— Minha gatinha selvagem.
Grunho alto e coloco mais força no aperto, o que parece
agradá-la. Romano sorri em deleite, como se tivesse conseguido
exatamente o que queria.
— Sente falta desse apelido?
— Cale a maldita boca.
— Me dê um beijo.
O fogo crepita em meu peito e sou pega de surpresa pelo
pedido. Estremeço, engolindo o nó na garganta, e sinto os dedos
fincando em minha coxa. Antes que eu possa raciocinar, minha
perna é levantada em direção ao seu quadril e a inclinação faz com
que minha saia escorregue, expondo o coldre em minha coxa.
Embora os olhos estejam cravados nos meus, sei que ela viu as
facas bem ali.
— Tem cinco segundos para me soltar — ameaço.
Seu toque é quente e firme, segurando-me tão forte que
ficarei com a marca avermelhada dos seus dedos depois.
— Tem cinco segundos para me dar um beijo — revida,
umedecendo os lábios.
— Deve ter batido a cabeça e se esquecido de que odeio
você. Não te beijaria novamente nem se minha vida dependesse
disso.
— A minha depende — sussurra, descendo o olhar até o
vermelho escarlate em minha boca. — Minha vida depende de um
beijo seu, principessa.
— Morra, então.
Ela sorri, divertindo-se. Não acho que tem a menor graça,
muito pelo contrário. Detesto suas provocações e a tentativa
estúpida de me seduzir. Alessia nunca me conheceu de verdade se
acha que vou ceder ao seu papinho sujo e barato.
— Estou morrendo sem um beijo seu, não vê? — Os dedos
fincam ainda mais em minha pele e me lembro de que ela está
segurando minha coxa. E de que ainda não me afastei. — Você é
realmente uma feiticeira, Bellini.
Não é a primeira vez que essas exatas palavras saem de sua
boca. No dia em que nos beijamos pela primeira vez, Alessia disse:
“Você é realmente uma feiticeira, Bellini. Enfeitiçou a porra da
minha cabeça, da minha alma e da minha vida.”
Ela ignora o aperto na mandíbula, ainda que seja forte e
provavelmente lhe provoque dor, e aproxima o rosto do meu. Travo
a respiração quando sua voz rouca sopra contra meus lábios:
— Não brinco quando digo que minha vida depende de um
beijo seu, principessa. Sinto que vou morrer se não provar o seu
gosto mais uma vez. Me enfeitiçou como a porra de uma bruxa, a
mais linda e selvagem de todas. Minha.
O odor de sangue, sua aproximação e o fato de que há dois
homens atrás de mim, torturados e assassinados porque mexeram
comigo, me deixa atordoada. O rebuliço em meu estômago triplica
de tamanho a cada palavra dita no tom lascivo que ela adorava usar
quando queria deslizar minha calcinha para o lado e meter os dedos
dentro de mim.
E eu sempre permiti.
— O que pensa que está fazendo? — indago, ultrajada. —
Acha que as coisas vão se resolver com palavras sujas e falsas,
Romano? Na verdade, acha que vou acreditar em tudo isso?
— Quem disse que me importo se você acredita ou não? —
rebate, escorregando os dedos da nuca até a ponta do meu cabelo.
Ela pega a mecha e a aproxima do nariz, fechando os olhos ao
inspirar devagar. — Mesmo shampoo de antes.
Jesus, ela é completamente maluca.
— Chega! — vocifero, soltando-a e me afastando em um
solavanco. Meu pé volta a atingir o chão e percebo que a perna
segurada por ela está tremendo. — Pare de me provocar. Pare com
esse papinho ridículo ou vai se arrepender. Não me procure de novo
se não estiver com as provas que pedi.
Dou os primeiros passos em direção à porta e Alessia
aproveita a oportunidade para segurar o meu pulso quando meu
ombro está ao lado do dela. Aproxima a boca do meu ouvido e
sussurra:
— Na próxima vez que aparecer seminua na frente dos meus
homens, vai me assistir arrancando os olhos de cada um deles.
“Estou pisando no destino
Não há tempo a perder
Eu tenho essa luz dentro de mim
É assim que as lendas são feitas”
Legends Are Made | Sam Tinnesz
 

Uma semana depois da morte de Dante, estou prestes a ser


oficializada como don. A primeira mulher da história do submundo a
se tornar chefe de uma máfia.
Construí uma reputação por muitos anos, selei alianças e
joguei o jogo conforme os jogadores, ainda que detestasse muitas
das coisas que precisava fazer. Prestei favores aos homens mais
poderosos do nosso meio e fora dele, apenas para deixá-los em
dívida comigo.
Porque o momento de cobrá-la chegaria, independente das
circunstâncias.
E chegou.
Segundo o documento que Chloe me entregou, metade do
Conselho me queria morta e já estava começando a arquitetar um
plano para que Antonio, o braço direito de Dante, tomasse o meu
lugar. Eles sequer consideram Sienna para a liderança, mesmo ela
sendo a segunda herdeira da Vendetta, mas essa é uma coisa da
qual não vou reclamar. Eu mataria quem fosse preciso antes de
permitir que minha irmã descobrisse e sentisse na pele o que
significa alcançar o poder nesse mundo.
Depois de cinco reuniões e algumas negociações, no
entanto, eles parecem menos dispostos a me desafiarem. Dei uma
amostra de tudo que posso fazer e dos contatos que consegui ao
longo dos anos, além de ter deixado claro que não vou tolerar
traidores. Na primeira suspeita de que há um entre nós, vou
executá-lo.
A oficialização do meu cargo está acontecendo em um largo
terreno baldio nos limites de Vegas, completamente lotado. O alto
escalão de todas as nossas subdivisões viajou apenas para
presenciar este momento. Já estamos quase perto da meia noite,
então em poucos minutos a cerimônia vai começar.
— Pronta? — Yuna pergunta, parando ao meu lado.
Viro o rosto para mirá-la e encontro seu sorriso contagiante,
que demonstra o quanto ela está empolgada. Eu assinto e ela se
inclina, junta nossas testas e segura minha nuca. Eu faço o mesmo
e nós sussurramos em uníssono, olhando uma para a outra:
— Per il nostro sangue vivo e per il nostro sangue morirò.
Pelo nosso sangue eu vivo e pelo nosso sangue eu morrerei.
Nos afastamos e ela faz um breve carinho em meu queixo.
Enquanto caminhamos até o pequeno palco, as conversas
cessam. Vejo meu amigo no centro, em frente à bandeja de
mármore, e subimos as pequenas escadas para nos pôr ao seu
lado.
— Atenção! — ele grita, o silêncio absoluto fazendo com que
sua voz ecoe pelos quatro ventos. — Estamos reunidos esta noite
para oficializar Alessia Romano, a filha mais velha e herdeira de
Dante Romano, como a nova don da Vendetta.
Gritos. Muitos, muitos gritos. Mãos levantadas e assobios
eufóricos.
Com um sorriso de lado, Jay continua:
— Também tornaremos oficial o título de Underboss para
mim, Jayden King, e o de consigliére para Yuna Yamazaki.
Não foi difícil fingir que eu não sabia de nada sobre a morte
de Sebastian Romano quando a informação chegou até mim, e foi
ainda menos difícil capturar um traficante que nos devia milhares de
dólares, o qual fui obrigada a matar para simular um suicídio após o
assassinato de Sebastian.
Agradeci ao destino, já que não precisaria lidar com mais uma
perturbação no Conselho depois que tirasse Sebastian do cargo
para colocar Yuna. Porém, Antonio Romano não está nada
contente. Ele é temperamental e explosivo, então talvez eu tenha
que matá-lo em breve para evitar problemas.
Não confio em mais ninguém para estar ao meu lado. Sei que
Jayden e Yuna morreriam e matariam por mim e pela organização, e
é desse tipo de pessoa que preciso.
Procuro por Sienna em meio à multidão e a encontro no canto
direito, ao lado de seus amigos. Estive em seu quarto mais cedo
para conversarmos, mas ela ainda não quer me receber. O único
motivo pelo qual está aqui é porque sabe o quanto isso é
importante, um momento que ficará marcado na história.
E ela está feliz por mim, sei que está. Sua felicidade só não é
maior do que o luto e eu não esperava que fosse, de qualquer
maneira. Apesar do rosto pálido e o semblante cabisbaixo, ela abre
um pequeno sorriso de lado para mim. Eu retribuo, balançando a
cabeça em um gesto que diz: “Vou cuidar de tudo, irmã”.
Dou um passo adiante e entrelaço as mãos atrás do corpo.
Com o queixo erguido e uma sensação extasiante no peito, começo
o mini discurso:
— Em primeiro lugar, quero que tiremos um minuto do nosso
tempo para agradecer a Dante Romano por ter dedicado sua vida à
nossa organização, à sua família e aos nossos interesses.
Todos assentem, alguns olhos se fecham e mãos em punho
tocam o peito.
Um minuto parece uma hora. Quando o momento termina,
grito:
— Per il nostro sangue hai vissuto e per il nostro sangue sei
morto.
Pelo nosso sangue você viveu e pelo nosso sangue você
morreu.
Eles repetem alto e em uníssono, e o som envia uma corrente
elétrica através da minha coluna.
— Nem todos vocês concordam com a minha liderança —
começo. — E não me entendam mal, mas não tenho a mínima
intenção de ser amada por todos, assim como Dante esteve longe
de ser. Meu papel é fazer com que a Vendetta continue tendo o
poder, a reputação e o nome que construiu ao longo de todas essas
décadas; é expandir ainda mais o nosso território, nossa fortuna e
negócios; é proteger e auxiliar cada um de vocês, mesmo que
quando eu virar as costas for desrespeitada e questionada.
“Não estou assumindo a liderança só porque sou herdeira de
Dante. Estou assumindo porque sou Alessia Romano, alguém que
nunca pensou duas vezes antes de fazer todo o necessário para
proteger este grupo, seus interesses, seu povo e seu território;
alguém que derramou sangue próprio e alheio para que ninguém
mais precisasse; alguém que enfrentou demônios dos quais vocês
sequer imaginam, mas que destruiriam cada um que está aqui hoje
se eu não os tivesse destruído antes; alguém que não é menos
capaz por ser mulher e, na verdade, é muito mais competente do
que muitos que questionam a minha capacidade.”
Tomo alguns segundos para respirar e finalizo com a nossa
frase:
—  Pelo nosso sangue eu vivo e pelo nosso sangue eu
morrerei!
Gritos e mais gritos. Pessoas batendo palmas, apontando
para mim e me ovacionando. Muito, muito mais do que eu
imaginava.
Não esperava que metade desse povo demonstrasse apoio à
minha liderança. Não posso negar que estou surpresa.
Quando a agitação diminui e os gritos cessam, Jayden volta a
falar:
— Se alguém tiver uma objeção, fale agora e enfrente um
duelo com Alessia Romano.
Silêncio.
Ele estica o braço e apanha a adaga que repousa ao lado da
bandeja. Depois, se volta para mim.
— Pronta? — sussurra.
Assinto, paro em frente ao pilar que sustenta a bandeja e
pego a faca da mão de Jayden. Ao abaixar os olhos, me deparo
com as cinzas de Dante, uma vez que a cerimônia de posse conta
com a tradição do novo líder derramar o seu sangue nas cinzas do
antigo como um juramento de honrar o seu legado.
Levanto a mão esquerda, encosto a lâmina gelada na palma
e fecho-a em punho. Levanto o olhar até as milhares de pessoas, a
maioria delas fazendo o mesmo gesto que eu — todos que têm a
idade entre 18 e 40 se juntam na tradição do sangue. Observo as
diversas facas posicionadas no meio de seus punhos e sinto o
frenesi no peito.
Não me lembro da última vez que me senti tão realizada
assim.
— Dal nostro sangue siamo nati[7]! — grito, pressionando com
força o aço em minha pele.
A dor que começa a surgir faz meu coração disparar em puro
êxtase. Sinto o corpo queimar e o ar preencher os pulmões.
— Dal nostro sangue siamo nati! — eles brandam de volta,
com as mãos levantadas.
— E per il nostro sangue moriremo[8]! — Deslizo a faca até
cortar toda a palma.
É forte. Dói.
O sangue cobre e escorre pela minha pele, pinta o cabo da
adaga de vermelho e escorrega pelo pulso. Em menos de dois
segundos, cai na bandeja e começa a formar uma poça escarlate.
Enquanto meu sangue se mistura às cinzas e ouço os berros
eufóricos da famiglia, sinto que sou invencível. Sinto que nada é
capaz de me parar, porque sou a nova líder da maior máfia dos
Estados Unidos e posso, finalmente, conseguir o que eu quero.
Conseguir o que me fez voltar para Las Vegas.
 

“Minha cabeça é uma selva


Meu amor é desperdiçado, desculpe por isso, não era para ser
assim”
Jungle | Emma Louise
 

 
Quando adentro a enorme mansão de meu pai, sinto um
incômodo no peito. Atravesso o hall e chego à sala, onde o vejo
sentado à mesa com diversos papéis espalhados pela superfície de
vidro e uma carranca no rosto. Notando minha presença, ele ergue
o queixo e me fita.
— Lyanna, você chegou — diz, reunindo depressa as folhas
em um único monte. — Eu estava revisando algumas coisas.
— Pensei que você tiraria o dia de folga. — Sento no encosto
do sofá, observando-o segurar a pilha de papéis antes de caminhar
até mim.
Nós combinamos de passar um tempo juntos, já que faz
alguns meses desde a última vez que tivemos um programa em
família.
— Tudo bem, filha? — ele pergunta, parado na minha frente,
e acaricia meu ombro com a mão livre.
O ombro ferido.
Prendo a respiração e reprimo o grunhido baixo. Abro um
sorriso torto, assinto e me levanto para afastar o seu toque. Ainda
sinto dor ao tocar na região lesionada. Por isso, embora seja um dia
quente, fui obrigada a vestir um casaco por cima do vestido.
— Estou bem e você? Como andam as coisas na
organização?
Alessandro Bellini se transforma em outra pessoa quando
está comigo. Com os demais, ele é áspero, duro e inflexível;
comigo, é gentil e carinhoso. Apesar de termos nos afastado nos
últimos anos, nossa relação continua sendo boa. Ele faria de tudo
por mim e eu, por ele.
— Não vamos falar sobre trabalho — pede, emaranhando os
dedos nos cabelos loiros. — Vou pegar a chave do carro para irmos.
Seus olhos carregam uma tonalidade escura de azul hoje. É
bonito, porém há algo neles que me deixa inquieta. Sinto que ele
está escondendo alguma coisa importante de mim.
— Pai — chamo, vendo-o parar no meio da escada. — Está
tudo bem mesmo?
Ele anui e me oferece um pequeno sorriso de lado, voltando a
subir as escadas e desaparecendo.
Há algo de errado e não consigo me desprender do
pressentimento ruim. Não é como se meu pai me revelasse todos os
segredos da Timoria, mas minha intuição diz que, de alguma forma,
estou envolvida em seja lá o que esteja acontecendo.
Uma hora depois, estamos no meu restaurante favorito. Ele
fechou o estabelecimento apenas para nós e os seguranças
rodeiam o lugar de uma forma nada discreta, nos tirando um pouco
da privacidade. Embora — espero que —, não estejam nos ouvindo.
— Lyanna, uma informação chegou até mim… — Levanto o
olhar do meu prato para mirá-lo. — Você subiu na moto de um
desconhecido, filha?
Inferno, não acredito que ele descobriu.
— Era um amigo — respondo, dando de ombros. Preciso
fingir que não é nada demais. — Um amigo que conheci no ano
passado em Nova Iorque. Ele apareceu de repente na cidade e
soube que eu estava lá, então decidiu me pegar para dar uma volta.
Alessandro Bellini não é estúpido. Noto que ele não acredita
na mentira, mas continuo com a postura despretensiosa.
— Qual é o nome dele? — pergunta, dando uma garfada em
seu bife. — É um civil ou faz parte do nosso mundo?
— É um civil, pai. Trabalha em uma oficina mecânica lá em
NY. Não precisa se preocupar.
Sua testa crispa em desconfiança.
— Disseram-me que ele estava todo coberto, invadiu a
corrida e não se apresentou. Espero que não esteja mentindo para
mim, Lyanna.
— Por que eu mentiria? — Levanto a sobrancelha. — Quem o
Sr. pensa que era, pai?
Vejo seu pomo de adão subindo e descendo.
— Não sei quem poderia ser, só me preocupo com a sua
segurança. Pelo que ouvi, foi algo estranho. Qual é o nome dele?
— Kaleb — solto o primeiro que me vem à mente. — Ele não
está acostumado com o nosso mundo, pai. Acho que ele não
pensou que teria um monte de armas apontadas para sua cabeça
só por aparecer numa corrida.
Um suspiro pesado lhe escapa.
— Não faça isso de novo, filha. É perigoso demais sair por aí
na garupa de desconhecidos.
Saí por aí na garupa de Alessia Romano, pai. Nada é mais
perigoso do que isso.
— Como estão as coisas? — mudo de assunto, desesperada
para desviar o foco de mim. — Sei que não quer falar sobre
trabalho, mas acho importante.
— As coisas estão complicadas, como é de se esperar. —
Beberica seu vinho branco. — Ah, antes que eu me esqueça,
Donovan nos convidou para um jantar hoje. Em comemoração ao
seu aniversário.
— Sério? — Franzo as sobrancelhas, intrigada. — Na casa
dele?
O prefeito não costuma nos convidar para eventos nos quais
há pessoas que não pertencem ao mundo do crime. Não seria bom
para a sua reputação que soubessem sobre seus negócios com os
mafiosos. Por isso, o convite me deixa com uma pulga atrás da
orelha.
— Sim, na casa dele.
— E nós vamos? — indago, levando uma garfada de
carbonara à boca. — Sabe que se eu for, levarei Sophie e Kai. Não
sou capaz de aguentar um evento político sozinha.
— Ele disse que devo levar quem eu quiser. Donovan está
aprontando alguma coisa, Lyanna. Conversei com Mathias sobre
esse convite e ele concorda que há algo que Frank não está nos
contando, então vamos preparados.
— Acha que ele nos trairia?
— Não, mas tenho certeza de que ele faria qualquer coisa
para benefício próprio.
Assinto, bebendo meu vinho.
— Vou deixar alguns homens monitorando o jantar a alguns
quilômetros da casa de Donovan. Kai pode enviar uns soldados,
caso seja necessário.
— Perfeito, filha — ele diz, sorrindo.
Nós caímos no silêncio mais uma vez até finalizarmos nossa
comida. Não consigo focar no momento ou em meu pai, pois minha
cabeça ainda está presa no que aconteceu três dias atrás. Tentei
me ocupar com o máximo de trabalho possível, mas nada foi
suficiente.
Não importa o que eu faça, minha mente sempre volta para
ela. Tudo em que consigo pensar é no fato de que ela fez aquilo
com dois homens do alto escalão, ambos sendo da sua própria
família.
Por minha causa.
Quero perguntar se meu pai sabe; se ele tem alguma
informação sobre como andam as coisas na Vendetta. Por mais
irracional que isso seja, fico incomodada com o silêncio de Alessia.
Ele pode ser muito perigoso.
— Pai — murmuro, repousando os talheres no prato vazio.
Ele limpa a boca com o guardanapo e me olha, atento.
Respiro fundo e brinco com a barra da saia xadrez, algo que
costumo fazer quando estou nervosa.
— Como você está em relação aos… Romano?
Seu semblante fecha no mesmo segundo.
— Não quero estragar o nosso passeio — esclareço. — Mas
preciso saber como o Sr. está, se pretende fazer alguma coisa…
Não me deixe de fora, pai, por favor. Você sabe que tenho direito de
saber.
Ele respira fundo, desvia o olhar e joga o corpo para trás na
cadeira. Suas mãos se entrelaçam no colo. Quando sua voz ecoa,
após alguns segundos em silêncio, tenho certeza de que meu
coração vai explodir a caixa torácica e pular para fora do meu peito.
— Vamos matar a Alessia.
Porra.
Eles vão matá-la.
Estou feliz com isso, sim. Alessia merece morrer pelo que fez.
Sei que ela merece, então por que há uma sensação
perturbadora esmagando meu peito?
— Quando? — pergunto, escondendo todo e qualquer
sentimento que possa deixá-lo desconfiado.
Se ele soubesse que já me envolvi com aquela mulher, nossa
relação estaria arruinada. Eu nunca mais recuperaria a confiança do
meu pai, assim como ele nunca mais me veria com os mesmos
olhos.
— Nas próximas semanas — responde, passando a língua no
interior da bochecha. Suas íris azuis encontram as minhas e vejo o
fogo crepitando em seu olhar, provavelmente da vingança que ainda
o cega. — Até o Dia de Ação de Graças, já será feito.
Estamos no final de setembro, o que dá dois meses até o
feriado.
Não sei como lidar com a informação. Pensei que eu ficaria
feliz e satisfeita quando Alessandro dissesse o que pretendia fazer
com Alessia, mas, em vez disso, meu corpo treme e há um enorme
nó em minha garganta.
Eu a quero morta. Eu a quis morta pelos últimos cinco anos.
Mesmo assim, sinto vontade de correr para bem longe e
chorar até perder o fôlego. Chorar de raiva, rancor, confusão e
cansaço. Chorar pela exaustão que minha realidade me causa.
Por alguma razão que desconheço, as palavras escapam da
minha boca:
— Quero fazer parte da missão.
— Não.
Levanto as sobrancelhas, tentando controlar a respiração
descompassada.
— Não?
— Não, Lyanna. Você não vai se envolver em nada. Não vai
nem se aproximar daquelas pessoas, me entendeu? Estou te
proibindo!
— Está de brincadeira comigo? — levanto um pouco a voz,
involuntariamente. — Eu tenho o direito de me envolver nisso!
— Não tem direito nenhum! Sou seu chefe e te proíbo,
Lyanna! — exclama, batendo a mão com força na mesa. Eu
sobressalto e ele me encara em puro desespero. — Acha que ela
vai ter pena de nós? Acha que aquela aprendiz do diabo não está
ansiosa para te matar na minha frente?
— Eu sei me proteger — refuto, mantendo o queixo erguido.
— Agradeço e entendo a preocupação, mas já tenho idade o
suficiente para me proteger de alguém que me quer morta. Não me
subestime e muito menos me proíba de alguma coisa!
— Não. — Ele balança a cabeça de um lado para o outro, os
dedos passeando pelo cabelo em um sinal de estresse. — Estou te
avisando… Se eu descobrir que está se envolvendo nesse assunto,
sofrerá as consequências.
Não consigo acreditar.
— Por que fica tão desesperado quando peço para lidar com
a Vendetta, mas nunca me proibiu de participar de qualquer outra
missão? Acha que não percebo o quanto o Sr. tem medo deles?
— Não tenho medo deles! — esbraveja, ultrajado. — Você é
minha única fraqueza, filha, e ela sabe. Ela sabe que não precisa
enfiar uma faca no meu coração para me matar, basta tocar em
você.
— Ela não vai tocar em mim — minto.
Ela já me tocou. Inúmeras vezes. Em todos os lugares e
posições possíveis.
As lágrimas se acumulam em meus olhos e a culpa preenche
o peito. Me sinto a maior traidora da história da máfia e, ao mesmo
tempo, me sinto impotente. Apesar de tudo, o medo que meu pai
sente quando falo sobre os rivais é difícil de compreender. É um
medo fora do normal.
Sei que ele tem medo por conta do que aconteceu cinco anos
atrás, mas, mesmo assim… é a coisa mais exagerada que já vi.
Abro e fecho a boca, incapaz de falar. As palavras estão
entaladas e sei que nunca poderei colocá-las para fora. Eu seria
expulsa ou talvez morta, e reconheço que seria uma punição justa.
— Lyanna? — ouço-o me chamar e ergo os olhos. Pelo modo
como me examina, acredito que as lágrimas tenham caído sem que
eu notasse. — Filha, não chore. Está tudo bem.
Nada está bem, penso. Nada esteve bem desde que nos
destruí.
Suas mãos alcançam a minha em cima da mesa e a seguram
com cuidado, como se eu fosse quebrar.
— Vou nos vingar, filha — sussurra, acariciando minha palma
com o polegar. Sua voz é doce, mas a promessa é amarga. — Tudo
vai ficar bem. Nada vai acontecer com você, eu prometo.
Assim como Alessia, ele não costuma cumprir as suas
promessas.
 

“Quando estou perto de você, sinto chamas


Eu toco o fogo, eu me queimo
Eu sinto essa pressa debaixo dos meus pés, é como se eu
estivesse caindo”
Flames | Tedy
 

 
A mansão de Frank Donovan não está lotada como eu
esperava. Durante todo o trajeto, senti um pressentimento ruim na
boca do estômago me dizendo que há algo de errado. Agora,
enquanto caminhamos em direção à porta e não vejo muitos carros
ao redor, a sensação ficou mais forte.
— Não acha que está vazio demais? — pergunto para Sophie
e ela assente.
— Aposto cem mil dólares que não é uma comemoração de
aniversário. Em que mundo o aniversário do prefeito seria tão sem
graça assim?
— Você não sabe de nada? — me dirijo a Kai.
Por ser o “Mensageiro da Elite”, presumo que ele saiba sobre
o que o jantar se trata. No entanto, ele está calado e com uma
carranca desde que entrou na limusine.
— É um evento fechado — sussurra, ajeitando a gravata. A
voz séria transborda incômodo. — Para pessoas do nosso meio.
— Do nosso meio? — indago, levantando a sobrancelha.
— É.
Donovan não nos colocaria no mesmo evento, certo?,
pergunto a mim mesma. Não tenho tanta certeza da resposta, no
entanto.
Durante todo o percurso da entrada até o salão de festas, o
pressentimento ruim cresce e me deixa irritada. Meu pai já está aqui
há um tempo, pois veio com Marco e seus seguranças. Se o que eu
estiver pensando for realmente verdade, Alessandro Bellini está
soltando fogo pelos ouvidos nesse exato momento.
— Acha que Frank convidou ela? — Soph sussurra no meu
ouvido quando paramos em frente à enorme porta branca.
— Espero que não.
O segurança gira a maçaneta e meu corpo congela por uma
fração de segundo antes de minha amiga entrelaçar o braço ao meu
e me puxar salão adentro. Olhando ao redor, vejo diversos homens
engravatados e mulheres com vestidos elegantes. Os eventos de
Donovan sempre são de gala, então viemos à altura.
Sophie optou por um vestido verde escuro justo, de mangas
longas e decote de coração. O meu é branco e brilhoso, com uma
fenda na perna esquerda, sem alças e um decote V. Kai está com
um terno azul marinho.
Solto uma respiração aliviada quando não encontro ninguém
da Vendetta no salão. Parece que Frank não perdeu totalmente a
cabeça. Nós vamos à roda da Timoria primeiro para cumprimentá-
los e depois chegamos ao bar, mas Kai foi alugado pelo meu pai e
não nos acompanha. Sophie pede um Sex on The Beach enquanto
eu peço uísque com gelo.
— Vamos cumprimentar o Donovan — murmuro,
entrelaçando nossos braços enquanto nos afastamos do bar.
— Agora não. Damon está com ele.
Reviro os olhos e lanço-a um olhar entediado.
— Até quando vocês vão continuar com isso?
— Até quando ele parar de ser um babaca — arisca, ela
responde.
— Temos que cumprimentar o anfitrião.
Sem dar-lhe tempo para retrucar, puxo-a em direção à roda
onde Frank e Damon estão conversando com alguns homens que
reconheço serem parceiros de negócios da Timoria. Quando
estagnamos atrás do prefeito, todos os olhares se voltam para nós,
inclusive o dele, que nos encara por cima do ombro e abre um
sorriso.
— Senhoritas! Que prazer imenso tê-las aqui — Frank diz, se
inclinando para beijar nossas bochechas. — Creio que os rapazes já
as conheçam, não?
— Sim. Fazemos negócios — confirmo. — Viemos
parabenizá-lo pelo seu aniversário, Donovan. Sabe que sempre
poderá contar com a Timoria para o que precisar, especialmente em
sua reeleição.
Seu sorriso triplica de tamanho.
— Agradeço muito, Lyanna. Temos um longo futuro de
negócios pela frente.
Assinto e me viro para Sophie, estranhando seu silêncio.
Tudo faz sentido quando a encontro fuzilando Damon com o olhar,
enquanto ele esbanja um sorriso cafajeste.
— Sophie — sussurro, e ela vira a cabeça depressa.
Percebendo a situação, se recompõe e estende a mão para
Frank.
— Feliz aniversário, Frank. Estamos à sua disposição para o
que for necessário.
Donovan agradece e nós trocamos mais algumas palavras
antes de voltarmos para o lado de Kai. Ele está ainda mais sério do
que antes e sequer tenta disfarçar a carranca no rosto. Os membros
do Conselho que meu pai trouxe estão conversando com Jeon
sobre as mercadorias da próxima semana, mas não é difícil notar
que ele não poderia ligar menos para o assunto.
— Kai — chamo, e ele me direciona o semblante furioso. — O
que aconteceu?
— Nada aconteceu, Lyanna.
— Qualquer bebê de colo consegue perceber que alguma
coisa aconteceu, Jeon. Não minta para mim.
Ele respira fundo e olha por cima do meu ombro, para onde
Sophie está conversando com um dos meus tios.
Cerro as pálpebras e logo sua atenção é desviada de volta
para mim. Mais uma respiração profunda escapa do seu peito, como
se ele estivesse tão nervoso que não conseguisse respirar direito.
— O que está rolando entre você e Sophie? E não me venha
com “nada”, não sou nenhuma idiota! — vocifero em um sussurro.
— Ela e aquele babaca do Donovan! — ele devolve o tom
baixo, mas exasperado.
As peças se encaixam, embora eu não tenha certeza se
estou entendendo de verdade.
Ele está com ciúmes?
Sou incapaz de perguntar, pois a porta do salão se abre e
meus olhos deslizam até lá. Meu corpo tensiona por inteiro, os
dedos apertam o copo e sinto os pulmões vazios. Não consigo
acreditar que minha intuição, a qual ignorei desde que chegamos,
estava certa.
Os “Trigêmeos Siameses” da Vendetta caminham como se
fossem os donos do lugar. Alessia está no meio, Yuna à sua direita
e Jayden à esquerda. Os dois exibem sorrisos de lado conforme
avançam até Donovan, ao contrário de Romano.
Fito meu pai, que mudou a postura no mesmo segundo. Ele
está tenso e zangado, como eu imaginava que ficaria. Depois da
última vez que estivemos junto da Vendetta em um cômodo
fechado, nossa vida nunca mais foi a mesma.
Seus olhos se conectam aos meus e abro a boca para dizer
algo, ainda que não tenha ideia do que possa melhorar a situação.
Também estou tão incomodada quanto ele, mas não é como se
pudéssemos criar uma cena ou começar um tiroteio na casa do
prefeito.
Donovan sabe da nossa rivalidade, porém, o evento é dele.
Por mais estúpido que seja, ele tinha o direito de convidar quem
quisesse. A questão é que não entendo a finalidade de tudo isso;
por que se dar ao trabalho de organizar um evento apenas para as
pessoas do mundo do crime, sabendo que as chances da noite
terminar com sangue são imensas?
— Não acredito — Sophie sussurra, parando ao nosso lado.
— Frank convidou eles?
— Não é como se você não soubesse que a Família Donovan
é repleta de babacas — Kai diz, rude. — E você parece gostar, não
é?
Os olhos verdes de Wilson o fuzilam.
— Cuidado com a forma como você fala comigo, Jeon. Só
preciso de dois segundos para atingir seu nariz com um soco.
— Dio mio[9]… — murmuro, revirando os olhos. — Parem com
isso agora. Estamos num jantar de negócios.
— Vou pegar mais bebida — Soph anuncia, se afastando no
mesmo instante.
— Que merda foi essa? — indago e ele bufa. — Pelo menos
tente disfarçar o ciúmes, Kai. E se falar daquele jeito com ela de
novo, eu mesma vou socar a sua cara, me entendeu?
— Entendido. Desculpe, estou de mau humor.
Balanço a cabeça em negação e me afasto, indo até o
banheiro. Por sorte, está vazio, então consigo me olhar no espelho e
tomar um tempo para respirar e colocar a cabeça no lugar. A
presença de Alessia no mesmo ambiente que meu pai me deixa
nervosa e apreensiva. A qualquer momento, sinto que as coisas vão
dar errado e tudo vai explodir.
Depois de quase dez minutos, saio do banheiro. Logo após
fechar a porta, meu corpo colide em algo duro e quase caio, mas
duas mãos firmes agarram minha cintura e me mantém em pé.
Quando ergo o queixo, vejo olhos azuis familiares e um
sorriso de tirar o fôlego.
— Peguei você — ela diz, e seu toque faz minha pele
formigar.
Samantha Wright é filha de um dos aliados da Timoria, os
quais também fazem negócios com Donovan. Embora eles atuem
no Canadá, sempre que Samantha vem para Las Vegas nós
acabamos transando.
— Ei. — Retribuo o sorriso. — Não sabia que você viria.
— Eu não viria — confessa. — Mas mudei de ideia quando
pensei que poderia te ver.
Umedeço os lábios e seu olhar recai sobre eles. Seus dedos
largam minha cintura e vão até meu pulso, o polegar acaricia o lugar
enquanto os demais escorregam para cima e para baixo. Pode
parecer inocente, mas sei que não é.
— Não me olhe assim — sussurra, restabelecendo nosso
contato visual.
— Por quê?
— Sabe muito bem o porquê…
— Por que você pode acabar me fodendo nesse banheiro? —
provoco, tocando sua clavícula exposta devido ao decote do vestido
branco. — Eu não recusaria o convite, Wright.
Samantha morde o lábio inferior, o sorriso repleto de malícia,
e abre a boca para devolver minha provocação. No entanto, minha
intuição cutuca meu peito e me faz deslizar os olhos por cima do
seu ombro.
Meu sorriso morre e sinto o coração parar de bater quando
vejo Alessia caminhando em direção à roda da Timoria. Em direção
ao meu pai.
— Com licença, Samantha — digo, sem olhá-la, e me afasto
depressa.
Desaprendo a respirar enquanto me aproximo deles. Ao
alcançá-los, Romano já está parada atrás do meu pai. Estou tão
nervosa que não ouço nada ao meu redor; é como se não existisse
nenhum som, nenhum movimento e ninguém mais além dela.
Sinto um aperto em meu braço, impedindo-me de avançar, e
a voz de Kai em meu ouvido:
— Não faça nada — sussurra.
Abro a boca para refutar, mas sei que não é inteligente
intervir. Alessandro e os demais poderiam suspeitar de alguma coisa
ao perceberem minha reação à aproximação dela. Ainda que
sejamos inimigas, estou muito mais nervosa do que uma mera rival
ficaria.
— Boa noite, Bellini.
A frase não foi direcionada a mim.
Vejo o corpo de meu pai travar. Ele se vira devagar,
encarando-a, e sua linguagem corporal transborda fúria.
— Romano — é tudo que ele diz.
— Senhores, boa noite — ela continua, se dirigindo aos
demais. Seu sorriso é tão dissimulado que faz meu sangue
borbulhar. — Parece que Donovan quer que sejamos amigos, nos
convidando para o mesmo evento.
— Não faça joguinhos esta noite — meu don ordena, se
segurando para não elevar o tom de voz. — Comporte-se como uma
chefe de máfia, Romano.
— E não estou? — retruca, levantando as sobrancelhas em
deboche. — Vim cumprimentá-los e desejar uma boa noite, mesmo
desprezando cada um de vocês. Especialmente você, Alessandro, o
maior lixo que já conheci. Não é “chefe de máfia” suficiente?
— Você me despreza? — meu pai quase rosna. — Você é
uma vagabunda que tenta ser um homem, Romano. Pode comer
quantas bocetas você quiser, nunca será um de nós.
Eu congelo. Tudo ao meu redor desaparece.
Parece que uma hora se passou em câmera lenta, quando na
verdade apenas cinco segundos separaram aquela fala nojenta da
sensação de coração partido que eu tive ao ouvi-la.
Não vou permitir que a tristeza me consuma, então endireito a
coluna e mantenho a cabeça levantada.
— Repita — falo, atraindo a atenção dele.
Ele parece perceber o que disse, pois sua expressão e os
ombros caem. Respiro fundo, fulminando-o com o olhar, sem me
importar com as chances de a atitude parecer uma afronta na visão
dos outros membros da organização.
— Repita o que disse — insisto.
— Lyanna… — ele murmura, dando um passo adiante, e dou
um para trás.
— Ela tenta ser um homem porque come bocetas, pai? — Rio
baixo, sarcástica. — Não se esqueça de que sua própria filha
também come um bocado delas. E isso não me faz ser um homem,
faz?
— Filha, não foi…
Ergo a mão e ele se cala.
— Nem tente. — Giro sobre os calcanhares, entrego o uísque
ao garçom que passa ao lado e me afasto.
Lembro-me que nossa relação já teve momentos ruins.
Minhas primeiras memórias dele não são muito boas; embora eu
nunca tenha tocado no assunto por medo, recordo-me de ele não
me tratar com carinho quando eu era mais nova. Não tenho ideia do
motivo, mas ele não se comportava como meu pai. Foi só a partir
dos dez ou onze anos que começamos a nos aproximar, e demorou
um tempo até que Alessandro demonstrasse explicitamente afeto
por mim.
Porém, o que sempre me incomodou acima de tudo é o seu
preconceito. Incontáveis vezes, desde os meus quinze, fui colocada
em casamentos arranjados com filhos de homens importantes do
mundo do crime. Se eu não tivesse me rebelado e ameaçado cortar
a garganta de cada um dos meus “futuros esposos”, acho que ele
ainda estaria tentando até hoje.
Meu pai não consegue aceitar o fato de que não vou gerar
nenhum herdeiro. Para ele, é inaceitável que a filha do don não se
relacione com homens. Como explicar isso para os aliados, afinal?
Não sei o que fala a eles e, para ser sincera, não quero saber.
Tenho certeza de que são coisas que vão me entristecer ainda mais.
Um dia antes do meu aniversário de dezoito anos, quando ele
me disse sobre outro acordo de casamento, cheguei ao meu limite e
explodi. Contei que nunca me casaria com homem nenhum porque
não me interessava por eles, que eu transava com diversas
mulheres — embora não fosse verdade — e que se ele não
aceitava, poderia me deserdar. Se não o fizesse, eu mataria todo e
qualquer pretendente que ele enviasse à minha porta.
Depois disso, os acordos pararam. E o assunto sobre minha
sexualidade foi ignorado completamente.
Saio em passos apertados do salão, cruzo vários corredores
e chego à porta que dá acesso ao jardim dos fundos. O segurança
me cede passagem e sinto o vento fresco contra o rosto no
momento em que coloco os pés para fora. Meus olhos estão
marejados, só que não permito que as lágrimas escorram. Prometi a
mim mesma que nunca mais choraria por esse motivo.
Aperto o copo de uísque e o viro em um gole só, sentindo a
bebida queimar a garganta. Retomo o caminho e avisto uma
cobertura de vidro, a qual logo percebo ser uma estufa. Alcanço-a e
empurro a porta, entrando devagar. É um lugar lindo e bem cuidado,
repleto de plantas e flores. De longe, vejo tulipas — minha flor
preferida — e me aproximo para deslizar os dedos pelas pétalas
macias.
Não sei quanto tempo se passa, mas permaneço me
distraindo com a vegetação da estufa e já não sinto mais os olhos
lacrimejados. Sou tirada do devaneio quando meu celular vibra e o
apanho do decote, vendo uma mensagem de Sophie perguntando
se estou bem e onde estou.
Começo a digitar a resposta, porém, a porta abre e levanto a
cabeça depressa. Minha mão já tinha alcançado as facas
escondidas na coxa quando os cabelos pretos entram em meu
campo de visão.
Alessia me avista de longe e caminha até mim. Tento
encontrar outra saída à minha volta, só que não existe nenhuma
além da porta por onde nós duas entramos.
Quando ela para ao meu lado, cerro a mandíbula e me viro de
costas, andando pelo corredor. Ouço-a me seguindo e solto uma
respiração profunda. Dou a volta na enorme mesa de madeira, cheia
de vasos, e continuo rodando o lugar por mais dois minutos.
Ela não parou de me seguir nem por um segundo. Sua
presença me irrita, ainda que ela esteja em silêncio. Por isso,
estanco e me viro, fazendo-a parar abruptamente e quase colidir o
corpo contra o meu.
— Vá embora. Não sei porque me seguiu, mas não quero
falar com você ou olhar para a sua cara.
Ela não responde. Em vez disso, dá um passo adiante e
quebra a nossa distância. Em reflexo, recuo. Alessia continua se
aproximando, o que me faz andar para trás até sentir a madeira
contra minhas coxas. Prendo a respiração e ela espalma as duas
mãos na superfície, uma de cada lado meu, encurralando-me contra
seu corpo e a mesa.
— Seu pai é um filho da puta.
Da curta distância em que nossos rostos estão, posso ver
suas pupilas dilatadas. A cicatriz é ainda mais enigmática de perto,
o que instiga minha curiosidade. No entanto, nunca cederei ao
desejo de perguntar sobre ela ou qualquer outra coisa.
— Quase quebrei o pescoço dele — confessa em um tom
baixo, descendo os olhos até minha boca. — Quero enfeitar os seus
sapatos com o sangue dele. Quero cortar a língua dele fora e servir
neste jantar idiota. Você me permite, Lyanna? Permite que eu o faça
engolir todas aquelas palavras estúpidas para sempre?
— Fique longe da gente. Estou te alertando, Romano —
ameaço, ainda que uma pequena parte do meu peito tenha ficado
agitada ao ouvir aquilo.
Alguns segundos de silêncio recaem sobre nós. Quando ela
volta a falar, meu estômago sofre um rebuliço.
— Ele ainda não aceita, não é? — questiona em um sussurro.
Trinco a mandíbula e sinto o gosto da bile na boca.
— Não te interessa. Saia daqui.
— Seu pai continua te colocando em acordos de casamento?
— seu tom se tornou mais sério; mais irritado. As íris verdes sobem
devagar da minha boca até alcançar as minhas, âmbares. — Ele
ainda insiste nisso?
— Vá embora — insisto, apertando a beirada da mesa.
Sua aproximação me deixa nervosa e incomodada. Quero-a
longe de mim, especialmente agora que estamos em um lugar onde
qualquer um pode nos ver.
Porém, sua preocupação mexe comigo. Depois que a
conheci, Alessia passou a me confortar todas as vezes em que
Alessandro me desrespeitava por ser lésbica. Eu tinha que implorar
para que ela não o matasse por isso, embora estivesse com o
coração despedaçado por culpa dele.
— Me responda. Ele ainda quer te casar com algum infeliz?
— Sua mão ameaça tocar minha cintura, mas dou um tapa e a
proíbo. — Me dê a lista dos seus pretendentes. Agora.
— Nada que diz respeito a mim é da sua conta. — Ergo o
queixo para manter a postura. — Esqueça que eu existo.
— Me dê a porra da lista, Lyanna, ou vou matar os filhos de
todos os homens que conheço até encontrar cada um deles e rasgá-
los ao meio. Vou enviar as cabeças de presente para o seu pai, o
que acha?
— Não há pretendente nenhum! — vocifero, empurrando-a
pelo peito. Ela nem se move. — Pare de fingir que se importa
comigo, inferno! Não se importou com nada quando fez aquilo e
sumiu por cinco anos! Esqueça que eu existo e desapareça da
minha vida de uma vez por todas.
Sua mandíbula, quadrada e fina, tensiona. As pálpebras
estreitam, como se ela estivesse se segurando para não explodir e
colocar algo para fora. Apesar de tudo, eu gostaria que Alessia
colocasse tudo para fora; gostaria de uma explicação e um
encerramento para a nossa história. Preciso ouvi-la confirmar que
nunca sentiu nada por mim e que tudo não passou de um teatro
para me usar e conseguir o que ela queria desde o início.
Mais uma vez, ela levanta as mãos para me tocar. Sem
paciência, saco a faca da bainha e coloco a lâmina contra sua
garganta, impedindo-a de avançar mais um centímetro sequer.
Alessia engole em seco, parecendo surpresa, e respira fundo.
— Não tem permissão para me tocar — digo, firme e
entredentes.
— Você disse a mesma coisa no início de tudo — sua voz sai
baixa e lasciva. — Poucos meses depois, passou a implorar pelo
meu toque.
O fogo crepita dentro de mim e minhas coxas se apertam
uma na outra, traindo a mim mesma. Por um milésimo de segundo,
quase vacilo e afasto a faca.
— Não disfarce — murmura, umedecendo os lábios. — Eu
percebo cada mínimo movimento seu, Lyanna. Não adianta
disfarçar.
— Disfarçar? — Rio baixo, sarcástica. — O que você acha
que estou disfarçando?
Alessia abaixa os olhos até o meu decote e sorri fraco.
— Sua boceta molhada — sopra, subindo o olhar até o meu
novamente. — Você não admite que gosta desse joguinho entre
nós, mas seu corpo não mente. Se eu colocasse a sua calcinha
para o lado, sentiria nos dedos o quanto você ainda é louca por
mim.
Arquejo, incrédula.
E cogito cortar a minha própria garganta quando minha
boceta contrai ao ouvir suas palavras.
— Você é tão cheia de si — respondo, balançando a cabeça.
— Se eu estivesse molhada, garanto que não seria por sua causa.
Ela arqueia as sobrancelhas e parece se divertir com o que
falei.
— É mesmo? E por quem seria?
Reviro os olhos.
— Não sou estúpida de te dar um nome.
— Você não precisa — assegura. — Sei tudo sobre você. Sei
reconhecer quando está mentindo e, porra, não há nada que eu
saiba mais do que reconhecer quando está excitada.
— Não estou — retruco, firme.
— Prove.
Estou tão ofegante que não consigo disfarçar. O suor começa
a se acumular em minha nuca, tamanho nervosismo que esse
diálogo me causa.
— Não vou provar nada para você. Vá embora.
Pressiono a lâmina em sua garganta e, de alguma forma,
aquilo parece acender ainda mais o brilho maldoso em seus olhos.
— Se pressionar um pouco mais forte… — O sorriso de canto
cresce.
— O quê? — Levanto as sobrancelhas. — Se eu pressionar
um pouco mais forte, você vai gostar?
Não tenho ideia do porque perguntei isso ou de como me
permiti perguntar. Quando percebi, já tinha saído. Acho que aquela
provocação estúpida mexeu com o meu cérebro.
Eu sei que ela vai gostar se eu pressionar um pouco mais
forte. E ela sabe que eu sei.
— Na verdade, vou entender como uma permissão para te
provar que está molhada pra caralho por mim.
Eu congelo. A reação involuntária que meu corpo tem é
patética. Por um lado, quero empurrá-la e gritar que a odeio com
tudo que há dentro de mim; por outro, sou incapaz de ignorar as
lembranças que sua fala me trouxe.
Tenho que ignorar seu joguinho. Preciso me recompor antes
que seja tarde demais e as coisas tomem um rumo catastrófico.
— Te avisei naquele galpão e vou avisar novamente: pare
com tudo isso — alerto, sentindo a mandíbula doer devido à força
com que cerro os dentes. — Não deveria ter me seguido até aqui.
Saia.
— Quer saber por que cheguei atrasada? — questiona, me
ignorando.
Franzo o cenho.
— Não me interessa nem um pouco.
— Estava cuidando de um problema.
— E o que eu…
De um segundo para o outro, sua mão esquerda segura
minha faca e a arremessa para longe enquanto a direita aperta
minha cintura e cola seu corpo ao meu. Ofego e agarro seu
antebraço, apertando-o. Tento empurrá-la, mas ela é mais rápida e
segura meu pulso com força, prendendo-o em minha coluna.
— Pensou que eu não descobriria? — indaga, a boca tão
próxima da minha que sinto sua respiração bater contra meus
lábios. — Pensou que eu não reconheceria?
— Do que está falando?
Meu coração bate tão acelerado que sinto o peito doer.
— Perdi toneladas de heroína e milhões de dólares, o que me
obrigou a lidar com homens insuportáveis e muito insatisfeitos com
o prejuízo. É assim que você quer brincar, feiticeira?
Rio baixo, incrédula.
— Meu Deus, você enlouqueceu de verdade.
— Estive enlouquecendo desde o momento em que te vi pela
primeira vez.
Estive enlouquecendo desde o momento em que a vi pela
primeira vez também.
— Meu mundo não gira ao seu redor. Não tenho ideia sobre o
que você está falando e te dou dois segundos para me soltar ou vou
quebrar seu nariz.
Ela retribui o riso, tão irônico quanto o meu.
— Você destruiu a minha mercadoria, Bellini.
— Não destruí nada — afirmo, zangada por mais uma
acusação infundada vindo dela. — Pare de colocar a culpa em mim
das merdas que acontecem na sua máfia.
— Não foi você? — a pergunta é retórica.
Os dedos soltam minha cintura e adentram o bolso interno de
seu paletó. Quando vejo o tecido rendado e vermelho, meus olhos
arregalam e fico sem fôlego.
É uma calcinha. Minha calcinha.
Sei que é minha porque há uma mancha de sangue na lateral
e um pequeno rasgo. Eu saberia se fosse falsa, mas não é.
— Que porra?! — exclamo, arrancando a peça de sua mão.
— O que diabos isso está fazendo com você?
— Estava no corpo morto do homem que dirigia o caminhão.
— Arregalo os olhos e a encaro, perplexa. — Se queria deixar um
recado, Bellini, deveria ter escolhido algo diferente. Por pouco não
matei o soldado que estava segurando a sua calcinha.
— Acha que eu seria estúpida a ponto de deixar isso para
trás? Alguém… — A ficha cai e meu sangue borbulha. — Alguém
roubou do meu armário para me incriminar.
Alguém entrou no meu quarto, sem eu perceber, e roubou a
minha calcinha.
Puta merda.
Alessia arqueia as sobrancelhas em desdém, mostrando que
não acredita.
— Você alega me conhecer tão bem… — Estalo a língua em
deboche. — E mesmo assim acredita que eu seria burra de deixar
provas para trás?
Ela fica em silêncio. Ao contrário do que eu esperava, Alessia
aproxima ainda mais o rosto do meu e roça nossos narizes. Engulo
em seco, sentindo o corpo queimar dos pés à cabeça.
— Quando vi isso… — Sua cabeça se move de um lado para
o outro, devagar. — Tive vontade de invadir o seu apartamento e
colocá-la de volta no seu corpo. Sabe o que eu faria depois,
Lyanna? Rasgaria essa maldita calcinha e te comeria com a minha
boca. Te comeria tão bem que você nunca mais cogitaria mostrar
sua calcinha para outra pessoa.
Meu Deus…
Não posso deixá-la me manipular tão fácil. Não posso entrar
nesse jogo insano e provocativo. Respiro fundo e me recomponho,
ignorando a reação positiva de meu corpo às suas palavras sujas.
— Apesar disso — balanço o tecido em frente ao seu rosto
—, não fui eu. Vá embora antes que alguém nos veja aqui.
Ela parece hesitar, até que enfim se afasta. Sinto um breve
vazio que logo é substituído pelo alívio em tê-la longe de mim. É
melhor assim. Não a quero tão próxima nunca mais.
— Você pensou que eu tinha enviado aquele homem à sua
casa para te matar… — A menção me traz a lembrança do que vi
naquele subsolo e sinto um calafrio percorrer a coluna. — E agora
penso que você destruiu a minha mercadoria. Assim como te provei
o contrário, vou deixar que você faça o mesmo, Bellini.
Levanto as sobrancelhas.
— Um pouco arrogante da sua parte, não? Quem te garante
que tenho interesse em provar o contrário a você?
— Você tem — garante. — Porque se não provar, vou
queimar todos as fábricas[10] da sua máfia.
Não duvido, pois não seria nada comparado às coisas que ela
é capaz de fazer.
Assisto à sua mão adentrando o bolso do paletó, retirando um
envelope preto e o estendendo até mim. Hesitante, o apanho.
— As provas que você pediu. — Aponta com o queixo para o
papel. — Estão aí.
Desconfiada, estreito os olhos. Ela não parece se importar
com minha suspeita e continua:
— Assim como acabei de fazer, se você quiser provar sua
inocência… — Anda para trás, com um sorriso maldoso e um brilho
perverso no olhar. — Me encontre na nossa casa amanhã, às nove.
Ela gira os calcanhares e dá mais alguns passos adiante,
mas estagna e me olha por cima do ombro. Com o semblante sério
e a voz convicta, diz:
— Esteja avisada, Lyanna: se eu descobrir que Alessandro te
desrespeitou de novo, vou matá-lo com as minhas próprias mãos. E
não vou pedir permissão dessa vez.
Sua silhueta some como um borrão. Atordoada, abro o
envelope e avisto diversos prints de mensagens, além de filmagens
de Riccardo e Sebastian com o cara que tentou me matar. Leio
rapidamente o que eles falaram sobre mim, meu pai e a Timoria, e
meu sangue borbulha em fúria.
Parece que serei obrigada a acreditar em Alessia Romano
depois de prometer que nunca mais confiaria nela.
“Eu andei mil milhas para provar
Estou no fogo cruzado de meus próprios pensamentos”
My Blood | Ellie Goulding
 

Antes de sair, eu precisava resolver as coisas com minha


irmã. Não aguentava mais ser ignorada e, embora esteja tentando
respeitar o seu espaço e o seu luto, é uma merda não poder estar
ao seu lado para ajudá-la nesse processo. Vim até a casa de Dante
novamente, mas dessa vez só sairei daqui depois de ter uma
conversa franca com Sienna.
Para a minha surpresa, vejo-a na sala quando entro na
mansão. Diferente dos outros dias, ela não está trancada no quarto.
É um progresso, mesmo que pequeno.
Minha presença a faz virar o rosto e me olhar por cima do
ombro. Seu semblante continua abatido, mas está melhor do que na
minha oficialização como don. Em silêncio, vou até o sofá e me
sento ao seu lado. A série “Gossip Girl”, sua favorita, está passando
na televisão enquanto ela finge prestar atenção no programa
apenas para não conversar comigo.
— Alessia… — ela enfim começa, limpando a garganta.
Parece desconfortável, sem saber o que dizer. — Acho que
precisamos conversar, né?
— Precisamos — afirmo, girando a cabeça para olhá-la.
Seus olhos estão marejados e sinto um aperto no peito.
— Não quero que fiquemos brigadas — sua voz sai tão baixa
que quase não escuto. — Me desculpe por tudo que falei, não
estava pensando direito. Sei que você deve ter um bom motivo para
ter desaparecido e… — A frase morre de repente, nos enviando de
volta ao silêncio. Respiro fundo, tiro um maço do bolso e acendo um
cigarro, esperando-a continuar. — Por favor, fale alguma coisa.
— Você me chateou pra caralho, Sienna — sou sincera. —
Acha mesmo que me importo mais com a Vendetta do que com
você?
Ela balança a cabeça, negando. Um suspiro pesado sai de
seu peito.
— Não acho, só estava irritada e chocada demais com tudo
isso. Papai morreu, você voltou depois de cinco anos e agora é
nossa don… — Engole em seco, o cenho franzido em uma careta
chorosa. — É difícil de assimilar.
— Mesmo assim, você falou umas merdas sem ao menos me
dar a oportunidade de explicar.
— Eu sei, me desculpe. Ainda estou processando tudo que
aconteceu. Foi tão de repente, tente entender o meu lado, Alessia.
Por favor.
— Você acha que te abandonei — digo e Sienna abre a boca
para refutar, mas a interrompo: — Não tente negar, sorella[11], eu sei
que sim. Ainda não pude te explicar o que aconteceu, mas eu vou.
No momento certo, você vai entender tudo.
— No momento certo? — Ela estreita as pálpebras. — Por
que não agora? Qual é o momento certo?
— Há coisas que preciso resolver — explico, soltando a
fumaça, e seus olhos se prendem no meu cigarro.
Não sei se ela começou a fumar, mas espero que não.
Quando fui embora, ela tinha dezesseis e não usava nada. Tenho
medo do que os últimos anos causaram à minha irmã.
— Por que fuma tanto? — questiona, um pouco distraída pelo
movimento do cilindro de papel em meus lábios. — Desde que
voltou, sempre está fumando. Não te vi sem um cigarro nenhuma
vez.
— Acho que faz parte do personagem — brinco, dando de
ombros. — Não há um motivo, Sienna. A maioria das pessoas
começa a fumar desde cedo, por diversas razões. Se tornou parte
da minha rotina, algo que me relaxa. Você fuma agora?
Pela forma como sua respiração falha, já tenho a minha
resposta.
Tenho medo de não conhecê-la mais. Tenho medo de Sienna
Romano não ser a mesma de antes. E, em partes, sei que a culpa
seria minha.
— Não deveria — repreendo e ela arqueia as sobrancelhas.
— Você é a última pessoa que pode me dar sermão sobre
drogas ou qualquer outra coisa.
Não me orgulho disso, porém, é verdade. Me inseri nesse
meio muito cedo e é exatamente por isso que não quero o mesmo
destino para ela.
— Se eu souber que você anda usando ou cheirando, vai ser
punida perante a organização.
— O quê?! — exclama. — Está de brincadeira, né? Eu tenho
vinte e um anos, não quinze.
— Não me importo com a sua idade. — Apago o cigarro com
o polegar. — Estou te dando uma ordem como chefe, não como
irmã. Podemos voltar ao assunto principal?
Ela respira fundo e assente. Parece criar coragem antes de
questionar, direta:
— Nosso pai te expulsou?
Não posso dizer que estou surpresa, pois já esperava esse
tipo de pergunta. Sei que ela ainda vai fazer várias outras
semelhantes.
— Não há “expulsão” na Vendetta, Sienna. O único jeito de
sairmos dela é a morte.
Minha irmã respira fundo e aperta os lábios. Ela escrutina
meu corpo, examinando cada parte de mim minuciosamente. Deixo-
a ter seu momento, afinal, mudei muito desde que fui embora. Agora
tenho mais músculos, uma cicatriz no rosto e diversas outras
escondidas, espalhadas pelo corpo.
— Você mudou — murmura, voltando a me fitar. — Como
conseguiu essa cicatriz no rosto?
Passo a língua no interior da bochecha e cruzo uma perna em
cima da outra, formando um L.
— Lidei com alguns problemas.
Ela crispa as sobrancelhas e espreme as pálpebras.
— É uma resposta vaga demais — reclama.
— É a única que posso te dar agora.
— Acho que mereço mais do que isso, Alessia.
Ela não entende. Se entendesse, respeitaria o que estou
dizendo; respeitaria o tempo que preciso antes de revelar tudo.
— Você merece — concordo. — Mas essa não é a questão.
Tenho que resolver algumas coisas e também não estou pronta para
contar. Para ser bem sincera, acho que nem você está pronta para
saber, Sienna.
Minha irmã nem pisca conforme me esquadrinha com
atenção. Há uma mudança sutil em seu semblante, como se ela
estivesse criando dezenas de teorias em sua cabeça.
— Por que eu não estaria pronta para saber?.
Suspiro e me ajeito no sofá, desconfortável.
— Você está me deixando muito preocupada. — Sua
confissão vem junto de uma careta. — É sério, Alessia, o que diabos
aconteceu?
— Muitas coisas aconteceram. Vou contar todas elas quando
o momento certo chegar.
Seus olhos claros reviram e ela bufa alto.
— “Momento certo” — desdenha. — Acho que o momento
certo é agora, né? Papai morreu, você voltou e é a nova chefe. Por
que não é o momento certo?
— Porque há coisas que preciso resolver — repito.
— Quem matou o papai, Alessia? — questiona de repente.
— Estou tentando descobrir. Não se preocupe com isso,
Sienna.
— Como é que não vou me preocupar com o responsável
pela morte do nosso pai? Acha que não tenho o direito de saber
quem foi? Você já não está contando sobre os últimos cinco anos,
não esconda mais uma coisa de mim. Não isso. Sou sua irmã, mas
não vou admitir ser deixada no escuro nem mesmo por você.
Abro um pequeno sorriso de lado. Gosto de como ela se
impõe e não tem medo. Sienna está ainda mais forte e é
perceptível, através da sua linguagem corporal, que ela se tornou
uma mulher firme e corajosa.
— Estamos investigando — revelo. — Por enquanto, não
temos nada relevante. Você vai saber de tudo quando descobrirmos,
Enna, não se preocupe.
O apelido parece derretê-la um pouco, os ombros caem e
uma respiração profunda lhe escapa. Sei que não a dei nenhuma
informação de fato, só que ainda não é o momento. Não quero
inseri-la na minha sujeira, tampouco colocá-la em um perigo ainda
maior do que o qual ela já está sem saber.
— Então é isso? — indaga, cruzando os braços. — Você não
vai dizer nada? Não vai me dar uma explicação? Depois de tudo,
recebo um “não é o momento certo”?
Engulo a saliva, trago o cigarro e observo o tapete. Entendo
sua frustração e não a culpo por exigir respostas imediatas, mas
não é assim que as coisas funcionam.
— Nada é fácil no nosso mundo — digo. — Se pudesse te dar
uma explicação agora, eu daria. Se a situação não fosse tão fodida
e delicada, você já estaria ciente de tudo que aconteceu desde
cinco anos atrás até o dia de hoje. Confie em mim, Sienna, não é o
momento certo.
Ela não fica contente com a resposta.
— Se você estiver mentindo para mim, não vou te perdoar —
diz.
Engulo em seco e desvio o olhar.
— Sei que não.
— Ótimo. Então não minta e nem omita as coisas de mim.
Omiti inúmeras coisas dela durante toda a minha vida. Não é
a primeira e acredito que nem a última vez.
É mais seguro deixá-la imersa na ignorância.
 

 
Bato três vezes na porta e logo ela é aberta por Jayden, que
tem um guardanapo em seu ombro.
— Entra — diz, correndo para longe e sumindo pelo corredor.
Fecho a madeira atrás de mim, deixando os seguranças do
lado de fora, e sinto um cheiro delicioso. Nós três combinamos de
jantar no apartamento de Jay. Fazíamos isso com bastante
frequência antes, ainda que costumássemos ir a restaurantes em
vez de cozinhar. King é um ótimo cozinheiro, então Yuna o obrigou a
colocar suas habilidades em prática esta noite.
Faço o caminho que ele fez e chego à cozinha, encontrando
Yuna cortando tomates e ele mexendo nas panelas. Minha amiga
me olha por cima do ombro e abre um sorriso.
— Oi, gata. Senta aí. Já está quase pronto.
Insisti para ajudá-los, mas fui forçada a “sentar e comer” —
nas palavras de Yamazaki. Eles disseram que é um jantar de boas-
vindas para mim e, portanto, tudo que preciso fazer é aproveitar a
comida.
Obviamente, não reclamei. 
— Trouxe vinho — falo, colocando a garrafa na mesa após
me sentar em um dos banquinhos. — E preciso urgentemente
beber, então alguém me dá o abridor.
Minha amiga abre a gaveta, apanha o objeto e o joga para
mim. Pego-o no ar e ela me esquadrinha com o olhar atento.
— ‘Tá puta por causa da mercadoria, né? — pergunta,
abrindo o armário e colocando três taças à minha frente. — O que
vai fazer sobre isso?
— Estou investigando — digo, sucinta. Abro a garrafa e
despejo o vinho nas taças. — Mas, se eu não estiver enganada,
tudo está interligado.
Não estou.
— Tudo…? — ela me encoraja a continuar, franzindo as
sobrancelhas.
— A morte de Dante, o ataque ao Orleans e a mercadoria.
Tudo.
Beberico um gole, Jay fecha uma panela e se vira também.
Apoia o quadril na pia, cruza os braços e trocamos um olhar em
cumplicidade. Quando cheguei na estrada onde o caminhão tinha
sido atacado, King já estava lá. Ele percebeu a minha reação
exacerbada ao pegar a calcinha de Lyanna e passou algum tempo
conversando comigo. Disse que, apesar de tudo, não acha que foi
ela a responsável.
Não contei a eles sobre a tentativa de assassinato de Lyanna,
embora tenha certeza de que ambos desconfiem das mortes
repentinas de Riccardo e Sebastian. Não gosto de guardar tantos
segredos deles, então decido falar:
— Há mais uma coisa, mas não está relacionada. Só acho
importante vocês saberem.
— O quê? — Yuna indaga, sentando-se do outro lado da
mesa, em minha direção.
— Riccardo e Sebastian pagaram um dos nossos soldados
para matar a Lyanna. Foi por isso que ela apareceu no portão do
Fortuna seminua e cheia de sangue, pensando que eu mandei o
cara até lá.
— E…?
— E eu matei os dois.
Assim como eu esperava, eles não parecem muito surpresos.
Um pequeno sorriso cresce no canto da boca de Yuna enquanto ela
sacode a cabeça de um lado para o outro.
— Matou a porra do seu tio por ela, Alessia?
— Matei os dois porque eles agiram pelas minhas costas. Foi
um ato de traição. Nunca deixaria eles vivos.
— Você foi uma boa atriz — Jay admite, rindo baixo. —
Fingindo que estava chocada com a morte de Sebastian. Se eu não
te conhecesse tão bem, não desconfiaria de nada.
— Como os matou? — minha amiga pergunta, animada para
saber os detalhes.
Então, eu conto. Conto desde o primeiro segundo em que
comecei a investigar todo maldito indivíduo da organização até ter
levado Lyanna àquele galpão para ver os corpos torturados e
mortos.
Yuna Yamazaki e Jayden King são tão quebrados quanto eu.
Não é à toa que sempre nos demos tão bem. Eles entendem a
minha loucura e, até certo nível, as sentem também.
Por isso, parecem orgulhosos e satisfeitos ouvindo os
detalhes da tortura e do prazer que senti ao assassiná-los.
— Acha que isso tem relação também? — Jay pergunta,
voltando a mexer nas panelas.
— Não. Riccardo e Sebastian só queriam se livrar de Lyanna
e mandar uma mensagem para Alessandro. Os outros eventos não
têm relação com esse.
— Você soa muito convicta — Yuna observa, levantando a
sobrancelha direita. — Está escondendo alguma coisa de nós?
— Tenho alguns segredos — admito, dando de ombros. —
Sempre tive.
— Ah, não. — Ela me fulmina com o olhar. — Não vai
começar com esse mistério de merda, não. Desembucha logo.
— Só estou investigando tudo e tentando ligar alguns pontos.
Não quero dizer nada enquanto não tiver certeza.
— Por que não quer nossa ajuda? — King indaga, desligando
as bocas do fogão. Conforme despeja o macarrão no escorredor,
continua: — Sou seu Underboss e Yuna é literalmente a pessoa
responsável por te aconselhar e te orientar. Por que não nos inclui
na investigação, Alessia?
— Não quero colocar vocês em perigo.
Yuna revira os olhos e ri baixo após beber seu vinho.
— Gata, somos as três pessoas mais importantes da máfia. O
que te faz pensar que estamos em segurança?
— E por que estaríamos em perigo se investigássemos com
você? — meu amigo contra-argumenta, olhando-me por cima do
ombro com o cenho franzido em desconfiança.
— Se a pessoa por trás disso não teve medo e nem
dificuldade em matar Dante, acham que é alguém inofensivo?
Alguém que pensaria duas vezes antes de matar vocês dois? Agora
que sou a chefe, qualquer um importante para mim está ainda mais
em perigo. Não posso arriscar que vocês acabem tendo o mesmo
destino dele.
— Sabemos nos cuidar muito bem, Ale — ela assegura. —
Quando você esteve longe, Jayden e eu pegamos pesado nos
treinamentos. Precisávamos espairecer, pensar em qualquer outra
coisa que não fosse você e toda aquela droga que aconteceu. Nós
nos tornamos os melhores soldados da organização, modéstia à
parte.
— É verdade — ele concorda, lançando-me uma piscadela.
— Está falando com os melhores da Vendetta, baby.
Rolo os olhos com um sorriso de canto. Não temos muitos
momentos descontraídos em que podemos fingir que somos
pessoas normais e não mafiosos que lidam com todo tipo de merda
diariamente. Embora eu não seja o tipo de pessoa que gosta de
fugir da realidade e viver em um mundo fantasioso, essas breves
ocasiões atípicas me fazem bem.
Yuna e Jayden me fazem esquecer um pouco da loucura na
qual vivemos. Somos um para o outro uma onda de calmaria em
meio ao caos. Passar cinco anos longe dos dois foi como navegar
em uma infinita maré alta e turbulenta, me perguntando quando
voltaria à terra firme.
A menção do nosso tempo afastados me provoca um
embrulho no estômago.
— Me desculpem — peço, engolindo o nó na garganta.
Ambos franzem a testa e explico: — Por esses últimos anos. Eu…
senti falta pra caralho de vocês. Me desculpem.
Os ombros de Yuna caem, assim como o semblante de Jay.
Decido continuar antes que desista:
— Para ser sincera, eu não sabia o que esperar. Se
estivessem com raiva de mim, eu entenderia. Se não quisessem me
perdoar por ter sumido de repente, eu entenderia. Entenderia
qualquer cenário que encontrasse, porque sei o quanto machuquei
vocês. Não fazem ideia do quanto fiquei aliviada quando me
receberam daquela forma no Fortuna, foi… Foi como tirar um peso
nas costas. Eu me preparei para correr atrás dos dois e fazer de
tudo para ter o nosso Trio Siamês de volta porque, porra, não
consigo viver sem vocês dois, seus merdinhas. No mesmo segundo
que descobri que seria don, quis levá-los comigo até o topo. Não há
ninguém em quem eu confie mais para compartilhar isso comigo.
“Então, muito obrigada por serem muito mais do que mereço.
Sabem que não sou boa com essas coisas de sentimentos, mas
espero que eu consiga demonstrar de alguma forma o quanto amo
vocês. Sempre estarei disposta a fazer qualquer coisa pelos dois,
desde dar uma surra nos escrotos que incomodam Yuna até ajudar
Jayden a encobrir algum assassinato. Qualquer merda que vocês
precisarem, estou aqui.”
Respiro fundo após o monólogo. Não consigo acreditar que
os dois estão com os olhos lacrimejados. Não queria fazê-los chorar,
mas precisava tirar a sensação ruim do peito. Nossa amizade é uma
das coisas mais importantes para mim e eu nunca me perdoaria se
os deixasse pensando que os abandonei porque quis.
— Eu vou explicar tudo — asseguro. — Me desculpem por
não ter feito isso ainda, eu só… Preciso de um tempo. Espero que
vocês me perdoem.
Yuna se levanta, caminha até mim e me abraça por trás.
Sorrio de lado e ela apoia a cabeça em meu ombro, depositando um
beijo carinhoso em minha bochecha.
— Não há nada para perdoar, Ale. Nós te conhecemos como
ninguém e sabemos que nunca nos abandonaria. Vamos respeitar o
seu tempo, mas não se preocupe. Nem eu e nem Jayden achamos
que você foi embora porque quis.
Levanto o olhar até King, que confirma com um aceno. Ele é
mais fechado do que Yuna, parecido comigo. Ainda assim, se
aproxima e deixa um beijo no topo da minha cabeça. Me sinto
pequena, como um bebê vulnerável, ao ser tratada assim.
— Estivemos com você nos seus piores momentos, Alessia
— ele diz. — Vimos você cometer as merdas mais insanas e
problemáticas possíveis e continuamos te amando. Sumir por
alguns anos não é nem de longe a pior coisa que você já fez, gata.
Rio baixo e lhe dou um peteleco no pescoço.
— Não ofenda sua chefe, King.
— Meus perdões, Vossa Alteza. — Faz uma reverência
ridícula e ouço a risada de Yuna em meu ouvido.
O mundo pode estar desmoronando à nossa volta, porém,
quando estamos juntos, sei que não existe nada capaz de nos
separar. Nada que não conseguimos vencer.
“Eles vão te perseguir
Até que você não possa mais rastejar
E ladeira abaixo nós vamos”
Way Down We Go | Kaleo
 

 
Minha bota amassa as folhas secas enquanto caminho em
direção à porta. Olho pela vigésima vez ao redor, me certificando de
que não há ninguém por perto. Embora a casa fique num vilarejo
minúsculo fora de Vegas, passei a ficar mil vezes mais alerta depois
de ontem.
Empurro a porta devagar e adentro a sala. Pensei que nunca
voltaria aqui e, caso voltasse, sentiria uma enorme melancolia.
Porém, me sinto… anestesiada. Um pouco nostálgica, talvez, mas
porque este lugar me lembra de uma época em que tudo parecia um
paraíso, um arco-íris sem fim.
É difícil acreditar que já fui tão ingênua.
O cômodo está limpo e os móveis, em estilo vitoriano, são os
mesmos de antes. Nada, absolutamente nada mudou, o que cria um
instantâneo questionamento em minha cabeça: será que Alessia
esteve aqui nos últimos cinco anos?
Eu não estive, nem uma vez sequer. Prometi a mim mesma
que não pisaria neste chão enquanto não obtivesse respostas ou,
melhor, nunca mais. O motivo pelo qual quebrei essa promessa é
por ter ficado preocupada com o que ela me mostrou.
Alguém está atrás de mim. Caso contrário, não teriam todo o
trabalho de invadir a minha casa, roubar a minha calcinha e colocá-
la em um homem morto da Vendetta a fim de me incriminar.
Por isso, ainda que a menção da “nossa casa” tenha
embrulhado o meu estômago e quase me feito vomitar ali mesmo,
no jardim do prefeito, me recompus e aceitei voltar aqui. Porque
preciso descobrir o que está acontecendo.
Hesitante, caminho até a cozinha. Quando passo pela porta
de vidro, encontro Alessia sentada à mesa com uma perna dobrada
em cima da outra e um cigarro entre os dedos.
Dedos ensanguentados.
No mesmo segundo em que nota a minha presença, ela
levanta os olhos e solta a fumaça. Não há nenhum indício de bom
humor ou satisfação no semblante fechado.
Puxo uma cadeira e me sento, nem tão próxima e nem tão
longe dela.
— Quero que repita, olhando nos meus olhos, que não foi
você que destruiu o caminhão — sua voz é baixa, autoritária e séria.
Detesto sua arrogância.
— Não tenho nada a ver com isso — asseguro. — Ou com a
morte de Dante, ou com o incêndio no Orleans. Ou com qualquer
outra merda que você tem para me acusar.
Ela tensiona a mandíbula e dá mais um trago no cigarro. Seu
olhar é intenso e parece me dizer muitas coisas, mas já não falamos
mais o mesmo idioma há anos.
— Há uma terceira pessoa, então.
É estranho que ela tenha acreditado em mim tão facilmente.
Não é típico de Alessia deixar algum suspeito em paz tão rápido,
contudo, não vou reclamar.
Assinto e cruzo as pernas. Sua atenção recai sobre minhas
coxas, cobertas pela calça jeans escura, e mordo o interior da
bochecha. Não gosto da forma minuciosa com que ela examina
cada centímetro do meu corpo, descendo até os pés e voltando
devagar até os olhos.
Enquanto solta a porcaria da fumaça.
— Não me olhe assim — exijo, cruzando os braços.
Ela levanta a sobrancelha esquerda em desdém.
— Como? — indaga, cínica. — Assim como?
— Você sabe.
Alessia se inclina para frente, apoia os cotovelos nos joelhos
e traga novamente o cigarro. Depois de expelir devagar, murmura:
— Quem é aquela mulher? A loira de ontem. É sua
namorada?
Reviro os olhos.
— É sério? Você me chamou aqui para dizer uma coisa óbvia
e perguntar se estou namorando?
— Não, mas preciso saber qual é a sua relação com aquela
mulher.
Balanço a cabeça em negação, passo a mão no rosto e conto
até dez mentalmente. A cada dia que passa, Alessia me deixa mais
irritada. Não sei o que ela quer de mim e, para ser sincera, não
quero saber. Quero que ela me deixe em paz e suma da minha vida,
como já fez uma vez.
Estou cansada de seu fingimento. Ontem, quando ela
ameaçou matar o meu pai por conta do que ele disse, senti uma
pequena faísca no fundo do meu peito. Uma faísca… esperançosa.
E isso me apavorou tanto que fui embora do jantar sem
avisar ninguém.
É inadmissível que eu sinta qualquer coisa diferente de
repulsa por essa mulher. A mínima chance de mudança é letal.
— Não, não precisa — retruco, irada. — Pela milésima vez:
você não tem que saber de nada sobre mim, se coloque no seu
lugar.
Ela cerra os dentes e passa a língua no interior da bochecha.
As íris verdes fogem das minhas e encaram um ponto fixo no chão.
— Já parou para pensar — ela fala tão baixo que quase não
escuto — que estou perguntando apenas para eliminar suspeitos, e
não por que estou interessada na sua vida amorosa?
Mentirosa. Recordo-me de suas palavras naquela sala fria e
escura há alguns dias.
“Se qualquer outra pessoa entrar no meu caminho, Lyanna,
vai ter um fim pior do que o dos meus tios. Vou destruir todas as
mulheres que encostaram em você nos últimos anos até você
entender que ninguém toca no que é meu.”
Cruzo os braços e escrutino sua expressão, a qual se tornou
inexpressiva. Entediada.
— Samantha não é uma suspeita — afirmo, vendo-a abrir um
sorriso escárnio de lado. Ultrajada, continuo: — Se encostar um
dedo nela, vou acabar com você, me entendeu?
— Samantha… — diz, perversa, como se tivesse acabado de
descobrir o nome da sua próxima vítima. — Por que está
defendendo tanto ela?
— Pare de se intrometer na minha vida.
— Responda, Bellini — soa como uma ordem, e ela sabe que
não deve me dar ordens. — Qual é a sua relação com ela?
— E se eu disser que transamos com frequência? — Levanto
a sobrancelha em desafio. — Te deixaria feliz saber que Samantha
me faz gozar muito mais do que você fazia? É isso que quer ouvir?
Parece que acordei a fera. Seu semblante fica tão assustador
que quase, quase me arrependo de ter dito isso.
Quase.
— Se queria que a mulher continuasse viva, Lyanna, disse as
palavras erradas — sussurra, transbordando sinceridade.
— Não faça perguntas se não vai conseguir lidar com a
verdade.
— Verdade? — Um sorriso assassino decora seus lábios.
Talvez eu de fato esteja arrependida de ter dito isso, pois não duvido
de que ela mate Samantha depois de ter o ego ferido. — Acha que
acredito nessa merda, Lyanna? Essa filha da puta pode ter feito
você gozar milhares de vezes, mas não engane a si mesma
tentando se convencer de que qualquer uma delas chegou perto de
ser tão boa quanto as que teve comigo.
— Foram melhores.
Infelizmente, é mentira. Queria que Alessia não fosse tão boa
de cama, assim qualquer outra mulher poderia apagar as memórias
sexuais que, a contragosto, me atormentam até hoje.
— Para o seu azar, tenho bastante autoconfiança. — Ela
traga o cigarro e solta a fumaça em minha direção. — Você sabe
que ninguém nunca vai te comer tão bem quanto eu.
— É para isso que me chamou aqui? — reclamo, irada. —
Para falar de sexo?
— Não, mas não me importaria de continuar. Gosto de ver
suas bochechas ruborizando porque está se lembrando da
sensação de esfregar a boceta molhada na minha.
Como diabos chegamos a esse assunto?
Solto um grunhido alto e incrédulo. Um lampejo de diversão
atravessa seus olhos, tão rápido que posso jurar ter imaginado.
— Vai pra casa do caralho, Alessia. Se não falar alguma
coisa útil em dois minutos, vou embora.
Arranco o cilindro de sua mão e ela arqueia as sobrancelhas.
Trago a droga, manchando a ponta de vermelho, e fito a janela em
cima da pia. Vejo o céu estrelado e o pouco das montanhas que se
é possível enxergar à noite, me lembrando de quando costumava
estar neste mesmo cômodo cozinhando enquanto admirava a
paisagem de tirar o fôlego.
E enquanto Alessia me abraçava por trás, distribuindo beijos
por toda a minha pele.
Parece um fruto da minha imaginação. Olhando para ela
agora, para nós, é difícil acreditar que um dia já fomos tão
apaixonadas a ponto de trairmos nossas próprias máfias para
ficarmos juntas.
Na verdade, eu estava apaixonada. Ela apenas fingiu estar
para me usar.
— Por que não vendeu a casa? — questiono baixo.
— Como eu poderia? — Sua resposta me faz encará-la. —
Como eu poderia vender a maldita casa?
Abro a boca para respondê-la, mas sou interrompida:
— Não faça perguntas se não vai conseguir lidar com a
verdade.
Reviro os olhos ao perceber que minha frase foi usada contra
mim.
— E qual seria a verdade do motivo de não vender a casa??
— A verdade é que não consigo me desfazer de qualquer
coisa relacionada a você e a nós. Eu derrubaria cada uma das
paredes antes de permitir que qualquer um pisasse na nossa casa.
Engulo o nó na garganta e solto uma lufada profunda.
Incomodada, desvio o olhar e batuco as unhas na mesa de madeira.
O silêncio me corrói e enche minha cabeça de pensamentos
conflitantes.
— Já que não vai falar nada — tomo a iniciativa de dizer —,
posso ir embora?
— Não. — Ela segura a jaqueta de couro com uma mão, enfia
a outra no bolso interno e tira de lá um pedaço de papel, deslizando-
o até mim. Observo o que presumo ser um endereço escrito em
letras garrafais. — Acredito que seja do seu interesse descobrir o
que aconteceu ontem, com a mercadoria da Vendetta. Por isso,
vamos nos encontrar nesse endereço para investigar. Todos os dias,
às nove.
— Consigo descobrir sozinha.
— Não, não consegue — refuta, cruzando os braços. —
Deixe o ódio de lado, pelo menos agora. Pelo menos até
descobrirmos quem está tramando contra nós.
Cerro os dentes e respiro fundo. Se fosse somente o ódio que
eu precisasse deixar de lado, seria mais fácil; porém, é também o
rancor, a confusão, a vergonha e a culpa. E a informação infeliz de
que ela será morta pela minha organização em menos de dois
meses.
Jurei que nunca mais trairia minha máfia — e meu pai —,
mas aqui estou eu, colaborando com a inimiga mais uma vez.
Alguns males são necessários, é o que repito a mim mesma para
diminuir o aperto no peito.
— Depois disso, vai me deixar em paz? — questiono, com
um aperto no peito.
— Nunca vou te deixar em paz — diz, e meu coração acelera
por algum motivo desconhecido. — Mas, depois disso, vou deixar
que você tome sua própria decisão.
Franzo as sobrancelhas.
— Tome minha decisão sobre o quê?
Ela se levanta, me lança um olhar duro e diz:
— Sobre continuar me odiando ou voltar para mim.
 

“Você gostaria de ficar por aqui?


Eu sei, você sabe, não vá
Acho que estou louco ultimamente”
Think I’m Crazy | Two Feet
 

8 anos atrás
 
Estou de repouso há quase duas semanas. Tentei lutar contra
a decisão do Sr. Roth, nosso médico, mas apesar de odiar, tive que
reconhecer a necessidade de ficar parada. O que eu pensei ter sido
um tiro de raspão foi, na verdade, um tiro quase cem por  cento
certeiro. Se não estivesse dopada pela adrenalina, não teria
conseguido ignorar a dor e seguir em frente.
Então, a contragosto, estive enfurnada no meu apartamento.
Eu poderia estar trabalhando, já que só preciso de um computador,
porém meu pai me proibiu de mexer com qualquer coisa da
organização por um bom tempo. Não foi um castigo do meu pai e
sim do meu don, o que torna impossível desobedecer.
Ele está furioso pelo que eu fiz, especialmente após alguns
dos nossos homens morrerem na segunda tentativa, uma semana
atrás. Reconheço que fui ingênua ao pensar que poderíamos usar a
passagem secreta por onde Alessia me liberou, e agora preciso lidar
com a ira de Alessandro Bellini.
O repouso está me matando. Sophie e Kai não me contam
nada, por mais insistente que eu seja. No entanto, consegui driblar
os seguranças algumas vezes e saí para respirar o ar fresco da
cidade. Sinto falta de frequentar o Ascension e de passar horas na
sala de treinamento.
Esta noite, meus melhores amigos foram para uma missão
numa periferia próxima de Vegas e só voltam de madrugada. Por
isso, mais uma vez, escapei dos soldados. Com cautela, caminho
na garagem subterrânea em direção ao meu carro, olhando ao redor
para me certificar de que nenhum deles está aqui.
Entro no veículo, fecho a porta e coloco a chave na ignição.
Quando levanto os olhos, meu corpo paralisa e levo um segundo
para sacar a arma da cintura e acioná-la. Tranco o carro e varro os
olhos pelo lugar, mais minuciosamente dessa vez.
Há uma carta colada ao para-brisa, um Q de espadas. Não é
uma carta normal, mas personalizada — é preta com as bordas e os
símbolos dourados.
É uma carta dos Romano. Dela, a única que usa cartas de
baralho como sua marca registrada.
Há um papel dobrado no outro para-brisa, mas não posso
arriscar pegá-lo. Dou partida e arranco pneus para fora, onde
acelero e mantenho os olhos no retrovisor para saber se alguém vai
me seguir. Quando já estou longe o suficiente do prédio, estaciono e
saio depressa, apanhando o papel e a carta.
Volto para dentro e dou mais uma olhada ao redor. Por ser
uma região próxima do centro, a rua está movimentada. Não
costumamos entrar em combates na civilização, só que ela é
completamente imprevisível.
Desdobro a pequena folha e fico irritada com o desdém que
transborda pela sua caligrafia desajeitada.
“O que seu chefe pensaria se soubesse que você
desobedece às ordens dele? Tão rebelde. Uma verdadeira gatinha
selvagem.
Me encontre neste endereço, tenho algo que te pertence. Se
não vier, vai recebê-la em seu apartamento de um jeito diferente.”
Reviro os olhos ao reconhecer o endereço como uma das
fábricas da Vendetta. Ir até lá seria suicídio. No entanto, não posso
deixar sua invasão passar em branco.
Por isso, ligo o carro e faço o caminho oposto ao do meu
apartamento.
 

 
Uma das primeiras coisas que descobri sobre Alessia
Romano foram os seus endereços — no plural, pois há dois
apartamentos em seu nome. O qual descobri que ela usa mais fica
em um dos bairros mais perigosos de Vegas, onde há grande
concentração de tráfico de drogas e violência.
Por sorte, coloquei uma roupa simples e nem um pouco
chamativa — além do boné preto — antes de sair de casa. Se
estivesse usando minhas saias, blusas decotadas e o batom
vermelho de praxe, não conseguiria passar despercebida pelas
duas ruas que separam o local onde estacionei o carro  do prédio
dela.
Não é luxuoso, tampouco seguro, e duvido que tenha
seguranças da máfia nessa espelunca. Pelo que averiguei, sua
estadia nesse apartamento não é de conhecimento público e tenho
certeza de que é exatamente por esse motivo que ela fica mais nele
do que no outro. Deve gostar da privacidade e da liberdade.
Abaixo um pouco mais a aba do boné e guardo a mão no
bolso do moletom, que está pesado e cheio. Caminho com a postura
relaxada, sem levantar nenhuma suspeita, e abro a porta de entrada
do prédio.
Cruzo o hall e subo as escadas, evitando as câmeras do
elevador. Minhas pernas doem quando chego ao último andar, mas
apanho o clips e começo a abrir a porta. Trinta segundos depois,
ouço um clique e empurro a madeira.
Se essa é realmente a casa dela, Romano é estúpida pra
caralho. Como é que a herdeira da máfia vive num apartamento que
qualquer boçal conseguiria arrombar?
O lugar está completamente escuro. Encontro o interruptor na
parede e acendo a luz.
No fundo, eu sabia que ela não era estúpida.
Há uma sala enorme e vazia, mais como um corredor. No
final vejo outra porta, essa mais tecnológica e segura — já que há
um painel de reconhecimento digital ao lado. Me aproximo e o
estudo, pensando em possibilidades para conseguir ativá-lo. Se
estivesse com meu computador, não demoraria quase nada para
desarmá-lo.
Uma lâmpada se acende em minha cabeça e pego a carta do
bolso. Coloco-a contra a tela em diversas posições diferentes,
torcendo para que a digital de Alessia esteja completa em algum
lugar.
O painel se ilumina em verde e um barulho metálico ressoa.
Com um sorriso vitorioso, entro e fecho a porta. A luz da lua
entra pelas janelas, me dando uma visão parcial do cômodo. É mais
luxuoso do que o resto do prédio, mas, ainda assim, não está nem
um pouco à altura de uma herdeira. Se minha intuição não estiver
enganada, este deve ser o apartamento no qual ela traz pessoas
enquanto o outro permanece intocável e inacessível.
Atravesso a sala, observo a cozinha e sigo em direção ao
corredor. Há três portas, todas fechadas, e decido abrir todas elas.
Se Romano invadiu a minha casa, ela não se importa com invasões
de privacidade, não é?
O primeiro cômodo é um escritório, todas as paredes são
pretas e os móveis modernos. O segundo é o quarto dela, que não
me surpreende nem um pouco ao ser o mais básico e escuro
possível. É como se não houvesse nenhuma vida habitando este
lugar.
Examino todos os cantos, tentando visualizá-la sentada na
cama enquanto lê um livro; escolhendo uma camisa no guarda
roupa ou lendo papéis importantes na escrivaninha. Só que é
impossível imaginar Alessia fazendo qualquer atividade que não
envolva tiros, tortura, morte e baralho. Ela fez um trabalho tão árduo
na construção de sua reputação que se transformou somente nisso.
É seu único traço de personalidade.
Sem que eu percebesse, minha respiração ficou presa. Solto-
a numa grande lufada de ar e enrugo o rosto numa carranca,
confusa com o formigamento nas mãos. Em um ímpeto, dou alguns
passos à frente, e quando seu perfume alcança meu nariz e me vejo
sem fôlego novamente, ando de costas e fecho a porta depressa.
Umedeço os lábios, vou até a terceira porta e empurro-a
antes de acender a luz.
Posso jurar que minha pressão despenca e estou prestes a
desmaiar. Sinto como se não houvesse mais chão aos meus pés e
fico tão atordoada que a visão escurece. Agarro a maçaneta com
tanta força que começo a ouvir o barulho dela quebrando.
— Puta merda — praguejo em um sussurro incrédulo.
Acho que nunca estive tão chocada em toda a minha vida.
A parede à minha frente é pintada de um vermelho escarlate,
a cor exata do meu batom. É um tom específico, difícil de encontrar
no mercado e impossível de não reconhecer. Diversos quadros, de
diferentes tamanhos, estão espalhados por ela.
E estou desenhada em todos eles.
Em um, há apenas a minha boca; no outro, meus olhos; meu
pescoço, minhas tatuagens, meu cabelo, um vestido que usei há
muitos anos e não tenho ideia de como Alessia sabe sobre ele.
Me vejo em todas as telas.
Tenho que piscar repetidas vezes para voltar a enxergar
direito. Não consigo respirar e meu peito dói. Meu corpo inteiro
treme e sei que vou cair se não me segurar em algum lugar. Se
alguém me perguntasse a definição da palavra “choque”, eu
descreveria este momento.
O momento em que descobri que Alessia Romano, minha
rival, cria pinturas minhas.
Então, ouço a porta do apartamento sendo aberta.
Puta que pariu.
Coloco a mão na boca para reprimir um arquejo e olho ao
redor, procurando qualquer lugar no qual eu possa me esconder.
Depois de fechar a porta e apagar a luz, corro até um armário de
tamanho médio e empilho algumas caixas na lateral para me enfiar
no espaço restante.
Aperto o moletom entre os dedos quando passos se
aproximam, até que parecem alcançar o outro lado da porta. Engulo
em seco, o coração batendo tão acelerado que consigo senti-lo nos
ouvidos. Fecho os olhos, torcendo para que Alessia não entre.
Porém, ela entra.
Escuto-a caminhando pela sala e mantenho os dedos contra
a boca numa tentativa de não fazer nenhum barulho. Se ela me
pegar aqui, estou fodida. Trouxe uma única arma, que não será
suficiente.
E por algum motivo, a adrenalina me deixa entorpecida.
Uma cadeira se arrasta no chão, parecendo estar perto
demais do armário. Depois, há um silêncio pesado. Me pergunto o
que ela está fazendo.
Será que está pintando mais um quadro meu?
Tenho a resposta no instante seguinte, quando sua voz
gutural me provoca um arrepio na coluna:
— Me diga, Bellini, qual das minhas facas devo usar para
punir você?
“Aposto que ela nunca poderá fazer você chorar
Porque as cicatrizes em seu coração ainda são minhas
Me avise quando estiver pronto para sangrar
Talvez você só precise pedir pra mim”
Woo | Rihanna
 

— Vocês estão brincando com a porra da minha cara? —


pergunto, irritada.
Estou com alguns soldados da equipe de Força Bruta
treinando arremesso de facas. Senti falta de participar ativamente
dos treinos, então me juntei a Jayden no de hoje. O problema é que
a maioria deles está acertando tudo, menos o alvo.
— Alessia — Jay sussurra, parando à minha frente. — Pega
leve, cacete. Eles estão quase mijando na calça por sua causa.
— Minha causa? — Levanto a sobrancelha. — King, você é o
líder deles. Não tenho nada a ver com isso. Que merda de equipe é
essa? Se cinco arremessos atingiram o centro do alvo, é muito.
— Sua reputação não desapareceu junto com você —
explica. — Na verdade, ficou ainda pior. Quase todos que estão aqui
não treinavam com você e não sabem o quão filho da puta você
consegue ser, então pega leve. E não ofenda meu trabalho, Alessia.
— É assim que você se dirige à sua don? — repreendo,
cerrando as pálpebras.
— É assim que me dirijo à minha amiga. — Ele dá dois
tapinhas em meu ombro e se vira para eles. — Cinco minutos de
pausa, pessoal! Bebam água e tentem relaxar. A chefe não vai
morder ninguém.
— Morder, não. Punir, talvez.
A brincadeira — não tanto assim — não é nem um pouco
bem recebida, especialmente por Jayden. Ninguém ri e ele me lança
um olhar reprovador, o qual devolvo em dobro.
Deixo-o para trás e caminho até a enorme mesa de madeira
posta atrás das cabines, nas quais os soldados se posicionam para
arremessar. Vejo diversos modelos de diversos tamanhos e meus
olhos brilham com o desejo de relembrar os velhos tempos.
— Eles morrem de medo de você.
Viro a cabeça e encontro Sienna ao meu lado. Insisti para que
ela treinasse junto com os soldados hoje para tirá-la daquela
mansão, já que minha irmã não sai de casa desde a morte de
Dante. Ela sempre foi a pessoa mais sociável que eu conheço,
cheia de amigos e compromissos. Não tem se encontrado com
ninguém nas últimas semanas, no entanto.
— Não é verdade — minto.
Eles estão quase mijando na calça.
— Claro que é! Parece que eles estão preparados para levar
um tiro a qualquer momento, Alessia.
— E por que eu daria um tiro neles? — Reviro os olhos. —
Arremessam uma faca como a porra de uma criança, mas não
significa que vou matá-los por isso. Ainda.
Sienna me oferece um olhar repreendedor e abro um meio
sorriso para provocá-la.
— Sabe… — Se vira, apoiando o quadril na mesa, e cruza os
braços. Enquanto estou de frente para as facas, o corpo dela está
virado para a sala. — Nunca te falei isso, mas já te imaginei como
don algumas vezes.
Levanto as sobrancelhas, um pouco surpresa. De fato, ela
nunca nem mencionou algo perto daquilo. Apesar de que não
costumávamos conversar muito sobre a estrutura interna da
organização, por escolha minha e de Dante. Minha irmã sempre
quis saber, perguntando sobre isso e aquilo, mas eu não dava
muitas brechas. Era melhor que ela não cavasse aquele buraco.
— É mesmo?
Ela confirma com um balançar de cabeça.
— Não sei se alguém já te disse isso, mas você nasceu para
liderar, Ale. — Sinto um rebuliço no peito. Uma sensação boa. —
Quando eu era pequena e você estava me ensinando a atirar,
lembro que eu te olhava e pensava: “Caraca, minha irmã é tão boa
nisso. Tenho certeza de que ela vai chegar aonde o papai chegou
algum dia”. Sabe que não sou a maior fã desse mundo criminoso no
qual a gente vive, mas você… Você nasceu para estar nele, Alessia.
De alguma forma muito insana, acho que você sempre esteve
destinada a liderar uma máfia.
Uau.
Eu não esperava ouvir isso dela. Apesar de ter muita
curiosidade e querer estar a par das coisas da Vendetta, Sienna
deixa claro que, se pudesse escolher, escolheria ter nascido em um
mundo “normal”. Porém, por necessidade e até mesmo obrigação,
ela se adaptou à realidade suja e criminosa.
Se eu pudesse escolher, também escolheria tirá-la do
submundo. Gostaria de enviá-la para longe, pagar uma faculdade de
sua escolha e lhe dar a oportunidade de recomeçar sua história. Ela
poderia ter amigos normais, sair para lugares normais, ter
namorados ou namoradas normais. Poderia viver uma vida normal.
Só que é tarde demais. Ela já tem vinte e um e já viveu
demais. Viu demais.
No momento em que Sienna estivesse longe de nós, nossos
inimigos a pegariam. E isso é algo que não posso permitir, mesmo
que signifique mantê-la na sujeira.
— Por que nunca me disse? — indago, endireitando a coluna.
— Eu não fazia ideia que você pensava isso de mim.
— Não pensei que realmente fosse acontecer. — Dá de
ombros. Observo suas íris verdes escorregando pela sala até
voltarem para as minhas. — Achei que levaria um tempo até o papai
morrer. Depois, você sumiu e eu não sabia se voltaria ou se estava
morta… Não sabia mais o que pensar sobre nada.
Solto um suspiro pesado. Posso sentir em sua voz o quão
difícil os últimos anos foram para ela. Quando tivermos essa
conversa, espero que Sienna consiga me entender e me perdoar —
porque, no fundo, acho que ela ainda sente certo rancor.
— Estou feliz que você está melhorando — mudo de assunto.
— Apesar das nossas diferenças, não quero te ver trancada no
quarto enquanto chora o dia inteiro. Você é a luz dessa organização,
Sienna. Todos sabem que os dias são melhores quando você
passeia por aí e faz as pessoas rirem sem muito esforço.
Ela sorri pequeno, um pouco triste, e abaixa os olhos.
— O luto é uma merda, Ale — sussurra. — Você tem sorte de
não senti-lo.
A frase é mais forte do que parece. Atinge meu peito em
cheio e me faz cerrar a mandíbula em desconforto.
Antes que eu consiga responder, ouço Jayden chamando-a.
Lançando-me um último olhar, minha irmã se afasta e caminha até
ele. King bagunça seu cabelo loiro e ela ri, empurrando-o de leve.
Observo a cena com atenção, as pálpebras espremidas e um
pressentimento estranho rondando a cabeça.
Antes de tudo acontecer, eles não eram tão próximos quanto
Sienna era de Yuna. Jayden é um verdadeiro fuckboy e o jeito
“patricinha-e-princesinha-demais” — em suas próprias palavras —
de minha irmã não o agradava muito, então os dois não tinham a
relação amigável que ela e Yamazaki tinham.
Contudo, desde que voltei, notei a proximidade deles. Esses
cinco anos devem tê-los feito se aproximarem naturalmente e,
apesar de estar com uma pulga atrás da orelha, me alivia saber que
meu melhor amigo esteve lá por ela.
Solto uma lufada de ar e desvio a atenção de volta para a
mesa. Estudando as facas, decido aproveitar a pausa para matar a
saudade. Apanho cinco, três na mão direita e duas na esquerda.
Sentindo olhares curiosos sobre mim, ocupo uma cabine que ainda
não foi utilizada e, portanto, seu alvo está intacto e vazio. Coloco as
facas no balcão, seguro uma e jogo-a para cima, girando-a no ar
antes de apanhar o cabo novamente.
É idêntico a brincar com as cartas, mas com a parte letal.
Endireito os ombros, me concentro no pequeno círculo
vermelho no centro e jogo o braço para trás. O silêncio que pairou
de repente sobre a sala é pesado, como se todos estivessem
curiosos e tensos para descobrir se faço jus à fama e sou realmente
boa.
Estou pronta para arremessar quando a porta é aberta com
força, o estrondo da madeira batendo contra a parede atraindo
minha atenção e me obrigando a virar a cabeça para olhar por cima
do ombro.
Meu corpo inteiro enrijece quando vejo Lyanna Bellini sendo
escoltada por cinco soldados armados até os dentes. Eles não a
tocam, mas, mesmo assim, meu sangue ferve. Ter homens da
Vendetta tão perto dela me deixa enlouquecida, pois sei que as
chances de ela acabar ferida são enormes.
— Chefe — um deles me chama.
Nossos olhares se cruzam, endureço a mandíbula e a fuzilo
com o olhar. A raiva é recíproca e pelo modo como ela me encara,
percebo que já descobriu.
Giro sobre os calcanhares e caminho até eles. Em uma
inspeção rápida, noto que Lyanna não está armada. Com certeza foi
revistada antes de entrar aqui. Se está voluntariamente
acompanhada dos meus homens, é porque aprendeu a lição da
primeira vez e não quer que toda aquela confusão se repita.
Ainda assim, o medo cria uma névoa em minha cabeça. Essa
mulher não percebe o quanto é perigoso pisar em meu território?
Por que continua se colocando em risco, inferno?
— Essa aqui apareceu no Fortuna, pedindo para conversar
com a Sra.
Odeio ser chamada de “Sra.”, assim como Lyanna deve ter
odiado ser chamada de “essa aqui”.
Ela o fulmina com as íris castanhas, trincando a mandíbula.
— “Essa aqui” é o seu rabo. Me chamo Lyanna, porra.
Ele faz menção de agarrar o braço dela e dou um passo
adiante, em alerta. Sua atenção recai sobre mim e ele retrai os
ombros, recolhendo a mão. Depois, fito-a.
— O que pensa que está fazendo aqui, Bellini?
Ela apruma a postura, mantendo o queixo erguido.
— Meu don me enviou até aqui para resolvermos o problema
da última invasão no sistema de segurança. Não queremos
problemas, Romano, então vim em paz.
Ninguém parece captar a mentira além de mim. Afinal, eles
não sabem o que fiz algumas horas atrás. Por Lyanna ser a feiticeira
do submundo, faz sentido que tenha sido ela a vir aqui e não Marco
Sartori, Underboss e quem geralmente faz esse tipo de coisa. O
único que pode — e vai — suspeitar é Jayden, mas não me
preocupo com ele.
Não a respondo de imediato. Nos encaramos em completo
silêncio, enquanto sinto todos os olhares sobre nós. O clima é tão
denso e desconfortável que consigo ouvir as respirações pesadas
de alguns caras.
Na última vez que Lyanna fez algo do tipo, peguei leve com
ela na frente dos meus homens e sei que isso deve ter gerado certo
burburinho. Suspeitas a respeito de nós é a última coisa que preciso
agora.
Então, ordeno:
— Bellini, fique no alvo.
Ela franze as sobrancelhas, unindo-as em confusão.
Entreabre a boca para retrucar, mas levanto a faca e aponto para o
círculo atrás de mim.
— Vá.
— Você está brincando? — indaga, o tom cambaleando entre
a incredulidade e a ira.
— Quem está brincando é você, já que atrapalhou o meu
treino por um motivo estúpido e completamente irrelevante. —
Quase posso ver a fumaça saindo de suas orelhas enquanto me
fuzila com o olhar. — Na Vendetta, temos alguns métodos diferentes
de conversa. Decidi que vamos conversar assim, com você na
frente do meu alvo. Quem sabe dessa vez você se assuste o
suficiente para não voltar?
Conheço-a mais do que a mim mesma e sei que ela nunca
recusaria um desafio como esse, especialmente na frente de outros
soldados. Soldados inimigos. Seu orgulho não permitiria.
E é o que ela faz. De cabeça erguida, olhar fulminante e o
barulho do salto alto contra o piso, atravessa as cabines e se põe na
frente do alvo. Me aproximo da bancada, estalo o pescoço e abro
um pequeno sorriso de lado, visível apenas para ela.
— Por que está aqui, mesmo? — questiono. — Invasão no
sistema, é?
Lyanna endurece a mandíbula e respira fundo. Suas mãos
fecham em punho ao lado do vestido. Ela está gostosa pra caralho
nesse vestidinho justo, de alças finas e decote V. Saber que pelo
menos trinta pessoas estão olhando-a do mesmo jeito me
enlouquece.
— Na última conversa que… nossas organizações tiveram,
dissemos a vocês para não invadir o sistema.
O que ela quer dizer é: “Na última conversa que nós tivemos,
eu te disse para não encostar em Samantha”.
— Tivemos nossos motivos, Bellini — respondo.
Em um ato rápido, levanto a mão e arremesso a faca. Ela gira
no ar e voa até a lateral do círculo, quase na borda, na direção de
seu ombro. A lâmina finca na madeira e, diferente de como qualquer
um nesta sala faria, Lyanna não sobressaltou.
Não prendeu a respiração. Não se assustou. Sequer piscou.
Minha feiticeira é corajosa.
— Não há motivo nenhum — retruca, soltando a respiração.
Está se controlando para manter as aparências tanto quanto
estou me controlando para não arrancar os olhos de cada um que
está apreciando o corpo dela nesse maldito vestido.
— Um dos seus colegas disse um monte de merda, não se
lembra? — Apanho outra, jogando-a da mão esquerda para a
direita. — Algo como o sistema de vocês ser melhor do que o nosso
e outras porcarias bem engraçadas. Tínhamos que descobrir, não
acha justo?
— Não. Além de não ser justo, pode ser visto como um ato de
guerra.
Sorrio, girando a faca entre os dedos. Lanço-a depressa,
vendo seu borrão antes da ponta fincar acima da cabeça de Lyanna.
Vejo seus olhos brilhando em puro ódio ao perceber que,
propositalmente, acertei um pouco mais perto do que antes.
— Então, acho que seu amigo deveria ter pensado antes de
falar — provoco, dando de ombros. Seu olhar é tão fuzilante que o
sinto me partindo ao meio.
— Acho que vocês deveriam cuidar da própria organização e
deixar a nossa em paz. Não queremos nada de vocês.
Tradução: “Acho que você deveria cuidar da sua própria vida
e me deixar em paz”.
Assim como deixei claro ontem, nunca vou deixá-la em paz.
Arremesso mais uma, atingindo acima de seu ombro. Vejo-a
soltar a respiração e olhar ao redor com um meio sorriso perverso.
— Espero que estejam gostando do show. Se quiserem,
posso fazer um strip tease. Minha lingerie é rendada e…
— Saiam! — ordeno, ríspida. — King, leve-os para o outro
prédio.
Meu amigo não protesta, pois deve imaginar que estou puta.
Ouço a movimentação dos passos e o som da porta sendo fechada.
A maldita conseguiu o que queria: a sala vazia.
— Não brinque comigo, feiticeira — alerto, pegando a
penúltima faca da bancada. — Falar sobre a porra da sua lingerie
para os meus homens? Muito, muito perigoso.
— Contratar alguém para criar um acidente de trânsito?
Muito, muito perigoso — rebate, permitindo-se elevar o tom.
— Ah, isso? — Franzo os lábios em despretensão.
Jogo o braço para trás e solto a faca, observando-a voar,
certeira, até atingir uma região muito próxima do pescoço de
Lyanna. Pela primeira vez, ela ofega com o arremesso.
— Soube que foi um acidente grave. Sua amiga está bem? —
questiono, completamente cínica.
Ela grunhe alto, pronta para se aproximar e me dar um tapa
na cara. No entanto, não lhe dou tempo e lanço a última lâmina em
sua direção. No mesmo instante, a alça do vestido estoura e cai,
revelando parte do seu sutiã vermelho.
É mesmo rendado.
— Sua filha da puta! — chia, segurando o tecido e
levantando-o para deixá-lo como costumava estar antes da minha
faca parti-lo.
— Oferece um strip aos meus soldados, mas não a mim? —
Estalo a língua, balanço a cabeça e me afasto da bancada.
Seus passos ecoam conforme paro ao lado da mesa,
observando todas as armas dispostas. Me inclino para frente,
espalmando as mãos na superfície. A navalha mais próxima de mim
é apanhada e fincada na madeira com raiva, entre meu polegar e o
indicador.
Poucos centímetros e eu teria o dedo perfurado.
— Qual é a porra do seu problema? — vocifera.
Respiro fundo e me viro, encontrando seu corpo próximo do
meu. Continua segurando a alça do vestido, como se eu já não
tivesse visto-a completamente nua milhões de vezes.
— Aquelas merdas de ontem? — murmuro, apertando os
olhos. — Eu te avisei que elas custariam a vida daquela mulher.
— Porra, Alessia! Não sei o que você quer de mim! — grita, e
agradeço por ter ordenado que Jayden levasse todos para outro
prédio. — Quase matou Samantha porque já transei com ela? É
sério? Meu Deus, juro que você me deixa completamente louca!
— Estive queimando na loucura por dez anos, desde que
coloquei meus olhos em você pela primeira vez naquele maldito bar
imundo. Acha que não perco a porra da sanidade te ouvindo dizer
que outra mulher te fez gozar? — minha voz sai baixa e
intimidadora. — Não a matei porque estou de bom humor, mas se
falar qualquer merda parecida mais uma vez, não vou ter tanta
piedade. E ela não será a única a morrer.
Ela grunhe alto e dá um soco em meu ombro. Sua pele está
vermelha e provavelmente quente devido à raiva. Não consigo evitar
de achar a cena sexy pra caralho.
— Você é uma hipócrita do caralho! Até parece que não
gozou com outras mulheres nos últimos cinco anos. Por acaso estou
matando alguma delas?
— Gostaria? — Arqueio o canto da boca em um sorriso. —
Posso te dar os nomes, se quiser.
Ela arregala os olhos, furiosa. Dá outro soco, esse mais forte.
— A única que quero matar é você!
— Não pode fazer isso antes de cumprirmos com o nosso
acordo — lembro.
Lyanna ri alto, sarcástica, e balança a cabeça de um lado
para o outro. Desiste de segurar a alça, que cai e volta a expor parte
do sutiã. Engulo em seco, tentando não verbalizar o quanto sou
fascinada pelos seus peitos redondos e deliciosos.
— Sabe de uma coisa, Romano? Vou cumprir com a porcaria
do acordo, mesmo que não aguente nem te olhar depois disso. Vou
descobrir que merda está acontecendo para finalmente me livrar de
você.
Ela sabe que nunca vai se livrar de mim, mas decido não
dizer nada.
— Por mim, tudo bem. — Dou de ombros.
Ela revira os olhos, segurando o tecido rasgado para fazer um
nó improvisado no ombro. Apertando-o, consegue deixar a alça em
pé novamente. Depois, me olha.
— Se minha calcinha não tivesse ido parar naquele
caminhão, saiba que eu nunca aceitaria trabalhar com você. Por
isso, não teste a minha paciência. Mais uma palhaçada como essa e
nunca mais olho para a sua cara, me entendeu?
— Entendido, feiticeira.
As íris frias me lançam um último olhar furioso antes de ela se
virar, caminhar até a porta e sumir pelo corredor.
Mordo o lábio, reprimindo um sorriso. Ela continua sendo uma
gatinha selvagem.
 

 
Às nove e meia, estou sozinha no apartamento. Lyanna ainda
não chegou e, à essa altura, não sei se ela realmente vem. Eu sabia
que envolver Samantha num acidente poderia deixar Bellini furiosa e
arruinar tudo, mas não fui capaz de controlar o ciúmes.
Solto uma lufada de ar e me concentro nas cartas entre os
dedos. Tenho o costume de carregar meu baralho — ou algumas
cartas, pelo menos — para todo lugar, embora não o use. Elas estão
comigo desde que consigo me lembrar, quando eu ainda era uma
criança inofensiva, e desde então tornaram-se um refúgio para onde
corro dos meus demônios.
Às vezes, na maioria delas, nada funciona. Nem mesmo as
cartas. Então, me afogo em um oceano profundo, escuro e sem fim.
Tento nadar, nadar e nadar até a superfície, mas ela nunca chega.
Nunca consigo alcançar a luz.
Naqueles momentos, eu costumava me agarrar à esperança.
Era um sentimento ingênuo, infundado e pequeno, como uma
fagulha prestes a se apagar. De fato, ela sempre era apagada
quando a realidade batia na minha cara e eu era forçada a aceitar
que as coisas nunca voltariam a ser como eram antes.
Tive cinco anos para aceitar que nunca teria ela de volta, e
cinco anos não foram o suficiente. Cinquenta não seriam.
Escapo do buraco sombrio para onde minha mente já
começava a mergulhar quando ouço a porta da frente abrir. Respiro
fundo, cerro os dentes e continuo embaralhando as cartas. Um copo
repousa próximo à minha mão, uísque o preenchendo até a metade.
De soslaio, capturo o exato momento em que ela entra na
sala e fica alguns segundos parada, no que imagino ser uma
inspeção minuciosa do cômodo grande e repleto de mesas, telas e
computadores.
Sempre imaginei qual seria sua reação ao ver este lugar.
Lyanna é apaixonada pelo mundo virtual tanto quanto sou pelo
baralho, o que me fez sonhar acordada com todos os momentos
que passaríamos aqui quando o espaço ficou pronto.
Um dia depois, tudo mudou.
Levanto a cabeça e sinto como se houvesse uma mão
esmagando, torcendo e dilacerando meu coração ao vislumbrar os
dois pontinhos castanhos brilhando em deleite. Desvio o olhar,
ouvindo seus passos até a extensa mesa de vidro no canto da sala.
Ela puxa uma cadeira e se senta na outra ponta, à minha
frente. Sinto seus olhos escuros fulminando cada um dos meus
movimentos ágeis e precisos, os dedos brincando com as cartas
como se essa fosse a coisa mais fácil do mundo.
E é.
É mais fácil ganhar todas as malditas partidas de pôquer do
mundo do que lidar com a repulsa de Lyanna; o ódio que ela emana
rasga meu peito como as apostas nunca fizeram.
Eu nunca deveria ter colocado qualquer coisa acima delas,
especialmente alguém como ela. Alguém disposta a me destruir, a
me dissecar de dentro para fora e a me dar a pior das vinganças. O
que ela não sabe, no entanto, é que viver os últimos cinco anos foi
pior do que qualquer vingança que ela tenha planejado para mim.
Seja lá o que ela pretende, não chega perto do que enfrentei.
— Me chamou até aqui para ficarmos em silêncio? —
pergunta, hostil.
Deixo o baralho na mesa e levo o copo aos lábios, bebendo o
uísque em um único gole. Já é o terceiro desde que cheguei aqui,
mas não tenho a intenção de ficar bêbada. O motivo pelo qual abro
a garrafa e me sirvo com um pouco mais de álcool é para aguentar
as próximas horas.
— Estou surpresa que você veio — confesso em um
murmúrio.
Mantenho a atenção naquela carta específica, que deixei
propositalmente no topo do baralho. Para me torturar um pouco
mais, deslizo os orbes até o antebraço direito.
Até a tatuagem de uma dama de espadas em chamas, com o
sangue escorregando pelas bordas.
— Disse que viria, não disse? Se é o que preciso fazer para
me livrar de você de uma vez por todas, então…
Tensiono a mandíbula e cravo o olhar no dela. Perceber que
minha presença a incomoda tanto é como levar um tiro no peito.
Não sei por que diabos inventei esse trabalho conjunto se,
claramente, não vai funcionar.
Além do mais, eu não queria tê-la arrastado para o meio disso
tudo. Não tinha planejado inserir Lyanna na sujeira, muito pelo
contrário; mas, de alguma forma, foi o que aconteceu. Então, é
melhor tê-la ao meu lado do que longe de mim, fazendo sabe-se lá o
que por suposições da cabeça.
Nem mesmo o diabo faz ideia do quanto tentei afastá-la das
merdas que me envolvem.
— Cuidado com a boca, Bellini — advirto.
Ela arqueia as sobrancelhas em desafio.
— Acha que tenho medo das suas ameaças?
Não, não acho. Ela nunca teve.
— Acho que você deveria guardar suas garras se quiser
descobrir alguma coisa — aviso, impassível. Apesar do rebuliço no
peito, nunca permito que ela enxergue algo negativo em meu
semblante. — Se não é capaz de fazer isso, dê meia volta e vá
embora. Não desperdice o meu tempo.
— Puta merda, você é tão… — Suas pálpebras espremem
em irritação.
Solto o ar, guardo o baralho no bolso interno da jaqueta e viro
a bebida em um gole. Suportar seu ódio estava sendo uma tarefa
tolerável até alguns dias atrás, mas as coisas mudaram de uma
maneira que embora no fundo já imaginasse, eu não queria aceitar.
Não queria colocá-la em perigo.
— Como consegue? — ela dispara, conforme me levanto e
vou até uma das mesas de computadores.
Ouço-a me seguir e permaneço com os olhos nas telas
dispostas em formato de U, que mostram diversas filmagens das
câmeras espalhadas pela cidade. Apesar disso, minha atenção está
cravada na presença atrás de mim. É sufocante.
— Como consegue olhar para a minha cara depois do que
fez? — Seu tom é corrosivo, grosseiro. — Depois de sumir por cinco
anos sem me dar uma explicação, sem mandar uma porcaria de
mensagem?
— Não há nada para ser explicado.
A maior e pior mentira que já contei.
— Você é uma covarde de merda — ela cospe, o timbre
repleto de rancor.
Fecho as mãos em punho e inspiro uma enorme quantidade
de ar. Expiro devagar, a fim de não deixar a razão de lado.
Lembre-se por que ela te odeia; lembre-se que ela tem todo o
direito de te odiar.
Não quero que ela me odeie, porra. Quero que ela saiba da
verdade.
— Já acabou?
— Não, não acabei.
De abrupto, ela se coloca entre meu corpo e a mesa. O
problema é que não há muito espaço, então estamos mais próximas
do que deveríamos. Meu peito queima e puxo o máximo de ar
possível, tentando não sucumbir ao desejo de segurar sua garganta
e mostrar que ainda me lembro de como ela adora ser punida por
ser uma provocadora de merda.
— Você me deve uma explicação — rosna, apontando o
indicador para o meu peito. — Eu não deveria me humilhar desse
jeito, mas não consigo olhar na sua cara e fingir que nada
aconteceu! Se você consegue, parabéns, não sou um crápula sem
coração como você.
Se ela soubesse o tamanho do meu maldito coração, nunca
mais diria isso.
Se ela soubesse que ele bateu exclusivamente por ela nos
últimos cinco anos, lavaria a porra da boca com sabão.
— Acha que gosto de olhar para a sua cara? — revido no
mesmo tom, aproximando o rosto do dela. — Acha que eu não
preferia ter continuado longe dessa cidade?
Mentiras. Tantas, tantas mentiras.
Me sinto um grande saco de lixo quando vejo seu semblante
cair por uma fração de segundo. Não quero magoá-la mais do que
já fiz, mas é o que preciso fazer por enquanto.
— Não gosta de olhar para a minha cara, mas quase mata
uma mulher porque transei com ela — debocha, rindo em sarcasmo.
— Fala tanta coisa contraditória… Tantas provocações, para no final
dizer isso. Você é mesmo uma hipócrita.
— Já acabou? — repito.
— Você deveria mesmo ter ficado longe da cidade. De mim.
Não tem ideia do quanto quero acabar com você.
Por algum motivo, quase deixo um sorriso crescer. Seus
olhos transbordam o mais puro ódio colossal, mas sempre achei
fascinante o fato de ela me ameaçar mais do que qualquer outra
pessoa já teve coragem de fazer.
— Não sou idiota, Bellini. Sei que estou me colocando em
perigo ao estar no mesmo cômodo que você, mas, adivinhe? —
Levo minha boca ao seu ouvido e sussurro: — Não tenho medo. E
se tentar qualquer coisa, vai se arrepender.
— Você me subestima.
E, de repente, sinto algo gelado em meu quadril.
Sempre consigo prever o próximo movimento das pessoas
com quem luto. Sempre consigo prever os socos, os tapas e os
revólveres apontados. Tive muito treinamento para desenvolver um
reflexo absurdo.
Por isso, eu já sabia que ela sacaria sua arma. Eu sabia e
deixei; deixei que ela pressionasse o cano contra minha pele e
ativasse a pistola, pronta para apertar o gatilho.
— Acha que ainda sinto alguma coisa por você? — murmura,
venenosa. — Acha que eu não conseguiria te matar porque, oh meu
Deus, a minha ex-namorada voltou e trouxe consigo tudo que eu
sentia por ela?
Deslizo os lábios recém-umedecidos pelo seu lóbulo e ouço-a
arquejar baixinho, bem como a sinto aumentar a pressão da arma
em meu quadril. Como se não estivesse afetada pela nossa
aproximação, continua:
— Não se engane, Alessia, não sinto mais nada por você.
Em um ato rápido que Lyanna não foi capaz de prever, levo a
mão até sua garganta e a envolvo com os dedos. Não aperto com
força, mas não deixo frouxo. É a pressão exata que sei que ela
gosta.
Como eu imaginava, ela ofega baixo. Pressiono o dedo em
sua carótida e sinto a pulsação rápida.
— É por isso que seu coração está acelerado, principessa?
Por que não sente mais nada por mim?
Com a mão livre, ela me empurra pelo peito. Porém, em vez
de afastar o toque, seus dedos agarram minha camisa e me puxam
mais para perto, quebrando qualquer distância existente entre nós.
— Se isso é não sentir mais nada por mim, feiticeira, imagino
o que faria caso ainda sentisse — desdenho, e ela grunhe alto em
meu ouvido.
— Está na minha mira e continua me provocando, Romano?
Deseja tanto morrer assim?
O clima despenca automaticamente. Dos pés à cabeça,
congelo como pedra.
Largo-a no mesmo instante, em um solavanco, e me afasto.
Acho que ela não esperava por essa reação, já que encontro um
lampejo de confusão em seu rosto.
— Sinta-se à vontade — digo, ríspida, desviando o olhar. —
Os computadores te dão acesso às câmeras de todo o nosso
território. Tenho que fazer uma ligação.
Dou as costas, caminho até a escada e subo para o segundo
andar.
Não faço nenhuma ligação.
Não faço nada além de me trancar no banheiro pelos
próximos vinte minutos, tentando controlar a crise de pânico.
 

“Se você quer amor, você vai ter que aprender a mudar
Se você quer confiança, você vai ter que merecer”
If You Want Love | NF
 

 
Pensei que aguentaria passar horas ao lado de Alessia, mas
chego no meu limite em quarenta minutos. Apesar de estarmos em
completo silêncio, cada uma fazendo uma coisa — estou
vasculhando alguma pista nas filmagens enquanto ela lê diversos
papéis —, a presença dela é suficiente para me sufocar. Não
consigo me concentrar, tampouco tirá-la dos meus pensamentos; é
como um vírus.
Vez ou outra, viro o rosto em sua direção. Em quase todas
elas, flagrei-a me olhando de antemão. Não tenho ideia do que se
passa em sua cabeça, já que seu rosto é quase sempre um livro em
branco.
Detesto não entendê-la. Detesto estar no mesmo cômodo
que ela. Detesto que ela tenha voltado para Las Vegas.
Detesto que ela tenha arruinado tudo cinco anos atrás.
Eu tinha aprendido a conviver com o fato de que nunca teria
minha vingança. Nunca cogitei que ela estivesse morta, mas sabia
que precisava aceitar a realidade de que não teríamos um
encerramento — não positivo, mas qualquer um. As coisas terem
acabado entre nós naquela noite, sem nenhuma explicação ou um
pedido de perdão, é mais agoniante do que seria caso ela tivesse
me xingado, dado um soco na minha cara e terminado tudo.
Em meu âmago, sinto que preciso disso: um encerramento.
Preciso que ela seja sincera e diga com todas as letras que me
usou, me traiu e desapareceu. Que tudo foi planejado desde o
início, naquele maldito bar em Corn Creek. Que durante aqueles
três anos, nada foi real da sua parte, apenas da minha.
Preciso de um encerramento, seja lá qual for, para seguir em
frente.
Depois, preciso machucá-la de alguma maneira para suprir a
necessidade de vingança. Confesso que já cogitei várias vezes
fazer a única coisa que a machucaria tanto quanto eu fui
machucada, mas não sou capaz. Ao contrário dela, eu não
conseguiria viver com minha própria consciência.
Ouço-a respirar fundo e miro de soslaio. Seu semblante beira
um furioso, o que me faz pensar que ela encontrou algo. Não vou
perguntar, porém, pois prefiro o silêncio do que nossas interações.
Por mais centrada que eu tente ficar, sempre perco a cabeça
quando estou ao lado dela. Um sentimento ardente me consome e
passa a controlar todos os meus movimentos e minhas falas.
Aprendi a ser menos impulsiva ao longo dos anos, só que esse lado
sempre ressurge por culpa dela.
Mais vinte minutos se passam. Quando enfim consigo focar
nas telas após ver uma movimentação suspeita nos limites do
território, Alessia se levanta e atrai minha atenção. Ela estala o
pescoço e os dedos, caminha até um corredor e some. Não demora
mais do que dez segundos para reaparecer com dois copos e uma
garrafa na mão, andando até mim.
Assisto-a colocar os dois na mesa, bem na minha frente, e
enchê-los de uísque.
— Alguma coisa útil? — pergunta, levando o seu à boca e
bebericando um gole.
— Conhece esse homem?
Volto dez segundos na filmagem e aponto para uma figura
masculina, encapuzada e com as mãos cobertas por luvas. Sua
cabeça está baixa, mas é possível enxergar metade do rosto. Ele
não aparenta ter mais do que quarenta anos.
Alessia não esboça nenhuma reação, mas posso jurar que
vejo uma faísca de reconhecimento em seu olhar. Ela permanece
estática, observando a tela.
— Não conheço.
Espremo as pálpebras e ela me fita.
— Tem certeza? — pergunto. — Não é só a sua máfia que
está em jogo, Romano. Minha calcinha estava naquele caminhão
por algum motivo. Então, se você estiver mentindo…
— Sem sermão — me interrompe. — O que mais encontrou?
Ela conhece o cara. O que me deixa curiosa é o fato de ela
mentir. Por quê?
Avanço a filmagem até o momento em que o homem se
encontra com outro, também desconhecido por mim. Pelo arco que
a sobrancelha direita de Alessia forma, deduzo que ela também
conheça esse, mas não pretende omitir.
— Eles passaram cerca de cinco minutos conversando. Chuto
que era sobre algo perigoso, já que esse outro parecia nervoso e
agitado. Conhece ele?
Sua mão livre adentra o bolso interior da jaqueta de couro e
apanha um maço. Ela pega um cigarro, joga o maço na mesa e
coloca o cilindro de papel entre os lábios. Retira o isqueiro e o
acende, tragando o fumo enquanto analisa a tela.
Eu a conheço o suficiente para perceber que ela está, nesse
exato momento, planejando algum tipo de tortura em sua cabeça.
— Cassio McBride — diz, soltando a fumaça. — Um dos
nossos traficantes. Quando foi isso?
Ela se inclina para frente a fim de enxergar melhor e coloca a
mão, que segura o copo, apoiada no encosto da minha cadeira. O
cabelo escuro cai em meu ombro e seu pescoço fica a poucos
centímetros do meu rosto.
Viro a cabeça no mesmo segundo.
— Duas semanas atrás. — Diante do seu silêncio, continuo:
— Ele usou um carro popular, sem placa. Longe de mim me
intrometer no esquema de vocês, mas ninguém viu esse cara
circulando por aí? Que tipo de soldado você coloca nas ruas?
É o famoso “quem sou eu para julgar?” depois de julgar.
— Mais alguma coisa? — pergunta, arisca.
Nego com a cabeça.
— E você? O que encontrou? — questiono, olhando-a
novamente.
Para a minha sorte, Alessia já endireitou a postura. A fumaça
de seu cigarro é expelida para cima, a nuca inclinada para trás e a
visão infernal de seu pescoço tatuado. O número 14 bem no centro
me paralisa toda vez que vejo.
Cada dia que passa, a detesto um pouco mais.
— Vamos investigar o Cassio — diz, ignorando a minha
pergunta. — Consegue fazer um relatório com todos os passos dele
nos últimos 5 meses? Cada lugar em que ele foi, cada transação
bancária, cada compra e todas as merdas que ele fez. Consegue?
— Está me ofendendo — respondo, rolando os olhos.
— Ótimo. Preciso que você me entregue uma lista com todos
os inimigos e possíveis inimigos da Timoria para tentarmos
encontrar uma conexão com os da Vendetta.
— Temos um inimigo em comum — solto, fitando-a.
Ela respira fundo e balança a cabeça em negação.
— Não são eles.
— Como você sabe? — questiono, levantando as
sobrancelhas. — Pare de esconder as coisas de mim, Romano. Se
quer uma otária que apenas mexa nos computadores em vez de
trabalhar com você, ligue para as que servem à sua máfia. Você não
é minha chefe e, certamente, não vou te servir.
Seu olhar desce até o meu, sério.
— Vou contar o que eu sei, só preciso ter certeza de algumas
coisas antes. Consegue ter paciência? — desdenha.
Não, não consigo. Porém, se é isso que preciso fazer para
garantir a segurança da minha famiglia, farei um esforço.
— Não tente me manipular — alerto. — Não sou a mesma
idiota que você conhecia há cinco anos. Qualquer indício de que
você está me manipulando e juro pelo meu sangue que exponho
tudo que sua máfia tem guardada nos computadores.
Ela ri baixo, sarcástica. Parece haver rancor em sua voz ao
dizer:
— A sujeira não está guardada na internet, Lyanna. Está
impregnada na memória.
“Eu coloco fogo na minha casa e a construo de novo
Eu a queimo duas vezes, só pela diversão
Estou no topo do mundo”
Mount Everest | Labrinth
 

 
Tenho quase certeza de que Jayden está fodendo enquanto
fala comigo no telefone.
— Preciso das informações hoje, King — repito.
Ele respira fundo e sinto vontade de ir até a sua casa,
arrancar o seu pau da boca de seja lá quem for e exigir cem por
cento da sua atenção.
— Acha que o Cassio é um traidor? Gosto do cara, ele é… —
Um barulho de engasgo ecoa junto de um gemido baixo.
Vou matá-lo.
— Será que pode pausar o seu boquete por pelo menos cinco
minutos, porra? O assunto é sério.
Jayden gargalha. Percebo que ele cobriu a saída de voz do
telefone, pois agora soa distante. Quando volta a falar, ouço sons de
roupas sendo vestidas.
— Desculpe, chefe. Pode falar agora.
— Na próxima vez que atender minha ligação enquanto
recebe um boquete, vou cortar o seu pau fora, King. Tenha mais
respeito.
— ‘Tá irritada hoje? A princesa te deu muito trabalho ontem à
noite?
Pra caralho, penso.
Depois que ela me mostrou as filmagens, ficamos mais duas
horas no apartamento. Enquanto ela começava a investigar Cassio,
eu lia os inúmeros relatórios sobre contratos, negociações,
mercadorias e missões da Vendetta. Dante tinha feito diversas
merdas nos últimos anos sem que ninguém soubesse; as
informações eram guardadas em pastas separadas, estampando
um enorme “CONFIDENCIAL” na capa.
Ele matou muita gente também. Alguns inocentes. Por baixo
dos panos, como sempre foi.
— Preciso das informações, King — mudo de assunto.
— Eu sei, relaxa, vou atrás disso agora mesmo. Só ‘tô
tentando amenizar o clima, porque você não parece estar muito
legal. Aconteceu alguma coisa?
Coloco os pés na mesa e solto a fumaça do cigarro. O
telefone, que repousa na superfície de vidro, está no viva-voz. Estou
no antigo escritório de Dante, sentada na cadeira de don, e não
posso negar que me sinto espetacular.
— É difícil lidar com ela — revelo, num tom baixo.
Jay suspira do outro lado da linha.
— Alessia, vou ser sincero contigo, porque sou seu amigo.
Você já fez muita, muita coisa cruel desde que te conheço, mas não
consigo pensar em nada que foi pior do que aquilo. Yuna e eu
passamos noites em claro tentando entender o motivo, mas não
conseguíamos chegar a lugar nenhum.
Fecho os olhos e jogo a cabeça para trás. Há tanta raiva
acumulada e guardada dentro de mim que me sufoca. Ao mesmo
tempo, ela parece adormecida, como se tivesse passado tanto
tempo trancafiada que não se lembra do caminho de volta.
— Te conheço e sei que se você ainda não explicou para a
gente, é porque não ‘tá pronta ou talvez nunca vá dizer. De qualquer
forma, se quer o meu conselho: desencana. Não sei se existe um
motivo bom o suficiente que faria Lyanna te perdoar, então
desencana. Sério. Vocês já viveram o que tinham para viver juntas.
A última frase me paralisa. Sinto o gosto amargo na língua, o
aperto no peito e o nó na garganta. É uma sensação aterrorizante e
involuntária — porque, se eu pudesse, nunca mais sentiria nada por
ela. Nunca mais me torturaria todos os dias com as lembranças de
nós duas juntas, apenas deitadas uma do lado da outra ou correndo
a 200 km/h em minha moto.
Nunca mais permitiria que meu coração batesse por ela.
— Não dá — respondo. — Não dá, Jayden.
— Você desapareceu por cinco anos, como é que “não dá”?
— Você sabe que… — Solto uma lufada de ar. — Porra, sabe
que sou maluca por ela desde sempre. Não é tão fácil assim. O que
sinto por ela ultrapassa o amor, Jay.
— Repito: Você desapareceu por cinco anos e não deu
nenhuma explicação. Depois de ter arruinado tudo. Sem ofensas,
mas isso coloca o seu amor em xeque.
Se ele soubesse… Se todos eles soubessem…
— Não coloca — afirmo. — Não coloca, porque passei cinco
anos queimando no inferno e mesmo assim tudo em que eu
conseguia pensar era nela. Você não faz ideia…
Paro a frase no meio, incapaz de continuar. Ainda não é o
momento certo.
— Bem, foda-se. Me conte hoje à noite o que descobriu nas
ruas.
Sem dar-lhe tempo para responder, desligo a chamada. A
sinceridade de King sempre foi bem-vinda, mas agora suas palavras
me incomodaram. No fundo, sei que ele está certo e que eu já
deveria ter desencanado há muito tempo, porém nunca consegui.
Não foi por falta de tentativa, já que tentei esquecê-la todo santo dia.
Esquecer Lyanna é como esquecer que faço parte de uma
máfia. Impossível.
Dou uma longa tragada no cigarro, deixando-o entre os lábios
enquanto apanho a garrafa de uísque no canto da mesa, abro e
despejo o líquido no copo. No mesmo segundo em que tiro o fumo
da boca e solto a fumaça, três batidas na porta atraem a minha
atenção.
— Entre — permito, colocando os pés no chão e tomando um
gole do álcool.
A figura feminina adentra meu escritório, me surpreendendo.
Não esperava vê-la novamente tão cedo e não tenho a menor ideia
do por que ela está aqui.
— Alessia — cumprimenta, se sentando à minha frente.
— Chloe. — Jogo o corpo para trás na cadeira, os cotovelos
repousando nos braços da cadeira. — O que está fazendo em
Vegas? Não fui avisada da sua vinda à cidade.
Ela não carrega o típico ar sensual e provocativo. Há algo
diferente em sua expressão, ainda que pareça neutra. Se eu não
soubesse ler as pessoas tão bem, acreditaria que ela está tranquila.
— Foi uma viagem inesperada — confessa. — Vou ser direta,
Romano. Há alguns boatos circulando sobre você.
Arqueio as sobrancelhas e beberico o uísque.
— Há boatos circulando sobre mim desde que eu tinha
quatorze anos, Chloe. Seja mais específica.
— Estão insinuando que você está envolvida com a Timoria.
Uma gargalhada me escapa involuntariamente. Por nunca ter
me visto rir, Chloe parece um pouco surpresa. Depois, suas
pálpebras espremem enquanto balanço a cabeça de um lado para o
outro.
Não estou envolvida com a Timoria. Estive — no passado —
envolvida com a filha do chefe. É diferente.
— Veio até aqui para me dizer uma estupidez dessa? —
desdenho, revirando os olhos.
— Alessia, o Conselho está começando a especular —
explica, respirando fundo. — Eu não viria até aqui só para te trazer
uma fofoca. O problema é que as pessoas estão acreditando.
Sem que eu precise perguntar o porquê, ela fala o que eu já
esperava:
— Lyanna Bellini veio até o Fortuna e você não a aprisionou.
— Não é uma pergunta, é uma afirmação dita em um tom um tanto
quanto incrédulo. — Sequer a machucou, estou certa? Deixou a
mulher ir depois de apontar uma arma para os seus homens e para
a sua testa, Alessia? E quando ela veio pela segunda vez, decidiu
apenas arremessar facas nela ao invés de puni-la?
— Me diga, Chloe… — Me inclino para frente e descanso os
braços na mesa. — Queria que eu a levasse para o subsolo e a
torturasse? Queria que eu a matasse por ter invadido o território ou
vindo tirar satisfações sobre um assunto estúpido? Acha que o
desgraçado do Alessandro não começaria uma guerra caso eu
tocasse na porcaria da filha dele? Seja sincera e me responda: fazer
qualquer coisa contra ela seria algo inteligente e benéfico para nós?
— Não importa. Ela…
— Importa — corto, ríspida. — Dante acabou de morrer,
porra. Não precisamos de uma guerra agora e se eu encostasse
nela, entraríamos em uma. Deixei Lyanna ir porque não tenho
tempo para lidar com surtos alheios, e não porque estou envolvida
com aquela ralé.
Chloe não parece nada convencida. Para o meu azar, ela é
inteligente demais para acreditar na minha justificativa, embora seja
impossível de refutar.
Não é surpreendente, mas ter a comprovação de que meus
homens andaram fofocando sobre o que aconteceu no portão do
Fortuna me enfurece. A notícia se espalhou tanto que chegou até
Ohio e, provavelmente, nas outras subdivisões também. Ter a
famiglia pensando que estou colaborando com a inimiga não é nada
bom para mim e minha recém-liderança.
Essa deveria ser minha maior preocupação, mas não é. O
que faz meu sangue ferver é pensar que Lyanna está na mira direta
de vários homens da Vendetta, os quais não duvido que agiriam
pelas minhas costas para tentar machucá-la.
— Você deveria ter punido ela, pelo menos — Chloe volta a
dizer, cruzando os braços. — É verdade que pretendia atirar em um
dos nossos soldados porque ela tinha sido baleada?
— Você sempre foi genial, Ventura, mas agora está soando
como uma adolescente birrenta. — Ela me fuzila com o olhar, como
se eu me importasse. — Mais uma vez, quero que me responda: o
que aconteceria caso um dos nossos homens atirasse em Lyanna
Bellini? Se ela chegasse em Alessandro e dissesse que enfiamos
uma bala nela, acha que ele nos agradeceria com um buquê de
flores? Caralho, será que sou a única que usa o cérebro nessa
organização?
— Por favor, eu não nasci ontem — ela quase cospe as
palavras em cima de mim. — Se estiver envolvida com Lyanna, juro
por Deus que eu…
— Você o quê? — desafio, diminuindo o tom de voz. —
Detesto ser ameaçada, então aconselho que pense duas vezes
antes de terminar essa frase. Não se esqueça de que agora você
obedece a mim.
Ela cerra os dentes, respira fundo e me lança um olhar
fulminante. Empurrando a cadeira para trás, Chloe se levanta e diz:
— Parece que existe uma mulher, então. — Porra. — Você
pode até conseguir enganar aqueles homens ignorantes, Alessia,
mas eu jogo no seu time. Sei reconhecer o desejo por outra mulher
a quilômetros de distância.
Seus passos fundos a levam até a porta. Antes de girar a
maçaneta e ir embora, ela me olha por cima do ombro. Suas
palavras me fazem apertar o copo com força.
— Se queria manter seu segredo a salvo, não deveria ter
tatuado a data do aniversário dela no meio da sua garganta.
 

 
Às sete horas, Jayden me ligou. Ele foi até a maioria dos
nossos traficantes a fim de descobrir se algum deles, além de
Cassio, conhecia o homem das filmagens. Depois de algumas
ameaças, um deles revelou que viu o cara em um bar na estrada
para Henderson, uma cidade próxima a Las Vegas. King convocou
um grupo de soldados para vasculharem todos os possíveis
esconderijos na estrada, até que encontraram um homem
escondido.
Não é o mesmo das filmagens, mas suas vestimentas são
iguais. E mesmo se não fossem, eu não precisaria de muito esforço
para descobrir que ele é culpado de alguma coisa, já que a primeira
coisa que fez ao me ver foi cuspir aos meus pés.
— Estou perdendo a minha paciência — digo, encostada na
parede à sua frente, e cruzo os braços. — Tudo que você precisa
me dar é um nome. Um nome e te deixo viver.
Ele pode me dar todas as informações do mundo e ainda
assim vou matá-lo.
Seu olho direito está inchado e fechado enquanto o esquerdo
ainda consegue se manter um pouco aberto, os lábios cortados e o
sangue escorrendo pela cabeça. Seu corpo está suspenso numa
estaca de madeira em formato de X, os braços esticados para cima
e as mãos amarradas no topo, assim como os pés na parte inferior.
Ainda assim, ele se nega a me dar o que eu quero. Devo
admitir que o infeliz é bem resistente à tortura, talvez um dos mais
persistentes com quem já lidei.
Uma risada baixa escapa da sua garganta e vejo seus dentes
ensanguentados. Ele tosse em seguida, provavelmente pela dor que
o riso provocou, e cospe o sangue no chão. Sua cabeça mal
consegue se manter erguida.
— Não sou burro. Você vai me matar, não importa o que eu te
fale… — Tosse mais uma vez.
— Matá-lo não é a pior coisa que posso fazer — garanto. —
Tenho uma lista infinita de opções que não envolvem somente você.
Elisa, James e… como é mesmo? Ah, Grace. Nomes muito bonitos,
por sinal.
Ele enlouquece, começa a se debater e grunhir como um
animal. O pânico, assim como a fúria, preenchem todo o seu rosto.
— Não toque neles! — berra.
Quanto mais ele se contorce, mais seu corpo é machucado
pelas correntes de ferro.
— Me dê um nome e os deixo em paz.
Dessa vez, não estou mentindo. Se ele colaborar, vou deixar
sua família de lado. Não tenho intenção de perder o meu tempo com
pessoas irrelevantes.
— Vai se foder, sua puta! — ele cospe. — Vagabunda
traidora!
Um sorriso cresce no canto dos meus lábios e ele paralisa. A
transformação em seu semblante mostra que ele percebeu o que
disse e o que, consequentemente, me deu de bandeja.
Me aproximo até ficar à sua frente e aperto seu ombro direito
com força, onde há um grande corte aberto e ensanguentado. Ele
grita, esperneando ainda mais.
— Fica entre nós, bonitão… — sussurro, ouvindo-o urrar e
choramingar. — Você sabe que eu não precisava de um nome, não
sabe? Acha mesmo que eu não sabia que você é um deles?
Saco uma faca do bolso e ele arregala os olhos. Pressiono-a
contra sua bochecha e os berros aumentam conforme perfuro sua
pele com força e deslizo a ponta para baixo na diagonal, começando
os traços da letra.
Faz um bom tempo desde a última vez que deixei minha
marca em alguém. A sensação é nostálgica e magnífica.
— Onde eles estão? — pergunto.
Ele grita.
— Você tem vinte segundos para me dizer onde eles estão,
seu filho da puta.
— Pa-pare! — ele suplica, chorando como um recém-nascido.
Um cheiro forte adentra minhas narinas e vejo a poça de xixi
que começa a se formar em sua calça.
— Vou atrás de toda a sua família e vou matar um por um
enquanto você assiste, está me ouvindo?
Sem pressa, começo a outra linha diagonal do “A”. Seus
gritos são tão altos e agonizantes que mesmo a sala sendo no fim
do subsolo, tenho certeza de que é possível ouvi-lo das escadas.
— Não faça… n-nada… com e-eles!
— Dez segundos.
Antes que eu possa começar o último traço da letra, ele
murmura, tão baixo e fraco que quase não escuto:
— Dark…
Seu olho revira e o corpo fica mole. Em menos de um minuto,
ele vai sucumbir à inconsciência.
— Continue — ordeno, dando dois tapas em seu rosto para
acordá-lo.
— No…
— É melhor terminar a frase logo, não estou com muita
paciência.
— No-notes…
Dark Notes.
Meu sangue borbulha e trinco a mandíbula. Estou tão irritada
que sinto a pele arder. Sem a mínima disposição para prolongar a
tortura, saco a arma do coldre e atiro em sua testa. Finalizo o “A” e
desenho o simbolo de Copas ao lado.
Eu poderia enviar uma mensagem de diversas formas, mas
não há nenhuma melhor do que a cabeça de um deles com a minha
marca registrada.
 

‘Eu não gosto do jeito que ela está olhando para você
Estou começando a achar que você a quer também
Eu estou louca?”
Jealous | Nick Jonas
 

 
Alessia não apareceu hoje. Fiquei plantada em frente ao
prédio abandonado após perceber que todas as portas estavam
trancadas, esperando por qualquer sinal que fosse de que ela
estava vindo.
Mandei cinco mensagens e nenhuma foi respondida. Depois
de meia hora, desisti e voltei para o meu território. Não me
submeteria à humilhação de esperá-la a noite inteira.
No meio do caminho, Sophie me ligou e disse que iríamos em
uma festa em Lake Las Vegas, uma estância turística onde há um
lago famoso. O anfitrião é um amigo de Sophie, chamado Scott,
líder de um moto-clube famoso da região. Minha amiga o conheceu
em uma balada qualquer, há uns dois anos. Apesar de não ser
próxima dele, já conversamos algumas vezes e gostei bastante do
cara.
Ela não perguntou se eu queria ir, muito pelo contrário; fui
intimada porque, segundo Wilson, estou “precisando beber e foder”.
Não retruquei tampouco neguei, pois é verdade.
Preciso beber a ponto de esquecer tudo relacionado a
Alessia. E preciso foder pelo mesmo motivo.
Então, em vez de chegar na minha casa e continuar a
investigação, me troquei e vim até a festa. O clima ainda está tenso
entre meus dois melhores amigos, então assim que chegamos,
sussurro no ouvido de Soph:
— O que está acontecendo entre vocês dois? E não me
venha com desculpinhas, Sophie. Fale a verdade.
Ela suspira, lançando um olhar de canto para Kai. Ele parece
perdido em sua própria bolha, com uma carranca no rosto.
— Nós estamos… tendo alguns problemas. Não quero te
contar assim, no meio de tanta gente e com ele do lado. Prometo
que amanhã conversamos sobre isso, tudo bem?
Semicerro as pálpebras, desconfiada.
— Eu prometo, Lyanna — ela insiste. — Até porque, estou
precisando muito dos seus conselhos.
— Certo. Você não vai se safar dessa, Wilson!
— Não vou — confirma, estalando um beijo em minha
bochecha.
Chuto que tenha, no mínimo, duzentas pessoas aqui. Uma
enorme casa luxuosa está à nossa direita, o lago se estende bem na
nossa frente e algumas pessoas nadam enquanto outras conversam
na beira da água. O lugar está repleto de álcool e drogas e a música
alta estrala nas caixas de som espalhadas pela vegetação.
Por um momento, esqueço que fazemos parte de uma
realidade oposta à essa. Sinto como se estivesse na minha
adolescência novamente.
Pelos dez minutos seguintes, Sophie e eu conversamos sobre
coisas banais. Kai, no entanto, não abre a boca. Ele permanece
com o semblante fechado e até irritado, o que me deixa intrigada e
preocupada.
— Kai? — chamo, e ele vira o rosto até mim. — ‘Tá tudo
bem?
— Claro — afirma, abrindo um sorriso falso de canto. — Só
estou preocupado com toda a situação…
— Pare com isso, está tudo bem. Nós vamos consertar o que
precisa ser consertado e tudo voltará ao normal.
Nada vai voltar ao normal, penso. Não depois que Alessia
voltou.
— É só que… — começa, mas sua voz morre no meio. Seu
pomo-de-adão sobe e desce em um gesto nervoso e uma
respiração profunda escapa do seu peito. — Ela vai foder com a
gente, Lyanna, você sabe que sim.
— Não vai — garanto. — Ela não vai fazer nada.
Na primeira vez, não consegui evitar que ela me destruísse.
Agora, vou morrer antes de permitir que ela faça qualquer coisa
contra mim ou minha máfia.
— Viemos na festa para esquecer sobre esse assunto e
vocês estão conversando sobre ele? — Soph resmunga, bufando
baixo. — Será que podemos relaxar por pelo menos quatro horas
antes de voltarmos ao inferno?
Assinto e levanto o copo em direção a Jeon. Nós brindamos e
acabo com toda a bebida com gosto de vodca e morangos, que
desce queimando e me arrepia dos pés à cabeça. Sophie solta um
gritinho animado e a carranca de Kai desaparece, dando lugar a um
sorriso de canto.
Alguns copos e shots depois, nós três estamos em uma roda
com algumas pessoas do moto clube e outras desconhecidas. Uma
mulher, que parece ter a minha idade, me encara sem nenhuma
discrição desde o minuto em que nos juntamos a eles.
Já me sinto mais solta, alegre e relaxada. Meus quadris se
movimentam conforme o ritmo sensual da música ecoa e sinto um
olhar me devorando durante todo o tempo que permaneço
dançando. Em determinado momento, começo a mexer o corpo de
maneira provocativa de propósito.
Levanto o olhar e encontro os dela, verdes como esmeraldas,
nos meus. Por um segundo, fico estática e perco o fôlego.
Porque, cazzo[12], me lembro de outra pessoa cujos olhos são
da mesma cor.
Engulo em seco e desvio a atenção para um ponto aleatório.
Consegui esquecê-la por quase uma hora, mas deveria saber que
não duraria muito tempo. Alessia é como um vírus em meu sistema:
bagunça minha cabeça e me deixa em pane quando resolve atuar.
— Kai, pare… — a voz de Sophie atrai minha atenção e
encontro-a conversando com Kai, que sorri grande.
Posso jurar que os olhos dele brilham ao encará-la. No que
julgo ser um ato impulsivo de alguém alterado, ele a puxa pela
cintura e enterra o rosto em seu pescoço. Arqueio as sobrancelhas
e aperto os lábios para reprimir um sorriso enorme.
Algo está definitivamente acontecendo entre eles, e já posso
imaginar quais são os conselhos que Sophie precisa.
— Kai! — Ela tenta empurrá-lo, mas ele aperta os braços em
volta de sua cintura.
— Estou aqui — responde, deslizando o nariz pela mandíbula
dela.
— O que você… — a voz morre no meio da frase quando ele
umedece os lábios e encosta a boca em seu ouvido para sussurrar:
— Quietinha, linda.
A mão tatuada afasta as tranças twist do ombro direito,
deixando o cabelo apenas no lado esquerdo, e tenho a visão
privilegiada de Kai Jeon beijando o pescoço de Sophie Wilson com
muita, muita fome.
— É sério que vocês me trouxeram até aqui para isso? —
pergunto, bufando baixo em brincadeira.
Os dois sequer me ouvem. Estão ocupados demais na
própria bolha, composta de sorrisos e sussurros.
De repente, ouço um arquejo vindo de alguém na roda. Miro a
garota e vejo suas pálpebras arregaladas enquanto observa um
ponto atrás de mim. Curiosa, olho por cima do meu ombro.
O trio siamês da Vendetta está a poucos metros de nós.
Ao encontrar Alessia com um copo na mão e um cigarro na
outra, a postura despojada e os olhos fixos na mulher com quem ela
conversa — e que está perto demais, quase fundindo o braço ao
dela —, fico furiosa.
Ela me deu um bolo para vir na porcaria da festa?
Aperto a mandíbula e solto uma grande lufada de ar. Me sinto
uma otária por ter esperado ela durante meia hora enquanto ela
estava se arrumando para sair, especialmente depois de me dizer
que eu deveria deixar o passado de lado para trabalharmos juntas
na investigação.
Ela nem fez questão de responder às minhas mensagens.
Não se preocupou em explicar o motivo de não ter aparecido.
E agora está aqui, flertando com uma qualquer.
— Lyanna?
Saio do transe e viro a cabeça quando Kai me chama. Sigo
seus olhos abaixados e percebo que o copo em minhas mãos está
completamente amassado, assim como toda a bebida que antes
estava dentro dele caiu no chão.
— Vou pegar outro — anuncio, caminhando para longe antes
que eles começassem o discurso.
Espero que ninguém tenha notado a cólera em meu rosto
enquanto observava Alessia. Apesar de nossa rivalidade ser
pública, sou expressiva demais quando bebo; a forma como eu a
estava encarando não era somente um olhar de rival para rival.
Há uma mesa de bebidas perto da ronda em que eu estava,
mas faço questão de ir até a mais longe possível. Jogo o copo no
lixo com raiva, apanho outro e o encho com álcool e gelo. O primeiro
gole é longo e desce queimando.
— Está tudo bem?
Giro o queixo e vejo a ruiva que me encarava na roda. Ela
parece preocupada, as sobrancelhas franzidas e os olhos verdes
atentos.
— Tudo ótimo — minto, abrindo um sorriso pequeno. — Só
vim pegar mais bebida.
— Entendi… — Há um momento de hesitação antes de ela
estender a mão. — Sou Elena Blackwood, irmã de Scott.
— Lyanna Bellini — respondo, apertando sua mão com a
minha. — Prazer.
Não satisfeita com o aperto de mãos, ela puxa a minha em
sua direção e deposita um singelo beijo nas costas, me olhando
enquanto o faz. Mordo o lábio inferior e sorrio com o flerte sutil.
— É um prazer, Lyanna. Ouvi muito sobre você.
— Ouviu? — Estreito as pálpebras. — Espero que coisas
boas.
Elena ri baixo e assente. Seus dedos ainda seguram os
meus, embora já os tenha abaixado.
— Algumas boas, algumas ruins… — provoca, o tom
divertido. — Acho que é impossível ter uma reputação somente boa
no seu mundo.
— Tem razão — concordo.
— Não posso perder a oportunidade de dizer… — seu timbre
muda para um mais lascivo. Ela dá dois passos adiante, quase
colando o corpo ao meu. — Você é a mulher mais linda que eu já vi,
Lyanna.
— Você também. — Afasto nossos dedos para acariciar seu
pulso e me aproximo, acabando com qualquer distância entre nós.
Seus olhos descem até a minha boca e eu sussurro: — Eu estava
dançando para você lá. Espero que tenha gostado do show.
— Teria gostado mais se tivesse dançado em mim —
murmura de volta, sorrindo.
Seu tipo é o meu preferido: o de quem não vale nada.
Puxo a gola de sua camisa, coloco o copo na mesa e levo a
mão até sua nuca. Nossos narizes roçam um no outro e sinto-a
envolvendo minha cintura com os braços.
Tento me convencer de que estou fazendo isso única e
exclusivamente porque a desejo, mas sei que não é verdade. Sei
que, no fundo, torço para que outros olhos verdes estejam grudados
em mim. Em nós.
Culpo o álcool pela esperança de estar sendo observada por
Alessia. Quero que ela me veja prestes a beijar outra mulher em sua
frente e quero que ela assista ao que pretendo fazer com Elena esta
noite.
Quando estou prestes a fechar os olhos e grudar meus lábios
nos seus, uma mão aperta meu braço e me puxa para trás.
 

“Eu só tenho olhos para você


Você vê alguém além de mim?
Querido, por favor
Vou tomar um gole do que quer que você tenha”
High Enough | K. Flay
 

 
Saio dos braços de Elena no mesmo segundo em que sou
puxada com força para trás. Incrédula, viro o rosto e encontro um
semblante fechado junto de um olhar assassino. Não sei no que
diabos ela estava pensando quando decidiu fazer isso na frente de
alguém, já que somos apenas inimigas na teoria.
— Posso te ajudar? — Blackwood pergunta, retribuindo a
expressão séria.
Ignorando a pergunta, Alessia me encara. Tento controlar o
efeito que sua aproximação tem sobre mim, mas é inútil; seu rosto
tão perto do meu me desconcerta, especialmente quando tenho
uma certa quantidade de álcool no organismo.
— Por que está no meu território, Bellini?
Então é isso. É essa a desculpa esfarrapada e ridícula que
ela pretende usar para justificar a interrupção.
Nós duas sabemos que esta área não está sob seu comando,
tampouco sobre o da Timoria. Nenhuma de nós governa regiões
vegetativas como esta. Porém, foi a melhor justificativa que ela
encontrou para não levantar suspeitas. Afinal, por qual outro motivo
a chefe da máfia rival me impediria de estar aqui — prestes a beijar
uma mulher, para ser mais específica?
— Este território não é seu — Elena exclama, e fico
impressionada.
Poucas pessoas teriam essa coragem. De repente, a acho
ainda mais atraente do que antes.
Alessia volta a mirá-la. Seu olhar é tão assassino que me
preocupo com o futuro da irmã de Scott.
— Me deixe te dar um conselho para o seu próprio bem: não
se atreva a abrir a boca para falar sobre o que é meu.
Elena parece um pouco chocada com a resposta. Noto que
ela fica constrangida e intercala o olhar entre nós duas.
— Você é uma babaca — digo, fuzilando-a com as íris
castanhas. — Volte para a sua turma, Romano.
— Se não vier comigo, acabo com essa festa em dois
minutos — ameaça.
Ela deve ter enlouquecido, inferno. Ainda que não tenha
ninguém além de Elena por perto, é arriscado interagirmos dessa
maneira.
Passamos alguns segundos nos encarando em silêncio. Não
encontro nenhum indício de blefe em seu rosto, o que me obriga a
bufar e me virar para Elena.
— Me desculpe, linda — peço, sorrindo. — Vou resolver esse
inconveniente e volto para continuarmos de onde paramos, tudo
bem?
Não lhe dou tempo para responder e começo a caminhar para
longe. Quando percebo, estou adentrando a floresta e a música fica
cada vez mais baixa. Paro em frente a uma árvore e me viro,
encontrando Alessia se aproximando em passos fundos.
Ela está ridícula, nem um pouco trajada para uma festa no
lago. Suas pernas estão cobertas por uma calça preta, o tronco com
uma blusa da mesma cor de mangas longas e gola alta e uma
jaqueta. Alessia não conseguiria disfarçar que é uma criminosa nem
se tentasse.
A área é escura, iluminada pela luz da lua e pela baixíssima
iluminação que vem da festa. Mesmo assim, enxergo com clareza o
brilho nos orbes esverdeados.
— Não sei nem por onde começar — digo, furiosa. —
Primeiro, você me deixa plantada naquela porcaria de prédio.
Depois, aparece na festa como se não tivesse me dado um bolo e
ignorado todas as minhas mensagens. Agora, faz um showzinho
estúpido na frente de outra pessoa. Acha que Elena é idiota,
Alessia? Acha que não ficou um pouco óbvio demais que alguma
coisa estava acontecendo entre nós?
— Ela não vai falar nada — assegura, dando alguns passos
em minha direção.
Tento recuar e sinto o tronco da árvore contra mim. Em algum
momento dos últimos minutos, meu coração começou a bater
acelerado.
— Como pode ter tanta certeza? — retruco.
— Pela cara que fez, ela me conhece… — Mais um passo à
frente. — Então, sabe que vou cortar a língua dela caso abra a
boca.
Reviro os olhos e bufo alto.
— Meu Deus, você resolve tudo com assassinato?
Ela dá de ombros e arqueia o canto dos lábios em um sorriso
presunçoso.
— Na maioria das vezes, sim.
— Não seja ridícula, foi você quem começou. Elena não tem
culpa.
Alessia levanta a sobrancelha direita e dá mais um passo
adiante. Poucos centímetros nos separam agora. Quero — e preciso
— afastá-la, já que qualquer um pode nos encontrar assim.
— Não fui hoje porque surgiu uma pista da investigação —
murmura, tão baixo que soa como um pecado exclusivo nosso. De
certa forma, é. — Jayden encontrou um suspeito e fui torturá-lo.
Consegui algo importante.
— Não sei se acredito — confesso, arisca. — Não acredito
em nada que vem de você.
Romano respira fundo e coloca as duas mãos na árvore, me
prendendo contra o tronco e seu corpo. Fecho as mãos em punho e
engulo em seco.
— Quer que eu traga a cabeça do homem para você, Bellini?
Quer que eu detalhe todas as coisas que fiz com ele? O que preciso
fazer para que você acredite que não te deixei sozinha de
propósito?
Minha respiração falha por um segundo. Detesto a forma
como sua presença me engole e me deixa perturbada a ponto de
não conseguir reagir.
— Talvez explicar por que não respondeu minhas
mensagens. — Encosto a cabeça no tronco e por ela ser mais alta
do que eu, tenho que erguer o queixo para sustentar nosso contato
visual de tão perto.
— Não queria te contar pelo celular. Estou nessa festa para
conversar com você.
Rio nasalado.
— Sim, é claro. Percebi que você estava aqui por mim
enquanto não tirava os olhos daquela loira.
Praguejo a mim mesma no exato instante em que as palavras
saem da minha boca. Não planejei dizê-las em voz alta, tampouco
percebi que estava verbalizando o pensamento estúpido.
O sorriso petulante que ilumina sua expressão faz meu
estômago embrulhar.
— Ciúmes? — sussurra, resvalando os lábios pela minha
mandíbula. Um arrepio forte atravessa minha coluna e tento conter o
arquejo, mas ele escapa mesmo assim. — Não se preocupe,
principessa, ela só estava me contando sobre o moto-clube do qual
faz parte.
— Não dou a mínima.
Ela ri baixo em meu ouvido.
— Da mesma forma que não dou a mínima para a maldita
Elena Blackwood prestes a te beijar?
Meu sangue ferve e sinto o coração quase pulando para fora.
Levanto as mãos e empurro-a para longe pelo peito, mas Alessia
sequer se move. Grunho baixo, furiosa — com ela e sobretudo
comigo mesma. Eu não deveria reagir desse jeito; não deveria
permitir que meu próprio corpo me traísse.
Como posso gostar da nossa aproximação ao mesmo tempo
em que a desprezo com tudo que há em mim? Não consigo
entender. Não a perdoei e não sei se algum dia irei. Continuo
detestando-a como nunca detestei alguém antes. Então, por que
não consigo detestar sua confissão implícita de que sentiu ciúmes
de Elena?
— Está passando dos limites, Romano — advirto, retomando
um pouco da razão. — Estamos trabalhando juntas para a
investigação, e só. Não pense que isso muda qualquer coisa entre
nós.
— Ainda não — rebate. — Ainda não mudou, mas vai.
Franzo o cenho e a empurro novamente. Contudo, ela
permanece no mesmo lugar, com o rosto quase enfiado em meu
pescoço enquanto sussurra em meu ouvido.
— Nada vai mudar — garanto. — Nada que você disser vai
mudar o que aconteceu e o que sinto por você.
Ela respira fundo e o ar quente bate contra minha nuca,
arqueando minha coluna em reflexo.
— O que você acha que aconteceu? — questiona, e seu tom
agora carrega tensão. — Cinco anos atrás. O que você acha que
aconteceu?
— Você me destruiu e sabe muito bem disso. Não preciso te
dar detalhes sobre o que aconteceu cinco anos atrás, porra! Você
sabe.
— Lyanna… — Há algo em sua voz, algo que me faz pensar
que ela vai dizer algo importante.
Porém, Alessia apenas balança a cabeça de um lado para o
outro e se afasta. Os diversos passos que ela coloca entre nós me
alivia, mas meu corpo traidor protesta.
Seus olhos estão vazios, diferente de antes. O semblante,
fechado e impenetrável.
— Vou transitar no seu território a partir de amanhã — diz,
como se não fosse nada demais. — Consegui uma pista, mas ela
está na sua área.
— Então acho que eu devo investigá-la, não?!
— Não. Preciso tratar disso pessoalmente e sozinha.
— ‘Tá de brincadeira? — Elevo o tom. — É o segundo dia e
já estou cansada disso, Romano! Se vai me excluir, então não
vamos continuar com a investigação. Não sou um fantoche que
você pode manipular quando quiser.
— Não vou discutir — responde, inexpressiva. — Falei que
preciso ter certeza de algumas coisas antes de te explicar, e essa é
uma delas. Não estou pedindo permissão, apenas avisando.
Antes que eu possa contestar, ela se vira e inicia os passos
de volta à festa.
— Se eu te ver no meu território, vou atirar em você —
prometo, alto o suficiente para que ela escute.
Sua resposta vem no mesmo tom:
— Te vejo amanhã às nove, Bellini.
 

“Eu gostaria de ter algum tempo com você


Minha mão, seus lábios
Minha cabeça, seu aperto”
Like U | Rosenfeld
 

8 anos atrás
 
Acho que estou doente.
Depois que encontrei Lyanna Bellini escondida em meu
armário duas semanas atrás, no cômodo onde desenho-a em todas
as minhas telas, deixei um corte na palma da sua mão como
recordação. Ela me desafiou, se debateu em meus braços, e quase
cuspiu no meu rosto. Porém, nada disso foi importante para mim.
Porque eu senti. Senti sua pele tão quente como a minha,
seu corpo reagindo ao meu toque e suas pernas inconscientemente
me concedendo espaço para que eu colocasse a minha entre elas.
Senti sua respiração ofegante e, maldita seja a lembrança, seus
olhos escuros encarando meus lábios.
Foi rápido, quase imperceptível. Mesmo assim, acendeu uma
chama dentro de mim que eu sequer sabia que poderia ser acesa.
Naquele instante, percebi que a curiosidade era recíproca; Lyanna
odiava a mim e minha organização, mas não conseguia resistir
àquela coisa insana que existia entre nós, seja lá o que fosse.
Ela não sabia o que era. Eu, por outro lado, sabia.
Estive observando-a há anos, esperando pelo momento em
que pudesse me aproximar. Estive curiosa sobre aquela garota há
muito tempo, pesquisando e perguntando sobre ela. De início,
minhas intenções eram movidas pela curiosidade.
Todos desejam Lyanna. Ela é como um diamante
inalcançável no submundo, cobiçada por homens e mulheres. Achei
que esse boato era um exagero, até coletar informações de diversas
pessoas e perceber que, de fato, havia uma linha imensa apenas
esperando por uma oportunidade com ela.
Quando a encontrei naquele bar, em seu aniversário de
dezoito anos, me tornei uma daquelas pessoas. No momento em
que ela me disse que comia bocetas, mas que isso não a impedia
de acabar com Dante, foi o momento em que eu soube.
Soube que a curiosidade se tornaria obsessão e que eu não
conseguiria me manter longe dela, embora fosse o correto e o
racional a se fazer.
Hoje, dois meses depois que tive a primeira interação com
ela, estou fazendo mais uma loucura da qual não me arrependo:
Estou invadindo o seu apartamento. Cobri todo o corpo, coloquei
uma máscara para não ser reconhecida e deixei todos os
seguranças inconscientes.
Acho que se eu os matasse, Lyanna ficaria furiosa. Por isso,
apenas me certifiquei de que eles ficassem algum tempo
desacordados.
Pedi para que Yuan decodificasse a senha da porta e, por
isso, após digitá-la, consigo entrar. No segundo em que fecho a
madeira atrás de mim, levanto os olhos e encontro aquela gatinha
selvagem parada no centro do hall, com uma arma apontada para
mim.
Tiro a máscara que cobre todo o rosto e quando me
reconhece, percebo a confusão em seu semblante. Ela vacila por
uma fração de segundo, como se tivesse sido pega de surpresa.
— Vá embora — ordena. — Vá embora, porra!
Desço os olhos pelo seu corpo, analisando sua roupa.
Lyanna é uma amante fiel de saias e perco a cabeça toda vez que a
vejo usando uma, exatamente como a que está vestindo agora. Seu
cropped vermelho de mangas longas tem um decote V e nos pés há
um bonito salto-alto, preto como a saia.
E, ah, aquele maldito batom escarlate.
— Está de saída? — provoco, guardando a máscara no bolso
do moletom.
— Largue o fuzil — exige, e me recordo da arma que seguro.
— Ah, isso? — Jogo o fuzil aos seus pés, provocando um
estrondo alto de peças quebrando. — Isso é seu. Não se lembra,
gatinha? É o AK-47 que você usou quando invadiu a cobertura e o
qual te dei a oportunidade de resgatar duas semanas atrás, mas
você preferiu ir até o meu apartamento.
— Qual é o seu problema? — quase rosna, avançando um
passo.
Isso mesmo. Continue se aproximando de mim.
— Meu problema vem sendo você há um tempo — revelo,
repetindo o seu ato de dar um passo adiante. Ela recua em reflexo.
— Pensou em mim nas últimas semanas?
— O quê?! — exclama. — Você é maluca? Claro que não
pensei em você!
— Não pensou nas pinturas que viu no meu apartamento?
A menção a faz vacilar. Sua respiração falha e ela engole em
seco, porém, não perde a postura. Lyanna é dura na queda.
— Pensei, sim, e cheguei à conclusão de que você é
perturbada.
— Por quê? — cínica, indago. — Você é linda, Bellini. A
mulher mais gostosa que já vi. Seria um pecado não expressar o
quanto te acho deliciosa.
Ela arregala os olhos e vejo a arma estremecer. Avanço mais
alguns passos e ela tenta se afastar, mas não lhe dou tempo. Jogo o
revólver no outro lado do hall, empurro-a contra a parede e coloco
as duas mãos ao lado de sua cabeça.
No mesmo instante, uma lâmina gelada pressiona minha
garganta. Abro um sorriso perverso, achando sexy pra caralho tê-la
colocando uma faca contra mim.
— Se afaste ou vou cortar sua garganta — ameaça,
encostando a cabeça na parede e levantando o queixo para
sustentar nosso contato visual. — Não me subestime, Romano.
— Não te subestimo em nada — sussurro, descendo o olhar
para sua boca. — Vai sair?
— Nada sobre mim é da sua conta.
— Vai sair, então — concluo, respirando fundo. — É um
encontro?
— Meu Deus, você é tão… — ralha, inconscientemente
pressionando um pouco mais a faca. Quando deixo um arquejo
escapar e umedeço os lábios, posso jurar que vejo um brilho
diferente em seu olhar. — Pare com essa merda! Por que está me
perseguindo?
— Não estou. — Estou um pouco. — Só vim devolver o que é
seu.
— Temos milhares iguais a esse. Não faria falta.
— Bem, então acho que vim te ver.
Ela respira tão fundo e devagar que parece prestes a explodir
os meus miolos.
— Ainda não desistiu? — pergunta em um sussurro,
aproximando o rosto do meu. — Acha que vai conseguir me
manipular com esses joguinhos, me seduzir e conseguir
informações sobre a minha máfia?
— Estou te seduzindo, então?
Ela ri, irônica.
— Meus padrões são altos, Romano. Você nunca conseguiria
atingi-los, nem se quisesse.
— Quer apostar? — Meus olhos brilham e a ansiedade
cresce no peito.
Minha paixão por apostas não é novidade para ninguém,
acredito que muito menos para ela. Não há nada melhor do que
uma boa partida de pôquer e mais alguns milhares de dólares na
minha conta. Se pudesse, jogaria e apostaria todos os dias.
Dante não gosta que eu tire dinheiro dos meus tios. Eles, por
outro lado, adoram me ver arrancando dinheiro de qualquer um.
— Até poderia apostar, já que eu sei que ganharia — rebate.
— Mas não vou manter nenhum vínculo com você e não quero te
ver novamente. Vá embora da minha casa.
— Eu gostaria de tomar um café primeiro.
Lyanna revira os olhos e bufa alto. Tenta me empurrar, mas o
máximo que provoca é um breve balanço em meu tronco. Sei que
ela é forte e conseguiria me compelir, então, será que não quer se
afastar e só está tentando convencer a si mesma?
— Vá embora, Romano! — Um soco forte é dado em meu
ombro e sua mandíbula contrai. — Me deixe em paz.
— Jogue comigo. — Ela arqueia as sobrancelhas, fuzilando-
me com o olhar felino. — Jogue comigo e, se você ganhar, nunca
mais te procuro.
Eu sei que ela não ganharia. Ela também.
— Não sou estúpida.
— Eu sei que não. Jogue comigo.
Sinto um enorme desejo de jogar cartas com Lyanna. Ela não
costuma jogar com tanta frequência, pelo que eu sei, mas ainda
assim cresceu em meio aos cassinos. Até mesmo quem não gosta
de jogos, acaba aprendendo e jogando uma vez ou outra.
— Quer me tirar dinheiro e informações através das cartas?
— desdenha, pressionando um pouco mais a lâmina gelada em
minha garganta. — Sabe que não seria um jogo justo, não é? Se eu
aceitasse, você teria que jogar na minha área para as coisas serem
justas.
— Quer que eu brinque com os seus computadores? —
murmuro, com um meio sorriso. — Fechado.
Minha aceitação parece deixá-la ainda mais zangada.
— Não pense que é fácil “brincar” com computadores. Já
hackeei sistemas que você sequer saberia onde encontrar.
— Não me importo. — Quebro quase toda a distância entre
nossos rostos e sussurro contra sua boca, ao mesmo tempo em que
ela respira fundo: — Quero jogar com você, feiticeira.
Vislumbro uma chama acendendo em seus olhos, talvez
causada pelo apelido. Sei que tê-lo ouvido saindo da minha boca
provocou algo em seu corpo.
— Uma partida — sussurra.
Por dentro, me sinto surpresa. Não achei que seria tão fácil
convencê-la.
Por fora, sorrio com o lábio entre os dentes.
— Uma partida — devolvo o tom baixo, mirando sua boca
pintada de vermelho.
É uma maldita tentação. Já lidei com muita merda no
submundo, mas nenhuma foi tão desafiadora quanto controlar o
meu desejo de devorar essa mulher e corrompê-la com meus
demônios.
— Te mando a data e endereço por mensagem — digo, me
afastando de abrupto.
Lyanna solta um suspiro aliviado, ainda com o semblante
atordoado. Suas bochechas estão ruborizadas e quase posso sentir
sua pele quente e macia em meus dedos.
Se eu provocasse um pouco mais, ouviria sua respiração
ofegante em meu ouvido? Se colocasse o indicador em seu pulso,
sentiria o batimento acelerado do seu coração?
Merda, é difícil controlar os pensamentos quando estou perto
dela.
— Não te passei o meu número — rebate, semicerrando as
pálpebras.
Caminho de costas até a porta, sem tirar os olhos dos seus.
— Eu já tenho — revelo, e suas mãos se fecham em punho.
Sua raiva é tão adorável que aumenta meu sorriso. — Não me
respondeu, Bellini. Vai em um encontro?
— Vai se foder.
Um riso genuíno me escapa.
— Como é mesmo o nome dela? — Finjo uma expressão
pensativa. — Ah! Lauren, não é?
A cor esvai de seu rosto.
— Pare de se intrometer na minha vida, porra! — ralha,
furiosa. — Juro pela famiglia que se você continuar me perseguindo,
Romano, eu…
— Não se preocupe, não vou fazer nada com ela — garanto.
— Mas acho que você deveria saber…
Giro a maçaneta, encaro-a por cima do ombro e revelo:
— Lauren está sendo paga por Alessandro para sair com
você e testar a “fase” pela qual ele acredita que você esteja
passando. Acho que o pai de ouro não é tão bom assim, afinal.
 

“Vivendo no limite até que seja todo meu


Esse é meu tempo
Andando pelo fogo
Eu estou vindo para isso”
I’m Coming For It | UNSECRET ft. Sam Tinnesz & GREYLEE
 

 
Eu não podia colocar Lyanna em risco e trazê-la comigo à
Dark Notes, então trouxe Yuna para ser minha acompanhante
enquanto Jayden monitora tudo do lado de fora e se comunica
conosco através dos fones. Não pude revelar muitos detalhes aos
dois, então falei que o homem tinha me dado uma pista e que
deveríamos segui-la para descobrir qualquer coisa que fosse.
Apesar de saber que estou sendo hipócrita ao excluir Bellini
da investigação, uma vez que propus algo conjunto, preciso resolver
algumas coisas antes de colocá-la em campo.
A calcinha no caminhão de heroína deixou claro que eles
estão mirando nela para me machucar. Não é surpreendente, mas o
pensamento de que algo pode acontecer com ela me tira dos eixos.
A mísera hipótese de a tocarem me deixa enlouquecida.
— Estou monitorando o lado de dentro — King murmura em
nossas orelhas.
Yuna e eu mantemos o semblante neutro, caminhando em
direção à entrada. A fachada é típica de boates, colorida e
iluminada. A Dark Notes é conhecida como um dos maiores pontos
de encontro de figuras importantes do crime, mas as autoridades e
os civis fingem não saber. É uma das propriedades mais valiosas da
Timoria e consequentemente uma das mais vigiadas.
Mesmo assim, nós nos disfarçamos bem. Yuna fez uma
maquiagem tão boa em mim que nem me reconheci no espelho e a
peruca e lentes de contato deram o toque final. A única coisa que
poderia me entregar é minha voz, porém duvido que alguém aqui
me reconheceria por isso.
Consegui ter acesso à lista VIP da noite e coloquei nossos
nomes falsos. Quando paramos em frente ao segurança, uso um
sotaque francês que espero soar convincente.
— Elizabeth Wright e Hina Saito.
O homem passa alguns segundos deslizando o dedo pela
tela do tablet. Sinto Yuna apertar minha mão sutilmente, como se
perguntasse se consegui mesmo nos inserir na lista. Antes que eu
possa respondê-la, o loiro levanta o queixo e coloca uma pulseira
roxa no pulso de cada uma, sem sequer nos olhar ou dizer uma
palavra. Depois, dá um passo para o lado e nos concede a
passagem.
A música alta nos alcança quando passamos por outra porta
e entramos na boate. Vasculho ao redor, capturando todos os
mínimos detalhes ao mesmo tempo em que memorizo o rosto de
quem parece importante — homens mais velhos, mulheres
extravagantes etc. Apesar das pessoas que procuro estarem no VIP,
nunca se sabe o que pode acontecer no andar de baixo.
O lugar é gigante e há mais fumaça e luzes vermelhas do que
pessoas. A maioria se concentra na pista de dança, mas algumas
estão espalhadas pelas mesas repletas de garrafas de vidro,
saquinhos de droga e pó branco. Por ser uma boate comandada
pela máfia, a polícia sequer cogita entrar e apreender todos que
fazem coisas ilegais. Eles sabem que não são nada aqui.
O bar fica na parede esquerda, próximo de nós. Erguendo os
olhos, mas sem levantar a cabeça para não ficar óbvio que estou
inspecionando, vejo o segundo andar, onde é a área VIP. Alguns
homens estão debruçados na grade, fumando e bebendo enquanto
analisam a pista de dança.
— Tem quase cinquenta seguranças espalhados pela boate
— Jay diz. — O único lugar em que não há nenhum é no banheiro
masculino do primeiro andar, no canto direito. Há uma porta perto da
escada e acho que há algo importante do outro lado, porque há dois
seguranças em frente dela e mais dois aos arredores.
— É a sala de negociações — sussurro, puxando Yuna pela
mão.
Quase toda boate do submundo tem uma sala de
negociações ou, como costumamos chamar, uma sala de apostas.
Não é obrigatório, mas é uma tradição do nosso mundo que vem de
muitas e muitas gerações.
Atravessamos a multidão de corpos dançantes e bêbados até
a escada. Há dois homens no topo e um deles verifica as pulseiras
nos nossos pulsos antes de nos deixar passar. Quando abrimos
uma cortina e enfim adentramos à área VIP, preciso me segurar
para não vomitar com o nível de testosterona tóxica exalando por
cada um dos cantos.
Há uns vinte homens de terno, a maioria com mulheres
sentadas em suas coxas, fumando ou cheirando alguma coisa. Eles
não fazem questão de esconder as armas, deixando algumas
repousadas nas mesas enquanto conversam e jogam. Acredito que
os jogos daqui não valham nada ou, se valem, não são tão sérios
assim. Afinal, há uma sala específica para isso.
— Assim que Alessia colocar a escuta embaixo da mesa, vou
obter sinal para escutar qualquer coisa em toda a sala — King
continua.
Antes que pareça estranho demais ficarmos paradas na
entrada, conduzo Yuna até o bar. Coloco-a sentada no meu colo e
chamo o barman com o dedo, que chega em menos de dois
segundos.
— Dois Sex on The Beach — peço.
— Vamos repassar o plano — Yamazaki sussurra contra os
meus lábios, sorrindo de lado. Seus dedos passeiam pelo meu
cabelo para simular uma troca de carícias.
— Primeiro, vamos fazê-los vir até nós — murmuro,
envolvendo sua cintura com um braço. Levo a mão livre até sua
nuca e resvalo os lábios pela sua mandíbula. — Depois, vou entrar
numa partida com eles e quando acabar, vou receber uma ligação.
Nós precisaremos ir embora para cuidar da minha irmã doente.
Então, vamos subir pelo duto de ventilação do banheiro e Jay vai
nos guiar até a sala de negociações. Depois que acabarmos nosso
trabalho, vamos embora.
Yuna resmunga em satisfação e se ajeita em meu colo,
esfregando a bunda nas minhas coxas.
— Não se empolgue — zombo, mirando-a com um sorriso
maldoso. — Não vou te comer depois.
Ela estreita as pálpebras, como se estivesse ofendida com
minha insinuação.
— Estou atuando — sussurra, abraçando meu pescoço e
aproximando o rosto do meu. — Tudo pelos negócios, baby.
— Você não vale nada — sopro, retribuindo o sorriso de lado.
— Esqueça o passado, Yuna. Nossos tempos de sexo já acabaram.
— Era mais divertido quando você não era obcecada por
outra mulher. — Ela projeta o lábio inferior para frente e me olha
com tristeza, fingindo melancolia. — Antes dela, a gente se divertia
muito. Quase todos os dias. Lembra?
Nós fomos o primeiro beijo uma da outra, aos quinze.
Passamos alguns meses experimentando aquela coisa de “pegar
uma garota” e paramos quando começamos a sair e conhecer
novas pessoas. Yuna namorou diversas vezes desde então e
sempre que as coisas acabavam, ela vinha até mim em busca de
consolo. Até os dezoito, funcionava.
Até que eu a vi. E tudo começou.
— Quer transar comigo, Saito? — provoco, arqueando a
sobrancelha.
— Nos seus sonhos — responde, sorrindo e me dando uma
piscadela.
Se eu estivesse assistindo à cena de longe, não duvidaria
que somos um casal cheio de fogo. Tenho certeza de que parece
que estamos nos provocando com os rostos tão próximos e os
sorrisos maliciosos.
Antes que ela retruque, o barman chega com nossas bebidas.
Tiro a mão de sua nuca e apanho a taça, bebericando um gole.
— Por mais incrível que essa conversa seja — King debocha
em nossos ouvidos. — Preciso da escuta, Alessia.
Viro a cabeça e fito uma das mesas lotadas de homens.
Alguns deles já nos encaram, então faço questão de manter o
contato visual enquanto abro um sorriso de canto e umedeço os
lábios. No mesmo instante, eles sussurram entre si.
É patética a forma como homens são facilmente manipulados.
— Se as coisas derem errado na sala — Yamazaki começa,
sussurrando perto da minha boca conforme deixa curtos selinhos no
canto —, não arrisque. Nós pensamos em outro meio de conseguir
as informações.
— Nada vai dar errado — garanto.
— Você não tem certeza disso.
— Tenho.
Eu sei com quem estou lidando, penso, mas não completo a
frase.
Até porque, no mesmo segundo, um homem alto se põe ao
nosso lado e atrai os nossos olhares. Seguro com mais firmeza a
cintura de Yuna, simulando certa possessividade, e os olhos azuis
escrutinam o toque por uma fração de segundo. Um sorriso
petulante ilumina seu semblante e a voz gutural diz:
— Olá, Senhoritas. Sou Brian Smith, muito prazer.
O cara nem tentou inventar um nome menos genérico.
— São novas por aqui? — indaga, colocando as mãos nos
bolsos da calça.
Rapidamente leio sua linguagem corporal. Ele tem um ego
enorme e, por consequência, está tranquilo. Pensa que nada é
capaz de atingi-lo. Também não nos vê como uma ameaça, muito
pelo contrário, “Brian” quer nos inserir em seja lá qual merda ilícita e
sexual que ele planeja para mais tarde.
Nojento.
— Elizabeth Wright — me apresento. — Esta é Hina Saito,
minha esposa.
— Muito prazer — Yuna diz, oferecendo-lhe o sorriso mais
galanteador que já vi.
Ela estende sua mão, na qual fiz questão de colocar uma
aliança de casamento, e o homem a segura enquanto deposita um
beijo nas costas. Depois, se vira para mim, esperando que eu
estenda a minha também.
E eu não me movo.
— Se quiserem, estão convidadas para se juntarem a mim e
aos meus amigos — convida, lançando um rápido olhar por cima do
ombro até onde os demais estão. — Será um prazer conhecê-las
melhor.
Apesar do desejo de revirar os olhos, abro um pequeno
sorriso de lado e assinto. Yuna sai do meu colo, ajeita a saia e pega
seu drink ao mesmo tempo em que entrelaça os dedos nos meus.
Seguimos Brian até a mesa e atraímos todos os pares de olhos
quando paramos em frente. Ele se senta na ponta, com a postura
despojada, e diz:
— Estas são Elizabeth e Hina. Elas vão se juntar a nós esta
noite.
Conheço a entonação usada por ele, bem como a mudança
no semblante de quase todos os seus amigos. Sequer abriram a
boca, mas já quero enfiar todo o meu baralho goela abaixo de todos
eles.
— Fiquem à vontade — um ruivo diz, olhando-me de cima a
baixo.
Seu escrutínio malicioso me faz querer arrancar seus olhos
com uma faca. Talvez eu o faça na próxima vez.
— Melanie, dê espaço para elas — ele continua, se dirigindo
à mulher na ponta do sofá que rodeia a mesa.
Ela se arrasta para mais perto dele e Yuna se senta ao seu
lado, deixando-me na ponta. Em uma rápida análise na superfície,
percebo que é um jogo popular na América do Sul e o qual já joguei
algumas vezes, chamado “truco”. E em outra rápida análise, desta
vez nos jogadores, noto que isso será mais fácil do que eu
imaginava.
Há diversos tipos de jogadores nos jogos de baralho e de
azar. Desde que comecei, lidei com todos eles e consequentemente
aprendi a ganhar de cada um. Embora tenha sentado há menos de
vinte segundos, não foi difícil reparar que esses homens não têm a
paixão pelo jogo; diferente de mim, eles não estudam e tampouco
são fissurados pelas cartas.
Eles se enquadram no tipo de jogador que está aqui por
status. Para manter a masculinidade preservada e, é claro, garantir
uma mulher em suas camas.
Dentre todos que conheci, estes são uns dos que mais
detesto, porque sempre fazem piadinhas para mascarar o quão
péssimos são e desviam a atenção para as mulheres no meio da
partida. Se pudesse, daria um soco no nariz de cada um e gritaria
para levarem a sério a porra do jogo.
— Estamos no meio de uma partida — Brian explica, como se
já não fosse óbvio. — Melanie vai entretê-las enquanto isso.
Levanto as sobrancelhas e um sorriso de escárnio cresce no
canto da minha boca.
— Na verdade, vou me juntar a vocês na próxima rodada —
explico.
Todos eles me encaram com certa confusão. É estúpido e
machista pra caralho, o que quase me faz jogar o disfarce para o
alto.
— Você sabe jogar? — um moreno, sentado ao lado de Brian,
pergunta. — Não me leve a mal, é só que…
— Sei jogar — o interrompo. Em silêncio, eles se entreolham.
— Algum problema nisso, rapazes?
— Claro que não — Brian responde, depois de coçar a
garganta e sorrir amarelo.
Demora quase dez minutos para eles terminarem. Yuna
engatou em uma conversa fervorosa com Melanie e sei que minha
amiga está manipulando-a para conseguir informações. Enquanto
isso, examino cada um dos jogadores e reparo que Brian é o líder
do grupo. Além do mais, não me esqueço de que nenhum deles se
apresentou.
O fato de não terem nos dado um nome, mesmo que falso, é
mais relevante do que parece. Embora queiram que nos juntemos à
“diversão” mais tarde, não pretendem fazer mais do que isso — o
que nos deixa no escuro, sem nenhuma informação sobre suas
identidades.
Durante a partida, aproveitei para colocar a escuta embaixo
da mesa num momento em que alguém fez uma piada estúpida e
todos riram, distraindo-se, e pude grudar o pequeno aparelho na
parte inferior. No mesmo segundo, Jayden confirmou que já estava
captando o sinal e gravando todas as conversas da área VIP.
Quando uma nova rodada enfim começa, substituo um loiro
no grupo de Brian. Um 7 é virado no centro da mesa, indicando que
a manilha[13] da vez é o Q, e tenho que umedecer os lábios para
reprimir um sorriso.
Ter uma carta específica que me remete a ela sempre foi uma
tortura. Não importava onde eu estivesse, o Q de espadas estava
ali, entre os meus dedos e tatuado no meu braço, para me lembrar
de que Lyanna nunca desapareceria da minha vida.
O ruivo inicia o jogo, expondo uma carta fraca. À medida que
os demais fazem sua jogada, aproveito para observar a linguagem
corporal dos outros cinco. Quando meus olhos pousam em Brian, os
seus já estão em mim e um pequeno sorriso habita os seus lábios.
Ele é perigoso e talvez esteja desconfiado.
Sua mão desliza de forma sutil pelo peito. É um sinal do
Truco para deixar a pessoa ganhar a rodada. Por isso, jogo um K na
mesa, que é minha carta mais baixa. Ele faz uma expressão
impressionada e quando sua vez chega, lança um Q de copas.
No fim da partida, nosso grupo ganha com muita vantagem.
Durante todo o tempo, Yuna continuou conversando com Melanie,
fingindo que só estava ali para se divertir e fofocar. Nós somos boas
no disfarce, mas não posso ignorar as olhadas frequentes que
recebi de Brian.
Embora eu tenha pavor do tipo de jogador que esses caras
são, não posso negar que eles foram bem úteis para mim. No que
presumo ter sido um deslize, já que ele recebeu vários olhares
reprovadores, um deles deixou escapar o nome “Fingers” quando foi
zombar do ruivo e disse que o tal de Fingers o mataria se o visse
jogando tão mal daquele jeito. O semblante assustado entregou que
aquele nome nunca deveria ter saído da sua boca.
Tirando isso, quase nada relevante foi dito nas conversas.
Ainda assim, estou satisfeita.
Como combinado, meu celular toca poucos minutos depois
que acabamos de jogar.
— Oui? — falo ao atender.
— Beth! — Jay exclama. — Onde você está? Rose passou
mal e tivemos que voltar para o hotel, mas acho que precisaremos ir
ao hospital. Ela teve outra crise e está vomitando muito. Com
sangue! O que eu faço?
Criamos uma historinha apenas para o caso de eles, de
alguma maneira, estarem escutando a nossa conversa.
— Como assim, Richard? — elevo o tom. — O que
aconteceu?
— Não sei! Estávamos em um bar e estava tudo bem, mas de
repente Rose sentiu falta de ar e começou a tremer. Trouxe ela de
volta para o hotel, mas está piorando! Beth, pelo amor de Deus, vem
aqui
— Ela está vomitando? — indago, contorcendo o rosto em
preocupação.
— Sim! Vomitando sangue!
— Já estou indo. Não a leve para o hospital sem mim.
Desligo a chamada e ergo o queixo. Todos estão olhando
para mim.
— Rapazes, é um assunto urgente — minha voz vacila, como
se eu estivesse nervosa. — Minha irmã está doente e acabou de
passar mal. É uma pena que não poderemos continuar, foi um
prazer jogar com vocês. Nos veremos mais vezes?
— Rose teve uma crise? — Yuna pergunta, em um sussurro
que eles com certeza escutaram, e eu assinto. — Meu Deus,
vamos.
— Espero que fique tudo bem com sua irmã — o loiro diz. —
Se quiser se juntar a nós de novo, estaremos aqui.
— Voltaremos, com certeza — Yuna garante. — Foi um
prazer conhecê-los.
Me levanto e nós caminhamos até as escadas. Apertamos os
passos, simulando pressa, e chegamos ao primeiro andar. Agradeço
à pouca iluminação da boate, já que consigo puxá-la para o meio da
multidão na pista de dança de modo que fica difícil nos seguir com o
olhar da área VIP.
— Você primeiro — ela sussurra.
Deixo-a na pista e vou ao banheiro. O segurança sequer me
olha, então consigo entrar e me trancar na última cabine com
facilidade. Tiro os saltos altos, prendo o cabelo num coque e subo
no vaso. Pego a chave de fenda no coldre do peito, escondido pela
blusa, e começo a afrouxar os parafusos do duto. Em um minuto,
solto todos e puxo a tampa com cuidado. Coloco o pequeno
dispositivo na parede e sussurro:
— Está ligado.
King vai mapear o sistema de ventilação da boate para nos
guiar até a sala de negociações. No mesmo segundo em que ele
afirma que já conseguiu o mapa, a porta do banheiro é aberta e um
“Que calor!” soa do lado de fora. É o código que criamos para eu
saber que é ela.
Estico o braço para abrir a cabine e ela entra depressa. Sem
dizer nada, Yuna tira o salto-alto, prende o cabelo e entrelaça os
dedos com as palmas das mãos para cima. Apoio os pés nelas e
minha amiga me impulsiona.
Agarro o interior do duto e subo, dobrando o copo para me
colocar para dentro. Ainda em silêncio e deitada, estendo os braços
e Yuna, que subiu no vaso, segura minhas mãos. Prenso os lábios
para não grunhir quando puxo-a com força, arrastando a barriga
para trás até que ela consiga entrar por completo. Suas sandálias
foram amarradas no braço, assim como amarrei as minhas. Não
podemos deixar nenhum rastro para trás.
— Sigam reto e virem à esquerda — Jayden diz em nossos
ouvidos.
Nós seguimos suas instruções por cinco minutos, nos
rastejando pela ventilação com cuidado para não fazer nenhum
barulho. Quando escuto vozes e risadas altas, sei que chegamos ao
nosso destino. Me espremo no canto e Yuna passa por mim,
posicionando-se do outro lado da tampa do tubo. Apanho a Glock do
peito e chego mais perto para enxergar melhor.
Há quatro homens na mesa de jogos ao centro e quatro
seguranças, um em cada extremidade da sala. Vou derrubar os dois
de um lado e Yuna os dois do outro. Com nossa rapidez e agilidade,
conseguiremos matar todos na sala em poucos segundos.
Subo o olhar ao dela e aponto com o queixo para o lado
esquerdo do cômodo, o que fica à minha frente, indicando que
aquele é o meu. Ela anui e nós posicionamos a arma nas frestas do
duto.
— Três — começo em um sussurro quase inaudível. — Dois,
um.
Então, nós disparamos. Derrubamos os seguranças primeiro
e depois os homens da mesa. Eles sequer têm tempo para sacar os
revólveres ou entender o que está acontecendo, pois atiramos em
seus peitos antes. Colocamos silenciadores nas armas, então
ninguém do lado de fora consegue ouvir os disparos.
— Você consegue… — Yuna planeja perguntar se consigo
abrir a tampa, mas se cala quando começo a puxar as frestas de
metal com força até dobrá-las ao ponto de criar um pequeno buraco
no meio. — Ok. Você é mais forte do que eu imaginava.
Nós caímos em pé na mesa sem produzir um barulho muito
alto e começamos a revirar os corpos dos homens, pegando todos
os itens que encontramos. Enquanto Yuna vasculha o terno dos
seguranças, paro ao lado do loiro que acabei de matar. Examino
cada centímetro de seu rosto, admirando os olhos abertos e sem
vida.
Apanho uma faca do coldre, pego sua mão direita e coloco-a
na superfície esverdeada. Começo a cortar seu pulso e o sangue
jorra por toda parte, assim como o barulho dos ossos sendo
cortados ecoa pelo cômodo em uma melodia incrível.
— O que você está… Puta merda — Yamazaki exclama,
parando ao meu lado.
Não mencionei essa parte do plano a ela.
Quando corto sua mão fora, a voz de Jay soa no fone:
— Vocês precisam ir, o segurança acabou de ver o duto
aberto e já está comunicando aos outros.
Yuna sobe em cima da mesa de jogos e me junto a ela.
— Segura — peço, estendendo a mão do homem.
Ela revira os olhos e pega.
— Você me deve uma garrafa de uísque por isso. E uma
explicação.
Entrelaço os dedos e ela sobe neles para alcançar o duto.
Depois, dando um pulo alto, consigo agarrar as frestas e me
impulsionar para dobrar o corpo e entrar.
No mesmo segundo, a porta é aberta e disparos começam.
Yuna me puxa com força e grunho baixo ao sentir o metal
machucando minha perna e ouvir o som da calça rasgando.
Contudo, ignoro e Jayden nos dá as instruções para seguirmos pelo
caminho que dá acesso ao lado de fora.
Yamazaki chuta a tampa, que voa até a parede do outro lado,
e se joga na caçamba de lixo. Caímos em cima de vários sacos
pretos e pulamos para fora. Com uma mão na barriga, tento
acompanhá-la na corrida até a rua onde Jayden nos espera.
Cerro os dentes para contar outro grunhido de dor, avisto o
carro preto e nós entramos. Ele arranca pneus para longe e eu
fecho os olhos, respirando fundo e jogando a cabeça para trás no
encosto. Engulo em seco e sinto os dedos molhados.
Não preciso abaixar os olhos para saber que é sangue.
— Cacete, Alessia, você foi baleada! — Yuna exclama.
— Vou mudar a rota para a casa do Dr. Grey.
— Não, King! Só acelera a porra do carro — ordeno.
— Essa merda ‘tá sujando todo o carro com sangue! — King
reclama. — De quem é essa mão e por que ela está aqui?
— Me dê — peço, e Yuna joga em meu colo.
Os dois engatam em uma discussão, porém, não presto
atenção. Alcanço o coldre no peito, onde guardei todos os itens que
tirei dos homens, e apanho um celular específico. Seguro o polegar
e o posiciono no botão inferior.
A tela se ilumina e o aparelho é desbloqueado. Mesmo
sangrando e com um ferimento na barriga, sorrio de orelha a orelha.
Vou derrubá-los antes do que eles imaginam.
 

“Você tirou meu fôlego de mim


Agora eu quero respirar
Porque eu não consigo ver o que você pode ver
Tão facilmente”
Demons | Jacob Lee
 

 
Tive que colocar em prática toda a disciplina e obediência que
adquiri durante todos os anos da minha vida, senão teria ignorado o
chamado — a ordem — de meu pai. Apesar da nossa recente
discussão, ainda sou uma soldada e ele ainda é o meu chefe.
A contragosto, bato três vezes na porta. Sua voz me permite
entrar e eu o faço, fechando a madeira atrás de mim. Seu olhar está
caído e o semblante cabisbaixo, mas isso não provoca muito efeito
em mim; continuo magoada e irritada com ele.
Caminho até a mesa, me sento à sua frente e cruzo as
pernas. Ficamos em silêncio nos primeiros segundos, até que ele
limpa a garganta e se ajeita na cadeira. Parece desconfortável como
pouquíssimas vezes já vi. Não é típico de Alessandro Bellini ficar
sem palavras.
— Filha, te chamei aqui para… conversarmos.
— Vamos conversar, então. — Levanto as sobrancelhas. —
Pode começar.
— Quero me… me desculpar pelo que aconteceu no evento
de Donovan — sua voz é baixa e não transmite muita firmeza. É
como se ele só estivesse pedindo perdão porque se sente obrigado,
não porque acredita que errou.
— Quer se desculpar ou quer parar de ser ignorado? —
questiono, e ele não gosta nem um pouco.
— Não fale assim comigo, Lyanna.
— Me desculpe, esqueci que a única pessoa que pode faltar
com respeito aqui é você.
— Lyanna… — diz, em um tom de alerta.
— Você se arrependeu? Está realmente arrependido pelo que
disse?
— Estou te pedindo desculpas!
— Não foi isso que perguntei. — Balanço a cabeça em
negação. — Você acha que errou? Acha que as coisas que disse
foram erradas?
— Não consegue apenas aceitar um pedido de desculpas,
filha? Dio mio!
Reviro os olhos e sinto o sangue borbulhar. É claro que ele
não se arrepende, tampouco acha que está errado. Se eu não
tivesse flagrado suas palavras, ele nunca teria pensado no assunto
outra vez.
— Sei que você não é acostumado com toda essa coisa de
pedir perdão, pai, mas é melhor só ignorar o fato de que você foi um
idiota do que fingir que se arrependeu porque passei os últimos dias
te ignorando.
Acabei de chamar meu pai, meu don, de idiota. Será um
milagre se ele não me punir por isso.
— Me chamou do quê?! — exclama, aumentando o tom de
voz.
Respiro fundo e mantenho o queixo erguido, apesar de sentir
o coração pular e as mãos tremerem. Não sinto medo dele, mas
nunca brigamos dessa forma; nunca o insultei antes. Mesmo
magoada e cansada, eu sempre abaixava a cabeça e aceitava as
situações nas quais ele me desrespeitava de alguma forma. Alguns
gritos acabavam saindo, porém, no final, eu só… aceitava.
— Te chamei do que você foi naquela noite — respondo,
firme. — Acha que Alessia quer ser um homem só porque é lésbica,
pai? Essa é a palavra que você deve usar e que tanto odeia:
lésbica.
Ele abre a boca para retrucar, mas o interrompo:
— Aceitei seu desrespeito com minha sexualidade por muito
tempo, mas estou cansada. Está na hora de você aceitar que não
vou me casar com um homem e que não vou te dar herdeiros de
sangue. Na verdade, já passou da hora de você aceitar que sou
lésbica ou, como você prefere, que “como bocetas”. Se não é capaz
de fazer isso, me avise.
Me levanto e ele repete o ato. Novamente, não dou-lhe tempo
para falar.
— Eu amo você e amo esta máfia, mas amo a mim mesma
acima de tudo. Se não sou aceita aqui, vou procurar um lugar onde
serei.
Giro sobre os calcanhares e caminho até a porta. Ele me
chama diversas vezes e eu ignoro, batendo a madeira com força.
Enquanto atravesso o corredor, meus olhos lacrimejam e sinto a
garganta fechada. É uma sensação estranha porque ao mesmo
tempo em que estou magoada, também me sinto orgulhosa de mim
mesma. Satisfeita.
No fundo, sei que eu nunca seria capaz de sair da Timoria.
Até porque, a única saída da máfia é a morte. E se por algum
milagre meu pai permitisse que eu saísse viva, não tenho ideia do
que faria com a minha vida.
Ser uma mulher lésbica na máfia não tem nenhum lado
positivo — na verdade, basta ser uma mulher. Além da falta de
respeito constante e materializada de diversas formas, também
tenho que lidar com as pessoas me subestimando e me
descredibilizando o tempo todo. Tenho plena consciência de que
sou melhor do que muitos soldados mais velhos do que eu e, no
fundo, todos sabem disso. Todos sabem que eu poderia matá-los
em um piscar de olhos e não sentiria nenhum remorso.
Porém, se eu não me relaciono com homens e sou ingrata ao
nível de não me casar com alguém para beneficiar a minha
organização, não sirvo para muita coisa.
Eles sempre estarão acima de mim, não importa o que eu
faça.
Alessia teve poucos problemas com isso. Alguns dos seus
tios nunca respeitaram mulheres e com ela não seria diferente,
contudo, a aversão que eles criaram por ela é decorrente das suas
atitudes e do fato de ela nunca ter escondido o quanto os despreza.
Pouco tem a ver com ela ser mulher ou lésbica. A Vendetta sempre
se importou muito mais com o aumento da sua fortuna e a expansão
de seus negócios do que com qualquer outra coisa.
Muitas vezes, me perguntei como seria viver numa
organização como aquela. Parece um pouco surreal, já que cresci
em um lugar no qual sempre precisei me reafirmar e mesmo assim
era desrespeitada.
Uma vez, cogitei abrir a mente e acabar com o meu ódio por
eles por conta desse detalhe que, na época, parecia o mais
importante de todos. No entanto, quando tudo aconteceu, eu
aprendi a minha lição.
Aprendi que a Vendetta não nasceu para ser amada.
E Alessia Romano não nasceu para amar.
 

 
Quero bater a cabeça na parede repetidas vezes.
Depois da discussão com meu pai logo após o almoço, não
consegui me concentrar em nada; tudo em que eu pensava girava
em torno dele e da nossa relação. E agora, para melhorar tudo,
estou subindo as escadas em direção ao lugar onde trabalho com
Alessia.
Se já detesto estar no mesmo cômodo que ela em dias
normais, hoje sou capaz de esganá-la se ela abrir a boca para falar
alguma merda.
Entro sem bater na porta, uma vez que ela me avisou que
precisaríamos adiar para onze horas e talvez não estivesse aqui
quando eu chegasse. Todos os computadores estão acesos e a
iluminação das telas é a única presente na enorme sala. Nunca
confessaria em voz alta, mas fiquei encantada por este lugar na
primeira vez que o vi. Sinto como se estivesse no meu habitat
natural.
Não faço ideia do porquê Alessia tem um espaço como este.
Cheguei a cogitar que ela se escondeu aqui durante os últimos
cinco anos, mas acredito que teria sido descoberta caso ficasse tão
perto por tanto tempo.
Não a encontro aqui e não faço questão de procurá-la, então
jogo a mochila ao lado da cadeira e me sento na maior mesa. Estou
quase no final da investigação do traficante da Vendetta, só preciso
checar as últimas filmagens de um mês atrás. Insiro o pen drive no
qual coloquei todas filmagens da última década do território da
Vendetta e da Timoria — sem o conhecimento de Alessia, é claro.
Em poucos minutos, meu celular toca. Atendo a ligação de
Kai e ele logo dispara:
— Onde você está?
— Ocupada. Por quê?
— Eu soube que você e seu pai brigaram — há um quê de
hesitação em sua voz.
Reviro os olhos. É claro que os seguranças abririam a boca.
— É claro que brigamos. Você esperava o quê?
Apoio o celular entre o ombro e o ouvido e digito o código
para ser redirecionada até as filmagens de agosto. Insiro o rosto de
Cassio no programa de reconhecimento facial e dou play.
— Ei, calma aí. Não precisa ser grossa comigo.
— Foi mal, ainda estou irritada.
— Ele te pediu desculpas?
— Na cabeça dele, sim. Na teoria, ele só queria parar de ser
ignorado. Para ser bem sincera, acho que ele tem algum trabalho
para mim e por isso fingiu que queria pedir desculpas.
— Ele tem — confessa e eu bufo alto, incrédula.
— Porra, eu sabia! Por que você não me contou?
— Ele quer roubar alguns dados, não sei de onde. Só ouvi
por cima quando fui à sala dele.
Previsível.
— Você está aí agora? No Ascension?
Vejo a barra azul avançando aos poucos na tela. À medida
que a porcentagem aumenta e as filmagens são analisadas, um
pressentimento ruim cresce na boca do meu estômago.
— Não. Estou na Neon Lights.
“Neon Lights” é uma das nossas boates, a preferida minha e
dos meus amigos.
— Sozinho? — indago, um pouco mais atenta na conversa.
— Está tudo bem, Kai?
— Eu só… estou preocupado — murmura, e quase posso
visualizá-lo passando os dedos entre os fios do cabelo. — Tem
muita coisa acontecendo e não sei muito bem o que fazer. Na
verdade, sinto que não posso fazer nada e isso me mata.
Solto uma lufada de ar e volto a segurar o telefone. Jeon é o
mais centrado e responsável entre nós, então ele sempre cria várias
soluções para possíveis problemas. O que estamos enfrentando,
porém, foi inesperado.
A apreensão em sua voz é um claro indício de que essa
situação — a volta de Alessia e a morte de Dante — está mexendo
com a mente dele. Assim como eu, Kai pensa muito sobre o futuro.
A única diferença é que enquanto ele surge com várias soluções, eu
perco a cabeça com diversas paranóias.
— Você pode fazer uma coisa  — digo, em um estalo mental. 
— Pode tentar descobrir o que meu pai está escondendo.
Um momento de silêncio preenche a linha e sei que as
engrenagens de Kai estão trabalhando a todo vapor.
— Seja mais específica.
— Eu só sinto que ele está escondendo alguma coisa. Minha
intuição não para de me alertar sobre isso e eu não tinha dado
ouvidos, mas… acho que ele está perdendo a cabeça também, e
algo me diz que não é só porque Alessia é a nova chefe.
— Lyanna, ele é o meu chefe. Você quer que eu investigue o
meu don?  — pergunta em um sussurro exasperado.
— Não precisa investigar, só…
Uma movimentação soa no fundo da ligação e interrompe
minha fala. Noto que meu amigo afasta o telefone para conversar
com alguém e pelo tom de suas vozes, parece algo grave.
— Lyanna, preciso ir.
Uma notificação na tela atrai minha atenção e franzo as
sobrancelhas. Corro os olhos pelo texto e me apresso em clicar no
botão de play para a filmagem rodar.
Só pode ser brincadeira.
— Eu também. Depois nos falamos.
Desligo e continuo assistindo aos passos nervoso e à postura
completamente suspeita. Não tenho ideia de como ninguém
desconfiou ou o viu.
Quando a imagem muda para a câmera da rua seguinte, sinto
o sangue ferver e a incredulidade arranhando a garganta.
Cassio estava no território da Timoria. E estava caminhando
em direção à Dark Notes.
Aquela é a nossa boate mais importante. Ouso dizer que é
um ponto de referência em todo o mundo do crime, já que é onde
figuras importantes se reúnem para praticar todo tipo de ato ilícito e
libidinoso. Tivemos alguns problemas com brigas e trocas de tiros,
mas as coisas melhoraram depois que meu pai redobrou a
segurança e passou a permitir a entrada apenas com nome na lista.
Um barulho alto ecoa de repente e saco a arma da cintura no
mesmo instante em que me levanto e miro a porta, de onde o som
veio. Alessia surge na sala e guardo o revólver. Quando ela caminha
até mim, vejo que uma das suas pernas está mancando. É quase
imperceptível, mas não para mim.
— O que aconteceu? — indago, escrutinando sua calça de
moletom preta.
Sem responder, ela acende um cigarro e me esquadrinha dos
pés à cabeça. Há muitas coisas estranhas em seu comportamento
e, de alguma forma, isso me deixa nervosa. É como se ela estivesse
extasiada.
— Está com a perna machucada? — prossigo com as
perguntas, embora não saiba o porquê. — É por isso que se
atrasou?
As perguntas escapam involuntariamente e me sinto estúpida
por estar tão curiosa. Curiosa, não preocupada. Não poderia ligar
menos para ela e a possibilidade de estar ferida.
Seu corpo para a poucos centímetros do meu. Seus olhos,
num tom escuro de verde, examinam cada milímetro do meu rosto
antes de deslizarem até os meus. Sinto um calafrio devido à forma
como ela me observa, como se quisesse me devorar.
— Você ainda tem essa saia — murmura, e vejo as pupilas
dilatando.
Me sinto ainda mais ridícula. No fundo, eu imaginava que
havia uma pequena chance de Alessia reconhecer a peça, mas, por
alguma razão, eu quis vesti-la. Apesar das lembranças, é uma saia
bonita, rodada e na cor vinho.
— É só…
— Não — me corta, tragando o cigarro e virando o rosto
apenas o suficiente para expelir a fumaça para o lado, sem quebrar
nosso contato visual.
Um brilho surgiu em seu olhar, como se ela estivesse
satisfeita em me ver usando essa maldita roupa. O que eu tinha na
cabeça quando decidi vesti-la?
— É só uma saia. — Dou de ombros e tento me virar, mas ela
segura meu pulso e me impede.
— Não é — assegura, puxando-me para perto.
A bile sobe pela minha garganta. Quero empurrá-la para
longe, mas todos os meus músculos paralisam com a nossa
aproximação. O movimento faz com que seus peitos, cobertos por
uma camiseta e sem um maldito sutiã, rocem nos meus. Eles
sempre tiveram um tamanho ideal, mas parecem ser ainda maiores
agora.
Não consigo encontrar nenhuma explicação para a súbita
memória de tê-los nas mãos antes de enfiá-los na minha boca.
— Para mim, é só uma saia — minto. — Não sei do que você
está falando.
— Não sabe? — Ri baixo e nasalado. De abrupto, ela me
empurra para trás e sinto a mesa colidir contra minhas coxas. Em
reflexo, seguro a borda e aperto-a entre os dedos. — Seria um
prazer te relembrar, Bellini.
Puxo o ar e mordo o interior da bochecha, ignorando o
rebuliço no estômago. Eu deveria ter imaginado que seria
impossível para ela deixar as provocações de lado e manter as
coisas profissionais entre nós.
Foi ela que me deu essa saia, há sete anos. Na primeira vez
em que a coloquei, numa noite em que pretendíamos ir em uma
corrida clandestina no Arizona, Alessia ficou tão obcecada pela
visão que sequer saímos de casa.
Ela me comeu por quatro horas seguidas, em todos os
cômodos do seu apartamento, enquanto eu vestia a saia. Não me
permitiu tirá-la nem por um segundo, nem quando a peça era a
única restante em meu corpo.
— Nunca — rosno, aproximando o rosto do seu. — Eu
enfiaria uma bala na sua testa antes de permitir que me tocasse
novamente.
— Ah, é? — debocha, sorrindo com o lábio inferior entre os
dentes.
Sua mão voa até meu pescoço e eu arquejo. Meus olhos
estremecem e quase se fecham, mas luto contra o desejo e os
mantenho abertos.
— Parece que estou te tocando agora. — Ela resvala a ponta
do nariz contra o meu e abro a boca para tentar respirar melhor, pois
sinto os pulmões vazios. — E parece que você está gostando.
Agarro seu pulso e o aperto com força, tentando afastá-lo. Ela
sequer se move. Seja lá o que fez nos últimos anos, a tornou mais
forte do que eu esperava.
Seus lábios tocam o lóbulo da minha orelha e a voz lasciva
sussurra:
— Se usar essa saia de novo, vou fazer questão de te
lembrar da sensação de gozar na minha boca.
Então, ela se afasta e me deixa com as pernas bambas, a
respiração ofegante e as mãos fechadas em punho. Sinto raiva dela
e sobretudo de mim, que não consigo controlar a reação do meu
corpo diante de suas provocações baratas.
Me viro para o computador, irritada. As batidas aceleradas do
meu coração me enfurecem e me indignam. Por que ainda fico
assim perto dela, mesmo depois de tudo? Não faz o menor sentido.
É quase impossível focar na filmagem pausada na tela.
— O que é isso? — ela questiona, em uma entonação bem
diferente da de segundos atrás.
Alessia para ao meu lado e se inclina para enxergar melhor.
Vejo seu semblante transformado em uma carranca e tomado pela
fúria enquanto observa Cassio na entrada da Dark Notes.
— É o seu traficante na minha boate, no mês passado. Sabe
alguma coisa sobre isso?
Ela respira tão fundo e devagar que sinto calafrios.
— Esse merdinha… — Grunhe baixo e dá play.
Cassio começa a falar no telefone e quando desliga, a porta é
aberta. Não conseguimos ver quem a abre e também não temos
acesso ao interior da boate, já que não há câmeras lá. Por isso,
quando McBride adentra o lugar, o perdemos de vista.
— Vou matar esse filho da puta — afirma, passando a mão
pelo rosto. — É a primeira vez que ele vai lá? Tem alguma outra
filmagem disso?
— Não. É a primeira vez que ele invade meu território. Nos
outros meses ele se encontrou com algumas pessoas estranhas,
mas na área da Vendetta. Está tudo no relatório que eu fiz.
Alessia inclina a cabeça para o lado e fecha os olhos,
soltando uma respiração funda. Ela está claramente se segurando
para não explodir, o que me deixa intrigada.
— Se não me falar o que você sabe, vou embora e não
pretendo voltar — garanto, cruzando os braços.
— Seu pai não sabe sobre isso? Como é que um traficante
que serve à máfia rival entra no estabelecimento mais importante da
sua organização e nada acontece? — sua entonação julgadora me
deixa ainda mais zangada.
Ainda assim, me fiz as mesmas perguntas. Não entendo
como Cassio conseguiu entrar à luz do dia na Dark Notes e ninguém
descobriu sua identidade. Até porque, a boate só fica aberta durante
o dia para negociações.
O que diabos ele estava fazendo lá? E quem o chamou?
Talvez seja isso que meu pai esconde de mim. Talvez ele
esteja tentando roubar aliados da Vendetta, começando pelos seus
traficantes. E se realmente for esse o plano, eu acabei de arruiná-lo.
— Como é que o seu traficante entra no estabelecimento da
máfia rival e nada acontece? — revido o julgamento.
— Está de brincadeira? — Ela me fulmina com o olhar. —
Não sou babá de traficantes, Lyanna. E não se esqueça de que
cheguei duas semanas atrás.
— Você disse que começaria a transitar no meu território a
partir de hoje. Tem certeza de que não sabe nada sobre isso?
Ela bufa baixinho, puxa a cadeira na qual eu estava e se
senta. Uma breve careta se forma em seu rosto e ela se remexe no
assento, como se estivesse desconfortável ou com dor. Observo sua
perna esquerda e insisto:
— Você machucou sua perna?
Ao contrário do que eu esperava, ela é direta ao responder:
— Levei um tiro.
Arqueio as sobrancelhas e arregalo os olhos. No mesmo
segundo, lembro-me das palavras de Alessandro no último jantar
que tivemos.
“Vamos matar a Alessia.”
Será que eles finalmente tentaram?
— O quê?! Como isso aconteceu?
— Está preocupada comigo, principessa? — zomba, sorrindo
de lado.
— Estou preocupada com a nossa investigação. Você não vai
ser muito útil com a perna baleada.
Alessia não parece nem um pouco convencida. O semblante
divertido deixa claro que acredita que me preocupo com ela.
— Estou bem — diz.
Um silêncio pesado recai sobre nós. É difícil raciocinar vendo
seus ombros tensos e imaginando que ela provavelmente está
sentindo dor. Será que já cuidou do ferimento? Será que é pior que
o do meu ombro? Alessia sempre foi imprudente consigo mesma,
não dando muita importância para seus machucados.
Se a Timoria tivesse tentado assassiná-la, ela não estaria
aqui, certo? Estaria bolando uma vingança com seu Conselho.
— Me deixe ver — solto, sem pensar.
Ela parece tão surpresa quanto eu.
— Não é necessário — responde, limpando a garganta.
Posso jurar que vejo um vislumbre de nervosismo em seu
rosto.
— Me deixe ver — repito, dando dois passos adiante e quase
ficando no meio de suas pernas.
— Quer mesmo? — questiona, erguendo a sobrancelha
direita. — Para que você visse, eu teria que tirar a minha calça.
Um nó se forma na minha garganta e mordisco o lábio
inferior. Não estou interessada em vê-la seminua, porém, sei que
Alessia é irresponsável com a própria integridade física e,
infelizmente, preciso dela inteira para que a nossa investigação dê
certo.
— Tire essa porcaria logo.
Um brilho eletrizante surge em seu olhar à medida que ela
segura as laterais do cós da calça. Quando começa a descê-lo,
desvio o olhar depressa para as telas dos computadores. Tento
disfarçar a respiração profunda que escapa do peito.
Ela não pode pensar que isso significa algo. Estou nervosa
porque se ela não tiver cuidado desse ferimento da maneira correta,
ele pode se agravar e terei que prosseguir com a investigação
sozinha.
De esguelha, vejo o moletom sendo jogado aos meus pés.
— Pode olhar, Lyanna. Você já me viu pelada mais vezes do
que um ser humano conseguiria contar.
Com a mandíbula contraída e as pálpebras cerradas, a
encaro. O sorriso estúpido que delineia sua boca me tira do sério.
— Não se iluda — digo, arisca. — Isso não significa nenhuma
das coisas que você está pensando.
— Como sabe no que estou pensando? — sua provocação
vem acompanhada da língua umedecendo os lábios.
— Você é uma canalha, não é difícil presumir.
Ela ri baixo e ergue as mãos em sinal de rendição.
— Vamos lá, Bellini. — Seus braços repousam nos apoios da
cadeira e ela eleva um pouco o quadril, arqueando o corpo para
mim. — Me examine.
Grunho baixo, reviro os olhos e os desço até sua perna. Há
uma atadura envolvendo parte da coxa e está coberta de sangue.
Pelo visto, foi necessário arrancar a bala de dentro.
— Você não foi ao médico da Vendetta, foi? — Ela meneia a
cabeça em negação e bufo alto. — Por que é tão irresponsável?
Acha que levar um tiro na perna não é nada?
— Já levei um tiro em lugares muito piores.
— Dio Mio, você é tão arrogante que me dá ânsia.
Por alguma razão, minha ofensa lhe faz sorrir ainda mais.
— Você tem algum kit de primeiros socorros aqui? —
pergunto.
— Naquela estante. — Aponta com o queixo para a mobília
na parede ao lado. — Terceira gaveta de cima para baixo.
Vou até lá, pego o kit e volto. Hesitante, dobro os joelhos e
me agacho em frente à sua perna. Enquanto abro a caixa e tiro os
itens necessários, evito levantar o olhar para ela. Sei que Alessia
está sorrindo como uma cafajeste e não sei se aguento mais uma
dose de irritação hoje.
Sua coxa tem uma grande tatuagem de dragão que sobe até
o quadril e desaparece por baixo da camiseta. Meu coração falha
uma batida quando, sem querer, passo alguns segundos
observando sua calcinha preta rendada.
— Se gostou tanto assim dela, fique à vontade para tirar.
Desvio o olhar e sinto a pele queimar em constrangimento.
Mantenho a cabeça baixa, pois minhas bochechas ruborizam após
ter sido pega no flagra.
— Não seja ridícula — resmungo, desenrolando a atadura. —
Espero que nem nos seus sonhos eu tire a sua calcinha, Romano.
— Nos meus sonhos você faz muito mais do que isso.
Contorço o rosto em uma careta enojada. Detesto suas
provocações e o fato de que ela está mais ousada do que nos
últimos dias, por algum motivo. Desde o momento em que entrou,
notei algo diferente e não consigo deixar de me perguntar o que
aconteceu para deixá-la tão satisfeita assim.
— Quem atirou em você? — questiono ao ver as gazes
cobrindo a região.
Afastando-as, vejo a abertura grande e ensanguentada. Não
foi uma simples 9mm que fez isso; chuto que tenha sido uma
submetralhadora. Em Las Vegas, apenas a máfia tem acesso a elas.
Acredito que ninguém da Vendetta atiraria na própria don.
Então, talvez eles tenham tentado de fato. Porém, não posso
demonstrar que eu já sabia que eles tentariam matá-la.
Conhecendo-a como conheço, tenho certeza de que Alessia
não pegou leve. Deve ter matado alguns soldados nossos.
— Trocou tiros com a Timoria?! — exclamo.
Tento me levantar, mas ela é mais rápida e se inclina para
frente, colocando as duas mãos em meus ombros e me mantendo
no chão. Seu rosto chega mais perto do meu e tenho que erguer a
cabeça para sustentar o contato visual de baixo.
— Se você não cobrir essa merda logo, vou fazer uma poça
de sangue nos seus pés.
— Me responda! Foi alguém da Timoria que atirou em você?
Quando e onde?
— Aconteceu há uma hora — revela, dando de ombros e
jogando o corpo para trás novamente. — Cubra logo. Não quero
sangue no meu piso.
Balanço a cabeça, indignada, e meus movimentos
transbordam raiva conforme limpo o machucado. Tento não
machucá-la, embora sinta vontade de enfiar o polegar no ferimento
e ouvi-la gritar de dor. Não sei por que estou tão exasperada, mas o
pensamento de que minha máfia tentou matá-la e ela provavelmente
matou alguns dos nossos me deixa fora de órbita.
Não pensei que Alessandro realmente levaria aquilo adiante.
Apesar de tudo, não é uma ideia inteligente.
— A Vendetta não tem médicos competentes para tratar um
ferimento de bala? Pelo amor de Deus, você é a chefe deles! Nem
deveria ter vindo aqui em primeiro lugar, porque tem que ficar de
repouso. Você é a pessoa mais irresponsável que eu conheço.
Pego novas gazes e cubro a região já livre de sangue,
enrolando-a com atadura. Estou tão nervosa e irritada que minha
visão começa a escurecer. Me pergunto como a tentativa aconteceu
e se ela pretende se vingar.
Quando acabo, fecho o kit com força e me levanto de
supetão. Ela já sabe o que lhe espera, pois respira fundo e passa as
mãos no rosto.
— Me explique — exijo, entredentes.
— Consegui uma pista, mas ela estava no seu território.
O quê?
— Onde?
— Dark Notes.
Porra.
Não é nada do que estou pensando. Alessandro não
executou o plano de tentar matá-la. Mesmo assim, a situação é
ruim.
— Pois é — ela diz, e percebo que praguejei em voz alta. —
Invadi a boate e matei alguns homens. Não comece um sermão.
— É sério? — Rio, incrédula. — Você admite ter invadido
nossa boate e matado alguns homens, e não quer ouvir merda? ‘Tá
de brincadeira com a minha cara, Romano?
— Quer um conselho, Lyanna? Guarde seu sermão para
Alessandro, e aproveite para perguntar o porquê de ele ter deixado
outra organização comandar uma das propriedades mais
importantes da sua máfia.
Estreito os olhos, o cenho franzido em confusão. Minha
intuição sobre meu pai esconder alguma coisa grita ainda mais alto
agora.
— Do que você está falando?
Alessia apanha sua calça e a veste. Depois, se levanta e me
esquadrinha com a expressão fechada.
— Aquele lugar está infestado. — Suas palavras transbordam
desprezo. — Não sei em qual merda seu chefe se meteu, mas se
precisar matar duzentas pessoas para descobrir, matarei duzentas e
uma.
— Quem você matou? — pergunto em um sussurro.
— Ninguém da sua máfia.
Seu olhar é tão intenso que aperta meu peito.
— Não acredito em você — minha voz fica mais baixa a cada
passo que ela dá em minha direção. — Não confio na sua palavra.
— E eu não me importo — revida, no mesmo volume, tão
perto que sinto novamente seus seios roçando nos meus. —
Entenda de uma vez por todas: Vou matar quem for necessário para
te manter segura, mesmo que seja o maldito presidente ou a rainha
da Inglaterra.
Quando seu nariz encosta no meu e sinto a respiração quente
bater contra meu queixo, é impossível resistir ao reflexo de fechar
os olhos. Ela continua, soletrando em um sussurro:
— Qualquer. Um.
— Não estou em perigo — respondo, embora não tenha tanta
certeza disso.
É provável que eu esteja. Porém, preciso refutá-la. Preciso
demonstrar que não me importo com sua superproteção —
completamente falsa, aliás. Se ela se preocupasse comigo, não teria
feito o que fez.
— Você é a herdeira de uma máfia, Bellini. Está em perigo
desde o minuto em que nasceu.
Meneio a cabeça, decidida a retrucar, mas além de não poder
porque sei que é verdade, sou interrompida pelo som de seu celular.
O barulho me lembra de que estamos perto demais e coloco
diversos passos entre nós. Com o corpo em chamas, me concentro
na imagem da fachada da boate na grande tela central.
— Estou ocupada. O quê?! Agora? Porra, estou indo.
Diante de seu tom alarmado, volto a olhá-la. A cólera que
encontro em seu rosto me faz enrugar a testa.
— O que aconteceu?
— Uma das fábricas da Vendetta foi atacada.
 

“Se você for para a guerra eu irei com você


Pego minha espada, sim, não há nada que eu não faça”
Army | Neoni feat. Besomorph & Arcando
 

 
Quando chego à fábrica, dez homens correm até mim e
fazem um círculo à minha volta conforme ando até o galpão.
Quando entro, a primeira coisa que vejo são quatro corpos
pendurados pelo pescoço por cordas presas nas barras de metal do
segundo andar. Desvio o olhar e procuro por King, que me alcança e
atravessa os seguranças para se pôr à minha frente.
— Houve uma troca de tiros — relata, me estendendo um
tablet. Nele, vejo uma gravação da câmera que fica em um dos
cantos do lugar. Homens mascarados estão escondidos atrás dos
containers e disparam contra os nossos soldados. — Oito nossos e
cinco deles morreram. Achei melhor esperar para você ver aqueles
corpos enforcados antes de retirá-los.
Ergo o queixo e encontro seu olhar interrogativo. Não é difícil
notar que Jayden tem diversas perguntas a mim, mas está receoso
para fazê-las.
— Eles roubaram alguma coisa? — pergunto.
— Alguns quilos de heroína, coca e LSD.
Contraio a mandíbula e respiro fundo.
— Me leve até eles — peço, e ele gira os calcanhares antes
de se afastar.
Sigo-o até a região onde deixamos os containers que
guardam os blocos de drogas. Os três caras foram colocados um do
lado do outro, todos exibindo diversos tiros no peito. Me abaixo e
levanto a barra da calça de cada um, vendo a mesma tatuagem
desenhada no calcanhar.
Não posso dizer que estou surpresa. Somando um mais um,
é claro que eles descobririam que fui eu a responsável pelo ataque
na Dark Notes. Eles sabem que estou atrás deles tanto quanto
estão atrás de mim.
— Reconhece a tatuagem? — Jayden pergunta.
— É de uma gangue — respondo, sucinta, e me viro.
Caminho até os corpos enforcados com King ao meu enlaço.
As máquinas e mesas usadas para a produção das drogas não
estão tão prejudicadas, então acredito que o tiroteio não tenha
durado mais do que alguns minutos. Até porque, se só fui notificada
depois que acabou, é porque o tempo foi curto.
A satisfação que tive há pouco mais de uma hora, quando
matamos os infelizes e dei um passo enorme na investigação, é
substituída pelo desejo primitivo de exterminá-los quando vejo a
frase escrita com sangue na barriga dos quatro homens
pendurados. Cada um deles carrega uma palavra.
“ESTAMOS ATRÁS DE VOCÊS”
Vocês. No plural.
Lyanna e eu.
Examinando o chão logo abaixo deles, encontro outra frase
escrita também com sangue.
“DEVOLVA O QUE É NOSSO”
Não é à toa que Jayden me encara como se estivesse
prestes a iniciar um interrogatório infinito. Depois disso, não
conseguirei enrolá-los por muito tempo; terei que explicar tudo antes
que ele e Yuna percam a paciência comigo.
— Como eles conseguiram pendurar quatro soldados em
meio a um tiroteio? — questiono.
Estudando o rosto deles, reparo que não são soldados
encarregados desta fábrica. Provavelmente, foram mortos em outro
lugar e trazidos até aqui para deixar a mensagem.
— Houve uma explosão próxima daqui, na vegetação.
Metade dos homens foi verificar e seja lá quem fez isso, aproveitou
que só restaram quinze aqui para invadir. Um dos que matamos
estava lá em cima, pendurando algum dos caras, mas foi baleado
na testa e caiu do segundo andar. Mesmo assim, estávamos em
desvantagem. Foi tudo muito rápido.
Soltando uma respiração profunda, me viro para Jay.
— Um cassino é incendiado, uma mercadoria é destruída e
agora uma fábrica é atacada. Posso saber que organização
medíocre é essa que a Vendetta se tornou? Cinco anos atrás, três
ataques em menos de duas semanas não aconteceria nunca, nem
se tivéssemos matado a porra do presidente. Que tipo de soldado
vocês treinaram nos últimos anos?
— Chefe…
— Não — interrompo, levantando a mão. — Não me venha
com desculpinhas, King. Sua equipe sempre foi a melhor de todas e
nunca duvidei do seu potencial, mas não somos uma das maiores
máfias à toa. Nossos soldados estão se mostrando inúteis e tenho
certeza de que já perdemos mais homens em duas semanas do que
nos últimos meses.
Jay passa a língua no interior da bochecha e dá um passo
adiante. Em reflexo e em sinal de alerta, os seguranças se
aproximam simultaneamente. A mandíbula de meu amigo tensiona
em incômodo, embora ele saiba que as coisas funcionam dessa
forma. Não costumo ter soldados me acompanhando, mas, quando
tenho, nem mesmo meu melhor amigo ou minha irmã escapam das
sutis ameaças.
— Alessia — começa, num tom contido. — Me explique,
como é que você espera que nossos homens estejam preparados
para algo que não sabem o que é? Não minta para mim, é claro
como a luz do sol que você está escondendo algo e que sabe quem
está por trás de tudo isso. Mesmo assim, se recusa a nos explicar
ou contar qualquer coisa. Como vou dar ordens a eles e premeditar
um ataque se não tenho ideia de quem é o filho da puta nos
atacando? Respondo e obedeço a você acima de tudo, mas não
admito que ofenda minha equipe quando é você que está
dificultando o nosso trabalho.
— Já sofremos muitos ataques inesperados antes — refuto.
— E nunca foi um problema. Precisamos estar preparados sempre,
sob qualquer circunstância e para qualquer coisa, não só para
ataques que já esperamos. Esses são os que menos existem,
Jayden. Máfias e gangues não enviam um bilhete avisando que vão
nos atacar.
Sua cabeça meneia em negação. Sempre soubemos separar
muito bem as coisas — a amizade do lado profissional —, mas
parece que agora está sendo difícil. No fundo, é nítido que meu
silêncio a respeito dos últimos cinco anos o incomoda.
— Não estou pedindo para que me conte o que aconteceu
com você — sua voz fica mais baixa. — Só quero entender o que
está acontecendo e por que está acontecendo. Por que estamos
sendo atacados de repente? Por que Dante foi assassinado? Você
tem as respostas, não tem?
— Você confia em mim, King? — Ele fecha os olhos por uma
fração de segundo, como se estivesse se segurando para não me
xingar.
— É claro que confio, Alessia.
— Então não me questione.
— Sou seu Underboss, não um dos seus cachorrinhos. Você
querendo ou não, vou te questionar sobre tudo que achar
necessário.
— Cuidado com o tom, Jayden— advirto.
— Com todo respeito, Alessia, mas ser don não te impede de
ser questionada quando for preciso. Se queria manter seus
segredos apenas para si mesma, deveria ter dado a liderança para
outra pessoa. Como segunda pessoa no comando da Vendetta,
posso e vou buscar respostas para as inúmeras perguntas que
tenho. Se não está disposta a oferecê-las, teremos problemas.
Levanto as sobrancelhas diante de sua ousadia, ainda que
não seja tão surpreendente. Jayden tem o pulso firme e não mede
esforços para proteger a nossa organização. Ainda assim, não gosto
da maneira como ele me desafia.
— Você é meu Underboss, mas ainda está abaixo de mim.
Não quero “ter problemas” com você, King, só quero que entenda a
necessidade de esperar para obter suas respostas.
— Pela segunda vez: Não estou te dizendo para que me
conte o que aconteceu. Tudo que estou pedindo é que me dê uma
luz no fim do túnel, qualquer informação que nos ajude a acabar
com tudo isso logo.
— E eu darei — garanto. — Mas ainda não.
— Não podemos esperar! Alessia, pelo amor de Deus, olhe
para o lado! — exclama, já um pouco irritado. —  “Devolva o que é
nosso”? O que diabos temos que devolver, porra? E por que estão
atrás de nós?
Não de você, penso.
Respiro fundo, passo a mão no rosto e estalo o pescoço. Não
quero envolver ele ou Yuna nisso ainda porque sei que os colocarei
em risco, mas Jayden King é uma pedra no meu sapato. Ele não vai
desistir enquanto não conseguir suas respostas, então, infelizmente,
talvez eu precise contar antes do que planejava.
— Tudo bem, vou explicar algumas coisas — cedo, e seus
ombros caem em alívio. Um sorriso vitorioso delineia o canto da sua
boca e reviro os olhos. — Tem sorte de ser o meu melhor amigo,
Jayden. Se não, já teria levado um soco na cara pela maneira que
falou com sua don.
Ele abre a boca para responder, mas uma movimentação ao
lado atrai nossa atenção. Os corpos estão sendo soltos das cordas
e me aproximo dos que já estão no chão. Porém, meus passos
estagnam e a respiração falha.
Em volta do pescoço de um deles, há um colar.
O colar que dei para Lyanna seis anos atrás.
Minha visão escurece, tamanho ódio que sinto, e minha
mente já nublada para de funcionar. Depressa e com força, arranco
o objeto e caminho para fora do galpão. Os seguranças tentam me
seguir, mas sou mais rápida e alcanço minha moto em poucos
segundos. Tentei ignorar a dor na perna desde que Yuna fez o
curativo, mas os passos acelerados pioram a sensação e sinto que
o ferimento começa a jorrar mais sangue.
— Chefe! — um soldado grita.
Guardo a correntinha no bolso da calça, dou partida e
acelero, deixando-os para trás. Eu já sabia que Lyanna estava em
perigo. A partir do momento que vi sua calcinha naquele caminhão,
soube que eles estavam atrás dela para me atingir. Porém, não
fiquei tão transtornada como estou agora, já que uma peça de roupa
não é difícil de encontrar.
No entanto, isso… Isso é diferente. Isso significa que eles
estão mais perto do que eu imaginava.
 
 

“Você não está na escuridão


Mas está longe da luz
E eu preciso saber agora
Você está comigo?”
Are You With Me | nilu
 

 
Assim que Alessia saiu, liguei para Kai. Ele não atendeu,
então disquei para Sophie e perguntei o que tinha acontecido. Ela
não sabia de nada. Com as palavras de Alessia em mente, entrei no
carro e dirigi até o Ascension torcendo para que meu pai estivesse
em seu escritório.
Não estava.
Então, fiz o que senti ser o certo: Vim até a Dark Notes.
A boate foi esvaziada, mas os soldados continuam. O
problema é que não conheço a maioria deles, pois não são da
Timoria.
Aquele lugar está infestado.
Não consigo parar de pensar no que ela disse. A princípio,
pensei ser apenas um jogo de manipulação para que eu não
questionasse seu ferimento. No entanto, agora que estou aqui, é
quase impossível não acreditar que há algo de errado acontecendo.
Os homens andando de um lado para o outro me fazem
desconfiar de que, realmente há outra organização comandando a
nossa boate mais importante. Mas não faz sentido. Por que meu pai
permitiria isso? E por que ninguém descobriu antes? Talvez algumas
pessoas saibam… só não falem.
— O que aconteceu aqui? — pergunto a um dos caras
parados em frente à sala de negociações.
— Quem é você? — ríspido, ele devolve com outra
indagação. — Não deveria estar aqui. Esta área é…
— Sou Lyanna Bellini — o interrompo, levantando as
sobrancelhas. — Quem é você?
Seu semblante sofre uma rápida mudança, saindo de uma
carranca para um de reconhecimento. Posso até jurar que se
ilumina um pouco. Também não passa despercebido para mim o
breve, quase imperceptível sorriso que ameaça surgir em seus
lábios.
Ele não me responde. Em vez disso, tira o celular do bolso e
se afasta, caminhando para longe. Mas que diabos?!
Enrugo as sobrancelhas, confusa e intrigada, e tento girar a
maçaneta da sala. Não consigo entrar, pois está trancada. Olho ao
redor, vendo muitos rostos desconhecidos, e me sinto um pouco
nervosa. A reação daquele homem me deixou receosa, já que
mesmo sabendo que sou filha do don, ele me ignorou
completamente. Quem são essas pessoas que parecem não dar a
mínima para a nossa hierarquia?
Inicio os passos até um aglomerado de homens
engravatados, mas estagno quando meu celular vibra. Meu coração
falha uma batida quando vejo a mensagem na tela, vinda de um
número que há muito tempo não aparecia no meu celular. Por algum
motivo, nunca mudei o nome do seu contato.
Clyde: Onde você está?
Lyanna Bellini: Por quê?
Sua resposta é instantânea, como se ela estivesse
desesperada para saber.
Clyde: Responda. Onde você está?
Lyanna Bellini: Vim ver com os meus próprios olhos o
estrago que você fez na nossa boate.
Dois segundos depois, a tela se ilumina.
Alessia está me ligando.
Paraliso por um instante, não esperando que ela fosse me
ligar. Ao atender, sua voz soa de imediato:
— Saia daí — ordena, e tenho certeza de que há desespero
em seu timbre.
— Alessia…
— Não, Lyanna! — exclama. — Saia daí agora, porra!
A rapidez com que ela perde o controle me faz estremecer e
provoca um calafrio na coluna. Um sentimento ruim surge na boca
do meu estômago, causado pela estranheza em vê-la desse jeito.
Como nunca fiz antes, a obedeço sem questionar. Ando em
direção à saída, sem demonstrar o nervosismo que começa a
crescer em meu peito. Já havia um pressentimento negativo
perturbando minha cabeça e agora, depois de ouvir Alessia
desesperada no telefone, ele cresceu tanto que fecha minha
garganta.
— O que aconteceu? — sibilo.
— Apenas saia daí, cazzo! Juro pelo meu sangue que se
você não fizer o caminho de volta para mim em dez segundos, vou
queimar a porra da cidade!
— Calma, já estou saindo — murmuro, abrindo a porta.
No entanto, uma mão envolve meu pulso com força.
Sobressalto com o susto e viro o rosto, olhando o homem por cima
do ombro. Seus olhos monólitos, escuros como a noite, fazem meu
estômago embrulhar.
— Olá, querida — a entonação é perversa, como uma canção
mórbida tocada nas piores cenas de um filme de terror. — É um
prazer conhecê-la.
Ele me olha com malícia e me sinto enojada. Sem o meu
consentimento, pega minha mão e deposita um longo beijo no
dorso.
— Sou um amigo de seu pai.
Meu subconsciente e minha intuição sabem que esse homem
é perigoso, ainda que eu não faça ideia de quem ele é. Ultrajada,
me solto em um solavanco.
No primeiro momento, ele parece surpreso, mas se recompõe
depressa assim como eu. Com o semblante fechado e reprovador,
pergunto:
— Qual é mesmo o seu nome?
Ele sorri, desviando o olhar até o celular por uma fração de
segundo antes de voltá-los aos meus.
— Pode me chamar de Oliver, querida.
Diversas luzes de alerta piscam em minha cabeça. Seja lá
quem esse homem for, não é alguém com quem me sinto
confortável.
— Foi um prazer, Oliver — minto.
Me viro e saio, caminhando em passos apertados até o carro.
Quando entro, me lembro de que ainda estou em ligação. Contudo,
quando encaro a tela, vejo que a chamada já foi encerrada.
Dou partida e corro pelas ruas até o prédio onde investigo
com Alessia. Tento ligar para ela no meio do caminho e, para a
minha surpresa, não sou atendida. Desacelero o veículo quando
adentro o território da Vendetta, já que não quero levantar nenhuma
suspeita e tampouco ser seguida pelos homens de Alessia.
No meio do caminho, um barulho alto — que parece vir do
horizonte à minha frente — ecoa. A cada segundo o som fica mais
perto, até que avisto algo vindo em minha direção. Conforme se
aproxima, percebo que é uma moto.
É ela.
Estaciono e desligo o motor quando ela faz o mesmo,
parando bruscamente ao meu lado e no meio da rua. Seu peito sobe
e desce em frenesi, mas o que mais me preocupa é o desespero
irrefutável que encontro em seu rosto.
— Sobe — diz. — Agora, Lyanna.
Mais uma vez, não questiono. Saio, travo o carro e subo.
Minha mente está tão confusa e nebulosa que me encaixo atrás
dela e encosto as coxas em seu quadril, quase apertando-a entre
minhas pernas. Alessia dá partida e sai tão rápido que quase deixo
um grito assustado escapar quando sou impulsionada para trás.
Não tenho tempo para encontrar as alças, então ajo no
reflexo de agarrar o tecido de sua camiseta com força e colar meu
peito às suas costas. Desnorteada, passo todo o trajeto observando
a desorientação explícita em seu olhar, através do retrovisor. Isso
me deixa mil vezes mais confusa.
Noto que não fazemos o caminho até o prédio, mas até
nossa antiga casa. O silêncio que prevalece durante os dez minutos
de viagem me corrói de dentro para fora à medida que milhares de
questionamentos, teorias e paranóias invadem minha cabeça.
Detesto não saber o que está acontecendo. Detesto ainda
mais estar tão preocupada com ela.
Quando chegamos, Alessia estaciona de qualquer jeito,
desliga o veículo e desce em um pulo. Mal tenho tempo para
raciocinar antes de sentir duas mãos firmes em minha cintura,
puxando-me para o chão e me arrastando até o interior da casa.
Assim que a porta é fechada atrás de mim, sou prensada contra ela
e meu rosto é segurado com cuidado.
— Você está bem? Eles encostaram em você? — pergunta,
com os olhos arregalados. — Me responda. Alguém te machucou?
Estou petrificada, incapaz de me mover ou abrir a boca. Sua
expressão transborda o mais puro desespero.
Então, eu sinto.
Sinto suas mãos tremendo.
É pouco, quase imperceptível… mas, eu sinto.
— Alessia? — sussurro, atordoada.
Ela está tremendo?
— Alguém encostou em você? — repete, perscrutando cada
centímetro da minha pele exposta pela roupa.
Em dez anos, nunca a vi com medo de ninguém. Que porra
está acontecendo?
— Por que…
— Me responda!
— Ninguém me machucou.
Seus ombros caem, um suspiro aliviado escapa do peito e
suas pálpebras se apertam por alguns segundos. Sou surpreendida
e meu corpo congela quando ela encosta a testa na minha, sequer
se importando com o fato de que nossas bocas estão quase coladas
e seu corpo pressiona o meu contra a porta.
— Alessia, o que..
— Nunca mais faça isso — suplica, escorregando o nariz
pelo meu em uma carícia inesperada.
Estou confusa como o inferno. Não consigo pensar em nada,
muito menos na realidade na qual vivemos — a de que somos
inimigas e eu a odeio com tudo que há dentro de mim.
Estou à mercê de seu comportamento totalmente
inexplicável.
— Falei para você me esperar no apartamento — fala, entre
respirações cortadas e ofegantes. — Não deveria ter saído, Lyanna.
Não deveria ter ido lá!
Alessia continua com as pálpebras espremidas, como se
sentisse dor. Os dedos permanecem firmes em minha mandíbula,
mantendo minha cabeça erguida e à sua disposição. Incerta do que
fazer, deixo as mãos caídas ao lado do corpo, embora estejam
formigando para tocar minha ex-namorada da mesma forma como
ela está me tocando.
Quero que ela abra os olhos, mas, em contrapartida, não sei
se aguento ver de tão perto o pânico que eles transparecem.
— O que está acontecendo? — indago. — Por que está
assim, Alessia?
Ela meneia a cabeça de um lado para o outro, se afasta e me
puxa em direção à cozinha. Mais uma vez, não tenho tempo para
reagir antes de ser pega pela cintura e colocada em cima da mesa.
Suas mãos espalmam a superfície, uma de cada lado do meu corpo,
e ela se inclina para deixar o rosto próximo do meu.
Não sei o que fazer. É sufocante ver seu olhar tão perdido e
desesperado. Se eu pelo menos soubesse o motivo, poderia ajudá-
la.
— Aquele homem com quem você conversou na boate…
Conhece ele? — seu questionamento vem em um timbre receoso.
— Você ouviu? — Ela assente e eu continuo: — Não
conheço. Ele disse que é amigo do meu pai, mas nunca o vi antes.
Por quê?
Outro suspiro aliviado escapa de seu nariz e me faz enrugar
a testa.
— Quem é ele? E por que você está tão apavorada? Está me
deixando preocupada pra caralho!
— Não volte lá sem mim, tudo bem? — Fico em silêncio, com
o cenho franzido. — Me prometa que não vai voltar naquela boate
sozinha.
— Não vou fazer nenhuma promessa antes de saber o que
diabos está acontecendo — retruco.
— Por favor — sua súplica vem em um tom baixo. — Por
favor, Lyanna. Me prometa.
Nego em um aceno. Ela grunhe baixo, frustrada, e coloca a
mão direita em minha nuca. Nossas testas se juntam mais uma vez
e arquejo baixinho, sentindo o coração acelerado e o corpo trêmulo.
Nossa aproximação é como fogo e meu corpo é pólvora.
Sempre queimamos juntas em um incêndio devastador.
— Eu derramaria sangue de toda Las Vegas se eles
machucassem você — sussurra.
Sua mão livre toca a base da minha coluna e me puxa mais
para perto, encaixando-se no meio das minhas pernas. Ofego e
sinto seus lábios deslizando pela minha mandíbula, o que me obriga
a fechar os olhos e, involuntariamente, apertar o tecido de sua
camiseta entre os dedos.
— O que aconteceu? — repito, ao mesmo tempo em que ela
escorrega os dedos da nuca até meu cabelo. Entrelaçando os dedos
nos fios, me faz soltar uma lufada.
— Porque encontrei uma coisa na fábrica — confessa,
apertando minhas madeixas de maneira quase imperceptível.
Engulo em seco, absorta em seja lá o que esteja acontecendo entre
nós, e meu corpo trai a mim mesma quando pressiona a cintura dela
entre as pernas. — Te mandei uma mensagem para me certificar de
que você estava segura no apartamento, mas no fundo já imaginava
que você iria até a boate.
— O que você encontrou?
Alessia se afasta, tirando as mãos de mim, e sinto o peito
murchar. Abrindo os olhos, vejo-a me encarando de forma intensa e
controlada. Com a mandíbula cerrada, sua mão adentra o bolso da
calça de moletom e tira de lá um objeto.
Quando o reconheço, uma onda gelada atravessa meu
tronco. Se não estivesse sentada, teria caído de joelhos no chão.
Minha boca abre e pego a corrente, aproximando-a do rosto.
— Você prometeu que esconderia — ela diz, mas não capto
nenhum indício de julgamento em sua voz.
O colar dourado tem uma cobra pendurada e atrás dela,
escrito ao longo de seu corpo, há “Bonnie e Clyde - L e A”. Alessia
me deu esse colar um ano depois que nos conhecemos, quando
nossas máfias se envolveram em uma troca de tiros e fui baleada
por um deles.
Quando soube, ela invadiu o prédio onde os membros da
Timoria são atendidos por médicos e enfermeiros e onde passam
um tempo em observação ou repousando. Não tenho ideia de como
ela conseguiu passar despercebida, mas um dia depois já estava se
infiltrando no meu quarto. Uma semana depois, quando voltei para o
meu apartamento, Alessia me entregou esse colar e disse: “A
Vendetta não vai te machucar nunca mais, principessa. Eu
prometo”.
Foi a primeira vez que ela me fez uma promessa, e foi a
primeira promessa quebrada por ela.
Na época, ainda não tínhamos um rótulo para a nossa
relação. Embora agíssemos como o que a sociedade considera um
“namoro”, nenhuma de nós queria tornar as coisas oficiais com um
pedido. Mesmo assim, mesmo não admitindo, eu já a amava.
Achei que era um presente, mas ela pediu para que eu não o
usasse. Em vez disso, me fez prometer que guardaria em um
esconderijo secreto, onde ninguém pudesse encontrar.
Completamente rendida e cega, fiz o que ela pediu sem pestanejar.
— Como… — sou incapaz de completar a frase.
Não entendo como isso foi parar na fábrica da Vendetta. Não
entendo como saiu do cofre escondido no meu closet, o qual
ninguém, nem mesmo meus melhores amigos, sabem da existência.
Estou assustada pra caralho.
— Estava no pescoço de um dos meus homens mortos. —
Levanto a cabeça, espantada. Me sinto um pouco melhor ao saber
que isso a assusta tanto quanto a mim. — Eles sabem sobre nós,
Lyanna, e é por isso que você precisa confiar em mim e fazer o que
eu digo. Por favor.
Puta merda.
— Quem? Quem sabe sobre nós?
Acho que vou desmaiar. Apesar de saber que havia a
possibilidade, nunca pensei que alguém realmente descobriria sobre
nós duas. Era mais uma das ingenuidades nas quais eu me
obrigava a acreditar para não estragar o que tínhamos.
— É uma gangue. — Após um silêncio pesado, Alessia solta
a respiração e revela: — Eles estão atrás de mim.
— Por quê?
— Você contou sobre esse colar para alguém? — questiona,
me ignorando. — Contou onde ele estava escondido?
— Não — asseguro, apertando a correntinha na mão fechada
em punho. — Ninguém sabia.
— Nem mesmo Jeon e Wilson?
— Nem mesmo eles. — Ela semicerra as pálpebras,
desconfiada. — Não conto tudo para eles.
— Merda — pragueja baixinho, passando as mãos pelo rosto.
— Qual é a gangue e por que estão atrás de você? Não vai
me explicar nada? — ralho, incrédula. — Tenho direito de saber,
inferno! Não é só você que está envolvida nisso, Alessia. Já estou
cansada de não saber o que está acontecendo!
Sinto meus pulmões vazios e o peito apertado pela
dificuldade em respirar. Saber que nosso relacionamento não é mais
um segredo me deixa tão apavorada que quero chorar, gritar e bater
na minha própria cara.
Como permiti que isso acontecesse? Como me permiti deitar
na cama da inimiga?
Seja lá qual for essa gangue, eles pretendem usar nosso
namoro para atingir Alessia. Tenho certeza de que estão
determinados, então não deve demorar até que a informação seja
vazada e todo o submundo descubra o que fizemos.
Inclusive meu pai.
Começo a tremer e a visão embaça devido às lágrimas. Puxo
a maior quantidade de ar possível, mas não é suficiente. Ouço uma
movimentação na cozinha e logo um copo é colocado entre meus
lábios. Deixo que a água entre em minha boca e bebo depressa, em
um gole só.
— Está tudo bem — sua voz rouca sussurra.
Nego com a cabeça. Nada está bem e nada vai ficar bem.
— Vou cuidar de tudo — promete, segurando meu rosto com
as duas mãos. Soluço baixinho, sentindo uma lágrima escorrer pela
bochecha. — Não chore, amor. Ninguém vai te machucar, eu
prometo. Prometo que vou te manter segura, principessa.
No fundo, quero acreditar nela. Quero acreditar que Alessia
vai cuidar de tudo e me manter segura. No entanto, na última vez
que acreditei em suas promessas, acabei com o coração
estilhaçado.
Não importa quanto tempo passe, acho que sempre seremos
feitas de promessas quebradas.
 

“Tenho medo de me queimar se chegar perto demais


E agora você me pegou onde você me quer porque eu estou
nas cordas
Baby, não me faça correr
Porque eu só quero te salvar devagar”
Smoke | Bobi Andonov
 

8 anos atrás
 
Quando fui ao seu apartamento, Lyanna disse que
jogaríamos uma partida.
Faz dois meses que estamos jogando toda semana. Um dia
sim, um dia não.
Esperei muito tempo por aquele momento, então fiz questão
de provocá-la a todo instante, deixando-a furiosa. A humilhação da
derrota a irritou tanto que ela quis revanche. E eu, é claro, aceitei.
Meu plano tinha dado certo e nos veríamos novamente sem que eu
precisasse invadir o território inimigo.
Também não peguei leve na segunda partida. Lyanna perdeu
de novo e a zombei pra caralho, porque sabia que seu ego ferido
não a permitiria aceitar a chacota.
Foi só na nona vez que a deixei ganhar. Se não quisesse
tanto vê-la orgulhosa de si mesma, ela teria perdido. Lyanna não é
ruim com as cartas, pelo contrário; é uma jogadora esperta,
perspicaz e estratégica. Porém, não tem a manha que fascinados e
experientes como eu tenho. Não sabe controlar a linguagem
corporal, tampouco sabe trapacear.
Diria que as chances de um jogador honesto ganhar uma
partida de pôquer são nulas.
Na nossa décima quinta partida, a ensinei algumas coisas.
Nunca revelei minhas táticas para ninguém, mas, para ela, não
pensei duas vezes. E não me arrependo nem por um segundo, pois
foi naquela noite, um mês atrás, que ela sorriu de forma genuína
para mim pela primeira vez.
Depois que colocamos as trapaças em prática para saber se
ela aprendeu, Lyanna fez uma jogada tão boa que poderia
facilmente ganhar se estivéssemos jogando de verdade. Quando
percebeu, os olhos brilharam e a boca se abriu em um sorriso lindo.
De tirar o fôlego. Fiquei estática, com o coração acelerado,
encarando-a como se tivesse ganhado na porra da loteria. Não
conseguia acreditar que, finalmente, consegui arrancar um sorriso
dela. Antes, era tudo resumido em um prensar de lábios e uma
lufada de ar.
Inferno, eu ensinaria todas as trapaças, técnicas e leituras
corporais existentes se ela quisesse. Ensinaria tudo que sei e a
deixaria ganhar de mim toda maldita vez se isso significasse ver
aquele sorriso direcionado a mim.
No final daquele mesmo dia, as palavras que saíram da sua
boca nunca serão apagadas da minha memória. Sonhei todas as
noites com o momento em que elas foram ditas, as íris castanhas
olhando-me de uma forma diferente das outras; com menos repulsa,
menos desprezo.
“Continuo te odiando, Romano, mas acho que consigo
entender por que faz tanto sucesso com as mulheres.”
Mal sabe que a única mulher com quem quero fazer sucesso
é ela.
Faz um mês que estamos nos aproximando. Nós fumamos,
jogamos, bebemos e conversamos. Tento não provocá-la a todo
momento, porém é impossível. Quando percebo, já estou me
aproximando e tirando-a do sério com minhas palavras. Adoro ver
seu olhar assassino, os grunhidos irritados e o revirar de olhos.
Na semana passada, posso jurar que vi indícios de desejo
em seu olhar cravado na minha boca, quando estávamos sentadas
na escada da varanda. Foi rápido, quase imperceptível, mas notei.
Notei pra caralho. E se eu estivesse enganada, Lyanna não teria
ficado desconcertada depois, indo embora tão de repente que
sequer conseguiu formular uma frase inteira para explicar o motivo.
Faz um mês que não consigo pensar em outra coisa além
dela. Seus olhos. Seus lábios. Seu batom escarlate. Suas saias
plissadas que me enlouquecem. Suas facas escondidas na coxa,
preparadas para me ameaçar. Sua voz provocadora, sempre
destilando acidez. Sua mandíbula quadrada. Seu pescoço, o qual
implora por um beijo. Sua pele tatuada, aparentando ser macia e
quente.
Estou doente. Doente pela minha arqui-inimiga que, além de
me odiar com todas as suas forças, não hesitaria antes de enfiar
uma bala na minha testa.
Tenho certeza de que Lyanna Bellini não é chamada de
“feiticeira” somente pelas suas habilidades surreais nos
computadores. O apelido deve ter surgido pela bruxaria inexplicável
que ela faz com todos ao seu redor, enfeitiçando um a um para cair
aos seus pés. Nunca pensei que eu seria uma dessas pessoas,
mas, porra, eu sou.
Estou enfeitiçada por essa bruxa. Seja lá qual feitiço ela
aplicou em mim, funcionou tão bem que estou recebendo
advertências no trabalho por não me concentrar o suficiente. Como
poderia me concentrar sabendo que, à noite, nos encontraríamos?
Que eu era sua professora particular de baralho e que isso me
tornou não só ainda mais obcecada pelas cartas, mas também por
ela?
Praguejo baixinho ao perceber que, novamente, entrei em um
devaneio profundo pensando em Lyanna. Já faz quase dois meses
que estamos nisso, mas ainda fico agitada toda vez que estou
esperando-a na casa afastada da cidade.
Comprei essa maldita propriedade só para podermos ter um
lugar nosso, onde podemos nos ver sem preocupações.
Respiro fundo, bebo mais um gole do uísque e caminho de
um lado para o outro na cozinha. Me sinto uma adolescente, embora
nunca tenha chegado perto de sentir algo parecido com isso em
minha adolescência. E em nenhum outro momento da minha vida.
É a primeira vez que sinto qualquer coisa por alguém.
A porta é aberta e viro a cabeça imediatamente. O barulho do
salto-alto batendo contra o piso laminado é familiar e me faz morder
o lábio em expectativa.
Quando sua silhueta aparece no arco da cozinha, tenho que
apertar o copo entre os dedos para não correr até ela e devorá-la
por inteiro. A filha da puta é tão magnífica que me arrepia dos pés à
cabeça.
Sem dizer nada, Lyanna tira o cardigan bege e pendura na
cadeira. Senta-se, dobrando uma perna em cima da outra, e a saia
vermelha escorrega um pouco. Seu corset preto tem alças finas e
um decote que realça os seios. Há um minúsculo pedaço de renda
vermelha aparecendo na lateral, do que presumo ser seu sutiã.
— Meus olhos ficam aqui em cima — reclama, e limpo a
garganta antes de subir o olhar até o dela. — Precisa parar de me
encarar desse jeito.
Arrasto uma cadeira para me sentar à sua frente, abro a
tampa da garrafa, apanho o copo extra que peguei e derramo o
uísque nele. Empurro-o em sua direção e Lyanna toma um longo
gole depressa, instigando minha curiosidade.
— Parece nervosa, Bellini.
Ela coloca o copo de volta à mesa com força, provocando um
som alto. Cerro as pálpebras quando ela respira fundo e cruza os
braços.
— Não quero mais te ver.
Meu semblante fecha no mesmo segundo.
— Por quê?
— Porque não é certo?! — é retórica, levantando as
sobrancelhas em sinal de obviedade. — Acho que… que é melhor
pararmos com isso. Já provei que consigo ganhar de você, então…
— Não estamos fazendo nada de errado — corto, e poderia
rir da minha própria piada.
É errado em diversos níveis, mas não me importo com
nenhum deles.
— Está brincando, né? Sabe muito bem que é errado pra
caralho. Nossas máfias são inimigas há séculos, nós somos
inimigas e…
— Foda-se, Lyanna — rosno, franzindo o cenho em
incômodo. — Não vou parar de te ver.
É a primeira vez que falo seu nome. Até então, a chamava
apenas por apelidos e sobrenome. A constatação parece chegar
para ela também, que deixa transparecer uma fagulha de surpresa.
— Você mal me conhece — retruca, cruzando os braços. —
Não entendo por que está fazendo tudo isso. Não entendo porque
me quer por perto. Não faz o menor sentido! Esse… negócio entre a
gente é errado e confuso pra caralho.
Conheço cada maldito detalhe sobre você, sinto vontade de
dizer.
— Não existe um “negócio” entre a gente. Só estamos
jogando — é o que digo.
Ela ri baixo, cheia de sarcasmo, e balança a cabeça em
negação.
— Não existe um negócio entre a gente e, mesmo assim,
você me come com os olhos toda vez que me vê. Me desenhou em
umas trinta telas e pintou uma parede com a cor do meu batom!
Como pode dizer que não existe nada?
— É unilateral, Bellini. — Sinto um aperto no peito ao admitir
em voz alta. — Nunca neguei que sou fascinada por você e tudo
que te envolve. Só que não é recíproco. Se há alguém fazendo algo
de errado aqui, sou eu. Não você. Você mal consegue olhar na
minha cara sem querer vomitar.
Ela fecha a boca e o semblante cai. Parece que foi pega de
surpresa pelas minhas palavras e, para ser sincera, também fui.
Não tinha intenção de dizer em alto e bom tom o quanto sou
patética por nutrir um sentimento pela mulher que cresceu ouvindo o
quão desprezível eu sou e passou a acreditar nisso.
Percebo que Lyanna não sabe o que dizer. Abre e fecha a
boca algumas vezes e nada sai. Engulo o nó na garganta e tiro o
maço do bolso, acendendo um cigarro em seguida. Trago e solto a
fumaça sob um escrutínio atento.
Não deveria me incomodar tanto com o que ela disse.
Inferno, me incomodo pra cacete. Achei que estivéssemos nos
aproximando no último mês, trocando alguns sorrisos e olhares.
— Não entendo — corta o silêncio com um sussurro. Ergo os
olhos até os dela, encontrando sua expressão séria. — Tenho
certeza de que tudo isso é parte de um plano arquitetado pelo seu
chefe para tirar informações de mim, mas, por alguma razão, bem lá
no fundo, acho que existe outro motivo. Só continuo vindo aqui
porque adoro a sensação de ganhar de você, a rainha das cartas.
Mesmo assim, sei que não devo.
Inspiro e expiro uma grande quantidade de ar. Tenho que me
controlar para não confessar o quanto quero arrancar todo aquele
ódio dela com toques, beijos e sexo. Quero devorar essa mulher até
transformar a rivalidade em desejo e obsessão.
Porém, não sou um capacho. Não vou me humilhar.
— Se eu quisesse informações, garanto que não precisaria
de você para consegui-las — digo, tragando o cigarro. Ela revira os
olhos. — Sei que me odeia e se quer tanto assim ir embora, vá. Não
sei se alguma coisa que eu disser vai tirar essa ideia estúpida da
sua cabeça. Acha que eu estaria aqui te ensinando as minhas
táticas de jogo se só quisesse informações, Bellini? Acha que eu já
fiz isso com qualquer outra pessoa?
— Essa é a questão. Não acho, só que não faz sentido.
— Não faz sentido porque você não quer que faça — rebato,
bebendo o uísque. — Eu não perderia o meu tempo se não
quisesse tanto você.
Ela endurece a mandíbula e respira fundo. O peito sobe e
desce devagar e minha atenção recai sobre seu decote. Umedeço
os lábios ao observar seus peitos.
— Não seja ridícula. Você não me quer.
Solto um riso sarcástico e volto a fitá-la.
Foda-se. Não aguento mais esconder o quanto a desejo. Não
consigo parar de pensar em tê-la nos meus lençóis e se não
verbalizar esse sentimento logo, sinto que vou explodir. Não contei
nada disso para Jayden e Yuna, pois quero que seja algo nosso. Um
segredo nosso.
Mas não aguento mais. Preciso tirá-la do meu sistema de um
jeito ou de outro.
— Te quero pra caralho, Lyanna, mais do que já quis
qualquer outra coisa na minha vida. Quero rasgar suas malditas
saias que me deixam louca. Quero esmagar esse ódio filho da puta
que você sente por mim até não restar nada além de tesão aí
dentro. Quero que você implore por um beijo meu tanto quanto
estou disposta a implorar por um seu. Quero te comer inteira, cada
centímetro do seu corpo, até você esquecer do quão insana essa
merda toda é.
Ela fica imóvel. Calada. Talvez não esteja sequer respirando.
— Mas, se não quer acreditar — continuo —, paramos por
aqui. Vou embora e te deixarei em paz.
Me levanto e seus olhos me acompanham. Lyanna está
petrificada, o rosto pálido e a respiração ofegante, encarando-me
como se eu fosse um fantasma. Não tenho ideia do que se passa
em sua cabeça nesse exato momento e isso me corrói. Gosto da
facilidade que tenho para lê-la e detesto quando ela se torna uma
incógnita.
Sei que o papo de “é errado” só começou porque se sente
culpada. Ela está gostando dos nossos encontros e de como eles a
fazem sentir, porém, não quer admitir. Não quer aceitar.
Lyanna já ganhou algumas partidas desde que começamos.
Seu ego já foi curado há algumas semanas e, mesmo assim,
continua voltando. Se não gostasse, teria parado de aparecer após
a primeira partida em que me derrotou.
Eu deveria ser a racional dessa história. Sempre fui. Ela, por
outro lado, sempre foi conhecida por ser o equilíbrio entre a
crueldade da máfia e o lado emotivo e sensível de um ser humano.
Agora, parece que os papéis se inverteram e Lyanna é a mais
racional daqui.
Porque pela primeira vez, estou deixando a emoção dizer
mais alto. Estou jogando toda a racionalidade no lixo ao confessar o
quanto desejo minha inimiga.
— Até mais, Bellini.
Atravesso a mesa e saio da cozinha. Não escuto seus passos
atrás de mim. Com um bolo na garganta e o sangue fervendo, passo
pela entrada da casa e bato a porta. Quando subo em minha moto e
dou partida, espero alguns segundos.
Ela não vem atrás de mim.
Então, arranco pneus e dirijo para longe, prometendo a mim
mesma que, apesar de tudo, não vou continuar me humilhando para
conquistá-la.
 

 
Dois meses se passam desde que meus encontros com
Lyanna pararam. Depois daquele dia, voltei à casa para saber se ela
apareceria.
Não apareceu.
Também não apareceu em nenhum dos dias seguintes. Em
todos eles, eu a esperei. Disse que não me humilharia, mas lá
estava eu, descontando a frustração no uísque enquanto aguardava
pela mulher que me despreza, no lugar que comprei para nos
encontrarmos sem perigo.
— Pensei que não viria, Alessia — Giorgio fala quando me
aproximo da mesa na qual ele e outros homens estão jogando.
O cassino do Fortuna está lotado hoje. Diversos clientes
estão jogando enquanto outros assistem ao show das strippers no
ambiente ao lado. Nos últimos dois meses, me afundei ainda mais
nas cartas em uma tentativa falha de esquecer Lyanna Bellini.
Na nossa primeira partida, provoquei-a dizendo que ela era
uma verdadeira Dama de Espadas. Desde então, a maldita carta me
persegue e não me deixa esquecê-la. É completamente inútil tentar
fugir recorrendo ao baralho, porque ele me lembra ela.
— Quando é que recusei uma partida, Giorgio? — Arrasto
uma cadeira e me sento entre ele e Mario. Acendo um cigarro e
observo a mesa. — Que porcaria de rodada. Estão perto de acabar?
— Começamos há pouco tempo. Terá que esperar, querida.
Bufo baixinho, descontente. Sinto duas mãos deslizando
pelos meus ombros e avisto unhas decoradas escorregando pela
minha camiseta preta.
Abro um sorriso de canto, levanto a cabeça e encontro as íris
castanhas.
— Não sabia que você estaria aqui — digo. — Veio com Jay?
Yuna assente e aponta com o queixo em direção ao bar.
— Você está bem? — minha amiga pergunta, estudando meu
rosto.
Ela e Jayden perceberam a mudança no meu
comportamento. Além dos jogos, também descontei tudo no
trabalho. Me afastei um pouco deles, já que estava focada demais
em ocupar o meu tempo e minha cabeça com torturas, assassinatos
e sangue. Honrei o título de Executora me dado há alguns meses,
depois que o antigo morreu. Eu já tinha esse cargo antes, mesmo
não oficialmente, já que matava mais pessoas do que o estúpido
anterior a mim.
— Ótima — minto. — E você?
Em vez de responder, Yuna se senta no meu colo. Arqueio as
sobrancelhas, surpresa, e ela abraça meu pescoço. Deixa o rosto a
poucos centímetros do meu e logo percebo o motivo: Está com as
pupilas dilatadas.
— Faz anos que não transamos — sussurra. — Deveríamos
relembrar os velhos tempos.
— Você está drogada. — Lanço-a um olhar reprovador.
— Alessia, uso drogas há anos. Sei muito bem quais são os
meus limites.
— Se soubesse, não estaria pedindo para transar comigo.
Yuna abre a boca para refutar, mas seus olhos deslizam até
um ponto na diagonal. A ponta das sobrancelhas franze e as
pálpebras finas cerram. Diante da repentina curiosidade,
acompanho seu olhar.
Meu corpo congela. Os pulmões esvaziam e quase deixo um
grunhido escapar.
O tom único de castanho transborda irritação. Sua expressão
está fechada e furiosa, os olhos nos fuzilando sem a menor
discrição.
— Quem é essa nos matando com o olhar? — Yamazaki
sussurra em meu ouvido.
Apesar do disfarce, eu a reconheceria em qualquer lugar, em
qualquer circunstância. O vestido preto de mangas longas e gola
alta esconde suas tatuagens, assim como as luvas de renda floral. A
peruca ruiva parece real e, de modo geral, ela não está
reconhecível. Não para alguém que não presta muita atenção nela.
Além do mais, ninguém espera que a filha do chefe da máfia
rival esteja no nosso maior e mais importante cassino.
Sentada na porra do colo de um cliente.
Disfarço a raiva e me viro para minha amiga. Com um sorriso
de lado, peço:
— Preciso trocar algumas palavras com Giorgio. Pode pegar
um copo de uísque para mim?
— Não sou sua empregada, muito menos sua puta. — Reviro
os olhos e ela ri baixo. — Mas, sim, posso pegar.
Ela se levanta e se afasta. Mordo o interior da bochecha,
respiro tão fundo quanto possível e volto a encará-la.
A mão imunda de Timothé está repousada na cintura dela
enquanto Lyanna mantém os olhos fixos em mim. Tenho vontade de
sacar a arma e atirar bem no meio da testa do desgraçado.
Preciso ser discreta, no entanto.
— Giorgio — chamo, e meu tio vira a cabeça para mim. Dois
dos cinco homens estão conversando, incluindo o filho da puta que
a tem no colo. — Está desacompanhado hoje? Onde está aquela
loira da última vez?
Ele estala a língua e meneia a cabeça.
— Não repito figurinhas, sobrinha. Estou sozinho hoje, mas
não por muito tempo. Depois dessa partida, vou em busca de uma
boa stripper ali do lado.
— Acho que vou te acompanhar — digo, com um sorriso
perverso de lado. — A noite está bonita demais para ficarmos
sozinhos, tio.
— É mesmo — Mario concorda, fazendo sua jogada. — Vou
me juntar a vocês dois. Não é justo que só nós três estejamos sem
uma mulher ao lado.
Somos os únicos, de fato. Os outros exibem uma silhueta
feminina no colo, o que, de certa forma, acho repugnante. Como se
fossem troféus ou alguma merda do tipo.
Por que caralho Lyanna está entre elas?
— Quem é a da vez, Timothé? — indago, tomando cuidando
para não soar suspeita.
— Essa? — responde, sorrindo de maneira nojenta. Fecho a
mão em punho embaixo da mesa, controlando-me para não rasgar
sua cara de fora a fora. — É uma gostosa que se jogou em mim no
restaurante do resort.
Cerro a mandíbula, forçando um sorriso. Por fora, pareço
conivente à palhaçada. Por dentro, reprimo o desejo selvagem de
parti-lo ao meio por relar um dedo nela.
— É mesmo gostosa — provoco, olhando-a. Lyanna engole
em seco e tenho certeza de que está se segurando para não me
mandar à merda. — Se importa de dividir, Timothé?
Ele arqueia as sobrancelhas, um vislumbre de satisfação
atravessando seu semblante. Conheço o idiota há alguns anos e sei
que é asqueroso. Por isso, não duvido que aceite dividir a mulher
como se fosse um pedaço de carne.
— Só se eu puder assistir — responde, arrancando risos dos
demais. Trago o cigarro, mirando-o enquanto solto a fumaça. —
Seria uma delícia.
— Com quem você pensa que está falando? — Perante meu
tom reprovador, seu sorriso morre vagarosamente. — Se repetir
essa merda para mim, vai se arrepender de ter aprendido a falar.
A mesa cai num silêncio mórbido.
Posso estar tentando tirar Lyanna daqui sem provocar
nenhuma confusão, mas não vou permitir que esse porco fale o que
bem entender.
— Vai me dizer que… — ele começa e o corto.
— Vou te dizer uma coisa, sim. — Me levanto, dou a volta e
puxo Lyanna para cima, arrancando-a do seu colo. — Se voltar a
falar qualquer merda nojenta, vai ser proibido de pisar em Las
Vegas pelo resto da sua vida. Se tiver a sorte de continuar vivo.
Giro os calcanhares e me afasto em passos furiosos,
arrastando-a comigo. Ela não protesta. Não é tola. Atravessamos
alguns halls, nos levo até o elevador que dá acesso aos quartos e
as portas se fecham.
Silêncio.
Respiro fundo e alto, deixando claro que estou possessa de
raiva. Espero que Lyanna tenha uma ótima explicação para estar
aqui, na mina de ouro da organização inimiga, onde qualquer um
que a reconhecesse a levaria direto para Dante. Direto para o
subsolo, nas celas onde eu seria obrigada a torturá-la.
Chegamos à cobertura, coloco minha mão no painel de
reconhecimento do elevador e ele se abre. Agarro seu pulso e nos
levo à porta, que é aberta com minha digital. Entramos e a tranco.
Acendo a luz e me viro depressa. Prenso-a contra a madeira,
colocando as mãos em cada lado de sua cabeça. Seu queixo é
erguido para sustentar o contato visual, tão ardente que sinto o
corpo queimando.
Estar tão próxima dela depois de dois meses é atordoante.
Cada partícula do meu corpo queima em expectativa e desejo.
Quero rasgar esse vestido e enfiá-lo na goela de Timothé para que
ele morra sufocado.
— O que diabos você está fazendo aqui? — questiono em
um sussurro.
Involuntariamente, aproximo o rosto do seu. Sua boca, como
sempre pintada de vermelho escarlate, é tão convidativa que dói.
Meu peito dói.
— Odeio você, porra! — chia, empurrando-me pelo peito.
Não me movo. — Está fodendo com a sua amiga?
Levanto as sobrancelhas, surpresa. Levo alguns segundos
para digerir a pergunta.
Lyanna está… com ciúmes?
Porra, ela está com ciúmes. De mim.
Estou alucinando, movida pela necessidade de tê-la
demonstrando qualquer coisa diferente de ódio, ou é realmente
ciúmes?
É impossível reprimir o sorriso. A raiva é substituída por
felicidade; satisfação.
Porque Lyanna está com ciúmes de mim.
— Ciúmes? — provoco, recebendo outro empurrão. Ela
grunhe alto, soando frustrada e irritada. — Está com ciúmes,
principessa?
Ah, esse apelido. Ele a define tão bem.
Nunca o falei antes, porém, ao ver o efeito que teve sobre ela
— a respiração falhando, bochechas ruborizadas e olhos
arregalados —, decido que vou usá-lo mais vezes.
— Não seja ridícula — quase cospe as palavras. — Só acho
engraçado que você disse todas aquelas coisas para mim e agora
está fodendo sua amiga. Parece que a vontade de me comer
passou rápido, hein?
— Rápido? — desdenho. — Dois meses é rápido para você?
— Pelo jeito que falava, parecia que… — a frase morre em
sua garganta.
— Parecia o quê, Lyanna? — desafio-a. — Parecia que sou
louca por você há meses e que entraria num celibato te esperando?
E por que isso importa, já que você deixou claro que não queria me
ver novamente?
Ela não sabe o que dizer. Apesar de estar satisfeita em vê-la
e estar tão próxima dela, detesto a hipocrisia e a confusão que sua
atitude e suas palavras carregam. Todo aquele papo de ser errado
serviu para quê, se ela pretendia aparecer na porra do nosso
cassino e demonstrar ciúmes de mim?
— O que está fazendo aqui? — insisto. — E não quero
nenhuma desculpinha.
— Odeio você — é o que ela responde, engolindo em seco.
Desvia o olhar, como se não conseguisse me encarar. — Odeio
você por estar fazendo isso comigo. Não é justo! É uma merda e
não sei mais o que fazer!
— Não estou fazendo nada com você. Não te vejo há dois
meses, Bellini.
Sua cabeça meneia em negação e a mão escorrega pelo
rosto em um gesto nervoso. Um suspiro pesado lhe escapa e fico
preocupada. Lyanna parece genuinamente desesperada.
— O que está acontecendo? — pergunto, em um tom mais
condolente. — Por que veio até aqui? Por que parece tão
desesperada?
— Porque estou desesperada! — Volta a me fitar, os olhos
tão atormentados que me provocam um calafrio. — Estou
desesperada porque não consigo parar de pensar em você, porra!
Não consegui te tirar da minha cabeça em dois malditos meses! Me
diga, por que está fazendo isso comigo? Acha que é justo, Alessia?
Você é minha inimiga e eu deveria te odiar, não te querer por perto!
Não faço ideia do por que vim até aqui, só queria te ver e descobrir
se… Meu Deus, não sei porque estou aqui. Estou enlouquecendo e
a culpa é sua!
Tenho certeza de que paro de respirar. Meu coração congela.
Meu corpo enrijece por inteiro.
Devo estar alucinando. É a única explicação. Alucinei todas
essas palavras saindo de sua boca, pois são tudo que ansiei para
ouvir por muito tempo. Não é possível que elas tenham sido
realmente ditas.
— O quê? — indago, quase inaudível. Estou paralisada,
torcendo para que não seja tudo uma ilusão da minha mente.
— Você sabe muito bem do que estou falando! — vocifera,
apontando o dedo para o meu peito. — Era isso que queria, não
era? Me deixar louca? Parabéns, conseguiu. Estou completamente
louca!
— Lyanna… — Puxo o ar, o coração acelerado e a respiração
ofegante. Porra, não é possível que ela esteja falando sério. — Não
estou te entendendo.
— Estou sendo bem clara, Alessia. Depois que paramos de
nos ver, comecei a ficar doente. Não conseguia parar de pensar em
você, nas nossas partidas e naquela maldita casa que gostei tanto.
Estou perdendo a cabeça porque nada disso faz sentido e não
deveria existir. Nós duas não deveríamos sentir nada uma pela
outra. Tentei fazer essa coisa sumir, mas… Dio mio, é assim que
você conquista as mulheres? Ensinando a como trapacear no
pôquer? Não acredito que caí nessa porcaria!
Sorrio, incapaz de controlar o prazer que sobe pelas minhas
entranhas ao ouvi-la confessando tudo isso. Meu peito parece
prestes a explodir. Estou tão feliz que nada mais importa no
momento, apenas vê-la desnorteada por minha causa.
— Conquistei você, então? — questiono, resvalando o nariz
pelo seu. Lyanna grunhe e tenta me empurrar mais uma vez, sem
sucesso. — Porra, principessa, se estiver brincando com a minha
cara…
— Acredite, queria estar. Queria que tudo fosse uma
brincadeira. — Suspira, encarando minha clavícula exposta pelos
botões abertos da camiseta. — É sério, Alessia, estou
enlouquecendo. Não sei porque você está fazendo isso comigo, não
é justo. Eu nunca pensei que…
— Lyanna — interrompo. — Tudo que fizemos foi jogar, beber
e conversar. Foi você quem veio com o papo de “é errado” de
repente, sem nenhuma explicação, mesmo que nunca tenhamos
nos tocado. Respeitei sua decisão de se afastar e me mantive
longe. Não estou fazendo nada com você, ainda que eu queira fazer
muita coisa.
— Não faz sentido — sussurra, mais para si mesma do que
para mim, balançando a cabeça. — Não faz sentido te querer por
perto. Você é a pessoa mais desprezível que eu conheço, além de
ser do alto escalão dessa máfia nojenta.
Reviro os olhos.
— Obrigada pelos elogios.
— Você sabe que é verdade — contrapõe, olhando-me. —
Sabe que faz coisas horríveis e tem uma reputação asquerosa. Não
tente bancar a boazinha para cima de mim, Alessia.
— Nunca tentaria, porque não quero que pense que sou. —
Aproximo a boca da dela e Lyanna fecha os olhos em reflexo.
Caralho, eu poderia morrer bem aqui, com essa visão. — Quero que
se lembre todos os dias do quão ruim eu sou, Lyanna, e de que
mesmo assim você me quer. Quero que se lembre de que não sou
uma heroína ou a mocinha da história, e de que não tenho a menor
intenção de ser. Estar perto de mim é perigoso e quase um suicídio,
mas, mesmo assim, você me quer.
Levo a mão até seu pescoço, apertando apenas o suficiente
para ouvi-la ofegar. Repouso a outra em sua cintura, deleitando-me
com sua vulnerabilidade. Está entregue para mim como sempre
sonhei.
— Você não quer a heroína que te sacrificaria por um bem
maior, não é? — sussurro, deslizando os lábios nos dela. — Você
quer a vilã que queimaria o mundo inteiro por você.
Ela arqueia a coluna, esfregando os peitos nos meus.
Umedeço a boca, me segurando para não lamber a sua.
— Eu sou essa vilã, amor. — Planto um beijo no canto do seu
lábio inferior e a sinto estremecer. — Sou a vilã que queimaria a
porra do mundo inteiro por você.
Ela se inclina, encostando a boca na minha para começar um
beijo desesperado.
Então, solto-a e me afasto.
Seus olhos abrem de imediato, encarando-me em confusão.
Quando vê o sorriso diabólico no meu rosto, o cenho franze em
raiva.
— Mas não sou idiota e não tenho tempo para joguinhos. Não
vou te ter até que admita o que quer. Quando aceitar a loucura entre
nós, sabe onde me encontrar.
Estico o braço, giro a maçaneta e ela cambaleia para o lado,
dando-me espaço para sair do quarto.
 

“Você só vai ficar aí parado me assistindo queimar?


Mas tudo bem, porque gosto do jeito que dói
Você só vai ficar aí parado me ouvindo chorar?
Mas tudo bem, porque eu amo o jeito que você mente”
Love The Way You Lie | Eminem feat. Rihanna
 

 
Não dormi essa noite. Depois que Alessia me levou de volta
ao lugar onde deixei meu carro, fui direto à sede de treinamentos da
Timoria. Cheguei à uma da manhã e saí às oito, quando algumas
pessoas chegaram para ir à academia. Eu não queria conversar
com ninguém, tampouco explicar o motivo dos meus olhos inchados
e vermelhos.
Porém, foi impossível continuar fugindo de Sophie Wilson
depois do almoço. Minha melhor amiga sentiu que havia algo de
errado comigo e insistiu para me ver, mesmo eu garantindo que
estava tudo bem. Ela ignorou minhas mensagens e veio ao meu
apartamento, iniciando um interrogatório assim que olhou para a
minha cara.
— Você prometeu que me contaria sobre a sua relação com o
Kai — falo, tentando mudar de assunto.
A tentativa não passa despercebida por ela, que franze as
sobrancelhas e espreme as pálpebras. Estamos sentadas uma do
lado da outra no sofá e tento a todo custo desviar do seu olhar
questionador. Tenho medo de que se olhá-la por muito tempo, posso
acabar colocando tudo para fora e revelando o que Alessia me
contou.
Não quero envolver Soph e Kai nisso ainda, não antes de ter
certeza do que está acontecendo.
— Não mude de assunto — responde, cruzando os braços.
— O que está acontecendo, Lyanna?
— Sophie, por favor — resmungo, jogando a cabeça para
trás. — Apenas me conte sobre você e Kai.
— Sei que você está escondendo alguma coisa de mim, mas
vou respeitar a sua vontade de não falar agora. — Agradeço
mentalmente a compreensão. — Sobre mim e Kai… Não sei muito
bem o que está acontecendo. A gente começou a ficar há um mês.
Arregalo os olhos, endireito a coluna e abro a boca.
— Um mês?! — vocifero. — Quando, como e onde?
— Naquele dia que te chamamos para beber e fumar lá em
casa, mas você tinha uma reunião com o seu pai. Acabei ficando até
tarde com ele, então… — Dá de ombros. — Só rolou. Depois,
sempre que rolava um clima, a gente se pegava.
— É só isso? — Arqueio as sobrancelhas. — Porque no
jantar do Donovan parecia muito mais do que isso, Sophie.
— Ah… — Seus ombros caem, assim como o olhar. — Às
vezes, parece que ele sente algo a mais, mas continua dizendo que
é só amizade. Não consigo entender.
— Ele tem ciúmes do Damon — afirmo. — Até um bebê
conseguiria perceber no jantar. Kai estava puto e nem tentou
esconder.
— Pois é! Ele tem e se recusa a admitir. Não consigo
entender, Ly.
— E você? Tem sentimentos a mais por ele?
Soph suspira e joga a cabeça no encosto do sofá, encarando
o teto.
— Acho que sim. Pensando bem, acho que sempre tive… Só
não queria aceitar.
— Por que nunca me contou isso?
— Eu não queria admitir nem para mim mesma, quem diria
para você. Kai sempre aparecia com uma mulher diferente por mês,
então eu pisei em qualquer sentimento que pudesse crescer dentro
de mim. Não queria me magoar e sabia que sendo quem nós
somos, acabaria acontecendo.
— Não tem como saber disso, Sophie.
Ela abre um sorriso amarelo de lado.
— O amor não vence a máfia, Lyanna. O poder e o crime
sempre virão primeiro.
— Não é…
— Amiga, você sabe que é verdade. — Seu rosto se vira para
o meu, os olhos esverdeados brilhando em amargura. — Mais do
que ninguém, você sabe.
— É diferente, Sophie. — Engulo o nó na garganta. — Kai
não é Alessia. Ele pode ter uma posição alta na organização, mas
não acho que ele faria com você o que ela fez comigo. Tenho
certeza, na verdade.
— Se um dia ele precisasse escolher, acha mesmo que
escolheria a mim?
— Por que ele precisaria escolher? Soph, pare de fazer
comparações com meu antigo relacionamento. Só o fato de vocês
serem da mesma máfia já muda tudo, nada é semelhante e com
certeza não teria o mesmo final. Você sabe que ele não chega nem
perto de ser como Alessia e nunca faria algo para te machucar.
Ela solta uma lufada e assente. Parece travar uma batalha
mental consigo mesma, um dilema entre o medo de amar na
realidade suja em que vivemos e o desejo de viver tudo que seus
sentimentos pedem.
— Mesmo assim… Seu pai não aprovaria. Ele veria como
uma distração.
— Meu pai não tem que aceitar nada — digo, arisca. Só a
menção dele já faz meus pêlos arrepiarem com um calafrio.
— Claro que tem! Ele é meu don, Lyanna.
— Mas não é o seu dono. Você pode namorar quem quiser,
isso não muda nada na sua vida profissional.
Eu gostaria que isso se aplicasse a mim também. Gostaria
que eu fosse apenas uma soldada e não sua filha.
— Vocês ainda estão brigados, né? — indaga, torcendo os
lábios. — Eu não sabia se você queria conversar sobre isso, daí não
mencionei nada…
— Não é como se fosse a primeira vez. — Dou de ombros,
fingindo despretensão. — Mas foi a última vez. Falei para ele que se
eu não sou aceita na Timoria, vou procurar um lugar onde serei.
— O quê?! Meu Deus, Lyanna!
— Também chamei ele de idiota e sei que talvez seja falta de
respeito, já que ele é meu pai, mas não é justo que ele me
desrespeite e eu tenha que respeitá-lo. Respeito é merecido, não
dado.
Sophie se senta e coloca as duas mãos na boca.
— Puta que pariu — sopra, chocada. — Chamou um don de
idiota, Lyanna.
— Sinceramente, Sophie? Não dou a mínima se ele é meu
don. Ele vai me punir, tenho certeza, mas não me importo. Foi bom
finalmente colocar para fora o que estava guardado há anos.
— Não sei se ele puniria a própria filha.
— Puniria — confirmo. — Por mais que ele tenha sido um pai
incrível, feri o ego dele como chefe. Ele vai me punir como soldada,
não como filha.
— Vai por mim, Ly. Ele vai no máximo te suspender das
atividades por um tempo.
Por enquanto, penso.
Não consigo parar de pensar no fato de que meu maior
segredo foi exposto a desconhecidos. Tento me convencer do
contrário, mas não consigo acreditar que não é só uma questão de
tempo até ele alcançar os ouvidos do meu pai.
E, então, ele não vai só me suspender das atividades; vai me
expulsar da organização e do país. Não poderei pisar em nenhum
território pertencente à Timoria e muito menos à Vendetta, o que
soma em noventa e nove por cento dos Estados Unidos.
— Onde está o Kai? — pergunto, mudando de assunto.
— Não sei. Ele só disse que estava ocupado com um
trabalho.
Me pergunto se meu amigo está trabalhando em alguma
missão secreta. Não me esqueci da conversa que tive com meu pai,
em que ele revelou que pretendia matar Alessia até o dia de Ação
de Graças. Talvez ele esteja contando com apoio externo, o que
coloca Kai diretamente na jogada já que é ele quem cuida das
negociações.
Mas… Ele me falaria, não é? Sendo meu melhor amigo, se
soubesse de algo ou estivesse planejando assassinar a minha ex-
namorada, ele me contaria.
Espero que sim.
— Preciso ir, Ly. Tenho que resolver uns problemas. Nos
vemos mais tarde?
— Vou descansar à noite — minto. — Podemos treinar
amanhã cedo, o que acha?
— Certo! Vou avisar o Kai quando ele aparecer.
Sophie se inclina para frente e deposita um beijo em minha
testa.
— Tem certeza de que não quer conversar? — pergunta uma
última vez. — Sobre o motivo de ter me ignorado durante toda a
manhã e estar com uma cara pós-choro.
— Estou bem, não se preocupe. — Dou um tapa em sua
coxa e brinco: — Vá resolver suas merdas, Wilson.
Nos despedimos e ela vai embora. Respiro fundo e subo para
o quarto, onde me sento na cama e tiro o colar do sutiã. Nenhum
lugar parece apropriado para escondê-lo agora, já que até mesmo
no meu cofre ultra secreto ele foi encontrado.
Coloco a cobra dourada na palma da mão, observando-a de
perto. É um objeto tão simples, mas que carrega uma história suja e
proibida. Viro-a e sinto o gosto de bile na língua ao ler a frase
cravada na parte de trás.
Eu costumava dizer que Alessia era meu Clyde e eu era sua
Bonnie. Por isso, ela colocou nossas iniciais junto do nome dos dois.
Acho que ela tinha medo de que alguém ligasse os pontos e
descobrisse sobre nós, então pediu para que eu escondesse o colar.
Hesitante, ergo a corrente até o pescoço e a fecho. Me
levanto, caminho até o espelho e admiro a visão que há tantos anos
não tive. Passo um, dois, três minutos estudando meu reflexo e
tentando encontrar uma justificativa para o coração acelerado e os
olhos marejados. Correndo os dedos pelo animal pendurado, sei
que, no fundo, há uma explicação.
Eu só não quero aceitá-la.
 

 
Pensei em cancelar a investigação de hoje, pois não sei se
consigo passar horas no mesmo cômodo que Alessia sem ter mais
um colapso mental. Porém, como se lesse os meus pensamentos,
ela me enviou uma mensagem pouco tempo antes das 21h dizendo
“Não se atrase”.
Em seu idioma, significa “Não ouse cancelar”.
Então, mesmo que a contragosto, eu vim.
Giro a maçaneta e entro. A sala está iluminada apenas pelos
computadores, mas há uma luz vindo do corredor do que presumo
ser a cozinha. Inspecionando o aposento vazio, agradeço por não
dar logo de cara com ela.
O alívio não dura mais do que cinco segundos.
Sua silhueta aparece na esquina do corredor com um cigarro
em uma mão e um copo de uísque na outra. Sinto a respiração
presa quando nossos olhos se encontram, seu semblante tão sério
quanto o meu. Não é difícil notar que Alessia passou pela mesma
tormenta de não conseguir dormir nem uma hora sequer.
Minhas mãos, caídas ao lado do corpo, se fecham em punho.
Aperto os lábios e desvio a atenção para as telas dispostas na mesa
central, para onde caminho depressa. Acho que meu nervosismo
está óbvio demais, só que não consigo me importar.
Ontem à noite, depois que tive uma breve crise de choro em
nossa casa, ela tentou me fazer ficar. Cogitei não só uma, mas
diversas vezes aceitar a proposta; afinal, eu não estava em boas
condições.
No entanto, o que enxerguei nas íris esverdeadas me
apavorou. Enxerguei o rumo que aquela noite tomaria se eu
continuasse ali, tão vulnerável quanto ela, em seus braços. De todas
as possibilidades que considerei, não havia uma da qual eu não me
arrependeria no dia seguinte.
Por um instante, me esqueci de todas as coisas ruins que
aconteceram entre nós. Naquele momento tão frágil, tudo em que
eu conseguia pensar era no quanto eu costumava me sentir segura
e protegida ao lado dela, e em como gostaria de ter a mesma
sensação mais uma vez.
— Lyanna — me chama, tão baixo que não escutaria se a
sala não estivesse em completo silêncio.
Cesso os passos ao lado da cadeira e levo os olhos até os
dela. Alessia começa a se aproximar e fico cada segundo mais
nervosa, preocupada com a chance de ter suas mãos em mim e sua
boca tão próxima da minha novamente.
Dou um passo para trás e ela estagna. Minha atitude parece
enrijecer sua postura e contrair sua mandíbula.
— Não se afaste de mim — pede.
— Então não se aproxime.
Vejo-a engolindo em seco e posso jurar que minhas palavras
agiram como um soco em seu estômago. Ela traga o cigarro,
expelindo a fumaça para frente enquanto nos encaramos em
silêncio.
— Você está bem? — pergunta.
— Pare. — Solto uma lufada e continuo: — Pare de fingir que
se importa comigo, Alessia. Estou cansada das suas mentiras.
Ela entreabre a boca para refutar, mas não lhe dou tempo:
— Por favor, pare. Não estou bem e não preciso de mais
motivos para perder a cabeça.
Minha confissão sobre não estar bem parece acender uma
chama em seu olhar. Ignorando meu pedido, ela quebra a distância
entre nós e coloca o copo em cima da mesa, assim como apaga o
cigarro com o polegar e o joga no uísque.
— Pedi para…
— Fique quieta — me interrompe. Levanto as sobrancelhas,
ofendida, e estou pronta para xingá-la quando sua voz prossegue:
— Não me diga que está mal, Lyanna, porque sou capaz de
queimar toda a cidade e cortar a garganta de cada um que tirou o
sorriso do seu rosto. Você pensa que estou brincando quando falo
que vou cuidar de tudo e que ninguém vai te machucar, mas nunca
falei tão sério em toda a minha vida. Sei que… que não tivemos o
futuro que imaginávamos, mas eu… — Ela respira fundo, como se
estivesse sem fôlego e procurasse por palavras. — … Eu não vou
permitir que ninguém encoste em você. Prometo que vou matar
todos que sabem do nosso segredo. Um por um.
— Não diga essas coisas — suplico entredentes. — Pare
com isso. É sério, porra! Estou cansada de lidar com tantas mentiras
e manipulações. Não finja que se importa comigo quando me usou
por tantos anos e…
— Não te usei — diz, cortando-me.
Meu sangue borbulha e endireito os ombros, erguendo ainda
mais a cabeça para quase rosnar em sua direção:
— Você me usou como a porra de uma boneca! — esbravejo.
— Me usou por anos, arruinou minha vida e sumiu como uma
covarde! Cinco anos, Alessia, cinco anos! Passei todo esse tempo
acreditando que eu precisava de um encerramento com você,
qualquer coisa que desse um ponto final e definitivo na nossa
história. Mas, sabe de uma coisa? Só preciso superar e seguir a
minha vida de uma vez por todas. Não aguento mais me perguntar o
motivo de você ter feito aquilo comigo, não aguento!
Quando acabo de falar, estou ofegante e trêmula. Sinto o
corpo quente e as bochechas ruborizadas, tanto pelo nervosismo
quanto pela raiva. Sinto tanta, tanta raiva que minha mente
escurece e é consumida pela névoa.
— E agora o nosso relacionamento foi exposto a pessoas
que sequer sei quem são, porque você se recusa a explicar! Você
pensa sobre as consequências disso para mim, Alessia? — Rio
baixo e nasalado, sarcástica. — As coisas seriam bem mais fáceis
para você. Afinal, esteve em algum lugar nesses cinco anos, não é?
E aposto que conheceu muitas pessoas. Então, teria um lugar para
ir e pessoas ao seu lado. Eu…
Balanço a cabeça de um lado para o outro, sentindo o peito
apertado apenas com o pensamento de ter esse cenário como um
futuro não tão distante.
— Se por algum milagre eu não fosse morta, seria expulsa da
máfia e do país. Meus amigos seriam proibidos de me seguir, então
eu estaria sozinha. Conheço pessoas na Itália, mas no minuto em
que pisasse lá, a Cosa Nostra me caçaria. Me diga, acha que eu
acabaria onde?
— Você não… — Levanto a mão, calando-a.
— Nenhuma máfia me aceitaria, então eu acabaria
trabalhando para alguma gangue de merda em um lugar bem longe
daqui, onde ninguém saberia quem eu sou. Acha que as pessoas de
outro lugar me tratariam da mesma forma que sou tratada aqui? Eu
mataria o primeiro infeliz que tentasse me tocar e se não fosse
expulsa, seria morta. Não há nenhum cenário em que minha vida
não se torne completamente miserável.
Seu semblante está caído e transbordando incômodo. Há
inúmeros sentimentos explícitos em seu rosto desde o episódio de
ontem, ainda mais no olhar. É algo novo e perturbador, pois me dá a
ilusão de que ela está realmente sofrendo com tudo isso.
— Já pensou sobre isso, Alessia? Ou está ocupada demais
guardando segredos que não afetam só a sua vida, mas você é
egoísta demais para compartilhar?
Ela engole em seco e meneia a cabeça em negação.
— Você nunca ficaria sozinha — sussurra. — Eu te seguiria
para onde quer que fosse, Lyanna.
Solto um riso sarcástico.
— Você desistiria da máfia por mim?
— Eu criaria uma máfia para você.
Tenho certeza de que meu coração para de bater. Demoro
alguns segundos para digerir o que acabei de ouvir, mas nem
mesmo algumas horas seriam o suficiente.
Eu criaria uma máfia para você.
O significado dessa frase é tão forte que me faz estremecer
dos pés à cabeça. Agarro a borda da mesa com força para me
manter em pé e solto uma longa lufada de ar.
— Eu criaria a porra de um exército para você — acrescenta,
dando um passo adiante e colando o corpo ao meu. — O que você
não entende, principessa, é que eu faria qualquer coisa por você.
Qualquer. Uma.
— Qualquer coisa?
Ela assente depressa. Meu coração parece sair pela boca
quando as palavras, há anos entaladas, são colocadas para fora:
— Então me diga a verdade. Por que matou minha mãe?
De imediato, Alessia recua. Seus passos a levam para longe,
a expressão se transforma numa carranca e a mudança em seu
olhar é tão drástica que me dá calafrios.
— Não matei sua mãe — diz, rouco e baixo.
— Admito ouvir qualquer merda sua, menos essa. Me
responda, por que fez isso comigo?
— Não matei sua mãe.
— Pare de mentir! — ralho, praguejando por sentir uma
lágrima escorrer. — Estou cansada de não ter respostas! Valeu a
pena me usar por tantos anos apenas para matá-la, Alessia? Valeu
todo o esforço de fingir que me amava?
— Não. Matei. Sua. Mãe.
De esguelha, vejo suas mãos se fechando em punho.
— Acho que me enganei, então. Devo ter enterrado a pessoa
errada — ironizo, limpando as lágrimas com raiva.
— Pare, Lyanna! — vocifera de volta, a veia do pescoço
saltando. — Pare de me acusar, porra!
— Te acusar? — Rio alto. — Só estou dizendo o que
aconteceu e o que é realidade, já que você sumiu e não se
preocupou em explicar. Nem uma maldita mensagem! Não finja que
sou a errada da história quando foi você que arruinou tudo.
Alessia balança a cabeça em frenesi e cobre o rosto com as
duas mãos. Ouço-a sussurrar, mas não consigo entender o quê.
Quando volta a me fitar, seus olhos estão vazios e opacos.
— Preciso fazer uma ligação.
Então, ela sobe as escadas e some no segundo andar.
Pela meia hora seguinte, desfruto da companhia de um bom
uísque e  sinto  o sabor amargo das lágrimas.
 

“Eu fui destinada para matar


E eu tentei consertar um coração
Com esses lábios que deixaram algumas cicatrizes”
Aimed to Kill | Jade LeMac
 

 
Meus golpes são fortes e ágeis, fazendo com que o saco de
pancadas balance de um lado para o outro conforme desfiro socos e
chutes. Estou há muito tempo acostumada com isso, então não fico
ofegante ou cansada. No entanto, estou tão furiosa que minha
respiração é audível a metros de distância, o suor escorre pelo
corpo inteiro e sequer estou usando as técnicas recomendadas de
luta.
Minha visão começou a escurecer alguns minutos atrás. Sinto
que estou prestes a desmaiar de exaustão, algo que nunca
aconteceu antes. Conheço meus limites e nunca estive perto de
alcançá-los, porém, agora, já os ultrapassei.
Cesso os golpes, seguro o saco de boxe e encosto a testa no
couro sintético. Com os olhos fechados e o coração acelerado, tento
me acalmar. Se não conseguir, temo que farei alguma coisa que vai
foder com todo o meu plano.
Caminho até um dos bancos da academia, me jogo e tomo
um longo gole d’água. Acabo com mais da metade da garrafa e
passo a mão, coberta por bandagem, na testa suada. Sinto uma
ardência na região da cicatriz, algo comum quando treino tão
intensamente.
Quando ela começa a doer, arder ou coçar, é um sinal de que
preciso de uma pausa.
Apanho meu celular da mochila e vejo algumas mensagens
de Sienna na tela.
Barbie: onde vc tá, ale? jay me disse que vc tá um pouco
mal.
Maldito fofoqueiro.
Barbie: quer fazer alguma coisa em casa hj? prometo que
não vou te obrigar a assistir gossip girl
Barbie: pode chamar jay e yuna tbm…
Semicerro as pálpebras. Por alguma razão, sinto a
desconfiança crescer no peito. Não tenho tempo para refletir, pois
três batidas na porta atraem minha atenção.
— Entre — digo, embora não esteja a fim de ver ninguém.
Um soldado adentra a academia e faz uma curta reverência.
Acho um tanto quanto ultrapassado, mas relevo.
— Perdão pela interrupção, chefe. Srta. Yamazaki pediu para
vê-la e disse que é urgente.
— Deixe-a entrar.
Ele anui e fecha a porta novamente. Estou em uma das
academias da parte do resort do Fortuna, a menos utilizada pelos
clientes. Ordenei que limpassem minha agenda pela parte da
manhã para que eu conseguisse colocar a cabeça no lugar antes de
voltar ao trabalho, porque se qualquer bastardo testasse minha
paciência logo cedo, acabaria com mais um nome na minha lista
enorme de assassinatos.
Yuna aparece no meu campo de visão com um semblante
nada amigável. Calada, ela se senta ao meu lado e apoia um dos
pés no banco, repousando o cotovelo no joelho.
— Você vai estragar a minha manhã, não é? — pergunto
entre respirações ofegantes, olhando-a de canto.
Como se minha manhã, meu dia e a porra do meu ano já não
estivessem arruinados, penso.
— Assim como a minha foi estragada — confirma. — Mas
antes, o que diabos aconteceu com você? Parece que vai desmaiar
a qualquer segundo.
Apanho uma toalha e passo na clavícula, seguindo para o
pescoço e o rosto.
— Fale qual é a merda da vez — ignoro sua pergunta e ela
não parece surpresa com isso.
— É sobre nossa heroína.
Redobro minha atenção em suas palavras. Na última reunião
que tivemos, discutimos a estranha queda no nosso lucro com
heroína, uma das drogas que mais comercializamos. Yuna disse
que revisaria alguns documentos para tentar entender qual é o
problema e me traria informações.
— Como te disse, fui revisar a papelada referente à produção
e venda de heroína. Demorou um tempo para que eu percebesse,
porque começou com uma mudança pequena e quase
imperceptível, mas então notei que o prejuízo só aumentava ao
longo dos meses, mesmo que não tivéssemos aumentado a
produção. A partir do meio do último mês, produzimos três vezes
mais do que exportamos.
Franzo as sobrancelhas e ela continua:
— Então, perguntei para Joffrey por que não vendemos o que
“sobrou”. Imagine a minha surpresa quando ele disse que não
sobrou nada.
— Produzimos três vezes mais do que exportamos e não
sobrou nada?
— Pois é.
Nos entreolhamos em silêncio, lendo o pensamento uma da
outra. Yuna não é boba, tampouco eu. Não preciso de mais do que
dois segundos para entender o que está acontecendo.
— Estão desviando a droga — concluo.
— Estão. Foi uma quantidade baixa nos outros meses, mas
no fim do último e no começo desse, é uma quantia enorme. O
responsável não queria ser pego antes, mas agora está jogando na
nossa cara.
— Quanto foi nosso prejuízo?
— Cerca de dez milhões.
Trinco a mandíbula e solto uma respiração funda. Tinha
conseguido diminuir um pouco o nível da irritação com o treino de
boxe, mas a notícia de que há um traidor em minha máfia me deixou
mil vezes mais furiosa do que estava antes.
— Tem alguma pista de quem possa ser? — indago.
— Não. Assim que percebi vim correndo para te contar, mas
agora vou começar a investigar mais a fundo.
— Não será necessário — digo. — Vou tratar disso
pessoalmente. Reúna toda a equipe de mercadorias na fábrica D às
sete, mas não os avise antes da hora. Se o infeliz desconfiar que
descobrimos, vai tentar fugir.
— Alessia… — começa, em um nítido tom de advertência.
— Quanto mais demorarmos para descobrir, mais prejuízo
teremos. E não vou tolerar um maldito traidor em minha organização
por nem mais um dia, Yuna.
— Nem todos eles são culpados, vai punir quem não tem
nada a ver com isso?
— Vou assustá-los até que alguém abra a boca para dedurar
o amiguinho. É assim que as coisas funcionam.
Ela bufa e anui. No final das contas, sabe que estou certa.
Yuna tem um apreço especial pelos membros da sua equipe, porém,
uma lição precisa ser dada. Não posso admitir que os soldados se
sintam confortáveis para me trair dessa forma.
— Você está certa — admite, encostando a cabeça na
parede. — Faça o que for necessário. Gosto da minha equipe, mas
a Vendetta vem acima de tudo.
Abro um sorriso de lado e a sacaneio:
— Até que você fala algumas coisas inteligentes às vezes,
Yamazaki.
Ela me fulmina com o olhar.
— Tudo que sai da minha boca é inteligente, Romano. Agora,
vai falar o que aconteceu ou não?
Meu pequeno sorriso morre e desvio o olhar. Tiro a
bandagem da mão e vejo os nós dos dedos vermelhos e
machucados devido à força com que desferi os golpes no saco de
pancadas. Não me assusta, já que meus dedos são calejados e
acostumados há muito tempo.
— Lyanna me perguntou o porquê de ter matado a mãe dela
— solto, quase em um sussurro.
Meu estômago embrulha automaticamente. Detesto dizer isso
em voz alta.
— Até que enfim, né? Ela está com isso entalado na garganta
há cinco anos. Você já sabia que isso viria uma hora ou outra.
— Eu sabia. — Solto uma lufada. — Mas não deixa de ser
um porre.
— Vai me dar um soco na cara se eu fizer a mesma
pergunta? — brinca, e lanço um olhar reprovador em sua direção.
Yuna levanta as mãos em rendição. — Qual é? Não pode me julgar.
Jayden e eu passamos anos tentando descobrir o que aconteceu,
então nada mais justo do que finalmente descobrirmos.
— Acha mesmo que eu mataria a mãe dela? — indago,
engolindo o nó na garganta.
O gosto amargo preenche minha boca, como em todas as
vezes que penso no assunto.
— Não. E é por isso que nós dois passamos tanto tempo
tentando entender.
É mais complicado do que eles imaginam — do que qualquer
um imagina. Sei que já está na hora de revelar a verdade,
especialmente para Lyanna, então pretendo esclarecer tudo de uma
vez por todas.
Não sou mais capaz de aguentar o desprezo da mulher que
eu amo. O que sinto por ela é avassalador, um amor tão forte e
intrínseco que continuará vivo dentro de mim não importa o que
aconteça.
Tive que viver os últimos cinco anos imaginando como ela
estava lidando com o que aconteceu. Cheguei a me perguntar se
ela tentaria algo contra a própria vida, mesmo sabendo que minha
gatinha selvagem é a mulher mais forte que conheço. Somente o
pensamento de que eu era a responsável por machucá-la daquela
forma, e de que talvez as coisas nunca voltassem a ser como eram
antes entre nós, fazia um pedaço de mim morrer.
Na verdade, tudo dentro de mim começou a morrer depois
daquela noite.
Menos o que sinto por ela.
Meus amigos e Sienna também me ajudaram a não desistir.
Eu pensava em todos eles, todos os dias, e as lembranças
funcionavam como um combustível para continuar. Mesmo se não
houvesse nenhum motivo para lutar, eu ainda permaneceria em pé.
Não construí uma reputação à toa e, certamente, não lidei com todo
tipo de merda na vida para desistir no final. Independentemente de
qualquer coisa, devo isso a mim mesma.
Devo à Alessia que conheceu a pior versão do inferno.
 
 
Desfiro um soco forte em seu rosto e ouço o som do osso da
mandíbula quebrando. Ele grita ainda mais, debatendo-se na
cadeira e choramingando como um recém-nascido. Os berros
sempre foram música para os meus ouvidos, mas estou
completamente sem paciência hoje.
— Você tem cinco minutos — repito, abrindo e fechando a
mão com a qual estou golpeando-o.
Cassio balança a cabeça, chorando e clamando por
misericórdia. É tão patético que reviro os olhos.
Eu não pretendia capturá-lo ainda, porém foi inevitável. Juntei
um mais um e concluí que o traidor da equipe de mercadorias teve
ajuda, e é claro que o encontro de Cassio com o homem misterioso,
além de sua ida à Dark Notes, não foi uma mera coincidência. Eles
agiram juntos.
Por isso, tive que trazê-lo ao subsolo e torturá-lo um pouco,
quase nada, a fim de obter o nome do outro traidor.
— Acredita em Deus, McBride? — pergunto, agachando-me
em sua frente.
Seus pés e mãos estão presos na cadeira de ferro por uma
corda. Deixei que ele ficasse com a calça jeans, mas tirei a blusa
para fazer minha arte em seu peitoral.
— O… — começa, incapaz de pronunciar mais do que
poucas palavras.
— Acredita em Deus? — insisto, arqueando as sobrancelhas.
— Sim — sopra, piscando com dificuldade devido ao olho
esquerdo inchado.
— Acha que Deus vai te ajudar a sair vivo das minhas mãos?
— Diante de seu silêncio, ergo a faca e pressiono a ponta no
ferimento aberto de sua barriga. Ele grita alto. — Reze o quanto
quiser. No final, a única coisa que vai te manter vivo são as
informações que você tem.
— Não… tenho…
— Preste atenção — o interrompo. — Em cinco minutos, vou
trazer toda a sua família para esta cela. Se não abrir a boca, vou
matá-los na sua frente da forma mais cruel e lenta possível. Está me
entendendo, McBride?
— Não! — esbraveja, tentando soltar os pulsos da corda. Há
quase uma poça de sangue abaixo dele, que ganha mais volume a
cada segundo. — N-não faça-a nada c-com ele-es!
— Quatro minutos.
— Por favor! — clama. — Eu só que-eria ajudar minha famíli-
a!
— Quer ajudar a sua família a continuar viva? Então abra a
porra da boca.
Enfio a faca no machucado e vejo a cor sumindo de seu
rosto. Ele assente freneticamente e tiro a lâmina ensanguentada de
dentro dele.
— Um… um homem veio me procurar… em maio… — ele
mal consegue falar direito, a respiração ofegante e a língua
embolada por conta da dor. — Ele… me ofereceu muito dinheiro…
para desviar umas cargas…
— Heroína?
— Sim. — Suas pálpebras ameaçam fechar, então dou
alguns tapinhas em sua bochecha para acordá-lo. — Minha mãe
está… doente… então aceitei.
— Quem ajudou você?
Cassio vacila, como se estivesse receoso para dizer o nome
de quem trabalhou com ele. Me levanto, seguro sua mandíbula com
força e aproximo o rosto do seu para sussurrar:
— Quem. Ajudou. Você?
— O Caleb da… equipe de… mercadorias — murmura,
choramingando em seguida.
Solto seu rosto com força e ele tosse.
Embora já tenha um nome, não posso confiar em Cassio.
Tenho um maldito pressentimento de que não há somente os dois
me traindo e trabalhando para eles.
Porém, não posso acabar com toda a diversão que vem a
seguir, não é? Ainda tenho que deixar algumas coisas claras para
toda uma equipe.
— Você tem sorte de ser útil, McBride — digo, girando sobre
os calcanhares. — Mas não estou nem perto de acabar com você. E
se não quiser morrer, é melhor colaborar.
Quando subo as escadas do subsolo, meu relógio de pulso
marca sete em ponto. Penso em limpar as mãos e trocar de roupa,
mas é melhor que o próximo veja o que lhe aguarda.
 
 

“Eu não quero te machucar


Mas você vive para a dor
Eu não estou tentando dizer
Mas é o que você se tornou”
Shameless | Sofia Karlberg
 

 
Alessia está desaparecida há quatro dias. Não me importo
nem um pouco com ela, mas me importo com o rumo que as coisas
podem tomar se não agirmos logo.
Um dia depois que a confrontei sobre a verdade, esperei a
noite inteira no apartamento onde investigamos. Até agradeci por
ela não ter aparecido, porém, no segundo e demais dias, fiquei
furiosa por não ter recebido nem uma mensagem explicando o
sumiço.
É cômico o déjà vu.
É o quinto dia desde que ela sumiu e decidi ficar no meu
apartamento hoje. De alguma forma, a sala enorme repleta de
computadores está me deixando ainda mais nervosa depois da
última discussão que tivemos.
Estive pesquisando sobre todas as gangues dos Estados
Unidos, especialmente as que podem ter algo contra a Vendetta.
Cheguei até mesmo a pesquisar gangues da Itália, uma vez que não
seria difícil que fosse uma aliada da Cosa Nostra.
Alessia tem uma rixa particular com eles proveniente de jogos
e apostas. Sei que ela arrancou muito dinheiro da máfia e passou a
perna neles algumas vezes — despercebida —, até que
descobriram e colocaram-na no topo da lista de inimigos.
É difícil encontrar algo sem saber pelo que estou procurando.
Se ao menos tivesse o local de origem da tal gangue, conseguiria
diminuir o raio da pesquisa. Não ter nenhuma informação e não
chegar a lugar nenhum me deixa nos nervos, incapaz de focar em
qualquer outra coisa que não seja esse maldito enigma.
Não consigo parar de pensar nessa situação. Se eles estão
atrás de Alessia — e parecem muito determinados em pegá-la —, é
porque ela fez alguma merda. Será que trabalhou para eles nos
últimos cinco anos? Será que estava mais perto do que eu
imaginava, apenas servido a uma gangue qualquer?
Por quê?
Como Dante permitiu isso?
Levo a xícara de café aos lábios e estico as pernas, antes
cruzadas na cadeira. Meus olhos estão fixos nas diversas telas da
minha sala de operações há algumas horas, e já começo a sentir
sinais de exaustão. Quando olho para o relógio, vejo que já passa
da meia noite.
Solto uma respiração profunda e apanho o celular, me
surpreendendo ao ver uma mensagem de meu pai no ecrã. Não nos
falamos desde que brigamos em seu escritório e, para ser sincera,
ainda não estou nem um pouco a fim de falar com ele.
No fundo, continuo esperando por um genuíno pedido de
desculpas. Ou, pelo menos, que ele reconheça o quanto seu
preconceito me machuca. No entanto, não sou ingênua e não vivo
num conto de fadas.
Pai: Lyanna, podemos conversar? Venha até meu escritório
amanhã, no horário que preferir. Estarei te esperando, filha.
Deixo-o sem resposta, afinal, é o que ele merece agora.
Levanto, estalo o pescoço e me espreguiço. Deixo rolando o
download de alguns dados que consegui através de um hack no
sistema do FBI e caminho em direção à cozinha, com o tablet na
mão. Coloco os pães na torradeira e abro o aplicativo das câmeras
de segurança para verificar se está tudo certo, algo que se tornou
rotineiro depois que aquele idiota tentou me matar.
Os seguranças estão em seus postos e nada parece fora do
normal. Meu celular vibra e desvio a atenção para ele. Quando leio
a mensagem na tela, sinto o coração gelar.
Clyde: Venha ao anexo.
O anexo que ela se refere é o anexo da minha casa, um
ambiente parecido com um apartamento nos fundos. Não sei como
diabos Alessia conseguiu entrar sem ser vista e, sobretudo, não
tenho ideia de por que ela está na porra da minha casa.
É muita cara de pau.
Desligo a torradeira e saio pela porta da cozinha, que dá
acesso ao jardim e mais à frente ao anexo. A exaustão já me deixa
um pouco irritada e saber que ela está aqui me deixa mil vezes
mais.
Giro a maçaneta e entro. Está escuro, para não levantar
suspeitas, mas já sinto no ar que há algo de errado. Afinal, se não
houvesse, ela não teria vindo até aqui. Em passos receosos e com a
mão pronta para sacar a faca da cintura, atravesso a sala de estar e
chego à cozinha.
Nada.
Crispo as sobrancelhas e vasculho os outros cômodos,
também vazios. É só quando chego à porta do banheiro que ouço
um barulho quase imperceptível. Encostando o ouvido na madeira,
percebo que é o som de uma respiração ofegante.
Abro-a depressa e encontro quem estava procurando. Porém,
não como eu imaginava.
Alessia está coberta de sangue.
— Que porra?! — exclamo, aproximando-me.
Sentada no vaso, ela tem a cabeça encostada na parede e os
braços caídos ao lado do assento. Há um rastro de sangue no chão
e presumo que no resto da casa também, passando despercebido
por conta da escuridão. Seu rosto é a região mais limpa, talvez por
ter lavado na pia, e mesmo assim há gotas escarlates jorrando do
supercílio.
Eu estaria preocupada para caralho se já não a conhecesse.
Seus olhos, um pouco arregalados, alcançam os meus. Ao
vislumbrar a fúria assassina que transborda deles, solto uma lufada.
— O que aconteceu com você? — pergunto. — Na verdade,
não me importo. Por que está aqui?
— Foi o primeiro lugar que pensei — confessa em um
sussurro, entre respirações descompassadas.
Alessia sequer pisca. Parece eletrizada e bêbada de
adrenalina.
Bufo, vou até o armário embaixo da pia e retiro a caixa de
primeiros socorros. Preciso limpar seus ferimentos antes de obrigá-
la a tomar banho para não sujar todo o anexo. Na verdade, eu
deveria expulsá-la e voltar ao meu trabalho.
— Algum ferimento de bala com o qual preciso me
preocupar? — a contragosto, questiono.
— Não. Só alguns cortes, arranhões, hematomas… — o
divertimento em sua entonação me enfurece.
— Eu deveria te deixar morrer — desdenho, revirando o
interior do kit.
— Quer saber da verdade? — Viro o rosto e encontro seus
orbes cravados em mim. — Estive morrendo por cinco anos longe
de você.
Minha respiração falha e as mãos vacilam, mas é tão rápido
que consigo me recompor a tempo. Reviro os olhos, ultrajada,
embora o coração tenha involuntariamente falhado algumas batidas.
— Que papo de merda é esse, Alessia? — Ela ri baixo e o
rosto se contorce em uma carranca no mesmo instante, como se o
ato tivesse lhe causado dor. — É tão ridículo ouvir isso depois de
tudo. Sumiu por cinco dias, me deixando sozinha na situação em
que estamos, e agora vem com essa conversinha? Acha que sou
estúpida e manipulável?
— Claro que não. Só gosto de lembrar o quanto preciso de
você ao meu lado.
O que diabos ela usou, inferno?
— Está drogada? — externalizo o pensamento e ela revira os
olhos.
— Porra, claro que não.
— Não fale porcarias, então. Estou irritada pra caralho.
Começo limpando o machucado de sua sobrancelha e ela
resmunga em protesto. Passo pomada no corte e o cubro com
band-aid, tentando ser cuidadosa. Só que estou furiosa demais.
— Faz poucos dias que você levou um tiro na perna, agora
está toda machucada e coberta de sangue. Pensa que é algum tipo
de Deusa imortal? Nunca conheci uma chefe de máfia tão
irresponsável como você! É inacreditável! —  ralho, incrédula.
Não sei porque estou tão nervosa. Quando percebi, já tinha
aumentado o tom de voz e meu sangue borbulhava. Por algum
motivo, essa sádica abre um sorriso depravado. Seus olhos brilham,
tremeluzindo provocação e… satisfação?
— Não precisa se preocupar comigo, principessa — seu tom
transborda malícia. — Eu jamais morreria antes de te beijar
novamente.
Meu peito infla e contraio a mandíbula. As mãos se fecham
em punhos, tamanha revolta que suas palavras me provocam. Digo
a mim mesma que ela está dopada de adrenalina, como sempre fica
após uma tortura, e por isso está falando um monte de merda que
não deveria.
— Como pode brincar na situação em que estamos? —
Balanço a cabeça em negação. — Nosso relacionamento foi
descoberto por um bando de filhos da puta e você está aqui, coberta
de sangue, dizendo que quer me beijar novamente. Qual é o seu
problema?
— Quem disse que estou brincando? — Arqueia a
sobrancelha, a que não está ferida.
— Se não está brincando, com certeza usou alguma coisa.
De qualquer forma, está com um problema muito sério.
— Meu problema é justamente esse… — Ela umedece os
lábios com a língua. — Ainda não ter beijado você novamente.
Grunho alto e afundo os pés no chão quando volto ao kit, em
cima da pia.
— Já pedi várias vezes para não ser ridícula! — vocifero,
revirando o interior da caixa. — Não quero ouvir nem mais uma
provocação, me entendeu? Eu nem deveria estar cuidando de você,
já que não poderia ligar menos para sua saúde. Espero que saiba
que só estou fazendo isso porque você está no meu banheiro, na
minha casa, e não quero mais uma dor de cabeça.
Apanho as gazes, esparadrapos e ataduras e retorno para
perto dela. Reparo que ela se arrastou para a borda do vaso,
fazendo com que eu não tenha nenhuma outra alternativa a não ser
ficar exatamente entre suas pernas.
— Ah, gatinha selvagem, você é tão mentirosa. Sei que está
preocupada comigo.
Gatinha selvagem.
Seguro sua mandíbula com força, imobilizando sua cabeça.
O ato parece agradá-la, o que me deixa ainda mais zangada. Ela
gosta de me levar à beira do precipício.
— Pare — rosno, fulminando-a com o olhar. — Não brinque
comigo, Alessia, não quando está em completa desvantagem.
— Estou? — me desafia.
— Se eu quisesse, enfiaria uma faca na sua garganta antes
que você conseguisse reagir. — Demonstro a veracidade da minha
fala ao intensificar o aperto, o que parece agradá-la. Seus dentes
mordem o lábio inferior enquanto um sorriso depravado delineia a
boca. — Pense duas vezes antes de me provocar.
— Ah, é? — Em resposta ao meu aperto, ela estica o braço e
agarra minha coxa. Por sorte, consigo disfarçar o arquejo. — Então
tente, Lyanna. Tente me matar, e garanto que acabaremos em uma
cama.
— Nos seus sonhos — quase cuspo as palavras. — Quando
vai entender que prefiro levar um tiro do que transar com você?
— Tem certeza? — Seus olhos percorrem um caminho lento
abaixo, passando pela minha clavícula exposta e alcançando os
seios. Quando acompanho o olhar, percebo que o tecido fino da
regata exibe meus mamilos entumescidos. — Está excitada pra
caralho, não está? Me ver sangrando e completamente vulnerável a
você te excita, amor?
— Não.
Alessia percebe a mentira. Sua respiração fica ainda mais
ofegante e vejo as pupilas dilatarem, ao mesmo tempo em que
contraio a boceta e tento ignorar o fato de que estou molhada por
ela.
— Não tem ideia do quanto quero rasgar essa blusa e chupar
os seus peitos, Lyanna.
— Alessia — advirto, sentindo as chamas crepitarem em meu
peito. Não podemos, de jeito nenhum, percorrer aquele caminho.
Não posso trair a mim mesma desse jeito. — Tome cuidado com o
que fala.
— Não se lembra da sensação? — Ela volta a me fitar, tão
maliciosamente que sinto as pernas trêmulas. — A sensação de me
ter chupando os seus peitos até seus mamilos ficarem vermelhos e
inchados. Você se contorcendo embaixo de mim, pedindo para que
eu parasse de te torturar e levasse a boca até a sua boceta
encharcada. Não se lembra de como eu te comia gostoso, por horas
seguidas, principessa?
Seus dedos roçam a seda do meu shorts, provocando-me à
medida que os desliza até a parte interna de minha coxa, voltando
para uma região mais segura. Sei que se ela avançasse apenas um
pouco mais, sentiria minha calcinha molhada.
Me odeio por estar excitada. Não deveria ter esse tipo de
reação a ela, a mulher que quebrou o meu coração anos atrás,
principalmente com seu corpo coberto de sangue. Contudo, sempre
tivemos uma dinâmica diferente, a qual seria profundamente
condenada por qualquer um que segue os padrões normais de
relacionamento.
Minha relação com Alessia sempre desafiou o racional.
Éramos obcecadas uma pela outra no nível de que, em determinado
ponto, eu me importava mais com ela do que com minha
organização. Se passássemos horas juntas — fumando, bebendo
ou conversando sobre qualquer merda — e acabássemos em um
sexo violento e delicioso, eu estava satisfeita e feliz.
Ela pintava cada centímetro do meu corpo e seu apartamento
passou a ser decorado pelas telas em todos os cômodos, pois ela
dizia que precisava me ver a todo momento. A arte não era algo do
qual ela fazia questão e tampouco praticava com frequência — as
únicas vezes em que ela pincelava, era para me pintar.
Por outro lado, eu não tinha habilidades artísticas, então
sofria com a angústia de não tê-la por perto. Era uma dor visceral,
que consumia meu cérebro e tornava difícil a tarefa de raciocinar
direito. O que sentíamos era tão forte que, apesar da realidade bruta
e suja na qual vivemos, cheguei a acreditar que teríamos um “felizes
para sempre” algum dia.
Quando ela foi embora, levou tudo dentro de mim consigo.
Não sangrei só pelo sentimento de traição, mas também pela
ausência das duas pessoas que eu mais amava no mundo. Alessia
e minha mãe se foram, deixando-me com um buraco sombrio e
sangrento no lugar do coração.
Pensei que nunca mais seria capaz de sentir qualquer coisa
além de repulsa por ela. E aqui estou eu, pingando pela mesma
pessoa que juro detestar.
Ainda quero fazê-la sofrer do mesmo modo que sofri, mas, ao
mesmo tempo, minha parte irracional e insana deseja que ela
deslize meu shorts para o lado e enfie os dedos em mim.
Assim como foi no início de tudo, meus sentimentos por
Alessia se confundem. O ódio e a atração dividem uma linha tênue,
borrada pelos meus sentimentos conflitantes. Por que não consigo
resistir a isso? Por que não posso somente odiá-la, como deveria
ser?
Por que ainda sinto algo por essa mulher, mesmo implorando
às divindades para que qualquer sentimento morresse de uma vez
por todas?
— Acha que falar sobre sexo vai amenizar as coisas? —
sibilo, soltando sua mandíbula em um solavanco. Seus dentes
mordem o lábio inferior com tanta força que a região fica
avermelhada. — Se você realmente quisesse me ter mais uma vez,
teria feito tudo diferente.
— Eu gostaria — diz, encostando a cabeça na parede. —
Gostaria que tudo tivesse sido diferente.
Mentirosa.
Caímos em um silêncio pesado enquanto ignoro a excitação
entre as pernas e me concentro em limpar os cortes de seu braço.
Em uma inspeção rápida, noto que são cortes de autodefesa e
apesar de não serem graves, devem arder bastante, já que Alessia
resmunga toda vez que aplico o antisséptico.
— Onde diabos você se meteu nesses últimos dias? —
pergunto.
Devido à inclinação do meu corpo, nossos rostos estão
próximos. Meu cabelo cai em ondas e toca seu peito, além de sentir
suas coxas roçando minha perna.
— Eu vou te explicar — sussurra, me obrigando a virar os
olhos até encontrar os seus. — Vou te explicar tudo que aconteceu,
Lyanna. Desde aquela noite até o dia de hoje.
Apesar de ter vivido e sofrido com a incerteza durante tanto
tempo, não esperava que ela fosse de fato me contar tudo. Pelo
menos, não tão cedo. E é por isso que travo, as mãos no ar e as íris
pregadas nas suas.
Tento encontrar qualquer indício de manipulação em seu
semblante e me deparo com… sinceridade.
— Não minta para mim — suplico. — Não minta mais para
mim. Não aguento mais e…
— Não vou mentir. Acredite em mim, por favor.
Estou surpresa, chocada e nervosa.
Nervosa para descobrir a verdade e ainda mais com a
possibilidade de as coisas serem muito diferentes do que passei
anos acreditando. Ela pareceu irada e ofendida quando perguntei
por que matou minha mãe.
Sua reação não saiu da minha cabeça, o que me fez criar
milhares de paranóias.
— Demorei tanto porquê… Precisava resolver algumas
coisas, mas também estava me preparando — explica, engolindo
em seco. — Pensei em você durante todos os malditos dias,
Lyanna. Todos os dias, por cinco anos. Juro pelo meu sangue, pela
minha famiglia, pelas minhas cartas. Por tudo que você quiser.
Em um ato lento e receoso, sua mão volta a tocar a região
acima do meu joelho. Sinto a respiração falhar e aperto as gazes
entre os dedos, imóvel. Sei que preciso afastar o toque, mas a
tonalidade escura de seus olhos me prende como se eu estivesse
em uma jaula.
— Acha que… Conseguirá me perdoar? — balbucia, numa
entonação baixa, escorregando os dedos pela minha pele.
Estou usando um shorts curto de seda e uma regata, então,
há muita pele exposta. Muita pele para acariciar e admirar, como ela
já fez minutos atrás ao encarar os meus mamilos inchados.
— Sinceramente? Acho difícil. — Vejo sua mandíbula contrair
em desconforto. — Explique as coisas primeiro, e então te direi se
algo mudou. Você não roubou minha maçã ou me disse que o papai
Noel não existe. Você matou a minha mãe.
— Não matei sua mãe! — ralha, mais uma vez parecendo
ofendida com a acusação.
— Até que me explique o que aconteceu naquela noite,
continuo acreditando que você foi a responsável pela morte dela.
— Não fui — garante, tão firme e compenetrada que parece
realmente verdade.
Quero tanto, tanto acreditar nela. Por outro lado, é difícil me
desprender das certezas que coloquei em minha cabeça por tantos
anos. Passei muito tempo no escuro, sendo obrigada a confiar em
minhas paranóias e teorias, sem que Alessia aparecesse para dizer
uma palavra que fosse. Mesmo que ela conte uma história
completamente oposta à que imaginei e tive como verdade, acho
que, no fundo, ainda terei algumas dúvidas.
É o resultado de se sentir traída, usada e enganada. Um
mecanismo de defesa que meu cérebro criou para não se machucar
novamente.
— Onde esteve nos últimos dias? — mudo de assunto e volto
a limpar os ferimentos.
Sinto seu olhar intenso sobre mim, estudando cada mínimo
movimento meu. Ele queima minha pele e me acende de dentro
para fora.
— Descobri que havia traidores na Vendetta.
Paro imediatamente, arregalo os olhos e os direciono até os
dela. Abro a boca, sem emitir nenhum som, e uma respiração
profunda, repleta de raiva, escapa do seu peito.
— Um dos nossos traficantes estava trabalhando com três
soldados da equipe de mercadorias. Eles estavam desviando
toneladas de heroína para a gangue.
Puta merda.
— A gangue…?
— A que está atrás de mim.
Respiro fundo, endireito a coluna e passo os dedos pelas
pálpebras cansadas. A merda é muito maior do que eu pensava,
então. Seja lá quem for, eles estão mais perto e mais à frente do
que eu imaginava.
— Por que eles traíram a máfia? Você descobriu?
— Tive uma reunião com a equipe. — Levanto a sobrancelha
e ela confirma o meu pensamento: — É claro que torturei eles. Era o
único jeito de descobrir tudo e tirar informações daqueles
farabuttos[14]. Quando lidei com o traficante, ele disse apenas um
nome, mas eu sabia que tinha mais deles. Seria impossível fazer um
trabalho tão sujo e escondido sozinho. Então, entre um grito e outro,
descobri que três estavam diretamente envolvidos e quase todo o
restante sabia. Quase todos sabiam, Lyanna, tem noção disso? O
pior é que começou antes da minha volta, o que significa que Dante
também não sabia.
Uau. Para eles terem arriscado suas vidas dessa maneira,
devem ter ganhado uma grana gigantesca.
— O que eles ganharam com isso?
— Muito dinheiro e todas as regalias que quisessem. Era
quase dez vezes mais do que recebiam da Vendetta, não é à toa
que aceitaram. Mesmo assim, fiquei enlouquecida. Um bando de
traidores, Lyanna! Porra, eu já esperava que houvesse um ou dois,
mas isso?
Ela passa a mão no topo da cabeça, emaranhando e
apertando os fios escuros. Em reflexo e impulsivamente, seguro seu
pulso e paro o movimento. As íris esverdeadas sobem até as
minhas, com um pequeno vinco formado entre as sobrancelhas.
Recolho os dedos depressa, praguejando a mim mesma, e
limpo a garganta. Não sei por que fiz isso, só fiquei incomodada em
vê-la tão nervosa.
— Matou todos eles? — pergunto. — Não pode sair matando
seus soldados assim, Alessia. Não só o Conselho, como os outros
membros também irão reclamar.
— Saber de uma traição e não reportá-la é tão traíra quanto o
ato em si. Matei quem merecia morrer, e ninguém vai questionar a
morte de traidores. A Vendetta tem tolerância zero, Lyanna,
independentemente de qualquer coisa.
É por isso que eles são conhecidos por sua crueldade. A
máfia vem acima de tudo, até mesmo das relações. Não é tão
diferente na Timoria, mas nós nos seguramos um pouco para não
criar nenhum problema.
Eles, em contrapartida, resolvem os problemas exatamente
dessa forma.
— Quem são essas pessoas? A gangue, eu digo. — Volto a
limpar os cortes de seu braço e ela resmunga em protesto. —
Passei cinco dias investigando sobre todas as gangues dessa droga
de país. Se não me der um nome agora, juro pela minha vida que
vou abrir esses cortes até alcançar os seus ossos.
De esguelha, vejo-a abrindo um pequeno sorriso. Romano
sempre adorou a minha ousadia, especialmente quando é
direcionada a ela.
— É uma gangue de Los Angeles — confessa, e ligo o olhar
ao dela.
Vejo a tonalidade escura do verde de perto, as pupilas um
pouco dilatadas e a cicatriz tão chamativa. Parece mais
avermelhada agora, como se doesse ou ardesse.
— Eles se chamam Holy Devils — continua em um sussurro,
passeando os olhos pelo meu rosto enquanto fala. Sinto-me
examinada e nua diante de seu escrutínio tão intenso.
Holy Devils. Lembro-me com clareza desse nome, na
verdade. Li sobre eles há dois dias, quando estudei as organizações
criminosas da Califórnia.
Eles são famosos por produzirem uma droga única e
exclusiva deles, muito famosa e pesada, mas não foi por isso que
ficaram marcados na minha cabeça. Foi pela quantidade de lutas
clandestinas realizadas em LA e organizadas pela gangue, tão
violentas e selvagens que não se sabe nada sobre elas. Tudo que
sei é que são fechadas para pessoas específicas, as quais precisam
de convite para assistir às lutas, e por isso não há informações em
nenhum lugar.
O chefe, pelo que vi, é chamado de “Fingers”. Não sei o seu
verdadeiro nome, tampouco seu rosto, já que não havia fotos no
sistema da polícia. Nem mesmo eles conseguiram alguma coisa útil
— não que tivessem procurado muito, na verdade, já que só houve
um grande escândalo envolvendo a HD nas últimas décadas e é só
por causa dele que a gangue está no sistema.
— Eu li sobre eles — revelo, e Alessia franze os lábios. —
Por que uma gangue como aquela está atrás de você?
Há um momento de silêncio, em que paro de limpar seu
braço e ela desvia o olhar do meu. Parece nervosa de uma maneira
que não me recordo de ter visto antes, o que me deixa em alerta.
— Porque…
Um barulho alto interrompe sua fala, assim como nos faz virar
a cabeça em direção à porta. Vem do lado de fora do anexo.
— Fique aqui — ordeno. — Não saia do banheiro. É sério.
Deixo-a para trás e caminho até a entrada. Fecho a madeira
atrás de mim, receosa, com a mão na bainha da faca. Vejo uma
silhueta na porta dos fundos da cozinha, olhando ao redor. Quando
seu rosto se vira para mim, relaxo os ombros ao perceber que é Kai.
Caminho até ele, que nota minha presença e me alcança com
passos apressados.
— Onde você estava? Achei que tinha desaparecido! Os
seguranças disseram que você estava em casa, mas não te
encontrei em lugar nenhum.
— Eu estava arrumando algumas coisas no anexo — digo,
pois não é uma completa mentira. — E você? Não me disse que
viria.
Kai olha por cima do meu ombro em direção à residência na
qual Alessia está. Tento disfarçar a respiração nervosa que solto,
para que ele não desconfie de nada.
— Está tudo bem? — indaga, voltando a me fitar.
— Claro que sim. Por que está aqui, Kai? Aconteceu alguma
coisa? — mudo de assunto, franzindo a testa. — Não me diga que
brigou com Sophie e…
— Não — me corta. — Eu só queria saber se você está bem.
— Por que não estaria? — Cerro as pálpebras.
— Porque… — Um suspiro pesado lhe escapa. —
Alessandro está uma pilha de nervos, Lyanna. Mal o reconheço nos
últimos dias. Liguei os pontos e percebi que, talvez, o motivo fosse a
briga que vocês tiveram… Então só queria me certificar de que você
está bem.
Aprumo os ombros com a informação, não muito surpresa.
Afinal, meu pai me enviou uma mensagem pedindo para conversar.
Não sei se ele realmente se importa, mas com certeza está com o
ego ferido por estar sendo ignorado.
— Estou bem. Não há nada que eu possa fazer. — Dou de
ombros. — Acha que ele vai me punir?
— Eu não deveria te dizer isso, mas, pelo que eu ouvi, acho
que você será suspensa das atividades da máfia por algumas
semanas.
Merda.
Eu já esperava, no entanto. É claro que ele não me deixaria
impune.
— Só isso? — pergunto, e um vinco se forma entre as
sobrancelhas dele. — Eu disse para ele que se não fosse aceita
aqui, procuraria um lugar onde seria. Pensei que talvez ele fosse me
expulsar.
A mera possibilidade aperta o meu peito. Apesar de ter dito
aquilo, não tenho ideia do que seria a minha vida sem a Timoria.
— Seu pai nunca te expulsaria, enlouqueceu?! — exclama,
indignado. — Tire essas merdas da cabeça, Lyanna. Ele só vai te
dar essa punição porque os seguranças escutaram o que você disse
e ele não quer que as pessoas pensem que podem desrespeitá-lo
sem sofrer as consequências.
Não é o único motivo, penso. Eu feri seu ego.
— Você está ocupada? Eu queria conversar — balbucia,
coçando a nuca e fitando o chão. Parece envergonhado. — Sobre a
Sophie.
Merda, merda, merda.
O que vou dizer? Não posso expulsá-lo sem uma justificativa
boa, pois Kai desconfiaria.
Porém, não posso de jeito nenhum deixar Alessia naquele
banheiro. Naquele estado.
Me sinto uma completa ingrata ao dizer:
— Eu preciso trabalhar em algumas coisas…
— Ah… — diz, e a frustração em seu rosto quase me faz
mudar de ideia. — Tudo bem, Ly. Vou indo, então.
Anuo e entramos na casa. Em silêncio, cruzamos os
cômodos até a porta. Quando giro a maçaneta e abro, seu tom
receoso pergunta:
— Tem certeza de que está bem? — Ergo os olhos aos dele,
que me observam com atenção. — Sabe que pode me dizer
qualquer coisa, não sabe?
— Eu sei, Kai. — Sorrio de lado e aperto sua bochecha em
um gesto carinhoso. — Obrigada por isso. Me desculpe por não
poder conversar, é… é bem importante o que estou investigando.
Podemos nos encontrar amanhã, que tal? Pode vir almoçar aqui, se
quiser.
— O que está investigando? — questiona, curioso.
Amo você, Kai, mas, por favor, apenas vá embora antes que
eu me complique.
— Acho que alguém está tentando nos incriminar para a
Vendetta — sou sincera, embora omita um bocado de coisas. —
Quero descobrir se estou certa.
Suas pálpebras finas se arregalam um pouco. Os próximos
segundos são taciturnos, enquanto observo sua expressão
pensativa.
Eu não disse com todas as letras, nem para ele e nem para
Sophie, que estava investigando a fundo toda aquela situação. Eles
sabem que estou pilhada por conta da volta de Alessia, mas preferi
não dar nenhum detalhe para não colocá-los em risco
desnecessariamente.
— Desconfia de quem? — ele indaga, quebrando o silêncio.
— Da Cosa Nostra?
— Não sei… — minto. — É o que estou tentando descobrir.
— Por que não me disse? Eu posso te ajudar.
— Não precisa — respondo, em uma velocidade que com
certeza parece suspeita. — Para ser sincera, acho que são só
paranóias… A volta de Alessia está mexendo com a minha cabeça.
Detesto mentir para ele.
— Não são só paranóias — fala, convicto. — Há algo de
errado, com certeza. Alguém invadiu a sua casa e tentou te matar,
Lyanna. Alguém da Vendetta. Por que não está investigando isso,
aliás? Não quer saber porque Alessia ordenou o seu assassinato?
Abro a boca para refutar, porém, me recordo de que ele não
sabe que foram dois homens do alto escalão que organizaram
aquilo, tampouco que Alessia os pendurou na porra de uma cruz e
cometeu atrocidades com eles.
— E preciso investigar para saber a resposta, Kai? Se ela
matou a minha mãe, por que você está surpreso por ela ter tentado
me matar?
Dizer isso em voz alta embrulha o meu estômago. Ainda que
eu saiba que não é verdade, pelo menos a parte de ter sido ela a
responsável pela minha quase-morte, as palavras são fortes
demais. Ainda me lembro da sensação horrenda e devastadora de
acreditar que Alessia enviou alguém para me assassinar. 
— É que… — começa, e desiste no meio da frase. — Te
conheço há anos, Lyanna, e sei que existe algo que você não está
me contando. Só quero que saiba que estou aqui por você para
tudo, certo? Sempre seremos eu, você e Sophie contra o mundo.
— Eu sei, meu lindo. — Sorrio e o puxo para um abraço
apertado. Bagunço seus cabelos e planto um beijo em sua
bochecha ao me afastar. — Obrigada por tudo. Eu te amo, mesmo
você sendo insuportável às vezes.
Ele revira os olhos, mas um pequeno sorriso surge no canto
da boca.
— Também amo você, feiticeira.
“Estou parada no olho da tempestade
Pronta para encarar, morrendo para provar esse doce calor
doentio
Eu não tenho mais medo
Eu quero o que você tem planejado
Estou pronta para provar agora”
Not Afraid Anymore | Halsey
 

8 anos atrás
 
Jogo a guimba no chão e piso em cima para apagá-la. Sento-
me na pilha de caixotes atrás de mim, cruzo os braços e observo os
homens ao redor. Estão trabalhando na produção de drogas, em
uma das nossas fábricas afastadas da civilização, e decidi vigiá-los
hoje. Às vezes gosto de acompanhar o trabalho dos soldados para
me certificar de que tudo está certo — mesmo não sendo minha
função.
Meu celular vibra no bolso e o apanho.
— Estou ocupada — digo ao atender.
— Bom dia pra você também.
Reviro os olhos.
— O que quer, Chloe?
— Estamos com problemas em Ohio.
Pestanejo, um pouco mais atenta na conversa.
— Defina “problemas”.
— Um dos nossos traficantes nos roubou.
Passo a mão no rosto e respiro fundo.
— Três vezes — acrescenta.
— Se importa em me dizer como isso aconteceu? Ninguém
notou a porra do dinheiro sumindo? Quão incompetentes os seus
homens são, Ventura?
— Me poupe dos xingamentos, Alessia. Estou te ligando para
que você venha e faça o trabalho.
— Matar o cara, você quer dizer.
— É óbvio.
Sempre que alguém precisa sumir do mapa sem deixar
rastros, sou convocada. Por ser a única Executora da Vendetta, é
comum que eu viaje para todo canto do país a fim de cumprir meu
trabalho. Mortes mais irrelevantes são feitas pelos homens da
própria subdivisão, mas quando envolve algum cliente ou aliado,
quem faz o serviço sou eu.
— Já informou ao Dante?
— Nosso Comandante está ciente e foi ele quem ordenou
que você fosse chamada. Acho que o don já deve estar a par da
situação.
— Certo. Estarei aí em poucas horas.
— Se quiser ficar mais alguns dias… — a insinuação paira no
ar.
Ela não precisa terminar a frase para que eu compreenda.
— Vou matar o cara e voltar para Las Vegas.
— O que está acontecendo com você?
— Está com o ego ferido, Ventura?
— Acha que é a única pessoa disponível no país? Posso
conseguir sexo com um estalar de dedos.
— Ótimo. Estale os dedos, então.
— Você é tão…
— Estarei em Ohio até o final da tarde.
Desligo a chamada e guardo o aparelho. No mesmo segundo,
o portão lateral é aberto com força. O estrondo atrai a atenção de
todos, especialmente a minha.
Quando viro a cabeça, me levanto imediatamente. O corpo
enrijece e cerro a mandíbula. Até poderia dizer que estou incrédula,
mas, para ser sincera, não estou.
Essa mulher é um imã para problemas.
Fico furiosa com a forma como os dois soldados seguram os
braços dela, quase arrastando-a em minha direção. Quando param
a poucos metros, a soltam num solavanco. Os olhos castanhos
fuzilam ambos em uma promessa silenciosa de matá-los por a
terem tocado daquele jeito.
— Posso saber o que é isso? — pergunto a Michael, um dos
que a segurava.
— Srta., essa aqui estava em um dos nossos cassinos.
— Se me chamar de “essa aqui” mais uma vez… — ela
ameaça entredentes.
— Vai fazer o quê, gata? — Michael provoca com um sorriso
perverso. Quando seu olhar desce para o colo de Lyanna, meu
sangue borbulha. — Tenho certeza de que…
— Reed! — repreendo, em uma entonação alta e
intimidadora. Ele sobressalta e me encara, assustado. — Não se
comporte como um animal na minha frente. Terá sua língua cortada
da próxima vez.
— Perdão, chefe — sussurra, engolindo em seco e abaixando
a cabeça.
Arrasto os olhos até ela, encontrando o semblante sério e as
pálpebras espremidas. Está me olhando de uma forma diferente, a
qual não consigo decifrar.
— Por que estava no nosso território, Bellini? — questiono.
— Estava só me divertindo — mente, arqueando a
sobrancelha em desafio.
— Se divirta longe daqui.
Não suporto a ideia de tê-la perto de qualquer um da
Vendetta. Nossos soldados não hesitariam em machucá-la e se
Dante colocasse as mãos nela…
Ela sabe. Sabe que eu ficaria irritada por ela ter vindo em
nossa área, sobretudo em nosso cassino de novo. Faz uma semana
desde que vi Lyanna sentada no colo de um homem que agora está
enterrado a sete palmos do chão.
Uma semana desde que ela confessou estar confusa e com
ciúmes.
— Vocês não sabem se divertir, não é? — continua
provocando, testando o meu limite.
Seus olhos escorregam até Jennifer, uma das nossas
associadas que estava trabalhando na fábrica e se aproximou para
entender a confusão. Com um sorriso dissimulado de lado, Lyanna
pergunta:
— Você aí. Sabe se divertir, linda?
— Bellini! — esbravejo, fechando a mão em punho. Sou
ignorada e ela dá alguns passos adiante, em direção a Jennifer.
Avanço e paro em sua frente, fazendo com que seu corpo trombe no
meu. Sua atenção volta para mim e sussurro: — Não teste a minha
paciência.
— Você está testando a minha há meses — retruca, séria.
— Saiam! — ordeno, levantando o queixo para fitá-los. —
Saiam todos do galpão!
— Chefe… — Michael começa e o fulmino com o olhar.
— Mandei sair da porra do galpão. Agora.
Em alguns segundos, o lugar é esvaziado. O silêncio recai
sobre nós e respiro fundo antes de encarar os malditos olhos
castanhos.
— Só pode ter enlouquecido para vir aqui pela segunda vez!
Estou tentando não te punir, Lyanna, mas você não está facilitando
o meu trabalho.
— Não aguento mais você — diz, empurrando-me pelo peito.
Soa furiosa, embora eu não tenha ideia do motivo. — Não aguento
mais, Romano! Que porra você fez comigo, sua filha da puta?
— Não fiz nada.
— Fez! — acusa, em alto e bom som.
— Não me importo com o que diabos você pensa que eu fiz,
Bellini. Saia da merda do nosso território antes que se torne
inevitável te machucar.
Ela ri baixo, sarcástica, e levanta o queixo em desdém.
— Você vai me punir? — pergunta em um sussurro, colando
os peitos aos meus. — Vai me amarrar em uma cadeira e me punir,
Alessia?
— Você gostaria disso? — devolvo a provocação,
aproximando o rosto do seu. — Gostaria de ser amarrada e punida,
principessa?
— Quero saber se você faria. Se conseguiria.
— Te amarrar? — Rio, balançando a cabeça. — Venho
sonhando com isso há um bom tempo, linda… Seus pulsos
amarrados ou algemados, sua boca coberta por um pano e esse
corpo delicioso à minha mercê para que eu te puna do jeito que
você merece.
Ela puxa o ar e vejo uma fagulha tentadora em seu olhar. A
boca entreabre para respirar e não consigo evitar de mirar os lábios
que, surpreendentemente, não estão pintados com seu batom.
— Quer se divertir? — indago baixo. — Apenas diga “sim” e
garanto que vou te arruinar para sempre, Lyanna.
Estou desesperada para arruiná-la. Estou desesperada para
arruinar a mim mesma depois que provar o gosto dela.
— Acho que temos definições muito diferentes de diversão —
zomba, e posso jurar que vejo o movimento de suas coxas se
apertando de forma discreta. — Mas agradeço o convite. Aposto
que muitas mulheres morreriam para recebê-lo.
É impossível reprimir o sorriso satisfeito. Lyanna não
consegue disfarçar o incômodo — ciúmes — de jeito nenhum. Mal
sabe ela que não consigo pensar em nenhuma outra mulher nos
últimos meses, embora tenha tentado várias vezes me livrar de seus
feitiços.
— É verdade — provoco, umedecendo a boca. — Tenho uma
fila extensa.
Ela revira os olhos e bufa alto. Me empurra pelo peito, mas
não me movo. Em vez disso, seguro seu pulso com força e a arrasto
para a escada. Lyanna protesta, perguntando para onde estou a
levando, e ignoro. Alcançamos o segundo andar e atravessamos
alguns corredores até chegar em um pequeno depósito de produtos
de limpeza.
Fecho a porta atrás de nós, acendo a lâmpada fraca e a
encaro de perto. O espaço é um cubículo, o que nos deixa
inevitavelmente próximas demais.
— Você vai me responder com sinceridade — começo, dando
um passo adiante. Ela recua e as costas colidem contra a estante.
— O que está fazendo no nosso território?
— Acha que estou planejando algum ataque? — Revira os
olhos.
— Não costumo achar, Lyanna. Costumo ter certeza.
— Mio Dio, sei così stupido[15]! — exclama, passando as mãos
pelo rosto.
Ouvi-la falando em italiano é a porra de um paraíso.
— Se não está planejando um ataque, por que estava em um
dos nossos cassinos pela segunda vez?
Avanço, deixando poucos centímetros entre nós. Saco a arma
do coldre e coloco-a com força ao lado de sua cabeça, em uma das
repartições, provocando um estrondo alto. Descanso a mão livre do
outro lado, encurralando-a entre meu corpo e a estante.
— É melhor abrir a boca logo, Bellini.
— Não tenho medo de uma arma — diz, mantendo o queixo
erguido para sustentar o contato visual. — E não tenho medo de
você.
Sorrio de lado, segurando o lábio inferior entre os dentes.
— Não tem? — questiono, aproximando o rosto. — Não tem
medo do que posso fazer com você aqui, sozinha neste cubículo, no
meu território?
— Não — assegura.
A desgraçada umedece os lábios com a língua e quase perco
o controle.
— Sabe de todas as coisas que sou capaz de fazer com
você, Lyanna? — sussurro contra sua boca e vejo as pálpebras
estremecerem, quase se fechando. — Sabe de todas as coisas que
quero fazer com você?
— Você é louca — devolve o tom baixo, nada firme como
antes, e engole em seco.
— Sou. — Escorrego o nariz pelo dela e dou um passo à
frente, colando nossos corpos. Ela arqueja e agarra a borda da
estante, como se precisasse ocupar as mãos para não colocá-las
em outro lugar. — Sou louca para te arruinar da mesma forma que
você me arruinou.
— Não te arruinei — retruca, quase inaudível. — Não fiz nada
com você.
Se ela soubesse…
— Me diga por que está aqui e posso pensar em não te punir,
Lyanna.
A ideia de ser punida parece agradá-la, pois seus olhos se
fecham por alguns segundos e, quando reabrem, vejo as pupilas
ainda mais dilatadas.
— Por que se aproximou de mim? — questiona. Franzo a
testa e ela continua, entre respirações ofegantes: — Por que se
aproximou, Alessia? O que quer de mim? Preciso saber o
verdadeiro motivo, não a história maluca que você inventou! Está
tentando arrancar informações sobre a Timoria? Fale a verdade!
— Acha que eu precisaria de você para descobrir qualquer
merda sobre a sua organização? — Levo a mão até seu pescoço e
ela ofega, quase cedendo ao desejo de fechar os olhos. — Acha
que não tenho um milhão de contatos que podem me fornecer
informações, Lyanna? Acha que eu perderia meses planejando um
ataque quando posso, a qualquer momento de qualquer dia,
assassinar dezenas dos seus soldados?
— Não sei! — exclama, avançando alguns centímetros.
Nossos rostos estão tão próximos que quase posso sentir sua boca
na minha. — Não consigo entender e é por isso que estou
enlouquecendo, inferno! Só quero respostas e te deixo em paz!
— É essa a questão. — Deslizo o polegar pela sua mandíbula
e a sinto estremecer, tão entregue quanto eu. — Não quero que
você me deixe em paz, principessa. Quero que me enlouqueça e me
arruine para sempre.
Ela geme baixinho, espreme as pálpebras e arfa. Quando
sinto seus dedos agarrando o tecido da minha camisa, aperto um
pouco mais seu pescoço. Estou queimando em desejo e não sei se
conseguirei sair daqui sem beijá-la.
— Estou aqui porque… — sua voz trêmula sai tão baixa que
quase não escuto. As íris castanhas grudam nas minhas e eu
confirmo, no momento em que as vejo queimando com o mesmo
desejo, que já estou arruinada para sempre. — Porque não consigo
parar de pensar em você e acho que estou enlouquecendo.
Puta merda.
Todos os prazeres que já senti na vida parecem
insignificantes quando comparados ao prazer que me inunda ao
ouvi-la confessar que é recíproco. Tento reprimir o sorriso, mas não
consigo. Tento não escorregar os lábios pelos dela, mas não
consigo.
Tento não me convencer de que nunca mais serei a mesma
depois de ouvir Lyanna Bellini confessando que não consegue parar
de pensar em mim, mas, porra, não consigo.
— Você acabou de me arruinar para sempre, principessa. —
Largo a arma e levo a mão até sua cintura, apertando-a contra mim
ao mesmo tempo em que seguro seu pescoço com firmeza. Ela
arqueja baixinho, abrindo as pernas para que eu me encaixe no
meio. — Como espera que eu te deixe ir depois disso? Como
espera que eu não rasgue toda a sua roupa e te coma contra essa
estante?
— Seus… soldados… — ela mal consegue falar devido à
respiração ofegante.
Resvalo o polegar pelos seus lábios molhados, imaginando
todo o estrago que eles fariam em mim.
— Quer que eu mande todos eles embora? Ou prefere que eu
cubra sua boca para ninguém mais escutar seus gemidos?
Sua boca abre e fecha sem emitir nenhum som. Os dedos se
entrelaçam nos cabelos da minha nuca e as coxas apertam minha
perna, como se quisesse montá-la.
— É errado, não é? — pergunta, percorrendo meu quadril
com as unhas afiadas. — É errado querer sentir sua língua na
minha. É errado querer que você me coma bem aqui, contra essa
estante e com seus soldados lá fora. É errado me excitar toda vez
que seus olhos verdes me encaram por muito tempo e é errado me
tocar ao imaginar o gosto da sua boceta, não é?
Fico sem reação. Completamente imóvel.
De todas as coisas que imaginei ouvir, essas nem estavam na
lista.
É a porra de um sonho. Tem que ser.
— Lyanna… Porra. Por favor, diga que posso te beijar —
suplico, desesperada para que ela coloque fim ao tormento que
venho enfrentando há meses. — Mas, se disser, saiba que não será
uma única vez. Vou te beijar de novo, de novo e de novo, até que
esteja pingando nos meus dedos. Vou te amarrar e te punir como
você vem implorando há meses, e depois vou permitir que descubra
o gosto da minha boceta.
Seu rosto inteiro fica vermelho de tesão. Os olhos finalmente
se fecham e o corpo amolece, sustentado pelo meu braço
envolvendo sua cintura. Passo a língua pelo seu lábio inferior e
sussurro:
— Se me permitir um beijo, amor, precisarei de todos os
outros para conseguir viver.
— Até parece uma súplica, Romano — murmura, provocativa.
— Mais um pouco e te faço ajoelhar por um beijo.
É de conhecimento público que não me ajoelho em hipótese
nenhuma, nem mesmo diante de meu don. Afinal, ele é o
responsável pela frase que ouço desde que consigo me lembrar:
“Um Romano não se ajoelha nem diante do Diabo. Um Romano faz
o Diabo se ajoelhar diante dele”.
Mesmo assim, eu me ajoelharia para ter um beijo dela.
Inferno, eu me ajoelharia para qualquer merda que ela quisesse.
— É isso que você quer? — questiono. — Que eu me ajoelhe
e implore por um beijo seu?
— Você faria?
Sorrio fraco e mordisco seu lábio. O aperto em meus fios se
intensifica e ela espreme minha perna entre as suas.
— Aposto que você aproveitaria para atirar na minha testa,
não é? — devolvo a provocação, sem lhe dar a resposta que tanto
quer.
— Com toda certeza.
Cacete, sou louca por você.
— Não vou ganhar um beijo sem me ajoelhar, então?
Deslizo a boca na dela e solto uma respiração profunda.
Lyanna estremece em meus braços e aperta meu cabelo,
esfregando sutilmente o corpo no meu.
— Está falando muito e fazendo pouco, Alessia.
— Na última vez, eu disse que não teria você até que
admitisse o que quer. Mantenho a minha palavra, feiticeira.
— Vim até o seu território sem nenhum disfarce e deixei que
seus homens me arrastassem até você. Não parece óbvio o que eu
quero?
— Não me importo com o que parece. — Agarro seu cabelo
da nuca, puxando sua cabeça para trás. Ela abre os olhos, as
pupilas dilatadas encarando-me em puro desejo. — Quero que você
fale.
— Se quer me ouvir implorando, desista. — Arqueia as
sobrancelhas em desafio. — Não imploro por nada, muito menos
por sexo.
— Ah, é? — Deslizo a mão até sua coxa, ergo a perna em
direção ao meu quadril e aperto. — Parecia que estava implorando
quando disse que quer ser fodida contra essa estante, ou que se
toca imaginando o gosto da minha boceta.
— Não. Estaria implorando se dissesse: “Por favor, me fode.
Não aguento mais me masturbar por sua causa. Preciso que você
me coma aqui, contra essa estante.”
Porra, nunca ouvi nada tão delicioso.
— Você é uma filha da puta, Lyanna.
Ela sorri.
— Você gosta?
— Pra caralho.
Então, grudo minha boca na dela.
A sensação é indescritível, mil vezes melhor do que imaginei.
É um beijo urgente e desesperado, cheio de raiva e tesão. Sua
língua quente desliza pela minha, os dedos apertam meu cabelo e
ela ofega cada vez que a prenso contra a estante. Nossos corpos se
esfregam e minha mão aperta seus fios com tanta força que ouço-a
grunhir baixinho contra minha boca.
Estou pegando fogo. Sinto um desejo animalesco de devorar
cada parte do seu corpo. Quero nos trancar em um quarto e só sair
quando nenhuma de nós duas conseguir andar.
Os sons que saem de sua garganta me enlouquecem. Ela se
segura para não gemer alto enquanto mordo seu lábio e chupo sua
língua, pressionando nossas bocetas juntas por cima da roupa.
Fazemos pausas curtas para respirar, voltando a nos beijar como se
nossas vidas dependessem disso. O beijo vai ganhando
intensidade, ficando mais acelerado a cada segundo.
Afasto nossas bocas e desço até seu pescoço, beijando-o e
mordiscando-o até a pele ficar vermelha. Lyanna começa a gemer
um pouco mais alto, arqueando a coluna e se esfregando em mim.
— Alessia… — sussurra, jogando a cabeça para trás e
deitando-a na repartição da estante.
— Fique quietinha, linda. Se meus soldados ouvirem seus
gemidos, vou ser obrigada a matar cada um deles.
Largo sua coxa e seguro sua mandíbula com força,
obrigando-a a me olhar. Seus olhos transbordam prazer, quase
fechados em êxtase, as bochechas ruborizadas e a boca inchada. É
uma das melhores visões que já tive em toda a minha vida.
— Odeio você — sopra, ofegante. — Essa é, sim, a única
vez.
— Se acreditar nisso te ajuda a dormir à noite… — Mordo seu
lábio inferior e o puxo devagar. — Acredite no que quiser, Bellini,
contanto que continue voltando para mim.
— Não vou.
Ela avança e me beija mais uma vez. Em um movimento ágil,
inverte nossas posições e me prende contra a estante. Sorrio contra
sua boca, fascinada pelo modo como ela age. Tudo sobre esta
desgraçada é fascinante.
Desço as mãos pela sua coluna, alcanço a bunda e aperto-a
com vontade. Lyanna geme em meio ao beijo e finca as unhas em
meu ombro.
— Se pudéssemos fazer barulho, eu bateria nessa sua bunda
gostosa até sangrar.
De repente, um som alto nos faz sobressaltar. Arfante, ela
vira a cabeça e passa a mão no rosto. Retiro o celular do bolso a
contragosto, furiosa por ter sido interrompida.
— Vou matar você, seu filho da puta.
— Alessia, nossos homens estão começando a fazer
perguntas. Que diabos está acontecendo aí? — Jayden indaga.
— Nossos homens não têm que questionar porra nenhuma.
Agora que já me interromperam, podem voltar.
Desligo.
Alguns segundos silenciosos preenchem o cômodo. Tenho
certeza de que estou olhando para ela de forma assustadora,
hipnotizada, mas não consigo evitar. Parece que estou sonhando e
a qualquer momento vou acordar.
Lyanna escorrega os olhos de volta aos meus. Quando vejo
que eles ainda estão repletos de desejo e não há nenhum sinal de
arrependimento, sinto que vou explodir.
— É por isso que não passou batom? — provoco. — Já
planejava me beijar hoje, não é? Você é uma puta safada, Lyanna.
Ela revira os olhos e tenta me empurrar pelo peito. Rio baixo,
seguro seu pulso e a aperto contra mim. Beijo-a de novo, um pouco
mais devagar dessa vez, acariciando sua mandíbula com o polegar.
É diferente do último de um jeito que não consigo entender.
Porém, não quero me iludir acreditando que existe um
significado além do tesão.
O beijo é tão intenso que me deixa atordoada. Ao nos
afastarmos, vejo que mexeu com ela tanto quanto mexeu comigo.
— Preciso ir — murmura, engolindo em seco e desviando o
olhar.
Respiro fundo e assinto. Afasto-me, sentindo a frustração por
não tê-la grudada em mim. Arrumo o cabelo e a roupa e ela faz o
mesmo. Trocamos um último olhar antes de eu girar a maçaneta,
me certificar de que o corredor está vazio e puxá-la pelo pulso.
Uso uma escada alternativa, pouco utilizada pelos soldados,
e atravessamos o galpão. Ouço vozes ao redor, mas sou cuidadosa
e consigo levá-la até a porta dos fundos. Em completo silêncio,
contornamos a fábrica até a entrada e peço com o indicador para
que ela fique parada ali, escondida atrás da parede.
Pego minha moto, tiro o capacete reserva de dentro e dirijo
até ela. Coloco-o em sua cabeça e Lyanna sobe na garupa,
segurando de maneira hesitante minha jaqueta de couro.
— Meu carro está próximo do Orleans — diz.
O trajeto até o Orleans, cassino da Vendetta onde presumo
que ela estava, é agoniante. Cogito milhares de vezes dobrar uma
esquina e nos levar até o meu apartamento, mas além de não
querer acabar com o clima que construímos, preciso ajeitar o voo
até Ohio.
Quando estaciono atrás de seu veículo, descemos da moto.
Há algumas pessoas na rua, então coloco a mão na base da sua
coluna e a guio até a porta do motorista. Ela abre, tira o capacete e
adentra o carro depressa para não ser vista. Abaixo-me na janela,
apoiando o antebraço nela, e sorrio de lado.
— Amanhã, às nove, no nosso lugar? — pergunto,
esperançosa.
Lyanna suspira e demora para responder.
— É loucura, Alessia — sussurra, quebrando o contato visual.
Seguro seu queixo e viro sua cabeça de volta para mim.
— Amanhã, às nove.
Receosa, ela anui.
Me controlo para não lhe dar um último beijo, já que estamos
na rua e qualquer um pode reconhecê-la. Afasto-me da janela, ela
liga o motor e balanço a cabeça em despedida. Quando seu carro
desliza pela rua e some do meu campo de visão, não consigo parar
de sorrir como uma idiota.
 

“Na vida, no amor, não posso me dar ao luxo de perder


Por um, por todos, eu farei o que tiver que fazer
Você não consegue entender, é tudo parte do plano
Nada é justo no amor e na guerra”
Love and War | Fleurie
 

 
Na noite seguinte à aparição de Alessia em minha casa, ela
me enviou uma mensagem pedindo para eu ir até a nossa casa. De
início hesitei, me perguntando se era uma boa ideia. Porém,
acredito que ela vai finalmente me explicar tudo, então não pude
recusar. Quero e preciso saber.
Cá estamos nós, sentadas à mesa da cozinha, fumando e em
completo silêncio. Faz apenas dez minutos que cheguei e até agora
ela não disse nada. Seu semblante transparece o mais puro temor,
algo incomum e inesperado. Seja lá o que tenha para falar, é
pesado até mesmo para ela. Estou me preparando para o pior,
embora esteja começando a pensar, por causa de sua postura
enrijecida e o olhar vazio, que é ainda pior do que o pior.
Minhas mãos estão suando.
— Vou começar com a mais fácil — sussurro, após expelir a
fumaça. Seus orbes não desgrudam da mesa. — Esteve em Los
Angeles nos últimos dias?
Ela meneia a cabeça em concordância.
— E foi a Holy Devils que te deixou daquele jeito?
Mais um aceno positivo.
— Use as palavras, Alessia. Está me deixando aflita pra
caralho.
Ela traga o cigarro e desliza, lentamente, os olhos até os
meus. Eu já estava um pouco nervosa antes, mas o nível triplicou
agora. Não tenho ideia do que esperar e, para ser sincera, não sei
se estou preparada para reviver aquela noite em minha mente.
E se ela disser que estava mentindo e, de fato, matou minha
mãe? E se ela disser algo que eu não espero e sequer imagino?
Minha cabeça vai explodir.
Em silêncio, ela se levanta e aponta para o corredor com o
queixo. Deixo a guimba no cinzeiro e a sigo, hesitante. Quando
chegamos ao quarto, estagno na porta. Este cômodo me traz
inúmeras memórias que lutei para esquecer.
— Vem — pede, sentando-se na beirada da cama.
Em passos lentos, alcanço-a. Sento ao seu lado, um pouco
longe, mas perto o suficiente para que ela consiga esticar o braço e
tocar minha perna.
— Nunca usei você — começa, tão baixo que é quase
inaudível. A curta frase já é suficiente para acelerar o meu coração.
— Nunca, Lyanna. Eu amei você todos os dias desde que te
conheci, mesmo que ainda não soubesse o que era aquele
sentimento. Te amei com tudo que existia dentro de mim, com o
coração que sempre pensei não existir. Você mudou tudo e me fez
enxergar outro propósito além da máfia. Você era o meu propósito.
Passei a me importar com a minha própria vida, porque nunca me
perdoaria se te deixasse sozinha nesse mundo nojento.
“Tudo que eu disse e fiz foi verdadeiro. Eu morreria para te
proteger se fosse preciso. Matei dezenas de pessoas por você e
não me arrependo nem por um segundo, porque você está acima de
qualquer coisa para mim. Cinco anos se passaram, mas nada
mudou. Meus sentimentos não mudaram e, na verdade, ficaram
ainda mais fortes. Acredite em mim, amor, eu queimaria a porra do
país inteiro por você.”
Estou petrificada. O ar não chega aos pulmões, tento inspirar
e não tenho fôlego. Meu corpo fica trêmulo e uma onda eletrizante
atravessa a minha coluna, fazendo-me ofegar.
Ela não me deixa responder e continua:
— Sei que você não confia mais em mim, mas espero que
pelo menos volte a me olhar como antes quando souber de tudo.
Depois dos últimos cinco anos, pensei que nada seria capaz de me
matar mais do que eu já estava morta. Eu estava enganada, porque
a forma como você me olha, com tanta raiva e nojo, me mata muito
mais.
Engulo o bolo na garganta e desvio o olhar para o chão.
Minhas mãos estão tremendo e suando.
— Não fale essas coisas. — Minha visão começa a embaçar
e me sinto estúpida. — Não faça isso comigo, Alessia. Não torne as
coisas mais difíceis para mim.
— Você precisa saber, Lyanna. Precisa saber que ainda amo
você com todo o meu coração e nunca vou deixar de amar. Não
importa o que aconteça, você sempre será a única dona dos meus
pensamentos e por quem eu morreria sem pensar duas vezes,
independentemente do motivo.
Ainda amo você com todo o meu coração
Ainda amo você.
Ainda. Amo. Você.
Alessia ainda me ama. Com todo o seu coração.
As lágrimas escapam sem que eu consiga evitar. Quando
percebo, já estou soluçando baixinho e balançando a cabeça de um
lado para o outro.
— Não fale isso — suplico, colocando as mãos no rosto. —
Não fale que ainda me ama.
— Eu ainda amo você.
— Não. Não ama!
— Olhe para mim. — Não consigo. — Olhe para mim,
principessa. Por favor.
Receosa, viro novamente o olhar até ela. Meu mundo para de
girar ao ver uma lágrima descendo pela sua bochecha.
— Eu amei você quando o amor era recíproco. Amei você
quando sabia que me odiava com todas as forças e não hesitaria
em enfiar uma bala no meu peito. Amo e continuarei amando você
em quaisquer circunstâncias, seja o sentimento correspondido ou
não. Não me importo com nada disso, Lyanna, contanto que você
acredite em mim quando digo que vivo, mato e morro por você.
Soluço alto, meneio a cabeça e deixo que o choro se liberte.
Estou nervosa e eufórica por dezenas de razões diferentes, mas
especialmente por ter ouvido o que ouvi e por sentir milhares de
fagulhas se acendendo em meu peito.
Quero gritar, pois reconheço o sentimento sufocante que me
incendeia. Reconheço, e me odeio por senti-lo.
Esperança.
Não posso ter esperança. Nada vai voltar a ser como era
antes entre nós, ainda que ela tenha dito coisas que nunca imaginei
ouvir. Seria uma traição a mim mesma voltar para os braços dessa
mulher.
Afinal, eu a odeio, não é? Por que me senti tão bem ouvindo
isso, ainda que não consiga admitir para mim mesma? Por que sinto
essas coisas pela pessoa que, até onde eu sei, é responsável pela
morte da minha mãe?
Acho que, no fundo, nunca consegui aceitar completamente
esse fato. Uma parte minúscula e irracional, que acreditava na
possibilidade de tudo ter sido um mal entendido e ela não ser a
culpada, se manteve viva durante todos esses anos. Eu a enterrei
tão bem que acreditei não existir, mas sempre esteve lá.
— Se sempre me amou, por que… Por que me trair? Por que
fazer tudo aquilo? — pergunto.
Ela se vira no colchão, ficando de frente para mim. Sua mão
alcança a minha e reparo que ela também está tremendo, o que me
deixa ainda mais atordoada.
— Lyanna… — sua voz sai trêmula e vejo seu peito subindo
e descendo em frenesi. Alessia está ainda mais nervosa do que eu.
— Tive 1.825 dias para me preparar para este momento e, ainda
assim, não sei por onde começar.
— Comece me explicando sobre aquela noite.
Me viro e nossos joelhos se encostam no colchão. Seus
dedos envolvem minha mão e não os afasto, porque o toque é
cuidadoso. A mão livre ergue e desliza pela minha bochecha
molhada, limpando as lágrimas. Meus olhos estremecem com o
desejo de fechar e aproveitar a carícia tão gentil e suave, como
costumava ser quando estávamos juntas.
— A primeira coisa que você precisa saber — sussurra,
resvalando o polegar no canto da minha boca —, é que não foi a
Vendetta que matou a sua mãe.
O quê?
Meu semblante cai em pura confusão.
— O quê? Não minta para mim.
— Não estou mentindo. Não fomos os principais
responsáveis, Lyanna.
— “Principais responsáveis”? — questiono, franzindo o
cenho.
Minha mãe, Antonietta Bellini, faleceu cinco anos atrás.
Estávamos comemorando mais um ano do casamento dos meus
pais, em um jantar de gala na antiga mansão onde eles moravam,
até que tudo desmoronou. De repente, a casa foi invadida e o
tiroteio começou. Ouvimos os disparos do lado de fora e a multidão
começou a gritar e correr, mas não tivemos muito tempo antes dos
homens estourarem as vidraças do Salão Principal e atirarem para
todo lado.
Corri para longe com minha mãe e os soldados nos
rodeando, mas fomos seguidas por diversos homens. Lutei contra
alguns, porém mamãe não sabia lutar. Embora estivesse dando tudo
de mim, eles conseguiram me imobilizar em determinado momento,
no mesmo que arrastaram Antonietta pelos cabelos até os pés de
meu pai, que tinha sido baleado.
Tudo aconteceu rápido demais. Em menos de dez segundos,
minha mãe recebeu vários tiros pelo corpo enquanto todos nós
assistimos. Observei a vida se esvaindo de seus olhos claros
conforme o buraco em sua testa jorrava sangue e molhava os
sapatos de Alessandro.
Reconheci alguns dos invasores, pois eram homens da
Vendetta. Mas esse não foi o único motivo pelo qual culpei Alessia
pela morte da minha mãe.
O jantar era privado, exclusivo para pessoas mais próximas
da família e dos meus pais. Não havia mais do que cem pessoas no
Salão, um número pequeno comparado aos outros eventos que a
máfia costuma fazer.
Ninguém além dos convidados sabia sobre o evento, já que
foi feito uma semana depois do dia em que a data deveria ter sido
comemorada justamente para prevenir acidentes.
Ninguém além de Alessia e, consequentemente, a Vendetta.
Eu contei para ela na noite anterior, aninhada em seu corpo
dentro de uma banheira após algumas horas de sexo. Ela me
convidou para ir a um racha em Carson City na noite seguinte e eu
disse que não poderia, pois seria a noite do jantar de aniversário do
casamento dos meus pais. Tudo que ela fez foi sorrir de lado e
mudar de assunto.
Logo após os homens irem embora, deixando alguns corpos
mortos para trás e uma família destruída, liguei para ela. Liguei mais
de cem vezes e mandei mais de duzentas mensagens. Ela não tinha
falado comigo o dia inteiro, mas pensei que só estivesse ocupada.
Não pensei que eu estava sendo ignorada porque ela já tinha
conseguido o que queria.
A noite anterior à tragédia foi a última vez que eu vi Alessia.
Depois disso, ela desapareceu por cinco anos, sem deixar uma
explicação ou um mísero bilhete. Foi como se eu tivesse alucinado
aquela mulher e inventado o nosso relacionamento.
— Eu vi homens da Vendetta no jantar — explico. — Como
pode não…
— Foi a Holy Devils — me interrompe. — Com a ajuda de
Dante.
Estou tão confusa que abro a boca e a fecho no mesmo
instante. Nada faz sentido em minha cabeça. Por que a Holy Devils
teria qualquer interesse em matar a minha mãe?
— Vou ser direta, Lyanna. — Ela respira fundo e começa: —
A Timoria tem uma dívida de milhões com a Holy Devils, desde
antes do seu pai assumir a liderança. Eles faziam todo tipo de
trabalho para vocês; produção e venda de drogas, assassinatos que
sua organização não queria levar a culpa, corrupção política… Todo
tipo de coisa que você consegue imaginar. Não é uma informação
divulgada, porque…
Vislumbro a fúria em seu olhar e seus dedos apertam minha
mão.
— Uma forma que a Holy Devils encontrou para a Timoria
começar a quitar a dívida era trabalhando para eles no segundo
maior negócio da gangue… O tráfico humano. Sua máfia
sequestrava os “melhores” e enviava até Los Angeles, mas, mesmo
assim, a dívida estava muito longe de ser quitada. Alessandro
decidiu encerrar o negócio alguns anos depois que se tornou chefe,
alegando que preferia pagar em capital. Oliver não se importou
muito, afinal, era até mais benéfico por conta dos juros
acumulativos.
— Oliver? Quem é… — começo, e a frase morre em minha
garganta.
“— Olá, querida. É um prazer conhecê-la. Sou um amigo de
seu pai.
— Qual é mesmo o seu nome?
— Pode me chamar de Oliver, querida.”
Ofego e minhas pálpebras se arregalam. Recordo-me de
Alessia ter invadido a Dark Notes e ter sido baleada; dos homens
desconhecidos e estranhos que encontrei ao adentrar a boate e de
como aquele homem me deu um pressentimento terrível. As peças
começam a se encaixar, ainda que continuem confusas e
embaralhadas. Há muitos pontos para conectar e não consigo
encontrar uma ligação entre eles.
— O homem da Dark Notes — murmuro, vendo-a anuir.
— Ele é o chefe da gangue, mais conhecido como “Fingers”.
Por isso que quando te ouvi falando com ele no telefone, surtei.
Surtei de verdade, Lyanna. Você se lembra, não é?
Me lembro perfeitamente bem. Foi a primeira vez que a vi tão
transtornada, tremendo e suplicando. A lembrança me recorda outra
coisa… Oliver foi quem roubou o meu colar para colocá-lo na fábrica
atacada da Vendetta.
Ele também está atrás de mim. Saber que estive tão próxima
de alguém como ele, que fez tudo isso e provavelmente ainda quer
me machucar, me enche de raiva.
— Claro que me lembro — respondo.
— Voltando à história, a Timoria conseguiu enviar uma boa
quantia para Oliver nos primeiros anos, mas os juros criavam um
ciclo infinito — Alessia continua. — Em outras palavras, a dívida
nunca será quitada. Então, Alessandro começou a enviar drogas,
armas, qualquer coisa valiosa que pudesse ajudar junto do pouco
dinheiro. No começo funcionou, até que Oliver se cansou e tudo
começou.
Sinto as lágrimas descendo pela bochecha, o gosto salgado
alcançando minha boca. Estou vidrada nela e em suas palavras, tão
insanas que me pergunto se não estou sonhando — ou, melhor,
tendo um pesadelo.
— Como meu pai conseguiu esconder isso? — pergunto. —
Uma dívida tão grande, tráfico de pessoas… Eu nunca soube de
nada disso. Nunca foi algo falado dentro da organização.
Ao menos que estivessem escondendo de mim.
— O Conselho inteiro sabe, menos você e seus amigos. Mais
gente sabia antes, mas elas já morreram. O ponto aonde eu quero
chegar é que Oliver cansou de esperar e de ser enrolado por
Alessandro. Ele deixou claro que o prazo para quitar a dívida era de
um ano e se ela não fosse quitada, a Holy Devils começaria a
atacar. No mundo do crime, as dívidas são pagas de uma maneira
ou de outra, você sabe. Se não com dinheiro, com a vida.
“Um ano se passou e nada. Então, Oliver cumpriu sua
promessa. Ele atacou… Naquela noite.”
— Mas… Mas onde a Vendetta e o Dante entram ni-… —
tento dizer, sem sucesso, as palavras emboladas e a respiração
ofegante.
— A Holy Devils sempre foi parceira da Vendetta em todo tipo
de negócio, também em segredo. Minha organização é muito pior do
que vocês imaginam, nós estamos envolvidos em coisas que prefiro
nem te dizer. É claro que quando Dante soube da dívida e das
intenções de Oliver, ele declarou seu apoio e ajuda no que fosse
preciso. É aí que…
Ela engole em seco e puxa o ar. Sua mão trêmula solta a
minha para adentrar o bolso e sacar um cigarro. Após acendê-lo,
Alessia se levanta e começa a andar de um lado para o outro.
— É aí que Dante descobriu sobre nós, alguns meses antes
da sua mãe morrer.
Meu corpo congela e posso jurar que o coração para de
bater. O choque me faz rir, sarcástica, olhando-a com as pálpebras
esbugalhadas.
— Você está brincando.
— Não estou. — Ela traga a nicotina e solta a fumaça,
mirando a janela do quarto. — Assim que descobriu sobre nosso
relacionamento, ele usou a informação a seu favor. E a favor de
Oliver, obviamente.
Devagar, mais peças começam a se encaixar. Coloco a mão
no peito, atordoada com a sensação de ter o coração esmagado.
Parece que ele vai explodir a qualquer momento.
Não pode ser.
— Ele inseriu um GPS e um gravador nas armas que sabia
que eu levava para todo lugar. Passei meses carregando aquela
merda enquanto ele esperava pelo momento certo. Até que, quando
você me disse que seus pais fariam um jantar privado…
— Ele ouviu e contou para Oliver — concluo em um sussurro.
Alessia assente e a fúria sobe pelas minhas entranhas,
implorando à parte racional do meu cérebro para que a deixe tomar
conta. Meus instintos suplicam para eu gritar, destruir tudo que ver
pela frente e libertar todos os sentimentos asfixiantes que me
corroíam há anos, provocados por uma ideia que criei e sequer
condiz com a realidade dos fatos.
— Oliver avisou, Lyanna. Avisou diversas vezes e Alessandro
não levou a sério, mesmo sabendo que se não pagasse com
dinheiro, pagaria com a vida de alguém. Então, com a ajuda de
Dante, ele invadiu o jantar para matar Antonietta.
Meu sangue borbulha em ira, indignação e tristeza. Me sinto
estúpida por não saber de nada disso, mesmo que seja filha e
membro do Conselho de Alessandro. Já estava com o
pressentimento de que ele escondia alguma coisa, mas nunca
imaginei que seria algo desse tipo.
Algo tão grave que provocou a morte de minha mãe, e ele
nunca pensou em me contar.
— Por que não eu? — indago, o choro ficando cada segundo
mais incontrolável. Alessia se encosta na parede à minha frente,
fitando-me enquanto solta a fumaça. — Por que não escolheram a
mim?
— Eles escolheram — sua confissão é tão baixa que quase
não escuto. Penso que ouvi errado, até que ela continua: — A morte
da sua mãe não era o objetivo principal, mas só uma demonstração
do que eles podiam e iriam fazer. Você era o objetivo, Lyanna,
sempre foi o alvo de Oliver. Ele planejava te sequestrar até que
Alessandro pagasse a dívida.
O filho da puta teve a audácia de beijar o dorso da minha
mão, mesmo planejando tudo isso contra mim.
— Como você sabe de tudo isso? — Limpo as bochechas
molhadas e Alessia abre os primeiros botões da camisa, como se
estivesse sufocando.
— No dia da morte da sua mãe, notei uma movimentação
estranha na Vendetta. Alguns homens sairiam para uma missão à
noite, mas eu não tinha sido informada de nada. Quando fui até a
sala de Dante, Oliver estava lá. Não era a primeira vez que eu o via,
mas era a primeira em que ele parecia tão feliz e satisfeito. Depois
que ele foi embora, conversei com Dante e perguntei o que estava
acontecendo.
Seus olhos, frios e vazios, descem até os meus pés. Se não
a conhecesse, diria que ela está com medo de me encarar
diretamente.
— Ele me contou tudo. Contou que esteve me monitorando
nos últimos meses e descobriu sobre nós duas; que ajudaria Oliver
a matar Antonietta naquela noite e que alguns dias depois
sequestrariam você para “se divertir”. Ele detalhou todas as coisas
que os homens da gangue pretendiam fazer com você, Lyanna, e
ainda disse que “tiraria uma lasquinha” também.
Achei que fosse impossível sentir ainda mais raiva, mas
estava enganada. Se Dante não estivesse morto, eu faria questão
de matá-lo depois de dissecar todo o seu corpo para me divertir.
— Ao contrário do que todo mundo pensa… — sua voz sai
mais gutural, mais colérica. — Dante me odiava.
— Você está brincando de novo — digo, incapaz de acreditar
naquilo.
Dante confiava nela de olhos fechados. Todos sabem que ela
era o seu braço direito.
— Ele me odiava pra caralho — garante, rindo baixo. — O
farabutto[16] tinha medo de mim, Lyanna. Eu estava ficando mais e
mais poderosa a cada dia, ganhando muito dinheiro em apostas e
jogos. As pessoas passaram a me idolatrar e os aliados dele, a me
querer por perto mais do que queriam ele. Dante sempre conseguiu
esconder seu ódio por mulheres, especialmente as que
apresentavam alguma ameaça a ele.
Ela abre um sorriso de escárnio, tão perverso que me faz
estremecer.
— Ele odiava que eu jogasse com os meus tios porque eu
sempre ganhava dinheiro e, apesar de perderem, a maioria deles
começava a me ver com outros olhos. Começavam a me inserir nos
assuntos, me explicar coisas e me enxergar como um membro
valioso da máfia, só porque eu era boa com as cartas. Acho que é
por isso que desenvolvi essa obsessão por jogos, apostas e
baralho. — Dá de ombros. — Foi ela que me deu credibilidade,
afinal.
Ela nunca tinha me dito isso — o motivo por ser fissurada em
cartas.
— Depois, comecei a apostar com a Cosa Nostra e, como
você sabe, também ganhava deles. Nada disso agradava a Dante,
pois ele via como eu estava crescendo e ganhando poder dentro do
mundo do crime. Ganhei a confiança de figuras importantes,
políticos e chefes de organizações. Subir alguns degraus significava
que eu poderia, algum dia, alcançá-lo no topo. E isso, Lyanna, ele
jamais permitiria.
— Mas você fazia de tudo por ele — digo, me levantando e
dando diversos passos em sua direção. — Ele confiava em você
para tudo, Alessia.
— Eu fazia de tudo pela Vendetta, ele era só quem estava no
comando. Sempre servi à máfia por vontade própria e não me
arrependo de nada, porque meu propósito era a famiglia e não o
don. Dante era nojento, muito mais do que você ou qualquer outro
possa imaginar. Não havia limites e ele fazia literalmente tudo pelo
poder, desde produzir drogas suicidas a traficar pessoas. Só que,
diferente dele, eu tenho um limite. E ele atingiu o meu.
— Matar a minha mãe? Esse era o seu limite?
Alessia nega com a cabeça e ergue os olhos até os meus.
Acabo com a nossa distância, ficando a poucos centímetros dela.
Seus dedos trêmulos tocam meu rosto em um carinho suave, como
se não carregassem o sangue de centenas de pessoas.
— Meu limite sempre foi você — sussurra, respirando fundo.
— Quando ele disse o que te aconteceria nas mãos de Oliver, eu
surtei. Soquei tanto Dante que ele passou dias no hospital, Lyanna.
Agarro sua camisa, chocada. É muita informação para digerir,
muitas coisas das quais eu não fazia a menor ideia. Nada do que eu
pensava antes condiz com a realidade.
Tantos anos odiando Alessia para, no final, descobrir que
poderia ter conseguido minha vingança se soubesse que Dante era
o único culpado de tudo isso. Ele sempre esteve ali, em Las Vegas,
dividindo a cidade conosco.
Diferente dela.
— Foi prazeroso — confessa com um meio sorriso. — Porra,
socar a cara dele foi um dos melhores momentos da minha vida.
Mas, quando acabei, percebi que ele não tinha revidado nenhum
golpe; não que isso fosse mudar alguma coisa, porque eu era muito
mais forte. Mesmo assim… ele nem tentou. E eu só entendi depois.
— Por quê? — indago, ainda que uma vozinha em minha
cabeça afirme que é melhor não saber.
— Fazia parte do plano dele. — O riso baixo e nasalado que
a escapa é repleto de sarcasmo. — Devo admitir, Dante arquitetou
um plano perfeito para se livrar de mim. E eu caí, afinal, como não
cairia? A partir do momento que seu nome saiu da boca dele, eu
sabia que estava arruinada… Porque eu faria de tudo para te
proteger. Tudo.
Meu Deus, o que ela fez?
— O que você fez? — verbalizo a pergunta.
Seus olhos perscrutam cada centímetro do meu rosto. O
vazio de antes é preenchido por um fogo ainda mais ardente, mas,
dessa vez, vejo um brilho diferente neles.
— Eu te protegi, principessa. — Ela sorri, encostando a testa
na minha. Seus lábios estão tão próximos dos meus que preciso
engolir o nó na garganta para não ceder ao desejo de grudá-los. —
E depois, consegui minha vingança.
— Sua vingança? — Alessia anui e desliza a boca pela minha
mandíbula, criando um rastro com os lábios molhados. — O que
você fez?
— Pense bem, amor.
Eu tento. Tento pensar, mas não consigo raciocinar.
Me recordo de cada palavra dita nos últimos minutos, na
tentativa de chegar a uma conclusão. Não consigo pensar em uma
vingança à altura de tudo aquilo.
Até que uma lâmpada se ilumina em minha cabeça.
Não. Não pode ser.
Meu semblante adota um choque explícito quando afasto o
rosto para retomar o contato visual. Seu sorriso aumenta e a cabeça
meneia em confirmação, fazendo o chão despencar aos meus pés.
Porra, não é possível.
— Você…?
— Sim.
A satisfação transborda pela sua voz, como se ela estivesse
anunciando que se tornou uma rainha.
— Eu matei o Dante.
“Amor, eu morreria por você, sim
A distância e o tempo entre nós
Nunca farão com que eu mude de ideia, porque amor
Eu morreria por você”
Die For You | The Weeknd
 

5 anos atrás
 
Meu punho acerta com força seu nariz, o sangue jorra em
meu rosto e um click familiar é ouvido — o de um osso quebrando.
Grunho alto e desfiro mais um soco, dessa vez em sua boca. Ele
não se move, tampouco me olha. Está parado como se fosse meu
fantoche.
— Fique longe dela, seu filho da puta! — esbravejo,
empurrando-o para trás.
Dante cai em cima da mesa, derrubando todos os itens que
estavam em cima. O barulho de vidro estilhaçado preenche o
escritório, assim como minha respiração ofegante. Estou tão furiosa
que vejo tudo vermelho.
— Se encostar um dedo nela, vou matar vocês, está me
ouvindo? Vou cortar os dois em pedacinhos!
— Ah, Alessia… — Após tossir, um sorriso perverso cresce
no canto da sua boca, dando-me a visão dos dentes
ensanguentados. — Você ama mesmo aquela vagabunda, não é?
Confesso que, no início, pensei que estivesse usando a vadia só
para sexo. Ela é gostosa, então não vou te julgar.
Saco uma faca da bainha, dou quatro passos adiante, prendo
sua mão na mesa e finco a lâmina no meio. Ele rosna, segurando
um grito, e cuspo em sua cara. Afasto-me, pego uma arma e miro
em sua testa. Estou a um passo de atirar e matá-lo bem aqui, em
sua sala, quando qualquer um pode — e vai — entrar para me
executar logo em seguida.
Mas não posso morrer ainda. Não antes de me certificar de
que Lyanna está segura.
— Não seja ridícula. — Ele revira os olhos e puxa a faca com
força. Com certa dificuldade para respirar, fala: — Você não vai
atirar em mim.
— Posso fazer coisas muito piores. Não me subestime,
Dante. Se não hesitei em socar a porra da sua cara imunda, acha
que seria difícil apertar um gatilho?
Ele ri, enfia a mão ilesa no bolso do terno e apanha um maço
de cigarro. Mesmo com a outra perfurada e respingando sangue,
acende um e volta a me encarar enquanto solta a fumaça. Não é a
primeira vez que ele é machucado dessa forma, então sei que não
vai impedi-lo de continuar me provocando.
— Não deveria ter te dado tanta liberdade, menina. — Estala
a língua no céu da boca e meneia a cabeça em negação. — Olhe o
que você se tornou, achando que tem mais poder do que eu… É
uma vagabunda como todas as outras, Alessia. A única diferença é
que você pensa que tem algum poder aqui, quando na verdade é só
mais uma que me serve.
— Eu não penso. Eu tenho poder. Acha mesmo que passei
anos construindo uma relação com aliados à toa? Acha que eu não
sabia exatamente o que estava fazendo em cada conversa e em
cada partida? Acha que não tenho um plano B, C, D e todo o resto
do alfabeto?
— Continua sendo uma mulher — quase cospe a última
palavra — e nunca será cem por cento aceita em nenhuma
organização. Pare de ser tão iludida, Alessia, as mulheres nasceram
para servir aos homens na máfia. O seu “poder” é ilusório.
— Será? Vamos descobrir logo, logo.
Seu semblante se fecha automaticamente com a ameaça
implícita. O rosto fica vermelho de raiva e os músculos tensionam.
Ele não percebe o quanto essa postura é patética quando está com
o rosto ensanguentado, o nariz quebrado e um furo na mão
provocado pela minha faca. Sua fúria não me intimida, tampouco me
assusta. Apesar de tudo, Dante fez questão de que eu me tornasse
uma máquina capaz de derrotar qualquer inimigo.
E ele se tornou um no momento em que ameaçou Lyanna.
— Estava pensando em poupar a vadia, mas você não
merece que eu tenha compaixão dela. Pedirei para Oliver te enviar o
vídeo do meu pau entrando naquela boceta. É apertada, Alessia?
Aposto que ela fica encharcada, não será difícil entrar e…
Eu perco a cabeça. Um ódio animalesco sobe pelas minhas
entranhas e assume o controle, aniquilando todos os resquícios de
racionalidade. Não respondo por mim, muito menos pelos meus
atos. Sou movida pela raiva e pelo desejo primitivo de matá-lo;
cortá-lo em pedaços, rasgar sua garganta e machucá-lo tanto que
seria impossível exibi-lo no caixão de seu velório.
Vejo tudo como um borrão sem cor. Percebo que estou
socando seu rosto com força, repetidas vezes, porém não consigo
raciocinar. Não consigo parar. Jogo seu corpo contra o chão, piso
em sua mão e ouço os ossos se quebrando. Dante grunhe alto e
prensa os lábios, como se não quisesse gritar. Apanho o peso de
papel jogado ao seu lado e bato em sua cabeça, criando um corte
imediato na têmpora. Bato mais uma vez, mais outra e mais outra.
— Sua… vadia — xinga, rolando os olhos, já com o rosto
pálido.
— Cancele a ordem! — ordeno, pisando com força em seu
pescoço. Ele começa a engasgar em busca de ar, tossindo e
tossindo e tossindo. — Cancele a porra da ordem ou juro que vou
cortar a sua cabeça fora, seu filho da puta
— Não… adianta… — Ele se esforça para dizer, o rosto
perdendo a cor. Mais alguns segundos e irá desmaiar. — As duas…
vão… morrer.
Pego a primeira caneta que vejo e monto em cima de Dante.
Ele percebe o que estou prestes a fazer e aperta os olhos, mas,
mesmo assim, enfio a caneta no olho direito. A pele fina da pálpebra
rasga e ele berra, tão alto que dói meu ouvido.
Vou deixá-lo cego para que ele nunca mais coloque os olhos
em Lyanna.
A porta é arrombada e os homens entram. Estou tão fora de
mim que continuo tentando perfurar seu globo ocular embora as
vozes, que soam longe demais, me ameacem. Braços fortes me
agarram para me puxar, mas sou rápida e luto com um dos
soldados, nocauteando seu queixo de cima para baixo e o deixando
inconsciente.
Os tiros começam e uso o corpo dele como escudo. Não
tinha matado o cara, mas agora ele definitivamente está morto. De
repente, a sala fica lotada e mais de vinte soldados armados
surgem, partindo para cima de mim. Por melhor que eu seja no
corpo a corpo, é impossível vencer nessas circunstâncias. Estou em
completa desvantagem.
Braços fortes me agarram e sou imobilizada. Um pano com
odor forte é colocado em meu rosto e eu grunho alto, dando chutes
no ar e tentando me soltar.
Cinco segundos depois, cedo à escuridão.
 

 
Lentamente, minhas pálpebras se abrem. Estou confusa e
todo o meu corpo dói, como se tivessem me chutado enquanto eu
estava inconsciente. A primeira coisa que vejo é uma parede escura
e mofada. Virando a cabeça devagar, percebo que estou em uma
sala pequena, úmida e fedorenta.
Faço menção de me levantar, mas não consigo me mover.
Olhando por cima do ombro e para baixo, vejo as mãos amarradas
com uma corda grossa atrás do pilar no qual minhas costas estão
apoiadas. Continuo com as roupas de mais cedo, o que faz com que
as lembranças me atinjam.
Quase matei Dante. Não tenho certeza se não matei, na
verdade. Espero que ele não esteja morto, pois foi tudo rápido e
simples demais. Ele merece algo lento, torturante e agonizante —
algo que vou lhe dar em breve.
Respiro fundo e tento raciocinar. É chocante que eu ainda
esteja viva depois do que fiz, mas isso não significa nada bom. Na
verdade, significa o contrário. Se ainda não me mataram, é porque
planejam coisas piores do que a morte para mim.
Meu devaneio é interrompido pela porta. Três homens entram
e não reconheço nenhum. Franzo as sobrancelhas, ainda mais
confusa.
Não são soldados da Vendetta.
Quando outra silhueta masculina aparece em meu campo de
visão, meu corpo enrijece de imediato. Sinto o peito arder em ódio e
tento me desvencilhar das cordas, mas nem o mindinho se move.
— Finalmente, querida — diz, se aproximando. Ele se abaixa
à minha frente e abre um sorriso felino. — Achei que não acordaria
nunca mais.
Cuspo em sua cara.
— Vai se foder, seu arrombado de merda. Vou te esfolar com
meus próprios dentes e servir sua carne no jantar. É disso que você
gosta, não é? Vai sentir na própria pele como é assistir alguém
comendo partes do seu corpo.
Oliver limpa o cuspe com os dedos e alarga o sorriso. De
todos os psicopatas que já conheci, ele é o mais orgulhoso deles.
Se orgulha de ser um assassino, torturador, canibal, estuprador e
todas as merdas existentes.
Seu apelido é “Fingers” por uma razão. Ele corta os dedos de
todas as suas vítimas e os come logo depois, enquanto a pessoa
assiste. Darei um jeito de me matar antes que ele encoste em mim.
— Você é mesmo impressionante, Alessia. Faz jus à sua
fama.
— De fato — concordo, encarando seus olhos frios. — É por
isso que não tenho medo de você. Faça todas as porcarias que
você quiser comigo enquanto consegue. Uma hora ou outra, vou
matar você e toda sua gangue. Não vou deixar um para trás, Oliver.
Anote as minhas palavras.
Ele arqueia as sobrancelhas, fingindo estar maravilhado. Já
tinha certa aversão a esse filho da puta por todas as coisas que sei
que ele faz. Agora que mexeu com Lyanna, não vou descansar até
cortá-lo ao meio.
— Querida, não faça promessas que você não é capaz de
cumprir.
— Acredite em mim, eu vou — asseguro. — Nem que seja a
última coisa que eu faça em vida.
Duncan ri, se levanta e coloca as mãos no bolso. Anda de um
lado para o outro enquanto seus capangas ocupam a lateral da sala.
Quando para na minha frente, um pouco distante, pergunta:
— Sabe por que está aqui?
— Porque tentei matar aquele desgraçado. Me conte,
consegui? Ou, infelizmente, o filho da puta ainda está respirando?
Destilar abertamente o meu ódio a Dante é como tirar um
peso das costas. Nunca dei nenhum indício, nem mesmo para
Jayden e Yuna, que detesto aquele homem desde a primeira
lembrança que tenho dele.
Para todos, sou a soldada e filha fiel ao pai.
Sou o braço direito do chefe.
Sou a Underboss perfeita.
Sou uma das pessoas mais temidas e cruéis do submundo.
Eles vão descobrir que sou muito pior do que imaginam
quando machucam a minha mulher.
— Na verdade… — Oliver balança a cabeça e um dos caras
anda em minha direção. Tensiono os ombros, adotando uma postura
defensiva, e ele se abaixa ao meu lado. Estende um celular — meu
celular — e observo a tela.
Mensagens e ligações. Tantas mensagens e ligações de
Lyanna.
“Você matou a minha mãe.”
“Minha mãe está morta.”
“Por que fez isso, sua desgraçada?”
“Vou matar você, Romano, eu juro. Vou te matar por ter me usado
durante todo esse tempo.”
“Por que não me atende, porra?”
“CADÊ VOCÊ? APAREÇA AGORA, CARALHO!!!”
“Odeio você. Odeio você com todas as minhas forças.”
“Não apareça na minha frente nunca mais, Alessia. Se aparecer,
juro que vou enfiar uma bala na sua testa.”
“Te amei pra caralho. Traí meu pai por você. Como pôde ter feito
isso comigo? Você é uma atriz incrível, parabéns. Fingiu tão bem
que me amava que eu até acreditei que teríamos um final feliz,
apesar da nossa realidade.”
“Três dias. Três dias desde que você me destruiu e desapareceu.”
“Te desejo todas as piores coisas do mundo, Romano.”
Lyanna pensa que fui eu. Ela pensa que sou a culpada pela
morte da sua mãe.
Ela me odeia.
Lyanna me odeia.
Lyanna me odeia.
Lyanna me odeia.
Lyanna me odeia.
Lyanna me odeia.
Lyanna. Me. Odeia.
Não importa o que Oliver faça, nada vai me matar tanto
quanto saber que, a partir de agora, tudo está arruinado entre nós.
Ela não vai acreditar que não tenho nada a ver com isso, afinal,
soldados da Vendetta estavam lá. Nada será como era antes.
Ela tinha me dito sobre o jantar na noite anterior àquela. Um
dia depois, seus rivais invadem o jantar e assassinam sua mãe.
É claro que ela pensa que fui eu. Qualquer um pensaria.
— Sua cadela de estimação te abomina, Alessia. Mas essa
não é a questão. A questão é… — Oliver avança alguns passos e a
lâmpada fraca volta a iluminar seu rosto.
Seu olhar brilha em perversidade, mas não consigo sentir
raiva.
Não consigo sentir nada. Há um buraco em meu peito.
Eu preferia ter morrido. Quero morrer, mas não posso morrer
antes de me certificar de que ela está segura. Não posso deixá-la
sozinha nesse mundo nojento.
— Você está aqui para não atrapalhar o resto do plano. Até
eu acabar com sua prostituta, você ficará bem quietinha aqui, me
entendeu?
— Não toque nela, porra! — rosno, remexendo o corpo. Sinto
a ardência nos pulsos, os quais devem ter começado a sangrar. —
Juro pela minha própria vida, Oliver, que se encostar um dedo nela
vou abrir o seu peito e alimentar os cachorros da Vendetta com os
seus órgãos.
— Tantas promessas… — Estala a língua no céu da boca. —
O pai dela tem uma dívida comigo, Alessia, e já fui bonzinho demais
com ele. Está na hora de Alessandro pagar. Não se preocupe, ela
não vai morrer tão cedo. Vou torturá-la por um bom tempo até que
Bellini entenda o recado.
Não, não, não, não.
— Me torture no lugar dela — imploro. — Faço o que quiser,
contanto que não toque nela. Acha que Dante não vai gostar ainda
mais de você depois que souber que está me matando aqui?
— Não vou…
— Me use no lugar de Lyanna! — suplico, sem conseguir
esconder o desespero. — Faço tudo que você quiser, porra! Sabe
que faço jus à fama, Oliver, então sabe que não tenho problemas
em fazer qualquer merda que você precisar. Me torture e me
coloque para fazer os trabalhos imundos da sua gangue. Faço
qualquer coisa, eu prometo. Qualquer coisa.
Ele sorri tão largo que quase atinge o nível das orelhas.
— Seu pai te quer morta, Alessia — revela, como se eu já
não soubesse. — Ele disse que posso te manter aqui por quanto
tempo quiser, desde que mate você no final. Por que eu te usaria
para alguma coisa?
— Serei muito mais valiosa viva. Pense bem, sou muito
melhor do que os seus soldados. Posso ganhar muita grana pra
você. Alessandro não tem dinheiro para te pagar. Você pode ganhar
muito dinheiro comigo.
Ele cerra as pálpebras e, por um momento, parece estar
realmente cogitando a ideia.
Por favor, aceite. Por favor, aceite.
— Vou pensar no seu caso — diz, lançando-me uma
piscadela. — Enquanto isso, vou atender aos pedidos do seu pai.
Respiro fundo para me controlar, contando até dez
mentalmente. Se deixar que a ira assuma o controle, vou tentar me
libertar a todo custo para arrebentar a cara deles e posso acabar
cortando os pulsos sem querer.
Oliver acena com a cabeça e sai da sala. Pelas próximas
horas, seus capangas quebram alguns dos meus ossos e me fazem
desmaiar após longas sessões de afogamento. Quando acordo,
sem saber quanto tempo se passou, penso em tudo.
Penso em Sienna, que só tem dezesseis anos e não faz ideia
do que está acontecendo. Dante não vai deixar que ela se
machuque, mas, mesmo assim, não consigo evitar de me preocupar
com a sua segurança. Eu faria de tudo para protegê-la também.
Penso em Jayden e Yuna. Meus amigos devem estar se
perguntando o que diabos aconteceu e se tenho algum
envolvimento no assassinato de Antonietta. Devem estar me
procurando, já que faz dias que sumi.
Penso em Lyanna. Minha principessa. Meu amor. Minha
mulher. Ela corre tanto, tanto perigo que fico sem fôlego apenas ao
imaginá-los colocando a mão nela. Sou capaz de queimar o país
inteiro e matar milhares de inocentes se isso significar que ela está
segura. Como vou explicar toda essa confusão à minha gatinha
selvagem? Como vou reconquistar sua confiança depois disso?
Conheço-a como a palma da minha mão e sei que ela não vai me
perdoar. Não vai me aceitar de volta tão cedo, mesmo que eu diga
que não sabia de nada.
Quando me sinto cansada e dolorida demais para manter os
olhos abertos, o último pensamento que tenho é: Vou matar Dante
Romano, custe o que custar e leve o tempo que for.
E depois, vou fazer de tudo para ter minha mulher de volta.
“Estou sendo vencida nesta guerra de corações
Eu não posso deixar de querer que oceanos se partam
Não posso deixar de amar você
Mesmo que eu tente
Eu sei que eu morreria sem você”
War of Hearts | Ruelle
 

 
Eu matei o Dante.
A confissão finalmente sai da minha boca pela primeira vez,
quase um mês depois. Sempre quis que Lyanna fosse a primeira a
descobrir, mas precisava que ela soubesse de algumas coisas
antes. Toda a situação da Dark Notes começou a abrir seus olhos,
então chegou a hora. Até porque, se não soubesse, correria riscos
que poderiam ser evitados.
— Como… Como assi-im? — gagueja, petrificada.
A cor some do seu rosto, as pálpebras esbugalham e ela
arqueja. Parece que acabou de ver e conversar com um fantasma.
Não a julgo, pois tenho certeza de que nem ela e nem ninguém
imagina que fui eu.
Levei anos montando um plano. Pensei e arquitetei todos os
cenários possíveis; todos os imprevistos que poderiam acontecer e
todas as pessoas que me arruinariam se descobrissem qualquer
coisa. Sabia que isso não afetaria só a mim, mas também a todas
as pessoas mais próximas, especialmente Lyanna. É claro que
Oliver e seus capangas souberam, no momento em que ouviram
sobre a morte de Dante, que fui a responsável.
Na verdade, eles souberam que eu conseguiria a minha
vingança no instante em que escapei de Los Angeles. Tive muitas
tentativas falhas, as quais me provocavam ainda mais tortura,
trabalho e aprisionamento. Quando consegui, no entanto, assinei a
sentença de morte de cada um deles.
— Dante queria se livrar de mim — começo a explicar. —
Sempre quis. Quando descobriu sobre nós duas e Oliver disse que
se vingaria de Alessandro através de Antonietta e de você… Foi a
ligação perfeita que ele precisava. Dante me provocou, me fez dar
uma surra nele de propósito para ter uma justificativa quando os
mais próximos perguntassem o porquê de ter me castigado. Ele era
quase cem por cento cego no olho direito, porque fiquei tão
selvagem que enfiei uma caneta nele. Acho que pouquíssimas
pessoas sabem que ele só enxergava com o esquerdo.
A cada segundo e a cada palavra dita, ela fica mais chocada.
— Os soldados invadiram o escritório, conseguiram me parar
e colocaram um pano com clorofórmio no meu nariz. Eu desmaiei e,
quando acordei, estava amarrada em um pilar e com o corpo todo
dolorido. Só que os homens que apareceram não eram da Vendetta,
ao contrário do que eu esperava.
Solto a respiração e deslizo os dedos gélidos pelo seu
pescoço, tentando me concentrar nela e ignorar os pensamentos
horríveis que as lembranças me causam. Toda vez que me lembro
dos últimos cinco anos, tenho que ser forte para não ceder à
escuridão que existe dentro da minha cabeça.
Estar tão perto dela, sentindo seu perfume adocicado contra
meu nariz e tendo seu corpo trêmulo em meus braços, deixa tudo
mais fácil. Contar a verdade depois de tanto tempo é algo com o
qual sonhei todos os dias — quando acordava, quando era levada
para treinar, em cima do ringue, quando era jogada de volta na cela
e ao colocar a cabeça no travesseiro para dormir.
Pensei tanto em Lyanna que, às vezes, alucinava. Nos piores
dias, aqueles em que eu estava repleta de hematomas e sem comer
ou dormir há um tempo, alucinava que estávamos cozinhando em
nossa casa em Las Vegas. Via ela em minha frente, meu peito
colado às suas costas conforme a assistia mexer nas panelas e a
ouvia contar, com empolgação e os olhos brilhando, suas histórias
do trabalho. Eu beijava sua nuca e sussurrava em seu ouvido:
“Quão sortuda sou por namorar a melhor hacker do mundo?”.
— Era Oliver — revelo. — Foi tudo uma armação para que
Dante se livrasse de mim e impedisse que eu atrapalhasse o plano
de te sequestrar, já que descobri tudo e obviamente não permitiria
que eles levassem aquilo adiante. Dante o dava dinheiro para me
manter presa e disse que ele poderia fazer o que quisesse comigo,
contanto que me desse um destino pior do que a morte. Então,
Duncan me falou que eu apodreceria naquela sala imunda até a
Holy Devils acabar com você.
As lágrimas escorrem pelas suas bochechas ruborizadas e
meu coração se quebra em milhares de pedaços. Levanto o polegar
e limpo sua pele molhada, acariciando-a com saudade e paixão.
Porra, senti tanta saudade de tocá-la dessa forma. Senti tanta
saudade de demonstrar  o quanto sou apaixonada e obcecada por
ela e que, se precisasse, passaria por tudo novamente. Se
garantisse sua proteção, não pensaria duas vezes antes de
voluntariamente caminhar até a cela suja e fedorenta na qual vivi um
inferno.
— Alessia, por favor, não… — Ela inspira, soluçando baixo
antes de continuar: — Não me diga que…
— Eu pedi para que Oliver me usasse em seu lugar — a
interrompo e Lyanna fecha os olhos. Meneia a cabeça de um lado
para o outro, talvez em indignação, e o choro se intensifica. Mais e
mais lágrimas descem e caem em nossas roupas. — Pedi para que
ele me torturasse e me usasse para qualquer merda que quisesse,
desde que não encostasse em você. Falei para me dar qualquer
trabalho que lhe trouxesse dinheiro, já que Alessandro jamais
conseguiria pagar a dívida milionária. Comigo, a gangue poderia
ganhar muita grana. Eu sabia que eles comandavam um esquema
enorme de lutas clandestinas e sempre lutei muito bem, você sabe.
Depois das cartas, a força bruta é no que sou melhor.
“Mas nos primeiros meses, nada foi feito. Continuei lá
embaixo, sendo torturada e torcendo para que você estivesse bem.
Eu não… Não quero que você me veja como alguém fraca e
incapaz de me defender. Eu tentei, juro que tentei. Tentei escapar
inúmeras vezes, mas aquele lugar era um labirinto escuro repleto de
soldados doentios. A cada tentativa, a tortura ficava pior. Um médico
me visitava dia sim e dia não, só para ter certeza de que eu não
morreria, e não tenho ideia de como consegui sobreviver àqueles
primeiros meses. Se você acha que eu pego pesado na tortura,
Lyanna, é porque não viu a da Holy Devils. Eles são bárbaros e me
odiavam pra caralho. Odiavam o poder que eu tinha, o fato de eu
não ter medo deles e não clamar pela morte. Em todas as surras,
com meu rosto e dentes ensanguentados, eu sorria e perguntava se
aquilo era o melhor que eles tinham. Gargalhava entre um soco e
outro, cuspia sangue no rosto deles e os provocava a todo
momento. Prolongar aquilo significava que você estava segura. Eles
não podiam parar.”
Está na minha mira e continua me provocando, Romano?
Deseja tanto morrer assim?
Você é a putinha mais resistente que já vi.
Gosta de facas, não gosta? Vamos descobrir se gosta
quando elas rasgam as suas costas.
Engulo o nó na garganta. Minha voz começa a falhar, a
respiração torna-se ofegante e meu corpo inteiro treme. Sinto a crise
de pânico chegando, porém tento respirar fundo e mantenho o foco
nas íris castanhas a poucos centímetros de mim, me olhando como
se ela sentisse na própria pele tudo que estou contando.
Seus dedos alcançam meu rosto, segurando-o com cautela.
O toque é tão cuidadoso que me faz sentir vulnerável, como um
vaso prestes a quebrar. Lyanna acaricia minha mandíbula, minhas
bochechas e meu pescoço, as sobrancelhas franzidas em uma
careta triste.
— Alessia… — sussurra, a voz carregada de compaixão. —
Está tudo bem, estou aqui com você. Respire comigo.
Embora não esteja tão diferente, ela se esforça para me
acalmar. Inspira uma grande quantidade de ar e repito o ato,
expirando em seguida. Fazemos isso por quase um minuto até que
consigo voltar a falar:
— Alguns meses depois, fui arrancada da sala e jogada em
uma cela. Na noite seguinte, colocaram uma venda em meus olhos
e fui levada até um dos ringues subterrâneos onde aconteciam as
lutas clandestinas. Quando percebi que Oliver cedeu e aceitou
minha proposta, me senti aliviada. Estava prestes a levar uma surra
muito pior do que as anteriores, de alguém muito mais experiente
naquela merda do que eu, mas não me importava nem um pouco.
Tudo em que eu pensava era na sua segurança.
“Então as lutas começaram. A cada três dias, eu era levada
para o ringue. Já era boa no corpo a corpo, mas ficava cada dia
melhor conforme treinava no saco de pancadas que colocaram na
minha cela. Às vezes, quando eu “me comportava bem”, eles me
permitiam treinar em uma academia improvisada. Comecei a ganhar
várias partidas e as pessoas começaram a apostar mais em mim, o
que gerava uma porrada de dinheiro para a gangue. Ainda assim…
as torturas não acabaram por completo. Diminuíram e ficaram mais
leves, mas não acabaram. Mesmo eu sendo lucrativa, Oliver ainda
queria e precisava me machucar por ordens diretas de Dante. Elas
não eram tão ruins como antes, já que eu não podia diminuir meu
desempenho no ringue, e eu já não sentia mais nada. Sabia que
enquanto eu rendesse grana para Oliver, você estaria segura. E isso
era tudo que me importava.”
Lyanna aperta as pálpebras, sacudindo a cabeça de um lado
para o outro, e me puxa para um abraço aconchegante e repleto de
significados. Parece querer se fundir a mim e correspondo à
intensidade, serpenteando sua cintura. Fecho os olhos, levo o nariz
ao seu cabelo e planto um beijo em sua cabeça. Ouço-a fungar em
meu ombro, soluçando cada vez mais alto.
— Não chore, amor — peço em um sussurro. — Está tudo
bem agora, você está segura e está comigo.
— Não está! — retruca, afastando o rosto apenas o suficiente
para me encarar. — Você passou por tudo isso por minha causa,
Alessia! Como vou viver sabendo que sou a culpada de tudo? Como
pôde aceitar esse pesadelo apenas para me proteger?
— A culpa é de Alessandro, não sua. E me ofereci para tomar
o seu lugar porque eu quis. Eu faria absolutamente qualquer coisa
por você, até mesmo queimar no inferno. Entenda de uma vez por
todas que você é tudo para mim, Lyanna. Você é meu mundo inteiro
e nada mais importa.
Ela funga novamente, meneia a cabeça e limpa a bochecha.
Seus olhos saem dos meus e recaem sobre minha cicatriz.
— Isso… Foram eles?
— Foram eles, sim. — Limpo a garganta, desconfortável por
revelar tudo em voz alta pela primeira vez. — Eu tentei matar os
capangas de Oliver diversas vezes, até que ele se cansou das
tentativas e foi pessoalmente me atacar, aproveitando da minha
desvantagem por estar presa com as cordas. Ele disse que, assim
como eu fiz com Dante, me deixaria cega. Consegui revidar por
pouco tempo e quando percebi, a lâmina já tinha começado a
perfurar minha testa. Ele desceu até o meu olho e talvez para não
prejudicar as lutas, desistiu de me cegar, mas continuou cortando
até a bochecha.
— Meu… Meu Deus… Eu sinto tanto, Alessia. Tanto.
Lyanna aproxima o rosto e seus lábios, molhados pelas
lágrimas, tocam minha cicatriz em um beijo casto, singelo e
afetuoso. Fecho as pálpebras e meu peito entra em chamas,
queimando e queimando e queimando e queimando.
Queimando por ela. Queimando por nós.
Depois, beija a região acima, criando um rastro carinhoso
através da minha marca. Ao chegar na testa e afastar a boca,
mantenho os olhos fechados. Apesar da história horrível, me sinto
extasiada — extasiada por sentir seus lábios em mim depois de
tanto tempo; por sentir, no fundo, que ela está tentando me dizer
que ainda nutre sentimentos por mim; por não acreditar que estou
contando a verdade após tantos anos.
— Eu sinto muito — sussurra, acariciando meu rosto. Sua
respiração bate contra meu queixo e sei que nossas bocas estão
próximas. — Me desculpe. Eu sinto tanto, Alessia. Se eu
soubesse… Eu não fazia ideia de nada disso. Ninguém sabia o que
tinha acontecido com você, então eu… Eu não…
— Não se desculpe — peço, encostando a testa na sua e
apertando-a ainda mais contra mim. — Nada disso é culpa sua,
Lyanna. Não me arrependo de nada e faria tudo de novo por você.
Por nós. A única coisa da qual me arrependo é não ter te explicado
antes, mas eu não podia. Precisava de tempo.
— Para se recuperar?
— Também, mas não. Eu precisava de tempo para montar
um plano. — Resvalo o nariz no seu e ela solta uma lufada de ar,
abraçando meu pescoço com força. Está vulnerável e entregue nos
meus braços. Parece a porra de um sonho. — Alguns dos meus
tios, membros do Conselho, sabiam disso. Eles foram coniventes e
matei cada um deles nos últimos dois anos.
Acredito que ela se lembre das mortes repentinas de alguns
dos irmãos de Dante. A cada quatro ou cinco meses, eu caçava
mais um dos quatro que acobertaram tudo aquilo. Os que restaram
são os que não sabiam de nada, mas não teria problemas em matá-
los também caso descobrisse o contrário.
Quando estava morrendo, Dante confessou que sabia que
era eu. Ele sabia que eu estava perto e, eventualmente, chegaria a
sua vez.
— Eu consegui escapar algum tempo atrás — explico. — Há
dois anos. A Holy Devils me procurou em todos os cantos do país,
mas eu não estava nos Estados Unidos. Fui para o México e
Hernández me deu um abrigo. Prestei alguns serviços a facções e
organizações locais, me passando por uma mercenária qualquer já
que ninguém me reconhecia. Miguel nunca contou a verdade, então
consegui passar esse tempo escondida.
— Como sabe disso? Alguns dos homens de Miguel
conheciam você.
— A Holy Devils me obrigou a pintar e cortar o cabelo assim
que cheguei em LA, além de me forçarem a usar lentes de contato
toda vez que saía da cela. Me acostumei com o disfarce e a cicatriz
também ajudou na tarefa de não ser reconhecida. Eu estava tão
diferente que nem mesmo os homens da Vendetta me
reconheceriam.
Vejo um vislumbre de ressentimento atravessar seu rosto,
provavelmente por saber que estive solta por dois anos e não entrei
em contato, tampouco a visitei. Não dei nenhuma explicação sobre
aquela noite.
— Eu estive te vigiando — afirmo. — Nunca iria para tão
longe de você. Fiz inúmeras viagens até Las Vegas para me
certificar de que você, meus amigos e Sienna estavam bem. Sei que
aqueles filhos da puta não hesitariam em te machucar para me atrair
de volta, por isso me mantive por perto. Monitorei cada passo,
conversa e negociação de Dante com a ajuda de algumas pessoas
que conheci no México e também fiz questão de arrumar alguns
problemas para Oliver, a fim de mantê-lo ocupado. Eu não… Não
podia me aproximar de você, não ainda. Precisava ter certeza de
que nada daria errado, ou as coisas seriam ainda piores do que da
última vez. Você entende, linda? Consegue me perdoar por ter
demorado tanto?
Um suspiro pesado escapa do seu peito, os ombros caem e
os resquícios de mágoa desaparecem. Os dedos fazem uma carícia
breve e quase imperceptível em minha nuca enquanto, talvez de
forma inconsciente, ela se aninha um pouco mais em mim.
— Passei todo esse tempo te culpando por tudo — murmura.
— Te culpei pela morte da minha mãe, por ter desaparecido, pensei
que tivesse me usado e jogado fora… Alimentei tantos sentimentos
ruins que não sei como reagir ao descobrir que a realidade é
completamente diferente da qual criei em minha própria cabeça,
mas… Sim, consigo te perdoar. Como poderia não te perdoar depois
de saber de tudo que você passou por minha causa? Só que,
apesar disso, não posso e nem vou pedir desculpas por ter
acreditado no que acreditei, porque até mesmo você sabe que era
impossível pensar em qualquer outra possibilidade.
— Você está certa — concordo. — Não te culpo por ter me
odiado, nunca poderia. Você tinha todo o direito do mundo de me
detestar e me querer morta, Lyanna. Por um tempo, até achei
melhor que você não me quisesse de volta, já que estar comigo era
um risco. Eu sempre te disse que meu amor te arruinaria,
principessa.
— Meu amor te arruinou também, Alessia — contrapõe,
soando como se odiasse a si mesma por isso.
— Eu já estava arruinada quando te conheci. Você me deu
um propósito de vida — sussurro.
— Não é certo. Você não deveria passar por nada disso por
minha causa. — Sua cabeça balança e percebo que ela está ficando
agitada. A respiração ofegante e os olhos perdidos, vagando pelo
chão. Tento segurá-la, mas Lyanna se desvencilha dos meus braços
e se afasta.
Meu coração se quebra pela milésima vez.
— Lyanna, não faça isso — imploro, observando-a andar de
um lado para o outro. — Você se afastar depois que descobrisse a
verdade era um dos meus maiores medos. Não faça isso, eu
imploro.
— Não vou me afastar de você. — Ela cessa os passos à
minha frente. Distante demais. — Só preciso respirar e processar
tudo. Meu Deus, não consigo raciocinar! Parece que estou tendo um
pesadelo e minha cabeça vai explodir.
— Vou te dar um tempo para digerir tudo — garanto,
engolindo o bolo na garganta. Não quero ficar nem um segundo a
mais longe dela, mas entendo que descobrir todas essas coisas de
uma vez só é demais. — Antes de você ir embora, quero te fazer um
convite.
Ela franze o cenho, confusa.
— A Vendetta vai fazer um baile no sábado à noite para
comemorar a minha liderança. É meio que uma tradição, então não
pude cancelar, mas consegui transformar num baile de máscaras
para que você consiga comparecer sem ser reconhecida. Quero e
preciso de você lá, Lyanna. Prometo que ninguém vai te machucar,
eu nunca te colocaria em risco. Você ficará comigo ou com Jayden e
Yuna o tempo todo. Eu só… quero você ao meu lado em momentos
como esse. Por favor, pense nisso. Terá dois dias para processar
tudo e, se você for, conversaremos melhor lá.
Ela parece surpresa. Ficamos em silêncio por alguns
segundos, até que sinto os sintomas se intensificando. É melhor que
ela vá embora para não me ver tendo uma crise, pois nunca é bonito
de se presenciar.
— Estarei te esperando — digo, girando sobre os
calcanhares e caminhando até o banheiro do quarto. Olho-a por
cima do ombro antes de entrar e finalizo: — Vou lutar por você e
pelo nosso amor até o meu último suspiro, Lyanna. Eu prometo.
 

“É um mundo cruel
Não há piedade, sim, é um mundo cruel
Vai partir seu coração e te queimar”
Cruel World | Tommee Profitt feat. Sam Tinnesz
 

 
Não sei há quanto tempo estou sentada no mesmo lugar e na
mesma posição, mas foi o suficiente para sentir dores na coluna.
Acabei com um maço de cigarro e bebi metade de uma garrafa de
uísque. Meu olhar está fixo na parede à frente, as lágrimas não
pararam de descer desde que me sentei no sofá e meu semblante
está completamente impassível.
Me sinto em uma espécie de hipnose, incapaz de piscar ou
falar. Quando cheguei em casa ainda era início de madrugada e
agora o sol já nasceu, iluminando a sala e irritando meus olhos
lacrimejados e vermelhos.
Permaneci imóvel como uma estátua, pensando em tantas
coisas que minha cabeça começou a pesar e latejar. Cogitei voltar e
conversar mais com Alessia. Cogitei ir até meu pai e exigir
explicações. Cogitei chamar Sophie e Kai para me ajudarem a achar
uma luz no fim do túnel, porque parece que ela não existe.
Como vamos resolver toda essa situação sem que alguém se
machuque?
Como vou garantir que Alessia não passe por nada daquilo
novamente? Não posso permitir. Farei o possível e o impossível
para assegurar que Oliver nunca mais coloque as mãos nela.
Como vou explicar para os meus amigos que estive errada
todo esse tempo e a realidade não condiz com o que acreditei
fielmente durante cinco anos?
Meu Deus, não tenho ideia de como contar toda essa
confusão a eles.
Mas, acima de tudo, penso em meu pai. Penso em como ele
mentiu para mim por tanto tempo, omitindo coisas que embora
fossem sigilosas, eu merecia saber. Merecia saber porque elas
levaram minha mãe à morte.
É inevitável culpá-lo. Alessandro sabia das ameaças de
Oliver e sabia que ele não estava blefando. Porra, ele podia ter dado
um jeito de pagar a dívida. Podíamos ter montado um plano ou
milhares para resolver a situação toda. Já cometemos todas as
atividades ilícitas possíveis, que diferença faria se intensificássemos
o trabalho?
Não sei se conseguirei perdoá-lo algum dia.
Solto um suspiro pesado e decido sair do sofá. Meu corpo
responde devagar, completamente exausto. Coloco a guimba no
cinzeiro, estalo o pescoço e me levanto para subir as escadas em
direção ao quarto. Coloco uma calça jeans, regata e um moletom
que há anos deixei enterrado bem no fundo do closet.
É o primeiro moletom que Alessia me deu. É dela e ainda tem
o seu cheiro, ainda que não o use desde que tudo aconteceu.
Levo o tecido ao nariz por alguns segundos, fechando os
olhos para apreciar um aroma que proibi a mim mesma de lembrar
como era. No início, eu o sentia em qualquer lugar. Alessia estava
desaparecida e a quilômetros de distância mas, mesmo assim, seu
perfume estava impregnado em todos os cantos que eu pisava.
Após colocar uma bota de salto baixo, saio do cômodo.
Parece que todos os meus músculos doem. Não é a primeira vez
que fico vinte e quatro horas sem dormir, mas fazia um bom tempo
que não me sentia tão drenada e sobrecarregada emocionalmente.
Os seguranças insistem para me seguir, porém, não permito.
Deixo claro que é um assunto pessoal e não quero ninguém comigo.
Eles entendem para onde estou indo, já que é algo semanal, então
os deixo para trás.
Quando chego, engulo o nó na garganta e enxugo as
lágrimas que desceram durante o trajeto. Sou a única pessoa aqui e
agradeço pela solidão, já que não gosto de ter alguém por perto em
um momento tão íntimo.
Este cemitério é pequeno, afastado da cidade e foi construído
exclusivamente para enterrar pessoas da máfia — desde
associados a membros do alto escalão. É frio, escuro e melancólico
demais. Nunca gostei de vir aqui, mas é o único lugar onde posso
conversar com ela e senti-la perto de mim como se realmente
estivesse ao meu lado enquanto desato a falar sobre tudo. Às
vezes, tenho certeza de que sinto seus braços me envolvendo em
um abraço.
Dobro a esquina que leva ao seu túmulo e, ao me aproximar,
sinto o chão desabar sob meus pés. A princípio, não consigo reagir.
Cesso os passos e encaro a cena em silêncio, sentindo o tremor
subir e subir e subir e subir.
Quando consigo voltar a andar, estou tremendo tanto que
cambaleio e sinto as pernas fracas. O soluço corta minha garganta e
caio de joelhos, as mãos cobrindo a boca enquanto choro alto. Toda
a exaustão e o sofrimento me atingem como uma bola de neve,
deixando-me tão em pânico que sinto que vou desmaiar nos
próximos segundos.
— Não, não, não — sussurro, apertando as pálpebras e
balançando a cabeça de um lado para o outro.
Quero vomitar.
O túmulo da minha mãe está destruído. Sua lápide foi
quebrada e pichada com “VADIA MENTIROSA” em vermelho, a
terra foi escavada até alcançar o caixão e a tampa, que também
está pichada com xingamentos, foi aberta. Seus ossos estão
expostos embaixo de outra frase: “VOCÊ VAI SE ARREPENDER”. É
uma das piores e mais cruéis coisas que já vi.
Quero vomitar.
— Mãe… — sussurro, soluçando alto.
A inconsciência vem, rastejando como uma serpente prestes
a dar o bote.
Começo a socar a terra do chão com força, espalhando-a
para todos os lados. Com a visão embaçada, me arrasto até a
lápide e fecho a mão em punho, esfregando a lateral na frase para
tentar apagá-la. Minha pele começa a arder pelo atrito, mas a dor
não chega nem perto do que sinto em meu peito. O sangue está
seco e, embora eu esteja fora de mim, consigo notar que isso foi
feito há algumas horas.
As palavras não somem. Solto um grito frustrado, pego terra e
jogo-a em cima da pichação. Ela ricocheteia na lápide e volta para o
meu rosto, sujando-me ainda mais.
— Me desculpe, mãe — peço entre respirações sôfregas,
encostando a testa no chão. — Me desculpe por tudo. É culpa
minha. Me desculpe, por favor. Por favor, mãe. Eu nunca quis perder
você. Eu prometo. Eu não sabia… não sabia. Me desculpe.
Sinto como se estivesse dissociada da realidade. Minha
cabeça gira, a ânsia está no topo da garganta e meu peito dói. Não
consigo fazer nada além de chorar alto, socar a terra e implorar para
que ela me perdoe por tudo.
Nunca vou conseguir tirar essa imagem da cabeça. Quando
me lembrar dela e dos nossos momentos juntas, seus ossos
vandalizados vão invadir minha cabeça e substituir todas as
lembranças boas que tenho.
— Me desculpe — repito.
Repito tantas vezes que minha voz começa a morrer.
Não tenho forças para me mover, falar ou ligar para alguém.
Não tenho forças para nada. Então, a inconsciência vence. Em meio
ao choro e às súplicas, a fraqueza me consome e meu corpo cai de
lado.
 

 
Ouço uma voz distante gritando meu nome. A cada segundo,
ela fica mais e mais perto, até que soa tão alto que meu ouvido dói.
Com um resmungo, começo a abrir devagar as pálpebras. A
visão embaçada não me permite enxergar muito, mas eu
reconheceria em qualquer lugar os olhos verdes que me encaram.
Eles estão arregalados, transbordando pânico e medo.
Sinto meu corpo balançar, solto uma respiração fraca e pisco
repetidas vezes para tentar enxergar melhor. As coisas ficam mais
nítidas e percebo que estou sendo carregada no colo por Alessia.
— Lyanna, fale comigo! — exclama.
De repente, sou colocada numa superfície macia. Permaneço
olhando para as duas esmeraldas que tanto me fascinam conforme
sua boca se move e me esforço para tentar entender o que sai dela.
— Lyanna, você está bem? Consegue falar? — outra voz
familiar soa próxima de mim.
Viro a cabeça e encontro Sophie do outro lado. Sua mão toca
minha testa, talvez para verificar se estou com febre. Outra mão
começa a me tocar e vejo Alessia inspecionando cada parte do meu
corpo para, provavelmente, encontrar algum ferimento.
— Não… Não estou ferida — sussurro.
A consciência volta aos poucos, até que já consigo raciocinar
melhor sobre o que está acontecendo e onde estou.
É o quarto de Alessia.
— Você está bem, meu amor? — ela pergunta, desesperada,
segurando meu rosto com as duas mãos. Vejo uma lágrima
escorrendo pela sua bochecha e fico pasma, mirando-a em
descrença. — Fale comigo, principessa. Estou quase tendo um
ataque cardíaco aqui, porra. Fale comigo ou vou morrer.
— Como… Como vim parar aqui? — Tento me sentar e uma
pontada de dor atinge minha cabeça com força. Grunho alto e levo a
mão até a têmpora.
— Está machucada? — Soph indaga. — Amiga, precisamos
te levar para o Dr. Roth!
— Estou bem — garanto. Os dedos firmes de Alessia
continuam em minha mandíbula, segurando-me como se eu
pudesse quebrar. Olho-a mais uma vez, nossos rostos tão próximos
que fico desnorteada. — Eu só desmaiei. Estava sozinha no
cemitério.
Ela franze as sobrancelhas, parecendo confusa.
— Cemitério? Você me mandou uma mensagem dizendo que
estava em frente à Dark Notes e eu precisava te buscar.
O quê?
— Como assim? Não, eu estava no cemitério. No túmulo da
minha mãe. — Intercalo o olhar entre as duas. Sophie está com a
mesma expressão confusa.
— Você estava desmaiada no banco do seu carro — minha
amiga explica. — Alessia foi correndo e me ligou para que eu
lidasse com os soldados da boate. Consegui criar uma distração e
ela passou despercebida. Nós te trouxemos aqui depois.
Meu coração acelera em medo. Alguém estava atrás de mim
no cemitério, me pegou e me levou até a boate. Depois, enviou uma
mensagem para elas. Por quê? Quem?
Ao olhar para ela, percebo que teve o mesmo raciocínio. Seu
semblante cai, fechando-se aos poucos, e a fúria toma conta de
cada centímetro de seu rosto.
— Vou matar todos eles — sussurra, levantando-se.
Caminhando de um lado para o outro em puro desespero, uma mão
na cintura e a outra agarrando o cabelo, esbraveja: — Vou matar
todos eles! Juro pela minha própria vida, porra!
— O que está acontecendo? — Wilson pergunta.
— Eu estava no cemitério, Soph. Alguém me pegou e me
levou até lá enquanto eu estava inconsciente.
— O quê? Mas por que alguém faria isso?
Esqueço-me de que meus amigos não sabem sobre Oliver,
Holy Devils e todas as outras coisas que Alessia e eu conversamos.
Tudo que ela e Kai sabem é que algo está errado e estou
investigando.
— Para mostrar que eles conseguem me alcançar. — Respiro
fundo e esfrego as pálpebras cansadas. — Me machucar.
— Por que sinto que vocês estão escondendo alguma coisa?
— Sophie questiona, a sobrancelha direita arqueada.
— O que aconteceu? — Alessia ignora a pergunta, dirigindo-
se a mim. — Por que você estava toda suja de terra quando te
encontrei? Sophie conseguiu te limpar, mas ainda há alguns
machucados no seu corpo. O que aconteceu?
— Destruíram o túmulo da minha mãe.
Dizer isso em voz alta é como reviver o momento apavorante
de pouco tempo atrás.
— O quê?! — é Alessia quem vocifera.
— Está destruído. Picharam e quebraram a lápide, abriram o
caixão… Eu acabei desmaiando quando vi tudo aquilo. Já estava
mal porque… — minha voz morre ao mesmo tempo em que levanto
os olhos para mirá-la. Ela compreende o que eu pretendia dizer e
suspira. — A última coisa que me lembro é de ter caído e
desmaiado. Que horas são?
— Meio dia — Sophie responde e arregalo os olhos.
Fiquei inconsciente por quatro horas.
— Quando vocês me buscaram?
— Faz quase uma hora. Wilson, pode nos deixar a sós, por
favor?
— É claro que não! — chia, fuzilando-a com o olhar.
— Sophie… está tudo bem — asseguro.
Minha amiga me encara incrédula. Ela não faz ideia de tudo
que vem acontecendo entre Alessia e eu. Sequer imagina o que
descobri ontem à noite. Na visão de Sophie, detesto Romano com
todas as minhas forças por ela ter sido a culpada da morte da minha
mãe e por ter me usado por anos.
— Ly… — murmura, franzindo a testa. — Por que está
escondendo as coisas de mim? O que está acontecendo?
— Sophie, vou contar tudo a você e Kai. Eu prometo. — Pego
sua mão e entrelaço-a na minha. — Só preciso conversar com ela
agora, por favor. Me espere na sala, vamos embora depois.
— Você não vai sair desse apartamento — a voz de Alessia
nos interrompe e eu a fulmino com os olhos. — Não, Lyanna! Você
não vai sair do meu lado nem por um segundo, porra. Não vai.
— Dio, ela não muda nunca — Soph sussurra em meu
ouvido. — Romano, não pense que tenho medo de você só porque
é a chefe da Vendetta. Se machucar Lyanna mais uma vez, vou
enfiar sua cabeça na parede tantas vezes que vai acabar com o
crânio quebrado.
Alessia revira os olhos e gesticula a mão no ar em
concordância.
— Estou falando sério.
— Eu sei, Wilson. Vou anotar o recado.
Minha amiga planta um beijo em minha testa e se levanta.
Quando sai, o cômodo fica tão taciturno que sinto as lágrimas
voltando. Estou tentando não me lembrar das imagens que vi
naquele cemitério, mas é difícil esquecê-las.
Alessia vem até mim e se senta ao meu lado. Viro o rosto
para olhá-la e sua mão acaricia meu queixo. Seus olhos parecem ler
cada um dos meus pensamentos.
— Eu sinto muito pelo túmulo da sua mãe — sussurra, o tom
compassivo. — Sinto muito, muito mesmo. Há algo que posso fazer
para te ajudar?
— Pode me ajudar a matar aquele desgraçado.
— Não se preocupe, linda. Vou me vingar por isso também.
Por tudo.
— Não quero que se vingue por mim. Quero machucá-lo eu
mesma.
— Lyanna… — Solta uma lufada de ar, negando com a
cabeça. Respiro fundo, engolindo o choro. — Não vou te deixar
chegar perto dele.
— Ele destruiu o túmulo da minha mãe — enfatizo. — Sem
mencionar tudo que você me disse ontem. É um direito meu,
Alessia.
— Não entende o quão perigoso aquele homem é? Ele quer
que você se vingue, Lyanna. Quer que você vá até ele para poder te
pegar e… Cacete, só de pensar já fico louca.
— Ele não vai me pegar. Não sou nenhuma criança e você
sabe.
Ela suspira e anui com certa resistência. Ficamos caladas por
um instante até que sua voz ecoa novamente, em uma entonação
baixa e preocupada:
— Achei que eles tivessem machucado você.
Me viro para ficar de frente para ela, seu corpo está tão tenso
que consigo sentir o desespero exalando por cada poro. Hesitante,
toco seu ombro, deslizando o toque até chegar à mandíbula
definida. Seu olhar parece ganhar um brilho diferente.
— É a segunda vez… A segunda vez que eles te alcançam.
Não posso permitir que exista uma terceira, Lyanna. Por favor,
entenda que não posso te perder. Se algo acontecer com você…
— Nada vai acontecer comigo — afirmo, resvalando a ponta
dos dedos pela sua bochecha. Toco sua cicatriz, sentindo um breve
calafrio na coluna ao me lembrar de como ela surgiu. — Se eles
quisessem me machucar de verdade, já teriam feito. Teriam me
sequestrado hoje enquanto eu estava inconsciente.
— Eles querem me assustar — retruca. — Querem me
assustar até eu perder a cabeça. E eu vou, Lyanna. Vou perder a
porra da cabeça se eles tocarem em você mais uma vez.
— Por que estão fazendo tudo isso? — questiono,
escorregando o polegar até o canto da sua boca. Alessia abre-a um
pouco a fim de soltar uma respiração profunda e me pego
estudando seus lábios. — Só porque você fugiu?
O silêncio recai sobre nós por alguns segundos. Ergo os
olhos até os dela novamente, mas os seus estão fixos no colchão. A
forma como ela suspira pesadamente e engole em seco me diz que
ainda há coisas para serem contadas.
— Eu roubei algo de Oliver — confessa. — Um pen-drive com
todas as informações da gangue. Todos os crimes, nomes e
negociações. Eles fazem negócios com políticos, pessoas famosas
e importantes no mundo… E está tudo no pen-drive. Se ele cair nas
mãos erradas, a prisão de Duncan não vai ser nada comparado à
catástrofe que pode acontecer na política de algumas Nações.
— Todo mundo sabe que o submundo controla e influencia as
eleições, Alessia. Não é novidade.
— Não é só isso. Políticos importantíssimos, como o nosso
presidente, tem uma ficha criminal extensa. Tráfico de drogas?
Irrelevante perto das merdas que a maioria deles faz. O Exército é
corrupto, a polícia é corrupta, tudo que envolve o Estado é corrupto.
— E você sempre soube que eram eles por trás disso? Por
que me colocou na investigação para descobrir algo que já sabia?
— Cruzo os braços, repreendendo-a com o olhar. — Passei noites
em claro tentando entender o que estava acontecendo quando você
já sabia de tudo?
— Eu não podia deixar que você investigasse sozinha,
Lyanna. Nunca chegaria às conclusões certas, mas se por acaso
encontrasse alguma coisa sobre Oliver sei que iria atrás dele, e nem
em um milhão de anos eu permitiria isso. Então, sim, eu sempre
soube que era a Holy Devils por trás de tudo. Não era minha
intenção envolver você nessa merda, mas era melhor te ter ao meu
lado do que te deixar criando teorias perigosas.
Faz sentido, até. Mesmo assim, dei diversas oportunidades
para ela me contar a verdade e nunca consegui nada relevante. Fui,
basicamente, sua empregada.
— Sabia sobre o Cassio?
— Não — revela. — Eu não sabia que a Vendetta estava com
problemas nas cargas de heroína, muito menos que aquele filho da
puta estava ajudando a desviar para a gangue. Se soubesse, teria
voltado antes para Las Vegas.
— E sobre a Dark Notes?
— Eu sabia que eles estavam escondidos em algum lugar em
Vegas, só não imaginei que Alessandro seria tão incompetente a
ponto de perder a porra da boate mais importante. O idiota nem
tentou negociar? — Revira os olhos. — De qualquer forma, faz
sentido, porque é a mais lucrativa. E precisava ser, já que foi uma
parte do pagamento da dívida, e caso não tenha percebido ela não
pertence mais à Timoria. Oliver comanda aquele lugar agora.
Respiro fundo, passo os dedos no rosto e me levanto.
O desgraçado está com mais vantagem do que eu imaginava.
Precisamos destruí-lo o mais rápido possível, antes que ele consiga
nos destruir primeiro.
Cesso os passos, me viro para Alessia e falo:
— Tenho uma ideia.
“Minha loucura está à solta
Está correndo a você
Por favor me leve a lugares que ninguém vai
Você me deixa ligada nesse sentimento
Me deixa tão louca que eu mal respiro”
Gangsta | Kehlani
 

8 anos atrás
 
Não tenho ideia do que estou fazendo. Na verdade, tenho,
sim, e isso torna tudo ainda pior. Sei o que estou fazendo e decidi
continuar, por mais insano e errado que seja. Eu deveria ter sido
mais forte; deveria ter lutado contra os sentimentos apavorantes que
começaram a surgir desde a primeira vez que a encontrei naquele
maldito bar.
No começo, era só curiosidade. Eu queria descobrir o motivo
de ela ser tão temida no submundo e o porquê de seu interesse
repentino em mim. Depois, comecei a aprender coisas interessantes
sobre jogos de azar e apostas.
Quando percebi, estava indo aos nossos encontros por causa
dela. Não pelas cartas ou pela curiosidade, mas por ela. Tornou-se
muito confortável passar algumas horas na casa afastada com sua
companhia, embora as provocações e insinuações me deixassem
ainda mais perturbada. Porém, eu nunca admitiria para mim mesma
que gostava de toda aquela maluquice. Não conseguia.
Passei a ficar irritada, distraída e inconformada com todas
aquelas sensações causadas por Alessia. Cheguei a chorar de raiva
duas ou três vezes porque não conseguia parar de pensar nela. Não
importava o que eu estava fazendo, uma hora ou outra minha mente
voava até os olhos verdes que me assombravam a todo momento.
Sonhei com a desgraçada mais vezes do que consigo me lembrar e
não eram apenas sonhos normais; a maioria deles era erótico.
Estava ficando, literalmente, doente.
Até que explodi. Algo muito intenso tomou conta de mim e me
fez dirigir pelo território da Vendetta, pois eu sabia que seria pega e
eventualmente levada até Alessia. Eu precisava colocar tudo para
fora e precisava que ela soubesse que estava acabando com a
porra da minha vida.
Um mês atrás, joguei a primeira pá de terra em minha própria
cova. Depois de falar uma série de insanidades — desejos
reprimidos —, permiti que ela me beijasse. E se não tivéssemos
sido interrompidas, permitiria que ela me fodesse também.
Desde então, posso definir nossa relação com uma única
palavra: loucura. Loucura pura e crua. Em dezoito anos vivendo no
mundo do crime e cometendo loucuras que ninguém tão novo
deveria cometer, digo com tranquilidade que me relacionar com
Alessia Romano é a coisa mais louca que já fiz.
Ela é… surreal, para ser sincera. Apesar da rivalidade
centenária, tudo que ela faz e fala me faz sentir a mulher mais
bonita, atraente e inteligente da face da Terra. A maneira como sou
olhada e tocada me tira do eixo, pois é como se eu realmente fosse
a mulher mais bonita, atraente e inteligente de todas. Sei que não
sou, mas Alessia me faz acreditar que sim.
Em um maldito mês.
Loucura.
Ando saindo escondida e inventando desculpas para justificar
meus sumiços a Sophie e Kai, algo do qual não me orgulho. Porém,
eles não podem saber. Ninguém pode. Se alguém desconfiar que
Alessia e eu nos encaramos de um jeito diferente, já seria suficiente
para começar uma guerra.
Imagine se descobrirem que transamos como coelhos.
Estacionamos em frente ao galpão e saio da moto, tirando o
capacete e arrumando o cabelo bagunçado pelo vento da estrada.
Ajeito o decote do corset e quando levanto a cabeça vejo os olhos
verdes brilhando em minha direção. Um sorriso perverso de lado, o
mesmo de sempre, delineia sua boca.
— O quê? — pergunto, arqueando a sobrancelha.
Ela salta do banco sem quebrar o contato visual, guarda
nossos capacetes e me puxa pela cintura. Derreto inteira quando
seus lábios grudam nos meus, uma das mãos agarra meu cabelo e
a outra segura minha mandíbula, iniciando um beijo tão gostoso que
fico com as pernas bambas automaticamente. Arrasto as unhas pela
sua nuca, pois sei que ela gosta de ser arranhada.
Como previ, um gemido baixo escapa de sua garganta.
Sorrio, mordisco seu lábio inferior e ela direciona os beijos até meu
pescoço, lambendo e chupando minha pele da forma mais sensual
possível. Com os olhos fechados, solto uma respiração longa e
esqueço de tudo ao nosso redor.
— Linda pra caralho — sussurra em meu ouvido, trilhando o
caminho de volta à minha boca. — Nunca vou me acostumar com a
sua beleza, Lyanna.
— Você é tão exagerada — digo, embora sinta milhares de
borboletas se debatendo em meu estômago com o elogio.
Ela está sorrindo tão grande que parece ter ganhado dez
milhões de dólares. Desde que começamos a nos envolver, seus
olhos verdes brilham como nunca vi antes. A expressão, que
sempre foi fechada e assassina, está radiante todas as vezes que
nos vemos.
A Alessia com quem estou me relacionando não é nada
parecida com a Alessia Romano, Executora da máfia e uma das
pessoas mais temidas do submundo. É apenas Alessia, a mulher
que fala sacanagens em momentos impróprios e cozinha o melhor
suflê de queijo que já comi.
Às vezes, é difícil acreditar que são a mesma pessoa. E,
muitas vezes, me pego vidrada nela enquanto divago sobre o que
está acontecendo e em como tudo isso parece mentira.
Exatamente como agora.
— Terra chamando Lyanna — brinca, as sobrancelhas
erguidas em diversão. — Você fica babando em mim toda hora,
principessa. ‘Tá me imaginando nua?
— Quer tirar a roupa?
Ela gargalha, balançando a cabeça em negação. Cerro as
pálpebras, fingindo não compreender o motivo da risada.
— Sim, eu estava te imaginando nua — continuo. — Então
perguntei se você quer tirar a roupa. Por que ‘tá rindo?
Ela estala a língua, avançando para me roubar um beijo. Mais
rápido dessa vez, mesmo que minha vontade seja de passar horas
e horas devorando sua boca gostosa.
Cazzo, o que está acontecendo comigo? Quando foi que me
tornei a pessoa que pede para a arqui inimiga, a qual eu detestava
pouco tempo atrás, tirar a roupa?
— Quando voltarmos para Vegas… — ela começa, puxando-
me pela mão até a entrada. Entrelaça nossos dedos e engulo em
seco, ainda me acostumando com a sensação de estar assim com
ela. Tudo acontece rápido demais entre a gente. — Prometo que tiro
toda a minha roupa para você, linda.
— Você não acredita em promessas — rebato, fitando-a em
desconfiança.
— Acredito em qualquer merda que envolva nós duas
peladas.
Reviro os olhos e rio, batendo meu ombro no dela.
Chegamos em frente ao portão, ela dá três batidinhas na pequena
janela ao lado e alguns segundos se passam. Quando uma fresta
minúscula se abre, a voz nada amigável diz:
— Senha.
— Shakespeare — ela responde.
Franzo a testa, intrigada, e a janela se fecha. Antes que eu
possa perguntar, um barulho alto ecoa à nossa frente. Um homem
grisalho arrasta o portão e nos dá passagem, sem sequer erguer os
olhos. Adentramos o galpão, atravessamos algumas salas vazias e
enfim chegamos ao que parece ser a última porta.
Quando Alessia a abre, a música alta surge tão de repente
que sobressalto pelo susto. Conforme descemos a escada, o cheiro
de maconha se mistura ao rap estralando nas caixas de som e ela
se coloca atrás de mim, abraçando-me pela cintura ainda com a
mão entrelaçada à minha, como se fosse minha guarda costa. Um
beijo rápido é plantado em meu pescoço enquanto sou guiada por
entre as dezenas de pessoas até outra porta nos fundos da festa,
por onde passamos após a liberação de um homem gigante. No
lado de dentro, bem menos barulhento do que lá fora, encontro
algumas mesas e pessoas jogando o que deduzo ser blackjack.
— Verdugo! — um homem exclama, levantando-se para
cumprimentar Alessia com um aperto de mãos. Seus dedos voltam
para a minha cintura em seguida, firmes e possessivos. — Pensei
que estivesse morta, mujer.
— Não vou morrer tão cedo, Hernández.
Os olhos castanhos escorregam até mim e um interesse
instantâneo surge em seu semblante. Com um sorriso sacana,
pergunta:
— E essa é…
— Minha — Alessia o corta e o rapaz ri, assentindo.
— Isso já ficou claro, verdugo. Estava só querendo saber o
nome dela.
— Bonnie — respondo, arqueando o canto da boca. — E
você é…?
— Miguel Hernández, doçura. Veio aqui para apostar ou só
está acompanhando minha amiga?
— Vou apostar — confirmo.
— Certo, certo. — Ele volta para sua mesa, senta na ponta e
indica as cadeiras vazias para nós. — Fiquem à vontade,
senhoritas. Será um prazer perder dinheiro para você novamente,
Less.
Antes que Alessia vá, seguro seu pulso e me viro. Aproximo
nossos rostos e pergunto baixinho:
— “Verdugo”? “Less”?
— “Verdugo” significa “Executora” em espanhol. “Less” é o
nome que dei quando conheci o grupo. Miguel sabe quem eu sou,
mas o resto deles não.
— Ninguém sabe que você é a Executora da maior máfia do
país? — Ergo a sobrancelha e ela dá de ombros, despreocupada.
— Se sabem, não ligam. Os Hernández são um cartel famoso
no México e quase sempre vêm para Miami atrás de jogos e
apostas. Não atuam no país e nem se interessam pelos nossos
negócios.
— Você costuma tirar dinheiro deles, então? — Sorrio fraco,
ela assente e me dá um selinho.
— Costumo tirar dinheiro de muita gente, linda.
— Não vai tirar de mim.
Ela prensa os lábios e faz uma careta divertida, como se não
acreditasse. Cerro as pálpebras, dou um tapinha em seu ombro e
Alessia me puxa em direção à mesa.
Nós passamos quase duas horas jogando, jogando e
jogando. Quando me canso, começo a conversar com outras
mulheres que chegam e não vejo o tempo passar. Depois de ganhar
alguns milhares de dólares, Alessia nos leva para a pista de dança.
É estranho não precisar me preocupar com as pessoas ao
nosso redor. Ninguém aqui nos conhece, então posso fazer o que
eu quiser sem medo de ser descoberta e começar uma maldita
guerra entre máfias.
Me sinto livre. Pela primeira vez em muito tempo, tenho o
sentimento indescritível de liberdade; de poder ser quem eu sou por
uma noite; de me permitir aproveitar o proibido. O corpo proibido, a
boca proibida, a mulher proibida.
No final da noite, percebo que descobri algumas coisas: que
amo tudo que é proibido; que as aulas de baralho foram realmente
úteis; e que gosto muito, muito da liberdade.
E descobri que estar ao lado de Alessia é a única coisa que
me traz essa liberdade. Deve ser por isso que, ao longo dos meses,
não consigo mais me imaginar longe dela. Não consigo mais me
convencer de que nossa relação é resumida em sexo causal,
porque acredito que nunca tenha sido. Nunca foi apenas sexo, nem
mesmo quando jurei a mim mesma que era.
Sempre foi um monte de coisas, mas, acima de tudo, sempre
foi loucura.
Uma loucura que espero ter para o resto da vida, embora
saiba que estamos fadadas à ruína.
“Eu estou lutando contra o fogo
Só para chegar perto de você
Nós podemos queimar alguma coisa, meu bem?
E eu corro por milhas só para conseguir um gosto
Deve ser amor no cérebro”
Love On The Brain | Rihanna
 

 
Bato três vezes na porta e ouço um “entra” do outro lado.
Coloco a cabeça para dentro do quarto e encontro Sienna em frente
ao espelho, mexendo nos fios loiros do cabelo. Seu vestido azul
claro é justo, realçando as curvas e combinando com a cor dos seus
olhos. Quando vira a cabeça, abre um sorriso em minha direção.
— Você está linda, Barbie — digo, aproximando-me. — Vou
ter que ameaçar todo mundo que te olhar esta noite.
Ela revira os olhos.
— Pare de ser boba. Ninguém pode me olhar agora?
— Não. Você ainda é uma criança.
— Tenho vinte e um anos. — Caminha até a cama, senta-se e
bate no espaço ao seu lado, chamando-me para perto. — Você está
linda também, Ale. A cor combinou com você.
Não costumo usar vestidos, mas a ocasião pede por algo
sofisticado. Apesar de preferir ternos em eventos como este, achei
que seria legal uma mudança no visual. Meu vestido é longo e justo,
na cor vinho, com mangas longas e um decote ombro a ombro. Os
dedos estão enfeitados com os anéis de sempre, inclusive o que é
exclusivo da chefe da máfia.
— Faz tempo que não uso um vestido desse — revelo,
juntando-me a ela no colchão.
— Você vai receber mais olhares do que eu. Não pode
reclamar.
O único olhar com o qual me importo é de uma mulher que
nem tenho certeza se virá. Nos vimos pela última vez de madrugada
e preferi não tocar no assunto do baile da Vendetta, já que Lyanna
estava abatida demais com a destruição do túmulo de Antonietta.
A ideia que ela disse ter era, para a minha surpresa, um
incêndio.
Lyanna incendiou a Dark Notes, a propriedade que
costumava ser a mais importante da sua própria organização.
Perguntei se ela tinha certeza, uma vez que a conheço e sei que
poderia se arrepender depois, porém era nítido que estava decidida.
Pude ver em seus olhos o quanto está determinada em destruir a
Holy Devils completamente.
Ela montou um plano perfeito em poucas horas. Mexeu com o
sistema da boate, enviou alertas falsos para os dispositivos dos
seguranças e até criou frases do zero baseadas na voz de alguns
soldados que trabalhavam lá, os quais conseguimos ouvir e gravar
depois da invasão ao sistema.
Minha mulher é a porra de um gênio do mal.
Oliver deve estar furioso e sem dúvida nenhuma vai cobrar
Alessandro. Não me importo se pensam que foi a Vendetta,
contanto que não mexam com Lyanna. Conhecendo aquele filho da
puta, aposto que uma hora ou outra ele vai perceber que fomos nós.
Vários homens da gangue morreram queimados, o que me
deixou feliz e satisfeita. Acredito que os sobreviventes tenham
fugido para Los Angeles, contudo, caso ainda estejam em Las
Vegas, podem ser um perigo ao baile desta noite.
Se não fosse uma tradição tão importante e enraizada na
nossa máfia, eu teria cancelado. Já que não foi possível, tripliquei a
segurança da mansão e das ruas. Se qualquer pessoa suspeita
aparecer no território, meus homens têm permissão de atirar para
matar.
— Onde vai guardar seus cigarros? — Sienna pergunta,
notando que não há nenhum bolso no vestido.
Levanto a barra e mostro os dois coldres em minhas coxas.
Um deles guarda facas e o outro, uma arma e um maço de cigarro
com o isqueiro. Minha irmã ri e balança a cabeça.
Quando ela me perguntou o motivo de fumar tanto, eu menti.
Falei que tinha apenas se tornado parte da minha rotina, mas a
verdade é que o cigarro foi um substituto da maioria das minhas
refeições nos meus primeiros meses no cativeiro da Holy Devils.
Quando eu me comportava mal — tentava matá-los —, não recebia
comida. Apenas cigarros.
— Como você está? — questiono. — Em relação a Dante.
Sienna suspira e desvia o olhar, mirando o chão.
— Está ficando menos difícil… Mas ainda é uma merda. Para
ser sincera, eu já esperava que ele fosse morrer cedo. Nosso pai
era muito odiado e não tiro a razão das pessoas, é que… Ele ainda
era nosso pai, sabe? É complicado.
Um nó se forma em minha garganta e sinto os músculos
enrijecerem. De todas as coisas que eu sabia que enfrentaria ao
matá-lo, a reação de Sienna sempre foi a que mais me preocupou.
Não espero compreensão, tampouco que ela me perdoe. Sei que
vai levar um bom tempo até aceitar e me odiar um pouco menos.
Porque, sim, Sienna vai me odiar pra caralho. Mesmo depois
que eu contar tudo nos mínimos detalhes, ela não vai entender.
Afinal, “ele ainda era nosso pai”. No entanto, espero que pelo menos
não coloque a culpa em mim. Aí teremos um problema.
Nunca pedirei desculpas por matar o homem que me enviou
para o inferno. Nunca vou me arrepender de tê-lo torturado a ponto
de não poder exibi-lo em seu caixão. Nunca, em hipótese alguma.
Ninguém esteve na minha pele durante aqueles três anos que
passei apanhando, sendo castigada e lutando contra brutamontes.
Minha irmã nunca viveu um por cento do que vivi em tão pouco
tempo e nunca permitirei que viva. Porque é isso que eu faço.
Eu protejo aqueles que amo e queimo no inferno por eles.
— E você? — indaga, embora já saiba como me sinto.
— Estou bem. — Sorrio fraco, olhando-a, e a mudança em
seu semblante me desmonta. — Ser chefe da máfia não me dá
muito tempo para pensar nisso.
Na verdade, não dou a mínima para a morte dele. Afinal, fui
eu que o matei.
— Imagino. — Levanta e volta a se olhar no espelho. — Fui
em um bar ontem com um pessoal e você foi o assunto por um bom
tempo.
Arqueio as sobrancelhas e cruzo os braços.
— Falaram muito mal de mim?
Ela abre um sorriso perverso enquanto vai até a escrivaninha.
— Só um pouco.
— E você deixou falarem mal da sua irmã? — Semicerro as
pálpebras e me levanto. — Da sua chefe?
— Não vem com esse papo de “chefe” pra cima de mim.
Quando não estou respondendo à organização, você é minha irmã.
— Continuo sendo sua chefe enquanto sou sua irmã —
retruco, assistindo-a andar de um lado para o outro. Coloca um
colar, brincos e anéis. Por último, pega sua máscara e se põe à
minha frente.
— Quer que eu faça uma reverência? — debocha. — Toda
vez que você entrar no cômodo, vou te apresentar como “Alessia
Romano, primeira de seu nome, rainha das cartas e das armas,
também conhecida como quebradora de corações”.
— O quê?! — chio. — Desde quando sou “quebradora de
corações”?
— Desde que consigo me lembrar. — Dá de ombros. — As
mulheres faziam fila e você nunca se importava com nenhuma
delas. Sempre foi requisitada pela maioria do submundo.
— Não exagere.
Modéstia à parte, é verdade.
— Você sabe que não estou, pare de tentar ser humilde.
Faço uma careta convencida, dou de ombros e lanço-a uma
piscadela. Ela ri, revira os olhos e me dá um tapinha no ombro.
— Quem é o “pessoal” com quem você saiu? — curiosa,
questiono.
— Os de sempre.
— Passei cinco anos longe, Sienna. Não sei quem são os “de
sempre”.
Me sinto mal pelas palavras usadas no mesmo instante em
que elas saem. Os ombros de Enna caem em chateação, bem como
a expressão divertida some.
— Tenho duas melhores amigas, Kyara e Aurora. As duas
trabalham nas fábricas e têm minha idade. Converso e saio com
outros soldados, mas elas são as mais próximas de mim.
Um sorriso genuíno cresce em meus lábios. Não conheço ou
me lembro dessas garotas, mas pelo modo como os olhos de
Sienna brilham ao falar delas, sinto que posso gostar de ambas.
— Vou examinar a ficha delas mais tarde. Algum namoro? —
Estreito as pálpebras, bancando a irmã ciumenta.
— Nunca namorei, Alessia. Tive alguns casinhos, é óbvio.
— É óbvio — ironizo, revirando os olhos, e ela sorri.
Por algum motivo, penso em Jayden. Lembro-me da cena
que vi há algum tempo, no treinamento que Lyanna invadiu. Eles
pareciam próximos demais, uma relação que eu não esperava
encontrar ao voltar.
— Está saindo com alguém agora? — tento não soar
suspeita.
Sua reação já me responde. Os olhos arregalam por uma
fração de segundo, tão rápido que qualquer outro não perceberia; os
ombros tensionam e a respiração falha. Na mesma velocidade, ela
se recompõe.
— Não — diz, seca.
Ergo as sobrancelhas e reprimo um sorriso.
— Você é uma péssima mentirosa — zombo e ela me fulmina
com o olhar.
— Vamos logo!
Será que tem mesmo alguma coisa acontecendo entre os
dois? Entre minha irmã e a porra do meu melhor amigo que não vale
um dólar? Preciso descobrir o quanto antes, pois não pensaria duas
vezes antes de arrebentar a cara de Jayden se ele machucasse
Sienna.
E conhecendo-o como conheço, sei que ele vai. O maldito é
uma das pessoas mais anti-romance que já vi, ao contrário dela. Os
dois são opostos que, de certa forma, se completam.
Mas até se completarem, muita merda pode acontecer.
— Já tem muita gente aqui? — pergunta enquanto descemos
os degraus. O Salão de Festas fica em uma ala afastada dos
quartos. — Tentei não me atrasar muito.
— Algumas.
— Aliás, onde está sua máscara?
— Deixei com Yuna.
Quando alcançamos o chão, seguro seu pulso com cuidado e
Sienna me olha por cima do ombro.
— Você está armada? — questiono e ela franze as
sobrancelhas.
— Por quê?
— Está ou não?
— Claro que estou. Há alguma coisa que eu deveria saber,
Ale?
Um milhão delas.
— Só por precaução — digo uma meia verdade.
Ainda parecendo desconfiada, ela anui. Enlaço meu braço ao
dela e retomamos o trajeto.
 

 
Apertei dezenas de mãos desde o primeiro segundo que pisei
neste salão, ouvi inúmeros elogios e me segurei para não revirar os
olhos com a maioria deles. Alguns dos homens das subdivisões, os
mesmos que estavam na lista de possíveis ameaças que Chloe me
entregou, sorriram para mim e me disseram que eu seria uma ótima
don.
Chloe, inclusive, não está falando comigo. Me cumprimentou
quando chegou, mas quase duas horas já se passaram e ela ainda
não veio conversar. Se não a conhecesse tão bem, estaria
preocupada com o fato de ela ter descoberto sobre Lyanna e eu.
Apesar de eu não ter confirmado, muito pelo contrário, Ventura não
é boba. É uma das pessoas mais inteligentes que já conheci.
Ao mesmo tempo em que pode ser uma ameaça, sei que ela
não vai vazar a informação. Não só porque sou sua chefe e não
hesitaria em matá-la por isso, mas porque temos uma história e,
apesar de tudo, sentimos certo carinho uma pela outra.
Ainda assim, preciso me certificar de que Chloe não vai ser
um problema num futuro próximo. Por isso, caminho em direção à
roda na qual ela está interagindo com soldadas de outras divisões.
Quando me veem, todos cessam a conversa e se viram para
mim. Curvam levemente a cabeça em saudação e em sinal de
respeito. Ela, por outro lado, não move um músculo. Os olhos azuis
me encaram de maneira séria e, se o rosto não estivesse coberto
pela máscara, tenho certeza de que veria o cenho franzido em
incômodo.
— Senhoritas, precisarei roubar Ventura por alguns minutos
— digo, sorrindo de lado.
Chloe não sorri e nem solta uma provocação, como sempre
fez. Apenas se afasta, me guiando até um canto isolado do salão.
Quando apoia o corpo na parede, cruza os braços.
— Não vou revelar seu segredo, se é isso que te preocupa —
solta, direta e ríspida.
— Está falando do quê?
— Quer mesmo que eu fale em voz alta, Alessia?
Respiro fundo e dou um passo adiante, ficando um pouco
mais próxima dela para podermos conversar em uma entonação
mais baixa.
— Do que você sabe, Chloe? Uma tatuagem não significa
nada.
— Não é só a tatuagem. Pensa que sou idiota? É a forma
como você lidou com ela nas duas vezes que ela invadiu nosso
território. Se fosse qualquer outra pessoa daquela máfia ou até
mesmo de organizações com quem não temos tanta rivalidade
assim, você a teria jogado no subsolo ou matado logo de uma vez.
Não acho que você está enganando muita gente, mas, se estiver,
não sou uma delas.
— E o que você pensa que tudo isso significa? Que tenho
alguma coisa com ela?
Chloe revira os olhos e bufa.
— Pare com isso. Pare com as perguntas inúteis. Você sabe
que eu sei e ponto final. Já disse que não vou contar para ninguém.
Solto uma lufada e assinto. Ela balança a cabeça de um lado
para o outro, incrédula.
— Não consigo acreditar! — sussurra, exasperada,
encarando-me em reprovação. — Desde quando? Tenho certeza de
que não começou só depois que você voltou. Há quanto tempo,
Alessia? O que tem na cabeça para se envolver com alguém como
ela?
— Não vou te responder nada sobre isso. Espero que fique
entre nós, Chloe.
— É por isso, então… — murmura, mais para si mesma do
que para mim. — É por isso que recusou minhas investidas. Já
desconfiava que existia outra mulher, mas nunca imaginei que seria
uma inimiga.
— Ficou mesmo magoada por eu ter recusado transar com
você? — Arqueio a sobrancelha.
— Claro que não, tenho muitas outras opções. Só estou
juntando algumas peças na cabeça.
Passamos alguns segundos nos encarando em silêncio, até
que a postura dela parece relaxar.
— Dio, tantas bocetas nesse país e você escolheu a única
que não deveria. É mais perturbada do que eu imaginava, Romano.
— Não é só sexo — sussurro. — Sou completamente
apaixonada por ela, Chloe. Respiro por ela.
Ventura parece genuinamente surpresa e chocada, a boca
abrindo em um pequeno “O”.
— Pensei que era só algo casual. Como assim “respiro por
ela”, pelo amor de Dio?
— Está se gabando tanto por ter descoberto há menos de um
mês, mas faz dez anos que estou envolvida com ela. Não é tão
espertinha assim, hein?
É como se estivesse vendo um fantasma. Aposto que seu
rosto empalideceu, tamanho choque que o olhar transparece.
— Nem fodendo! — Desencosta da parede, cobrindo a boca
com as mãos. — Você não está brincando comigo, né?
— Não estou.
— Mio Dio, non ci posso credere. Non posso credere![17]
— Fale baixo! — peço e ela me olha em descrença.
— Falar baixo? Como é que vou falar baixo depois de uma
informação dessa? — a cada palavra, sua entonação fica mais alta.
— Chloe! — repreendo. Ela balança a cabeça, gesticula com
a mão e passa a outra no cabelo.
— Meu Deus, acho que vou desmaiar. Meu Deus, tenho
certeza de que você está tirando onda com a minha cara! Não é
possível. Alguém da Vendetta sabe?
— Só Yuna e Jayden. E espero que continue assim.
— Não vou contar para ninguém, pare de desconfiar da
minha palavra.
— Você está quase anunciando para todo o salão, Chloe.
— Só estou chocada demais! — se defende, as pálpebras
ainda arregaladas. Tento reprimir um sorriso, mas é impossível. —
Você é uma desgraçada, Alessia. Não acredito que conseguiu
esconder isso por uma década.
— Escondo milhares de coisas desde que entrei na máfia.
Não é nada novo.
— Algo assim?
— Ah, não. Nada tão escandaloso assim — brinco, mas ela
me fuzila com o olhar.
— Você perdeu a cabeça, mas não vou me intrometer. Só
saiba que isso pode foder tudo, especialmente sua liderança.
— Eu sei.
— Não, não sabe. Se soubesse, não estaria se envolvendo
com ela ainda. Na verdade, nem teria começado.
Sem esperar por uma resposta, ela gira os calcanhares e se
afasta. Respiro fundo e passo a mão no pescoço, sentindo os
músculos tensos. Apesar de tudo, sei que Chloe não vai me
prejudicar.
Caminho até Jay, que está sentado no bar. No entanto, no
meio do caminho, sinto um ímã puxando meus olhos até a porta.
E, então, ela aparece.
Embora esteja mascarada e com as tatuagens cobertas, a
reconheço. Reconheceria em qualquer circunstância e lugar. Seu
vestido é longo e justo, na cor escarlate, sem alças e com decote
coração. O tecido parece ser cetim, macio e brilhante. Deve ter
levado um bom tempo para ocultar todos os desenhos com
maquiagem, pois sua pele está livre de tinta. Os braços e mãos
estão cobertos por longas luvas rendadas, dando-lhe um ar ainda
mais sensual.
A máscara da mesma cor esconde todo o rosto, com exceção
dos olhos e da boca. O maldito batom, que é sua marca registrada,
pinta seus lábios e faz meu corpo esquentar. Ela está deslumbrante,
como a porra de uma Deusa do Olimpo, e sequer consigo esconder
o efeito instantâneo que ela tem sobre mim. Estou petrificada no
meio do salão, olhando-a descaradamente e sem nenhum pudor.
Lyanna ainda não me viu. Os olhos escorregam pelo local,
observando cada centímetro como a boa soldada que é, até
pararem num ponto específico. Acompanhando-a, percebo que está
encarando Chloe.
Para a minha sorte, Ventura não está encarando-a de volta.
Duvido que vai reconhecê-la, inclusive.
Mudo a rota e inicio os passos em sua direção. Tento ser
discreta e não chamar muita atenção, mas acho que estou
parecendo uma psicopata enquanto a olho. Após duas horas, perdi
as esperanças de que minha principessa atravessasse aquela porta
e por um lado tentei me convencer de que era melhor assim; por
outro, estava me corroendo por saber que não a teria ao meu lado
numa noite tão especial como esta.
Qualquer outra pessoa perdeu completamente a chance de
ter minha atenção hoje. Nada e nem ninguém será capaz de me tirar
de perto de Lyanna.
Enfim atraio sua atenção quando paro a poucos passos e
noto seu peito inflando em uma respiração profunda, soltando-a
devagar enquanto nos encaramos. Estou petrificada como uma
adolescente estúpida, incapaz de formular uma frase coesa. Ela
está ainda mais magnífica de perto, a tonalidade clara dos olhos
castanhos realçada pelo delineado preto.
Não entendo como alguém pode ser tão bonita assim.
Fecho as mãos em punho, me segurando para não devorá-la
bem aqui, em meio a toda sua máfia rival. Em meio aos meus
soldados.
Enlouquecendo-me um pouco mais, seu olhar desce
vagarosamente pelo meu corpo e as pálpebras arregalam de
maneira sutil ao reparar em minha roupa. Quando crava os orbes
nos meus novamente, vejo um brilho diferente neles.
Desejo.
— Você veio — consigo sussurrar.
— Estava sem nada para fazer — zomba, dando de ombros.
Sorrio com o lábio entre os dentes.
— Como você está? — pergunto, torcendo para que entenda
ao que me refiro.
Apesar de eu ter notado o quão satisfeita ela ficou por
incendiar a Dark Notes, sei que isso não apagou a dor causada pela
destruição do túmulo de Antonietta. Enquanto ela montava o plano
do incêndio, usei meus privilégios — e contatos — para consertar o
túmulo sem que alguém descobrisse o que aconteceu. Ordenei que
o trabalho fosse feito com urgência, no menor período de tempo
possível, e recebi as fotos de tudo em seu devido lugar há poucas
horas. É incrível o que dinheiro e poder são capazes de fazer.
Acho que ela ainda não viu, mas tenho certeza de que vai se
sentir um pouco melhor quando ver tudo como era antes.
Infelizmente não consigo apagar suas memórias, porém, vou fazer
tudo que estiver ao meu alcance para diminuir sua dor e lhe
proporcionar lembranças boas.
— Estou bem. Eu não sabia se deveria vir — revela, olhando
ao redor por um instante. Depois, volta a me fitar. — Queria ir… lá…
mas não tive coragem.
— Está tudo bem — asseguro, dando um passo adiante.
Quero segurar sua mão, beijar seus lábios e segurá-la com força em
meus braços. Quero colocar todos para fora e dançar uma música
lenta com ela. Quero que o mundo se resuma apenas aos nossos
momentos juntas e todo o resto evapore. — Vamos conversar sobre
tudo mais tarde.
— Certo…
— Vem — chamo, apontando com a cabeça para o canto
onde Jayden está.
Caminhamos lado a lado, o silêncio e a tensão excruciantes.
Há quase duzentas pessoas espalhadas pela mansão, a maioria
concentrada neste salão gigante. Em uma inspeção rápida, percebo
que os membros do Conselho estão na varanda fumando. Eles são
os que mais me preocupam e enquanto conseguir manter Lyanna
longe deles, estou bem.
— Cara, não sei mais o que fazer — ouço meu melhor amigo
dizer ao barman ao nos aproximarmos. — É uma merda, porque eu
quero, mas não sei se…
A frase morre quando King nos vê. A boca se fecha no
mesmo segundo e ele engole em seco, abrindo um sorriso fraco de
lado.
— E aí, chefe. — Sua atenção recai sobre ela e as
sobrancelhas franzem. — Você é nova. Prazer, Jayden King.
Ele estende a mão e reprimo o desejo de rir. Pelo menos, é
sinal de que Lyanna está irreconhecível.
— Prazer, Zoe LeBlanc — ela se apresenta com o nome falso
que lhe dei para entrar.
Jay semicerra as pálpebras, como se estivesse começando a
desconfiar de algo. Olha-me com certa suspeita e averiguo ao redor
para me certificar de que não há ninguém nos ouvindo.
— É ela — sussurro.
Não contei para ele e nem Yuna que ela viria. Eu sabia que
ambos achariam uma péssima ideia e não posso negar que talvez
seja, porém, preciso dela aqui. É um evento para comemorar a
minha liderança, algo significativo e que quero compartilhar com a
mulher que me fez sobreviver aos últimos anos.
— Ela…?
— Tem outra “ela”, Alessia? — a diabinha pergunta em um
tom divertido e provocativo.
— Claro que não. Jayden, é ela — dou ênfase.
Não demora para que ele compreenda. Afinal, só existe uma
“ela” em minha vida.
— Você perdeu a cabeça? — indaga, sério.
— King…
— Não, Alessia — me interrompe. A atenção está cravada em
mim, como se Lyanna não estivesse ao lado. — Não vou fingir que
você está certa só porque é minha chefe e melhor amiga. É loucura
e não sei o que estava pensando quando decidiu trazê-la nesse
ninho de cobras. Acha mesmo que ninguém vai reconhecê-la?
Reconhecer a voz dela? Vão sacar uma arma no mesmo segundo.
— Nem você a reconheceu — refuto, arqueando a
sobrancelha. — E teve mais contato com ela do que qualquer outro
aqui.
— Não importa. É loucura.
De esguelha, vejo-a abaixando a cabeça. Tenho certeza de
que está arrependida de ter vindo após as palavras duras de
Jayden.
— Cuidado com o tom — alerto, repreendendo-o com o olhar.
— Eu nunca a colocaria em perigo.
— Está colocando agora.
— Não briguem — ouço sua voz baixa murmurar em meu
ouvido. — Se eu soubesse que brigariam por minha causa, não teria
vindo.
— Não estamos brigando — garanto. — Jayden só está
sendo um idiota.
Ele revira os olhos e bebe seu uísque. Conheço-o e sei que
está estressado por outros motivos, não porque Lyanna está aqui.
— Vamos conversar depois e você vai me explicar por que
está com essa cara de merda desde que o baile começou.
— Não estou…
Levanto a mão, cortando sua fala. Ele respira fundo e anui,
hesitante.
— Desculpe — pede a Lyanna, mirando-a. — Só estou meio
estressado hoje. Sei que Alessia não te colocaria em perigo, não se
preocupe. É bom te ver de novo, LB.
Ela abre um sorriso fraco.
— Bom te ver também, Jay. Continua causando problemas
por onde passa?
— Sempre. — Dá de ombros. — Mas também resolvo um
bocado deles. E as coisas por lá, como estão?
— Caóticas, como sempre.
Eles trocam mais algumas palavras conforme os observo em
silêncio. É bom vê-los interagindo novamente depois de tanto
tempo. Quando estávamos juntas, Jay e Yuna costumavam falar
bastante com Lyanna; os amigos dela, por outro lado, não me
davam tanta abertura. Wilson sempre foi simpática, mas Jeon nunca
escondeu o quanto me despreza e reprova o nosso relacionamento.
Como se lesse os meus pensamentos, Yamazaki surge atrás
de Jayden. Abraça o pescoço dele e planta um beijo no topo de sua
cabeça antes de nos fitar com curiosidade. Assim como King, ela
demora um pouco mais em Lyanna.
— Eu sabia — diz, sorrindo.
— Sabia o quê? — Jayden pergunta, virando o corpo no
banquinho.
— Que você convidaria ela.
— E como é que você sabe quem é “ela”? — indago,
levantando a sobrancelha.
— Te conheço, Alessia. Você nunca traria nenhuma outra
mulher.
Abro um sorriso de canto e sinto o olhar de Lyanna sobre
mim. As coisas estão um pouco estranhas entre nós, como se
estivéssemos andando em uma corda bamba, porém espero que as
palavras de Yuna façam com que ela acredite no que sinto.
As duas iniciam uma conversa e aproveito para apanhar um
cigarro na coxa. Acendo-o e chamo o barman com o indicador,
pedindo um copo de uísque puro. King me acompanha, também
acendendo um, e me sento no banquinho ao seu lado. Bebo um
longo gole do álcool e mantenho o olhar fixo em Lyanna.
É nítido que está tensa. Embora eu a tenha convidado, no
fundo não acreditava que ela aceitaria. Contudo, eu faria a mesma
coisa se ela me convidasse para ir a um evento tão importante para
si, ainda que fosse da Timoria. Se é importante para ela, também é
para mim.
Pensar que Lyanna se importa ao ponto de ter vindo ao baile
da Vendetta para me prestigiar é como ganhar na loteria. Não quero
me iludir, mas não consigo pensar em nenhum outro motivo para ela
ter comparecido. Por que se daria ao trabalho se não
correspondesse aos meus sentimentos?
Alguns minutos se passam à medida que continuo
observando-a calada. Intercalo a atenção entre minha feiticeira e ao
redor, me certificando de que tudo está indo bem. Flagro alguns
olhares curiosos sobre nós e não posso evitar de me perguntar o
que as pessoas estão pensando a respeito dela. A notícia de que eu
trouxe uma mulher misteriosa ao baile vai correr como água em
pouquíssimo tempo.
— Ei, LeBlanc — chamo em um sussurro, desviando o olhar
até ela. Depois que retribui, falo: — Tenho uma coisa para te
entregar.
Levanto-me e aponto com o queixo para a escada. Precisa
ser agora, já que tenho um discurso para fazer em meia hora. Ela
assente e se despede dos meus amigos com um aceno,
caminhando ao meu lado.
A quantidade de olhares sobre nós triplica e me faz sentir
vontade de abraçar sua cintura para grudá-la em mim. Para me
controlar, dou uma longa tragada no cigarro que já está no fim. Ao
passo em que atravessamos os cômodos, a música e as conversas
vão ficando mais baixas.
Cumprimento os diversos seguranças espalhados pela
mansão e a conduzo até o escritório que costumava ser de Dante,
onde pisei pouquíssimas vezes. Fecho a porta atrás de nós, acendo
a luz e retiro a máscara.
Observo-a tirar a sua e, devagar, se virar para mim.
 

“E ele continua amaldiçoando meu nome


Não importa o que eu faça, eu não sou boa sem você
E eu não me canso
Deve ser amor no cérebro”
Love On The Brain | Rihanna
 

 
Não sei o que estou fazendo. Não sei o porquê de estar aqui,
cercada por centenas de inimigos, fingindo que não sou a filha do
homem que todos eles mais odeiam. Fingindo que eu não levaria
um tiro — ou vários — caso descobrissem minha verdadeira
identidade.
Sobretudo, não sei porque me importo com ela. Apesar de
tudo que foi revelado nos últimos dias e da minha visão sobre
Alessia ter mudado drasticamente, é confuso. É confuso perceber
que, talvez, os sentimentos não tenham desaparecido como pensei.
Talvez eles só estivessem enterrados bem lá no fundo, tão
escondidos que convenci a mim mesma de que não existiam.
Namoramos por quase três anos, mas é a primeira vez que
estamos juntas num evento como este. Nos limitávamos a festas,
rachas e cerimônias menores nas quais não havia risco de sermos
reconhecidas. Um baile, especialmente organizado pela Vendetta,
nunca foi uma opção. Porém, consigo entender a razão de Alessia
ter me convidado; é importante para ela, já que é uma
comemoração da sua liderança.
— Então… — começo após pigarrear. Estamos sozinhas no
escritório, numa ala afastada do salão. — O que você tem para me
entregar?
Alessia passa por mim, contorna a mesa e abre a última
gaveta. Ela se senta na beirada e paro próxima dela, observando a
caixinha preta aveludada entre seus dedos. Ao abrir a tampinha e
mostrar o anel prateado, rodeado por diamantes, perco o fôlego.
Não é qualquer anel. É aquele anel.
— Alessia — sopro, chocada. Levanto os olhos e encontro
seu sorriso de canto, o olhar tão intenso que me deixa de pernas
bambas. — O quê… Como?
Sem responder, ela segura meus dedos de forma cuidadosa
e o coloca no anelar. Estou petrificada enquanto assisto-a deslizar
devagar até o final. Mesmo quando já o inseriu, sua mão não se
afasta da minha.
— Quando começamos a namorar, te dei esse anel —
sussurra. — Falei que enquanto você estivesse com ele no dedo, eu
saberia que estávamos bem. E se algum dia não estivesse, eu
entenderia que as coisas estavam acabadas entre nós.
Um nó se forma em minha garganta.
— Você o jogou fora naquela noite e eu entendi o recado,
Lyanna, mas estou te devolvendo e quero que continue usando
quando sentir que estamos bem. Eu preciso saber, principessa.
Preciso saber se estamos bem para poder respirar. Por favor.
Abro a boca, mas nada sai. Permaneço fitando-a em silêncio,
chocada e um pouco emotiva. Não tenho ideia de como Alessia
encontrou este anel, já que o joguei em frente à mansão onde minha
mãe foi morta. Saber que ela se deu ao trabalho de recuperá-lo é
tão…
— Como o conseguiu de volta? — indago.
— Tenho meus métodos. — Um sorriso genuíno delineia o
canto da sua boca e me pego encarando seus lábios.
Dio, como ela consegue ser assim? Como consegue me
fazer sentir como nenhuma outra coisa ou pessoa fez antes?
— Não me olhe assim, amor. Está me matando.
Amor.
Sinto-me ainda mais nervosa com o apelido. Ele parece
carregar um peso diferente agora, dito nessas circunstâncias e
neste lugar. Desvio a atenção, constrangida por ter sido pega no
flagra. Solto uma respiração profunda e contemplo os diamantes
enfeitando meu anelar.
— Promete que vai usá-lo? — sua pergunta tem um quê de
ansiedade.
— Vou usá-lo — prometo.
Este anel é tão importante para mim que, no fundo, sei que
não vou tirá-lo nem para dormir. Ele me traz todas as lembranças do
nosso namoro, boas e ruins, além de me fazer sentir… completa.
Como se um pedacinho de mim estivesse faltando nos últimos cinco
anos e agora finalmente o recuperei.
O silêncio recai sobre nós. Miro a barra do seu vestido,
correndo demoradamente o olhar pelo seu corpo até alcançar as íris
esverdeadas. Ela sequer pisca, parecendo hipnotizada. Não sei o
que dizer e tudo que consigo fazer é tentar normalizar a respiração
que, embora não estejamos fazendo nada demais, está ofegante. A
lâmpada que ilumina o cômodo é fraca, o clima é asfixiante e estou
quente. Cada centímetro de mim parece pegar fogo.
Os olhos dela são o suficiente para me deixar atordoada. O
bônus de vê-la nesse vestido… Porra. Se Alessia não fosse tão
linda e absurdamente atraente, tudo seria mais fácil. Eu não teria
caído no seu charme em primeiro lugar e tudo teria sido diferente.
Mas você não quis que as coisas fossem diferentes, uma voz
diabólica sussurra em meu ouvido.
— Não me olhe assim — sussurra, soando como uma
súplica. — Sabe o que tenho vontade de fazer quando me olha
assim.
— O quê? — retribuo o tom baixo.
Um sorriso depravado cresce no canto da sua boca e fico
hipnotizada. Não sei o que eu faria caso esses sentimentos
confusos tomassem conta de mim e eu me deixasse levar pelo
magnetismo que existe entre nós. Parece que há uma força
irresistível me puxando em direção a ela, ainda que eu lute contra.
— Você sabe — garante, levantando-se. Acaba com a
distância e cola o corpo ao meu. Quando sua mão toca meu queixo
e o polegar acaricia minha pele, respiro fundo e estremeço. — Sabe
que sinto vontade de rasgar sua roupa, te sentir molhada nos meus
dedos e provar seu gosto com a minha língua. Não sabe?
Puta merda, Romano.
Os anos se passam, mas ela continua igual.
— Quem te disse que estou molhada? — Arqueio a
sobrancelha.
Foi como jogar fogo na gasolina. Era tudo que ela precisava
para sorrir ainda mais, aproximar o rosto do meu e me olhar como
se eu fosse sua presa.
— Se eu escorregar a mão para dentro da sua calcinha, não
vou melar os meus dedos na sua boceta gostosa?
— Vá em frente e descubra.
No mesmo segundo, Alessia parece incendiar. Suas pupilas
dilatam, o olhar ganha um brilho felino e os dentes mordiscam o
lábio inferior. Estou sendo devorada pelas íris verdes, mas não
posso negar que gostaria de estar sendo devorada pela sua boca.
Acho que não consigo mais resistir ao desejo.
— Lyanna… — é tão baixo que não ouviria se não
estivéssemos sozinhas. Sua língua passa pelo interior da bochecha
e ela inclina um pouco a cabeça para o lado. — Você tem cinco
segundos para me dizer que estava brincando ou vou te comer bem
aqui, em cima dessa mesa.
Engulo em seco e sinto o corpo tremer por inteiro. Estou
nervosa pra caralho, porque parece loucura e sequer estou bêbada
para poder culpar o álcool. O passe livre que a dei para meter os
dedos na minha boceta veio de uma Lyanna sóbria e bem
consciente das próprias palavras.
— Você não tem que voltar para o baile? — questiono.
— Foda-se o baile. Esvazio essa mansão em um estalar de
dedos se você me disser que posso passar as próximas horas te
fodendo.
Não diga, não diga, não diga, não diga.
Mas… meus sentimentos por ela estão tão confusos e
contraditórios que não consigo raciocinar. Por um lado, quero deixá-
la me comer aqui e em qualquer outro lugar para saciar o desejo de
reviver o sexo delicioso que sempre tivemos; por outro, o medo de
me machucar novamente ainda me deixa receosa.
Nosso relacionamento foi marcado por inúmeras coisas, mas
a principal delas foi a inconsequência. Vivíamos momentos que
sabíamos que não deveríamos, porém, não nos importávamos.
Queríamos — e precisávamos — estar juntas, não importa o que
acontecesse ou o que precisássemos fazer.
Então, talvez seja hora de ser inconsequente mais uma vez.
Estamos sozinhas entre quatro paredes, longe de qualquer pessoa
que possa nos flagrar, e não sou capaz de resistir muito mais tempo
à sensação ardente no peito.
— Não faça eu me arrepender disso — peço, levando a mão
até sua nuca.
A pele dela está pegando fogo. É reconfortante saber que
não sou a única reagindo dessa forma.
— Nunca — garante num sussurro, escorregando os dedos
até meu pescoço. Aperta-o da forma que eu gosto, inclinando minha
cabeça para trás a fim de ter mais acesso à minha boca. Sinto o
corpo tremer e os pulmões esvaziarem quando seus lábios recém-
molhados deslizam pelos meus, obrigando-me a fechar os olhos e
agarrar seu cabelo.
Quando Alessia está prestes a me devorar como prometeu
que faria, a porta é aberta com força.
Sobressalto, arregalo as pálpebras e tento me afastar. No
entanto, ela me vira num segundo, prendendo-me na parede e
bloqueando a visão de seja lá quem tenha entrado. Meu coração
bate acelerado e fico desesperada ao notar que estou sem a
máscara e serei reconhecida.
Escondo o rosto em seu peito, descansando a bochecha em
sua clavícula, e me aperto contra seu corpo para ficar ainda mais
invisível. Percebo que ela vira a cabeça para olhar por cima do
ombro e sua voz irritada, um tanto quanto autoritária, soa no
escritório:
— Que porra você está fazendo aqui, Ventura?
Ventura.
É Chloe Ventura, uma das soldadas da Vendetta. Praguejo
baixinho, pois não tenho dúvidas de que Chloe vai me entregar à
máfia em menos de dois segundos se souber que estou aqui. Na
verdade, é provável que ela mesma me dê um tiro caso saiba que
eu estava a um segundo de beijar sua chefe quando nos
interrompeu.
Alessia não faz ideia de que eu sei sobre a relação casual
que elas costumavam ter, já que Chloe nunca foi um assunto entre
nós duas quando namorávamos. Só que eu sei. Sei de muito mais
do que ela imagina porque investiguei sua vida de ponta a ponta,
embora algumas coisas sejam tão secretas que nem mesmo eu fui
capaz de descobrir. Pode não ter sido o ideal na visão de muita
gente, mas usei minhas habilidades ao meu favor tanto pela
curiosidade de conhecê-la um pouco mais quanto pela necessidade
de saber com quem eu estava lidando na época.
Gostaria de perguntar a Alessia como ela se sente em
relação a Chloe, mas tenho um pouco de medo da resposta.
Gostaria de saber muitas coisas que os computadores não
conseguem me dizer, como, por exemplo, se Ventura sabia do
paradeiro dela nos últimos cinco anos e se as duas se encontraram
ou até voltaram a se envolver.
— Interrompi alguma coisa? — seu tom é repleto de
sarcasmo.
— Interrompeu. Volte para o baile — ordena, ríspida.
— Com quem você está?
Ouço seu salto alto batendo contra o piso, indicando que ela
está se aproximando. Engulo em seco e me encolho ainda mais,
torcendo para que nenhum centímetro do meu rosto esteja visível.
Alessia me aperta, os braços serpenteando meu pescoço.
— Saia, Ventura. Não vou falar duas vezes.
Um silêncio pesado e asfixiante recai sobre o escritório.
Quando a voz de Chloe volta a ecoar pelo cômodo, tenho a certeza
de que ela sabe.
— Você é mais irresponsável do que eu pensava, Alessia.
Está colocando vocês duas em perigo.
Ouço-a se afastar e a porta bater. Solto a respiração, me
afasto e desvio o olhar para a parede. De repente, há um
sentimento ruim cutucando a boca do meu estômago e quero ir
embora. Apanho minha máscara em cima da mesa e coloco-a em
silêncio, sentindo o escrutínio de Alessia.
— Lyanna…
— Vou embora — anuncio, dando os primeiros passos para
longe.
Ela me impede, no entanto, segurando meu pulso. Mantenho
os olhos abaixados porque, por alguma razão, não consigo encará-
la. Acho que a presença de Chloe me afetou mais do que eu
gostaria.
— Não precisa ir embora. Está tudo bem.
Reviro os olhos.
— Claro que está. Sua ex ou seja lá o que diabos ela é pra
você sabe que estou aqui e “está tudo bem”? Acha mesmo que ela
não está indo contar para todo mundo que uma Bellini está no baile?
Merda. As palavras saíram antes que eu conseguisse pensar.
Não planejava soar tão ciumenta e amargurada, mas foi exatamente
como soei. E talvez, no fundo, eu queria que ela soubesse que
tenho ciência de seu antigo — ou não — caso com Chloe.
O que está acontecendo comigo?
— Minha “ex”? — pergunta, uma breve pitada de diversão no
tom.
Tento me soltar de seu aperto, sem sucesso. A desgraçada é
forte e não pretende me deixar ir.
— Não sabia que…
— É — a corto. — Eu sei. E para deixar claro, não me
importo. Quero ir embora porque ela vai espalhar a informação e
cinquenta homens vão aparecer com uma arma apontada para a
minha testa. Se eu não estiver aqui, você pode desmentir. Me deixe
ir.
— Está com ciúmes — fala, ignorando completamente o que
acabei de dizer.
Bufo alto e Alessia segura meu queixo, virando minha cabeça
em sua direção. Afasto-me do toque e consigo criar uma distância
entre nós que, apesar de parecer necessária agora, não me agrada
tanto quanto deveria.
Seja racional, Lyanna.
A interrupção de Chloe foi como um balde de água fria jogado
em mim. Não consigo acreditar que eu estava prestes a beijar
Alessia Romano, minha ex-namorada e a chefe da máfia rival, em
um baile repleto de inimigos. Como permiti que as coisas
chegassem a esse nível?
Foi o maldito anel que deixou minha mente nebulosa, o que
está na porra do meu dedo e o qual prometi para ela que usaria.
— Não tenho ciúmes de você — retruco, caminhando até a
porta. Ela vem atrás de mim e, novamente, segura meu pulso. —
Alessia, não estou a fim de levar um tiro hoje. Não me prenda aqui.
— Ninguém vai encostar em você — garante. — Mato todos
eles antes que consigam sacar a arma.
Sinto seu corpo colando às minhas costas, os dedos
colocando meu cabelo para trás do ombro e os lábios quentes
beijando meu pescoço. Prendo a respiração e aperto a maçaneta
com força, tentando permanecer firme na decisão de ir embora e
não cometer a loucura de transar com ela bem aqui.
— Tem alguma saída alternativa nesta mansão? — pergunto,
ignorando o calor e a umidade entre as pernas.
É ridícula a facilidade que ela tem para me deixar molhada.
— Não vá — pede baixinho, criando um rastro de selinhos
em minha pele. Alcança o meu ouvido, morde o lóbulo e sussurra:
— Não vá, principessa. Preciso de você aqui.
— Chloe vai contar para as pessoas. — Engulo o nó na
garganta. — Não posso ficar aqui.
— Ela não vai falar nada.
— Como você pode saber?
— Já conversei com ela sobre nós, Lyanna. Ventura não é
um problema.
O quê?
Viro-me de abrupto e ela levanta as sobrancelhas, surpresa.
Porém, não perde a oportunidade de envolver minha cintura com o
braço e beijar a parte exposta do meu ombro. Seus lábios quentes
me provocam um arrepio na coluna e me deixam ofegante.
— Me explique, por gentileza. — Seguro sua mandíbula e a
obrigo a me olhar. — Acho que entendi errado.
— Você entendeu certo. Chloe descobriu sobre nosso
relacionamento, mas não há com o que se preocupar. Ela não vai
contar para ninguém.
— Como pode estar tão tranquila? — elevo o tom
involuntariamente. — Oliver saber já é uma merda, mas um membro
da sua máfia! Alguém com poder e influência, além de ser uma
mulher com quem você já se relacionou!
Tento me desvencilhar dela, porém, Alessia me segura com
firmeza.
— Pare com isso, Lyanna. Te garanto que não precisa se
preocupar com ela, Chloe é inteligente e sabe as consequências
que teria se decidisse abrir a boca. Eu nunca te colocaria em perigo
e se achasse que existe uma chance mínima de Ventura contar, ela
já teria desaparecido do mapa.
— Você mataria a Chloe por isso? — Arqueio as
sobrancelhas.
— Mataria qualquer um que fosse um perigo para você ou
para nós.
Para nós.
A maneira como Alessia insiste em dizer no plural, como se
ainda tivéssemos algo, me perturba. Às vezes, não sei se devo levar
a sério e confiar no sentimento que ela parece genuinamente ter por
mim. Ainda que a verdade dos fatos tenha derrubado todos os
muros que construí para me blindar, é difícil acreditar que posso me
entregar sem medo de ter o coração quebrado pela segunda vez.
Mesmo que eu volte para ela, como será nosso futuro? Como
conseguiremos voltar à estaca zero, nos relacionando em segredo e
nos preocupando a todo momento com a possibilidade de sermos
pegas? Agora é ainda pior, pois ela não é somente a Executora.
É a chefe da Vendetta.
— Não sei por que você faz isso — confesso baixo,
balançando a cabeça. — Não sei por que insiste em nós.
— Amor, preciso que você entenda. — Ela acaricia minha
bochecha com o polegar, sorrindo de lado. — Vou lutar por você, por
nós, nesta vida e em todas as próximas. Não me importo com o que
preciso fazer para te ter de volta, quem preciso enfrentar ou as
consequências de tudo isso. Vou fazer qualquer coisa para te
chamar de “minha” novamente, porque eu não estava brincando
quando disse que ainda te amo com todo o meu coração. Não
existirá um dia sequer em que eu não te ame, Lyanna. Meu coração
bate por você.
— Pare — não sei se é uma ordem ou uma súplica. — Pare
de falar que me ama, Alessia. Você está me enlouquecendo.
— Vamos enlouquecer juntas pela segunda vez, principessa.
Sinto uma enorme agonia crescendo no peito em virtude de
todos os sentimentos confusos e repentinos que me atingem como
uma avalanche. Há uma parte resistente do meu cérebro me
impedindo de aceitar que, talvez, eu queira beijá-la. Talvez, eu
queira ter uma longa conversa para esclarecer tudo entre nós e,
logo em seguida, passar o dobro do tempo transando com ela.
Mais uma vez, estou traindo minha máfia. À essa altura, não
posso dizer que me importo em trair o meu pai. Suas atitudes
recentes meio que o fazem merecer que a filha se deite com a
inimiga.
— Alessia… — começo, mas sou interrompida.
— Me dê um beijo.
Levanto as sobrancelhas.
— Não aguento mais sonhar todas as noite com um beijo
seu, linda. Por favor, acabe com o meu sofrimento ou acho que vou
morrer.
Abro e fecho a boca. Estou nervosa como poucas vezes na
vida já estive. É até patético, porque não me recordo da última vez
que me senti assim com ela.
Não tenho tempo para responder — embora não saiba se
aceitaria ou recusaria —, já que o toque de seu celular fura nossa
bolha. A princípio, ela ignora a ligação e permanece me encarando
em silêncio. Em expectativa. Porém, quando o toque volta a ecoar
pelo escritório, Alessia cerra a mandíbula e apanha o celular a
contragosto.
— O quê? — diz ao atender. — Já estou indo.
Desliga e guarda o aparelho novamente. Ela parece irritada
ao soltar a respiração, pegar sua máscara na mesa e apontar para a
porta com o queixo.
— Preciso fazer um discurso. Vamos.
Metade de mim agradece e a outra fica frustrada. Assinto,
coloco a máscara e caminhamos pelo corredor. Tento ignorar a
formigação no corpo inteiro enquanto descemos os degraus e
atravessamos os diversos cômodos até o salão. Sinto quase todos
os olhares sobre nós no segundo em que adentramos, o que me faz
ofegar e estagnar por um momento. Alessia percebe minha
hesitação, coloca a mão na base da minha coluna e me guia até
Jayden e Yuna.
Cinco minutos depois, ela sobe no palco e faz um belo
discurso. Apesar da reputação, é nítida a sua devoção e amor pela
organização. Suas palavras são genuínas e sinceras, mostrando um
lado dela que noventa por cento das pessoas neste baile não devem
conhecer. Me pego sorrindo como uma boba ao ouvi-la dizer que
não poderia estar mais feliz em ocupar a liderança da Vendetta e o
quão importante isso é para ela. Meu coração aquece e enche de
orgulho, deixando os olhos lacrimejados enquanto ouço-a com
atenção.
Embora tenha seus problemas com alguns dos próprios
soldados, tenho certeza de que todos aqui têm o mesmo
pensamento que o meu: Ela nasceu para isso. Alessia nasceu para
comandar esta máfia.
Quando acaba, seus olhos deslizam até os meus. As
pessoas aplaudem e a ovacionam, mas seu sorriso é direcionado
apenas para mim. Retribuo, sequer tentando disfarçar o quanto seu
discurso me tocou. Eu me sinto… bem. Estou rodeada de inimigos,
mas me sinto feliz. É uma sensação estranha de pertencimento, a
qual me deixaria em completo pânico se não estivesse ocupada
encarando-a em hipnose.
Alessia desce as escadas e começa a caminhar até mim.
Meu sorriso morre aos poucos quando Chloe se põe à sua frente,
impedindo sua passagem, e as íris verdes desviam das minhas para
olhá-la. Ela a abraça por longos segundos, planta um beijo na sua
bochecha — perto demais da boca — e presumo que esteja
soltando diversos elogios.
Meu estômago embrulha e decido que é melhor passar a
noite no bar.
“Querida, nós duas sabemos
Que as noites foram feitas principalmente
Para dizer coisas que não se pode dizer no dia seguinte
Será que quero saber
Se esse sentimento é recíproco?”
Do I Wanna Know? | Arctic Monkeys
 

 
O relógio marca nove e quinze da noite quando levo o
terceiro cigarro aos lábios. Meus dedos batucam impacientemente
na mesa da cozinha conforme observo o céu estrelado através da
janela, pensando em milhares de coisas ao mesmo tempo.
Mandei uma mensagem para Lyanna há duas horas pedindo
para ela vir até nossa casa às nove para jogarmos. A verdade é que
não me importo muito com a partida e só estou desesperada para
ficar ao lado dela o máximo possível, especialmente após a noite
passada.
Depois do meu discurso, ela estava estranha. Distante.
Quase não me olhava nos olhos e conversou muito mais com
Jayden e Yuna do que comigo. Mesmo quando precisei me afastar
para falar com os convidados, desviei a atenção para ela algumas
vezes e em nenhuma delas meu olhar foi retribuído. Conheço-a
mais do que a mim mesma e sei que o fato de Chloe saber sobre
nós é o motivo de tudo isso. Lyanna não está só preocupada, como
também ciumenta.
Não me surpreende que ela saiba, pois não há nada que
minha gatinha selvagem não consiga descobrir. Aposto que ela está
irritada por eu não ter contado, mas não via porquê — Chloe era um
sexo casual como várias outras foram antes de eu conhecê-la.
Nenhuma chegou aos pés de ter a relevância que ela tem para mim.
Nenhuma outra nunca terá.
E estou desesperada. Completa e irreversivelmente
desesperada para ter Lyanna de volta. Estou tentando não forçar a
barra, mas ontem à noite cheguei no meu limite. Se não sentir o seu
gosto, provar seus lábios e beijar cada centímetro do seu corpo, vou
morrer. Preciso disso tanto quanto preciso de oxigênio, e é patético
admitir que aquela mulher tem total controle sobre mim.
Bufo baixinho, me levanto e caminho de um lado para o outro
na cozinha. Seguro o cigarro entre os lábios e afundo a mão no
bolso interno da jaqueta, apanhando minhas cartas. Embaralho-as
por alguns segundos, viro a do topo e vejo uma Dama de Espadas.
Solto um riso nasalado com o quão desgraçado o universo é.
Um barulho ecoa e me faz erguer a cabeça depressa. Ouço
um som familiar de saltos-altos batendo contra o piso e tento
reprimir o sorriso satisfeito. Guardo o baralho, pego o cigarro e solto
a fumaça. Apoio o quadril na mesa, de frente para a entrada do
cômodo, e cruzo os calcanhares.
Quando ela surge em meu campo de visão, perco o fôlego.
Não importa quantas vezes eu a veja, Lyanna sempre está ainda
mais magnífica do que na última.
Suas malditas saias me tiram do eixo.
— Ei, linda — digo, sorrindo de lado.
Sua expressão está fechada, mas não irritada. Só… distante.
Apago o cigarro com o polegar, deixo-o na mesa e me aproximo
dela. Seus olhos acompanham meus movimentos de forma
minuciosa, estudando-me. Coloco seu cabelo atrás da orelha,
umedeço os lábios e pergunto:
— Está tudo bem?
Ela não responde. Continua me analisando em silêncio, como
se esperasse por alguma coisa. Respiro fundo e recolho a mão.
— Chloe não significa nada para mim — asseguro.
— Ela sabe sobre nós.
— Confie em mim, Lyanna, ela não vai contar para ninguém.
Sabe que eu a mataria por isso.
— Ela tem sentimentos por você? Porque, se tiver, acho que
uma simples ameaça não a impediria de acabar com nossa relação.
Não passa despercebido para o meu coração apaixonado
que ela insinuou que temos uma relação.
— Chloe não tem nenhum tipo de sentimento por mim,
principessa, ela não procura nada além de sexo com as pessoas. E
Ventura pode ser o que for, mas é fiel à máfia acima de tudo. Ela
não faria nada que prejudicasse nossa organização.
Lyanna suspira e desvia o olhar. O pequeno vinco entre suas
sobrancelhas demonstra que ainda está incomodada.
— Queria que você tivesse me contado antes. Descobrir
daquela forma que mais uma pessoa sabe sobre nós,
especialmente uma das suas subordinadas, é uma merda. Com
tudo que está acontecendo, a última coisa da qual preciso é gerar
um escândalo na Timoria da noite para o dia.
Quero dizer que não há nada que ela possa fazer para
amenizar o caos que a notícia geraria, mas prefiro guardar para
mim.
— Estou garantindo que você não precisa se preocupar e vou
repetir mais uma vez, Lyanna: Eu nunca faria nada que te colocasse
em perigo. Se achasse que Chloe fosse uma ameaça, já a teria
matado. Sendo uma subordinada ou não.
A respiração que lhe escapa é profunda. As íris escorregam
de volta até as minhas, um pouco mais frias dessa vez.
— Ela sabia? — Franzo o cenho e ela continua: — Chloe
sabia onde você estava nos últimos anos? Vocês tiveram algum
contato? Se… encontraram?
Tento esconder o sorriso imediato, mas não consigo. As
perguntas, claramente mascaradas pelo ciúmes, me satisfazem. Se
ela está ciumenta, é porque se importa. E se se importa, é porque
ainda sente algo por mim.
— Não. Você é a primeira pessoa para quem contei, amor.
Nenhuma outra sabe de nada daquilo.
— Nem Jayden e Yuna?
— Não. Apenas você.
A informação parece lhe surpreender, como se não
esperasse saber que revelei toda a verdade para ela antes mesmo
de revelar para os meus melhores amigos. Não entendo o choque,
afinal, a situação nos envolve. Depois de sumir e deixá-la por cinco
anos, seria injusto e babaca que não fosse a primeira pessoa a
saber de tudo.
Ao contrário do que eu imaginava, Lyanna não diz nada.
Desvia o olhar mais uma vez e sinto uma pontada incômoda no
peito ao notar que ela mal consegue me encarar, seja lá qual for o
motivo. Quando ela puxa uma cadeira e insinua que vai se sentar,
seguro seu pulso e a impeço.
— O que está acontecendo? — pergunto.
Silêncio.
— Será que você pode pelo menos me olhar? — minha voz
sai um pouco menos gentil.
Consigo o que quero, mas detesto a frieza em seus olhos.
— Me chamou aqui para jogar, não é? Estou me sentando
para fazermos exatamente isso.
— O que está acontecendo? — repito, dando um passo
adiante. Ela recua. Franzo as sobrancelhas, tentando compreender.
— Lyanna, se não me falar que porra está acontecendo, juro que…
— O quê? — me interrompe, arqueando as sobrancelhas em
desafio. É nítido que está quase perdendo o controle. — Jura o quê,
Alessia?
Solto uma lufada de ar. Apesar de não compreender a razão
desse comportamento, não quero estragar as coisas. E apesar de
eu garantir que tudo está sob controle, consigo entender o seu
desespero com nosso relacionamento ficando cada dia mais
exposto. Lyanna provavelmente seria expulsa da Timoria e, embora
eu nunca fosse permitir que acontecesse, também correria o risco
de ser morta.
Eu assassinaria cada um deles, inimigos ou não, para
protegê-la. Morreria para salvá-la em um piscar de olhos, depois de
enterrar todos que fossem um perigo a ela.
— Me diga por que está agindo assim, Lyanna. É por causa
do…
— Estou preocupada! — grita, soltando-se do meu enlaço.
Os olhos estão arregalados quando ela continua na mesma
entonação atordoada: — Estou preocupada porque Oliver fez tudo
aquilo com você e não vai parar até nos destruir; porque não
consigo aceitar que sou a culpada de tudo; porque não sei o que
fazer e minha vida está uma bagunça! Não sei o que fazer para te
tirar da minha cabeça e não tenho ideia de como lidar com os meus
sentimentos. Não estou preocupada, Alessia, estou desesperada!
Também não consigo parar de pensar em você e Chloe juntas e…
— Ela é…
— Não! — me corta, balançando a cabeça em negação. Sua
pele fica vermelha, deixando claro o quão irritada e desnorteada
está. — Nada do que você disser vai amenizar o que estou
sentindo, porque sei que as coisas com ela ou com qualquer outra
seriam muito mais fáceis sem segredos, preocupações e traições.
Meu Deus, tem ideia de como odeio sentir ciúmes depois de tudo?
De como esses sentimentos me corroem por dentro, porque vão
contra tudo que prometi a mim mesma nos últimos anos? Não quero
admitir que ainda sinto algo, mas o mero pensamento de você com
outra mulher me enlouquece, entendeu? Me enlouquece pra
caralho!
Fico estática. Petrificada. Sem palavras.
Meu coração acelera tanto que o peito dói. Não consigo
respirar. Tenho certeza de que minhas pupilas estão dilatadas e o
olhar brilhando como a porra de uma constelação inteira.
Estou tremendo dos pés à cabeça porque Lyanna admitiu.
Ela admitiu que ainda sente algo por mim e não quero acordar para
perceber que tudo foi apenas um sonho.
Estou sonhando. Não há outra explicação.
— Não me olhe assim! — implora em um grito, com os olhos
marejados. Gesticula ao dizer, os dedos se entrelaçando nos fios do
cabelo: — Pelo amor de Deus, não me olhe assim. Por favor, não
faça…
Em um ato rápido, seguro sua cintura e a coloco sentada na
mesa. Levo a mão até seu queixo, apertando o suficiente para
impedir que vire o rosto. Ela solta um arquejo surpreso, agarra
minha jaqueta para se equilibrar e coloco a mão livre na base de
sua coluna. Puxando-a para perto, grudo nossos corpos e deixo
poucos centímetros separando nossas bocas.
— Você é única — sussurro, observando-a fechar os olhos ao
sentir meus lábios deslizando pelos seus. — É a única que ocupa
meus pensamentos, meu coração e minha vida. É a única mulher
que sonho em ter ao meu lado pelo resto do nosso tempo na Terra.
Não há espaço e nem desejo por qualquer outra além de você,
principessa, não importa a situação na qual estejamos. Foi você
antes mesmo de ser, foi você quando só existia ódio e rancor e foi
você quando eu não me importava em ser odiada, contanto que
você estivesse segura e viva. Foi e sempre continuará sendo
apenas você em quaisquer circunstâncias, Lyanna. Nenhuma outra
mulher, porque nenhuma delas significa algo para mim. A única com
quem me importo é a única que eu amo com tudo que existe dentro
de mim, a dona do meu coração e a qual estou desesperada para
chamar de minha novamente. Não acredito em Deus, mas passei
cinco anos rezando para que ele te devolvesse a mim algum dia. Se
quiser que eu implore, ajoelho e imploro para te ter de volta. Porra,
eu faço qualquer coisa, amor, só volte para mim. Por favor.
“Implorar” e “ajoelhar” sempre foram duas coisas que
estiveram fora de cogitação para mim, pois me foram ensinadas
como sinais de fraqueza. Cresci ouvindo que um Romano não se
ajoelha diante do Diabo, mas faz o Diabo se ajoelhar diante dele.
Mesmo assim, só preciso de dois segundos para me ajoelhar
e implorar para que Lyanna volte para mim. Passaria horas
ajoelhada até sentir os ossos doloridos e fracos. Imploraria para tê-
la de volta, ainda que precisasse cometer mais um milhão de crimes
para que fiquemos juntas.
— O que preciso fazer para te ter de volta, principessa? —
indago, umedecendo os lábios com a língua. — O que preciso fazer
para te merecer mais uma vez? Estou disposta a tudo para te
mostrar que será diferente.
— Há uma coisa que você pode fazer — sussurra,
aninhando-se a mim.
— O quê?
Corro os dedos até sua nuca, agarrando alguns fios. Deleito-
me com a visão de seu corpo grudado ao meu, os olhos fechados e
a boca entreaberta, como se implorasse em silêncio por um beijo.
Sua expressão, há pouco atormentada, agora parece relaxada.
Me pergunto se ela sente isso. Isso que me queima por
dentro e me faz querer gritar. Que requer muito, muito esforço para
não devorá-la agora mesmo, em cima desta maldita mesa.
Seus braços enlaçam meu pescoço e me puxam ainda mais
para perto. Resta apenas um ou dois centímetros de distância entre
nossos lábios, o que me faz entrar em completa combustão. Se
Lyanna soubesse o efeito que ainda tem sobre mim, acabaria com
essa tortura. Se soubesse que venho sonhando com seu corpo, sua
boca e seu gosto toda maldita noite dos últimos cinco anos,
acabaria com meu tormento.
— Você pode me beijar.
 

“Não sei se você sente o mesmo que eu sinto


Mas poderíamos ficar juntos se você quisesse
Me arrastando de volta para você”
Do I Wanna Know? | Arctic Monkeys
 

 
“— Você pode me beijar.”
Então, eu a beijo.
Não hesito, travo ou sequer raciocino. Aquela permissão era
tudo que eu queria e precisava. Quatro palavras com as quais
alucinei e implorei por tanto tempo e, finalmente, as ouvi saindo
dessa boca deliciosa.
Beijo Lyanna com urgência, sentindo sua língua quente se
entrelaçando com a minha. Ela me aperta contra si e agarro seu
cabelo, segurando a parte de trás do joelho para puxar sua perna
em direção ao meu quadril. Sua coluna arqueia quando chupo seu
lábio, dou uma mordida e aperto seus fios com força.
O mesmo desespero que sinto, ela também sente. É explícito
pela forma como me beija e parece querer se fundir a mim. Saber
que tudo é recíproco, embora ela tenha tentado lutar contra, me
satisfaz mais do que qualquer outra coisa.
Os sons baixos e ofegantes que lhe escapam me tiram de
órbita. Sinto-a amolecer em meus braços, entregue e vulnerável,
deixando-me conduzir o beijo. Levo a boca até seu pescoço,
marcando e lambendo sua pele quente. Ela ofega, as mãos
passeando pelo meu corpo conforme vira a cabeça para me dar
mais acesso. Seus dedos passam por baixo da minha camisa e
sinto um forte arrepio quando as unhas afiadas escorregam pela
minha barriga. O trajeto até minha cintura é provocativo, chegando à
coluna e subindo até o fecho do meu sutiã. Ameaça abri-lo, mas
logo volta a arranhar minhas costas com a pressão exata para me
marcar.
Chupo a região abaixo de sua orelha, ouço seu suspiro
pesado e sopro a região marcada.
— Não me marque — rosna, fingindo que não adora admirar-
se no espelho depois.
Solto seus fios e seguro sua mandíbula com força, virando o
rosto até mim.
— Vou te marcar inteira, como nos velhos tempos —
sussurro, mordendo e puxando seu lábio inferior. — A população
inteira de Las Vegas vai saber que você tem dona.
— Você não é minha dona — retruca, levantando as
sobrancelhas em desafio. Seus olhos brilham em divertimento.
— Ah, Lyanna… — Rio baixo, sarcástica. Aperto um pouco
mais e ela respira fundo, cravando as unhas no meu pescoço. Sinto
a ardência que me agrada pra caralho. — Nós duas sabemos que
sou, sim, sua dona. Assim como você é a minha. Pertenço a você e
você pertence a mim, como sempre foi e sempre será. Não ouse,
nem por um segundo, pensar o contrário.
O sorriso perverso que delineia sua boca demonstra o quanto
ela gosta de ouvir isso. Gosta de me ouvir admitindo que sou dela e
que não vou permitir, sob hipótese nenhuma, que ela seja de
qualquer outra pessoa.
Somos uma da outra para toda a eternidade.
— E se eu tiver sido? — provoca, escorregando as unhas
pela minha nuca e arranhando o início da minha coluna por baixo da
camisa. Cerro os dentes quando ela aproxima o rosto do meu,
desliza a língua quente pelo meu lábio e aperta as laterais do meu
corpo com as pernas. — E se eu tiver sido de outra mulher quando
você estava longe?
Lyanna Bellini é um milhão de coisas, mas, acima de tudo, é
uma provocadora de merda. Ela sabe que a mera ideia escurece
minha visão.
Aperto seu pescoço, ela grunhe baixo e finca as unhas na
minha lombar em resposta. Meu sangue borbulha devido à
provocação que teve o exato efeito que ela queria: me enlouquecer.
— Você não foi — murmuro, contemplando suas pupilas
dilatadas. A desgraçada umedece a boca, sorrindo de forma ladina.
— Você nunca foi e nunca será de outra pessoa. Não importa
quanto tempo ficarmos separadas, nossas almas sempre se
encontrarão no final. Nós pertencemos uma a outra até a porra do
nosso último suspiro, Lyanna. Você é minha, entendeu?
A satisfação que transborda pelo seu olhar é indescritível.
Parece que todos os sentimentos anteriores a este momento não
importam para ela. O único que importa é o que vejo agora.
E o universo sabe que esperei muito tempo para vê-lo de
novo.
— É uma promessa ou uma ameaça? — brinca. — Está
prometendo que vai me atormentar até minha morte, Romano?
Detesto a sensação que as palavras “minha morte” me
causam. Imaginar um mundo sem Lyanna Bellini é como imaginar
um grande vazio; uma vida sem propósito, sem significado. Eu não
aguentaria continuar num mundo em que ela não existisse.
— E até depois dela.
— Vou cobrar essa promessa, chefe — murmura. Como se
fosse possível, a palavra me deixa ainda mais excitada.
Grudo minha boca à sua e inicio outro beijo desesperado.
Chupo sua língua e ela suspira alto, quase como um gemido,
apertando-me entre suas coxas. Sinto sua saia escorregando mais a
cada segundo e aproveito para fazer o mesmo trajeto com os dedos
até chegar à parte interna da virilha. Aperto a região e Lyanna
mordisca meu lábio com força, embora não faça nada para afastar o
toque.
Adoro o gosto de sangue que a mordida provoca.
Resvalo as digitais pela região, enlouquecendo com o fato de
que poucos centímetros me separam de sua boceta molhada. Tenho
certeza de que a desgraçada está usando alguma calcinha rendada.
Com a mão livre, puxo-a em minha direção até tirá-la de cima da
mesa e montá-la em minha coxa.
— Posso te tocar? — pergunto, com nossas respirações
ofegantes se misturando. — Posso enfiar meus dedos na sua
boceta e te comer em cima dessa mesa, Lyanna?
Ela segura e solta o cós da minha calça, ameaçando abrir o
botão. Aperto sua cintura e impulsiono a perna para cima,
pressionando-a contra a umidade de sua calcinha. O ato a faz
friccionar os lábios para segurar outros sons.
Quero ouvi-la gemer, arquejar, ofegar e implorar por mais.
— Posso? — repito, observando o rosto ruborizado e a boca
vermelha.
— Deve.
Coloco-a de volta na mesa, sentada na borda, e ergo sua
saia. Ela segura o tecido no alto, dando-me total acesso à parte de
baixo do seu tronco. Desço o olhar e sinto os pulmões esvaziarem
ao ver sua calcinha vermelha e minúscula. A peça é inteira de
renda, mostrando toda a sua boceta molhada e inchada.
— Espero que seja a primeira vez que você esteja usando
isso.
Ela ri, apoia a mão livre na superfície atrás do corpo e fica
arqueada em minha direção.
— Não é — provoca, dando de ombros. Para o bem da minha
sanidade, o sorriso divertido me faz perceber que ela está mentindo.
Tiro devagar a jaqueta enquanto nos encaramos. As íris me
estudam com pura volúpia, examinando cada um dos meus
movimentos. Depois de jogar a peça para o lado, seguro sua
calcinha e a rasgo ao meio.
— Vai ser a última.
Ela me reprova com o olhar espremido. Mantenho o meu no
dela, embora esteja tremendo para descer até lá.
— Sua infeliz, você vai me comprar outra igual.
— Vou te comprar todas as calcinhas de todas as lojas dos
Estados Unidos, contanto que me deixe rasgar cada uma delas
depois.
Passo a língua no interior da bochecha e desço devagar a
atenção pelo seu corpo. Primeiro, a clavícula exposta; o corpete
sem alças e, por fim, a saia plissada.
Quando encaro sua boceta, sinto a boca seca. Minhas mãos
formigam e tudo que quero — e preciso — é chupar essa mulher
aqui e agora, por horas e horas seguidas. Vejo sua excitação
escorregando pela virilha, os lábios inchados e vermelhos.
Deslizo os dedos pela sua coxa direita e com a mão livre
empurro seu corpo para trás a fim de deitá-la. Ouço-a respirar fundo
e sorrio de lado, notando o quão ansiosa está.
— Para de me provocar e me come logo — ordena,
impaciente.
Ajoelho-me no chão, seguro-a pelas coxas e puxo-a em
minha direção. Sua boceta fica a centímetros do meu rosto e fecho
os olhos para inspirar o cheiro que nunca saiu da minha cabeça.
Abro-os novamente, me aproximo e deixo um beijo lento na
virilha, próximo demais do lugar que realmente quero saborear.
Deposito alguns selinhos ao longo de sua pele, ficando cada
segundo mais perto. Seus dedos se enroscam no meu cabelo,
apertando-o com força. Sorrio de lado, amando torturá-la.
— Pare com essa merda e…
Antes que ela possa continuar, abocanho seu clitóris e fecho
os olhos quando seu gosto delicioso inunda minha boca e o líquido
quente escorrega pela minha língua. Lyanna solta um arquejo
surpreso quando chupo, puxo e mordisco de leve. Passo a língua
por toda sua boceta, fazendo movimentos circulares e lentos em seu
ponto sensível.
Esperei cinco anos para comer esta boceta de novo. Tenho
todo o tempo do mundo para fazê-la gozar inúmeras vezes.
Ela arqueia a coluna, os gemidos cada vez mais altos.
Chupo, circulo e esfrego minha língua, aumentando a velocidade
conforme ela rebola na minha cara. Desço até sua entrada, subindo
e descendo devagar até sentir toda a região ao redor da boca
melada. Lyanna geme alto e arreganha as pernas quando volto para
sugar seu clitóris com força, puxando-o entre os dentes.
Estou queimando por inteiro. Sinto o suor escorrendo pelo
meu pescoço, o cabelo grudando em minha pele e a sensação
desconfortável das roupas em mim. Quero tirá-las e esfregar minha
boceta na de Lyanna enquanto aperto seu pescoço da maneira que
ela gosta, mas minha prioridade agora é o prazer dela. Não o meu.
Deslizo dois dedos pela sua entrada, ameaçando enfiá-los.
Com o polegar, faço movimentos circulares em seu clitóris. O calor e
a umidade entre minhas pernas ficam cada vez mais insuportáveis.
— Você é uma filha da puta — ela diz entre respirações
ofegantes. Sua cabeça está jogada para trás, a mão agarrando o
tecido da saia enquanto a outra aperta meus fios.
— E você é uma delícia — respondo, sorrindo. — Essa
boceta é ainda mais gostosa do que eu me lembrava.
Dou uma longa lambida ao mesmo tempo em que insiro os
dedos devagar. Vejo-a prender a respiração, o corpo estremecendo
conforme enfio até o final. Começo a meter, dobrando-os, entrando
e saindo sem pressa.
Aumento a velocidade e seus espasmos começam. Minha
própria boceta contrai e pinga com o barulho dos meus dedos
enfiando nela, escorregando com facilidade de tão encharcada que
ela está. Um grunhido alto ecoa quando ela sente os três entrando
juntos, a coluna formando um arco e os peitos quase saltando pelo
decote do corpete. Sua mão aperta tanto meu cabelo que sinto dor,
mas gosto pra caralho.
— Me responda uma coisa — murmuro, ofegante. Ela não
responde, tampouco me encara. Sua cabeça continua jogada para
trás, dando-me a visão de seu pescoço. — Essa boceta pertence a
quem?
Resmungos e gemidos saem de sua boca, mas não obtenho
uma resposta. Diminuo o ritmo até parar e ela abaixa a cabeça para
me fitar com raiva.
— Se você não continuar… — Suas pupilas estão tão
dilatadas que é difícil distingui-las.
Dou um tapa forte em seu clitóris e ela grita, contorcendo-se
na mesa. Sua expressão de prazer — sobrancelhas franzidas,
pálpebras apertadas e boca entreaberta — quase me faz gozar sem
me tocar.
— Essa boceta pertence a quem, Lyanna? — repito.
Ela balança a cabeça em negação, recusando-se a
responder. Levanto-me e afasto o toque, mas não dou-lhe tempo
para raciocinar; puxo seu corpo para cima e a viro de costas para
mim, empurrando-a de bruços na mesa. Ela me olha pelo ombro e
empina a bunda para me provocar.
Seguro o cós da sua saia e rasgo o tecido, jogando-a para
longe. Lyanna não protesta, muito pelo contrário, parece gostar de
como perco o controle com sua atitude abusada. Bato em sua
nádega direita com força, seu corpo alavanca para frente e ela
geme baixo enquanto morde o lábio inferior. Encosta a bochecha na
superfície e abre a boca para soltar respirações profundas, sem
quebrar o contato visual.
Levanto sua perna esquerda, deixando-a dobrada na borda e
aberta para mim. Dou outro tapa, mais forte dessa vez, usando a
mão livre para voltar a meter os dedos nela. Começo a fodê-la
rápido e com força, intercalando com as bofetadas em sua bunda.
— A quem essa boceta gostosa pertence?
— Sua filha… da puta — sussurra, o semblante contorcido
em prazer e as mãos apertando a beirada. Ela movimenta o corpo,
fodendo meus dedos ao mesmo tempo em que esfrega o clitóris na
mesa de forma desesperada.
— Tem certeza de que é essa a sua resposta?
Levo a mão até sua nuca, junto seus fios em punho e puxo-
os para trás. Ela grita, espalma as mãos na superfície e fica com a
coluna arqueada em minha direção. Sua cabeça, jogada para trás,
encosta em meu ombro. Nossos olhos se conectam novamente,
mas ela não consegue mantê-los abertos. Fecha-os conforme abre
a boca e geme alto, o cenho retorcido e o corpo trêmulo balançando
para frente e para trás.
— Sua — ela sussurra, tão baixo que quase não escuto.
Sorrio com o lábio entre os dentes, ela choraminga e tenta
friccionar o clitóris mais rápido. Lyanna se esfrega como uma cadela
no cio, desesperada para alcançar o orgasmo que tanto precisa.
— Não ouvi — minto em seu ouvido, tirando os dedos de sua
entrada.
Coloco-os em sua boca e ela os envolve para chupá-los com
vontade. Seus resmungos deliciosos me enlouquecem; quero
devorar cada centímetro dela.
A visão de Lyanna chupando meus dedos enquanto se
esfrega na mesa é alucinante. Ela abre as pálpebras conforme sua
língua quente desliza devagar por cada um, encarando-me como se
prometesse: “É assim que vou lamber e chupar a sua boceta
depois”.
Largo seu cabelo e abro o zíper de seu corpete, jogando-o
para longe. Seus peitos saltam e ela sorri, empinando a bunda e
roçando-a entre minhas pernas. Respiro fundo, seguro seu seio
direito e o aperto. Belisco seu mamilo e Lyanna resmunga, ainda
chupando meus dedos. À medida que acaricio, puxo e aperto seu
bico inchado, ela suga com mais vontade. Os olhos trêmulos
ameaçam fechar, mas ela gosta do contato visual; gosta de me
encarar enquanto a fodo.
— Você é mesmo uma putitnha safada, Bellini — sopro em
seu ouvido, descendo os lábios pelo seu pescoço. Deixo mais um
chupão abaixo de sua mandíbula, estalo a língua em deboche e a
provoco: — Está desesperada para gozar, mas sabe que não vou
permitir se não me responder.
Ela afasta a boca e sorri. Seus olhos brilham em afronta ao
devolver o tom baixo:
— Vá para o inferno, Romano.
Meto os dedos nela de novo, fodendo-a depressa. Seu
semblante cai e os gemidos ficam mais altos, os peitos balançando
conforme coloco mais e mais força. Dobro os dedos dentro dela,
alcançando um ponto que vai lhe dar um orgasmo em breve.
Lyanna estremece, tem um espasmo forte e joga a cabeça
para trás em meu ombro, as unhas fincando em meu braço e
arrancando sangue. Conheço essa reação e sonhei com ela toda
maldita noite.
Ela está a poucos segundos de gozar.
Então, paro.
De imediato, ela segura meu pulso e me impede de afastar o
toque por completo. Rio baixo, as pontas dos dedos resvalando de
leve em seu clitóris. Os espasmos continuam, o corpo mole e
tremelicante.
— Não ouse — ameaça.
— A quem essa boceta gostosa pertence, Lyanna? —
pergunto em um sussurro, mordendo o lóbulo de sua orelha.
— A você — diz, esfregando meus dedos em seu ponto
inchado. — Minha boceta pertence a você, Alessia. Ela sempre vai
ser sua. Por favor, me deixe gozar.
Com um sorriso vitorioso, viro-a de frente e a empurro de
volta à mesa. Levanto suas pernas, apoio seus pés na beirada e
abro-a para mim.
— Você vai gozar — prometo, ajoelhando-me novamente.
Lambo toda a extensão molhada e sussurro: — Na minha boca.
Começo a chupar seu clitóris enquanto fodo sua entrada com
os dedos. Faço movimentos circulares e de ziguezague com a
língua conforme aumento o ritmo e ouço-a gemer alto. Se nossa
casa não fosse afastada, todos os vizinhos saberiam que estou
comendo minha mulher.
— Não para — implora, apertando meus fios e pressionando
meu rosto contra sua boceta. As pernas se fecham ao redor da
minha cabeça, sufocando-me da melhor forma possível. — Não
para, por favor. Por favor, por favor, não para.
O barulho de seus gritos se mistura ao dos meus dedos
metendo com força. Mesmo depois de cinco anos, continua sendo
meu som favorito.
— Você é minha. — Mordisco seu clitóris, dou um tapa forte e
esfrego-o com a mão.
Ela assente com a cabeça, soltando resmungos afirmativos.
Seu corpo sofre um espasmo tão intenso que a coluna salta da
mesa e preciso levar a mão até seu quadril para impedi-la de cair.
Com um grito, ela goza e esguicha por todo o meu rosto. Coloco a
língua para fora, lambendo o líquido quente e salgado que continua
saindo e invadindo minha boca. Mesmo quando acaba de jorrar,
chupo e lambo sua boceta sensível.
Levanto-me e a visão de seu corpo acabado na mesa me faz
sorrir. Sua respiração está ofegante, os olhos fechados e o cabelo
bagunçado. Lyanna é gostosa em qualquer circunstância, mas
alcança um nível surreal depois de gozar.
Aproximo-me do seu rosto e inicio um beijo lento. Ela geme
baixinho, manhosa e fraca, segurando minha nuca enquanto
entrelaça a língua na minha para provar o seu próprio gosto. Sua
mão alcança o botão da minha calça, mas seguro seu pulso e a
imobilizo.
— Deixa eu te chupar — pede, mordendo meu lábio. — Por
favor, quero te foder também.
— E você aguenta? — provoco, arqueando a sobrancelha.
Ela me fuzila com o olhar e rio baixo. — Confie em mim, Lyanna,
você vai me foder. Vou esfregar minha boceta na sua e depois vou
rebolar na sua cara enquanto um vibrador te fode. É isso que você
quer?
— Sim, por favor — murmura. — Quero chupar os seus
peitos também.
Sorrio e volto a beijá-la.
Sou fascinada pela forma como ela fica entregue no sexo. É
o completo oposto da Lyanna atrevida e selvagem que sempre me
desafia e bate de frente comigo. Quando estamos transando, ela
fica submissa e mostra um outro lado de si.
— Não vou te perder de novo, Lyanna — sussurro contra os
seus lábios. Seguro seu rosto e trocamos um olhar cúmplice, repleto
de significados. — Você é minha e nada, nem ninguém, vai te tirar
de mim.
— E você é minha. Não pague para descobrir o que sou
capaz de fazer para marcar o meu território, Alessia.
Mal consigo acreditar que estou ouvindo-a dizer isso. É como
a porra de um sonho.
— Nós vamos acabar com eles — diz com a entonação mais
séria, embora ainda esteja ofegante. Seu polegar acaricia minha
mandíbula. — Vamos dar um jeito em tudo isso.
Com “tudo isso”, sei que ela se refere ao nosso
relacionamento proibido.
— Nós vamos — asseguro, dando-lhe um selinho. — Nada
vai nos separar dessa vez, eu prometo.
 

 
“Eu realmente tenho sentimentos por você
Eu ajo como se estivesse pouco me fodendo
Porque eu sou medroso pra caralho
Eu sou apenas um tolo por você
E talvez você seja boa demais pra mim”
idfc | Blackbear
 

7 anos atrás
 
 
Faz cinco meses desde o nosso primeiro beijo. Lembro-me
como se tivesse sido ontem da euforia em tê-la ali, em meu
território, dizendo tudo que sempre sonhei em ouvir. Naquela época,
eu não fazia ideia de tudo que viveríamos e do significado que ela
teria em minha vida. Sabia que seja lá o que existia entre nós não
passaria tão rápido, porém, não imaginei que se tornaria algo muito
maior.
Sempre fui fascinada por ela, mas o que temos e o que sinto
agora… vai muito além. Vai além do fascínio, da obsessão e da
atração. Vai além de tudo que já conheci e é por isso que estou,
literalmente, perdendo a cabeça.
Acho que eu amo Lyanna. Acho que a amo desde a primeira
vez que a vi. Acho que a amo há tanto tempo que não consigo mais
me lembrar de como era a vida antes de amá-la.
Não, eu não acho. Eu tenho certeza.
Porra, eu amo Lyanna. Eu a amo.
— Alessia?
Saio do devaneio e ergo a cabeça para encontrar seu cenho
franzido. Desço os olhos pelo seu corpo, coberto apenas por uma
das minhas camisetas largas, e engulo em seco. Estou nervosa,
suando e me sentindo patética.
Aconteceu vinte minutos atrás. Voltamos de uma corrida e
Lyanna disse que tomaria um banho para depois assistirmos a um
filme. Dei-lhe um beijo, abracei sua cintura e a encarei de perto.
Muito, muito perto. Ela me perguntou se eu tinha gostado da noite,
já que foi ela quem escolheu a corrida da vez, e fiquei em silêncio.
Ainda eufórica, meu silêncio passou despercebido e ela desatou a
falar sobre os acontecimentos de mais cedo — um cara fez isso, um
casal fez aquilo e bla, bla, bla.
Não consegui prestar atenção em nenhuma palavra, porque
foi quando aconteceu.
Vendo o brilho em seus olhos, o sorriso grande e toda sua
animação, aconteceu.
Eu percebi que a amo.
Em um momento doméstico e simples, tão diferente da nossa
realidade, percebi que amo Lyanna Bellini. Percebi que é inútil negar
para mim mesma porque, no fundo, sei que a amo desde a nossa
primeira conversa. Desde o momento em que fui ameaçada por ter
lhe dado vários batons de aniversário, meu coração pertence a ela.
E é assustador. Amar qualquer um de nós é uma sentença de
morte.
Amar a mim é suicídio.
Amar Lyanna Bellini é como um sol ardente num dia de
inverno, mas amar Alessia Romano é como tomar um veneno que
mata devagar e imperceptivelmente. Vai destruí-la de dentro para
fora, até que não restará nenhum resquício da Lyanna que um dia
amei.
— Alessia? — a voz confusa repete e pisco forte para voltar à
realidade. — Está tudo bem? O que aconteceu?
Aconteceu que eu te amo e tenho certeza de que isso vai te
destruir.
Respiro fundo, passo a mão gelada no rosto e tento não
deixar explícito o quanto estou perturbada. Mas ela já me conhece
muito bem, ainda mais do que conheço a mim mesma. Não consigo
esconder nada.
— É… Jayden me ligou… Aconteceram alguns problemas lá
na Vendetta.
Sou uma ótima mentirosa. Blefar é um dom natural e algo
que faço com bastante frequência devido ao pôquer. Minto tanto e
tão bem que se tornou rotina.
Agora, no entanto, estou mentindo tão mal que até uma
criança de quatro anos perceberia.
— Não minta para mim — ela diz, cruzando os braços.
Seus passos firmes avançam em minha direção e, em
reflexo, eu recuo. Não foi um ato planejado e tampouco voluntário,
mas, mesmo assim, o fiz. E a chateação que ele causa no
semblante de Lyanna me faz odiar a mim mesma mil vezes mais.
— O que está acontecendo, Alessia? — indaga, estudando
cada centímetro do meu rosto.
Ela é tão boa. Boa demais para o submundo. Boa demais
para mim.
O que aconteceria caso algum dos meus inimigos
descobrisse que meu único ponto fraco é ela? Que finalmente tenho
um calcanhar de Aquiles? Que eu faria absolutamente qualquer
coisa para salvá-la?
Dante vai matá-la. Ele não se importa com nenhuma das
merdas que faço na minha vida pessoal, mas, sem sombra de
dúvidas, vai matá-la. Porque Lyanna não é mais uma das fodas que
eu costumava ter; não é mais uma das mulheres que se arrastavam
até a minha cama e iam embora no dia seguinte.
Lyanna é a mulher que eu amo.
Dante Romano nunca vai permitir que eu ame outra coisa
além da Vendetta. Não vai permitir que eu tenha um ponto fraco,
porque um ponto fraco significa fracasso. Significa que a máfia não
é mais a única pela qual estou disposta a matar e morrer.
Ele não vai permitir que um potencial fracasso continue
respirando.
Solto uma lufada de ar, desvio o olhar e sinto a garganta
fechada. Nunca fiquei tão nervosa assim antes. Não sei como lidar,
o que fazer ou falar. Não sei como acalmar o coração acelerado e a
mente apavorada.
— Tenho que ir — falo, desviando dela para atravessar a sala
de estar.
Quero jogar a cabeça na parede ao notar que estou com as
pernas bambas.
— Alessia? Que porra está acontecendo?! — sua entonação
sai mais alta e impaciente dessa vez, o barulho dos passos
indicando que ela está me seguindo pelo cômodo.
— Tenho que resolver um problema! — respondo, abrindo e
fechando a porta num estrondo.
Praticamente corro até minha moto, subo e acelero. Minhas
mãos tremem durante todo o trajeto que faço até o Fortuna e
continuam tremendo quando viro um copo de uísque num gole só.
Fico bêbada demais para saber se elas ainda estão tremendo
quando me jogo no sofá do meu apartamento, mas sei que, quando
fecho os olhos, tenho o pesadelo de Lyanna sendo morta pelo meu
don.
 

 
Uma semana se passa. Não a vejo desde a noite em que saí
correndo, pois venho ignorando-a desde então. Por algum motivo,
estou paranóica com a possibilidade de alguém saber sobre nós.
Toda vez que converso com Dante, fico esperando o momento em
que ele vai revelar que descobriu tudo e vai matar Lyanna.
Admitir para mim mesma que eu a amo furou a bolha na qual
estávamos vivendo nos últimos meses. Acho que me acostumei
tanto com o conto de fadas que me esqueci da nossa realidade
complicada e nada romântica.
— Você está miserável — Yuna diz, roubando o meu boné
para colocar em sua cabeça. Ignoro a provocação, espalhando as
cartas em cima da mesa. — Vai me dizer o que diabos está
acontecendo ou vou precisar te torturar?
— Você não conseguiria — murmuro, concentrada na Dama
de Espadas à frente.
Estamos no meu escritório, no Fortuna, onde passei a maior
parte do tempo na última semana. De alguma forma, me sinto
melhor aqui.
— É sério, Alessia. — Seu tom firme me faz levantar os
olhos. Yamazaki está sentada do outro lado, observando-me com
atenção. — O que está acontecendo?
Abro a boca para respondê-la, mas sou interrompida pelo
toque do celular. Apanho-o do bolso e sinto o coração parando de
bater ao ler a mensagem na tela.
Bonnie: Estou no cassino do Fortuna. Se não aparecer em
cinco minutos, vou começar a atirar.
Meus olhos se esbugalham e quase caio da cadeira ao
levantar de supetão. Corro para fora enquanto Yuna chama meu
nome e atravesso os corredores até o elevador. Respiro fundo
conforme assisto aos números do painel abaixando.
Tento não demonstrar nervosismo, para não causar pânico
coletivo, e faço o caminho até o cassino. Engulo o nó na garganta e
coloco a mão sutilmente na arma da cintura, pronta para fazer seja
lá o que for preciso para protegê-la.
Quando a vejo sentada no bar, sozinha, solto um suspiro
aliviado. Aproximo-me de maneira discreta, paro ao seu lado e
agarro seu pulso.
— O que você pensa que está fazendo aqui?! — sussurro,
exasperada, em seu ouvido.
Ela vira a cabeça e me fuzila com o olhar. Embora esteja
disfarçada, reconheço o semblante furioso. Lyanna se levanta, me
arrasta para fora do prédio e abre a porta de um carro sem dizer
nada. Não tenho muitas escolhas, então entro e ela fecha a porta
com força. Fecho as pálpebras por alguns segundos, praguejando
baixinho, até ouvi-la se sentando ao lado.
— Que merda é essa, Alessia?! — grita, empurrando meu
ombro.
Viro-me no banco e deslizo os dedos pelo rosto gelado.
Deveria estar dizendo o quão inconsequente ela é por ter vindo até
aqui, mas, para ser sincera, estou tão cansada que mal tenho forças
para brigar.
Tive o mesmo pesadelo todas as noites dos últimos sete dias.
Olho para o seu rosto e vejo a imagem de Dante atirando em sua
testa.
— Você está… — diz, arfando em descrença. De repente,
recebo um tapa na bochecha direita. — Você está bêbada? Sua
roupa está fedendo a álcool! É por isso que está me tratando como
merda? Para beber e comer outras mulheres?
— Meu Deus… — sussurro, incrédula. É inacreditável que ela
acredite nisso. E é ainda mais inacreditável que acabei de receber
um tapa na cara e não pretendo fazer nada a respeito. — Ouça o
que está dizendo, Lyanna.
— Olhe para si mesma!
Meu coração se quebra ao ver seus olhos marejados. Além
de irritada, percebo que ela está triste.
— Lyanna…
Ela levanta a mão, cortando minha fala. Meneia a cabeça de
um lado para o outro, desvia o olhar e soluça baixinho. Tenta
esconder a lágrima ao virar o rosto, mas seguro sua mandíbula e
viro-a para mim.
— Não existe nenhuma outra mulher — asseguro, limpando a
lágrima com o polegar. — Não existe ninguém além de você.
— Você está nesse cassino toda noite, bebe até cair e depois
sobe para o seu escritório. Não está ocupada, então não é esse o
motivo para estar me tratando assim. Se não é outra mulher, o que
é?
Às vezes, me esqueço do fato de que ela é chamada de
“feiticeira” por uma razão. Não é surpreendente que Lyanna saiba o
que estive fazendo nessa semana. Provavelmente hackeou as
câmeras de segurança do prédio para me encontrar.
— Eu…
Não consigo. Não consigo dizer em voz alta.
Ela ri, sarcástica, e empurra minha mão para longe.
— Nem se dá ao trabalho de inventar uma desculpa. Quer
saber, Alessia? Não estou chocada. Fui ingênua ao pensar que isso
aqui significava alguma coisa pra você. Saia do meu carro.
— Lyanna, escuta…
— Sai do carro! — berra.
Mais lágrimas caem dos seus olhos. Estou paralisada,
incapaz de agir, e me odeio por isso. Quero confortá-la e dizer a
verdade. Quero que ela saiba que esse sentimento é assustador e,
sobretudo, novo. Novo pra caralho, porque nunca, em toda a minha
vida, senti algo parecido.
— Sai do carro — repete, apertando o volante com uma das
mãos. — Não quero te ver mais. Foram meses bons, mas não
aceito ser tratada como lixo, especialmente por alguém que sequer
tem motivos.
— Tenho um motivo — digo, cerrando a mandíbula. Solto
uma lufada, engulo o nó na garganta e reúno coragem para
continuar: — Não era minha intenção te machucar, mas…
Ela ri, sarcástica e descrente.
— Não tinha intenção de me machucar? Vai se foder, Alessia!
Você foi embora depois de uma noite incrível que tivemos, saiu
correndo de repente e não falou comigo por uma semana! Mandei
mensagens, liguei e até cogitei perguntar para os seus amigos o
que caralho estava acontecendo! Tive que vir até aqui, na porra do
seu território, para conversar! — as veias do seu pescoço estão
saltadas, as pálpebras arregaladas e a respiração ofegante. — E
nem assim mereço uma explicação, não é? O que esses meses
foram para você? Depois de tanto correr atrás, depois de tantas
declarações, tudo que você queria era sexo? Queria me iludir para
depois me descartar como se eu fosse lixo? Não sei por que eu…
— Eu amo você! — berro, incapaz de continuar ouvindo. Ela
congela, o corpo enrijece e a boca permanece aberta em choque. —
Amo tanto você que não consigo respirar, Lyanna! Quer saber por
que estou bebendo como uma filha da puta todas as noites? Porque
o álcool me ajuda a esquecer o fato de que meu amor vai destruir a
porra da sua vida!
O silêncio que recai sobre nós é denso e sufocante. Estou
ofegante, trêmula e gelada. Ter dito em voz alta torna tudo real.
Assustadoramente real.
— Alessia… — sussurra, tão baixo que quase não escuto.
— Eu amo você. Amo você desde a primeira vez que te vi,
mas não consigo aceitar que estou te arrastando para um buraco
negro onde só existe morte e sofrimento. Eu não… não deveria ter
ido atrás de você. Não deveria ter te colocado na minha vida,
porque não há nada bonito nela. Não há nada bonito em mim,
Lyanna, e eu nunca me perdoaria se te arruinasse com a minha
sujeira.
— Quem você pensa que eu sou? — Franzo as
sobrancelhas, confusa. — Pensa que sou uma donzela indefesa?
Também sou uma criminosa. Também faço parte de uma máfia.
Também já matei muita gente, inocente ou não. Não há nada bonito
em mim também, Alessia, mas eu sei onde estou me metendo.
— É diferente. Você não…
Você não tem o chefe que eu tenho, quero dizer.
— Eu também amo você — me interrompe.
E eu paro de respirar.
— Eu também amo você. Não consegui fazer nada na última
semana, porque tudo em que eu pensava era você. Fiquei louca
acreditando que existia outra mulher e que eu me apaixonei para ser
trocada. Não consegui trabalhar, comer ou dormir. Não sei o que
você fez comigo, Alessia, mas estou completamente louca. Nunca
senti essa liberdade que sinto ao seu lado. Nunca pensei que
pudesse ser tão feliz quanto fui nesses cinco meses e nós duas
sabemos que tudo isso é loucura. Pra caralho. Só que eu… eu
quero continuar. Não deveria, mas eu quero. Quero dar uma chance
a nós duas porque independente do que esse sentimento seja, ele
me faz bem. Você me faz bem.
Lyanna me ama.
Lyanna me ama.
Lyanna quer continuar comigo.
Lyanna me ama.
— Vou arruinar você — sussurro, o cenho franzido em
tristeza. Engulo o nó na garganta, estendo a mão e toco seu rosto.
— Meu amor vai arruinar você, Lyanna.
— Meu amor vai arruinar você também — promete, no
mesmo tom baixo, inclinando-se ao meu toque. Fecha os olhos,
desliza os lábios pelo meu dedo e abre um sorriso de canto. — Mas
nós vamos construir uma fortuna sobre nossas ruínas, Alessia.
 

“Dê uma olhada nestas montanhas que estou movendo por


você
Eu vou acender a dinamite, vou passar por tudo isso”
Don’t You Know  | James Young
 

 
Meus dedos batucam impacientemente no volante à medida
que as ruas iluminadas de Las Vegas passam como um borrão pela
janela. Meu coração está acelerado e me sinto nervosa como uma
pré-adolescente que teve seu primeiro beijo na noite passada. Bufo
baixinho, passo a mão no rosto e acelero o carro a fim de chegar
mais rápido ao prédio.
Nunca tive problemas em me encontrar no dia seguinte com
alguma mulher com quem transei. A vergonha nunca esteve ali, pois
não faz parte da minha personalidade. No entanto, a forma como
estou me sentindo agora é o completo oposto disso.
Porque Alessia é diferente. Nossa relação e nossa história
são diferentes. Ela não é uma pessoa qualquer que me comeu. É
minha ex-namorada, a chefe da máfia rival e a mulher que, mesmo
eu tendo lutado contra durante os últimos cinco anos, continua
sendo a dona do meu coração.
Está na hora de admitir, para a minha própria infelicidade,
que ainda a amo. O universo sabe o quanto tentei aniquilar todo e
qualquer sentimento que seu retorno despertou em mim, mas foi
inútil. No fundo, bem no fundo, apenas seus olhos eram o suficiente
para me desestabilizar. Todo o ódio — que, sim, era real — foi
substituído pelas antigas sensações a cada novo encontro,
sobretudo naqueles em que Alessia fazia questão de enfatizar que
não desistiria de nós.
Até hoje, não consigo acreditar que ela passou por tudo
aquilo para me proteger e me manter longe de Oliver. Não me
arrependo de ter sentido o que senti e de a ter odiado por tanto
tempo, pois eu não fazia ideia. Nenhuma explicação, nenhuma
mensagem ou sequer uma pista do que realmente aconteceu me
deixou à mercê das deduções e do que parecia óbvio após ter visto
minha mãe sendo assassinada em minha frente. Porém, ainda
assim, me pergunto como as coisas teriam sido se eu soubesse; ou
até mesmo se eu tivesse sido levada no lugar dela.
Como eu poderia continuar a odiando depois de tudo? Como
poderia negar para mim mesma que os sentimentos não estavam
ali, enterrados e anestesiados dentro de mim, ao ouvi-la dizer que
ainda me ama com todo o seu coração e que morreria por mim? A
cada declaração que saía de sua boca, eu quebrava um pouco mais
ao mesmo tempo em que me reconstruía. É confuso e não faz
sentido algum, motivo pelo qual sofri como uma condenada desde
que ela voltou.
Ao estacionar no prédio onde a maioria dos nossos encontros
aconteceu, me sinto inquieta. Alessia me comeu e me fez ver
estrelas na noite passada, mas não sei o que vai acontecer entre
nós a partir de agora. Não quero me machucar novamente, contudo,
também não consigo controlar o desejo e a necessidade de voltar a
tê-la só para mim.
É cômico o fato de que estou maluca para ser dela de novo
pouco tempo depois de jurar que a mataria por vingança. Quero
derrotar Oliver ao seu lado, discutir sobre o nosso futuro e
estabelecer o que faremos — se é que existe algo possível.
Não podemos viver em segredo para sempre e essa é a
única parte que me causa medo, já que não existe nenhum cenário
em que Alessia e eu tenhamos um final feliz. Nosso amor nasceu
fadado à ruína.
Vasculho ao redor com o olhar, os dedos repousados na
arma presa à cintura caso seja necessário usá-la de repente. O
clima está excepcionalmente quente hoje e o sol parece ferver
minha pele enquanto caminho até a entrada do prédio abandonado.
Subo no elevador, tendo plena consciência de que Alessia está me
monitorando pela câmera. Tento não demonstrar nervosismo em
minha linguagem corporal, mas é inevitável acariciar o tecido do
meu vestido numa tentativa estúpida de me manter calma.
Mantenho o queixo erguido conforme me aproximo da porta
e, ao abri-la, sou recebida pelo barulho alto de um tiro. Saco a arma
no mesmo instante, apontando-a para a escada de onde o som veio.
Subo os degraus com passos vagarosos e hesitantes, a postura
defensiva e o revólver pronto para ser disparado. Chego ao segundo
andar, vejo uma porta entreaberta no final do corredor e chuto-a
com o salto alto.
Alessia se vira num pulo, os olhos arregalados e as
sobrancelhas franzidas em confusão. Ao me ver, os ombros caem e
um sorriso cresce no canto da boca. Observando o quarto, percebo
que ela estava treinando.
Seu corpo está coberto por uma roupa de treino, toda preta,
com alguns bolsos para guardar equipamentos.
— Está treinando aqui? — indago, guardando a pistola de
volta ao coldre da cintura. — Sem fone de proteção, ainda por cima?
Ela dá de ombros, repete meu ato e se aproxima de mim.
— Não preciso — se gaba, e eu reviro os olhos. — Estou tão
acostumada com o barulho de tiros quanto com o oxigênio,
principessa.
— Mesmo assim… — minha fala é interrompida por duas
mãos serpenteando minha cintura e me puxando para perto.
Prendo a respiração automaticamente, engulo em seco e ajo
em reflexo ao tocar sua nuca. Alessia está perto, os olhos verdes
brilhando da mesma maneira que na noite passada e o semblante
relaxado. É a primeira vez que a vejo assim desde que voltou para
Las Vegas.
— Está de bom humor? — sussurro, tentando reprimir um
sorriso.
— Estou de ótimo humor — responde, escorregando o nariz
pelo meu.
O que não consigo reprimir, no entanto, são as batidas
aceleradas e satisfeitas do meu coração. Saber que ela está assim
por minha causa é como ter todo o organismo transbordando
serotonina.
Me sinto com dezoito anos novamente e, para ser sincera,
acho que gosto.
— Vai atirar em mim se eu te beijar agora? — pergunta,
avançando e me prensando contra a parede.
Fricciono os lábios e rio nasalado. Coloco suas pernas entre
as minhas e deslizo a coxa na sua. Alessia semicerra as pálpebras
e leva uma das mãos até meu pescoço, segurando-o com firmeza.
— Vou atirar em você se não me beijar agora.
Ela não precisa de dois segundos para grudar os lábios aos
meus. O beijo começa lento, mas é tão sensual que me deixa sem
fôlego. Nossas línguas se entrelaçam, os corpos se apertam um
contra o outro como se quiséssemos nos fundir e seus dedos
deslizam pela minha coluna até alcançarem os cabelos. Sinto-a
agarrando e puxando os fios e deixo um gemido baixo escapar
contra sua boca.
— Não faz ideia do quanto eu senti sua falta — sussurra,
prensando-me cada vez mais contra a parede.
Mordisco seu lábio e corro as mãos pelo seu corpo, fazendo
o trajeto dos ombros até a cintura. Passo por baixo da blusa,
arranhando sua pele quente com as unhas afiadas.
Então, eu paro. Abro os olhos e vejo seu sorriso sacana.
— O quê? — Levanta a sobrancelha. — Às vezes, gosto de
sair sem sutiã.
Mentira. Ela raramente saía sem.
— É mesmo? — revido, subindo os dedos devagar.
Toco seu mamilo enrijecido e sorrio fraco ao observar seu
semblante caindo. Aperto-o contra o polegar e o indicador, puxando-
o de leve, e Alessia engole em seco. Seus olhos parecem queimar à
medida que uso a mão direita para acariciar seu mamilo e a
esquerda para massagear o outro seio.
— Já que não se importou em vir sem sutiã… — murmuro,
deslizando a língua pelo seu lábio inferior. Ela avança para tentar
iniciar um beijo, mas recuo a cabeça. — Não vai se importar se eu
chupar os seus peitos, vai?
— Lyanna, Lyanna… — sibila, balançando a cabeça. Solta
um riso baixo, as pálpebras espremidas e os dedos apertando ainda
mais meu cabelo. — Esqueceu de como as coisas funcionam entre
nós, principessa? Você não pergunta, você faz. Tudo que quiser.
Alessia sabe como alimentar meu ego. A infeliz sabe que
adoro ouvi-la dizer que posso fazer qualquer coisa com ela. E eu, é
claro, adoro fazer qualquer coisa com ela. Nossa dinâmica é
fascinante; ao mesmo tempo que ela finge dar as ordens, eu finjo
que sou a submissa quando, na realidade, sou eu quem detenho o
poder.
Em um ato rápido, inverto nossas posições e prendo-a contra
a parede. Porém, quando tento tirar sua camisa, Alessia me impede.
Coloca o tecido na boca, segurando-o entre os dentes e com um
sorriso ladino.
Não deveria ser uma visão tão sexy assim.
Abaixo os olhos e umedeço os lábios ao ver seus peitos
cheios e os mamilos enrijecidos. Aproximo-me sem pressa, coloco o
bico direito entre os lábios e o mordisco de leve.
— Cazzo, mi sono mancate tanto le tue tette[18] — sussurro,
abocanhando-o e chupando devagar. Alessia aperta meus fios e
pressiona minha cabeça para frente, em um pedido silencioso para
que eu continue e chupe mais forte.
Levo a mão livre ao outro seio, acariciando-o e passando o
polegar no mamilo. Faço movimentos circulares com a língua e
chupo o mamilo até vê-lo vermelho e inchado. Alessia solta gemidos
baixos, a respiração tornando-se mais e mais ofegante a cada
segundo.
Olho para cima e capturo as íris verdes fixas em mim. Ela
sempre gostou de assistir, especialmente quando minha cara está
no meio das suas pernas.
— ‘Tá gostoso assim? — pergunto, apenas para provocá-la,
já que seus arquejos são uma resposta clara.
Sem dar-lhe tempo para responder, levo a boca ao outro
mamilo e, diferentemente de como fiz antes, não começo devagar;
chupo com força e ela ofega, agarrando tão forte meus fios que não
consigo reprimir um gemido. Fecho os olhos, sentindo a boceta
contrair de forma automática.
— Vai me machucar — digo, embora não dê a mínima.
Muito pelo contrário, eu gosto quando ela me machuca no
sexo.
Alessia ri baixo e puxa minha cabeça para trás, afastando-me
dos seus peitos. Solta a camisa, cobrindo-os, e franzo as
sobrancelhas. Abro a boca para protestar, mas não consigo soltar
nenhuma palavra antes de seus lábios grudarem nos meus em um
beijo desesperado. Fico sem fôlego pela forma urgente com que ela
me prende, me aperta e me beija. É como se esses fossem nossos
últimos minutos de vida.
— Jesus — sopro quando paramos para respirar.
Alessia segura minha mandíbula e sorri. Meu corpo está mole
e pegando fogo.
— Ainda nem começamos, Lyanna — promete. — Mas agora
não. Você disse que tinha informações importantes, não é?
Fecho o semblante, dou um passo para trás e cruzo os
braços.
— ‘Tá de brincadeira com a porra da minha cara? Eu estava
chupando os seus peitos e você me parou para receber
informações?
Ela gargalha como a cretina que é. Tenta puxar-me pela
cintura, mas dou um tapa em seu braço e lanço um olhar furioso
antes de sair do cômodo. Escuto-a rir enquanto me segue escada
abaixo.
— Acredite em mim, amor, você terá muitas oportunidades
para chupar os meus peitos e a minha boceta.
Reviro os olhos, me sento na mesa central e tento ignorar a
umidez na calcinha. Estou excitada, sem conseguir tirar a visão de
seu mamilo vermelho e inchado da cabeça, mas também irritada por
ter sido interrompida para revelar as informações que consegui
sobre um psicopata filho da puta.
— Lyanna… — o divertimento é explícito em sua voz, o que
me enfurece ainda mais. Ela coloca uma mão no encosto da cadeira
na qual estou e a outra na mesa, abaixando-se em minha direção.
— Se começássemos, você sabe que não iríamos parar.
Levanto o queixo, fuzilando-a com o olhar.
— Quem disse que eu quero parar, stronzo[19]?
Seu sorriso fica ainda mais largo. Ela se inclina e planta um
beijo em minha boca e, embora esteja zangada, não consigo evitar
de segurar sua nuca para aprofundá-lo. Nossas línguas brincam
sem pressa, saboreando uma a outra enquanto meu polegar traça a
linha de sua mandíbula fina. Quando nos afastamos, recebo um
selinho antes de ela segurar meu pulso e me levantar. Confusa, meu
cenho franze.
— O que você está… — minha fala é cortada ao meio.
Alessia se senta na cadeira, puxa-me pela cintura e me
coloca em seu colo. Minhas costas grudam em seu peito, sua mão
começa um carinho lento em minha coxa e a outra segura com
firmeza minha cintura, mantendo-me no lugar.
Sua voz sussurrada ao pé do meu ouvido me faz arrepiar:
— Vamos lá, minha feiticeira, me diga o que descobriu.
Com uma respiração profunda, estalo os dedos e começo a
digitar. Adoro o barulho do teclar frenético.
— Depois do incêndio da Dark Notes, imaginei que a Holy
Devils não ficaria em Vegas. Pelo menos, não o líder deles, então
consegui uma foto do Oliver e de alguns dos seus capangas mais
importantes na darkweb e joguei as imagens no aplicativo de
reconhecimento facial. Cruzei com todas as filmagens das câmeras
de segurança de Las Vegas e Los Angeles e também comparei as
medidas físicas de todos — altura, peso, fisionomia — com as
pessoas que apareciam nas gravações, focando nos bairros com
maior atuação deles. Levou alguns dias, já que são zilhões de
frames e os desgraçados sabem onde fica cada maldita câmera
daquela cidade e conseguem se esconder muito bem, mas enfim
encontrei algo hoje.
Viro a cabeça e vejo Alessia com um sorriso divertido nos
lábios, além das sobrancelhas levantadas.
— O quê? — indago.
— Você é uma nerd.
Reviro os olhos.
— Isso é coisa básica, qualquer criança de dez anos
consegue. Enfim… o único lugar onde eles foram pegos é esse. —
Abro a gravação de dois dias atrás. — É um bairro afastado, quase
nos arredores da cidade, e essa câmera foi instalada uma semana
atrás. Acho que eles ainda não sabiam da existência dela e por isso
não se esconderam. Demorei um pouco para conseguir acessar o
passado do Oliver e da gangue, mas descobri algumas
propriedades que eles têm e que a polícia de LA finge não saber da
existência. Por experiência própria, tenho certeza de que são
usadas para fabricar drogas ou para armazenar armas.
— Com certeza — ela concorda. — As fábricas da Vendetta
também foram excluídas do registro público, justamente para que as
autoridades não batessem na porta. Mas, conhecendo Oliver, não
acho que ele esteja escondido numa fábrica. Eles não têm tantos
hotéis sob domínio, mas meu palpite é que estejam em algum deles
ou, se forem espertos, nem em LA estejam mais.
— Eles estão — asseguro.
Alessia franze a testa e volto a digitar. Um e-mail surge na
tela e ela lê com atenção.
— É uma armadilha. Um baile alguns dias depois de termos
atacado eles? — Balança a cabeça em negação. — Por mais
tentador que seja, é uma armadilha.
— Não é. — Digito novamente e várias abas aparecem. Sinto
os músculos de Alessia tensionando no instante que vê a foto e,
embora ela tente não expressar nenhuma reação, consigo ler cada
centímetro de seu rosto. — Você conhece esse homem?
É óbvio que ela não só conhece o cara, como também há
uma história por trás.
— Não esconda de mim — peço, virando-me em seu colo.
Vejo-a engolir em seco, respirar fundo e desviar o olhar.
Passa a mão na bochecha e leva alguns segundos para falar, a
entonação mais baixa e séria:
— Derek Duncan, irmão e braço direito de Oliver. Eu o
conheço.
— E…
— E ele me odeia tanto quanto Oliver, se não mais. — Cerro
as pálpebras e a espero continuar. — Há uma coisa que não te
contei sobre meu período na HD.
Solto uma lufada de ar, cruzo os braços e a fito em silêncio.
Sei que não é fácil para Alessia se abrir sobre isso, então espero.
Espero calada, observando-a com a atenção fixa na mesa enquanto
reúne coragem para contar.
— Alguns meses depois que fui sequestrada, uma mulher
começou a me levar água e comida. Achei estranha a mudança, já
que sempre eram os homens de Oliver que faziam esse trabalho,
mas não questionei. Ela não parecia ser ninguém importante, pelo
contrário; às vezes, se vestia como uma prisioneira. Eu nunca abria
minha boca, mas, mesmo assim, ela puxava assunto e se sentava
ao meu lado por horas. Eu nem respondia e ela continuava
divagando e tentando tirar algo de mim. No começo, não entendia.
Sua mandíbula tensiona e uma respiração profunda lhe
escapa. É um claro sinal de que a lembrança a deixa irritada.
— Então, em uma dessas visitas, eu entendi. Ela se sentou
ao meu lado, tocou meu rosto e perguntou há quanto tempo eu não
fazia sexo. — Eu paraliso e cogito sair de seu colo, porém, me
mantenho imóvel e calada. Não sei se quero saber a continuação
dessa história. — Eu recuei no mesmo segundo, só que ela não
desistiu. Toda vez que me levava comida, soltava um elogio e
tentava me seduzir. Quando percebeu que não conseguiria nada, as
investidas pararam. E eu… eu não tinha ninguém, Lyanna. Ninguém
para conversar, para me escutar ou para simplesmente se sentar
em silêncio ao meu lado. Por isso, comecei a respondê-la e a
conversar com ela depois que as tentativas cessaram.
Respiro fundo e mordo o interior da bochecha.
— Não sou estúpida, não a via como uma amiga. — Sinto
seu olhar queimando meu rosto. Estou mirando o chão numa
tentativa de não deixá-la perceber o quanto o pensamento de outra
mulher seduzindo-a me enlouquece. — Ao longo dos anos, ela
nunca deixou de me levar comida. Eu passei a realmente gostar da
sua companhia, mas… ela se apaixonou por mim.
Prenso os lábios e suspiro. A mão de Alessia afaga minha
coxa enquanto a outra acaricia minha cintura.
— Ela confessou alguns meses antes de eu fugir. Era o que
eu precisava e, para ser sincera, tive uma parcela de culpa nisso. —
Levanto meu queixo e a fito em questionamento. — Nunca fizemos
nada, não me entenda errado. Mas, sim, eu a iludi e dei falsas
esperanças de propósito. Percebi que ela me olhava diferente e
decidi usar aquilo ao meu favor.
— Ao seu favor?
— Para fugir — explica. — Comecei a dizer que nós não
poderíamos ficar juntas ali, porque logo eu morreria e ela ficaria de
coração partido. Criei vários discursos ao redor disso para que ela
me ajudasse a sair daquele lugar. Não achei que fosse dar certo,
mas Jasmine realmente me amava.
Jasmine… esse nome não me é estranho. Soa familiar,
embora não consiga me lembrar de onde.
— Me amava tanto ao ponto de trair seu próprio marido, o
braço direito do chefe, para me ajudar a fugir.
Meus olhos se arregalam e tenho um estalo mental. Agora,
me lembro de onde vi o nome Jasmine: na tela do meu computador,
enquanto vasculhava toda a vida pessoal do alto escalão da Holy
Devils.
Jasmine Duncan, esposa de Derek Duncan.
— Puta merda, Alessia. Por que ela? Como Derek permitiu?
— Era tudo um plano para tirar informações de mim e me
“domesticar”. Eles achavam que uma hora ou outra eu cederia às
investidas. — Revira os olhos. — De todas as burrices que aquela
gangue já fez, essa continua sendo uma das mais estúpidas de
todas. Eles realmente achavam que o isolamento e a tortura me
fariam esquecer de você e cair no papo da primeira mulher que
aparecesse na minha frente.
— Mas ela está morta — digo. — Encontrei a certidão de
óbito na minha investigação.
A forma como Alessia me olha, com os lábios prensados e o
semblante culpado, já diz tudo. É claro…
— Você a matou — concluo.
— Sim. Ela realmente me ajudou a fugir, mas eu não podia
arriscar ser descoberta. Não podia arriscar que aquele lapso de
paixão acabasse assim que eu saísse daquele lugar e ela
percebesse o que fez, porque Jasmine contaria para o primeiro
soldado que visse e eu seria pega antes de cruzar a fronteira do
Estado. Então, fiz o que precisava ser feito para me proteger. Eu a
matei.
Não a julgo e, com certeza, faria o mesmo.
— Essa é mais uma explicação para o ódio da Holy Devils
por mim — diz. — Quando eles descobriram que eu fugi, já estava
bem longe, mas meus contatos disseram que Derek enlouqueceu
depois de ligar os pontos e perceber que matei sua esposa. A culpa
é dele, afinal de contas, já que mandou a própria mulher fazer
aquele trabalho estúpido. Jasmine era uma boa pessoa, a única que
me tratou com decência naquele tempo, mas não me arrependo do
que fiz. Faria de novo se fosse preciso, especialmente sabendo que
valeria a pena no final.
O canto da minha boca se ergue num sorriso involuntário.
— Valeu a pena?
Ela sorri, aproxima o rosto do meu e mordisca meu lábio
inferior.
— Você está no meu colo nesse exato momento, principessa.
Valeu a pena pra caralho.
— Tudo que você precisou fazer foi matar algumas pessoas,
desobedecer inúmeras regras e ouvir milhares de xingamentos… —
debocho. — Ah, e levar um tapa na cara.
— Eu mataria o dobro de pessoas por você, Lyanna. E, sem
dúvida nenhuma, adoraria receber mais alguns tapas na cara.
Reviro os olhos e rio baixo. Alessia cola a boca na minha e
me beija devagar, escorregando os dedos pela minha pele e
saboreando minha língua. Antes que as coisas fiquem intensas
demais, me afasto e lhe dou um selinho.
— Ainda não acredito que isso está acontecendo — confesso
em um sussurro, abraçando seu pescoço.
— Eu, muito menos — ela devolve o tom baixo. Escorrego
meu nariz pelo seu e os braços serpenteiam minha cintura. —
Esperei tanto tempo para te ter de volta, Lyanna. Não exagero
quando digo que pensei em você todos os dias dos últimos cinco
anos. Tudo que fiz foi para te proteger e garantir um futuro para nós,
mesmo que eu não soubesse se algum dia você me perdoaria.
— Eu me sinto muito, muito culpada por ter sido o motivo de
tudo isso. Se não fosse por mim, você não teria vivido aquele
inferno. Sei que nós somos treinadas para sobreviver ao pior que o
submundo pode oferecer, mas o que Oliver fez com você… eu sinto
muito, de verdade. Se eu soubesse, teria tomado o seu lugar em um
piscar de olhos.
— Não — fala, apertando-me contra si. — Você nunca faria
isso, porque eu não permitiria. Nunca, nem em um milhão de anos,
permitiria que você fosse sequestrada e torturada. Enquanto eu
viver, não há ninguém capaz de te machucar.
Droga, ela sempre sabe como amolecer o meu coração. Seu
lado superprotetor me agrada muito mais do que deveria.
— Você pode ser a chefe da máfia, Romano, mas continuo
protegendo você também — falo, dando-lhe um selinho. — Agora,
sobre aquele baile… É uma comemoração do aniversário de
cinquenta anos de Derek. Pelo que eu vi, já estava sendo planejado
há um bom tempo e até agora não há nenhum sinal de que será
cancelado.
Alessia pincela o nariz, pensativa, fitando o e-mail na tela.
— Eles estarão nos esperando, Lyanna. Não posso enviar
meus homens a uma armadilha.
— Na verdade… — digo, sorrindo de lado. — Eu hackeei o
sistema que a HD usa nos computadores — sem que eles
soubessem, é claro. Há um fórum privado na darkweb onde os
criminosos compartilham informações em troca de dinheiro.
Ela levanta a sobrancelha, intrigada, e eu continuo:
— Depois que acessei o sistema, descobri que eles estão
conversando com diversos membros desse fórum e oferecendo
dinheiro para quem der informações sobre a sua localização.
— Oliver quer saber se estou em Vegas ou se vou atrás dele
— conclui e eu assinto.
— Sim. Os capangas dele estão pedindo informações novas
a cada uma ou duas horas. Algumas pessoas disseram que te viram
em Las Vegas, mas preferi te contar antes de rastrear o IP deles.
— Para caso você descubra que algum deles é um traidor da
Vendetta.
— Isso aí.
Ela respira fundo, bufa baixinho e joga a cabeça para trás.
Olhando-a de perto, vejo o quanto Alessia parece completamente
exausta. Vê-la dessa forma só alimenta ainda mais a minha sede de
vingança.
— Rastreie todos, linda — pede, voltando a me encarar. —
Não importa quem seja, quero os nomes. Mas não bloqueie o
acesso deles ao fórum e nem interfira em nada. Continue
monitorando, tudo bem?
Cerro as pálpebras, lançando-lhe um olhar tedioso.
— Você acha mesmo que não tenho um plano? Há um
motivo para eu estar te contando isso.
— Tem, é? — Ela sorri, traçando um caminho de beijos pela
minha mandíbula. — E qual é o seu plano, minha linda?
Solto uma lufada, fechando os olhos diante da sensação
gostosa dos seus lábios quentes. Remexo-me em seu colo, o que
faz Alessia apertar minha coxa em advertência. Rio baixo em seu
ouvido, aproveitando que estou com os braços em volta de seu
pescoço para esfregar meu corpo ao seu.
— Quando estivermos em LA, vou me passar por um dos
informantes… — começo, a voz ficando mais baixa à medida que
seus beijos descem até o meu pescoço. — Vou enviar algumas
fotos suas em Vegas.
— E se eles descobrirem que as fotos são fake? — pergunta
num sussurro, chupando minha pele. Meu coração acelera e a
respiração fica ofegante.
— Vou alterar os dados exif das imagens… — Ofego baixinho
quando seus dentes mordem de leve a região abaixo da mandíbula.
Involuntariamente, viro e ergo o pescoço para lhe dar mais acesso.
— A data, horário e… informações… das fotos…
A infeliz ri em deboche ao perceber que mal consigo finalizar
um raciocínio.
— Você é uma filha da puta — choramingo, esfregando meus
peitos nos dela.
— E você é uma bruxa — revida com o tom divertido,
deslizando a mão até minha virilha. — O que garante que eles vão
cair nisso?
Entrelaço os dedos em seu cabelo e puxo sua cabeça para
trás. O sorriso maldoso e as pupilas dilatadas, olhando-me como se
estivesse se segurando para não me devorar, me fazem contrair a
boceta.
Como é que ela consegue me deixar excitada com tão
pouco?
— Eu garanto, Romano. — Inclino-me e chupo seu lábio
inferior. — Ninguém faz o trabalho melhor do que eu.
Antes de me beijar com urgência, sussurra:
— Ninguém faz qualquer coisa melhor do que você,
principessa.
“Eu não consigo impedir essa energia terrível
É isso aí, é melhor ter medo de mim
Quem está no controle?”
Control | Halsey
 

 
Não sou o tipo de pessoa que sente medo com frequência. A
forma como fui educada e o mundo no qual cresci me ensinaram a
não temer quase nada.
Quase.
Dentre as pouquíssimas coisas capazes de fazer meus ossos
tremerem, o que vou fazer em poucos minutos está entre elas: vou
contar a verdade para Yuna e Jayden.
Bebo mais um longo gole de uísque, andando de um lado
para o outro na sala do meu apartamento. Solto uma lufada de ar
enquanto abro o único botão do terno e o tiro do corpo, jogando
longe. A camisa social parece me sufocar, o que me obriga a abrir
os primeiros botões dela também. Deixo o copo na mesa, tiro meu
celular do bolso e checo se há alguma mensagem deles.
Faz quinze minutos que pedi para os dois virem aqui, mas
parece que faz duas horas. O nervosismo está me corroendo por
dentro.
O que eles vão pensar? No fundo, sei que nenhum deles me
julgaria e tampouco me culpariam pelo que aconteceu. Ainda assim,
King e Yamazaki são duas das pessoas mais importantes em minha
vida e passaram um bom tempo me procurando após o meu sumiço.
Eles merecem saber da verdade e eu finalmente me sinto pronta
para lhes contar, mas, mesmo assim, é inevitável me perguntar
sobre o que eles vão pensar — mas não vão falar — sobre tudo.
A porta se abre e viro a cabeça no mesmo instante. Jayden é
o primeiro a entrar, brincando com uma faca entre os dedos
enquanto usa a mão livre para tirar o cigarro dos lábios. Yuna vem
logo em seguida, fechando a porta atrás de si e falando ao telefone.
— Não me importo, porra! — ela vocifera, jogando-se no sofá
sem me olhar. — É a última vez que vou te dizer isso, Jensen:
Quero o relatório completo das operações dos últimos doze meses.
Completo, não com dados estúpidos que eu já sei, me entendeu?
Não me ligue novamente até fazer o trabalho direito.
Sorrio de lado ao vê-la desligar, bufar e guardar o aparelho
no bolso. Troco um olhar divertido com Jay, que dá de ombros e se
joga ao lado da nossa amiga.
— E aí, chefe — diz ele, inclinando-se para derramar uísque
em um dos copos que peguei para eles. — Aconteceu alguma
coisa?
Sento-me na poltrona à frente, do outro lado da mesinha de
centro, e cruzo uma perna em cima da outra.
— Há algo de errado na equipe, Yuna? — indago, tentando
me distrair.
— Sempre há algo de errado quando o idiota do Jensen
aparece de ressaca e não faz a porra do trabalho dele — chia, o
cenho franzido em irritação. — Mas já estou resolvendo, não se
preocupe. Por que nos chamou aqui tão cedo?
De fato, não costumo convocá-los às oito da manhã. Não
dormi nem duas horas essa noite, depois de ter passado a
madrugada com Lyanna, mas não podia adiar a conversa ainda
mais.
— Precisamos conversar — sou direta.
A expressão de ambos se transforma. A de Yuna suaviza
enquanto a de Jayden fica apreensiva. Eles me conhecem e já
sabem, pela maneira como estou tensa, sobre o que é a conversa.
— Vou precisar de mais álcool pra isso — murmuro para mim
mesma, esticando o braço e apanhando a garrafa junto do copo.
Encho-o quase inteiro sob os olhares atentos dos meus amigos.
— Você sabe que… — ela começa a dizer, mas a interrompo.
— Eu sei. Apenas escutem, por favor.
Ambos anuem devagar. King me perscruta como se lesse
cada um dos meus pensamentos e soubesse de cada um dos meus
piores medos.
— Antes de tudo, quero agradecer vocês por terem tentado
me encontrar depois que sumi — começo, engolindo em seco. Meu
coração está acelerado e as mãos suando. — Sei que não foi fácil e
peço desculpas, mesmo sabendo que não foi culpa minha.
O medo que sinto não é apenas pela revelação em si, mas
pelos sentimentos que as lembranças me causam. Contar para
Lyanna já foi difícil o suficiente e a cada palavra dita era como se eu
estivesse revivendo todos aqueles dias, todas aquelas torturas,
todos aqueles machucados.
O silêncio recai sobre nós por alguns segundos. O clima está
tão pesado que não consigo sustentar o contato visual com os dois,
desviando-o até o copo em minha mão.
— Dante descobriu sobre meu relacionamento com Lyanna
alguns meses antes daquela noite. Quando me contou, também
relevou todo o plano que ele tinha com a Holy Devils para derrubar a
Timoria. Eles planejavam matar Antonietta e Lyanna no jantar de
casamento de Alessandro, sequestrá-lo e, no fim, dominar a máfia.
— Suspiro, bebo um gole do álcool e aperto o braço da poltrona. —
Vocês se lembram que Dante desapareceu por um mês depois
daquele dia?
Ergo os olhos e os vejo assentindo.
— Ele não viajou a trabalho, como disseram. Ele estava no
hospital, se recuperando da porrada que lhe dei ao descobrir. — As
sobrancelhas de Jayden arqueam em surpresa e Yuna franze a
testa. Ambos parecem chocados. — O filho da puta precisou fazer
uma cirurgia em um dos olhos e, mesmo assim, perdeu
praticamente toda a visão depois que enfiei uma caneta nele.
Soquei tanto aquela cara que ele também precisou passar por uma
cirurgia plástica. O médico era o melhor do ramo e um mês depois
sequer parecia que ele tinha feito cirurgia. Até hoje, acho que nem
dez pessoas sabem disso.
Mesmo com um nó na garganta, continuo a história. Não pulo
ou omito nenhum detalhe — nem mesmo os mais absurdos, os
quais preferi não falar para Lyanna —, embora doa como o inferno
me recordar de tudo isso. Em determinado momento dos quinze
minutos que levo para finalizar, meus olhos marejam e seguro as
lágrimas. Yuna, por outro lado, está com o rosto coberto delas.
Jayden está petrificado e sequer pisca enquanto me olha com o
semblante horrorizado.
Eles já conheceram o pior do submundo. Nós já conhecemos.
Só que nada se compara ao que estou contando agora.
Os dois sempre souberam que minha relação com Dante era
complicada. Porém, o conhecimento se limitava às discussões que
tínhamos pelos nossos gênios muito fortes. Nenhum deles
imaginava que nosso antigo don realmente me odiava a ponto de
pagar um aliado para me torturar e me manter enjaulada como um
animal por anos.
Não me arrependo de nunca ter revelado a verdade por trás
da nossa relação, pois tenho plena consciência de que Jayden
enfrentaria Dante se soubesse e meu melhor amigo seria morto na
primeira ameaça que fizesse. Ele enlouqueceria se descobrisse que
os hematomas que apareciam às vezes em meu corpo eram
resultado de “lições” que o chefe obrigava seus subordinados a me
darem quando eu ainda era uma criança. Depois que comecei a me
impor e mostrar que qualquer um que me machucasse se
arrependeria de ter nascido, minha reputação começou.
E era justamente o que Dante queria: que eu me tornasse
uma máquina mortífera. Havia muito ódio acumulado em mim, é
claro, mas aquele não era o principal motivo por eu ter me tornado
quem ele planejava. A razão era simples e clara: eu gostava — e
ainda gosto — de ser temida. Gosto de ter o poder, de ver o medo
nos olhos dos inimigos e o respeito nos dos soldados.
Quando ele percebeu que suas lições foram bem sucedidas,
me tornei a Executora da máfia. Sobretudo, percebi que me tornei
quem eu também queria ser. Por muito tempo, me senti culpada por
gostar da Alessia que Dante ajudou a criar, mas, apesar de tudo, eu
sempre soube que nós éramos iguais.
Ele queria que eu fosse letal, eu também. Ele queria que as
ameaças morressem, eu também. Ele colocava o poder e a máfia
acima de tudo, eu também.
Cinco anos atrás, Dante garantiu que houvesse uma coisa
sobre a qual não concordávamos: Ele queria morrer no trono e eu
queria roubá-lo dele.
Então, usei contra ele a máquina mortífera que ele mesmo
criou. Fiz Dante Romano se arrepender de ter nascido, de ter me
colocado no mundo e ter me mantido nele. Mostrei que suas lições
foram muito mais do que bem sucedidas e que eu tinha guardado
meu melhor aprendizado para o final; para ele.
Pouco antes de ceder à morte, sua voz baixa e fraca disse:
“Eu me arrependo de você ter nascido”. A minha respondeu, firme e
satisfeita: “E eu me arrependo de não ter matado você antes”.
— Como… — Yuna começa, puxando uma longa respiração
e limpando as bochechas úmidas. — Como ninguém… sabia?
— Alguns sabiam — revelo, virando o copo e acabando com
todo o líquido. — Mas eu já matei todos eles nos últimos anos.
Parece que uma lâmpada se ilumina na cabeça de Jayden.
— Os irmãos de Dante.
— É. Fui eu.
— Alessia… — meu amigo sussurra, olhando-me como
nunca olhou antes.
Não é pena. Jayden King nunca sentiria pena de mim.
Ao notar que é compaixão, como se ele quisesse voltar no
tempo e tomar o meu lugar naquela cela imunda em Los Angeles,
meus ombros caem. Foram os quinze minutos mais longos de toda
a minha vida, mas sinto que um piano saiu das minhas costas.
Eu precisava disso. Eles precisavam disso.
— Sou quem eu sou por minha causa — esclareço. — Dante
deu um empurrão, mas hoje sei que esse seria meu futuro de
qualquer forma, independentemente de qual caminho eu tomasse
para chegar até aqui. Não consigo me imaginar fazendo qualquer
outra coisa além de liderar a Vendetta. É para isso que eu nasci e
por isso que morrerei.
— Você não vai morrer — Yamazaki diz, convicta. Ela se
levanta, se senta na mesinha à minha frente e continua: — Alessia,
eu sinto muito. Porra, sinto muito mesmo. Não sei… Não sei o que
dizer. Eu queria ter percebido antes e, inferno, como nunca percebi
antes? Se eu e Jayden tivéssemos te ajudado…
— Não — a interrompo. — Não, Yuna. Vocês não fariam
nada porque enfrentar Dante significaria a morte dos dois e o
caralho que eu permitiria isso. Não havia nada que vocês pudessem
fazer, acredite em mim.
— Claro que havia! — retruca. Abre a boca para continuar e a
voz de King a corta:
— Eu já te admirava antes — murmura, se levantando.
Ocupa o espaço ao lado de Yuna, me dá um meio sorriso e diz, com
os olhos lacrimejados: — Mas agora… Porra, eu queria gritar para o
mundo inteiro saber que você é a pessoa mais forte que eu
conheço. Te dou a minha palavra de que vou morrer dizendo o
quanto tenho sorte de ter você como líder. É uma honra te servir e
ser o seu melhor amigo, Alessia. Sei que nada do que nós
dissermos vai mudar o que aconteceu, mas saiba que estou aqui
para qualquer coisa. Para matar e morrer por você, sem questionar
o porquê.
— Para qualquer coisa — Yamazaki enfatiza. — Estou aqui
para matar e morrer por você também, Alessia, mas principalmente
para ser um ombro amigo e te ouvir. Você não precisa passar por
nada sozinha e se ousar pensar o contrário, aí sim vamos partir para
a violência.
Solto um riso baixo, as lágrimas embaçando a visão. Estou
tentando ser forte e não chorar na frente dos dois, porque é isso que
um líder deve fazer: ser um exemplo de resistência e força. Mas
agora sou a melhor amiga deles, não a chefe. Então, deixo que a
primeira escape.
— Vocês sabem que eu gosto de uma violência… — brinco,
tentando amenizar o clima. Jayden revira os olhos e empurra meu
ombro de leve. — Obrigada, seus merdinhas. Obrigada por me
ouvirem e esperarem por mim. Eu não sabia se as coisas
continuariam iguais quando eu voltasse.
— As coisas continuarão iguais, não importa o que aconteça
— Yuna assegura. — Sempre seremos o Trio Siamês do submundo,
gata.
E eu não poderia ser mais grata por isso.
 

 
O galpão é pouco iluminado e fede a merda de cavalo. Nem
mesmo o cheiro do cigarro entre os meus lábios é capaz de diminuir
o incômodo de estar neste lugar imundo e fedorento.
Os soldados da Vendetta estão espalhados pelo local, além
dos cinco atrás de mim e dos três de cada lado da mesa. Jayden
está em pé atrás da minha cadeira, como um segurança particular.
Não é sua função e ele sequer deveria estar aqui, mas insistiu para
vir e ficar ao meu lado.
Não para me proteger, mas porque sabe que algumas armas
não me impediriam de cometer alguma loucura.
Uma movimentação perto do portão atrai minha atenção e
observo o ferro sendo deslizado para o lado. Quando Alessandro
Bellini entra em meu campo de visão, sinto o sangue borbulhar.
Olhá-lo é suficiente para me tirar do eixo e trazer à tona o meu pior
lado.
Jayden aperta meu ombro em um sinal de que está ali
comigo e não vai me deixar passar dos limites. Solto a fumaça e
mantenho o queixo erguido conforme o infeliz se aproxima,
inspecionando ao redor e pousando os olhos nos meus.
Ele sequer tenta esconder o desprezo que transborda pelo
semblante franzido, pelos ombros aprumados em uma manifestação
estúpida de superioridade e pelas íris azuis fulminantes.
— Romano — cumprimenta, sentando-se à minha frente.
Seus homens me encaram como se eu fosse o diabo e eles,
os santos. Embora eu seja, de fato, pior do que todos juntos, no final
somos todos criminosos. Estão em um número muito maior, quase o
triplo dos nossos, o que me tira um meio sorriso provocativo.
— Cinquenta homens? — desdenho, tragando o cigarro. —
Medo, Alessandro?
— Não temos medo de você e dos seus cachorros, Alessia —
rosna, balançando a mão no ar para o homem atrás de si. Um maço
de cigarro lhe é estendido, a ponta é acesa e o filtro levado aos
lábios.
A fraca iluminação do galpão não me impede de examinar
seu olhar rancoroso sobre mim. Carrega a mágoa e o ódio de
sempre, mas, diferente das outras vezes, há algo novo agora. Como
se Alessandro tivesse encontrado mais um motivo para me odiar.
Talvez ele seja ainda mais burro do que acredito, pois comete
o erro de enfiar a mão por dentro da jaqueta sem aviso prévio. Meus
soldados erguem as armas no mesmo segundo e os dele
respondem da mesma forma, o click das pistolas sendo destravadas
reverberando pelo local. Noto que não estou na mira de ninguém, o
que é um tanto quanto curioso.
Quando um baralho de cartas é colocado na mesa, tenho a
confirmação de que subestimei o nível de estupidez de meu inimigo.
— Quer jogar? — indago, dando duas batidinhas no cigarro
para derrubar as cinzas.
— É o seu ritual, não é? — debocha, embaralhando.
Ajeito-me na cadeira, repouso os cotovelos na superfície e
me inclino em sua direção. Não chega nem perto de ser uma
ameaça, mas é o suficiente para que os soldados deem um passo à
frente em alerta.
Alessandro não percebe o quanto é previsível e fácil de ler. A
maneira como seus subordinados respondem a qualquer movimento
meu demonstra o nível de perigo que apresento a eles. No
submundo, esse tipo de demonstração é quase como um suicídio.
Regra básica do mundo do crime: Nunca deixe o inimigo
saber que você o teme. Acima de tudo, nunca mostre que o vê
como uma ameaça.
Trazer cinquenta homens a um encontro em território neutro
vai contra essa regra, sem contar o comportamento nítido que eles
têm mostrado desde o primeiro momento que pisaram no galpão. É
patético e amador em todos os sentidos possíveis.
— E o que você quer apostar? — questiono, cerrando as
pálpebras.
Ele distribui as cartas, sacode o indicador no ar e um maço
de dinheiro é posto na mesa. Não consigo evitar de rir baixo e
balançar a cabeça em negação.
— Quanto tem aí? Mil dólares?
— Cinco.
É até ofensivo que ele aposte isso.
— Deixe-me te lembrar que cinco mil dólares é o valor que
ganho a cada três minutos, mesmo sentada nesta cadeira.
— Me diga… — Ele repete o movimento, inclinando-se para
se aproximar de mim. Seu hálito de álcool ricocheteia meu rosto ao
perguntar: — O que você quer apostar, Romano?
— Como ato de caridade, vou te deixar escolher.
Sua mandíbula endurece, indicando que consegui deixá-lo
ainda mais furioso.
— Ato de caridade? — quase cospe as palavras, fuzilando-
me com o olhar. — Ato de caridade foi o que eu fiz ao vir aqui, sua…
Ele parece reparar o erro que estava prestes a cometer ao
me insultar, pois a frase morre no meio. Sinto Jayden colocando as
duas mãos na cadeira e provavelmente lançando seu melhor olhar
mortífero a Alessandro, pois as íris azuis sobem por uma fração de
segundo até o meu melhor amigo.
— Na verdade, não. — Jogo-me para trás, os dedos de King
resvalando em meus ombros. Sequer faço questão de recolher as
cartas distribuídas, pois não vou perder o meu tempo jogando com
esse desgraçado. — Não há caridade nenhuma por trás desse
encontro.
— Estou curioso para saber o que há por trás, então.
O pequeno sorriso que decorava o canto da minha boca
desaparece. Fecho o semblante aos poucos, solto a fumaça do
cigarro e respiro fundo. A tensão que prevalece sobre todos nós é
como uma guerra fria; a qualquer momento, algum dos lados vai dar
fim à neutralidade.
— Tempo é dinheiro, então vou ser clara. Eu sei de tudo.
Todas as merdas que você e sua máfia fizeram e estão fazendo. Os
acordos, as negociações secretas, os buracos nos quais você se
enfiou… Tudo, Bellini. Se pensa que existe algo que não sei, está
enganado.
Ele não reage de imediato. Franze levemente as
sobrancelhas, encarando-me em silêncio enquanto estuda meu
rosto. Parece refletir e ponderar sobre o que acabou de ouvir,
decidindo se acredita ou não em mim.
Chamei-o aqui para dar um último aviso, por respeito à
história que Lyanna tem com a Timoria. É decisão dele cooperar ou
se tornar mais um obstáculo com o qual lidarei da forma mais
simples e rápida possível. Não me importo com sua escolha e nem
planejava ter essa conversa, mas, além da minha gatinha selvagem,
também posso conseguir alguma informação a respeito de Oliver.
— Está brincando comigo, Alessia? — indaga, a entonação
baixa e intimidadora. — Me chamou aqui para me ameaçar com
palavras vazias?
Levanto a mão e Jayden me estende o envelope. Jogo-o com
força na mesa e assisto-o escorregar até bater contra o peito de
Alessandro. Hesitante, ele apanha as fotos de dentro. Ao vê-las, sua
respiração engata e o pomo-de-adão engole em seco.
— Não perco o meu tempo com palavras vazias.
Ele examina cada uma das imagens tiradas de câmeras de
segurança espalhadas por Las Vegas. Em todas elas, Alessandro
está ao lado de Oliver ou dos capangas da Holy Devils.
— Há muitas outras, mas acredito que você já tenha
entendido o recado.
Recebo seu escrutínio novamente e assim como eu
esperava, o infeliz não parece tão chocado ou surpreso com a
constatação de que tenho conhecimento sobre sua relação com
Duncan.
Ele arremessa as fotos na mesa, as quais se espalham pela
superfície e caem no chão. Levanto as sobrancelhas e o fito em
puro tédio.
— Acha que isso é o suficiente para me assustar? — indaga.
— Acha que eu não sabia, desde o momento em que voltou à
cidade, que você descobriria?
— Acho que você não sabia que eu descobriria tanto.
Ele paralisa por um segundo, absorvendo as palavras e a
insinuação implícita.
— Também descobri algumas coisas — sussurra, cruzando
os braços. — Coisas que acredito não serem de conhecimento
público da sua máfia, não é?
Estamos caminhando em uma linha tênue e muito, muito
perigosa. Ambos sabemos de segredos um do outro, mas, para o
azar dele, venho planejando tudo isso há muito mais tempo.
Abro um meio sorriso, debruço-me na mesa e inclino a
cabeça para o lado. Com uma falsa curiosidade, pergunto:
— Se importa em dizer quais são?
— Ah, Romano, acredite em mim. Você não quer fazer isso
aqui, em frente aos seus soldados.
Somando um mais um, deduzo que Oliver contou a ele sobre
os três anos que passei nas mãos da gangue. Não acho que a
insinuação se estende ao assassinato de Dante, já que, se
realmente soubesse que fui eu quem o matou, Alessandro teria
espalhado para a Vendetta no mesmo instante. Seria um jeito rápido
e eficaz de garantir minha queda.
— Tem razão, não seria justo — concordo, dando de ombros.
— O que acha de conversamos na King Palm Avenue?
Seu rosto fica pálido e o corpo imóvel. Ele não conseguiria
esconder o pavor nem se quisesse, uma vez que o silêncio resultou
em todos os olhares do galpão virados para si. E resultou, também,
em um sorriso ainda maior meu.
— Sua vagabunda  — chia, apertando as mãos em punho. —
Você é uma vagabunda mentirosa, Alessia!
— Acho melhor tomar cuidado com o que sai da sua boca.
Não vou tolerar uma segunda vez.
A vermelhidão toma conta da sua face em questão de
segundos. Está tão irritado quanto eu previa.
— Sabe qual foi o favor que te fiz, Romano? — Quase posso
enxergar o fogo saindo pelas suas narinas. Sua voz transborda
irritação e medo. — O favor de não atacar sua máfia depois que
vocês incendiaram a porra da minha boate!
Solto um riso baixo e divertido.
— Acha que a Vendetta destruiu a Dark Notes?
Ele faz o mesmo, mas não há um pingo de diversão.
— Dadas as circunstâncias, é bastante óbvio! — exclama,
batendo o punho na mesa.
Se ele soubesse…
— Alessandro, deixe-me ser ainda mais clara com você.
Volto a me inclinar, o semblante impassível e até tedioso.
Posso ter inúmeros defeitos, mas se há algo no qual sou boa é em
saber como enfurecer um inimigo. O que enfurece Bellini é a
indiferença; é saber que não importa o que ele faça ou fale, não vai
me atingir.
Abaixo o tom de voz, certificando-me de que ninguém além
dele — e talvez Jayden — escutem:
— Seu joguinho com Duncan acaba agora. Seja lá o que ele
tenha dito e prometido, garanto que não passa de mentiras e
manipulações. Eu deveria atirar na porra da sua testa por ter
permitido que aqueles vermes pisassem em Las Vegas, mas vou
deixar que você conviva com as consequências de ser um chefe
influenciável e frouxo. Se eu souber que Oliver e aquela gangue
imunda pisaram na minha cidade mais uma vez, vou matar cada um
deles e depois irei atrás de você e dos seus homens. — Vejo-o
tremer de raiva, os lábios contorcidos em desprezo e a pele
vermelha como um pimentão. No fundo, estou torcendo para que ele
tente me agredir e me dê uma desculpa para matá-lo de uma vez
por todas. — Se houver um soldado da Holy Devils em Vegas, você
vai se arrepender de ter nascido, Alessandro. Estou disposta a
deixar sua máfia em paz com a condição de que seu acordo com
Duncan, seja lá qual for, acabe agora.
Ele gargalha em completo sarcasmo.
— Você está sentada num pedestal ridículo, Alessia. Eu
sempre soube que o poder subiria à sua cabeça, mas preciso dizer
que é pior do que eu imaginava. Quem você pensa que é para me
dar ordens? Sou o chefe da máfia e não um dos seus cachorrinhos
que lambem o chão por onde você passa. Pare de ser tão iludida.
Não me dê ordens nunca mais ou vai se arrepender.
Balanço a cabeça para cima e para baixo e me levanto.
Começo a me afastar, mas estagno e o olho por cima do ombro:
— Quando a cidade estiver banhada no sangue dos seus
soldados, lembre-se de que eu tentei te avisar. A decisão de ir à
guerra foi sua, Alessandro, e nós dois sabemos que você vai se
arrepender dela.
 

“Um minuto eu te conheço, e no outro não


Eu te conheço, e no outro não
Olá, quem é você?”
Who Are You | SVRCINA
 

 
Solto uma longa respiração antes de bater três vezes na
porta. Os dois seguranças, um parado de cada lado, permanecem
imóveis. Quando a voz soa do lado de dentro permitindo minha
entrada, um deles segura a maçaneta e abre para mim.
Todas as horas que passei me preparando para esse
momento vão por água abaixo ao vê-lo. Estou furiosa por milhares
de razões diferentes e uma simples conversa não será capaz de
amenizar o furacão existente em meu peito.
— Lyanna, não esperava vê-la hoje — Alessandro diz,
reunindo os papéis espalhados em sua mesa.
Sua voz não é nem um pouco afetuosa. Pelo contrário, ele
parece descontente com minha presença em seu escritório. Engulo
em seco e sento-me à sua frente.
— Está tudo bem? — pergunta, ainda sem me olhar.
Ele está tão agitado que me incomoda. Não para de empilhar
e guardar inúmeras folhas, pastas e envelopes. Seu cabelo está
bagunçado, as linhas de expressão bem marcadas em seu cenho
franzido e a camisa aberta até a metade, como se estivesse
sufocado com os botões fechados.
Estou sem um pingo de paciência para joguinhos e
enrolação. Por isso, sou direta ao dizer:
— Eu sei sobre a Dark Notes.
Atraio sua atenção no mesmo instante. Os movimentos
frenéticos param, os olhos erguem até os meus e a respiração
parece falhar. Apesar de tudo, temo que ele perca a cabeça e sua
saúde se comprometa com todo o estresse.
— O quê? — sussurra, incrédulo.
— Eu sei que a boate passou para o domínio da gangue de
Los Angeles. Por que permitiu isso? O que está acontecendo?
Embora eu já saiba, decido lhe dar uma chance para falar a
verdade. No fundo, espero que ele seja sincero e me conte tudo,
mesmo não tendo muitas esperanças de que aconteça.
— Lyanna, como você sabe disso? — há um quê de ameaça
em sua voz.
— Você sempre se gabou por ter uma feiticeira como filha.
Não ganhei esse apelido à toa.
Ele fica em silêncio por alguns segundos, encarando-me sem
piscar.
— O que mais você sabe?
Não gosto da forma como seu semblante se fecha e o olhar
me fuzila. É a primeira vez que ele me fita desse jeito e,
definitivamente, a última. Continuo respeitando-o por ser meu pai e
sobretudo meu chefe, mas as descobertas recentes me fizeram
perder grande parte da admiração que tinha por Alessandro.
— Me responda, por que permitiu que eles dominassem a
nossa maior boate? Aquele lugar era quase sagrado para a máfia,
pai. As pessoas sabem disso? O Conselho sabe? — disparo as
perguntas na tentativa de fazê-lo desistir do questionamento
anterior.
— Lyanna, não se meta nisso — diz entredentes, cerrando as
pálpebras. — Não se meta em nada, na verdade. Não sei como e
por que investigou sobre a boate, mas pare antes que eu não possa
mais te defender.
— Não precisa me defender — asseguro. — Sei me defender
sozinha, seja lá o motivo pelo qual o senhor acha necessário que eu
me defenda. O que está acontecendo?
— Não se meta — repete, quase soletrando as palavras. Já o
vi em diversas situações e por isso sei que ele se sente encurralado
agora. — Não posso lidar com minha própria filha se colocando em
perigo, Lyanna. Não se meta nos negócios!
— É você quem coloca todos em perigo — solto sem pensar,
segurando-me para não elevar o tom de voz.
Não me arrependo, contudo.
— O quê? — questiona um pouco mais alto, erguendo as
sobrancelhas. — Quando foi que te coloquei em perigo? Me fale!
— Não só eu — respondo, fechando as mãos em punho em
cima do colo.
Estou medindo as palavras na tentativa de não deixar algo
escapar. Porém, é difícil controlar a vontade de gritar o quanto estou
furiosa por ele ter sido o culpado pela morte de minha mãe; o
quanto estou decepcionada por ter mentido e omitido a verdade,
deixando a mim e a todos os outros pensarem que a Vendetta nos
atacou sem motivo algum naquele jantar.
— O quê? O que está dizendo, Lyanna?
— Por que a Vendetta matou a minha mãe? — questiono. —
Por que eles não me mataram também? Por que não mataram
você? Qual foi o motivo daquele ataque?
A menção do assunto o pega de surpresa. Nos primeiros
segundos, vejo um vislumbre de confusão em seu olhar, o qual é
logo substituído por raiva. Pura raiva, nunca antes direcionada a
mim.
— Lyanna, me responda uma coisa — fala quase em um
sussurro. Engulo em seco, a respiração ficando cada segundo mais
ofegante. — Você não está se envolvendo com a Vendetta, está?
Com a Vendetta, não. Com a chefe dela, sim.
— Não mude de assunto — peço. — Não ignore minhas
perguntas sobre o assassinato da minha mãe!
— Você está metida com aquela máfia, Lyanna! — acusa em
um grito, levantando-se. A cadeira escorrega e bate com força
contra a parede ao mesmo tempo que seus punhos fechados
colidem contra a mesa e derrubam boa parte dos objetos que
estavam na superfície. — Que porra é essa? Você está louca? Me
diga que estou enganando ou juro que…
— Jura o quê? — devolvo a entonação alta e me levanto. —
Eu sequer respondi à sua pergunta! Se está tão na defensiva, é
porque algo está errado. Vai me dizer de uma vez por todas o que
está acontecendo ou vou precisar descobrir sozinha?
— Você não vai descobrir nada! — berra, empurrando os
papéis para o lado. Todos caem e se esparramam pelo chão.
Prendo a respiração diante da sua fúria, os músculos enrijecidos e o
corpo em alerta. Nunca pensei que ficaria assim por causa dele. —
Você vai se colocar no seu lugar e ficar na porra da sua casa,
Lyanna! Não se atreva a me desobedecer.
— Quantos anos acha que eu tenho? Quem você pensa que
eu sou? Essa máfia não seria metade do que é hoje sem mim! —
vocifero, desistindo da ideia de manter a calma. — Noventa por
cento das missões foram um sucesso por minha causa! Porque eu
consigo informações que ninguém mais consegue! Acha que vou
tolerar esse tipo de atitude depois de ter feito tudo para essa
organização?
— Sou seu chefe, Lyanna. Pense bem no que vai falar.
— Tem razão, você é meu chefe. Porque não vem sendo meu
pai há um bom tempo.
A frase parece ter um impacto enorme nele. Ainda assim, não
o deixa menos furioso.
— Se eu não estivesse sendo seu pai, não me preocuparia
tanto com a possibilidade de você estar envolvida com Alessia
Romano! — se defende, apontando o indicador para o meu peito.
Por uma fração de segundo, sinto vontade de quebrar seu
dedo.
Não vou conseguir nenhuma resposta, tampouco a verdade.
Em poucos minutos, percebi que nossa relação nunca foi tão
significativa para ele como foi para mim. Fui ingênua em pensar que
apesar dos desrespeitos com minha sexualidade, Alessandro tinha
consideração e respeito por mim.
Ele nem é capaz de ser sincero comigo sobre a morte da
minha mãe, quem dirá sobre as merdas nas quais ele enfiou a
nossa máfia. Nossa relação foi por água abaixo em questão de
minutos. Sinto-me traída, como se tudo que construímos ao longo
dos anos não significasse nada.
— Acho que o senhor tem coisas muito piores para se
preocupar no momento — murmuro. — Como o futuro da Timoria,
por exemplo.
Viro-me e caminho até a porta conforme ele grita meu nome
e ordena que eu fique. Desrespeitando-o como ele acabou de fazer
comigo, giro a maçaneta e saio.
Talvez Alessia sempre esteve certa. Talvez Alessandro Bellini
seja realmente um filho da puta.
 

 
Ouço a porta sendo aberta e passos rápidos vindo até a
cozinha. Ergo a cabeça e vejo Alessia correndo até mim com os
olhos arregalados e o semblante preocupado. Ela se ajoelha à
minha frente, segura meu rosto com as duas mãos e estuda cada
centímetro do meu corpo.
— Você está bem? O que aconteceu, meu amor? —
pergunta, exasperada.
— Você estava certa — digo, abrindo um sorriso triste de
lado. — Alessandro é um filho da puta.
Ela levanta as sobrancelhas e recua, como se não esperasse
por aquela resposta. Acho que de todas as coisas que se passaram
pela sua cabeça após a mensagem que enviei pedindo para me
encontrar na nossa casa, essa não estava entre elas.
— O que aquele desgraçado fez?
Arrasta uma cadeira para perto da minha e se senta,
puxando-me para o seu colo. Abraço seu pescoço e rio baixo.
— Eu já estava sentada, sabe?
— Você fica bem melhor sentada no meu colo, principessa.
— O apelido causa um burburinho em meu estômago, embora o
ouça há anos. — O que Alessandro fez?
— Falei para ele que eu sei sobre a Dark Notes. Não falei
nada sobre nós ou sobre tudo que você me disse, não se preocupe.
Eu só precisava saber se ele seria sincero e me contaria a verdade,
mas…
— Mas ele não fez isso — conclui e eu assinto. — Ele te
machucou, Lyanna? Se aquele arrombado fez qualquer coisa com
você, eu vou esquartejá-lo, porra.
Não duvido, penso.
— Ele me machucou sim, com aquela atitude tão… Nem sei
explicar. Ele nunca falou daquele jeito comigo, Alessia. Nunca o vi
tão irritado antes também. Por um momento, achei que fosse me
bater.
Ela cerra a mandíbula, acaricia minha bochecha e serpenteia
minha cintura com o braço.
— Ele não merece você, Lyanna — sussurra, perscrutando
meu rosto. Franze o cenho, olhando-me de um jeito diferente. —
Eles não merecem.
— Quem?
— Aquela máfia. Nenhum deles te merece, linda.
— E quem merece, então? Você? — brinco, tentando
amenizar o clima.
Por alguma razão, sinto que existe algo sobre o qual Alessia
não está me contando. Há mais do que apenas raiva de Alessandro
em seu olhar.
— Porra, sim — garante, apertando-me contra si. — Eu
mereço você nessa e em todas as outras vidas, principessa.
— Somos duas criminosas e já matamos mais pessoas do
que consigo me lembrar, inclusive inocentes. Acha que merecemos
uma a outra, mesmo? — Arqueio a sobrancelha direita, sorrindo de
lado.
— É exatamente por isso que merecemos uma a outra.
Quem melhor para amar uma criminosa do que outra ainda pior?
— Apenas para deixar claro, você é a “pior” nessa relação.
Ela revira os olhos.
— É óbvio que sou. Não lutei tanto para construir a pior
reputação possível à toa.
Solto um riso, balançando a cabeça em negação. Mudamos
de assunto bruscamente, mas não reclamo nem um pouco. Alessia
conseguiu acalmar a tempestade em meu peito sem nenhum
esforço.
Ela segura minha mão, abaixa o olhar e desliza o polegar
pelo anel que me deu. Um sorriso genuíno cresce no canto da sua
boca e fico hipnotizada quando ela levanta o queixo e me encara
como se eu fosse o seu mundo.
— Eu sinto muito — sussurra. — Por tudo que está
acontecendo e por você não ter o pai que merece. Independente de
qualquer coisa, sempre estarei aqui, Lyanna. Em qualquer hipótese
e sob qualquer circunstância. Não há nada e nem ninguém capaz de
me afastar de você, eu prometo. Estamos juntas nisso, nos
problemas e nas alegrias. Na vida.
— Estamos juntas na vida — repito, inclinando-me para selar
nossos lábios em um selinho antes de sussurrar: — Você não
existe, Alessia Romano.
Ela sorri e entrelaça os dedos nos meus.
— Eu existo por você, Lyanna Bellini.
“Você sabia que esse dia chegaria
Você não é o único
E então começa”
And so It Begins | Klergy
 

 
Apanho as torradas, coloco-as na mesa e despejo mel nos
waffles. Jogo os morangos cortados e os mirtilos por cima antes de
lavar a mão, encostar o quadril na pia e sacar o celular do bolso
para fazer uma ligação.
— Estava mesmo me perguntando se levaria mais tempo
para você me ligar — a voz do outro lado soa.
Ignoro a nítida provocação relacionada ao baile da Vendetta
no qual ela descobriu que minha acompanhante secreta era Lyanna.
— Está ocupada? Preciso discutir um assunto com você.
— Uau, nem uma repreensão. A coisa é séria mesmo. Pode
falar, chefe.
Respiro fundo e começo a explicar. Faço um breve resumo
sobre a situação com a Holy Devils e me limito à explicação de que
Duncan foi o responsável pelo meu sumiço durante aqueles cinco
anos, sem mencionar o verdadeiro culpado: Dante. Não preciso que
a fofoca se espalhe ou, pior, que meus soldados pensem que estou
sujando o nome do nosso falecido don.
— Meu Deus, espera — ela diz quando finalizo. — Acho que
estou até zonza. Quando pretende contar tudo isso à máfia? O
Conselho já sabe, pelo menos? Como foi que essas merdas
aconteceram e ninguém soube?
Agradeça a Dante por isso, penso.
— Quero manter entre nós por enquanto, até a ordem de
atacá-los de vez. Te contei porque preciso da sua ajuda numa
missão nos próximos dias, mas preciso que seja discreta e sigilosa.
— Por que eu? Não sou a figura de maior autoridade em
Ohio, Alessia. Não sei até que ponto posso te ajudar.
— Você não é, mas eu sou e estou te dando autoridade
suficiente para qualquer coisa que precisar. Só não mencione o
motivo.
Ouço-a suspirar do outro lado. Tenho certeza de que todas as
informações pegaram-na de surpresa, assim como eu esperava. Eu
não queria envolvê-la antes da hora, porém Jayden e Yuna já têm
suas tarefas designadas e não há ninguém melhor — ou em quem
eu confie mais — para fazer o resto do que Chloe.
Já está na hora de começar a agir, afinal de contas. É
inevitável que uma hora ou outra a Vendetta inteira esteja envolvida.
— Do que você precisa?
Explico a situação e o plano para ela, com calma e
detalhadamente. Estou virada de frente para a janela observando a
paisagem quando um barulho atrai minha atenção e me faz virar a
cabeça para trás.
Lyanna aparece na cozinha, vestida com uma blusa minha e
as pernas à mostra. Abro um sorriso instantâneo enquanto ela
caminha até mim, me abraça por trás e repousa a cabeça em minha
coluna. Parece sonolenta, mas conheço-a e sei que também está
abalada pelo que aconteceu ontem.
— Preciso desligar — digo a Chloe. — Discutimos melhor
depois.
Desligo, guardo o aparelho e me viro. Enlaço sua cintura,
beijo sua testa e recebo um pequeno, quase triste, sorriso de lado.
— Bom dia, principessa — sussurro.
— Bom dia, amor.
Meu coração falha uma batida como se eu fosse uma
adolescente. Não posso negar que estive ansiando pelo momento
em que Lyanna voltaria a me chamar por apelidos carinhosos, no
entanto, não queria pressioná-la.
Acordar com a minha mulher na nossa casa e ouvi-la me
chamar de “amor” parece a porra de um sonho do qual não quero
nunca acordar.
— Como está se sentindo? — pergunto, colocando seu
cabelo atrás da orelha e acariciando sua bochecha.
— Não muito bem, mas já estive pior. Nada que um bom
uísque não resolva — brinca, me fazendo cerrar as pálpebras.
— É sério, Lyanna. Não fuja do assunto.
Ela suspira e seus ombros caem. Conversamos melhor
ontem à noite, antes de dormir, e ela me contou os detalhes da briga
que teve com aquele filho da puta. Saber que ele repudia tanto a
nossa aproximação por algo que é culpa dele, não minha ou da
Vendetta, me enfurece. Alessandro é um dos homens mais
manipuladores e mentirosos do submundo e não suporto mais ver
Lyanna perto dele, especialmente porque ela não sabe nem da
metade.
Quero contar de uma vez por todas. Me sinto como uma
caçamba de lixo escondendo isso dela e, inferno, o universo sabe o
quanto preciso me segurar todos os dias para não tacar o “foda-se”
no plano e revelar a verdade.
Espero que esse segredo não mude as coisas entre nós. Se
voltarmos à estaca zero por culpa daquele homem, juro pelo meu
sangue que vou torturá-lo como nunca torturei alguém antes. Não
vou permitir que nada e nem ninguém se torne um obstáculo entre
Lyanna e eu novamente.
— No fundo, eu já sabia que isso aconteceria — confessa,
dando de ombros. — Não sou ingênua de pensar que a conversa
seria fácil, mas foi ainda pior do que eu imaginei. Mais alguns
minutos naquela sala e eu faria alguma loucura que me renderia a
expulsão da Timoria ou coisa bem pior. Ser desrespeitada daquele
jeito pelo meu próprio pai… — Ela balança a cabeça em negação,
incrédula. — O jeito que ele falou e olhou para mim doeu mais do
que levar um tiro no peito, e você sabe que essa merda dói. Eu só…
preciso de algumas horas para processar, nada mais.
— Você é forte pra caralho, minha linda. Como eu disse
ontem, ele não te merece como soldada e muito menos como filha.
Nossa rivalidade não deveria ser uma desculpa para Alessandro te
tratar daquela maneira.
— Você tem razão. Não vou passar a mão na cabeça dele
por ser meu pai e meu don.
— Minha gatinha selvagem — falo, sorrindo e me inclinando
para lhe dar um selinho.
As palavras ficam entaladas na minha garganta. Nos
encaramos em silêncio por alguns segundos, até que solto uma
lufada de ar e sussurro:
— Se você estivesse ao meu lado, não sofreria com nada
disso.
Lyanna franze as sobrancelhas, espreme as pálpebras e me
fita em questionamento. Umedeço os lábios com a língua e
continuo, um pouco hesitante:
— Não sofreria com mentiras, segredos e principalmente
desrespeito. Você estaria no topo, principessa, como merece. É
onde você pertence.
Ela parece entender aos poucos. O semblante muda e noto a
surpresa em seu olhar, acompanhado da boca entreaberta sem
saber o que dizer. Apesar do silêncio excruciante que recai sobre o
cômodo, não me arrependo da insinuação.
— Você está querendo dizer que… — começa, mas a frase
morre no meio. Vejo-a engolir em seco e respirar fundo. — Acho que
não entendi…
Não a culpo por estar tão chocada. Afinal, acabei de deixar
implícito que a quero ao meu lado, sendo minha parceira, na
Vendetta. É a primeira vez que toco nesse assunto desde que nos
conhecemos, pois nunca pareceu viável antes. Já pensei sobre
inúmeras vezes, porém sempre foi um sonho inalcançável e utópico.
Abro a boca para respondê-la, contudo, sou interrompida pelo
toque de um celular. Lyanna se afasta de abrupto, como se
tivéssemos sido pegas no flagra, e apanha o telefone que deixou em
cima da mesa. Vejo-a atender uma ligação e suspiro baixinho, me
perguntando se foi um erro ter dito aquilo.
De qualquer forma, preciso que ela se acostume com a ideia,
porque não há nada com que eu sonhe mais do que tê-la como
minha esposa no topo da minha máfia.
 

 
Durante todo o trajeto, admiro a vista noturna de Las Vegas
através da janela. É impossível tirar o sorriso do rosto ao contemplar
os enormes prédios iluminados com neon, os turistas fascinados
pela LV Strip, os músicos espalhados pela avenida e os hotéis
luxuosos. Não há definição melhor para Vegas do que vida; para
onde você olha e vai, se sente viva.
Minha conexão com esta cidade é inexplicável. Sinto que é
aqui onde pertenço, onde estive nas vidas passadas e onde estarei
nas próximas. É até um pouco assustadora a forma como um
simples lugar é capaz de me trazer tantos sentimentos profundos,
como se de fato existisse uma relação sobrenatural entre nós.
Estou sendo levada até o meu avião para decolar para Los
Angeles, onde Jayden e Yuna me encontrarão amanhã. Alguns
seguranças estão me acompanhando, um carro à frente do meu e
outro atrás. Demorei longas horas para convencer Lyanna a não me
acompanhar na viagem e, por algum milagre, ela aceitou. Expliquei
todo o plano e garanti que não é a primeira e nem a última vez que
eu e meus amigos nos infiltramos no território inimigo. Embora ela já
saiba disso, precisei de argumentos para fazê-la acreditar que nada
vai dar errado.
Prometi que voltaria para os seus braços e pretendo cumprir
com a minha palavra.
Sou tirada do devaneio por movimentos estranhos na parte
da frente do carro. O vidro que nos separa é à prova de som, mas
vejo uma agitação diferente vindo do motorista e também do
segurança. Quando este me olha por cima do ombro, hesitante,
abro a janela.
— O quê? — pergunto.
— Chefe, aconteceu uma coisa — diz, engolindo em seco.
Semicerro as pálpebras e ele abre a boca para continuar,
mas meu telefone o impede. De repente, o aparelho começa a vibrar
incessantemente como se tivesse acabado de recuperar o sinal e as
notificações estivessem chegando como uma bola de neve. Tiro-o
do bolso do paletó e vejo inúmeras mensagens e ligações perdidas
na tela, a maioria de Jayden. Quando estou prestes a abri-las, seu
nome pisca em uma nova chamada.
— King, o que…
— Alessia, estou no hospital. Venha aqui agora. Porra, venha
agora! — vocifera.
— O quê?! Por que está no hospital?
— A Sienna sofreu um acidente.
Meu coração para de bater. O corpo congela e sinto que,
genuinamente, parei de respirar por alguns segundos. Meu amigo
volta a falar diante do meu silêncio, mas sua voz soa longe; não
escuto o que ele berra, tampouco o que diz meu segurança no
banco da frente. Começo a tremer e o celular quase cai, mas
consigo me recompor a tempo de voltar à realidade.
— Chefe! — o soldado clama, desesperado.
— Qual hospital? — pergunto em um sussurro no telefone,
torcendo para que Jay ainda esteja na chamada.
— No Summerlin. Venha logo, por favor — implora com a voz
embargada antes de desligar.
— Mude a rota… Para o Summerlin Hospital.
O segurança fala no rádio, provavelmente comunicando aos
outros carros sobre a mudança de rota enquanto tento me acalmar.
Meu coração está prestes a explodir, as mãos tremendo e os
pulmões sem ar. Sinto que vou colapsar.
Não pode ser verdade. King deve estar brincando com a
minha cara ou mentindo apenas para me impedir de ir para Los
Angeles.
Tem que ser isso. Tem que ser qualquer coisa diferente.
— Chefe, estamos a dez minutos — o motorista informa.
Eu assinto e disco o número de Yuna. É nítido que Jayden
está tão transtornado quanto eu e não vai conseguir me explicar
nada.
— Você está com a minha irmã? — questiono assim que ela
atende.
— Estamos no hospital, sim. Jayden está surtando pra
caralho, Alessia. Onde você ‘tá? Já embarcou?
— Como ela está? O que aconteceu? É grave?
— Um carro se chocou contra o dela. Os médicos ainda não
disseram se é grave e Jayden não consegue montar uma frase
coerente. Ale, fique calma, por favor.
— Ficar calma? — esbravejo, perdendo o controle. — Minha
irmã está na porra do hospital e você me pede para ficar calma,
Yuna?
— Tudo bem, me desculpe! Apenas respire e venha logo.
Nós vamos resolver isso, não se preocupe.
Desligo, bufo alto e olho ao redor para ver se estamos perto.
Os minutos parecem horas.
— Acelera a merda do carro! — grito, arrancando o paletó do
corpo e jogando-o no banco.
Meu corpo está queimando. Sinto o suor escorrendo pelo
pescoço e o peito dolorido por conta dos batimentos cardíacos
acelerados. Passo a mão no rosto, grunho alto e soco o banco do
passageiro. Não entendo como isso pode ter acontecido de uma
hora para a outra. Conversei com Sienna mais cedo e agora ela
está no hospital? Que brincadeira estúpida é essa?
Não posso perdê-la. Não posso de jeito nenhum.
A ideia me dá ânsia. Fecho os olhos por alguns segundos,
puxando o máximo de ar possível, e coloco a mão no peito. Dói
como o inferno.
Não posso perdê-la. Não posso perdê-la.
Sienna nunca se envolveu nas merdas da máfia. Nunca
permiti que ela tivesse informações que pudessem transformá-la em
um alvo dos inimigos. Todos a amam e a protegem desde sempre,
justamente porque é impossível não se encantar pela minha irmã.
Grunho mais uma vez em pura frustração. Nada vai me
acalmar. Preciso vê-la viva e segura.
— Mandem fechar o andar do quarto dela — ordeno ao
segurança. — Não quero ninguém chegando perto. Ligue para o Dr.
Grey e diga que precisamos dele com urgência no Summerlin. Vá
buscá-lo de helicóptero se necessário, mas o quero em dez minutos
naquela porra de hospital, me entendeu?
Ele assente e pega o celular.
Depois do que parece ser duas horas, entre mensagens com
Yuna e Chloe, enfim chegamos. Salto do carro e voo até a entrada,
ouvindo os passos apressados dos soldados atrás de mim. Nosso
procedimento não é assim; não entramos pela entrada principal,
tampouco chamamos atenção em lugares públicos. No entanto, não
tenho tempo para pensar em nada disso enquanto passo pelos civis
em direção à recepcionista.
— Sienna Romano, onde ela está? — indago, exasperada.
A mulher parece horrorizada ao me olhar. Talvez ela saiba
quem eu sou, porque não faz nenhuma pergunta antes de me
fornecer a informação segundos depois. Chego ao elevador e subo
até o quinto andar, onde sou recebida por diversos homens
espalhados e posicionados ao longo do corredor.
Avisto Jayden e Yuna no final e corro até os dois.
— Onde ela está? — indago. — Qual é o quarto?
— Ela está na cirurgia — King responde.
O chão parece desabar sob os meus pés. Se está na cirurgia,
é mais grave do que eu imaginava. Não foi só um arranhão ou
alguns machucados.
Não posso perdê-la.
Os olhos de Jayden estão marejados e arregalados em
pânico. Se havia alguma dúvida de que os dois estão juntos, ela foi
aniquilada nesse exato momento. O medo que vejo em seu olhar é
o mesmo que existe no meu. E não é o mesmo que estampa as íris
de Yuna.
É um amor diferente.
Se a situação fosse outra, eu com certeza desceria a porrada
nele por se envolver com minha irmã.
— Ela fraturou a perna — explica, entrelaçando os dedos nos
fios de cabelo. — Eles não me deixaram vê-la quando cheguei, é
um absurdo! Estou quase estourando os miolos da primeira pessoa
que aparecer na minha frente, porra! Será que eles sabem quem
nós somos? Não é possível!
— Jayden… — Yuna começa e ele nega com a cabeça.
— Não! Não me fale para ficar calmo! — exclama, se
afastando de nós.
Conto até dez mentalmente. Preciso colocar a cabeça no
lugar para resolver essa situação e descobrir o que aconteceu. Ter
um de nós surtando já é o suficiente e pelo bem de Sienna, tenho
que deixar a emoção de lado e agir de acordo com a razão. Tenho
que agir como a líder que eu sou.
Por isso, após respirar fundo, me viro para Yamazaki e falo:
— Procure alguém que esteja no comando deste lugar. Quero
notícias de Sienna agora. King, volte aqui, inferno! — vocifero e, a
contragosto, ele se aproxima novamente. Mal consegue me olhar
direito, inspecionando cada canto do corredor à espera de algum
enfermeiro ou médico. — Ela estava sozinha no carro?
— Sim. Estávamos nos falando pelo telefone quando ouvi o
barulho alto de uma pancada e a chamada caiu. — Começa a andar
de um lado para o outro, uma mão na cintura e a outra agarrando o
cabelo. — Ela estava saindo de casa e indo até o Fortuna, então
decidi fazer o caminho para ver se alguma coisa tinha acontecido.
Quando cheguei, as pessoas já tinham chamado a ambulância e ela
já estava a caminho do hospital.
Um pressentimento ruim cresce em meu peito e embrulha o
meu estômago. Posso estar enganada e sendo paranóica, mas algo
me diz que não foi de fato um acidente. Dada a situação na qual
estou envolvida, as chances de alguém — Oliver ou Alessandro —
ter contratado uma pessoa para machucar minha irmã são enormes.
Minha intuição nunca erra.
— Onde foi isso? — questiono a Jay.
— Na S Maryland Parkway.
— Vou checar as câmeras de segurança das ruas ao redor.
Yuna, vá chamar alguém para me falar o que diabos está
acontecendo antes que eu invada o centro cirúrgico.
Afasto-me deles até um canto isolado, saco o telefone e
passo a mão trêmula no rosto.
— Ei, amor — ela diz ao atender. — Já embarcou?
Mantenho a voz baixa, quase inaudível, ao falar:
— Aconteceu uma coisa, linda. Preciso de você.
“Não há rendição
E não há escapatória
Somos nós os caçadores?
Ou somos nós a presa?
Este é um jogo selvagem de sobrevivência”
Game of Survival | Ruelle
 

 
Faz dois dias que Sienna está no hospital. Sua fratura na
perna não foi nada tão grave, mas algo sobre seus ossos terem
saído do lugar — estava mais preocupada em vê-la do que prestar
atenção nos detalhes — fez com que a cirurgia fosse necessária.
Tudo ocorreu bem e ela ainda está em observação, o que significa
que continuei em Las Vegas para ficar ao seu lado. A direção do
hospital relutou em manter o andar fechado até a Barbie ter alta,
porém, nada que um sustinho não tivesse resolvido.
No entanto, não posso mais adiar a viagem até Los Angeles.
O baile de Derek é hoje à noite e embora não exista nenhuma parte
de mim disposta a deixar Sienna sem mim em Vegas, preciso seguir
com o plano e colocar um ponto final de uma vez por todas. Quando
expliquei bem resumidamente sobre a situação, ela foi
compreensiva. Sei que ainda a devo milhares de explicações,
sobretudo em relação aos últimos cinco anos e à morte de Dante,
mas o tempo está passando e há coisas mais importantes a serem
feitas antes disso.
Além do mais, depois que Lyanna reuniu todas as
informações possíveis sobre o acidente de Sienna e nós
descobrimos que não foi a porra de um acidente, minha
necessidade de caçar Duncan e seus capangas triplicou. O carro
que bateu contra o da minha irmã estava a quase 100km/h, na
contramão, e foi esperto o suficiente para colidir em uma parte do
veículo que não o machucasse tanto quanto machucou Sienna —
que além da lesão na perna, também ficou com diversos cortes e
machucados pelo corpo. Levou alguns minutos, talvez para se
recuperar da pancada, mas o motorista sequer desceu para prestar
socorro; acelerou e fugiu. Lyanna conseguiu rastrear sua placa até o
bairro que fica no limite da cidade, o que significa que ele seguiu
para a estrada logo em seguida.
Ou seja, a Holy Devils machucou a minha irmã.
Foi assim que Oliver Duncan jogou a última pá de terra em
sua própria cova.
E é por isso que estou em Los Angeles, horas de distância de
iniciar a vingança que tanto almejo. Jayden ficou em Las Vegas para
proteger e cuidar de Sienna, assim como para exercer o papel de
don em minha ausência.
Estou com o braço entrelaçado ao de Spencer, um dos meus
melhores soldados, enquanto caminhamos até a entrada da mansão
onde está acontecendo o baile de Derek. Para que a missão
acontecesse, revelei parte dos fatos aos soldados escolhidos por
King. Não dei muitos detalhes, mas forneci informações suficientes
para eles perceberem o quanto precisamos derrotar Duncan.
De soslaio, vejo Yuna saindo de seu carro, tão irreconhecível
quanto eu. Trouxemos dezenas de soldados para a missão, todos
infiltrados de alguma forma, e contamos com o auxílio de Chloe para
monitorar a movimentação da gangue na cidade através dos
celulares clonados dos membros da gangue. Lyanna ainda está
trabalhando na clonagem do aparelho de Oliver, pois disse que o
dele conta com uma criptografia muito mais elaborada e difícil de
hackear. Não há nada que minha feiticeira não consiga, então sei
que a qualquer momento me dirá que teve acesso.
Quando me olhei no espelho antes de vir ao baile, demorei
alguns segundos para entender que era eu, porque pareço uma
pessoa completamente diferente. Minha peruca é loira, as lentes
castanhas e o vestido que cobre o corpo é o mais chamativo
possível — vermelho, brilhante, justo e com um decote V. A
maquiagem extravagante em meu rosto não é nem de longe o que
costumo usar — que se limita a um delineado e lápis de olho — e há
uma tonelada de base em cada centímetro da minha pele a fim de
esconder as tatuagens. O objetivo é me passar por Charlotte
Jenkins, uma convidada, e Yuna está disfarçada de Sayuri
Takahashi, uma empresária com quem a gangue faz negócios. As
verdadeiras Charlotte e Sayuri foram sequestradas e estão dopadas
em um galpão fora da cidade, mas não pretendo fazer nada com
elas. Depois que a missão acabar, vou jogá-las de volta na porta
dos seus hotéis. É claro que em algum momento os membros vão
perceber quem somos, mas já será tarde demais.
Jenkins e Takahashi não foram as únicas sequestradas do
dia.
— Charlotte e Williams Jenkins — falo ao segurança da
porta, que digita os nomes em seu tablet antes de estudar o meu
rosto por alguns segundos. Levanto a sobrancelha em
questionamento e ele volta a mexer no aparelho.
Sem dizer nada, abre a porta para passarmos. Uma mulher
me revista no hall enquanto um homem faz o mesmo com Spencer.
Não há nenhuma arma em nosso corpo, porém, não significa que os
muitos infiltrados no evento não estejam armados.
— Estamos dentro — sussuro no pequeno microfone
posicionado no seio.
Lyanna, Yuna e Chloe estão nos ouvindo pelo mesmo canal
para facilitar a comunicação. Spencer foi designado por Jayden para
liderar a equipe na missão, então o seu canal está conectado a
todos os nossos homens presentes no baile.
Lyanna conseguiu acesso à lista de convidados dois dias
atrás e desde então estudamos todos os rostos que estariam aqui.
Vejo os soldados do alto escalão da Holy Devils espalhados pelo
salão, mas nenhum sinal de Oliver, como eu já esperava.
Sei muito bem o que ele está fazendo.
Andamos em direção ao bar, me sento no banquinho e
Spencer fica em pé atrás de mim como um marido protetor. Peço
um copo de uísque puro e o sinto se inclinar para sussurrar em meu
ouvido:
— Cake às sete.
“Cake” é o codinome de Yuna e “sete” corresponde às sete
horas, sistema que usamos para identificar a posição de algo ou
alguém através da posição dos números em um relógio.
— Tenho uma notícia boa e uma ruim — Lyanna diz no fone.
O barman coloca o copo à minha frente e eu agradeço com um
sorriso antes de bebericar um gole, agindo naturalmente. — A boa é
que consegui descriptografar o celular de Oliver e a ruim é que ele
tem um programa instalado que emite um alerta em qualquer quebra
de segurança.
— O que significa…? — Chloe pergunta.
É estranho pra caralho ouvir qualquer interações das duas,
porque não era algo que eu planejava ou esperava que fosse
acontecer tão cedo. Meus dois mundos — Vendetta e Lyanna —
estão começando a se interligar e, embora tenha aguardado muito
tempo por isso, ainda parece surreal.
— Que se ele estiver com o celular na mão, vai ver o alerta e
saber que há algo de errado.
— Vamos agir antes que ele perceba, então — sussurro, me
virando no banquinho. Spencer se encaixa entre as minhas pernas e
eu mexo os ombros.
Entendendo o sinal, ele murmura para que nossos homens
escutem:
— Algum avanço em localizar Orange? — É o codinome de
Oliver.
Alguns segundos depois, meu falso marido se inclina em
minha direção, planta um beijo em minha bochecha e aproveita para
informar, quase inaudível:
— Orange às duas.
Meu corpo enrijece de imediato, as narinas inflam e preciso
me controlar para não perder a postura tranquila. Aperto o copo e
mordo o lábio inferior com força para extravasar a fúria em saber
que aquele filho da puta está tão perto de mim.
Siga o plano, a parte racional do meu cérebro diz.
Dê trinta tiros e quarenta facadas nele, a outra rebate.
— Tudo certo com Egg? — Spencer questiona, afagando
meu rosto.
Ele anui para mim, querendo dizer que obteve uma resposta
afirmativa e as coisas estão sob controle no esconderijo.
Escorrego os olhos devagar na diagonal até encontrar
Duncan, que conversa no canto do salão com dois dos seus
capangas. Percebo que está tentando não demonstrar pânico, mas
como eu sei o que está acontecendo, também sei que ele está
irado. Lyanna se infiltrou no fórum da darkweb onde ele está
recebendo informações da minha localização e enviou uma foto
minha pelas ruas de Las Vegas há duas horas, com toda aquela
mudança irrefutável nos dados e-alguma-coisa. Em outras palavras,
Duncan não deve pensar que estou em Los Angeles, tampouco em
seu próprio baile.
— Bonnie, algo de útil no celular de Orange?
— Ele está recebendo várias mensagens, todas sobre o
desaparecimento de Egg. Não vai demorar para ele ver o alerta,
Clyde.
Abro um sorriso de canto, satisfeita com o caos que está
apenas começando.
— Não importa — garanto e me levanto. — Vamos acabar
com isso em poucos minutos.
Vasculho ao redor à procura de Yuna e a encontro próxima
de nós. Aponto discretamente para Oliver com a cabeça, ela
assente e murmura algo no ouvido de Christopher, seu
acompanhante e nosso soldado.
— Atenção, Payback se iniciando. Posicionem-se — Spencer
sussurra.
Entrelaço meu braço ao dele e andamos em direção a Oliver,
com Yuna e Christopher se juntando a nós no meio do caminho.
Conforme me aproximo, meu sangue borbulha ainda mais e as
vozes impulsivas ganham força. Se não estivesse tão determinada a
derrotá-lo da forma mais lenta, cruel e vingativa possível, jogaria o
plano no lixo e o mataria aqui e agora com as minhas próprias
mãos, mesmo que custasse minha vida. Pelo menos o levaria junto
comigo para o inferno.
Um dos seus seguranças é o primeiro a nos notar. Ele dá
alguns passos adiante depressa, bloqueando nossa passagem e
protegendo seu chefe. Cesso os passos e noto de canto de olho que
o outro parou de falar para nos observar.
— Há algum problema? — ele pergunta, ríspido, acreditando
que não percebi o sutil movimento de sua mão deslizando até a
cintura, onde sua arma provavelmente está.
Seu corpo alto e similar a um armário bloqueia minha visão
de Duncan, mas sei que ele está atento à conversa.
— Preciso trocar algumas palavras com o seu chefe —
respondo, lançando-lhe um meio sorriso.
Ele franze as sobrancelhas, inspecionando meu rosto. Abre a
boca para falar, porém é interrompido pela figura que surge —
rápida e desesperadamente — ao seu lado. Os olhos escuros se
arregalaram, a mandíbula trinca e a expressão é de puro ódio.
Posso estar disfarçada e muito diferente, mas assim como eu
reconheceria sua voz não importa quanto tempo passasse, ele
também reconhece a minha.
— Tire essa vagabunda daqui agora. Mate todos que…
— Eu não faria isso se fosse você — o interrompo. —
Encoste um dedo em mim ou nos meus homens e poderei dizer que
matei não só a esposa, como também o marido.
A compreensão de que estou falando sobre Jasmine e Derek
transforma seu semblante aos poucos. Os lábios são pressionados
um contra o outro, as pálpebras fechadas por alguns segundos e as
narinas infladas soltando uma longa respiração. Quando volta a me
fitar em cólera, já posso sentir a primeira gota da vitória.
— Você vai se arrepender disso, Romano — murmura, a pele
ganhando uma tonalidade vermelha devido à raiva. — Nunca
deveria ter pisado nessa cidade. Nesse baile. Juro por Deus que se
você…
— Cale a porra da boca. Acha mesmo que vai me assustar
com suas ameaças, Duncan? Tenho quarenta homens infiltrados
nesse salão e mais alguns lá fora, todos eles ansiosos para receber
a ordem para matar. Cabe a você decidir quem morrerá esta noite.
Vejo o otário número dois, que está atrás do número um,
tentando ser discreto ao falar no que presumo ser um microfone na
gravata.
— Acho que não fui clara o suficiente — digo, mais firme e
dura, intercalando o olhar entre ele e o segurança que flagrei
tentando se comunicar. — Se qualquer um der um passo em nossa
direção para machucar a mim e aos meus acompanhantes, seu
irmão morre. Se meus soldados notarem qualquer movimentação
estranha aqui e na cidade, sua esposa e filha morrem. Há
explosivos espalhados ao redor de toda essa mansão, Oliver. Não
me teste.
Seu rosto fica tão vermelho quanto um pimentão. Os olhos
escorregam automaticamente pelo salão em busca das duas,
achando-as conversando e rindo com um casal. O homem nos
encara no mesmo segundo, abre um sorriso de lado e balança a
cabeça de maneira sutil em um aceno.
É suficiente para Oliver perceber que eles são nossos.
A mão, fechada em punho, é colocada em frente à boca para
impedir que ele perca o controle e dê uma ordem da qual vai se
arrepender. Conheço cada movimento dele e sei que as únicas
coisas o impedindo de enfiar uma bala na minha testa são: 1) a
constatação de que o sumiço repentino de Derek, o qual era o
motivo de sua agitação, é na verdade um sequestro; 2) a menção de
sua esposa e filha.
— Vai explodir o lugar com você mesma dentro? — indaga
em um sussurro. — Está disposta a morrer apenas para me matar,
Romano?
Rio baixo, sarcástica, e me inclino em sua direção.
— Estou disposta a explodir a porra do país inteiro para
matar você, seu filho da puta desprezível.
Seu olhar mortal já é suficiente para me deixar satisfeita. Fico
ainda mais ao saber que ele está se corroendo com milhares de
perguntas sobre como entrei em seu baile, como ele não previu isso
e como consegui sequestrar Derek sem que ninguém percebesse.
Eu poderia destruí-lo sozinha, mas não há nada melhor do
que mostrar a ele que ninguém escapa da fúria da Vendetta.
Ninguém mexe com um de nós e vive para contar a história.
— Você vai pagar por isso — diz, ofegante. — Nunca vai sair
viva desta mansão, Romano. Não importa qual seja o seu plano.
Saco meu celular do decote, abro a galeria e viro a tela. Ao
ver a imagem de Derek inconsciente e sangrando numa cadeira,
seu rosto empalidece. Desestabilizá-lo está sendo mais fácil do que
eu imaginava.
Passo o dedo para o lado, exibindo diversas fotos de seu
irmão sendo torturado. Até mesmo o segurança arregala um pouco
os olhos quando mostro a perna completamente torcida de Duncan,
tão quebrada que não tenho certeza se há como colocá-la de volta
no lugar. Se minha irmã teve a dela fraturada por culpa dele, nada
mais justo do que retribuir a gentileza à família.
— Vou te dizer qual é o meu plano — corto o silêncio pesado,
guardando o aparelho. — Você vai nos seguir sem resistir e dar a
ordem para seus homens não irem atrás de nós. Não pense nem
por um segundo que vou hesitar em matar sua família caso
desconfie que não está me obedecendo.
Ele está tão irritado que vejo sua cabeça trêmula. É
satisfatório em níveis que não consigo explicar.
— Minha filha tem vinte anos.
Eu rio. Uma risada sincera e divertida.
— Ah, sério? — Arqueio as sobrancelhas em uma falsa
surpresa. — Pelo que eu me lembre, eu só tinha quatro anos a mais
quando seus capangas se revezaram para me esmurrar até
deslocar meus ossos. Confio em Ruth para aguentar algo pior.
— Não encoste nela — rosna, dando um passo adiante.
— Obedeça e nenhuma das duas vai se machucar.
— Inferno! Acabe logo com esse joguinho.
— Avise eles que um assunto urgente surgiu e você precisa
sair. Deixe claro que se alguém o seguir, esta casa vai explodir com
todos dentro.
A princípio, ele reluta. Fica em silêncio, me encarando com
raiva. A soberba que costumava existir em seus olhos há alguns
anos, enquanto assistia à minha tortura, não existe mais. Ao
contrário da postura presunçosa e vitoriosa em todas as visitas que
fazia na minha cela, a de agora não mostra nada além de fúria e
humilhação. Seu ego está tão ferido que ele vai fazer de tudo para
fingir que não está com medo, mas, na realidade, basta que eu olhe
em direção à sua filha para fazê-lo mijar na calça.
Vira a cabeça para o segurança ao lado e diz:
— Fale para eles. — O homem hesita, mirando-o em
descrença. — Fale logo, inferno!
Ele obedece, segurando a gravata para dizer no microfone:
— Atenção, Herbert falando. Há um assunto urgente com o
qual o chefe precisa lidar. Não o sigam e não façam nada. É uma
ordem direta.
— Está feliz? — Duncan pergunta, quase espumado.
— Ainda não.
Troco um olhar com Yuna e aponto para os fundos com o
queixo. Agarro o antebraço de Oliver e sorrio como se fôssemos
amigos de longa data enquanto o conduzo até o corredor. Spencer
conversa com nossos soldados, perguntando se houve alguma
movimentação no salão depois que saímos dele. Com um aceno,
ele me confirma que está tudo bem e pelo que parece os homens
estão obedecendo à ordem.
Os seguranças dos corredores nos analisam com atenção
conforme passamos, mas não fazem nada. No meio do caminho,
encontramos alguns infiltrados da Vendetta e eles nos entregam
armas e coletes à prova de balas, os quais coloco sob o olhar
enojado de Duncan.
— Seja lá o que esteja planejando, não vai funcionar — ele
fala depois de ser algemado por Spencer. — Pode estar em
vantagem agora, mas sabe que não vai demorar até o jogo virar.
— Tem fita aí? — pergunto ao soldado, que anui e me
estende. Rasgo um pedaço, viro-me e colo com força na boca de
Oliver. — Muito melhor.
Retomamos o trajeto e dessa vez matamos todos os
seguranças que encontramos. O silenciador das armas faz com que
o processo passe despercebido, nos permitindo chegar até a saída
dos fundos sem alarde. Os carros já estão preparados, esperando.
Empurro Oliver para dentro de um e, antes de entrar, tiro o celular
do decote e disco o número.
— Quer saber de uma coisa que aprendi em todos esses
anos sendo a rainha das cartas? — Ele semicerra as pálpebras em
confusão. — Aprendi a como ser uma ótima mentirosa.
Poucas vezes sorri tão grande e com tanta sinceridade
quanto sorrio ao ordenar na ligação:
— Mate a esposa na frente de todos e traga a filha para mim.
“Eu dei tudo e tudo o que você deu
Foi uma doce miséria
Então quem vai nos salvar agora?”
Scars | Boy Epic
 

 
Ando de um lado para o outro na sala, arrependida de ter
aceitado ficar em Las Vegas. Foi um erro não ter acompanhado
Alessia na missão, especialmente porque enlouqueço quando ela
não me dá notícias por mais de dez minutos. Preciso saber se as
coisas ainda estão sob controle ou se Oliver tinha alguma carta na
manga.
Como se lesse os meus pensamentos, meu celular toca.
Corro para apanhá-lo do sofá e solto um suspiro aliviado ao ver o
nome dela na tela.
— Está tudo bem? — pergunto de imediato, me sentando.
— Está sim, principessa. Desculpe por não ter ligado antes,
estava ocupada.
Faz mais de doze horas desde que o baile da Holy Devils se
transformou num rio sangrento. No fundo, eu não tinha certeza se
Oliver cairia tão fácil na mentira, mas parece que até mesmo um
monstro como ele faz tudo pela família. O plano sempre foi enganá-
lo dizendo que sua esposa e filha não se machucariam se ele
obedecesse, mas no final matar a mulher da mesma forma que eles
mataram a minha mãe e sequestrar a filha como eles planejavam
fazer comigo. O tiroteio começou no salão e causou algumas
mortes, tanto de membros da gangue como de convidados.
Não sinto pena de ninguém, tampouco de Duncan. As
pessoas estão pagando o preço por estarem envolvidas com aquela
organização de merda. Todo o sangue derramado está nas mãos
deles e eu não poderia ligar menos.
— Quero ir até LA — falo. — Não deveria ter aceitado ficar
em Vegas, na verdade.
— Lyanna… — Ela suspira e ouço uma certa movimentação
no fundo, como se ela estivesse se afastando. — É perigoso te ter
aqui. Não sei o que eu faria caso algum deles encostasse em você,
linda.
— Eu sei me cuidar, Alessia. E você sabe que mereço fazer
parte dessa vingança. Queria ter estado no baile ontem para ser eu
a pessoa que matou a mulher daquele filho da puta.
— Você vai ter seu momento com Oliver quando voltarmos
para Las Vegas — assegura. — Por favor, só espere um pouco. Não
quero ter que me preocupar com a sua segurança aqui.
Solto uma lufada de ar e encaro a mesinha de centro. Apesar
de saber que é de fato perigoso estar na cidade dominada pela Holy
Devils, não vou conseguir ficar aqui enquanto ela está enfrentando a
gangue. Não posso nem conversar com Sophie e Kai sobre isso,
porque os dois não fazem ideia do que está acontecendo.
— Como Sienna está? — decido mudar de assunto. — Já
que eu não posso visitar, hackeei o sistema do hospital e vi que está
escrito na ficha dela que a recuperação está indo bem.
Alessia solta um riso baixo.
— Pelo que parece, está tudo bem, mas não consigo deixar
de me preocupar. Estou me sentindo uma irmã de merda por ter
deixado ela lá, só que eu não poderia adiar a viagem.
— Foram eles que a machucaram e com certeza tentariam
mais alguma coisa. Você precisava ir porque isso tem que acabar
logo, Alessia.
A ligação fica muda por alguns segundos. Franzo as
sobrancelhas em confusão, me perguntando o motivo de ela não
responder.
— Amor?
— Sim. Estou aqui.
— Está tudo bem? Por que não me respondeu?
Ouço-a respirar fundo e cerro as pálpebras. Há alguma coisa
de errado.
— Oliver insiste que não foi ele o responsável pelo acidente
de Sienna.
Reviro os olhos e rio baixo, sarcástica.
— É óbvio que ele não vai admitir.
— Esse é o problema, Oliver sempre admite o que faz. Ele
não tem medo das consequências, Lyanna. Disse que não foi ele,
mas deu a entender que sabe quem foi.
— Não me diga que você acredita em uma palavra que sai da
boca desse filho da puta.
— Porra, claro que não. Só estou investigando para ter
certeza.
— E quem ele disse que foi?
Mais uma vez, alguns segundos silenciosos recaem sobre
nós. Quando ela responde, minha respiração falha:
— Alessandro.
Abro e fecho a boca sem emitir nenhum som. Um nó se
forma em minha garganta porque, não, eu não duvido que tenha
sido ele. Embora não confie em Oliver e ache que só está tentando
se safar, as chances de ter sido Alessandro não são nem um pouco
pequenas.
O acidente de Sienna aconteceu um dia depois da nossa
briga. A forma como ele ficou descontrolado com a possibilidade de
eu estar envolvida com a Vendetta torna tudo ainda mais possível.
Meu sangue borbulha ao pensar que ele seria capaz disso
apenas para me punir. Alcançar Sienna é mais fácil e machucá-la
afeta Alessia muito mais do que se fosse ela mesma naquele
acidente.
— Se foi ele… — começo, respiro fundo e passo a ponta dos
dedos nos olhos fechados. — Cacete, nem sei o que sou capaz de
fazer se descobrir que Alessandro está por trás disso.
— Eu sinto muito, principessa — ela murmura. — Só queria
dizer que, caso seja verdade…
— Você vai se vingar — concluo.
— Com toda certeza.
Bufo, irritada. Como as coisas podem ter mudado tão rápido
assim? Há poucos meses, apesar dos pesares, minha relação com
ele era boa. Naquela época, eu sequer cogitava que Alessandro
causou a morte da minha mãe.
— Isso vai mudar algo entre nós? — questiona, hesitante. —
Você sabe que não vou pegar leve com ele.
— Faça o que tiver que fazer e não se preocupe comigo. Se
eu fosse você, também me vingaria não só disso, mas de todo o
resto.
— Tem certeza, Lyanna? Não quero…
A campainha toca, cortando sua frase ao meio, e eu me
levanto para atendê-la.
— Acho que Sophie e Kai estão aqui. Te ligo daqui a pouco,
ok?
— Tudo bem, linda. Se cuide, por favor. Eu amo você.
Abro um sorriso bobo e apaixonado. As palavras ficam
entaladas na garganta, prontas para serem colocadas para fora,
mas ainda não consegui me livrar do medo. Medo de retribuir e, por
algum motivo, destruir tudo.
Medo de perdê-la de novo.
— Você é quem precisa se cuidar — retruco. — Até mais,
amor.
Torço para que Alessia não se incomode com o fato de que
não respondo aquelas três palavrinhas. Sei que ela compreende
meus motivos, então tento não me pressionar quanto a isso.
Desligo a chamada e guardo o telefone no bolso da calça.
Giro a maçaneta, abro a porta e encontro meus melhores amigos.
No entanto, a expressão de ambos me faz franzir o cenho. Abro
espaço e eles entram, virando-se para mim.
— O que aconteceu? — indago, intercalando o olhar entre os
dois.
— Não sabemos direito — Sophie diz, soando um pouco
nervosa. — É o seu pai..
Estreito as pálpebras, solto uma respiração profunda e cruzo
os braços. Após a conversa que acabei de ter com Alessia, é difícil
não pensar nas piores hipóteses possíveis.
— O quê sobre ele?
Após alguns segundos em silêncio, Kai fala:
— Ele sumiu.
 

“Você não pode correr


Você não pode esconder
Você não está mais seguro aqui
Este é o som da guerra”
Sound of War | Tommee Profitt feat. Fleurie
 

 
Os gritos que saem da garganta de Oliver são como música
para os meus ouvidos. Ele se contorce, grita e choraminga enquanto
deslizo com força a lâmina afiada pelo seu abdômen, contemplando
o sangue que jorra e escorrega até o chão. Ele está pendurado no
teto através de cordas nos pulsos e, embora eu tenha começado a
torturá-lo há quase vinte horas, ainda não comecei a me divertir de
verdade.
A Holy Devils está nos procurando em todos os cantos de
Los Angeles e nos arredores, mas eu nunca deixaria tão fácil assim.
Estamos num galpão abandonado e desconhecido do século
passado que fica a uma hora da cidade, no meio do mato. Foi
Lyanna quem o encontrou e nem perdi o meu tempo perguntando
como, já que nunca entendo as bruxarias que ela faz para descobrir
esse tipo de coisa.
— Até que você fica bonito assim — debocho, dando um
passo para trás. — Coberto com o próprio sangue.
“Até que você fica bonita assim, coberta com o próprio
sangue” é o que um dos seus capangas me dizia depois de me dar
uma surra.
— Sua… — Ele não consegue terminar a frase, franzindo o
cenho em dor. Vejo seu esforço para manter a cabeça erguida e
para respirar. Os olhos marejados encontram os meus e a voz baixa
promete: — Você vai pagar.
— Eu? — Arqueio a sobrancelha. — Pelo quê, Duncan? Por
ter passado três anos sendo torturada pelos seus homens? Por ter
deixado sua gangue milionária com minhas lutas? Ou por ter
cumprido a promessa que te fiz tantas vezes de me vingar?
— Meus homens… — Grunhe alto, apertando as pálpebras e
se debatendo. É a coisa mais estúpida que ele pode fazer, pois
aumenta ainda mais a dor. — Vão te caçar.
— Estou contando com isso.
Caminho até a mesa de madeira ao lado, apanho meu
isqueiro e volto a me aproximar. Paro em frente ao corpo trêmulo e
ensanguentado, acendo a chama e faço o mesmo trajeto que fiz
com a faca. Os berros que ele solta são tão altos que qualquer um
ao redor do galpão consegue ouvir.
— Tão escandaloso — murmuro, revirando os olhos.
“Tão escandalosa”, é o que outro dizia enquanto chicoteava
minhas costas.
O fogo queima sua ferida recém-aberta enquanto vejo,
finalmente, as lágrimas descendo pelas bochechas machucadas.
Ele se contorce de um lado para o outro tentando escapar da flama
e a agitação faz com que as cordas machuquem ainda mais os
pulsos.
Afasto o isqueiro e rio ao ver o xixi escorrendo pelas suas
pernas. Ele está usando apenas uma cueca que agora exibe uma
enorme mancha na frente.
Tenho algum tempo antes de precisar chamar o médico para
impedir que a ferida infeccione e ele morra. Pretendo levá-lo à beira
da morte diversas vezes por dia, atingindo os pontos certos de seu
corpo para não ser letal.
— Você me odeia tanto, Oliver, mas precisa admitir que fui
bondosa ontem. — Puxo a cadeira de ferro e me sento à sua frente.
As pálpebras pesadas, piscando lentamente como se ele estivesse
quase apagando, se erguem para me fitar. Seus olhos se reviram,
quase cedendo à inconsciência provocada pela dor agonizante. —
Permiti que sua esposa morresse rápido, com só dois tiros na testa.
Não acha que fui caridosa?
Seu grunhido bestial é instantâneo. Ele se debate como um
animal descontrolado, puxando as cordas e chutando o ar. Os
movimentos fazem seu corte sangrar ainda mais e,
consequentemente, aumentam a dor. Todos os seus músculos estão
rígidos como pedra, os lábios prensados em uma linha reta para
reprimir os grunhidos.
Depois que dei a ordem para matá-la e sequestrar Ruth, sua
filha, Oliver tentou pular do carro e me agredir. Dei-lhe uma
coronhada no rosto e mais alguns golpes até fazê-lo desmaiar.
Quando acordou, já imobilizado no galpão, achou que eu tinha
blefado e sua família estivesse sã e salva.
Se antes ele já me detestava, o ódio triplicou de tamanho no
momento em que mostrei a foto do corpo de sua mulher morta e da
filha inconsciente, amarrada a uma cadeira e com o rosto golpeado.
Acho que Duncan subestima meu desejo de vingança. Ele
realmente acredita que vou poupar os “inocentes” que não tiveram
nenhum envolvimento em toda a merda que sua gangue fez comigo.
A questão é que não me importo com a inocência ou culpa de
ninguém. Vou destruir todos que ele conhece e obrigá-lo a assistir,
começando pela sua filha. Inocente ou não, todas essas pessoas
têm algum tipo de relação com a Holy Devils.
E isso é o suficiente para mim.
— Essa é sua… vingança? — questiona, ofegante, incapaz
de manter a cabeça erguida. Apesar de seu estado, consegue soltar
um riso baixo que logo se transforma em uma tosse com sangue. —
Fazer comigo… o que meus homens… fizeram com você?
— Também.
Apanho o maço do bolso, acendo um cigarro e solto a
fumaça.
— Mas não vou me contentar apenas com isso — continuo,
assistindo-o levantar o queixo para me fitar por baixo dos cílios.
— É claro que… não — debocha, tossindo novamente.
— Vou te destruir de dentro para fora, Duncan. Vou fazê-lo
assistir à morte da sua família, à sua cidade queimando e à sua
gangue se resumindo a um amontoado de gente morta. Vou fazê-lo
desejar nunca ter colocado os olhos em mim.
Sua boca machucada se contorce numa tentativa de sorrir.
— Acha que eu… me arrependo? — Seu peito sobe e desce
para puxar o ar. — Pode fazer o qu-ue quiser co-omigo… não vou
me arrepender de ter quebrado você.
Solto um riso baixo após expelir a fumaça do cigarro.
— Esse crédito não é seu, Duncan, você não me quebrou —
asseguro. — Eu já nasci quebrada.
Não foi algo no qual eu me tornei. Alessia Romano já nasceu
fadada a uma vida corrompida.
— Dante fez um… bom trabalho — murmura, erguendo o
rosto. Seus olhos mal estão abertos e o suor brilha por todo seu
corpo trêmulo. — Fazendo você ser… a cadela dele.
Abro um meio sorriso, assinto e me levanto. Pressiono a
guimba com força em sua ferida e ele berra, a voz morrendo à
medida que fica mais e mais fraco. Agarro sua mandíbula para
forçá-lo a me olhar e sussurro:
— Vou cortar seu irmão e sua filha em pedacinhos. Vou me
deliciar com os gritos e depois você vai assistir aos meus cachorros
comendo a carne deles.
Oliver sabe que não estou blefando. Ele sabe que as
cicatrizes internas e externas que me causou são profundas o
suficiente para destruir qualquer princípio e moral que ainda restava
em mim.
— Não to-oque e-em Ruth! Faça o que-e quiser… co-omig-
oo… mas não-o toque… ne-ela.
— E Derek? Não se importa com o seu irmão? — Finjo
espanto, colocando a mão no coração. — Está dizendo que posso
matá-lo e esquartejá-lo à vontade?
Suas pálpebras se fecham e a cabeça balança de um lado
para o outro. É apenas o primeiro dia e ele já parece prestes a
quebrar.
— Deixe os do-ois em paz. Sou eu qu-ue você… vo-ocê quer.
— É aí que você se engana. Eu quero todos que você
conhece e ama. Todos. Eles.
— Não fo-omos atrás de Lyanna. Mantivemos você… e
deixamos ela… de lado.
— Uau, quanta generosidade! — ironizo, revirando os olhos.
— Acha que me importo com isso? O único motivo pelo qual você
não foi atrás dela é porque eu estava deixando sua gangue
milionária com todas as lutas clandestinas e se você sequer
pensasse em machucá-la, eu pararia. Era o nosso acordo e você foi
inteligente de mantê-lo, mas agora…
Cuspo em sua cara.
— Agora o acordo mudou, Duncan.
Alguns segundos de silêncio recaem sobre nós, até que ele é
quebrado pela risada histérica dele misturada às tosses. Cerro os
olhos, intrigada, vendo seus dentes ensanguentados sorrindo como
se eu tivesse contado a piada mais engraçada do mundo.
— Me conte o que é tão engraçado.
— Você… você é engraçaa-da, Alessia — murmura, ainda
rindo. — Achando que é a única com vantagem aqui.
Arqueio a sobrancelha e sua voz presunçosa, bem diferente
de segundos atrás, continua:
— Acredita me-esmo que eu não esperava su-ua visita à
cidade-e? — Estala a língua, a expressão tão divertida que me faz
trincar a mandíbula. — Acredita mesmo que eu não ti-inha um
plano?
Em um ato rápido, saco a faca do coldre e a enfio em seu
corte do abdômen. Ele grita e se contorce, mas em meio aos gritos
Oliver começa a… gargalhar.
Psicopata do caralho.
— Acho que seu plano não era tão bom… — Viro o cabo e o
ouço berrar ainda mais alto. — Já que você, seu irmão e sua filha
estão aqui. E sua esposa, morta.
O rosto empalidece e sei que em poucos minutos ele vai
perder a consciência.
— Na verdade… ele está indo conforme… o planejado.
Meu sangue borbulha em puro ódio, embora eu não saiba
sobre o que ele está falando. Pode ser uma tentativa estúpida de
me manipular e me desestabilizar, como também pode ser a
verdade.
Conhecendo-o como conheço, tenho consciência de que a
segunda opção é a mais provável de todas. No fundo, eu já
imaginava que não seria tão fácil assim. Oliver não cairia sem uma
boa luta.
— Meus homens receberam uma… ordem… de que se algo
acontecesse comigo, eles deveriam… sequestrar o homem perfeito
para… criar uma armadilha.
Eu paraliso.
Não. Não pode ser.
Esse filho da puta não colocaria a si mesmo e a todos os
outros em perigo apenas para me atingir, não é?
Não. Não pode ser.
Ela está segura em Las Vegas. Pedi para que Jayden ficasse
de olho nela também, e há Jeon e Wilson. Ninguém permitiria que
algo acontecesse.
Só que há um pressentimento apavorante na boca do meu
estômago. Tento acreditar em minhas próprias palavras, mas é
inútil. Não tenho como negar que eles, por mais treinados que
sejam, não conseguiriam parar a Holy Devils.
Duncan vê tudo isso como uma moeda de troca. Acredita que
esse plano doentio vai me impedir de machucar Derek e sua filha.
— Adivinhe, Alessia? — pergunta, rindo e tossindo de
maneira soberba. — Se eu fosse pego… Alessandro Bellini seria
sequestrado para criar uma… armadilha… e tenho certeza de que
aquela vagabunda caiu nela.
Vejo tudo vermelho quando a fúria atravessa cada uma das
minhas entranhas, fazendo-me sentir como um verdadeiro animal
irracional. Quero esmagar a cabeça dele na parede, cortá-lo em mil
pedaços e cozinhar seus órgãos numa panela. Quero berrar e
quebrar todo este galpão.
Dou-lhe um soco forte no rosto e ele grunhe alto, surpreso.
Golpeio mais uma vez, no nariz, e depois novamente na mandíbula.
Fecho as mãos em punho para me controlar, senão não vou
conseguir parar.
Recuo alguns passos sem quebrar o contato visual. Não
consigo manter o semblante impassível, não quando começo a
imaginar todas as coisas que os homens de Oliver podem estar
fazendo com Lyanna nesse exato momento — coisas piores do que
fizeram comigo, já que eles não tem nada a ganhar com ela. Nem
tenho certeza se ela está com eles, mas a mera possibilidade já me
enlouquece.
Vejo nas íris escuras que ele está falando a verdade. Consigo
detectar um blefe no mesmo segundo e, porra, ele não está
blefando. O sorriso ensanguentado manifesta tanta felicidade e
satisfação que me enoja.
— Acho melhor você se apressar — debocha, entre uma
tosse e outra. — Eles já devem estar se divertindo bastante com os
quatro.
“Como posso dizer isso sem assumir as consequências?
Como posso transformar isso em palavras
Quando isto é quase demais para a minha alma sozinha?
Eu amei e te amei e te perdi”
Hurts Like Hell | Fleurie
 

 
Faz meia hora que estou com o telefone grudado na orelha,
ligando e ligando e ligando e ligando. Ninguém me atende. Lyanna,
Jeon e Wilson, ninguém. Depois de quinze minutos, as chamadas
começaram a cair na caixa postal. Mesmo assim, não consigo parar
de insistir na esperança de ouvir a voz de qualquer um deles.
A cada segundo que passa, perco um pouco mais a
habilidade de pensar. Minhas mãos tremem, o suor escorre pelo
pescoço e vejo tudo embaçado. Estou nervosa como nunca estive,
segurando as lágrimas que me recuso a soltar. Não vou dar esse
gosto de vitória para Duncan.
Disco o número de Chloe e ela atende no mesmo segundo.
Foi a primeira pessoa para quem liguei e contei logo após sair do
galpão.
— Conseguiu? — pergunto, andando de um lado para o outro
na sala.
— Ainda não. — Aperto as pálpebras, grunho alto e passo a
mão gélida no rosto. — O sinal ainda está offline. Acho que eles
estão no subsolo de algum lugar afastado, sem sinal ou com sinal
fraco. Estou dando o meu melhor, Alessia, mas não sou um gênio
do computador como ela.
Puxo o ar, engulo o nó na garganta e me apoio no sofá. Tento
contar até dez mentalmente, mas paro no número dois. Não consigo
pensar. Não consigo me acalmar.
— Quais são as chances deles terem destruído o anel? —
Chloe indaga, hesitante.
— Não destruíram. É impossível desconfiar. Eles estão na
porra do subsolo, com certeza.
— Foda-se onde eles estão. Nós vamos achá-los.
Solto um riso baixo e sem humor. Uso o polegar e o indicador
para apertar o canto dos olhos, voltando a andar em círculos pelo
cômodo. Abro os últimos botões da camisa, me sentindo sufocada.
Se eu não fizer alguma — qualquer — coisa nos próximos dez
minutos, vou colapsar.
— Você conseguiu reunir todas as propriedades da gangue?
— questiono.
Vou até a cozinha, onde há uma garrafa de uísque em cima
da mesa, e encho o copo.
— Sim e já enviei para o seu tablet. São muitas, Alessia, não
temos tempo para invadir cada uma delas.
— Eu os conheço, Ventura. Conheço as estratégias e a forma
como eles pensam. Só preciso colocar a cabeça no lugar primeiro.
— Não acha que devemos avisar ao Conselho? Assim
poderemos pedir reforços.
Respiro fundo, espalmo a mão na mesa e abaixo a cabeça. A
ligação fica em silêncio por alguns segundos. Já está na hora de
toda a Vendetta saber do que está acontecendo, mas preciso me
recompor antes de falar com o Conselho. Eles não podem sequer
cogitar a ideia de que tudo isso é pessoal.
Ainda não, pelo menos.
— Amanhã — digo. — Os soldados estão falando alguma
coisa? O que conseguiu descobrir?
— Algumas pessoas estão curiosas sobre o que você anda
fazendo, mas nada preocupante. Eles gostam de você, Alessia,
especialmente porque nosso comércio de drogas vem melhorando a
cada dia depois que você assumiu. Eu te disse que a resistência
contra sua liderança só existe dentro do Conselho e entre os mais
velhos. Não se preocupe.
— Não é tão fácil, Chloe. Preciso ter certeza de que os
soldados estão do meu lado e me enxergam como don.
— Bem, eles te adoram e alguns até te idolatram, mas você
sabe que a maioria não vai gostar de saber sobre aquilo. Não vou
mentir para te tranquilizar. Mas, se quer a minha opinião, acho que
conseguiremos dar um jeito.
Não tenho certeza se eles vão ser contra a ideia quando
descobrirem a verdade.
Porém, Ventura não pode saber disso ainda, então tudo que
falo é:
— Não pare de tentar encontrá-la. Me ligue se conseguir
qualquer coisa.
No mesmo segundo que desligo, a porta é aberta e Yuna
aparece. Encaro-o esperançosa, mas o gesto de seus ombros
caindo e os lábios prensados um contra o outro me faz soltar um
palavrão alto.
— Nada? — indago, me referindo aos interrogatórios que
meus soldados estão fazendo com os membros da gangue que
pegamos nas últimas horas.
— Eles são leais a Duncan. Mas… — Ela se aproxima de
mim e me estende alguns papéis. Folheando-os, vejo a ficha de
cada um dos que aprisionamos. — Aí estão todas as pessoas mais
próximas deles. Família, namorados e namoradas. Estou te
mostrando apenas para que fique ciente, porque já estamos indo
atrás deles.
— Ótimo. Mate-os se for necessário.
Yuna parece hesitante, o que me faz arquear as
sobrancelhas.
— Algum problema?
— Um deles só tem uma filha de onze anos como família.
Trinco a mandíbula e bufo.
— Apenas finja que vai machucar a menina, então. Faça o
desgraçado acreditar que vamos matá-la.
Ela assente e estuda meu rosto com atenção. Sinto-me
desconfortável sob seu escrutínio e giro sobre os calcanhares,
caminhando até a mesa no canto da sala. Não tenho tempo para me
sentar antes de sua voz soar novamente:
— Converse comigo. Você não está bem.
— É claro que não estou bem — respondo, virando-me de
frente para ela. — Estou muito longe de “bem”, Yuna. Estou
entrando em pânico a cada minuto que não encontro Lyanna,
porque sei que… — Volto a ficar sem fôlego e tento respirar fundo.
— Sei que eles devem estar…
Não consigo verbalizar meus pensamentos. Não consigo
dizer que aqueles filhos da puta estão machucando ela da mesma
forma que fizeram comigo e até pior.
— Alessia…
Puxo o ar, mas é difícil respirar. Tinha conseguido ignorar as
sensações apavorantes enquanto estava na ligação com Chloe, só
que agora voltei a sentir tudo; o corpo trêmulo, o coração acelerado,
as lágrimas acumuladas nos olhos e a ânsia entalada na garganta.
Estou hiper ciente de cada maldita coisa que manifesta meu pânico.
— Nós vamos encontrá-la — ela diz, soando convicta. — Dou
a minha palavra, Alessia.
Eu confio na palavra dela. Confio nela. No entanto, não
consigo acreditar que Oliver perderia a chance de me arruinar de
uma vez por todas. Acredito que vamos encontrar Lyanna, só não
tenho certeza se vamos encontrá-la viva.
E isso o faria vencer a guerra, pois não há nenhuma outra
coisa nesse mundo que me arruinaria tanto quanto perdê-la.
 
 
Oito horas, quarenta e seis minutos e doze segundos.
É esse o tempo que se passou desde que Duncan revelou ter
sequestrado Lyanna.
Doze horas, vinte e dois minutos e quarenta segundos.
É esse o tempo que se passou desde o último registro de
sinal no celular de Lyanna, num ponto de Las Vegas que reconheço
ser uma das pistas de pouso e decolagem da Timoria.
Ela estava voando até Los Angeles, mas não há nenhum
registro no aparelho que indique seu pouso. De alguma forma, a
gangue deve ter interceptado o sinal para que não houvesse
nenhum registro quando ela pousasse.
Conversamos pela última vez pouco tempo antes de ela
decolar. Havia algo estranho em sua voz e cheguei a perguntar se
algo tinha acontecido, mas ela disse que só estava preocupada.
Embora tenha mentido para mim e escondido o fato de que estava
vindo diretamente para o covil do leão — quebrando a promessa
que me fez de ficar em Vegas —, não consigo sentir raiva.
Tudo que sinto é desespero. Desespero puro, genuíno e
sufocante.
Não consegui dormir ou comer. Fumei mais cigarros em
poucas horas do que em uma semana inteira. Yuna teve que me
impedir diversas vezes de ir até o galpão onde Oliver está e parti-lo
em pedacinhos. Se ele não fosse uma peça essencial em toda essa
merda, já o teria desfigurado.
Com o tripé numa mão e a nicotina na outra, empurro a porta
com o ombro para abri-la. O cheiro de mijo, bosta e sangue me faz
franzir o nariz em desgosto. Aproximo-me do homem nu deitado na
mesa, pernas e braços amarrados, um grande curativo na barriga e
diversos machucados espalhados pelo corpo.
Ele abre os olhos com certa dificuldade, encarando-me. Não
parece estar muito consciente e o médico recomendou que eu não
mexesse nele por mais algumas horas, só que não tenho tempo
para esperar o desgraçado se recuperar.
Coloco o tripé na lateral da mesa, posiciono a câmera e a
ligo. Desamarro sua mão direita enquanto trago o cigarro preso
entre os lábios e caminho até a bancada, pegando uma faca grande
e afiada. Volto para perto, agarro o pulso solto e coloco o primeiro
dedo sozinho na beirada.
Derek me fita com apreensão, respirando ofegante. Não está
com forças para se debater como fez nas últimas vezes, o que
facilita todo o trabalho. Intercala o olhar entre a faca e a câmera, já
imaginando o que vem a seguir.
A lâmina desce com força, cortando o polegar na base. Seu
berro é automático e alto ao mesmo tempo em que o sangue jorra e
o cotoco voa para longe.
— Vou cortar nove dedos. Um para cada hora que Lyanna
está desaparecida.
Repito o ato, amputando o indicador. Assim como minha
regata, meu rosto também recebe os respingos vermelhos à medida
que Duncan recompõe suas forças e se debate como um porco no
abate. Ouço-o resmungar algumas palavras, mas estou focada
demais para me importar.
Quando arranco todos os dedos da mão direita, ergo o olhar
até ele. O rosto pálido está caído para o lado e as pálpebras quase
fechadas, como se a dor fosse tão insuportável que o deixasse
inconsciente. Dou um tapa forte em sua bochecha e ele ofega,
abrindo parcialmente os olhos.
— Se dormir, vou cortar o seu braço fora — digo, áspera e
firme.
Mais uma vez, ele murmura algumas palavras
incompreensíveis. Dou a volta na mesa e desamarro a esquerda,
repetindo a ação de separar seus dedos na beirada.
— Não, não, nã… — sua voz trêmula morre quando a faca
desce com tanta força que crava na superfície.
Após cortar os nove, contemplo a lâmina coberta de sangue
enquanto o ouço soluçar e gritar. Deslizo-a em seu rosto,
manchando-o de vermelho, e finco a ponta ao lado de sua cabeça
para assustá-lo.
— Vou seguir cortando até deixá-lo sem os braços —
prometo, escorregando os dedos até seu ombro. Dou três passos
para o lado e toco os pés gelados, fazendo o trajeto até a virilha
enquanto falo: — Depois, vou começar pelos dedos dos pés até
chegar aqui.
Aperto seu pau por cima da cueca e ele choraminga, incapaz
de gritar à essa altura.
— Vou cortar seu pau e alimentar seu irmão com ele, Derek.
É a porra de uma promessa.
Seus olhos se reviram e ele cede à escuridão, desmaiando.
Afasto-me, encerro a gravação e envio o vídeo para o meu
celular. Passo a regata na face para limpá-la e apanho o telefone do
bolso traseiro. Há diversas mensagens e ligações perdidas nos
últimos vinte minutos.
O que franze o meu cenho, no entanto, é de quem elas são.
Não apenas de Yuna, Jayden e Chloe, mas também de alguns
membros do Conselho.
Porra, é só o que me faltava.
Quando abro algumas delas, minhas pernas tremem tanto
que quase caio. Agarro a beirada da mesa e releio inúmeras vezes
as palavras enviadas por King, reunindo coragem para clicar
naquele maldito símbolo.
Dou play e o chão desaba sob os meus pés.
Lyanna está acorrentada a uma cadeira, desacordada e
machucada. Sua roupa está rasgada, o rosto ensanguentado e
machucado. Há um homem atrás, segurando sua mandíbula para
manter a cabeça erguida enquanto pressiona uma faca em sua
garganta. Ao lado dela estão Jeon e Wilson, também no mesmo
estado.
Meu sangue borbulha quando reconheço o filho da puta:
Logan Perkins, um dos capangas de Oliver encarregados de me
torturar anos atrás.
Com um sorriso satisfeito no rosto, ele diz:
— Esta é uma mensagem para Alessia Romano e todos os
membros da Vendetta. Renda-se e renda sua máfia a nós ou
Lyanna Bellini, Sophie Wilson, Kai Jeon e Alessandro Bellini
morrerão.
Ele move a faca e crava a lâmina com força no lado direito do
peito de Lyanna.
Então, o vídeo acaba.
“O ar está frio
A noite é longa
Eu sinto que posso desaparecer no amanhecer
Estou tão longe de casa
Não onde eu pertenço”
Far From Home (The Raven) | Sam Tinnesz
 

 
Demoro algum tempo para conseguir abrir completamente os
olhos. A dor é instantânea e quase agonizante. Parece partir de
cada centímetro do meu corpo, sobretudo do peito, me fazendo
cerrar a mandíbula e reprimir um grunhido na garganta. Olho ao
redor, confusa e desorientada, tentando me lembrar do que
aconteceu. Minha última memória é de estar dentro do jatinho rumo
a Los Angeles às pressas após descobrir que Alessandro foi atrás
da Holy Devils e que, ligando os pontos, era óbvio ser uma
armadilha. Não tinha como ser coincidência que ele tivesse sido
chamado à cidade ao mesmo tempo em que Alessia foi capturar
Oliver.
Abaixo a cabeça e vejo correntes me prendendo em uma
cadeira, os braços machucados e os pulsos vermelhos, quase
esfolados devido à força com que elas me apertam. A respiração
profunda que libero me provoca uma pontada de dor tão forte que
fico sem fôlego e solto um grito automático.
Meu peito está queimando. Que porra é essa?
Desvio o olhar até a região ardente e me apavoro um pouco
ao ver o curativo mal feito e ensanguentado perto do seio. Não sei
se levei um tiro ou fui esfaqueada, mas o local é suficiente para me
deixar em alerta. Golpes no peito quase nunca acabam bem e esse
era provavelmente o objetivo do filho da puta que me machucou.
Analiso em volta na tentativa de me lembrar do por que estou
neste lugar escuro, úmido e frio. Embora não saiba onde estou, é
óbvio — também pelo estado em que me encontro — que esta é
uma sala de tortura.
As memórias me atingem aos poucos. Recordo-me de pousar
em Los Angeles e estranhar o fato de não haver sinal no celular; de
entrarmos no carro e, cinco minutos depois, sermos atingidos por
diversas balas; de lutar com homens mascarados e de ver Sophie
levando um tiro, o que me distraiu e me pôs em desvantagem; de
ficar inconsciente e acordar nesta mesma sala.
Eles me torturaram. Machucaram-me ao ponto de eu
desmaiar e perder parte da memória ao acordar. Se meus cálculos
estiverem corretos, fiquei inconsciente por longas horas e, pelo
visto, o ferimento em meu peito foi feito nesse meio tempo.
Então, um estalo surge em minha cabeça.
Onde estão os meus amigos?
Sophie levou a porra de um tiro e não a vi desde então. O
pânico começa a crescer em meu peito junto das paranóias, as
quais me fazem perguntar se ela sobreviveu ou se esses
desgraçados fizeram alguma coisa com ela.
Inferno, ela não pode estar morta. Sophie Wilson não pode
ter morrido. Minha melhor amiga e uma das melhores pessoas
desse mundo infeliz não pode simplesmente ter partido por causa
de um tiro.
Fecho os olhos e tento normalizar a respiração. Mordo o
interior da bochecha com força a fim de extravasar o nervosismo e a
dor. Tento mover os dedos para verificar se estou com meus anéis e
suspiro aliviada ao perceber que estou. No entanto, não sei se é de
fato uma notícia boa, já que tenho quase certeza que estou enfiada
no subsolo de algum lugar abandonado.
Meu devaneio é interrompido quando a porta abre e a luz do
corredor invade a sala, incomodando minha visão. Enrijeço e
mantenho a postura defensiva ao observar a figura masculina se
aproximando de mim, a qual logo reconheço ser o miserável que
atirou em Sophie na emboscada e, mergulhando mais a fundo,
recordo-me de vê-lo na Dark Notes quando vi Oliver pela primeira
vez.
— A bela adormecida acordou — diz, soando divertido. Puxa
uma cadeira de ferro, deixando o encosto virado para mim, e se
senta à minha frente. — Estávamos quase te dando como morta.
Mantenho o semblante impassível, impenetrável. Dentre
tantas coisas que Alessia me ensinou, as sobre tortura foram
algumas das mais úteis. “Nunca demonstre medo”, ela dizia,
“porque, se demonstrar, seu inimigo vai sentir ainda mais prazer em
te torturar”.
— Não é tão fácil assim me matar — respondo, fechando as
mãos em punho para reprimir um grunhido quando a fala intensifica
minha dor no peito.
Ele sorri, apoia os braços no encosto e esfrega os lábios
enquanto me analisa. Sinto o sangue ferver diante de seu escrutínio
nojento, mas permaneço apática. As íris escuras descem até o
sangue seco espalhado pelo meu corpo, demorando-se um pouco
mais no curativo.
Sua voz corta o silêncio pesado:
— Passei as últimas horas me perguntando qual foi a reação
daquela vadia ao te ver levando uma facada no peito.
Não esboço nenhuma reação, embora meu coração tenha
acelerado tão rápido que me deixou sem fôlego. Suponho que ele
esteja falando sobre Alessia e que essa merda foi gravada e
enviada para ela.
Porém, é uma notícia boa. Mostrar à assassina mais temida
do submundo a mulher por quem ela é obcecada com uma faca
cravada no peito foi a coisa mais estúpida que eles poderiam ter
feito.
— Ela vai matar todos vocês.
Ele ri baixo e dá de ombros, debochado.
— É uma pena que você não estará mais entre nós para
testemunhar.
— Reze para estar errado… — Cerro as pálpebras. — Como
é mesmo o seu nome?
— Logan Perkins. — Meu estômago embrulha ao captar a
malícia em sua voz: — Só “Logan” para você, princesa.
— Não me lembro de ter lido sua ficha. — Franzo as
sobrancelhas, fingindo confusão. — Mas só li as de pessoas
relevantes na gangue, então… perdão, Logan.
Por uma fração de segundo, vejo seu semblante vacilar.
Estou blefando e é óbvio, já que, agora, lembro-me de ter visto o
nome dele e uma foto muito antiga enquanto investigava a Holy
Devils. Perkins não é um bosta qualquer, contudo, também não está
no topo da hierarquia. Diria que é o menos pior para liderar as
coisas no contexto em que estamos, e é por essa razão que é ele
quem está nesta sala comigo.
— Acha que é tão fácil me manipular? — indaga.
Pelo que li e pelo que Alessia me contou, todos eles são uns
animais. Não conseguem controlar a raiva e são movidos pela
violência. Portanto, não me espanta que Logan tenha falhado na
tentativa de fingir que minhas palavras não o afetaram.
— Não estou te manipulando — minto. — É que eu esperava
receber o chefe ou alguém mais importante na sua organização,
então achei que seria educado pedir perdão por não saber quem
você é.
Seu riso baixo transborda sarcasmo. O esforço para manter o
diálogo me faz suar e me deixa ainda mais fraca. Sinto o sangue
encharcando as gazes do curativo, que é para onde os seus olhos
escorregam.
— Vai me perdoar por isso, não vai? — questiona, retórico,
sorrindo como se estivesse num parque de diversões. — Não foi
pessoal, princesa. Ossos do ofício, sabe?
Não o respondo. Perkins apoia o queixo na mão, encarando-
me com uma patética atitude soberba. Nossa interação começou há
poucos minutos, mas já é nítido que ele se encaixa no perfil de sua
gangue. Posso usar isso ao meu favor para enrolar e ganhar tempo,
mesmo que acabe levando alguns socos e coisa pior.
No final, vai valer a pena. Tem que valer.
— Entendo — murmuro. — Não se preocupe.
— Não quer saber onde estão os seus amigos?
A menção dos dois faz meus músculos enrijecerem.
— E isso faz alguma diferença? Você não vai me dizer nada,
de qualquer forma.
Seus lábios formam um sorriso perverso, capturando a
psicologia reversa.
— É verdade, mas pensei que pelo menos gostaria de saber
se aquela gostosa da Wilson ainda está viva.
Filho da puta.
Não vou me descontrolar. Não vou ceder às provocações
desse infeliz. Não vou.
— Vou descobrir em breve — afirmo e ele arqueia as
sobrancelhas.
— Eu não teria tanta certeza disso se fosse você — retruca,
zombeteiro. — Seu tempo está acabando, princesa. O dos seus
amigos e de Alessandro também.
Alessandro.
Não posso negar que é a primeira vez que me lembro dele,
ainda que tenha sido o motivo pelo qual vim a Los Angeles. Estava
mais preocupada com Sophie, Kai e Alessia do que com ele.
Isso diz muito sobre o rumo que nossa relação tomou.
— Foi para isso que vocês o chamaram até aqui? Para me
sequestrar?
— Você é valiosa, Lyanna — debocha. — É o ponto mais
fraco da responsável por tudo isso. Oliver sabe que te machucar é o
único jeito de fazer Romano se render e render a Vendetta.
Eu rio. Rio de verdade, ainda que o movimento me cause
uma dor alucinante.
A risada se mistura às tosses e à careta, mas, mesmo assim,
eu gargalho.
— Vocês acham que… — começo, ofegante. — … Que ela
vai render a máfia?
— Nós temos certeza.
Continuo rindo e balançando a cabeça em negação. Sinto um
calafrio percorrer a coluna e meu corpo ficando gelado, mas decido
ignorar por enquanto.
— Alessia Romano rendendo a Vendetta? Meu Deus, essa é
a merda mais idiota que eu já ouvi em toda a minha vida.
— Vamos lá, Lyanna, não finja que não sabe até onde aquela
vadia iria por você.
— Não finja você que não sabe o que aquela organização
significa para ela. Não há nada e nem ninguém capaz de fazê-la
render a Vendetta. A máfia é importante para ela muito mais do que
eu sou. — Reviro os olhos em descrença. — Vocês são mais burros
do que eu imaginava.
Em partes, estou certa. Apesar dos nossos sentimentos
serem mais fortes do que qualquer outra coisa, não acredito que
Alessia renderia aquela máfia para alguém, muito menos para eles.
Ela encontraria outras formas de me salvar, mas nunca renderia a
Vendetta ou a si mesma.
Está fora de cogitação.
Perkins ri, levanta-se e anda até mim com os braços
cruzados. Para a poucos centímetros de distância e mantenho o
queixo erguido para sustentar o contato visual. Seu semblante se
fecha aos poucos, mas o brilho perverso no olhar continua. A forma
como ele me encara é tão sádica que intensifica meus calafrios.
Estou com tanto, tanto frio.
— Você se sente parte da Timoria? — questiona em um
sussurro.
Não gosto de sua entonação, tampouco da pergunta
estranha.
— O quê?
— É uma pergunta simples, Lyanna.
Ele se inclina para frente e coloca as mãos em cada braço da
cadeira, me fazendo sentir encurralada. Recuo a cabeça quando
seu rosto fica muito perto do meu, mas a mão firme segura minha
nuca com força a fim de me imobilizar. Volta a se aproximar, quase
encostando o nariz no meu.
Meu cenho franze em completo desprezo. Estou me
tremendo inteira devido à dor, à nossa aproximação, ao ódio e à
vontade de cortar sua cabeça fora. Sinto como se meu corpo
estivesse entrando em colapso.
— Responda à maldita pergunta — ordena, baixo e
ameaçador. O hálito de álcool atinge meu rosto e revira meu
estômago vazio. — Você se sente parte da Timoria?
— Claro que sim.
— É mesmo? Já se perguntou sobre o motivo de Alessandro
nunca ter deixado você chegar muito perto da Vendetta?
O questionamento é tão esquisito que me faz paralisar por
um segundo. Embora eu esteja com a visão um pouco desorientada,
consigo visualizar com clareza a maldade transbordando pelas íris
escuras.
— Não sei onde quer chegar com essas perguntas idiotas,
Perkins — sussurro.
Estou fraca e mole. Não sei quanto tempo mais aguentarei
ficar acordada. Se esses filhos da puta não cuidarem do meu
ferimento no peito, vou pegar uma infecção letal. E acredito que seja
exatamente esse o objetivo.
— Alessandro sempre foi super protetor com você quando o
assunto era a Vendetta, não é? — Ri baixo, deliciando-se com meu
sofrimento visível. Por mais que eu tente não demonstrar, já não
consigo mais disfarçar as reações naturais do corpo. — E você acha
normal, Lyanna?
— Somos rivais há séculos — respondo, engolindo o nó na
garganta e sentindo a boca seca.
— Não, não. — Sacode a cabeça e estala a língua. — No
fundo, você sabe que não é só isso, não sabe? E antes que pense
algo errado, já adianto que, não, ele não sabe que você fode a
“inimiga de séculos” há anos. É bastante chocante o quão burro
aquele homem consegue ser.
Esforço-me para tentar compreender suas insinuações, mas
não chego a lugar nenhum. Ainda que seja estranho tê-lo falando
essas coisas, não é uma completa mentira. Minha intuição sempre
cutucava minha cabeça quando Alessandro ficava enlouquecido e
fora de si apenas com a possibilidade de eu estar próxima da
Vendetta. No início, achei que era pela óbvia rivalidade enraizada
entre nós, mas passou a não ter sentido depois que fiz vinte anos e
ele continuou me tratando como uma criança indefesa.
Foi aí que desconfiei que ele sabia sobre meu namoro com
Alessia. No entanto, se soubesse, de jeito nenhum permitiria que
continuássemos juntas. Teria me punido e exigido que
terminássemos.
Então, não fazia sentido. Mas decidi ignorar.
Até agora. Até Logan Perkins, alguém com quem eu nunca
tinha trocado uma palavra, mencionar. Se até ele sabe disso, outras
pessoas também perceberam? E por que é algo tão importante a
ponto de trazer à tona?
“Antes que pense algo errado, já adianto que, não, ele não
sabe que você fode a “inimiga de séculos” há anos.”. Como diabos
ele pode ter certeza?
— Pare com esse joguinho — peço.
Pisco forte, lutando contra o desejo de me entregar à
escuridão. Os calafrios são tão intensos que sinto como se
estivesse congelando. Estou tão atordoada que mal o percebo colar
a boca ao meu ouvido para a voz sádica sussurrar:
— Ele não queria que você descobrisse a verdade, Lyanna,
mas chegou a hora de você saber.
“Eu sei que não entendo
Como o seu amor consegue fazer o que ninguém mais
consegue
Está me fazendo parecer tão louca agora
Me faz esperar que você me salve agora”
Crazy in Love | J2 feat. Wulf
 

5 anos atrás
 
 
A vida nunca esteve tão boa.
As coisas andam bem na máfia, a relação com meu pai está
cada dia melhor e tenho uma namorada por quem sou
completamente apaixonada. Na verdade, “apaixonada” não é uma
palavra boa o suficiente para descrever o que sinto por ela. Nosso
idioma ainda não inventou uma expressão capaz de definir o que
sentimos uma pela outra.
“Amor” parece pequeno demais comparado ao que existe
entre nós. Alessia vive por mim e vice-versa. Ela mataria e morreria
por mim e eu faria o mesmo por ela. Nossa relação pode parecer
louca demais para aqueles que olham de fora, sobretudo quem não
nasceu e cresceu no submundo.
Nosso relacionamento é claro e perfeito para nós. E isso é
tudo que me importa.
— Você é tudo para mim, principessa — ela sussurra,
conduzindo-me em uma dança lenta no meio da sala. Sorrio grande,
os braços enrolados em seu pescoço enquanto os dela me apertam
contra si pela cintura. — Nunca vou conseguir viver sem você.
— Nunca vai precisar — garanto, apreciando a música
romântica e lenta que sai da televisão. O cômodo está iluminado
pelas velas espalhadas, deixando o lugar ainda mais aconchegante
e sensual. — Você não vai se livrar de mim, Romano. Está presa
comigo para o resto da sua vida.
Ela devolve o sorriso, guiando os lábios úmidos até minha
mandíbula. Deposita beijos demorados enquanto sussurra entre um
selar e outro:
— Quero estar presa a você até depois da morte, Lyanna.
Quero te chamar de “minha” em todas as próximas vidas e em todos
os universos existentes.
Fecho os olhos, extasiada, e suspiro em deleite. Após
algumas taças de vinho, meu corpo já está completamente entregue
a qualquer palavra e gesto vindo dela. Não é necessário muitos
segundos para me deixar à sua mercê de todos os jeitos possíveis.
Sua boca alcança a minha e ela pergunta num tom lascivo,
embora já saiba da resposta:
— Você é minha, não é?
Sua respiração quente bate contra meu queixo e me provoca
um arrepio na coluna. Eu assinto, apertando meu corpo contra o
dela.
— Use as palavras, Lyanna.
— Eu sou sua e você é minha.
Sinto-a sorrir e uma mão segura minha nuca, apertando de
leve os fios de cabelo.
— Eu sou sua, principessa. Cada partícula do meu corpo
pertence a você.
Nunca pensei que Alessia Romano, a assassina mais temida
do submundo e a Executora da máfia mais cruel do país, fosse uma
romântica incurável. Não há um dia em que ela não me faça derreter
com palavras amorosas, mesmo quando estamos brigadas.
Na nossa última discussão, Alessia enviou cinquenta buquês
de tulipa, minha flor favorita, ao meu apartamento. Em cada buquê
havia um pequeno cartão com o trecho de alguma música que a
fazia lembrar de mim ou de nós.
É impossível passar muito tempo brigada com ela.
— Você não faz ideia do quanto eu te amo — sussurro. —
Amo todos os nossos momentos e nossa história. Acho que eu já
amava você mesmo quando tentava me convencer de que te
odiava. Mesmo quando eu passava todas as noites dizendo a mim
mesma que você não era uma boa pessoa e eu não poderia te ver
nunca mais, eu já te amava.
Seus dedos se entrelaçam em minhas madeixas e um
arquejo escapa de seu peito ao mesmo tempo que os lábios úmidos
deslizam pelos meus. Amo tudo sobre ela, mas sou absolutamente
obcecada pela forma como Alessia reage às minhas declarações. É
como se fossem tudo que ela precisasse para continuar respirando.
— Quero que exista um “felizes para sempre” para nós, amor
— continuo. — Não sei se a felicidade é algo possível de se ter no
submundo, mas gosto de acreditar que nosso amor é bonito demais
para acabar.
— Nunca consegui enxergar um futuro para mim nesse
mundo, Lyanna. Cresci com a ideia de que morreria cedo e não me
importava, porque a morte sempre foi a minha única certeza — ela
devolve o tom baixo. — Mas desde que te conheci, vejo meu futuro
em seus olhos. Vejo nossa casa, nossos filhos e nossa vida inteira
juntas. Você me mostrou que vale a pena viver se estou vivendo
com você.
Deus, eu a amo tanto.
— Você é meu passado, meu presente e meu futuro. Essa se
tornou a minha nova certeza, principessa.
Sinto as lágrimas se acumulando nos olhos e a mandíbula
doendo pela intensidade com que estou sorrindo. Incapaz de
responder à altura, a única coisa que consigo fazer é beijá-la da
forma mais urgente e desesperada possível. Porém, um beijo não é
suficiente para expressar o que sinto por ela. Acho que nada é.
Meu corpo parece prestes a explodir, o coração bate
acelerado e quero chorar porque a amo tanto, tanto, tanto. Nunca
senti nada parecido e nunca pensei que algum dia sentiria. Na
verdade, sequer sabia que um sentimento desse tipo existia.
Quando ficamos sem fôlego, nos afastamos. Abro as
pálpebras e encontro as pupilas dilatadas me olhando como se eu
fosse a única pessoa existente no mundo. Como se eu fosse o seu
mundo.
— Existe um “felizes para sempre” para nós — ela sussurra,
direcionando a boca para o meu pescoço. Começa a beijar e chupar
minha pele devagar, arrepiando-me por inteira. Aperto os cabelos da
sua nuca, abro as pernas e ela entende o recado, colocando a sua
entre as minhas. — Não importa o que eu precise fazer ou quem
precise matar, eu prometo a você, amor, que existe um “felizes para
sempre” para nós.
— Promete? — indago, virando a cabeça para lhe dar mais
acesso.
— Prometo.
Não há nada que eu queira mais do que ter essa promessa
cumprida.
 

 
Levanto-me da cama, tomando cuidado para não cair por
conta das pernas bambas. Estou destruída. O corpo suado e
trêmulo, o cabelo bagunçado e sem forças para qualquer coisa.
Mal consigo dar um passo antes de sentir Alessia me
abraçando por trás e plantando um beijo em meu pescoço. Suspiro
e abro um sorriso fraco, permitindo que ela me guie até o banheiro.
— Você parece cansada — provoca, rindo baixo em meu
ouvido. — Já foi menos fraquinha, Bellini.
Reviro os olhos e tento afastá-la sem sucesso. Entramos na
banheira e ela encosta a cabeça na parede enquanto me aconchego
entre suas pernas. Repouso a cabeça em seu peito e fecho os
olhos, apreciando a água quente e o calor de seu corpo contra o
meu. Estou fraca e bastante cansada depois de passarmos três
horas transando loucamente.
Quase ronrono quando Alessia começa um cafuné gostoso,
usando a mão livre para acariciar minha cintura. Viro-me de lado e
enfio o rosto em seu pescoço, abraçando seu tronco com um dos
braços. Coloco uma perna em cima da dela, fecho os olhos e me
encolho como uma gatinha carente em seu colo.
— Amanhã tem um racha em Carson City — sua voz
aveludada sussurra em meu ouvido. — Do moto-clube do Scott. O
que acha da gente ir?
Ocorre um estalo em minha cabeça e me lembro de que
pretendia contar a ela sobre o evento, o qual sumiu da minha
cabeça no instante em que pisamos na nossa casa e vi o jantar
surpresa que ela preparou para mim.
— Não posso sair amanhã, amor. Vai rolar o jantar de
aniversário do casamento dos meus pais.
— Ah, é? — questiona, soando surpresa. — Eu não fazia
ideia. A data não foi na semana passada?
— Sim, mas vamos fazer o evento amanhã para evitar algum
ataque.
— Muitas pessoas vão?
— Não. É fechado e meio que secreto.
Ela fica em silêncio, o que me faz abrir os olhos. Ergo o
queixo e encontro seu olhar pensativo, perdido em meio à água que
nos engloba. As íris verdes encontram as minhas e franzo as
sobrancelhas ao notar algo diferente nelas.
— O quê? — pergunto.
— Nada, é só que… — Um suspiro pesado escapa do peito.
— Às vezes, fico imaginando como seria se pudéssemos aparecer
em eventos assim, juntas. Como um casal.
Eu murcho no mesmo segundo. Percebendo minha
chateação, ela complementa:
— Não fique triste, principessa. Não era minha intenção te
chatear. É só que eu ando pensando muito sobre como seria se
vivêssemos em uma realidade diferente.
— Fora do crime — concluo, surpresa.
Ela assente e abre um sorriso fraco.
— Eu não sabia que você pensava sobre isso — revelo. — O
submundo é você, Alessia. Não existe outra realidade.
— Eu sei. Não estou dizendo que quero sair, porque não
quero e nem seria possível. Como você acabou de falar, o
submundo sou eu. É inseparável. Só ando sonhando acordada com
todas as realidades alternativas que poderíamos viver juntas.
— E qual delas é a sua favorita? — indago, tentando
amenizar o clima.
Não posso negar que vivemos em uma bolha ilusória, quase
em um conto de fadas. Porém, foi essa bolha que permitiu que
nosso relacionamento durasse anos. Se deixássemos a
racionalidade e a realidade falarem mais alto, não teríamos
continuado com seja lá o que tínhamos no início e chegado até aqui.
— Uma das minhas favoritas é a na qual você é uma
supermodelo e eu sou um astro do rock. — Arqueio as
sobrancelhas. — Nós moramos em Nova Iorque e temos duas
cachorras, uma Dobermann e uma Dachshund.
— Uau! — exclamo, rindo. — Quem diria que a sanguinária
Alessia Romano fantasiasse sobre uma vida civil. Estou muito
surpresa, não vou negar.
— Pare com isso — pede, revirando os olhos. — Não me
faça sentir idiota.
— Não estou! Fiquei surpresa, mas eu amei saber. Confesso
que consigo me imaginar sendo modelo e você, uma rockstar. Acho
que é muito nossa cara.
O sorriso que delineia seus lábios me derrete inteira. Perco-
me em seus olhos e caímos num silêncio confortável, suas palavras
ecoando em minha cabeça enquanto minha mente visualiza o
cenário dito por ela.
Ter uma vida normal seria bom. Passar os dias sem mortes,
sangue, drogas e lutas seria… diferente. Não consigo imaginar cem
por cento, uma vez que já nasci imersa em tudo isso e nunca
conheci outra realidade. No entanto, acredito que se fazemos
funcionar em meio a essas coisas, também faríamos funcionar em
qualquer outra vida “normal”.
— Eu gostaria que você estivesse lá amanhã — sussurro,
quebrando o silêncio. Engulo em seco e abaixo o olhar, observando
nossas peles grudadas. — Sei que não é possível, mas me faria
feliz.
— Me faria muito feliz também, principessa — ela devolve o
tom baixo, afagando meu rosto e a mandíbula. — Eu aguentaria
horas e horas aqueles idiotas da sua máfia apenas para te ter ao
meu lado.
Rolo os olhos e a lanço um olhar repreensivo. Ela ri,
provocativa, e me dá um selinho.
— Estou brincando. Não muito, porque eles são mesmo
insuportáveis.
— É sério que você quer falar sobre criminosos
insuportáveis?
— Qual é, linda. A Vendetta é um amor.
Arregalo as pálpebras e solto uma gargalhada. Ela se junta a
mim e me puxa ainda mais para perto, enfiando o rosto em meu
pescoço. Enlaço o seu e monto em sua perna, sentindo um arrepio
na coluna quando meu clitóris — ainda sensível — escorrega pela
sua pele.
Nossa facilidade em mudar o clima de um segundo para o
outro é magnífica.
— Você é muito boa em fazer piadas — debocho.
— Sou muito boa em outras coisas também.
Mordo o lábio inferior e sorrio, balançando o quadril devagar
para trás e para frente. A mão firme aperta minha cintura e a outra
agarra meu cabelo.
— Acabamos de foder e você já quer que eu coma sua
boceta de novo, Lyanna? — indaga, numa entonação tão erótica
que me faz apertar sua coxa entre minhas pernas.
— Na verdade, não — respondo, segurando-a pelo pescoço
com força para afastá-la. Quando nossos olhos se cruzam
novamente, vejo o quanto ela gostou do que fiz. — Eu quero comer
a sua agora.
A diversão em seu rosto desaparece. As pupilas dilatam e o
peito infla numa respiração profunda que ela solta antes de me
puxar para um beijo desesperado.
Tudo acontece rápido demais. Saímos da banheira às
pressas, voltamos ao quarto e eu a empurro para cama sem nos
importar com o fato de que estamos molhando tudo. Alessia tenta
me puxar para outro beijo, mas dou um tapa em seu pulso e ela
sorri.
— Abre suas pernas para mim — ordeno.
E ela obedece.
Agarro suas coxas, mantendo-as separadas, e umedeço os
lábios ao ver sua boceta avermelhada. O clitóris ainda está inchado
por conta do sexo que fizemos há menos de dez minutos, mas
coloco a língua para fora e dou uma lambida devagar em toda a
extensão. Ela ofega alto e agarra meus fios, pressionando meu
rosto para baixo.
Rio e levanto o olhar, vendo-a com o cotovelo apoiado na
cama e o tronco erguido para me observar, como sempre faz.
Abocanho seu clitóris e o chupo de leve, deslizando a mão livre pela
sua entrada molhada. Finjo que vou meter os dedos e os afasto,
recebendo um aperto ainda mais forte no cabelo.
— Sua filha da puta, não me provoque — diz entredentes,
autoritária.
Com um sorriso ladino, começo a lamber e chupar o clitóris
inchado. Faço devagar, do jeito que ela gosta, e me esfrego no
lençol quando vejo seus olhos se revirando e a cabeça caindo para
trás. Um gemido alto e delicioso escapa dos seus lábios,
misturando-se ao barulho de minha boca devorando sua boceta.
— Mete os dedos em mim — pede, a voz trêmula e fraca.
Enfio dois de uma vez e ela geme mais alto, caindo no
colchão e dobrando a coluna. Levo a mão livre até seu seio,
apertando o mamilo enrijecido ao mesmo tempo que estoco em sua
entrada. As duas mãos seguram minha cabeça, me impedindo de
afastar o rosto.
— Quente pra caralho — sussurro, mordiscando o clitóris. —
Eu poderia morrer comendo essa sua boceta gostosa.
A visão do corpo arqueado, as tatuagens no pescoço e os
peitos redondos me enlouquece e me deixa encharcada. Suas
pernas se arreganham ainda mais à medida que faço movimentos
circulares com a língua.
— Pare de se esfregar no colchão — ela exige, e percebo
que estou me fodendo contra o lençol. — Sou eu quem vai te fazer
gozar.
Nego com a cabeça e continuo. Alessia agarra meus fios e os
puxa para trás com força, arrancando um grito de minha garganta.
Sigo metendo nela enquanto nos olhamos.
— Me deixa voltar a chupar você — peço, desesperada e
ofegante. — Por favor.
Aumento a velocidade das estocadas, dobrando-os para
atingir seu ponto sensível, e ela tem o primeiro espasmo. Eu poderia
gozar agora, sem ao menos me tocar, só ouvindo o barulho dos
meus dedos enterrando rápido em sua entrada.
— Vai ser uma boa garota e me obedecer? — ela pergunta.
Eu assinto e sou empurrada para baixo novamente. O atrito
dos meus mamilos inchados contra o tecido fino me faz choramingar
em seu clitóris enquanto o chupo com vontade. Alessia geme cada
vez mais alto e começa a rebolar em minha boca. Os espasmos
fazem seu corpo convulsionar, as pernas fechando-se e apertando
minha cabeça, então sou obrigada a segurar sua cintura para
mantê-la quieta.
Mal reparo quando volto a me esfregar no colchão,
desesperada para gozar junto com ela. Porém, Alessia percebe e
puxa meu rosto para longe mais uma vez.
Um tapa forte estala em minha bochecha e solto um gemido
alto. Aperto os olhos, sem parar de roçar no lençol.
— Eu disse para me obedecer.
Sou puxada para cima e abro a boca para protestar, mas não
tenho tempo. Ela me vira e me empurra até que eu esteja sentada
em sua cara, de frente para o seu corpo, e lambe toda a minha
boceta de repente. Ofego em surpresa e me inclino para baixo,
afastando suas pernas e repetindo seu ato. Nossos gemidos se
misturam enquanto nos chupamos ao mesmo tempo, meus dedos
enterrando em sua boceta e os dela na minha. Sinto minha
lubrificação escorrendo e imagino seu rosto todo melado por minha
causa,
— Rebola na minha cara — ela pede.
Assim eu o faço, rebolando em sua boca. Meus espasmos
ficam tão fortes que aperto sua cabeça entre minhas pernas,
sufocando-a, e não consigo evitar que meus dedos se afundem
mais forte e rápido. Alessia treme debaixo de mim, apertando
minhas coxas para me manter no lugar.
— Prefere assim? — pergunta, desacelerando a língua. —
Bem devagar?
Minhas pálpebras tremelicam e praguejo baixinho por ela ter
diminuído a velocidade quando eu estava tão perto.
— Rápido. Mais rápido, por favor.
Apenas para me torturar, ela não realiza meu pedido. Dá uma
lambida vagarosa em meu clitóris e os dedos entram devagar,
curvando-se e atingindo o ponto G. Minha respiração falha e
choramingo alto, roçando os mamilos duros em sua barriga. Cada
centímetro de mim está sensível e excitado, próximo demais do
orgasmo que Alessia não me deixa ter.
— Me fode direito, porra! — chio, irritada.
Ela ri baixinho e estala um tapa forte em minha nádega
direita.
— Não seja uma putinha impaciente. Você vai gozar quando
eu permitir.
Se ela quer me provocar, vou devolver na mesma moeda.
Tiro os dedos dela e deslizo as pontas nos pequenos lábios,
espalhando seu líquido quente. Coloco-os na boca e provo seu
gosto, fazendo questão de que ela ouça a sucção e saiba o que
estou fazendo. Em resposta, ela chupa meu clitóris com força e eu
aperto os olhos, segurando um gemido.
Depois, levo a mão até minha boceta e tento me tocar, mas
Alessia grunhe e empurra o toque para longe.
— Já que você não é capaz de me fazer gozar, tenho que
fazer sozinha — falo, sorrindo com o lábio entre os dentes.
A provocação surte efeito imediato, pois ela volta a acelerar e
meu semblante divertido morre com o espasmo forte. Me esforço
para não fechar os olhos e estoco rápido em sua entrada,
trabalhando em seu clitóris com a língua. Estamos em sintonia,
tremendo e gemendo ao mesmo tempo. Alessia começa a rebolar
em meus dedos, fodendo a si mesma, e me esfrego desesperada
em sua língua.
Percebo que estamos quase gozando quando suas paredes
internas me apertam e ela estala um tapa forte em minha nádega,
gemendo contra minha boceta. Depois, bate mais forte ainda na
esquerda. A ardência é deliciosa e me obriga a apertar os olhos
enquanto fricciono seu clitóris de um lado para o outro depressa.
— Goza pra mim, Lyanna — sua voz ofegante ordena.
Com um gemido alto, finco as unhas em suas coxas e
alcanço o orgasmo junto a ela. Alessia treme por inteiro e começa a
esguichar, molhando o lençol, mas não paro. Mesmo fraca, continuo
estocando em sua boceta e abocanho para engolir seu gozo. Aperto
as pálpebras e afasto o quadril, sensível demais para permitir que
ela siga me chupando.
Quando nossos orgasmos acabam, deito a cabeça em sua
perna e saio de órbita por alguns segundos. Gozei tão forte que tudo
ao redor parece desaparecer e não consigo sequer ouvir minha
própria respiração.
Sinto-a me segurar e me deitar na cama. Com muito esforço,
abro os olhos e encontro seu sorriso de lado. Alessia fica tão bonita
pós-sexo que eu facilmente transaria mais uma vez se não
estivesse tão destruída.
— Não sinto meu corpo — confesso num sussurro. — Mas
sinto minha boceta latejando.
Ela gargalha, balança a cabeça e beija minha testa.
— Vou buscar água para você, sua cachorra safada.
Dou um tapa em seu ombro e ela se levanta. Rio alto ao vê-la
cambaleando até a porta, quase caindo por conta das pernas
bambas. Depois que ela sai do meu campo de visão, enterro a
cabeça no travesseiro com um sorriso bobo.
Um som alto me assusta e eu ergo a cabeça. Solto um
palavrão e estico o braço para pegar meu celular, vendo o nome de
Kai na tela.
— O quê?
— Uau, quanta simpatia — ele brinca. — Hora ruim?
— Fale logo, homem.
— Só liguei para perguntar se você está no seu apartamento.
Quero repassar algumas coisas sobre o jantar de amanhã.
Franzo o cenho.
— Por quê? Já repassamos mais cedo.
— Bem, não sei. O chefe pediu para reforçarmos a
segurança, então precisamos repassar novamente.
Meu pai pediu para reforçarmos a segurança, sendo que ela
já está reforçada o suficiente. Haverá pelo menos cinquenta
soldados protegendo a mansão, além dos que estarão dentro do
salão de eventos.
— Esse silêncio significa que você está desconfiada — meu
melhor amigo diz, e ele está certo.
— Você precisa admitir que é um pouco estranho ele pedir
tanto reforço num evento secreto e pequeno.
Sento-me na cama e encosto a cabeça na cabeceira. Alessia
retorna ao quarto com um copo de água na mão e parece confusa
ao me ver no telefone.
— Você conhece seu pai, Lyanna. Ele age estranho às vezes.
Kai não está errado. Meu pai tem algumas atitudes esquisitas
de vez em quando, porém, nunca questionei. Acredito que ele saiba
o que é melhor para a nossa máfia e como nos proteger.
Alessia senta ao meu lado e me estende o copo.
— Não estou no meu apartamento — digo, bebendo a água
em um gole só.
— Está onde, então?
— Boa noite, Kai — respondo, sabendo que ele vai se corroer
de curiosidade e preocupação.
— Ah, entendi, você está com ela — conclui, soando
descontente.
— Amanhã cedo vou até o seu apartamento — mudo de
assunto, ignorando-o. — Boa noite, Kai.
Desligo antes que ele possa reclamar.
— Algum problema? — ela pergunta, acariciando meu braço
e beijando meu ombro.
Nego com a cabeça, embora sinta em meu âmago que
existe, sim, um problema.
Pelo resto da noite, não consigo parar de pensar no pedido
do meu pai. Tento pregar os olhos para dormir inúmeras vezes, mas
nem mesmo o cansaço extremo é capaz de desligar a minha cabeça
do pressentimento ruim no peito.
“Sinta a fúria chegando
As resistências estão se esgotando
Nenhum lugar para correr de todo esse estrago
Nenhum lugar para se esconder de toda essa loucura”
Madness | Ruelle
 

 
 
Quatro dias.
Quatro malditos dias se passaram e ainda não encontramos
Lyanna.
Sinto que estou apenas sobrevivendo no automático. Faz
dias que não durmo mais do que duas horas e as únicas — poucas
— refeições que fiz foram por pura insistência de Yuna, que não
saiu do meu lado nem quando prometi que a expulsaria da máfia se
ela não me deixasse em paz. Sei que ela não é culpada de nada,
mas não estou sã. Meu cérebro e corpo não funcionam mais.
As crises de pânico voltaram a ser diárias. Consegui controlá-
las nos últimos anos, porém, desde que Lyanna foi sequestrada e as
coisas parecem não caminhar, as crises se tornaram minhas
melhores amigas. Assim como nos velhos tempos.
Meus dedos trêmulos tentam embaralhar as cartas. Uma ou
outra cai para fora do monte, algo que nunca aconteceu antes e que
demonstra o quão fora de mim estou. Tento distribuí-las na mesa, só
que nem isso sou capaz de fazer. O tremor é tão grande que me
apavora, obrigando-me a jogar o baralho na superfície e juntar as
mãos uma na outra perto do peito.
Solto uma respiração profunda, encaro meu colo e sinto todo
o corpo tremendo na cadeira. Embora a ardência nos olhos seja
quase insuportável, não consigo fechá-los.
Porque, quando os fecho, vejo Lyanna morta. Vejo os
capangas de Oliver abusando dela e deixando-a à beira da morte.
Vejo todas as atrocidades pelas quais ela está passando, sozinha,
há quatro dias.
Minha primeira semana foi a pior. Eles me espancaram todos
os dias, me deixaram sem comida e água, enfiaram minha cabeça
debaixo d’água todas as noites e me humilharam verbalmente em
qualquer oportunidade.
Eles estão fazendo o mesmo com Lyanna, se não pior. Estão
aproveitando o fato de que o final desta guerra está próximo e não
há nada mais a perder, já que todos sabem que vou dar a morte
mais lenta e dolorosa possível para cada um. Eles sabem que
precisam usar o tempo que lhes resta porque no segundo em que
encontrá-los, não existe a menor possibilidade de sobreviverem em
minhas mãos.
A náusea rasteja pela garganta e um soluço me escapa.
Aperto as mãos juntas em punho, fricciono os lábios para reprimir o
enjoo e sinto o peito apertado. Minhas entranhas parecem queimar
enquanto puxo o ar e nada acontece.
Não consigo respirar.
“— Quando nós pegarmos aquela vadiazinha… — Oliver ri
com perversidade. A cela está rodando e minha cabeça lateja
devido à pancada forte que ele me deu na cabeça. Tento respirar,
mas acabo tossindo sangue. Sinto muito, muito frio. — Vou usar
aquela boceta e depois cortar a vagabunda em pedacinhos. Me
diga, Alessia, qual parte do corpo você quer receber numa caixa de
presente?”
Fecho os olhos, agarro a camiseta e me concentro no tecido.
Na textura fina e macia.
Ouço meu nome ao longe e tenho a impressão de que uma
mão toca meu ombro, mas não sei o que está acontecendo. Saio da
realidade por alguns segundos enquanto olho para o nada. Meu
corpo está aqui, na sala do apartamento, só que minha cabeça está
longe.
É uma técnica que desenvolvi durante os três anos sob o
controle da Holy Devils: me desligar desse mundo até a crise
diminuir.
— Alessia! — um grito me traz de volta.
Pisco forte e percebo que a técnica falhou novamente, assim
como nos últimos dias. Estou ainda mais trêmula do que antes, a
garganta fechada e os pulmões vazios. As lágrimas acumuladas
deixam minha visão embaçada.
“Logan chuta minha costela com força, mas consigo me
manter sentada. As cordas esfolam meus pulsos conforme faço
força involuntariamente a fim de me liberar. É instintivo que meu
corpo queira revidar. Se eu não estivesse amarrada, já teria
desfigurado o rosto desse filho da puta.
O pensamento de sua cabeça esmagada me faz sorrir.
— Parece que ela está ficando ousada, Perkins — Oliver
debocha, parado em pé na minha frente.
Minha face ainda está coberta com o sangue seco da porrada
que eles me deram mais cedo. Mantenho os olhos fixos em Duncan,
sem desviar ou piscar. No começo, eu permanecia com o olhar
baixo porque se olhasse para qualquer um deles, perderia a cabeça.
Agora, não mais. Agora eu sustento o contato visual para
mostrar que eles podem fazer o que quiserem comigo e não vou me
importar. Já estou quebrada o suficiente. A partir de agora, as coisas
me divertem.
Pensar na minha vingança me diverte.
Oliver agacha e seu outro capanga, Jeremiah, ocupa o meu
lado esquerdo. Estou cercada por três brutamontes e não vejo a
hora de matá-los.
De repente, um soco forte atinge minha bochecha e a cabeça
gira depressa com o impacto. O sangue fresco em minha boca voa
para longe e o assisto colorir os sapatos do desgraçado número 3.
Viro a cabeça devagar, encontrando os olhos escuros de
Duncan mais uma vez. Sinto os dentes ensanguentados e a
ardência no corte recém-feito na boca.
Então, abro um sorriso grande.”
Sou arrancada das lembranças pelo que acredito ser Yuna
exclamando:
— Alessia, fale comigo!
Não tenho certeza se realmente há alguém aqui, já que a voz
some e tudo que ouço são zumbidos. Fecho os olhos de novo,
caindo para frente de maneira involuntária. Minha cabeça bate
contra a mesa, mas não sinto nada.
Quando estou prestes a ceder à inconsciência, escuto um
berro:
— Alessia!
Pisco devagar, tentando acordar, e vejo um vulto à minha
frente. Parece o formato de um rosto, deformado e sem definição,
quase vazio. Acho que estou alucinando, então volto para a
escuridão.
— Não, não, não! Abra os olhos! — aquela maldita voz ecoa
de novo.
Sinto alguma coisa colidir contra o meu rosto. Piscando
algumas vezes, começo a notar que são… tapas? Não tenho tempo
para raciocinar, pois sinto o corpo sendo puxado para, logo em
seguida, levantado… no ar?
Não entendo nada do que está acontecendo.
Enxergo tudo de cabeça para baixo segundos antes de ser
colocada em uma superfície macia, a qual presumo ser o sofá.
Talvez as coisas estejam começando a fazer sentido. O lugar ao
meu lado afunda e dedos gelados tocam minha face.
— Alessia, consegue me ouvir? Olhe para mim!
“O homem do outro lado do ringue me olha de forma
intimidadora, convicto de que vai me assustar com esse olhar
assassino estúpido. Para o azar dele, estou em um péssimo dia.
Quando o árbitro autoriza o início da luta, o idiota vem para
cima de mim. Não estou com a menor paciência esta noite e quero
desesperadamente sair daqui, então sou ágil em desviar e atingi-lo
no estômago. Levo um soco no rosto e um chute na barriga, mas
sou rápida em me recompor. Nós trocamos alguns golpes, alguns
mais brutos do que outros, até que me canso.
Normalmente, uma luta com alguém tão grande e forte como
ele duraria cerca de oito minutos. No entanto, Duncan fez questão
de me enfurecer pra caralho hoje. E como não posso descontar nele
ou nos seus capangas, esse infeliz foi o escolhido para sofrer as
consequências da minha raiva.
Limpo o canto ensanguentado da boca com as costas da
mão e abro um sorriso divertido, recebendo uma expressão confusa
em resposta. Ele avança, mas não lhe permito dar muitos passos;
bato minha cabeça na dele com força e ele cambaleia para trás. A
leve tontura não me impede de aproveitar o momento vulnerável
para iniciar uma série de murros em sua cara. Ele tenta revidar, só
que perde o equilíbrio e acaba caindo.
Esmurro de novo, de novo e de novo. Tudo é um borrão
depois disso.
Quando percebo, estou coberta de sangue e urrando como
um animal enquanto afundo os punhos num rosto desfigurado.
Mais tarde, quando me tranca na cela, um Oliver contente e
bem mais rico do que era antes da luta diz:
— Bom trabalho, Alessia. Parece que Lyanna vai viver por
mais um dia.”
Tento abrir a boca seca e parece que não movo nem um
centímetro.
Estou tão, tão cansada. Não quero continuar acordada. Não
quero encarar a realidade. Não quero passar mais um dia sem
notícias dela. Não aguento mais a culpa que estilhaça meu coração.
É tudo culpa minha. Ela está sendo torturada e humilhada por
minha causa. Levou uma facada no peito porque eu não fui capaz
de deixar a porra da vingança de lado.
Deus, por favor, não a deixe morrer.
Por favor, Deus, a proteja.
— Alessia, não feche os olhos! Olhe para mim!
— N-não — sussurro, sem saber se realmente falei ou se
estou alucinando.
— Sei que você está me ouvindo, então preste atenção.
Lyanna não está morta, estou te prometendo que não. Isso significa
que nós vamos resgatá-la e vamos acabar com cada um daqueles
filhos da puta, me entendeu? Você vai ter a sua vingança merecida,
custe o que custar. Eu juro pela minha própria vida, porra. Não há
ninguém melhor do que você para lidar com esta guerra e liderar a
nossa máfia. A Vendetta precisa de você; da Alessia Romano que
faz qualquer um mijar na calça com um simples olhar. Todos nós
precisamos de você. Eu, Jayden, Sienna e principalmente Lyanna.
Você é a bastarda mais forte que eu conheço, inferno! Por favor,
abra os olhos ou vou continuar falando sem parar.
Respiro fundo. Uma, duas, três vezes. Concentro-me em
suas palavras e na confiança que elas me transmitem. Faço esforço
para abrir as pálpebras, até que consigo mantê-las abertas por
tempo suficiente para enxergar o rosto de Yuna tomando forma.
Vejo seus olhos arregalados em completo pânico, a pele pálida e a
respiração ofegante.
— Isso, continue assim. Olhe para mim, tudo bem? — pede,
tocando minha mandíbula.
Sinto muito, muito frio. Será que Lyanna está sentindo frio
também?
— Ela não pode… morrer — sussurro.
Limpo a garganta e umedeço os lábios com a língua. Tento
me mover para sair do sofá, porém ela segura meus ombros e me
proíbe. Não posso ficar nem mais um segundo aqui, parada,
enquanto o meu amor sofre.
— Me deixe ir — suplico.
Um pouco mais consciente, sou capaz de sentir as
bochechas cobertas de lágrimas. Soluço baixinho, olhando-a com
desespero.
— Respire, Alessia. Respire comigo.
Yuna me guia num exercício de respiração, o qual tento
seguir o máximo possível. Só que é difícil respirar. O pânico ainda
nubla noventa por cento do meu cérebro.
— Preciso encontra-la — digo, engolindo o nó na garganta.
— Eles vão matar… vão matar a Lyanna. Preciso…
— Alessia, pare — ela me interrompe.
Balanço a cabeça em negação. O soluço que me escapa é
alto e sôfrego. Aperto as pálpebras e não consigo impedir que mais
lágrimas escorram.
— Estou com tanto medo — confesso em meio ao choro
descontrolado. Minha amiga me puxa para perto e me abraça pelos
ombros. — Ela vai morrer e a culpa vai ser minha. O amor da minha
vida vai morrer, Yuna. Não vou conseguir viver sem ela. Não existe
vida sem ela. Não existe! Não posso…
— Respire — repete, afagando minha coluna. — Ela não vai
morrer e você sabe disso, Ale. É só o seu pânico falando mais alto,
mas você sabe que nós vamos encontrá-la. Eu acabei de falar com
Chloe e ela disse que um dos capangas de Oliver disse uma coisa
sobre os planos da gangue com Lyanna. Tente se acalmar para nós
conversarmos.
Ergo a cabeça de imediato. Tudo paralisa por um instante e
até me esqueço de que estou sem fôlego.
— Quem? O que ele disse?
— Ele disse um nome. Não sabemos o que…
Sua fala é interrompida pelo barulho da porta sendo aberta.
Levanto-me no automático e acabo cambaleando por conta das
pernas fracas. Yuna me segura pela cintura e me mantem em pé.
Quando vejo as duas figuras que aparecem na porta da sala,
tenho certeza de que vou acabar morrendo com um ataque
cardíaco.
— O que diabos vocês estão fazendo aqui?! — berro, furiosa.
Limpo as bochechas molhadas para não parecer tão destruída. —
Você trouxe a minha irmã para Los Angeles, porra?! Perdeu a
merda da sua cabeça, seu idiota?!
Estou furiosa pra caralho. Não acredito que Jayden trouxe
Sienna para o único lugar onde não permiti que ele a deixasse pisar.
Já é o suficiente que eles tenham levado Lyanna, não vou aguentar,
de jeito nenhum, que levem minha irmã também.
— Yuna disse que você não está bem — King começa a se
explicar, hesitante. — Sienna insistiu para virmos e eu também
estou muito preocupado com você, então…
Ainda estou fraca e trêmula, contudo, a raiva se sobressai.
Sobressai tanto que reúno forças de algum lugar desconhecido
dentro de mim para avançar depressa nele.
Vejo tudo vermelho quando meu punho acerta o rosto de
Jayden com força. Minha irmã ofega alto ao lado, chocada, e Yuna
grita atrás de nós. Não consigo dar um segundo murro, pois Sienna
me segura e me empurra para longe.
— Alessia! — ela grita, repreensiva. — Você ficou louca?!
— Eu disse para não virem, King! — devolvo o tom alto,
apontando o dedo indicador para ele. A irritação é evidente em seu
cenho franzido ao me fitar. — Eu disse para não trazer minha irmã
no território deles, caralho!
— Pare de…
— Não! — o interrompo. — Você é o Subchefe da máfia,
Jayden! Quem é que está comandando Las Vegas se você está
aqui, porra?!
— Kane é a figura de maior poder no Conselho, então ele
está…
— O Kane que se foda! O Subchefe é você!
Tento avançar novamente para cima dele e, pela segunda
vez, Sienna se põe à minha frente para me impedir.
— Pare, Alessia! Você já deu um soco na cara dele, pelo
amor de Deus! — Sienna esbraveja, virando-se para tocar a região
golpeada.
Diante do toque carinhoso, vejo os ombros de King caindo e
o semblante mudando. Fica menos hostil, mas, ainda assim, me
encara com frieza.
— Está doendo? — ela pergunta, a voz aveludada e muito
diferente de segundos atrás.
Jayden engole em seco e abaixa a cabeça para capturar as
íris azuis. Tenho certeza de que estou perdendo a porra da cabeça
quando reconheço a forma como ele olha para ela, porque é
idêntica à forma como olho para Lyanna.
Não é possível.
— Estou bem — responde, tão afetuoso que me choca.
— Não, você não está bem! — intervenho, atraindo a atenção
dos dois. — Você está fodido por ter desobedecido à minha ordem,
Jayden. Poderia ter feito qualquer coisa, menos trazido Sienna para
Los Angeles!
Posso jurar que vejo seu polegar acariciando o canto da boca
dela antes de se afastar, dar alguns passos em minha direção e
parar numa distância segura. É inteligente da parte dele, pois ainda
estou furiosa pra caralho e não hesitaria em socá-lo outra vez por
colocar minha irmã em perigo.
— Me deixe ser bem claro com você, Alessia — murmura, em
uma entonação que não me lembro de ele já ter usado comigo
antes. Levanto a sobrancelha, intrigada para saber aonde King vai
chegar com essa frase. — Eu nunca, repito: nunca permitiria que
algo acontecesse com Sienna. Se eu a trouxe até aqui é porque
todos nós estamos preocupados pra caralho com você, em níveis
que não consigo nem explicar. Recebi uma ordem e pretendia segui-
la, como sempre faço com todas, até saber que você está se
matando dia após dia. Só não pensei que seria tão grave ao ponto
de levar um soco na cara da minha melhor amiga. Então, por favor,
antes de me agredir novamente, coloque em sua cabeça que eu
morreria antes que qualquer um encostasse o dedo nela, assim
como você faria o mesmo por Lyanna.
Solto um riso sarcástico.
— Está comparando minha relação com Lyanna com a de
vocês? — Cruzo os braços. — Primeiro, Jayden, me esclareça uma
coisa: o quê vocês têm? Porque se você realmente sente pelo
menos metade do que eu sinto, aí poderei confiar que vai protegê-la
com sua própria vida. Até lá, não ouse colocar minha irmã em perigo
mais uma vez. É uma ordem e não vou tolerar que desobedeça de
novo.
Jayden ri, incrédulo, e sacode a cabeça.
— Você não tem a mínima ideia do que eu sinto, Alessia. Não
faz ideia.
— De fato, não. E pensei que, como sua melhor amiga e irmã
de Sienna, saberia desse tipo de coisa. Mas parece que preciso
descobrir sozinha, depois de socar a porra da sua cara por colocá-la
em perigo.
— Ela não está em perigo — garante com a mandíbula
cerrada. — É melhor se preocupar com você mesma agora. Viemos
te ajudar, não nos matar.
A frase “não preciso de ajuda” fica na ponta da língua, porém,
parece errado dizê-la. Nunca fui o tipo de pessoa que pedia ajuda a
ninguém, só que não posso deixar que meu ego fale mais alto do
que a necessidade de encontrar Lyanna.
Por isso, respiro fundo e me viro para Yuna, que passou todo
esse tempo nos observando em completa descrença. Jayden e eu
nunca discutimos dessa forma — e raramente de qualquer outra,
para falar a verdade —, então ela deve estar chocada.
— O nome que o filho da puta disse. Qual era?
— Que nome e qual filho da puta? — Jay indaga.
Yuna passa as mãos no rosto e suspira. Intercala o olhar
entre nós antes de bufar alto.
— Vou lidar com essa idiotice de vocês dois depois. —
Direciona as íris até mim e diz: — O nome que ele disse foi
“Interitus”.
Meu mundo para de girar. Cada partícula do meu corpo
congela, me deixando imóvel.
Puta que pariu.
Não, não, não, não.
— Significa algo para você, Ale? — Yuna questiona, notando
a reação que eu tive.
Engulo em seco, fecho os olhos e cubro o rosto com as
mãos. Conto até dez mentalmente, o silêncio absoluto nos
engolindo. Os três estão esperando por uma resposta, a qual sai em
uma entonação baixa:
— “Interitus” é o maior clube de luta clandestina da Holy
Devils.
“Há partes de mim que não posso esconder
Eu tentei e tentei um milhão de vezes
Juro por tudo
Bem vindo ao meu lado sombrio”
DARKSIDE | Neoni
 

 
É em momentos como este que agradeço a forma como
Dante me criou. Se tivesse sido diferente, eu não saberia lidar com
um bando de homens arrogantes e misóginos. E agradeço também
à minha habilidade de fingir que sou inabalável quando, na verdade,
tive uma crise de pânico mais cedo.
Nenhum deles sabe disso, no entanto, e nunca saberão.
Convoquei uma reunião extraordinária com o Conselho
principal da Vendetta — o de Las Vegas — e alguns representantes
dos demais Conselhos em Santa Ana, cidade vizinha de Los
Angeles.
Já estava na hora de colocar as cartas na mesa, e foi o que
comecei a fazer quinze minutos atrás. Iniciei pela relação da máfia
com a Holy Devils, a qual deixou todos de testa franzida em
confusão — afinal, as únicas pessoas que sabiam foram mortas por
mim nos últimos anos. Contudo, eles não pareceram tão surpresos
assim com o fato de que há alguém querendo nossas cabeças, já
que obviamente devem ter visto o vídeo de Lyanna sendo
esfaqueada junto do homem mascarado exigindo nossa rendição.
No momento em que expliquei a ligação da Timoria com tudo
isso, o burburinho começou. Eu não esperava que eles fossem
receptivos ou algo do tipo, mas é difícil aguentar tantos homens
arrogantes falando merda ao mesmo tempo.
— Deixe-me ver se entendi — Rafael, filho de um dos meus
tios que assassinei no ano passado, diz. — Dante fazia negócios
secretos com Oliver Duncan, chefe da Holy Devils, e eles
planejavam derrubar a Timoria. Por algum motivo que ainda não nos
foi explicado, o plano deu errado e agora Duncan quer se vingar da
Vendetta.
Quase isso, penso.
É óbvio que omiti diversas partes da história, como o detalhe
de que o principal fator da vingança de Oliver sou eu — pela morte
de Jasmine e o roubo do pen-drive. Contudo, se eles souberem de
tudo, sem nenhuma omissão, nunca conseguirei fazer o que
pretendo. De jeito nenhum o Conselho vai aprovar que eu resgate a
mulher por quem sou completamente apaixonada e com quem
namorei por anos. Ah, é claro, não podemos nos esquecer de que
ela também é herdeira da nossa máfia rival.
Não tenho ideia de como vou convencê-los a aceitar esta
guerra.
— Dante roubou algo de Oliver — falo, mentindo em partes.
— Algo importante e pelo qual ele irá até ao inferno para recuperar.
Se não destruirmos a gangue de uma vez por todas, nossa cidade
corre risco de ser destruída. A Holy Devils pode ser menor em
número, mas são tão bárbaros quanto nossos soldados. Dante
cometeu um enorme erro ao se relacionar com eles e agora resta a
nós lidar com as consequências.
— O que é? — um dos membros do Conselho de Nova
Iorque pergunta. — Essa coisa que Dante roubou.
— Informações — respondo, evasiva. — Informações que
destruiriam todo o crime organizado do país.
Vejo alguns arqueando as sobrancelhas, surpresos, e outros
parecendo amedrontados com a possibilidade.
— Desculpe-me, chefe, mas preciso perguntar — Rafael volta
a dizer. — Acredito que todos nós vimos aquele vídeo que anda
circulando por aí. Não entendo o motivo pelo qual aquela gangue
pensou que nos renderíamos para salvar os Bellini. Há algo que não
está nos contando?
— Qual é a parte que você não entendeu, Rafael? — Jayden
intervém, ríspido e impaciente. — A Timoria tem envolvimento direto
nessa situação. Mesmo se destruirmos Duncan e deixarmos Lyanna
morrer, será a Timoria quem vai nos atacar depois. É tão difícil
assim usar os seus neurônios?
Contenho um sorriso satisfeito, agradecendo mentalmente
por King me ajudar mesmo depois de eu ter lhe dado um soco na
cara. Não trocamos nenhuma palavra desde que saímos do
apartamento há algumas horas, mas pretendo conversar com ele
mais tarde.
E quanto à Sienna, não tenho ideia do que farei. A mera
possibilidade de ela se machucar novamente, logo quando acabou
de se recuperar de uma tentativa de assassinato, me dá calafrios.
Ela sabe se cuidar e se proteger sozinha, mas é impossível não me
preocupar com sua presença em Los Angeles.
— Por que toda essa ignorância, Jayden? — Rafael retruca,
erguendo a sobrancelha. — Já que você se pronunciou pela
primeira vez nessa Reunião, preciso perguntar quem foi o felizardo
que te deu esse olho roxo.
Cerro a mandíbula e vejo Jayden fechando as mãos em
punho. Antes que ele possa levantar e agredir o outro, interfiro:
— Rafael, cale a porra da boca. — Recebo um olhar chocado
dele. — King é seu superior, caso não esteja lembrado. Dirija-se a
ele como “Subchefe” e se coloque no seu devido lugar.
Sua postura soberba cai no mesmo instante. Após lançar-lhe
um último olhar repreensivo, volto a dizer para todos:
— Como King explicou, corremos o risco da Timoria querer
uma retaliação caso deixemos Lyanna Bellini morrer. Por isso,
convoquei esta Reunião no intuito de informá-los e abrir uma
votação.
O silêncio é insuportável. O silêncio vem sendo meu pior
inimigo nos últimos quatro dias, pois é nele onde meus demônios
residem. Sempre que ele chega, minha mente voa para os lugares
mais atrozes possíveis.
Diante disso, volto a falar:
— Tenho torturado e interrogado Duncan nos últimos dias.
Além dele, também capturamos seu irmão e sua filha. Tenho plena
consciência de que alguns de vocês não me apoiam como chefe e
têm opiniões pessoais sobre mim, mas o que garanto a todos é que
ninguém, ninguém mexe com a Vendetta e sai ileso. É algo que
nunca permiti, mesmo quando ainda era Executora, e que nunca
permitirei. Enquanto eu estiver viva, esta máfia continuará sendo a
maior e mais respeitada do país.
“Então, deixando as ideologias pessoais de lado, peço que
tomem uma decisão com base no que desejam para o futuro da
organização. Não em mim ou no que acreditam que sou. Meu
objetivo é nos proteger com unhas e dentes, custe o que custar.
Porém, para isso, não podemos ter o sangue da herdeira da Timoria
nas mãos. Acredito que todos aqui saibam que isso nos traria
problemas ainda maiores, então, caso não tenham entendido:
precisaremos resgatar Lyanna Bellini.”
Metade deles parece odiar a ideia e a outra metade parece
ponderar sobre. Sinto o nervosismo crescente no peito à medida
que os sussurros e olhares aumentam, até que desvio a atenção
para Yuna. Ela balança a cabeça em afirmação, com um pequeno
sorriso de lado, tentando me transmitir segurança.
— Se fizermos isso — a voz de um Conselheiro de Ohio atrai
meus olhos de volta. — Muitos dos nossos soldados podem morrer.
— Estou ciente — esclareço. — Não existe guerra sem
morte.
— E você está disposta a assumir a responsabilidade por
essas mortes?
Dai-me paciência.
— Até onde sei, Reynolds, o juramento feito por cada soldado
na iniciação inclui a voluntariedade de morrer pela máfia. Quando
entramos na organização, concordamos em matar e morrer pela
mesma. Não é a primeira e nem será a última vez que algum de nós
morre para proteger a Vendetta. — Minha resposta os faz engolir em
seco. — É engraçado, pois não me lembro de uma única vez em
que o Conselho disse a Dante que ele era responsável pelas
centenas de mortes ocorridas durante sua liderança. Poderia me
explicar por que, de repente, a responsabilidade é da chefe?
De soslaio, vejo Ian, um dos meus tios, balançar a cabeça em
negação. Mirando-o, percebo a nítida irritação em seu semblante. O
cenho franzido transborda desgosto enquanto me fita de volta.
— Tem algo para me falar, Ian? — indago.
Ele ri baixo, sarcástico.
— Pensa que somos idiotas, Alessia?
— Dirija-se a mim com respeito. A palavra certa é “chefe”.
Ele ri novamente, ainda mais debochado. Não é novidade
para mim — e para ninguém — que Ian desaprova minha posição.
Ele lambia o chão por onde Dante passava, embora nunca tenha
sido recíproco. Era um verdadeiro cachorrinho desesperado por
aprovação.
— Pensa que somos idiotas, chefe? — repete a pergunta
carregada de escárnio. — Não é de hoje que os rumores circulam
pelo submundo de que você está comendo a filha de Alessandro
Bellini! Não existem vagabundas boas o suficiente na nossa máfia e
decidiu visitar a vizinha? Apenas diga que você quer recuperar a
boceta da vadia de volta e poupe o nosso tempo.
Passo a língua no interior da bochecha e o encaro em
silêncio. Ouço os arquejos surpresos de alguns enquanto outros
xingam baixinho, todos sabendo que Ian ultrapassou os limites
desta vez. Ainda que seu pensamento com certeza não seja
exclusivo dele, os demais que compartilham da mesma opinião
nunca teriam a ousadia de dizer aquilo em voz alta.
Levanto-me da cadeira de ferro e caminho, em passos lentos,
até ele. Todos estão sentados, espalhados pela grande sala de um
prédio abandonado. Quando alcanço Ian, seus músculos enrijecem
e a cabeça ergue para manter o contato visual.
Abro um sorriso de lado e ele apruma os ombros, mantendo a
postura ereta para fingir que não está com medo do que vou fazer.
Minha mão segura seu pescoço num movimento rápido e começo a
apertar. Ele arregala os olhos e tenta me afastar, batendo em meu
braço, mas nada acontece.
Continuo sufocando-o e seus olhos escorregam ao redor,
como se pedisse ajuda. Ninguém vai interferir, não se quiserem sair
desse prédio vivos.
— Me so-olte — murmura, sem fôlego, o rosto ficando pálido.
— É claro.
Solto seu pescoço. Em seguida, saco a arma e atiro em sua
testa.
Faço o caminho de volta à minha cadeira. O silêncio é tão
ensurdecedor que faz meus ossos tremerem.
— Como eu ia dizendo, o objetivo desta Reunião é explicar a
situação e tentar fazê-los entender que todas as alternativas têm
seu lado positivo e negativo. Preciso ser sincera e, por isso, deixo
claro que pretendo ir à guerra com ou sem a aprovação de todos.
Não vou colocar nossa máfia e todas as cidades sob o nosso
domínio em risco, especialmente porque temos condições de
destruir a gangue de Duncan.
“Darei alguns minutos para que os senhores discutam e
tomem uma decisão, mas, independente de qual seja, vou atacá-los.
Mesmo que precise fazer isso sozinha. Com ou sem soldados ao
meu lado, vou matar cada um deles e recuperar Lyanna Bellini.”
“Por você, eu passaria do limite
Eu desperdiçaria meu tempo
Eu perderia minha cabeça
Eles dizem: Ela foi longe demais dessa vez
Não me culpe, o amor me deixou louca”
Don’t Blame Me | Taylor Swift
 

 
Voltei a ter esperança quando, após meia hora de discussão,
o Conselho decidiu apoiar a guerra contra a Holy Devils. Não foi
unânime, mas a maioria venceu. Afinal, tivemos alguns ataques em
nossas cidades nos últimos quatro dias, sobretudo em Vegas. Troca
de tiros, emboscadas e incêndios nas nossas propriedades. Quando
revelei que tudo isso foi obra de Duncan e seus capangas, não
demorou muito para que eles topassem a ideia.
Embora eu não estivesse em nenhum desses lugares, não
deixei impune. Continuei espalhando o medo por Los Angeles, nas
regiões e momentos específicos para não atrair a atenção da
polícia. Foquei em estabelecimentos clandestinos e nos bairros
onde pessoas de farda não ousam colocar o pé.
E, é claro, prossegui com a tortura do trio fantástico composto
por Oliver e sua família. Entre os três, a filha dele foi a que mais me
deu dor de cabeça. A garota não parava de chorar e espernear alto
como um recém-nascido.
As promessas estúpidas de Derek foram as únicas coisas
que me fizeram rir desde que Lyanna foi sequestrada. Ele prometeu
que me mataria e se vingaria pela morte de Jasmine, como se não
estivesse todo mutilado, ensanguentado e acorrentado; como se eu
não tivesse cortado todos os seus dedos, inclusive os dos pés, e
suas duas mãos.
Agora que vamos finalmente agir, preciso garantir que o alto
escalão da Vendetta esteja em segurança. Por isso, enviei a maioria
deles até um lugar secreto e seguro na Flórida, enquanto os demais
insistiram em voltar para Vegas. Permiti que o maldito Kane
continuasse no comando da sede, uma vez que Jayden já tinha
dado essa ordem antes e é, de qualquer forma, a linha hierárquica
correta. Contudo, deixei claro que se algo acontecesse na cidade
durante sua liderança, ele se juntaria a Ian no inferno.
— Você não tem ideia do que está fazendo — Duncan fala,
sentado ao meu lado no carro. Está fraco e debilitado, além de ter
um olho inchado e o rosto coberto de hematomas.
Tive que pegar mais leve do que gostaria para que ele
conseguisse pelo menos andar e falar.
— Cale a porra da boca — retruco, me segurando para não
matá-lo aqui e agora.
Estamos indo para o Interitus, o maior clube de lutas
clandestinas da gangue. Decorei todos os dias e horários das
competições e, coincidentemente ou não, a noite de hoje é
reservada para o que eles chamam de “luta milionária”, na qual só
participam os lutadores mais antigos e invencíveis. Desde que fui
capturada, não houve nenhuma delas em que os dois adversários
saíssem vivos. O perdedor sempre é morto no ringue.
Eu deveria saber que esse seria o bode expiatório da gangue
— fazer com que um lutador qualquer mate Lyanna e tire o sangue
das mãos de Duncan. Ainda que tenhamos feito um combinado
mais cedo, não duvido que eles adiantem a luta para nos enganar.
— É melhor me matar logo — o filho da puta continua,
tossindo logo em seguida devido ao esforço para falar. — Você não
vai resgatar ela.
— Se não calar a boca, vou enfiar meu baralho na sua goela.
A ameaça não surte efeito nenhum, pois ele a ignora.
— A sentença de morte de Lyanna foi decretada no segundo
em que meus homens colocaram as mãos nela. Nada do que você
fizer vai ser suficiente para recuperá-la viva.
— Coloque um pano na boca dele antes que eu o mate —
ordeno a Spencer, que está sentado do outro lado de Oliver.
Quando o pano é colocado e amarrado com força, o silêncio
retorna. Tiro o celular do bolso e ligo para Yuna, que está numa van
logo à frente com Ruth, a filha de Duncan.
— Coloque a garota no telefone — digo e coloco a chamada
no viva-voz.
— Pai? — a voz feminina soa e os olhos apreensivos de
Oliver encaram o telefone. — Por favor, faça o que eles estão
pedindo. Esse… esse homem está com uma arma apontada para a
minha testa.
Vejo o pomo-de-adão de Duncan subindo e descendo,
engolindo em seco.
— Yamazaki, se ela desobedecer ou se Oliver tentar bancar o
espertinho, já sabe o que fazer.
— Matar a garota — minha amiga responde.
— Sim. Mas a corte em pedacinhos antes.
Um soluço alto ecoa do outro lado e ouço o som de um tapa.
Duncan se agita, encarando-me com puro ódio. Mais alguns sons
reverberam, semelhantes a alguém apanhando.
— Pai! — ela consegue gritar.
— Seu pai está impossibilitado de falar agora, querida, mas
acho que ele entendeu o recado.
E desligo.
Spencer precisa segurá-lo no lugar, pois ele começa a se
remexer na tentativa de me atingir. Reviro os olhos e faço mais uma
ligação, para Jayden dessa vez.
— Está tudo certo? — pergunto ao atender. — Todos estão
em posição?
— Tudo certo, chefe — sua voz sai séria e robótica, deixando
nossa conversa estritamente profissional. — Todos em posição.
— Certo. Deixe-me atualizada.
Desligo.
Após a decisão do Conselho, diversas equipes vieram para
Los Angeles. Há cerca de dois mil soldados da Vendetta na cidade,
todos responsáveis por alguma tarefa. Diversos deles estão
espalhados em pontos estratégicos a fim de capturar ou matar os
membros da gangue. Distribuí fotos e nomes dos homens que
devem ser trazidos para mim com vida, pois tenho planos diferentes
para eles. Os demais, sob o comando de Jayden, estarão conosco
no Interitus; alguns já estão no perímetro, escondidos em diversos
pontos ao redor do clube e até mesmo no telhado, enquanto os
demais ficarão a postos atrás de mim.
Mais cedo, fiz com que Duncan ligasse para Logan, o filho da
puta que está coordenando tudo em sua ausência, para marcar um
encontro. Combinamos de ser uma “moeda de troca” — Oliver por
Lyanna —, mas todos nós sabemos que não é bem isso que vai
acontecer. Ninguém é estúpido ao ponto de acreditar que tanto eu
quanto ele vai seguir com o combinado.
O importante é atraí-los para fora e tirar Lyanna de lá.
Tento não pensar no fato de que ela pode estar lutando com
algum brutamonte nesse exato momento e vou encontrá-la morta
quando chegar no clube. Se não colocar a cabeça no lugar, vou
acabar surtando.
Chegamos e o carro para. Respiro fundo, me preparando
para o que vem a seguir, e Spencer sai do veículo. Após ele abrir a
minha porta, arrasto Oliver para fora e o jogo no chão.
— Vou te avisar pela última vez — digo, firme e dura. — Sua
filha vai ser espancada e esquartejada enquanto você assiste se eu
perceber qualquer movimento estranho da sua parte. Ouse testar
até onde sou capaz de ir, Duncan, e verá que é muito mais longe do
que você imagina. Fui clara?
Ele assente, fuzilando-me com o olhar.
— Ótimo. Levante-se.
Com bastante dificuldade, ele se levanta sozinho. Viro a
cabeça e vejo Yuna caminhando até nós. Atrás dela, de joelhos no
chão, está Ruth.
— Está tudo certo? — indago e ela anui, me estendendo o
fone comunicador.
Coloco no ouvido direito, checo minhas armas nos coldres e
arrumo o cabelo para esconder o fone.
— Testando — falo. — Ballard, está me ouvindo?
— Estou te ouvindo, chefe.
— Está fazendo a leitura de calor do prédio?
— Positivo. Há muitas pessoas lá dentro.
Suspiro, confirmando o que já imaginava: a luta está
acontecendo ou já aconteceu. Ou talvez todas as pessoas sejam da
gangue, o que não é tão improvável assim. De qualquer forma,
enfrentaremos um número considerável.
— Tente encontrar uma movimentação diferente e me avise.
King, está me ouvindo?
— Estou ouvindo — ele responde.
— Qual é sua posição?
— Estou com as equipes A e B nas árvores do lado esquerdo
e as equipes C e D estão à direita, esperando o sinal para agir.
Viro-me para Duncan, arranco o pano de sua boca e saco o
celular descartável do bolso.
— Onde Derek está? — indaga, irritado. — Minha filha está
aqui, mas ele não!
Ergo a sobrancelha e rio baixo.
— Sério? É com isso que você está preocupado?
— Onde meu irmão está? — insiste, elevando o tom.
Aproximo o rosto do dele e sussurro:
— Sabe o que foi que eu mais aprendi com você, Duncan? —
Abro um pequeno sorriso sarcástico. — A como torturar uma pessoa
até ela desejar estar morta. Quer saber onde Derek está?
Ele engole em seco e franze os lábios, segurando os
milhares de xingamentos que devem estar entalados na garganta.
— O seu irmão está rezando e implorando para que Deus o
mate antes de eu voltar para a cela dele.
— Sua… — rosna, avançando para cima de mim.
Empurro-o pelo peito e dou um soco em seu nariz. Ele
grunhe alto, cai de volta ao chão e eu cuspo em sua cara.
— Levante esse imbecil, Yuna.
Enquanto ela o ergue, disco o número e aproveito para
reafirmar:
— Uma palavra errada e corto a língua da sua filha antes de
irmos.
Após alguns bips, Logan Perkins atende.
— Pensei que tivesse desistido do nosso combinado,
Romano — provoca, soando divertido.
— Nunca perderia a chance de mutilar o seu rosto com um
Às de Copas, Logan.
Ele ri.
— Tão selvagem, assim como eu me lembrava. Ainda
podemos nos divertir como nos velhos tempos, sabe?
— Está cumprindo com a sua parte do acordo? — questiono,
ignorando a tentativa infantil de me tirar do sério.
— É claro. Sou um homem de palavra. Fale um oi para a sua
namorada, Lyanna.
Eu sabia que ele soltaria algo do tipo, e por isso não coloquei
a chamada no viva voz. Os soldados estão ao nosso redor e tudo
seria arruinado se ouvissem a palavra “namorada”.
— Alessia?
Meu coração se parte em milhões de pedaços. Sua voz, que
sempre foi tão firme, soa quebrada. Ela parece exausta e sem
fôlego, quase incapaz de falar. Engulo o nó na garganta ao imaginar
o estado no qual ela está e se conseguirei salvá-la a tempo.
Pelo menos está viva, repito a mim mesma.
— Sou eu — respondo, tomando cuidado para ninguém
perceber minha reação emotiva. — Está tudo bem?
— Vá embora.
Franzo as sobrancelhas, confusa.
— O quê?
— Vá em… embora — sussurra, tossindo e se engasgando
em seguida.
Porra, ela está muito, muito fraca.
— Por quê?
Não me mande embora, é o que realmente queria dizer, eu
nunca te deixaria para trás.
— Eles vão… matar você.
— Não vão — asseguro.
Há tantas coisas que eu gostaria de falar para ela. Meu
coração está acelerado, as mãos suadas e a garganta cheia de
palavras que não posso verbalizar com tantos soldados em volta.
Tudo vai ficar bem, meu amor.
Vou tirar você daí e te proteger para sempre, custe o que
custar.
Não vou desistir de nós. Nunca vou desistir de nós,
principessa.
Eu amo você, Lyanna, amo tanto que não consigo respirar
quando não estou ao seu lado.
— Por favor, vá… — Tosse. — Embora. — Tosse. — Por
favor.
— Não.
— Vá embora! — insiste, um pouco mais alto dessa vez, e o
esforço a faz tossir ainda mais.
Mordo o interior da bochecha com tanta força que sinto o
gosto do sangue. Solto uma respiração profunda e me controlo para
não demonstrar o quanto estou furiosa, nervosa, emotiva e com
medo.
Medo pra caralho.
Nunca senti tanto medo em toda a minha vida.
— Estou ficando enojado. Chega. — Seu filho da puta, vou te
cortar em pedacinhos e arrancar seus membros fora. — Sua vez,
Romano.
Sacudo a mão e Ruth é trazida para perto. Saco uma faca e
pressiono a lâmina contra a garganta dela antes de deixar a
chamada no viva voz.
— Logan, sou eu — Duncan começa, intercalando o olhar
entre mim e a garota.
— Chefe, você faz falta por aqui. A selvagem te machucou
muito?
Ainda nem comecei a machucá-lo de verdade, penso.
— Perkins, me escute. Cumpra sua parte do acordo e não
mate a vaga-… Lyanna.
— Ela está vivíssima, chefe, não se preocupe. Está um pouco
pálida, mas acho que vai sobreviver. Não é, princesa?
Tensiono a mandíbula e avanço um pouco mais a faca. Ruth
choraminga alto, assustada, e Oliver respira fundo.
— Pare de provocar, seu imbecil. Vamos acabar logo com
isso. Saia e traga ela.
— Se tentar alguma coisa, Perkins, vai se arrepender —
intervenho. — Não quer ser o culpado pela morte de Ruth, quer?
— Você teria coragem de matar alguém tão doce e amável
como ela? Que absurdo! — provoca, estalando a língua.
— Logan — o tom de Oliver é de pura advertência.
— ‘Tá bem. Vou sair com a princesinha.
Guardo a faca, assobio a fim de chamar os soldados e me
viro para Yuna. Aproximo-me e sussurro para que apenas ela
escute:
— Não importa o que aconteça, tire Lyanna daqui. Não
importa se eu ou qualquer outro tenha sido ferido ou morto, a
prioridade é ela. Entendeu?
— Você sabe que está me pedindo para te deixar para trás
mesmo se tiver sido baleada, não sabe? Como é que vou fazer isso
se você é minha chefe e melhor amiga, Alessia?
— Yuna, por favor. Apenas tire ela daqui, por favor — suplico.
Ela suspira, fecha os olhos por alguns segundos e os ombros
caem. Por fim, assente.
— Tudo bem. Sei que você pediu a mesma coisa para o
Jayden, mas duvido que ele vai obedecer.
— Você me promete que vai protegê-la caso eu não possa?
— Prometo, não se preocupe.
Fico um pouco mais aliviada, embora esteja longe de
encontrar tranquilidade dentro de mim. Como sempre fazemos antes
de missões importantes, juntamos nossas testas e seguramos a
nuca uma da outra. Sussurramos em uníssono, nos olhando:
— Per il nostro sangue vivo e per il nostro sangue morirò.
Pelo nosso sangue eu vivo e pelo nosso sangue eu morrerei.
Hoje, não é pelo meu sangue que estou disposta a morrer.
É pelo de Lyanna.
Repasso o plano rapidamente com os soldados e
começamos a caminhar em direção ao clube. O redor é repleto de
árvores e estacionamos um pouco mais longe para não sermos
vistos. Assim, quando chegamos perto o suficiente, eles se
posicionam e eu empurro Duncan para ele caminhar mais rápido.
Uma das minhas mãos está apertando sua nuca enquanto a outra
segura a corda que amarra seus pulsos.
— Você realmente ama aquela menina — murmura.
— Cale a boca.
Ele ri baixo e faz uma careta, talvez pela dor que o
movimento causou.
— Preciso confessar uma coisa, Alessia. Eu pensava que
você tinha aguentado todos aqueles anos só para ficar longe de
Dante e não por causa dela. Para mim, não fazia o menor sentido
que você continuasse sendo torturada e humilhada por vontade
própria só para proteger uma boceta qualquer.
Cesso os passos, agarro seus cabelos da nuca e o puxo para
trás. Ele grunhe, contorcendo o rosto em sofrimento.
— Repita o que disse — sussurro, aproximando a face da
sua. — Repita o que disse sobre ela, Oliver. Quero ver se você é
homem de verdade.
— Está vendo? — Tenta sorrir, mas faz outra careta. — Não
entendo. É loucura.
— Você não tem que entender nada. — Solto-o num
solavanco e ele cambaleia. — Tem que calar a porra da boca
imunda e andar.
Saímos da vegetação e sinto um arrepio apavorante na
coluna. Três anos se passaram e este lugar ainda me dá calafrios.
Tenho memórias terríveis daqui, já que participei algumas vezes das
“lutas milionárias”.
Seguro Duncan com mais firmeza e acelero. Vasculhando ao
redor, não encontro nada e nem ninguém. Os soldados da Vendetta
estão muito bem escondidos. No entanto, isso pode significar que os
soldados deles também estão muito bem escondidos.
Este terreno é pouquíssimo iluminado. Há dois postes de luz
perto da entrada e só.
— Saudades, Alessia? — o desgraçado volta a dizer. —
Lembro-me que eu ganhava muito dinheiro quando te trazia aqui.
Você ainda sabe lutar daquele jeito? Aposto que sim.
— Não teste a minha paciência, Duncan. É a última vez que
aviso.
— Independente do que acontecer — continua, ignorando o
meu alerta —, saiba que te admiro, Romano. Você é a inimiga mais
forte que já tive.
Reviro os olhos e cogito cortar sua língua para não precisar
ouvir sua voz nunca mais. Sua tentativa de criar uma falsa conexão
entre nós agora, depois de tudo, é a coisa mais patética e ridícula
que já vi.
Estagno quando alcançamos uma distância segura, bem no
meio da linha que separa o lugar onde meus homens estão do
portão do clube. Respiro fundo, tentando manter a calma, e ouço a
voz de Ballard no fone:
— Seis pessoas indo para a entrada.
Respire, Alessia. Respire.
Respire. Respire. Respire.
É inútil. Só vou conseguir respirar quando estiver com Lyanna
nos meus braços, na nossa casa, deitadas na nossa cama.
O barulho do portão me tira do devaneio. Puxo Oliver para
perto, encosto uma arma em sua nuca e uma faca na garganta.
— Último aviso — sussurro em seu ouvido. — Se fizer
qualquer merda, sua filha vai ser cortada em pedacinhos.
Duas silhuetas aparecem e um nó se forma em minha
garganta ao vê-la tropeçando, talvez por não ter forças suficientes
para andar direito.
— E sabe o que vou fazer depois? — continuo a fim de
aterrorizá-lo, sem tirar os olhos dela. — Vou te alimentar com as
partes do corpo dela, Oliver. Já provou carne humana?
Mesmo de longe, consigo enxergar o quanto seu rosto está
machucado e ensanguentado. Semicerro as pálpebras ao observar
a jaqueta estofada enorme que esconde toda a parte de cima do
seu tronco, sem entender o motivo de a terem vestido assim. Na
parte de baixo, uma calça jeans rasgada.
Eles se aproximam e param a alguns metros, com Logan se
protegendo atrás de Lyanna e segurando um revólver no queixo
dela.
Preciso soltar uma respiração longa para impedir que as
lágrimas escorram.
Nunca tive o coração partido desse jeito, nem mesmo quando
fui forçada a passar cinco anos longe. Vê-la nesse estado e saber
que a culpa é minha é muito pior do que qualquer coisa que já
vivenciei.
Deveria ter sido eu. Eu deveria estar no lugar dela, como já
estive uma vez e não me arrependo. Sou eu quem tenho que ser
torturada, machucada e humilhada. Não ela.
Nunca ela.
— Vá embora — ela pede. — Por favor.
Um soluço lhe escapa e o chão parece desabar sob os meus
pés. Lyanna começa a chorar baixinho e eu paraliso, sem saber o
que fazer. Tudo que sinto é pânico, medo e raiva.
— Pare de chorar — Logan diz, revirando os olhos.
— Não fale com ela, porra! — vocifero, pressionando o cano
na nuca de Duncan. Ele arfa, tenso. — Olhe o que você fez com ela,
seu filho da puta!
— Olhe o que você fez com o meu chefe — retruca,
arqueando as sobrancelhas. — Não seja hipócrita, Alessia. Você o
teria matado se a vida dessa princesinha não estivesse em jogo.
— Se chamá-la de “princesinha” de novo, eu juro que…
— Pare — me interrompe. — Estou pouco me fodendo para
as suas promessas. Estamos aqui por outro motivo, não é?
A voz de Ballard ressoa em meu ouvido:
— Chefe, há uma movimentação estranha lá dentro. Parece
que eles estão se preparando para sair.
Eu vim até aqui com um plano montado. Um plano diferente
do qual revelei ao Conselho e aos meus melhores amigos.
— Renda-se — Logan exclama, inflando as narinas.
Ele pressiona a arma com mais força e a cabeça de Lyanna é
jogada para trás, contra o ombro dele. Ainda assim, seus olhos
continuam grudados nos meus, encarando-me como se soubesse o
que estou prestes a fazer.
— Lembre-se do que eu disse — Oliver diz baixo, apenas
para mim. — Só existe uma saída.
“Render-se é a sua única saída, Romano”, ele me disse mais
cedo. “A Vendetta é a razão por trás de tudo isso.”. Quando franzi
as sobrancelhas, ele continuou: “O que eu sempre quis foi dominar
a Vendetta. Ter a sua máfia para mim foi o motivo pelo qual comecei
a fazer negócios com Dante. Não me importo com você, Lyanna ou
qualquer outro. Eu quero os seus soldados, sua organização e o seu
poder e matarei quem for preciso para tê-los.”.
— Não — ela murmura, desesperada. Não preciso falar
sequer uma palavra para que Lyanna me entenda. — Não, Alessia!
— Renda-se ou estouro os miolos dela agora.
Continuo olhando para ela.
Para ela, minha gatinha selvagem.
Para ela, a dona do meu coração e da minha alma.
Para ela, a única pessoa por quem eu cometeria esta
loucura.
Sempre continuarei olhando apenas para ela.
— Não! — exclama, arregalando as pálpebras. Tenta se
mexer, mas a outra mão de Perkins puxa a corrente que imobiliza
seus pulsos e ela para. Outro soluço sai de seu peito, mais alto e
angustiado. — Alessia, não!
— O que está acontecendo? — King pergunta no fone e eu
ignoro. — Alessia?
— Alessia? — Yuna também me chama no fone, numa
entonação aflita. — Que porra é essa?
Quando eles me perguntaram sobre o que faríamos em
relação à exigência da gangue em nos rendermos, eu disse que
nunca aconteceria. Prometi que transformaria esta cidade em cinzas
antes de permitir que eles dominassem a Vendetta.
— Renda a Vendetta, Romano. — Logan sorri, parecendo
excitado com o poder. — Ajoelhe-se e renda sua máfia.
Abro um sorriso fraco em direção a Lyanna e digo um “eu te
amo” silencioso, torcendo para que ela consiga ler os meus lábios.
— Não! — berra, debatendo-se. Perkins grunhe alto, irritado,
e torce seus pulsos. Ela grita de dor e cerro a mandíbula, me
controlando para não avançar em cima dele.
— Ajoelhe-se, porra! — esbraveja.
Dou um passo para o lado, livrando Oliver das armas. De
esguelha, consigo ver o leve arregalar dos seus olhos. Acho que, no
fundo, ele não acreditava que eu de fato faria isso por Lyanna.
Devagar e sem desviar os olhos dela, começo a me ajoelhar.
Quando sinto o chão sob o tecido da calça, Lyanna aperta as
pálpebras e soluça alto.
— ALESSIA! — Jayden berra no fone, incrédulo. — QUE
PORRA É ESSA?!
Sempre acreditei que um Romano não se ajoelha nem diante
do Diabo, mas faz o Diabo se ajoelhar diante dele. Sempre acreditei,
até conhecê-la.
Ajoelho-me para Lyanna. Curvo-me para Lyanna. Rendo-me
por Lyanna.
Tudo é e sempre será por ela.
— O QUE VOCÊ ESTÁ FAZENDO?! — Yuna grita em meu
ouvido. — LEVANTA AGORA DAÍ!
De canto, vejo o sorriso enorme de Logan. Não consigo — e
nem quero — desviar a atenção de Lyanna.
Nunca mais vou desviar a atenção dela.
— Alessia Romano ajoelhada bem na minha frente… — ele
debocha, estalando a língua no céu da boca. — Nunca pensei que
viveria para presenciar essa cena.
E não vai, penso.
O canto da minha boca se arqueia em um meio sorriso
quando sussurro:
— Agora, Chloe.
Em um segundo, ele está se gabando de sua falsa vitória. No
outro, estou puxando Oliver com força para baixo enquanto uma
bala atravessa a testa de Logan. Poucos segundos depois, sinto um
impacto tão forte que sou lançada para trás.
Logan acabou de morrer e eu levei um tiro no peito.
“Juro te amar por toda minha vida
Eu ainda preciso de você
Só quero ouvir você
Dizendo: Amor, vamos para casa
Sim, eu só quero te levar para casa”
Hold On | Chord Overstreet
 

 
Ouço muitos, muitos tiros ao meu redor. Algumas vozes
diferentes gritam, mas não consigo distinguir de quem são ou o que
estão dizendo.
Estou sem fôlego e com uma dor insuportável no peito.
Encaro o céu estrelado acima, quase sem conseguir manter os
olhos abertos, enquanto tento encher os pulmões com um ar que
parece nunca os alcançar. Sei que preciso me movimentar e agir, só
que o tiro me deixou atordoada. Mal consigo entender o que está
acontecendo à minha volta.
— Alessia!
É a voz dela. É a voz de Lyanna. Eu a reconheceria em
quaisquer circunstâncias.
Abro a boca para respondê-la e nenhum som sai. Estou
tentando respirar tão desesperadamente que faço um barulho
aterrorizante, como se fosse morrer asfixiada a qualquer segundo.
Viro a cabeça devagar e, então, eu vejo.
Vejo Oliver cambaleando para dentro do clube e puxando
Lyanna consigo. Pisco forte para desembaçar a visão e capturo o
exato momento em que ela dá uma cabeçada no nariz dele e
começa a correr em minha direção, até que alguns homens surgem
e a agarram por trás. Ela berra e se debate, chorando e soluçando
alto, conforme é empurrada para dentro.
Não, não, não.
Dessa vez, eles vão matá-la. Não há nenhuma dúvida disso.
Reúno todas as forças que tenho para me apoiar nos
cotovelos e acabo caindo de volta ao chão. O pânico começa a
surgir conforme observo o portão fechado, mas não vou permitir que
ele me domine de novo.
Você não vai nos quebrar de novo, Duncan.
Você não vai.
A dor me faz gritar alto quando impulsiono o corpo para cima
e me sento. No mesmo segundo, um carro acelera e faz uma
manobra para estacionar na horizontal à minha frente, protegendo-
me do tiroteio.
Jayden salta para fora do veículo, se abaixa ao meu lado e
rasga minha camiseta ao meio. Solta um suspiro aliviado e cobre o
rosto com os dedos trêmulos. Ele parece assustado pra caralho.
— Acertou o colete, estou bem — sussurro, ainda com
bastante dificuldade para respirar. — Eles le… levaram ela. Oliver
escapo-ou e pe… pegou a Lyanna.
— Pensei que você tivesse morrido! — esbraveja, furioso
como nunca o vi antes, nesm mesmo quando lhe dei um soco no
rosto. — Que porra foi aquela, Alessia? Ficou louca, caralho? Você
se ajoelhou para render a nossa máfia? Por favor, me fale que estou
errado ou juro que vou perder a merda da cabeça!
— Não rendi porra nenhuma — o interrompo, puxando o ar.
— Fazia parte… do plano.
— Que plano?! Com certeza não é o mesmo que criamos!
— Foda-se, eles levaram a Lyanna! — vocifero. — Eu preciso
ir.
Ele balança a cabeça e me fita em descrença.
— Você mal consegue respirar.
— Não consigo respirar porque ela vai morrer, porra! É por
isso que não consigo respirar!
Faço esforço para me levantar e mordo o interior da
bochecha até sentir o gosto do sangue a fim de reprimir os gritos de
dor. Escondo-me atrás do carro junto de Jayden e só então percebo
que há outra pessoa do outro lado do veículo, escondida atrás da
porta enquanto revida os tiros que vêm das janelas do prédio.
— Você ficou louca?! — berro, arregalando as pálpebras.
Sienna se abaixa para desviar de uma bala e me olha. Com
um sorriso, diz:
— Também amo você, Ale.
E volta a atirar.
Tenho certeza de que vou sofrer um ataque cardíaco se
continuar assistindo à minha irmã participando de um tiroteio.
Porém, preciso ir atrás de Lyanna antes que seja tarde demais.
Esgueiro-me até a traseira da Lamborghini e abro o capô
apenas o suficiente para conseguir pegar as armas. Encaixo uma
semiautomática na cintura, outra dentro do coturno e apanho o fuzil.
Enquanto o carrego, encosto-me contra a lataria e coloco o fone,
que tinha caído quando fui baleada, de volta ao ouvido.
Ofegante, massageio o peito na esperança de que a dor se
dissipe logo.
— Chloe, está me ouvindo?
Silêncio.
— Chloe?
— Estou aqui — responde, no que parece ser uma troca
pesada de tiros.
— Ballard?
— Sim, chefe.
As balas atingem o carro e engulo em seco, tentando não me
preocupar com Sienna no meio disso tudo.
— Câmera térmica, agora. Encontre Oliver e Lyanna.
Coloco a AK-47 no colo, arranco o colete e fico apenas com
uma regata branca. Não é a melhor ideia no momento, mas preciso
tirá-lo para recuperar o fôlego.
— Ainda tem muitas pessoas lá dentro, chefe. Não consigo
saber se…
— Encontre eles agora, porra! Ou pegue a merda da planta
do lugar e me ajude a entrar!
— Você vai entrar? — Jayden pergunta após auxiliar Sienna.
Percebo que os tiros diminuíram, o que significa que alguns homens
já devem ter caído.
— É claro que vou.
— Você está bem?
— Vou ficar bem quando levá-la de volta para casa.
Em vez de tentar me impedir, como imaginei que faria, King
assente e diz:
— Vamos te dar cobertura. — Virando-se de frente para o
clube, ele dá o comando às equipes através do fone: — Don vai
entrar. Deem cobertura.
Respiro fundo três vezes antes de levantar, puxar o ferrolho
do fuzil e começar a atirar. Corro em disparada, quase tropeçando
em virtude da dor no peito, e atinjo pelo menos cinco homens
escondidos nas janelas. Os soldados realmente estão me dando
cobertura, pois o barulho dos tiros aumentou tanto que incomoda os
ouvidos.
Deslizo o portão e me escondo atrás dele para desviar das
primeiras balas disparadas em minha direção. Puxo o ar e pisco
forte para me recompor, ainda um pouco desnorteada por conta do
golpe. Mesmo assim, não vou desistir.
Coloco metade do rosto para fora e atiro, derrubando quase
todos eles. Na segunda vez, consigo neutralizar a situação e entrar.
Mais alguns surgem no segundo andar e eu me projeto atrás de um
pilar. Enquanto as balas ricocheteiam contra o concreto, aperto o
fone para me comunicar.
— Preciso da planta deste prédio — digo a qualquer um.
É Chloe quem responde no mesmo segundo:
— Há cinco salas no primeiro andar, duas do lado direito e
três do esquerdo, e quatro no segundo. O subsolo não está na
planta, então não posso te ajudar.
Conheço muito bem o subsolo, já que é lá onde as lutas
acontecem.
— Alguma saída de emergência?
— Só atravessar a academia à sua frente e seguir os
corredores. Mas nossos homens estão cobrindo a parte de trás.
Eles não vão sair daí.
Os disparos cessam e sou obrigada a interromper o diálogo
para atirar de volta. Assim que eles revidam, escondo-me de novo.
— Consegue ver se o rastreador do anel dela está ativo? —
pergunto.
Estava tão aflita que me esqueci de checar se Lyanna estava
com ele no dedo. O motivo pelo qual lhe dei aquele anel anos atrás
foi justamente para usá-lo ao meu favor em situações como esta.
Como sempre alertei, uma hora ou outra eu a colocaria em perigo.
Não podia arriscar que não houvesse nada que eu pudesse fazer
para salvá-la com vida.
— Sem sinal — ela responde.
Ele pode ter sido destruído ou pode estar na mão dela, em
um lugar onde o sinal não alcança.
— Jayden, mande alguns homens para dentro.
Corro até o outro pilar enquanto desvio das balas. Este lugar
é enorme e preciso atravessá-lo inteiro para chegar à porta que dá
acesso ao subsolo. O mais inteligente a se fazer seria esperar pelos
reforços, mas não tenho o privilégio do tempo. Depois do que fiz
com Oliver nos últimos dias, me surpreenderia se ele não tivesse
matado Lyanna ainda.
É esse o pensamento que me incentiva a correr. Corro muito,
muito rápido, desviando de mais disparos do que consigo contar.
Quando estou prestes a alcançar meu destino, um tiro acerta minha
perna e eu grito ao mesmo tempo que me jogo contra a porta,
derrubando-a.
Não desista, não desista, não desista.
Lyanna vai morrer.
A adrenalina, o amor e o desespero me fazem levantar.
Aperto os olhos e solto grunhidos baixos conforme ando, apoiando-
me na parede para não cair, e sinto o sangue escorrendo pela coxa.
Minha língua é preenchida por um gosto metálico conforme desço
as escadas e peço a Deus, seja lá qual ele for e se é que existe,
para que eu esteja certa sobre eles estarem no subsolo.
No último degrau, escuto vozes. Não sei quantas são, mas
reconheço a de Oliver se sobressaindo às demais.
— Alessia? Está me ouv… — O sinal começa a falhar. — …
Refor-or-ço-os?
Minha perna queima. A dor seria muito mais insuportável se
eu não estivesse tão focada, determinada e desesperada para
encontrar Lyanna. Nada além disso importa e nada vai me impedir
de continuar.
Esgueirando-me pelas paredes, coloco um olho para fora e
vejo o lugar já conhecido por mim. Oliver está próximo ao ringue
discutindo com três soldados enquanto Lyanna está sentada, sendo
imobilizada por outro. Ergo o cano do fuzil de maneira discreta, miro
no primeiro e começo a atirar. Atiro inúmeras vezes em questão de
segundos até me certificar de que todos eles, menos o principal,
caíram.
Oliver se abaixa depressa e corre aos tropeços até Lyanna.
Ele conseguiu chegar até aqui com a ajuda dos seus homens, mas
não existe a menor possibilidade de me enfrentar  sozinho.
Aproximo-me em passos duros e rápidos, desço os degraus das
arquibancadas, chego à área do ringue e levanto a arma em direção
a Duncan. Ele tenta se proteger atrás de Lyanna, mas ela não está
consciente e ele não consegue segurar o corpo mole dela.
Então, decide apontar sua arma para a testa dela.
— Mais um passo e eu atiro — ameaça, ofegante.
— Enfio quarenta balas na sua cabeça antes de você
conseguir apertar a porra do gatilho.
E não estou mentindo.
— Não acha engraçado que nossa história termine aqui? —
questiona, debochado.
Consigo ver seu suor acumulado no pescoço. É evidente que
Oliver está desesperado, provavelmente porque está começando a
perceber que não há para onde fugir — a Vendetta está em maior
número rodeando todo este clube. Nem um milagre seria capaz de
ajudá-lo.
E é por isso que ele não vai pensar duas vezes antes de
matar Lyanna, mesmo sabendo que vou matá-lo logo em seguida.
Duncan não se importa em morrer se me causar um último estrago.
— Nossa história não vai terminar aqui — asseguro. —
Depois de tudo, acha mesmo que vou permitir que as coisas
acabem desse jeito, Oliver?
— Tem certeza de que não vão? — Há um quê provocativo
em sua pergunta, o qual me faz levantar as sobrancelhas.
Sem desviar a mira da arma e os olhos dos meus, ele apalpa
a jaqueta de Lyanna até encontrar e abrir o zíper. E quando vejo,
minhas mãos tremem tanto que quase deixo o fuzil cair.
Há um explosivo colado ao peito dela.
— Nós três vamos morrer aqui, juntos. Não é poético?
— Tire essa merda dela! — berro, dando alguns passos
adiante. Em resposta, ele direciona a Glock para o explosivo. — Tire
essa…
Fricciono os lábios e cerro a mandíbula, tão nervosa que
perco a fala. O tremor avança para todo o resto do corpo, sinto
como se houvesse um punho esmagando meu coração e acho que
não estou respirando.
— Tire isso dela — continuo, quase soletrando as palavras.
— Tire isso dela agora, Oliver, ou juro que vou arrancar cada um
dos seus membros fora com os dentes.
— Você não me assusta, Alessia. — A mentira transborda por
cada palavra. Eu o assusto pra caralho. — Aposto que está
arrependida de não ter me matado nos últimos dias, não está?
— Não. Não estou arrependida.
Sua sobrancelha, machucada e cortada, arqueia em
curiosidade. Em um rápido desvio de atenção, vejo o cronômetro
colado ao explosivo.
Doze minutos.
— Quer saber o que fiz com a sua filha? — mudo de assunto
e o semblante dele cai no mesmo instante.
— Fez alguns cortes nela? Colocou a cabeça embaixo
d’água? Já sei todas as técnicas que você usa, Alessia. Isso não vai
funcionar.
— Espero que você goste do meu nome.
A confusão o atinge de imediato.
— O quê?
— Na próxima vez que encontrar a sua filha, verá o meu
nome cravado na barriga dela. Tentei não ir fundo, mas acabei me
empolgando um pouco.
Seu rosto empalidece um pouco e eu continuo:
— Usei minhas melhores facas para escrever o meu nome na
pele da Ruth. Acho que ela nunca mais vai querer usar uma blusa
curta, mas, se quer a minha opinião, foi um dos meus melhores
trabalhos. E preciso confessar que gostei bastante de ouvir os gritos
da sua filha, Duncan, gostei tanto que vou arrancar alguns ainda
melhores dela. Se quiser os detalhes sobre o que meus homens
fizeram todas as vezes que eu saía, posso ligar para qualquer um
deles e perguntar. Mas, para ser sincera, acho que é melhor você
não saber.
Como imaginei, a tentativa de enfurecê-lo funciona. Ele sabe
que sou capaz de fazer o que acabei de descrever, só que nenhum
dos meus soldados chegou perto dela ou de qualquer outro
prisioneiro meu, porque não permito. O idiota não sabe disso, então
morde a isca.
Em vez de questionar, ele rosna como um animal e avança
para cima de mim. Atiro em sua perna e depois no ombro,
assistindo-o cair para trás. Aproximo-me de Lyanna, mas sou
impedida por uma mão agarrando meu calcanhar.
— Ela sabe — Oliver sussurra, rindo como se estivesse tendo
a melhor diversão da sua vida. — Ela sabe da verdade, Alessia. Eu
ganhei.
Então, ele desmaia.
Não é a hora certa para pensar nisso. Não é.
Apresso-me para pegá-la no colo com cuidado, seguir até a
escada e subir de volta ao primeiro andar. Jayden corre em minha
direção quando atravesso a porta caída, encarando-a com os olhos
arregalados.
— Oliver está lá embaixo, inconsciente. Leve-o para o
médico. Não deixe o filho da puta morrer, King. É uma ordem.
Ele assente e abre a boca, porém, não dou-lhe tempo para
dizer nada. Vou ao canto mais afastado do clube e sento Lyanna no
chão, encostada na parede. Observo o cronômetro marcando dez
minutos e estudo o explosivo, tentando encontrar uma maneira de
tirá-lo dela sem acionar. Há muitos fios secundários além dos três
que reconheço como os principais, passando por baixo das axilas e
se emaranhando através do tronco. Se eu puxá-los do jeito errado, a
bomba vai explodir.
Tive contato com vários tipos de explosivos no México e, por
isso, fico apavorada ao examinar este.
Passo o dorso da mão na testa suada e me sento ao lado
dela com as costas apoiadas na parede. Minha visão está
começando a embaçar e as mãos completamente trêmulas, mas
preciso me concentrar. Preciso encontrar uma solução.
De repente, Lyanna acorda. Seu arquejo alto é acompanhado
das pálpebras arregaladas e do corpo voando para frente. Seguro-a
pelo ombro para mantê-la parada.
— O que… o que está… acontecendo? — pergunta, confusa.
Não sei o que dizer. Não consigo dizer nada.
Percebendo que estou imóvel, ela abaixa a cabeça e
encontra o explosivo no peito. Em seguida, paralisa, levantando
devagar os olhos até os meus. Solta um palavrão alto, fecha os
olhos por alguns segundos e suspira. Depois, engole em seco e tira
o cabelo do rosto.
Encarando o chão, ordena num tom decidido:
— Sai. — Franzo as sobrancelhas e ela exclama, tentando
me empurrar para longe: — Sai daqui, Alessia! Vai embora!
— O quê?!
— Vai embora, porra!
— Você enlouqueceu?! — esbravejo, incrédula. — Olhe para
mim, Lyanna! Acha que vou te deixar sozinha para morrer?
— Acha que eu vou te deixar morrer por minha causa?
Seus olhos estão marejados, mas o que mais me dói é notar
que ela está aceitando a situação; está aceitando que vai morrer e
quer me proteger.
— Preste atenção — murmuro, segurando seu rosto com as
duas mãos. Ela tenta se desvencilhar e me empurrar, acreditando
que a atitude grosseria vai me convencer de partir. Seguro-a com
firmeza, obrigando as íris castanhas a grudarem nas minhas. — Não
vou te deixar morrer. Não vou desistir de nós. Nunca vou desistir de
nós, principessa. Prometi que ficaríamos juntas para o resto da vida
e pretendo cumprir a minha promessa. Não importa o que aconteça,
vou estar aqui porque eu te amo. Eu amo você, Lyanna, amo tanto
que não consigo respirar quando não estou ao seu lado. Então, por
favor, não tente me expulsar. Se nosso destino for a morte,
morreremos juntas.
— Não — rebate, balançando a cabeça em desespero. — De
jeito nenhum. Vai embora.
Respiro fundo e grudo nossos lábios. Ela retribui de imediato,
agarrando minha nuca e intensificando o beijo. Depois, se afasta e
aperta os olhos com as pontas dos dedos. Volta a me olhar como se
não acreditasse no que estou fazendo.
Não entendo por que é tão chocante assim, já que perdi as
contas de quantas vezes falei que eu mataria e morreria por ela.
Não era brincadeira.
Sua entonação indignada profere:
— Você não pode morrer, é a chefe da máfia!
— Sou sua mulher antes de ser qualquer outra coisa.
A frase parece pegá-la de surpresa. Sua boca se fecha e a
expressão cai.
— Está disposta a morrer por mim? — questiona.
E, mais uma vez, não compreendo o porquê do choque.
— Matei mais de cem pessoas por você e morreria em mais
de cem vidas por você.
— Meu Deus… — murmura, soltando uma lufada de ar. —
Não tem como… desarmar isso? Ou tirar de mim?
Não consigo pensar.
Não deixe Lyanna morrer, ouço minha própria voz sussurrar
em minha cabeça. Não é assim que a história de vocês deve
acabar.
Então, como se realmente existisse um Deus que opera
milagres, uma lembrança me atinge e acende uma lâmpada em
minha cabeça. Eufórica, aperto o fone e quase atropelo as palavras:
— Preciso saber onde fica o rio mais próximo. Agora!
— Rio? — Yuna questiona. — Por que você…
— Preciso de um maldito rio — corto-a. — Descubram onde
tem um perto daqui!
Levanto-me e puxo Lyanna pela mão. Corro em direção à
saída e a ouço protestar atrás de mim.
— Pare, Alessia! O que está fazendo? Não posso levar essa
bomba até…
Saímos do prédio e continuo correndo até a Lamborghini.
Coloco-a no banco de passageiro, fecho a porta e dou a volta no
carro. Jayden tenta me parar, mas o ignoro e entro. Dou partida e
canto pneus, adentrando a estrada de terra em alta velocidade.
— QUE PORRA É ESSA?! — Lyanna berra. — Você ficou
louca?! Pelo amor de Deus! Para onde está me levando?!
— Alguém encontrou a merda do rio? — pergunto,
exasperada, no fone.
— Tem um a sete minutos — Chloe responde. — Enviei as
coordenadas para o seu carro.
Clico no painel, vou até o GPS e seleciono a rota que ela
enviou. Viro o rosto e vejo o relógio do explosivo marcando cinco
minutos e alguns segundos.
Tem que dar tempo. Tem que dar tempo.
— Pare esse carro, Alessia. Meu Deus, você enlouqueceu!
— Lyanna, preste atenção: nunca, nunca vou te abandonar.
Se algum dia nossa hora de morrer chegar, estaremos juntas. Mas
esse dia não é hoje. Não pode ser, porque não é assim que a nossa
história acaba. Não é assim que deve acabar, não depois de tudo
que passei para ficarmos juntas de novo!
— Me explique o que diabos você está fazendo, então! —
exige.
Devo estar dirigindo a duzentos quilômetros por hora na
estrada. Os minutos se passam e Lyanna continua protestando,
incrédula, quase me batendo por não responder às suas
indignações.
Quarenta segundos.
Estou entrando em colapso ou em estado de choque com a
vista embaçada, sentindo o tremor e a formigação. Não tenho ideia
de como consigo manter o veículo em linha reta, mas acho que a
adrenalina realmente é maior do que qualquer outra coisa em
situações de vida ou morte.
Aguente firme. Já está acabando. Aguente firme.
Não é assim que nossa história acaba.
— Nosso amor é bonito demais para acabar assim —
interrompo mais uma de suas indignações. — Eles não vão ganhar.
Depois de tudo que fiz, não permito que eles ganhem.
— Alessia, por favor… — choraminga, desesperada. — Por
favor, me jogue na estrada e me deixe morrer sozinha. Pare a porra
do carro.
Piso no acelerador e vejo o rio se aproximando. Estaciono de
qualquer jeito, salto do veículo e puxo-a em direção à água.
Dez segundos.
Ouço-a berrar meu nome uma última vez antes de nos
afundar na água e nadar para baixo, mergulhando fundo. Fundo,
fundo e mais fundo. Vou até aonde meus pulmões suportam a
pressão, até que não tenho mais forças para me mover.
Um segundo depois, a escuridão me abraça.
“Porque meu coração pertence a você
Vou arriscar tudo por você
Eu quero você comigo
Desta vez, eu nunca vou embora”
After Hours | The Weeknd
 

 
Arregalo os olhos e me sento de supetão, tossindo ao mesmo
tempo que tento puxar o ar para respirar. Não paro de tossir por
alguns segundos até que meu peito dói pelo esforço e caio deitada
novamente, ofegante. Pisco repetidas vezes a fim de normalizar a
visão turva, giro a cabeça e percebo que estou numa cama. Não é a
minha, tampouco alguma que conheço.
Abaixo os olhos, observando minha roupa. Não me lembro de
ter vestido isso. Não me lembro de ter chegado até aqui. Não me
lembro de quase nada, na verdade.
Passo a mão na têmpora latejante, resmungo baixo e me
sento devagar. Todo o meu corpo está dolorido, sobretudo a perna e
o peito. Cubro o rosto com as mãos e as memórias surgem aos
poucos.
O clube. A gangue. Oliver escapando com Lyanna. O
explosivo no peito dela.
O rio.
Arquejo e ergo depressa a cabeça, encarando a porta. Se
estou aqui, viva, é porque funcionou. Dentre tantas coisas que
aprendi sobre bombas no México, uma delas foi sobre a resistência
à água de alguns explosivos. Uma pequena quantidade apresenta
zero resistência, o que significa que, se entrar em contato com a
água ou com uma grande pressão dela, são desarmados. Embora
não funcione em todos eles, imaginei que Duncan não teve recursos
suficientes para criar um explosivo de alta linha, já que nunca foi
uma área de atuação da gangue. Então, rezei para que aquele não
fosse resistente à água e mergulhei fundo. Acho que Deus
realmente existe, no final das contas, porque não posso negar que
isso foi a porra de um milagre.
E se Lyanna tivesse explodido, teria me matado junto por
conta da proximidade. Logo, ela também está viva, não está?
Meus pés descalços tocam o chão gelado quando me levanto
e caminho até a porta, hesitante sobre o que ou quem vou encontrar
do outro lado. Atravesso o corredor, escuto vozes baixas e faço o
movimento robótico de levar a mão até a arma no coldre da cintura.
O problema é que não há nenhum revólver em mim.
Ao virar o corredor, vejo uma sala e três rostos conhecidos.
— Alessia! — Minha irmã é a primeira que corre em minha
direção. Pula em cima de mim, me abraçando com força, e solto um
grunhido involuntário. — Cazzo, me desculpe! Não queria te
machucar.
Yuna e Jayden se aproximam com a mesma euforia e tento
encontrar algum resquício de pena, tristeza ou medo em suas
expressões — caso Lyanna esteja morta e eles não saibam como
me dizer —, mas tudo que vejo é alívio. Minha amiga me puxa para
um abraço e sorri ao se afastar.
— Você é a pessoa mais perturbada que eu conheço, sua
maluca, e eu te amo pra caralho por isso.
Essa reação é um bom sinal, não é?
— Ei — Jayden atrai minha atenção. Trocamos um breve
olhar em silêncio antes de eu tomar a iniciativa de dar um passo
adiante e envolver meus braços ao seu redor. Minha atitude o
surpreende, já que não me recordo da última vez que iniciei um
abraço. Mesmo assim, ele retribui o gesto e serpenteia meu corpo
com cuidado. — Uau. Bateu a cabeça, chefe?
Rio baixo e me afasto.
— Alguém pode me explicar o que está acontecendo e onde
estamos? Meu corpo inteiro dói e não me lembro de muita coisa.
— Você precisa descansar, não pode fazer muito esforço —
Sienna diz, pegando minha mão e me arrastando até o sofá. —
Estamos num apartamento em Beverly Hills. Faz três dias que
chegamos.
Levanto as sobrancelhas, incrédula e perdida.
Beverly Hills? Ainda estamos em Los Angeles?
Três dias?
— “Três dias”? — indago, olhando para cada um deles. —
Como assim? E por que ainda estamos em LA?
Como ainda estamos em LA? O que aconteceu com a Holy
Devils? Nós matamos o restante dos soldados? Onde estão
Alessandro, Jeon e Wilson?
Onde está o filho da puta do Oliver?
Tenho tantas perguntas que não sei por onde começar.
— Você ficou inconsciente durante esse tempo — Yuna
explica, sentando-se na poltrona à diagonal. — Depois que te
resgatamos do rio, Dr. Grey veio cuidar de você e Jayden encontrou
este lugar.
— Seu coração estava fraco — Jay complementa. — A gente
não sabia se você resistiria.
Preocupo-me com o uso das palavras no singular. ““te”
resgatamos” e “se “você” resistiria”? Eu não estava sozinha naquele
maldito rio.
— Cadê a Lyanna? — pergunto, nervosa pra caralho.
King começa a responder, mas o som de passos se
aproximando o interrompe. Viro a cabeça para trás, em direção ao
corredor pelo qual passei, e o mundo volta a girar quando vejo
minha feiticeira adentrando a sala.
Lyanna paralisa no instante em que seus olhos se encontram
com os meus. Entreabre a boca, como se não esperasse me
encontrar aqui, e demoro menos de um segundo para correr até ela.
Abraço-a com tanta força que seria capaz de amassar os seus
ossos, mas não me importo. Não me importo com nada além do fato
de tê-la nos meus braços.
— Me desculpe — peço em um sussurro, enfiando o rosto em
seu pescoço. É inevitável começar a chorar. Parece que uma
tonelada de sentimentos ruins saiu do meu peito e consigo
finalmente ter esperança de que as coisas vão dar certo entre nós.
— Me desculpe, por favor. Me perdoe, Lyanna.
Ouço-a soluçar baixinho em meu ouvido.
— Não seja boba — ela devolve o tom baixo. — Não foi culpa
sua. Nós estamos bem agora.
Nego com a cabeça e aperto os olhos. Não consigo controlar
o choro alto e sôfrego, entalado há muito mais tempo do que eles
imaginam.
— Me desculpe, amor. Se você não tivesse me conhecido,
nada disso teria…
Lyanna me cala com um beijo. Ali, na frente dos meus
melhores amigos e da minha irmã — para quem não dei nenhuma
explicação sobre isso —, ela me faz estremecer quando gruda os
lábios quentes nos meus.
Seguro sua nuca com força, levo a outra mão até sua cintura
e aperto. Nossas línguas se entrelaçam enquanto sinto seus dedos
descendo pela minha coluna até as unhas afiadas cravarem na
base. Ofego baixinho contra sua boca e agarro seus fios de cabelo,
ouvindo-a ofegar da forma mais deliciosa possível. Nós nos
beijamos com desespero, urgência e amor. Muito, muito amor.
Porra, eu a amo tanto que não consigo explicar. Amo tanto
esta mulher que teria incendiado o país inteiro para salvá-la e me
jogaria nas chamas para queimar junto a ela. Não existe um mundo
no qual eu seja capaz de viver sem tê-la ao meu lado.
Lyanna é minha, mas eu sou muito mais dela. Tudo que
existe dentro de mim pertence a ela. Tudo que sou e faço é para
ela. Meu passado, meu presente e meu futuro são dela.
Não existe Alessia Romano sem Lyanna Bellini.
— Eu amo você — sussurro ao me afastar. Dou-lhe um
selinho demorado e vejo uma lágrima solitária escorrer pela sua
bochecha ruborizada. Tão, tão linda. — Eu amo tanto, tanto você.
— Eu também amo você.
Eu paraliso. Tenho certeza de que paro de respirar ou de que
meu coração para de bater. Então, seguro seu pulso e a arrasto
depressa pelo corredor. Entro no quarto onde acordei, fecho a porta
e prenso-a contra a madeira.
Ela está sorrindo de uma maneira tão linda que quero chorar.
— Repete — suplico, colocando as mãos em cada lado de
sua cabeça.
Seus olhos brilham. Minha gatinha selvagem está radiante,
tão feliz quanto eu.
Porra, estou sonhando. Só pode ser.
— O quê? — provoca, fingindo confusão.
Sorrio com o lábio entre os dentes e coloco a cabeça em seu
pescoço. De olhos fechados, inspiro seu cheiro delicioso. Sinto-me
uma adolescente com o coração acelerado e borboletas no
estômago.
Se qualquer um dos meus soldados me visse neste exato
momento, eu perderia toda minha reputação de chefe cruel e
sanguinária da máfia.
Sou patética.
— Repete.
— Repetir o quê? — Seus dedos emaranham-se nos meus
cabelos da nuca. — Que eu amo você?
Solto um grunhido satisfeito, incapaz de diminuir o tamanho
do sorriso. Deslizo a boca pela sua pele, subo até o ouvido e
mordisco o lóbulo.
— Cinco anos — sussurro, serpenteando sua cintura e
colando seu corpo ao meu. Planto um beijo demorado na mandíbula
fina, criando um trajeto de selinhos até seus lábios inchados e
vermelhos. — Cinco anos desde a última vez que você disse que
me amava.
Ela sorri, envolvendo meu pescoço com os braços. Desliza o
nariz pelo meu em um gesto tão carinhoso e tranquilo que quase
derreto. Sua voz sai suave, como uma melodia lenta tocada numa
noite de inverno:
— Eu te amo, Alessia. Uma parte de mim sempre amou,
mesmo quando tinha me convencido de que nunca odiei alguém
tanto quanto odiava você. Tentei muito, muito mesmo não me
entregar de novo, mas o problema é que sempre acreditei em
destino e tenho certeza de que você nasceu para ser o meu. Desde
que você apareceu na minha cozinha e colocou uma faca na minha
garganta depois de ter sumido por cinco anos, não consigo parar de
pensar em você. Em nós. Passei todo esse tempo prometendo a
mim mesma que nada seria capaz de me convencer a te devolver o
meu coração…
Sinto que estou flutuando nas nuvens. Esperei tanto, tanto
por isso que não parece real. Não quero abrir os olhos e perceber
que sonhei ou, pior, que alucinei. Alucinei tantas vezes com esse
momento, trancada numa cela, que foi difícil conseguir distinguir a
realidade das alucinações depois.
— Mas a verdade é que não preciso te devolver o meu
coração, porque ele sempre foi seu. Quando ainda éramos inimigas,
quando nos tornamos namoradas e quando pensei que nunca mais
te veria de novo; em todos os momentos dos últimos dez anos, ele
foi seu.
Estou sem fôlego, trêmula e chorosa. Porém, pela primeira
vez em muito tempo, é por um motivo bom. É por saber que ela
ainda me ama e que tudo valeu a pena.
Tudo valeria a pena mesmo se Lyanna não correspondesse
aos meus sentimentos, mas é mil vezes melhor saber que sobrevivi
ao inferno para tê-la de volta aos meus braços e agora, finalmente,
eu tenho.
— Você está mesmo se declarando para mim ou estou
alucinando? — pergunto, sorrindo em meio às lágrimas.
Ela ri baixinho, um pouco envergonhada, e revira os olhos. É
o melhor som que já ouvi na vida.
— Estou mesmo me declarando para você, Romano, mas
não se gabe muito.
— Porra, vou me gabar pra caralho. Vou comprar todos os
outdoors de Las Vegas e estampar a frase: “LYANNA BELLINI SE
DECLAROU PARA MIM DE NOVO DEPOIS DE CINCO ANOS!!!!!!”.
— Você é tão boba… — murmura, grudada em mim como um
bebê coala.
Passamos alguns segundos nos encarando em silêncio,
ambas sorrindo de orelha a orelha e com os olhos brilhando. Não
sei se algum dia conseguirei explicar com palavras a conexão que
existe entre nós duas, mas sei que ela entende e eu também.
— Eu amo você — sussurro mais uma vez.
Nunca vou me cansar de dizer que a amo.
— Eu também amo você.
Seguro suas coxas e a levanto num ato inesperado, fazendo-
a soltar um gritinho surpreso. Caminho até a cama e me sento na
beirada, deixando Lyanna em meu colo. Seu corpo se encaixa
perfeitamente bem no meu, como sempre.
Ela foi feita para mim.
— Como você sabia? — pergunta, acariciando meu rosto e
colocando meu cabelo atrás da orelha. — Como sabia que aquele
lance da água funcionaria?
— Eu não sabia — confesso. — Foi só um palpite.
Noto sua respiração falhando e ela engole em seco.
— Então você… se arriscou? Quero dizer… — gagueja,
parecendo desnorteada. — Você não tinha certeza se funcionaria,
então você… estava mesmo disposta a morrer por mim. Comigo.
Rio baixo e assinto.
— Esse seu choque é adorável, Lyanna, mas não faz o
menor sentido. Quantas vezes já te falei que mato e morro por
você?
— Eu não… não sei. Você nunca precisou provar isso antes.
Não é que eu duvidasse, só…
Calo-a com um selar de lábios. Não usamos a língua e não
aprofundamos, somente grudamos nossas bocas em um gesto
amoroso e cuidadoso. Quando me afasto, escorrego o polegar pela
sua bochecha ruborizada.
— Eu aprendi aquilo no México — explico, observando seu
olhar curioso. — Não tínhamos tempo para descobrir se aquele
explosivo era ou não resistente à água, então me arrisquei. Era a
única opção, porque não conseguiríamos tirá-lo de você a tempo e
muito menos descobrir qual dos fios principais poderia ser cortado.
Eu precisava tentar e, se não desse certo… — Dou de ombros. —
Morreríamos juntas.
— Você é louca — diz, balançando a cabeça. — Ainda não
acredito que fez tudo aquilo. Eu tinha mesmo aceitado a morte e
fiquei desesperada quando você não me deixou morrer sozinha.
— Nunca foi e nunca será uma opção, Lyanna.
Caímos num silêncio estranho. Não desconfortável, mas…
diferente. É muita coisa para processar e ainda estou um pouco
desnorteada, quem dirá ela. Percebo uma leve mudança em seu
semblante, algo tão rápido que qualquer outra pessoa não notaria.
— O quê? — questiono, fazendo movimentos circulares na
sua cintura por baixo da camiseta. — Ainda está pensando sobre o
explosivo?
Ela nega.
— Tudo que aconteceu na última semana… — começa,
abaixando o olhar. Solta um suspiro profundo e o sorriso some aos
poucos, até que a voz baixa continua: — Acho que agora consigo
entender o porquê de você ter feito o que fez durante todos aqueles
anos, nas mãos do Oliver.
Respiro fundo.
— Você quer falar sobre isso? Sobre o que Logan fez com
você?
— Ele me torturou, é óbvio, mas não sou tão fácil de quebrar
assim. — Volta a me fitar. — O que mais me machucou não foi a
tortura, na verdade. Foi saber que as pessoas que eu amo estavam
sofrendo e não havia nada que eu pudesse fazer. Sophie e Kai…
Eles ficaram bem machucados também. Sophie ainda está de
repouso, se recuperando. E você… eu não conseguia parar de
pensar em você. Eu sabia que você iria atrás de mim, mas não
queria. Não queria que fosse, porque sabia que você faria qualquer
coisa para me tirar de lá.
Ah, ela me conhece tão bem.
— Só que você fez a única coisa que eu tinha certeza que
não faria — revela. — Você se ajoelhou para se render. Para render
a Vendetta. Eu fiquei em pânico, nunca imaginei que veria aquilo.
— Não rendi nada, linda. A Vendetta continua sendo e
sempre será minha. Aquilo fazia parte do plano — confesso,
deslizando o polegar pela maçã de seu rosto. — Mais cedo naquele
dia, Oliver tinha me dito que tudo que ele fez desde o início foi para
dominar a Vendetta. O início dos negócios com Dante e todo o
resto… o objetivo sempre foi roubar os nossos soldados.
Ela não parece tão surpresa, talvez porque não seja a
primeira organização que tenta nos dominar. Não é a primeira que
falha também.
— Nunca vi os olhos daquele filho da puta brilharem tanto
quanto brilharam ao falar sobre minha máfia. Foi aí que eu entendi
que se não me ajoelhasse e fizesse parecer que estava disposta a
lhes dar a Vendetta, Logan atiraria em você bem ali, na minha frente
e naquele momento. Então precisei criar uma distração para que o
tiroteio começasse e nós ganhássemos tempo. Montei um plano
com Chloe e ela se escondeu num ponto estratégico, sem ninguém
saber, para atirar em Logan.
— E para atirar em você também? — pergunta, arqueando a
sobrancelha.
— Não. Aquele tiro veio de algum soldado de Duncan. Eu já
imaginava que aconteceria, mas subestimei a velocidade de reação
deles. De qualquer forma, deu certo. Ganhei o tempo que precisava
para te salvar com vida.
— Então você não estava disposta a render sua máfia para
me salvar — aponta, semicerrando os olhos e cruzando os braços.
Vejo a provocação em seu cenho e decido entrar na brincadeira:
— Não. — Contenho um sorriso quando ela arregala os olhos
e abre a boca, incrédula. Aproximo nossos lábios e sussurro,
abraçando sua cintura e puxando-a contra mim: — Eu já te disse,
Lyanna. Não vou desistir da máfia por você. Vou criar uma máfia
para você.
“Você não precisa mais merecer meu amor
Eu me decidi
Não há volta de nós dois
Não há como voltar da nossa morte”
Death Of Us | Elsie Bay
 

 
Estou suando frio. Brinco com os dedos pela milésima vez
enquanto descemos as escadas e chegamos ao subsolo pouco
iluminado. Notando meu nervosismo, Alessia segura minha nuca e
viro a cabeça para olhá-la. Recebo um sorriso fraco, respiro fundo e
assinto.
Faz três dias que ela acordou. Desde então, estamos
perseguindo, aprisionando e matando quase todos os soldados de
Oliver que restaram. Não há muitos lá fora, já que Alessia trouxe
reforços de Las Vegas e a cidade está infestada pela Vendetta.
Estive me mantendo afastada das coisas. Mesmo sem ter
contado a ela, Alessia parece entender meus motivos. Ela entende,
de fato, só não sabe que eu sei. Pergunto-me se ela desconfia que
Logan me revelou a verdade ou se vai continuar escondendo aquele
segredo de mim. Não gosto nem um pouco de saber que ela
descobriu há um tempo e não me contou, mas, para ser sincera, eu
compreendo. Compreendo o porquê de ter omitido algo assim, já
que, se me contasse em qualquer outro momento que não fosse o
atual, eu não acreditaria. Acho que até perderia a cabeça se a
ouvisse dizendo algo do tipo.
Quero conversar, esclarecer tudo e entender. Entender como
tudo isso aconteceu, como posso ter sido enganada durante toda a
minha vida e como vou… viver. Como vou viver a partir de agora?
Não tenho ideia. Passei a última semana tentando encontrar
soluções, só que não existe nenhuma. Todos os cenários são
horríveis e acabam com o meu futuro. É tão fodido que parece
mentira. Em meio às madrugadas repletas de lágrimas escondidas
no banheiro enquanto Alessia dorme, cheguei a cogitar a
possibilidade de ser mentira.
No entanto, eu sinto. Sinto em meu âmago que é verdade, e
o sentimento é forte demais para ignorar. Mas… não sei se vou
conseguir lidar com isso. Não tenho forças para encarar a realidade
e todas as consequências que esse segredo me trará. Não só a
mim, mas a todos ao meu redor.
Meu Deus, estou perdida. Completamente perdida. Quero
chorar a todo momento e mal tive condições de ajudá-los, pois
estive ocupada demais encolhida embaixo das cobertas com os
olhos pregados na parede e um vazio enorme no peito. É a primeira
vez que sinto algo idêntico ao que senti há cinco anos. Na verdade,
não é idêntico. É ainda pior.
— Ei, meu amor — ela me chama num sussurro quando
paramos em frente à porta. — Não precisa fazer isso se não estiver
pronta. Eu entendo que…
Quando sua voz morre e os olhos apreensivos esquadrinham
meu rosto, tenho a confirmação de que ela sabe. Ela sabe que
Logan me revelou a verdade e está respeitando meu espaço.
O que será que Alessia pensa sobre isso? Será que está
feliz? Será que está com medo? Será que algo vai mudar entre nós?
Porra, minha cabeça vai explodir.
— Eu preciso — respondo, quebrando o silêncio. Solto uma
lufada de ar, passo os dedos no rosto gelado e aperto as mãos em
punho. Estou tremendo como nunca tremi antes. — Preciso disso.
— Tudo bem. Vou estar aqui fora para o que você precisar.
Assinto e ela gira a maçaneta. Eu travo, sem saber se foi
uma boa ideia, mas me recomponho e adentro a sala pequena. A
porta se fecha atrás de mim, nos deixando sozinhos.
Alessandro está destruído. O olho direito, tão inchado quanto
uma bola de baseball; o corpo, coberto apenas por uma calça
rasgada e suja, machucado por alguns cortes e sangue; os braços,
amarrados no teto por duas cordas; o pescoço envolto por uma
coleira de choque e, finalmente, o abdômen.
Há um Às de copas enorme em seu abdômen. Não parece
ter sido feito há muito tempo, então presumo que Alessia esteve
aqui algumas horas atrás.
Ele foi encontrado no mesmo dia do meu resgate, junto de
Sophie e Kai, porém só agora tive coragem de vê-lo. Uma semana
se passou e evitei o subsolo como se houvesse uma praga aqui
embaixo. Toda vez que cogitava descer para conversarmos, desistia
no mesmo instante.
Agora, observando sua cabeça se erguendo devagar e o
único olho aberto encontrando o meu, entendo por que meu cérebro
não me permitiu vir antes. Porque, puta merda, quero rasgá-lo ao
meio de tão furiosa que estou.
Meu sangue borbulha, um calafrio atravessa a coluna e
preciso me controlar para não esmurrar sua cara. É necessário
muito, muito autocontrole para impedir que minhas pernas avancem
e meu punho atinja seu rosto repetidas vezes.
Estou com ânsia. Olhá-lo me faz querer vomitar.
— Lyanna… — sussurra, fraco e quase sem voz. — Você…
está…
Alessia não brincou quando disse que não pegaria leve com
ele. Acredito que Alessandro só não está ainda pior porque ela
sabia que uma hora ou outra eu viria até aqui para confrontá-lo.
Depois que eu esclarecer tudo, ela vai destruí-lo completamente.
E não posso dizer que vou me importar.
Puxo a cadeira de ferro, sento-me a alguns passos de
distância e cruzo os braços. Encaro-o em silêncio, incerta do que
dizer, esperando por algo que não sei o que é. A verdade é que não
tenho ideia do que fazer. As palavras parecem entaladas na
garganta, prontas para saírem, mas não consigo decidir por onde
começar.
Desço novamente os olhos até o grande “A” em sua pele.
Após uma respiração profunda, digo:
— Ela está se divertindo com você.
Ele não consegue esboçar nenhuma reação, acredito que por
conta dos machucados e da dor no rosto.
— Eu… eu sabia que… — Inclina a cabeça para o lado a fim
de repousá-la no braço esticado. — … que você estava…
envolvida… com ela.
Solto um riso baixo, nasalado e sarcástico. Jogo a nuca para
trás, fecho os olhos e conto até dez baixinho. É inacreditável que
essas foram suas primeiras palavras para mim depois de tudo.
Respire, respire, respire.
— Eu sabia… — repete entre respirações entrecortadas.
— Você sabe de muita coisa, não é? — rebato num tom mais
alto, fitando-o. — O mais engraçado é que nunca me deixou saber
de porra nenhuma.
É difícil ler sua expressão, mas percebo que ele abre e fecha
a boca, surpreso.
— Você… e Alessia…
Balanço a cabeça, incrédula, e desvio a atenção para a
parede. Estou enojada.
— Nem consigo olhar para você — sussurro.
Não digo nada. Aguardo trinta, quarenta e cinquenta
segundos por uma explicação. Aguardo um minuto. Poderei
aguardar uma hora e acredito que nem assim Alessandro se dará ao
trabalho de ser sincero.
— É verdade? — corto o silêncio e volto a mirá-lo.
Mesmo nesse estado, a mudança em sua respiração é nítida.
O olho esquerdo, o único que consegue ficar aberto, se arregala um
pouco.
— O… quê?
— É verdade? — insisto, mais firme e impaciente.
Ele puxa o ar, engole em seco e faz uma careta. Escrutina
meu rosto em busca de algum indício de que estou falando sobre
outra coisa. Porém, ele não é burro. Sabe muito bem a sobre o que
estou me referindo.
— Lyanna…
— Não. Fiz uma pergunta simples. É. Verdade? — soletro
devagar.
— Não importa… Eu… Eu sou seu pai…
— Pare! — vocifero, levantando-me de supetão. A cadeira cai
para trás, dou três passos adiante e aperto as mãos em punho. Uso
tanta força que sinto as unhas cravando na pele e arrancando
sangue. — É a última chance que te dou: É verdade?
Seu pomo-de-adão sobe e desce ao engolir em seco. A essa
altura, não preciso mais de uma confirmação. Sua reação já me
responde, mas, ainda assim, quero ouvi-lo confessar.
Preciso ouvi-lo confessar.
— É verdade — afirma, tão baixo que quase não entendo.
Meu corpo congela. Sinto como se o chão tivesse aberto sob
meus pés e eu estivesse caindo, caindo, caindo e caindo. A náusea
inunda minha garganta e cubro a boca para não vomitar em cima
dele. Arquejo, dou as costas e apanho a cadeira do chão para me
jogar nela. Estou tremendo tanto que não consigo ficar em pé.
— Você… você roubou minha verdadeira identidade de mim.
Não acredito. Não consigo acreditar. Não posso acreditar.
— Eu sou seu pai! Eu… eu te criei e…
Soluço alto, cubro o rosto e balanço a cabeça de um lado
para o outro.
Não faço parte da Timoria. Não nasci na Timoria. Alessandro
não é meu pai e Antonietta não era minha mãe. Não tenho sangue
Bellini.
— Você… você cresceu comigo e com sua mãe e…
— Ela não era minha mãe! — esbravejo, apertando os braços
da cadeira. — E você não é meu pai!
— Só porque não te demos à luz?! Isso.. isso não importa!
Levanto-me mais uma vez e quase caio ao cambalear para
perto dele. Dou um tapa forte em sua bochecha e berro:
— Você me roubou da Vendetta, seu filho da puta!
Faço parte da Vendetta. Nasci na Vendetta. Ele me roubou
dos meus verdadeiros pais quando eu era recém-nascida.
— Eu… era uma dívida e…
Soco seu nariz com tanta força que minha mão lateja. O
sangue jorra para longe, manchando a parede, e ele me encara
chocado.
— Você me fez crescer odiando cada um deles com tudo que
existia dentro de mim. Falou coisas horrendas, principalmente sobre
Alessia! Tudo faz sentido agora. Não era proteção, era? Você só
tinha medo de que eu me aproximasse demais e descobrisse a
verdade. Meu Deus, não consigo acreditar.
— Eles são horríveis! — rebate, ofegante. — Todos nós…
odiamos eles… não era só você que…
— Mas sou eu quem nasci lá! — brado. — Todos odeiam
eles, mas era diferente comigo. Você sentava com todos os
soldados por quase uma hora, todos os dias, só para doutriná-los
contra a Vendetta? Meu Deus, você os odeia tanto por causa desse
segredo, não é?
— Não! — Meneia a cabeça em frenesi. — Eu os odeio por
tudo que… já fizeram. Lyanna, entenda…
— Entenda você! — Aponto o dedo para o seu peito. — Você
me doutrinou para que eu preferisse morrer a chegar perto daquela
organização. Se eu nunca tivesse me envolvido com a Alessia,
nunca saberia da verdade. Nunca saberia quem realmente sou.
Ele arregala o olho.
— Você é Lyanna Bellini!
— Não, não sou. Não tenho ideia de quem eu sou,
Alessandro, graças a você.
— Filha…
— NÃO ME CHAME ASSIM! — Agarro os cabelos e aperto
numa tentativa de extravasar. — Você não tem nem o direito de falar
comigo mais. Sinto vontade de vomitar quando olho para a sua cara.
Acho que sou capaz até de matar você se continuar aqui por mais
cinco minutos.
Ele fica incrédulo.
— Pelo amor… de Deus, Lyanna! Me matar? — Ofega. — De
um dia para o outro… vai virar as costas para mim? Como pode…
fazer isso?
— Você ainda acha que está certo — murmuro, passando as
mãos pelo rosto. — Acha que está certo e eu, errada. Fala tanto
sobre a Vendetta ser horrível, Alessandro, mas você é pior do que
todos eles juntos. É um grande filho da puta que merece todo o
inferno que te aguarda.
Meu estômago está embrulhado, a náusea entalada na
garganta e o corpo gelado. Acho que vou desmaiar a qualquer
momento, mas não antes de obter todas as informações possíveis.
— Quem eram eles? — pergunto. — Quem eram os meus
pais verdadeiros?
— Isso… isso não… não importa! — exclama, tossindo em
seguida. — Você é minha filha! Minha… minha filha, Lyanna!
— Faça-me um favor e não repita isso nunca mais — rosno.
— Não sou sua filha. Não sou nada sua. Você me roubou como se
eu fosse uma mercadoria por conta de uma dívida. Uma maldita
dívida! Tem noção do que fez comigo?
— Te dei um lar, amor e… uma vida… perfeita! — Ele tenta
respirar direito, agitado. — Antonietta não te... deu à luz… mas ela
foi uma mãe para você. O seu DNA não… importa.
Rio alto, irônica.
— Se não importa, por que fez de tudo para eu não
descobrir? Por que não me contou? Acha que eu faria o quê?
Correria para a Vendetta?
— Eu só… não queria… que me odiasse. Que odiasse sua
mãe. Ela te amava… muito, Lyanna.
Aperto as pálpebras com a menção dela. Nossa relação era
tão, tão boa. Mesmo depois de tudo, não consigo odiá-la. Diferente
de Alessandro, Antonietta sempre foi uma mãe para mim. Continuo
enxergando-a como tal, mas ele… não, ele não. Ele é o culpado de
tudo. Ele me desrespeitou e me invalidou inúmeras vezes.
— Ela… ela não sabia de nada — murmura, soluçando baixo.
Abro os olhos, tentando entender se ouvi direito. — Antonietta não
sabia. O bebê… nasceu morto, mas ela desmaiou no parto. Eu não
podia permitir que ela passasse por isso… então tomei uma
decisão. Seus pais biológicos, eles… eles eram soldados corruptos
da Vendetta e me deviam muito dinheiro. Você tinha acabado de
nascer há alguns dias e… eu precisei fazer isso, Lyanna. Sua mãe
não aguentaria… não aguentaria viver.
— Ela achava que eu era sua filha de verdade — concluo e
ele assente. — Meu Deus, ouça o que está dizendo. Tem noção do
que fez? Ela morreu por sua culpa, sem saber o que você fez! Você
mentiu por vinte e um anos e depois causou a morte dela!
Estou berrando tão alto que se Alessia não tivesse esvaziado
o lugar, qualquer um lá em cima estaria ouvindo.
— O que você fez com eles? O que fez com os meus pais?
— Matei os dois… e incendiei a casa. Todos pensam que
vocês três morreram queimados.
Inacreditável. Parece uma piada de mau gosto ou o script de
um filme de terror. A cada dia que passa, percebo que o submundo
é ainda mais obscuro do que eu pensava.
— Você se arrepende? — indago, incapaz de me mover.
Ele suspira e desvia o olhar.
— Não.
— Tenho um relacionamento com Alessia há oito anos —
solto e recebo sua atenção de volta imediatamente. — Me apaixonei
por ela aos dezoito. Namoramos por três anos até tudo ser
arruinado. Oliver, Dante e você nos destruíram. Você destruiu a
minha vida, o meu namoro e a minha cabeça. Não sei se algum dia
vou ser capaz de me sentir pertencente a um lugar novamente sem
imaginar que tudo é uma farsa. Por sua causa. Olho para você e
sinto nojo. Sinto ódio de mim mesma por ter acreditado em qualquer
coisa que saiu da sua boca em todos esses anos. Sinto pena de
Antonietta por ter conhecido você. Sinto vontade de te matar com
um único tiro, porque sequer tenho vontade de prolongar seu tempo
na terra. Quero que morra logo. Você merece sofrer, mas não
aguento tê-lo respirando o mesmo ar que o meu por nem um
segundo a mais. Então, se ainda não entendeu qual é o seu destino,
farei questão de que minha mulher te explique.
Aproximo o rosto do dele, tendo plena consciência de que
estou encarando-o da forma mais assustadora possível. Vendo-o
paralisado em completo choque, sussurro:
— Alessia Romano, aquela que você tanto odeia, é minha
mulher. É minha namorada e futura esposa. Passou toda a sua vida
tentando me manter longe da inimiga, pai, mas adivinhe? Você
fracassou, porque eu me deitei com ela mais vezes do que consigo
me lembrar.
— Você… sua… — grunhe, debatendo-se. — Você é uma
ingrata, Lyanna! Ela vai acabar com a sua vida!
Estalo mais um tapa em sua bochecha.
— Esse mérito é seu. Diferente de você, Alessia salvou a
minha vida.
Giro sobre os calcanhares, caminho até a porta e a abro.
Contudo, lembro-me de uma coisa e fico de frente para ele mais
uma vez. A última vez.
— Foi você que causou aquele acidente de carro? O de
Sienna?
Ele sequer pensa antes de responder:
— Sim, fui eu. Se soubesse que… estava certo sobre você,
ordenaria que… matassem a garota.
Não preciso dizer uma única palavra, pois sinto a presença
de Alessia atrás de mim. O olhar de Alessandro escorrega até ela e
quando percebe o que fez, o pânico toma conta de sua expressão.
Viro-me e peço a ela, encarando o chão:
— Não me siga.
Fecho a porta e o ouço gritando meu nome enquanto me
afasto.
“Nada vai te machucar, meu bem
Enquanto você estiver comigo, você vai ficar bem
Nada vai te machucar, meu bem
Nada vai tirar você do meu lado”
Nothing’s Gonna Hurt You Baby | Cigarettes After Sex

 
Estou trancada no quarto há quase três horas. Sophie, Kai e
Alessia tentaram entrar para falar comigo, mas não abri a porta.
Meus olhos estão ardendo depois de passar todo esse tempo
encarando a parede, em completo silêncio, como uma múmia.
Nasci na Vendetta… Meus pais biológicos estão mortos…
Vivi uma mentira por vinte e seis anos… Não tenho um lugar para ir.
Não pertenço mais à Timoria, mesmo que não tenha sido
oficialmente expulsa, porque nunca voltarei para lá. Posso até
acabar perambulando por aí, sem fazer parte de uma organização,
mas não pisarei no território deles nunca mais. A única coisa da qual
tenho certeza é de que não importa o rumo que minha vida tome, a
Timoria não está incluída nele.
Me sinto traída. Usada. Sinto como se eu fosse uma farsa,
uma mentira, um fantoche. Acima de tudo, me sinto burra. Burra por
não ter percebido antes, por não ter ligado os pontos e não ter
acreditado em minha intuição — apesar de nunca ter entendido o
motivo, ela me dizia que havia algo de errado.
Como ele pode ter feito isso comigo? Como pode ter me
roubado como uma mercadoria e nunca ter me dito a verdade?
Eu amava Antonietta. Ainda amo. Seu DNA não corre em
minhas veias, mas sempre vou tê-la como mãe. Alessandro, por
outro lado… não tenho ideia de como nossa relação se transformou
nisso. Nessa coisa horrenda, insignificante e quebrada. É como se
meus sentimentos tivessem sido apagados por completo de um
segundo para o outro, literalmente. Quando a confirmação saiu de
sua boca, tudo desapareceu — o pouco carinho que ainda sentia
por ele, o pouco respeito e a pouca admiração. Depois daquilo, ele
passou a ser um mero filho da puta com quem dividi vinte e seis
anos da vida.
Pergunto-me se sou uma péssima pessoa por permitir que
ele morra. Por permitir que minha namorada o mate, mesmo
sabendo que Alessia gosta de se divertir bastante nas suas torturas.
Não vai matá-lo rápido e sem sofrimento, de jeito nenhum.
E eu não me importo.
Devo ser alguém ainda pior do que imaginei.
Três batidas na porta me tiram do devaneio. Não movo
nenhum músculo, sem intenção alguma de responder.
— Ei, amor — a voz aveludada soa do outro lado. — Por
favor, pode abrir a porta para mim? Por favor, principessa, preciso
ver como você está. Me deixe te ajudar, por favor. Estou morrendo
aqui, linda. Me deixe entrar.
Engulo o nó na garganta e respiro fundo. É visível em seu
tom o quão angustiada ela está. E… talvez eu me sinta um pouco
melhor nos braços dela.
Demoro tanto tempo para me levantar que não tenho certeza
se ela continua ali. Porém, quando giro a maçaneta e abro, vejo
Alessia sentada no chão em frente à porta. Ela arregala os olhos e
levanta num supetão, surpresa por eu ter aberto.
Dou espaço para que ela entre, sem dizer nada, e volto a nos
trancar. Caminho até a cama, deito e me encolho embaixo das
cobertas. O cômodo está iluminado apenas pela luz da lua e,
mesmo assim, observo-a se aproximar e ocupar o espaço ao meu
lado. Seu braço contorna minha cintura, puxa-me para perto e eu
me aninho em seu corpo. Um beijo carinhoso é plantado em minha
testa.
— Quer conversar sobre isso? — indaga, baixo e hesitante.
— Você seria minha chefe — respondo a primeira coisa que
vem à mente. — Se eu estivesse… na Vendetta.
Um nó se forma em minha garganta, o qual tento ignorar.
Coloco o rosto em seu pescoço e inspiro o perfume adocicado que
tanto amo.
— Você gostaria disso? — O silêncio pesado recai sobre nós
por alguns segundos, até que ela complementa: — Gostaria de
estar na Vendetta?
A pergunta me faz estremecer. Um calafrio atravessa minha
coluna e o corpo inteiro tensiona. Notando a reação negativa,
Alessia me aperta contra si e começa um rastro de beijos curtos
iniciado na bochecha até o ombro.
— Desculpa — sussurra entre um selar e outro. — Não
queria te chatear.
— Não me chateou. Eu só… não é uma possibilidade,
Alessia.
— Por quê?
— Como assim “por quê”? — Afasto o rosto apenas o
suficiente para nos olharmos de perto. — Preciso mesmo te explicar
isso?
— Do que tem medo? Você nasceu na Vendetta, Lyanna. É
um direito seu fazer parte da organização, apesar de tudo. Nós
levamos a tradição muito a sério e, acredite em mim, ninguém
refutaria sua inserção na máfia se explicássemos e provássemos.
Além do mais, linda, você ordenou que Alessandro fosse morto. Isso
vai contar bastante para os soldados.
— Não ordenei que ele fosse morto.
— Mas vai, não é?
Merda. Ela me conhece tão bem.
— Não sou uma de vocês — murmuro, mudando de assunto.
— Não quero aceitar que sou. Cresci ouvindo as piores coisas
possíveis sobre vocês e… sou hipócrita por dizer tudo isso estando
nos braços da chefe, mas, tudo bem.
Ela sorri de lado e coloca meu cabelo atrás da orelha,
acariciando minha mandíbula com o polegar.
— Lyanna, você não é mesmo uma de nós. Não me leve a
mal, mas você não cresceu com o nosso treinamento. As coisas são
bem diferentes da Timoria e você sabe disso. Mas, mesmo assim,
sempre senti uma pitada de Vendetta em você. Eu não entendia até
pouco tempo atrás, quando descobri, só que… de alguma forma,
sempre enxerguei um pouco de nós em você.
Não compreendo o que a levou a enxergar isso em mim. Não
faz sentido.
— Você é uma gatinha selvagem, amor. Todos nós da
Vendetta também somos, mesmo que você ultrapasse alguns
limites… — brinca, numa tentativa de amenizar o clima.
Reviro os olhos e, pela primeira vez em muitos dias, um
pequeno sorriso delinea minha boca. Ficamos em silêncio por um
bom tempo, trocando olhares repletos de significados enquanto
deslizo os dedos por baixo de sua camisa e ela afaga meu rosto.
— Me desculpe — quebra o silêncio numa entonação baixa.
— Me desculpe por não ter te contado. Eu… eu só descobri depois
que voltei à cidade e planejava revelar depois que tudo isso
acabasse, com aquele desgraçado ao meu lado. Me desculpe, meu
amor. Você merecia saber e eu não tinha o direito de te esconder
algo assim. Consegue me perdoar, por favor?
Ela soa tão desesperada e com medo que meus olhos se
enchem de lágrimas. Estou emotiva e o amor genuíno em cada uma
das suas palavras me faz querer chorar como um recém-nascido.
— Não estou brava — garanto. — Por mais louco que seja,
eu entendo. Entendo porque não me contou. Me coloco no seu lugar
e acho que também não contaria na situação delicada na qual a
gente estava. Além do mais, eu não acreditaria e nunca mais olharia
para a sua cara se dissesse tudo isso. Estou me sentindo um
completo lixo por ter sido enganada desde que nasci, mas sei que
você não tem nada a ver com isso. Culpo Alessandro e apenas ele.
Suas sobrancelhas franzem e o rosto adota uma expressão
triste. Após engolir em seco, a voz embargada e sussurrada diz:
— Você tem alguma ideia do quanto amo você?
Meu coração dá um pulo surpreso e ela continua no mesmo
segundo:
— Não te mereço nem um pouco. Escute o que você acabou
de dizer… porra, não te mereço mesmo, mas ainda bem que tenho
você. — Balança a cabeça em negação. — Às vezes, acho que
nunca vou conseguir explicar o que sinto de verdade. Dizer que eu
te amo é muito, muito pouco perto do que realmente sinto. Meu
coração bate por você. Clama por você. Não consigo respirar
quando não estou ao seu lado e sei que não te mereço, Lyanna,
mas tenho certeza de que Deus te criou para mim.
Fico sem reação. Estou acostumada com esse tipo de
declaração vindo dela, mas é diferente agora, depois de tudo que
passamos. É mais significativo… mais real.
— Tem noção de quantas vezes já chorei por te amar tanto,
principessa? — Uma lágrima escorre de seu olho e eu perco o ar.
Alessia está… chorando.
Alessia. Está. Chorando.
— Você… chorou? — pergunto, incrédula, e ela assente.
— Eu amo tanto você, linda. Acho que meu coração vai
explodir de tanto te amar.
Começo a chorar junto com ela. Um sorriso enorme cresce
em meus lábios de maneira involuntária e eu ergo a cabeça para
iniciar um beijo lento e apaixonado. Quando nos afastamos, encosto
a testa na dela.
— Eu também amo você. Amo todas as suas versões, até as
mais assustadoras. Amo seu jeito de falar, de liderar e de ser. Amo
tudo em você, mas principalmente sua força. Não existe ninguém
mais forte e que mereça ser feliz tanto quanto você, Alessia. Nunca
duvide disso.
— Como é que você consegue me derreter como manteiga?
Eu sou a chefe da máfia, Lyanna. Por favor, se controle — brinca,
sorrindo.
Reviro os olhos e me aconchego ainda mais nela.
— Você merece ser feliz — sussurro, deslizando os lábios
pelos dela. — Nós merecemos.
— Onde? Onde vamos ser felizes?
Afasto-me um pouco, suspiro e limpo sua bochecha molhada.
— Não sei — confesso.
— Você não vai embora — diz, engolindo em seco. — Não
vai sair de Las Vegas, Lyanna.
— Não sei…
— Não — me interrompe. A súplica transborda pelo olhar
arregalado. — Você não vai a lugar algum.
— Não posso continuar no território da Timoria e não posso
me mudar para o território da Vendetta. Não tenho ideia do que vou
fazer a partir de agora, Alessia.
— Você sabe que existe uma possibilidade. Uma saída.
Balanço a cabeça em negação.
— Já te disse que não tem como. É impossível.
— Eu sou a chefe da máfia — rebate, firme. — É possível se
eu quiser que seja e eu quero mais do que já quis qualquer outra
coisa. Por favor, Lyanna, não faça isso comigo. Não vá embora.
— Não vou embora — asseguro. — Eu só não sei o que
fazer. Nunca poderei viver como uma civil, mas não quero sair do
país e me juntar a outra organização. Eu não… não consigo ver um
futuro para mim.
— Seu futuro é ao meu lado. — Ela segura meu rosto com as
duas mãos e percebo que elas estão trêmulas. — Seu futuro sou eu
e meu futuro é você. Nós duas, juntas, no topo.
É loucura. Não tenho ideia de como ela é capaz de acreditar
que isso é viável. Tornar-me uma soldada da Vendetta é tão surreal
e absurdo que soa como uma verdadeira piada. Mesmo ela sendo a
chefe, nada impediria que um deles me matasse em segredo. Eu
nunca seria cem por cento respeitada, não importa a posição que
ocupasse.
É suicídio.
No entanto, uma sensação cutuca a boca do meu estômago.
Ao perceber que talvez seja… animação, fico apavorada. Que porra
é essa? Por que há uma minúscula parte do meu cérebro animada
com a ideia de estar no topo da Vendetta com Alessia?
— Eu… eu preciso conversar com Sophie e Kai — mudo de
assunto, desviando o olhar. — Sobre tudo isso. Sophie vai entender,
mas Kai vai me ver com outros olhos. Não quero perdê-los.
— Você não vai perder ninguém — garante, beijando minha
bochecha. — Tudo vai dar certo para nós, Lyanna.
Por alguma razão, eu acredito nela.
“É melhor você correr
Vingança
Bondade nunca ficou bem em mim
Nunca fui de sentar quieto
Muito tarde agora para ver a ironia”
Vendetta | UNSECRET ft. Krigarè
 

 
Abro a porta, deslizo a barra de ferro pelo chão e ele
sobressalta ao acordar de repente. Evita contato visual conforme me
aproximo e deslizo o objeto pela sua perna, subindo até o queixo
para forçá-lo a me olhar.
Oliver está pendurado no teto, completamente nu e já um
pouco melhor do que da última vez em que estive aqui. Por ordens
médicas, tive que ficar dois dias sem visitá-lo. Acho que peguei um
pouco pesado demais, pois ele quase sofreu uma hemorragia.
Bobagem. Não se fazem homens como antes.
— Sentiu minha falta? — pergunto, sorrindo. — Pensei em
esperar o sol nascer para vir te dar um “bom dia”, mas não me
aguentei. Prefiro as madrugadas, de qualquer forma. Elas me
inspiram, sabe?
Estive brincando com ele há alguns dias. Até agora, as
únicas vezes que consegui atingi-lo foram aquelas em que o
obriguei a assistir Ruth sendo torturada. Até mesmo um psicopata
como Oliver tem um ponto fraco, afinal. Ele machucou o meu e nada
mais justo do que retribuir o favor.
Derek está à beira da morte. O médico disse que ele não
aguenta mais nenhuma sessão, então terei que matá-lo. Gostaria de
ter mais tempo, mas perdi a cabeça quando Lyanna foi levada e
agora o imprestável está quase vegetando.
— Sobre o que gostaria de conversar hoje? — indago ao me
aproximar do armário ao lado. Abro as portas e corro os olhos pelas
diversas ferramentas, decidindo quais usarei.
— Lyanna.
Meu olhar paralisa. Após soltar uma lufada, olho por cima do
ombro e levanto as sobrancelhas. Oliver está com a cabeça caída
para o lado e a atenção fixa em mim. Mesmo nessas condições, não
consegue deixar de ser soberbo.
— Ela está feliz com a novidade?
Abro um pequeno sorriso de lado ao perceber que, assim
como eu fazia anos atrás, o desgraçado não perde nenhuma
oportunidade de provocar aquele que o está torturando. Diferente de
mim, no entanto, Oliver deixava a maior parte do trabalho sujo para
os seus capangas. Eu gosto de ter o poder em minhas mãos. Gosto
de ouvir os gritos agoniados, ver a dor nos olhos e o sangue
escorrendo pela pele.
Então, suas provocações me incitam. Me divertem. Entre
todas as — poucas — coisas que ele poderia fazer para melhorar a
própria situação, me provocar está longe de ser uma delas.
— Lyanna?.
Ele assente e eu rio baixo, jogando a barra de ferro no chão.
Apanho a Pera da Angústia, uma ferramenta usada nas torturas
medievais. O objeto tem o formato de uma pera e pontas afiadas, as
quais se abrem durante a tortura. Viro-me com um sorriso divertido
e Oliver arqueja quando vê o que seguro na mão, mas tenta não
demonstrar que está com medo.
— Conhece isso? — questiono ao parar em sua frente. —
Essas quatro partes aqui se abrem como uma flor, sabe? Em
qualquer buraco do seu corpo que eu enfiar.
Ele engole em seco e a cor começa a desaparecer do rosto.
Seguro sua boca e a abro o máximo que consigo enquanto Duncan
se debate como um animal e tenta me morder. Acerto sua barriga
com o objeto e ele grunhe alto de dor, cessando os movimentos
— Comporte-se — ordeno.
Enfio a pera em sua boca, ele engasga e arregala as
pálpebras.
— Sabe o que vou fazer se você ousar repetir o nome dela?
— Giro devagar e ela começa a se abrir. Paro logo em seguida para
não expandi-la demais. — Vou arregaçar essa sua boca nojenta
para você nunca mais falar sobre a minha mulher. Fui clara?
Com dificuldade e receio, ele faz um breve balanço de
cabeça em confirmação. Fecho o objeto, puxo-o para fora e Oliver
arfa em alívio. Se pensa que se safou, está muito enganado.
— Quando voltarmos para Las Vegas, vou te colocar num
lugar incrível. — Estico o braço e pego a barra de ferro do chão, a
qual giro entre os dedos conforme esquadrinho sua expressão
vacilante. — Mandei customizar uma jaula especialmente para você.
Será onde vamos nos divertir bastante e onde você passará o resto
da sua vida preso como um animal.
Pressiono a ponta da barra em seu pescoço e ele tosse,
causando ainda mais incômodo em si mesmo.
— Tem ideia das coisas que farei com você? — Deleito-me
com o rápido vislumbre do medo em seus olhos escuros. — Planejei
isso por muitos anos, Oliver. Planejei todas as formas de fazê-lo se
arrepender de ter me conhecido. Vou te fazer implorar pela morte
todas as noites, mas não vou permitir que a tenha.
— Fiz isso com você primeiro, Alessia — retruca, mantendo-
se fiel à reputação inabalável. — Não quebro tão fácil assim, não
sou nenhum amador.
— Sei que não é — garanto, segurando a barra entre as
pernas para sacar uma faca da bainha. Em um ato rápido e forte,
corto as cordas que o prendem no teto, mas suas mãos
permanecem amarradas uma à outra. Ele cai com um estrondo alto,
resmunga e faz uma careta dolorida. — É por isso que vou
aprimorar minhas técnicas com você.
Arrasto-o pelo braço até a mesa na extremidade da cela.
Jogo-o de bruços e Oliver finalmente parece entrar em pânico
quando chamo alguns soldados. Seu rosto empalidece ao observar
dois deles entrando e seguindo minhas instruções — pegar o
separador de pernas, a coleira e a mordaça.
Quando colocam os três itens em Duncan e prendem suas
mãos à mesa, nos deixam sozinhos novamente. Tiro alguns
segundos para admirar a cena deste homem debruçado, nu e
completamente vulnerável a qualquer coisa que eu queira fazer.
Delicio-me com os olhos que, apesar de não estarem arregalados,
transbordam pânico. Ele tenta não me dar o gostinho de vê-lo
assustado, mas consigo detectar cada mínima coisa que faz ou
sente.
Inclino-me, aproximo a boca de seu ouvido e sussurro:
— Nem mesmo a pior das Bestas seria capaz de fazer o que
vou fazer com você. Vai perceber que não existe ninguém neste
mundo que eu não consiga quebrar, Oliver.
Sem dar-lhe tempo para raciocinar, enfio a barra de ferro em
seu ânus. Ele berra, se debate e choraminga. É como música para
os meus ouvidos, deixando-me extasiada e ansiosa por mais.
 

 
Solto a fumaça do cigarro e viro a folha. Estou lendo alguns
documentos e informações que Chloe conseguiu sobre os pais
biológicos de Lyanna enquanto a espero para irmos jantar. Não a vi
durante todo o dia, pois ela disse que passaria um tempo com
Sophie e Kai para explicar e conversar sobre a situação. Ainda não
sei o desfecho, mas acredito que descobrirei esta noite.
O barulho da porta sendo aberta fisga minha atenção e me
levanto depressa, já com a mão na arma presa à cintura. Estamos
em um apartamento diferente do anterior e não pude colocar
seguranças na entrada devido à presença de Lyanna. A reunião
com o Conselho só acontecerá amanhã, então eles ainda estão no
escuro com relação a tudo que aconteceu. Venho recebendo
inúmeras mensagens, ligações e cobranças na última semana, mas
deixei claro que não poderia voltar para Las Vegas enquanto não
aniquilasse toda a gangue de Duncan.
E isso aconteceu hoje. A Holy Devils foi oficialmente extinta e
a Vendetta é a nova máfia que comanda Los Angeles. É uma das
nossas maiores conquistas desde que surgimos e, por isso, não
poderia deixar de comemorar com minha principessa. A aquisição
de uma das maiores cidades do país deixou as coisas um pouco
mais pacíficas no Conselho, o que vai facilitar bastante a conversa
que teremos amanhã.
Uma figura masculina aparece em meu campo de visão e
franzo as sobrancelhas.
— Jeon — cumprimento.
Ele me fuzila com o olhar. Parece querer vomitar diante da
minha presença.
— Quero falar com a Lyanna — responde, ríspido.
— Vou levá-la para jantar agora. — Dou alguns passos
adiante e seus músculos enrijecem. O cara realmente me odeia. —
Aconteceu alguma coisa?
— É um assunto meu e dela.
Passo a língua no interior da bochecha e estudo seu
semblante tenso. Trago o cigarro e ele respira fundo, colocando as
mãos no bolso como se não soubesse o que fazer. Examina cada
centímetro do cômodo, embora não tenha quase nada para ser
examinado.
— Sei que você me odeia — começo, recebendo seu olhar
de volta —, mas vai precisar me aceitar daqui para frente. Não
tenho a menor intenção de criar um clima ruim entre nós dois e
acabar magoando Lyanna.
Ele ri baixo, sarcástico. Os ferimentos em seu rosto,
resultantes da tortura, já estão quase cem por cento cicatrizados.
Tenho certeza de que a situação com Duncan aumentou ainda mais
seu ódio por mim e, em partes, não o culpo.
— Você já magoou ela o suficiente, Alessia. Não seria a
primeira vez.
Solto uma lufada profunda de ar, escolhendo bem as palavras
em minha cabeça.
— Ela te contou o que aconteceu comigo? — Suas pálpebras
espremem. — Nos últimos cinco anos?
— Tudo que ela disse foi que não era a história dela para
contar, mas não me importo, Romano. Todos nós quase morremos
por sua culpa e as coisas nunca mais serão as mesmas. Vou perder
a minha melhor amiga e sabe-se lá o que acontecerá com a minha
máfia. Então, me faça o favor de guardar suas justificativas para si
mesma, porque não dou a mínima.
Fricciono os lábios, balançando a cabeça devagar. Já
esperava essa reação dele e é impossível julgá-lo por estar tão
defensivo e rancoroso. De fato, as coisas na Timoria não estão nada
bem pelo que Yuna me contou.
Não vai demorar para que eles se rebelem e nos ataquem,
especialmente porque estamos com Alessandro. Ainda vamos lutar
mais um pouco até tudo ter um ponto final definitivo.
— Não foi culpa dela.
Viramos ao mesmo tempo ao ouvir a voz de Lyanna. Ela está
descendo as escadas e perco o fôlego ao ver o vestido vermelho,
justo e curto, que realça seu corpo. Acho que entro em estado de
hipnose ao admirar cada partezinha dela, sobretudo o batom
escarlate que vou borrar no final da noite.
— A gente conversou sobre isso, Kai… — Solta um suspiro
cansado.
— Não sabia que vocês iam sair — ele responde,
desconfortável. — Volto amanhã, Lyanna.
Gira sobre os calcanhares, sai da sala e bate a porta da
frente. Os olhos da minha gatinha encontram os meus e abro um
sorriso automático.
— Você é a mulher mais linda que eu já vi — murmuro,
puxando-a pela cintura. Deslizo a mão até sua bunda, apertando-a
com vontade e arrancando uma risada baixa dela. — Vamos
cancelar o jantar e ficar em casa.
— É? — Arqueia a sobrancelha, envolvendo meu pescoço
com os braços. Devido ao salto alto em seus pés, estamos na
mesma altura. — Por quê?
— Porque você está gostosa pra caralho nesse vestidinho
minúsculo, mas estou louca para rasgá-lo no meio. — Selo os lábios
em seu pescoço, criando um rastro de beijos até o ouvido.  — E
acho que já está na hora de você terminar aquilo que começou há
um tempo.
Ela segura minha mandíbula, coloca meu rosto próximo do
seu e semicerra as pálpebras.
— O quê?
Lanço-a um sorriso maroto, roubo um selinho e sussurro:
— Me foder.
 

“Eu desejo o seu gosto durante a noite inteira


Até a manhã chegar
Vou ter o que é meu e você vai ter o que é seu
No meio da noite”
MIDDLE OF THE NIGHT | Elley Duhé
 

 
Alessia fechou o restaurante para nós. Estão aqui somente o
chef e três garçons que se mantêm dentro da cozinha e só vêm à
mesa quando apertamos o botão para chamá-los. Como não
estamos em Las Vegas, presumo que eles não saibam da nossa
verdadeira identidade. Devem supor que somos só milionárias ou
figuras importantes de algum ramo.
Pelo menos é o que eu espero, porque Alessia está me
provocando desde o momento em que chegamos e o álcool no meu
organismo não ajuda em nada. Estamos numa parte afastada e
pouco iluminada, já olhei ao redor inúmeras vezes e de fato não há
ninguém nos vigiando, uma vez que os seguranças ficaram lá fora.
O vinho misturado aos dedos ágeis escorregando pela parte interna
da minha coxa estão esquentando cada centímetro do meu corpo.
Parece que vou queimar por dentro.
— Gostou do jantar? — a voz rouca e mais sensual do que o
normal pergunta em meu ouvido.
Engulo em seco ao sentir a carícia na virilha, perto demais da
minha boceta — que já está molhada e ela sabe muito bem disso.
Não é difícil perceber, afinal, tendo em vista a forma como meu
corpo está reagindo a qualquer mínimo movimento seu.
— Gostei bastante — respondo, bebendo um longo gole e
acabando com o líquido da taça. Pego a garrafa e encho até a
metade mais uma vez, sentindo o rosto e o pescoço queimando.
Devo estar toda ruborizada. — Mas acho que vamos precisar de
mais vinho.
Seu riso baixo me faz virar a cabeça para capturar as pupilas
dilatadas e o olhar lascivo. É nítido que Alessia também está
excitada, mas prefere me provocar em vez de me levar para casa de
uma vez por todas.
— Você tem dois minutos para parar com isso — decreto,
estreitando as pálpebras a fim de enfatizar que falo sério.
— Com isso o quê? — Finge confusão ao franzir as
sobrancelhas.
Levanto a mão depressa e seguro seu pescoço com força.
Ela ofega no mesmo instante, o sorriso morre e posso jurar que vejo
as pupilas dilatando um pouco mais. A língua umedece os lábios e o
movimento atrai minha atenção.
— Não vou repetir.
Vejo-a fechar os olhos, arquear o canto da boca e jogar a
cabeça para trás como se estivesse extasiada. Quando os abre, me
esquadrinha como uma predadora.
— Você sabe que eu amo quando age assim — sussurra,
apertando minha coxa enquanto o polegar desliza pela alça do
vestido. Prendo a respiração ao senti-la escorregar devagar até cair
em meu braço, os dedos percorrendo a pele quente em volta do
meu seio e adentrando alguns centímetros por baixo do tecido. Não
o suficiente. — Se quer me punir por deixar sua boceta molhada
durante todo o nosso jantar, aceito ser punida com prazer.
Filha da p…
Solto seu pescoço, apanho a taça e tomo um longo gole.
Inspecionando uma última vez ao redor, me certifico de que não há
ninguém nos olhando antes de voltar para ela. Seu polegar continua
me provocando, quase abaixando o vestido para exibir meu peito.
Enfio a mão dentro de seu blazer, pego o maço de cigarro e
acendo um. Após dar uma tragada, coloco entre os lábios dela e
assisto-a fazendo a mesma coisa com um meio sorriso de lado.
Recolho o cigarro, soltamos a fumaça juntas e me jogo para trás na
cadeira. Em um ato rápido, agarro sua nuca e trago sua cabeça
para perto ao mesmo tempo em que abaixo o vestido.
Alessia não demora mais do que dois segundos para
abocanhar meu peito. Fecho os olhos, jogo a nuca para trás e dou
mais uma tragada à medida que ela chupa meu mamilo inchado,
abraça minha cintura com o braço e me aperta contra si. Fricciono
os lábios para conter um gemido quando ela lambe, morde e puxa
meu bico um pouco mais forte. Começo a me contorcer, esfregando
as coxas uma contra a outra na tentativa de me aliviar.
Abaixo a cabeça e encontro seus olhos fixos em mim. Assisto
à língua contornando devagar meu mamilo avermelhado antes de
chupá-lo com tanta vontade que quase tenho um espasmo. Agarro a
beirada da mesa e solto um gemido alto, arqueando a coluna e
apertando seus fios.
Ela desce a mão e desliza por cima da minha calcinha, mas,
ainda que o toque tenha me feito contrair a boceta em excitação,
empurro os dedos para longe. Sua boca se afasta no mesmo
segundo e recebo um olhar confuso, além de irritado.
— Não mandei você parar — digo, ríspida, puxando seu
cabelo para trás.
Alessia aperta as pálpebras, deixa um gemido delicioso
escapar e entreabre a boca. É uma visão tão sexy que eu poderia
gozar só olhando para ela. Deixo o cigarro entre os lábios e corro os
dedos pela minha pele quente até alcançar o seio molhado pela sua
saliva. Seguro e aperto com vontade, observando-a hipnotizada e
ofegante.
— Não quer que eu… — Ela parece desistir de continuar
quando me vê descendo em direção à calcinha.
Começo a fazer movimentos circulares em meu clitóris por
cima do tecido e Alessia apanha o cigarro dos meus lábios,
depositando-o na mesa. Expilo a fumaça e minhas pálpebras
estremecem, quase se fechando, mas mantenho-as abertas para
admirar a volúpia nas íris esverdeadas.
Fisgo sua atenção de volta ao apertar novamente os fios de
cabelo. Entre respirações sôfregas, falo:
— Você vai chupar o meu peito enquanto eu me masturbo,
entendeu?
Ela assente e se abaixa para me abocanhar. Abro as pernas,
escorrego os dedos por baixo do tecido e não consigo evitar que um
gemido baixo escape ao sentir o clitóris inchado. Alessia agarra
minha coxa e me ajuda a manter as pernas separadas enquanto
acaricio toda a extensão da boceta e ela devora meu mamilo. Usa
os dentes para me provocar dor e jogo a cabeça para trás, com a
boca aberta e o pescoço suado, ao inserir um dedo. Estou tão
molhada que entra rápido e fácil. Começo as investidas lentas,
entrando e saindo ao mesmo tempo que meu polegar faz o
movimento para cima e para baixo no clitóris.
Alessia desce a outra alça do vestido a fim de dar atenção ao
meu outro seio, beliscando e puxando o mamilo. Coloco mais um
dedo e gemo alto ao ouvir o som delicioso dos dois fodendo minha
entrada encharcada e escorregadia. Aumento a velocidade e sinto
seus dedos fincando em minha pele à medida que choramingo e me
contorço inteira.
Alessia geme contra o meu peito e fico alucinada ao imaginar
que ela também está pingando em sua calcinha.
— Deixa eu te chupar — implora. — Por favor.
Sou incapaz de respondê-la, já que insiro o terceiro dedo e
começo a meter depressa. Até os seguranças devem estar me
ouvindo gritar, mas não me importo; preciso gozar agora, depois
fazer Alessia gozar e depois gozar mais vezes no apartamento.
O espasmo que me atinge é tão forte que se não estivesse
sendo segurada por ela teria caído da cadeira. Vejo estrelas e perco
os sentidos por uma fração de segundo quando o orgasmo chega e
deixa meu corpo inteiro trêmulo. Saio da realidade por um curto
período de tempo e só volto porque Alessia beija meu pescoço,
chupando a pele e deixando marcas. Estou mole, suada e cansada,
mas suas palavras sujas sussurradas em meu ouvido surtem efeito
imediato na minha boceta ainda sensível:
— Minha putinha exibicionista. Aposto que gostou de saber
que todo mundo te ouviu gozando com força no meio do
restaurante.
— Cala a… boca — respondo, arfante, e ela morde meu
lóbulo. — Ainda não terminei.
Ela afasta o rosto e arqueia as sobrancelhas. Seu rosto está
vermelho, o peito sobe e desce em frenesi e os lábios inchados
brilham.
— Ainda preciso terminar uma coisa, lembra? — explico,
reunindo forças para me recompor.
Empurro-a contra o encosto da cadeira, apanho o cigarro
esquecido na mesa e coloco em sua boca. Acendo a ponta e num
ato rápido — desesperado — me ajoelho à sua frente, puxando a
parte de trás dos joelhos em minha direção para que ela fique
sentada na beirada com o corpo arqueado. Assim, tenho um acesso
muito mais fácil à sua boceta.
Sento sobre os calcanhares, umedeço os lábios e levanto os
olhos até os dela. Vejo-a tragar com um sorriso depravado e os
olhos quase completamente escuros por conta das pupilas
dilatadas. Desliza o polegar pelos meus lábios, ameaçando enfiá-lo,
e coloco a língua para fora para lamber a ponta. Deixo ela se divertir
por poucos segundos antes de empurrar sua mão para longe e me
concentrar no zíper da calça.
Deixo a peça em seus pés e vejo a calcinha preta e rendada
que ela usa. A tatuagem de dragão que começa na coxa e termina
nas costelas é uma das minhas preferidas, embora tenha visto de
perto uma única vez. Corro os dedos pelo desenho, passando por
baixo da alça da calcinha e subindo até sua cintura, onde arranho
de leve. Alessia solta um grunhido baixo e satisfeito, mas a mão que
entrelaça nos fios da minha nuca demonstra impaciência.
— Apressada — murmuro, fazendo o trajeto de volta com as
unhas. Ela adora ser marcada, seja pela minha boca ou pelos
arranhões. — Se me interromper dessa vez…
— Não vou — assegura, soando quase desesperada.
Seguro no meio do tecido e o rasgo da mesma forma que ela
fez comigo. Ouço seu riso zombeteiro, jogo a calcinha no chão e
mordisco o lábio inferior ao admirar sua boceta tão molhada a
poucos centímetros. Erguendo os olhos aos dela, aproximo o rosto e
dou uma vagarosa lambida em toda a extensão. Bem devagar,
saboreando cada gota da sua excitação.
Sua mandíbula fina trinca, o peito infla numa respiração
profunda e eu sorrio fraco. Abocanho seu clitóris e chupo
lentamente, assistindo-a tragar o cigarro enquanto contempla cada
movimento meu. Uso a mão livre para acariciar sua barriga até
alcançar seus peitos livres de sutiã. Brinco com o mamilo direito ao
mesmo tempo que chupo e lambo seu ponto sensível, me
controlando para não acabar devorando-a em dois minutos.
O gosto de Alessia me enlouquece. É delicioso e viciante pra
caralho.
— Queria comer essa boceta gostosa o dia inteiro — falo,
separando seus lábios menores para lamber a entrada.
Ela traga o cigarro e tenho certeza de que esta é a visão que
se tem ao chegar no céu.
— Você pode — responde, soltando a fumaça e apertando
um pouco mais forte meu cabelo. Ela fricciona os lábios e fecha as
pálpebras por alguns segundos quando faço movimentos zigue
zague ameaçando penetrá-la. — Pare de me provocar, Lyanna.
— Ou o quê? — Percorro o caminho de volta ao clitóris, sugo
com força e ela solta o primeiro gemido, jogando a cabeça para trás.
— Acha mesmo que está em posição de dar alguma ordem agora?
— Sempre estou — retruca entre lufadas de ar, abrindo as
pernas o máximo que consegue. — Sou a chefe da máfia, lembra?
Insiro um dedo em sua entrada e ela geme arrastado,
arqueando a coluna. A visão de seu pescoço tatuado, com a data do
meu aniversário bem no centro, me excita ainda mais. Adoro me
ajoelhar para Alessia e adoro vê-la de baixo.
— Não parece ser chefe de máfia nenhuma quando está
gemendo desse jeito pra mim.
Ela ri e volta a me olhar. Começo as investidas devagar,
chupando o clitóris com a mesma intensidade. Acaricio e puxo seu
mamilo, arrancando um gemido baixo dela. Seu rosto está
ruborizado, a respiração descompassada e a boca entreaberta.
Estou determinada em fazê-la gemer tão alto quanto eu, então
aumento a velocidade e ouço-a ofegar.
— Tenho um presente… pra você — ela diz, lutando para
manter as pálpebras abertas. Levanto as sobrancelhas e mordo de
leve seu clitóris, causando um curto espasmo em seu corpo.
— É? O quê? — questiono, movimentando a língua em
círculos e depois na horizontal.
— Você vai ver… quando chegarmos… — Mal consegue
falar devido à respiração ofegante. — … em casa.
Desacelero as estocadas para colocar mais um dedo. Ela
solta um gemido alto, se contorce e agarra mais forte meu cabelo.
Acabo gemendo contra sua boceta, esfregando as coxas uma na
outra numa tentativa desesperada de me aliviar. Sua boca forma um
“O” conforme volto a acelerar, as sobrancelhas franzem e as pernas
começam a tremer.
— Sabe que vamos continuar depois, não sabe? — pergunto.
Deslizo com facilidade dentro dela de tão molhada que está.
O barulho é tão delicioso que sou capaz de gozar pela segunda vez
assim, fodendo sua boceta sem ao menos me tocar. Ver uma mulher
tão poderosa e temida dessa forma, completamente entregue a mim
e ao prazer que lhe dou, é alucinante pra caralho.
Ninguém a tem como eu.
— Vamos? — devolve, rebolando na minha boca.
— Vamos. Eu vou esfregar essa sua boceta gostosa na
minha.
A frase faz com que ela solte um grunhido alto e incline a
nuca para trás. Os espasmos ficam mais intensos e as pernas
trêmulas se fecham de cada lado da minha cabeça, me sufocando.
Chupo e lambo seu clitóris ao mesmo tempo que meto com força,
inserindo um terceiro dedo que arranca um grito delicioso de sua
garganta. Ouvi-la choramingar e se contorcer me faz esfregar cada
vez mais as coxas, gemendo baixinho ao me dar prazer enquanto
também dou prazer a ela.
— Lyanna, eu… — Ela não consegue terminar a frase,
gemendo mais e mais e mais. Tiro a mão de seu peito e levo até o
clitóris inchado e molhado, esfregando-o de um lado para o outro
depressa. O barulho de sua boceta sendo fodida com força fica mais
alto, competindo com os gemidos e preenchendo todo o restaurante.
— Goza pra mim.
Ela me asfixia entre suas pernas, solta um grito e agarra a
beirada da mesa quando o orgasmo chega. Continuo estimulando-a
para ouvir seus choramingos até que ela me puxa para longe
através do cabelo.
— Não aguento… mais — diz, fraca e ofegante.
Levanto-me, sento no seu colo e toco sua nuca. Seus olhos
estão fechados e a expressão típica de quem acabou de gozar.
Grudo nossos lábios e Alessia corresponde, mesmo cansada, ao
abraçar minha cintura e segurar meu pescoço.
— Você é deliciosa — sussurro, fazendo-a provar do próprio
gosto. — Segundo round?
Ela ri baixinho, encosta a testa em meu ombro e planta um
beijo no meu pescoço.
 

 
Alessia me empurra contra a porta do quarto sem quebrar
nosso beijo. Agarra minha coxa e levanta minha perna em direção
ao seu quadril, quase fundindo nossos corpos ao mesmo tempo que
chupa minha língua e morde meu lábio inferior. Solto um gemido
baixo e me esfrego nela, tão excitada quanto estava há meia hora
naquele restaurante.
Quando saímos, o constrangimento dos seguranças era
nítido. Todos eles nos ouviram, inclusive os garçons que mal
conseguiram sustentar o contato visual depois. Não os julgo, mas
também não me arrependo.
— Cadê o meu presente? — pergunto ofegante.
Ela leva a boca ao meu pescoço e distribui beijos lentos e
chupões leves. Inclino a cabeça para lhe dar mais acesso, monto
em sua coxa e começo a rebolar devagar. Ainda estou sensível e
tenho certeza de que Alessia também.
— Você vai me enlouquecer — sussurra em meu ouvido e
morde o lóbulo.
Abraço seu pescoço e esfrego com mais força para aumentar
o atrito da minha boceta com a calça. Gemo baixinho e ela segura
minha cintura, incentivando-me a continuar, usando a outra mão
para segurar meu pescoço. Coloca a força exata para restringir o
oxigênio em meu cérebro por alguns segundos, provocando-me
uma sensação gostosa.
— Não vai… me entregar… agora? — falo com certa
dificuldade.
— É claro que vou — é o que ela responde antes de cessar
meus movimentos e se afastar.
Sou puxada até a cama, me sento na beirada e Alessia vai
em direção ao closet. Meu cenho franze ao ver o grande espelho à
minha frente, já que ele não estava ali quando saímos. Por que ela
colocaria um espelho ali enquanto estávamos jantando?
Saio do devaneio quando ela volta, senta-se ao meu lado e
me estende uma pequena caixa. Cerro os olhos em desconfiança e
abro a tampa.
Meu coração acelera quando vejo o presente e minha boceta
contrai automaticamente. Engulo em seco, respiro fundo e pego.
É uma coleira preta com o nome dela em dourado e uma guia
de corrente removível.
A ideia de usá-la me deixa encharcada, mas não perco a
oportunidade de provocá-la ao dizer:
— Você acha mesmo que vou usar isso?
Ela sorri com o lábio entre os dentes, puxa-me pela cintura e
me coloca sentada em seu colo com uma perna de cada lado.
Estala um tapa forte e inesperado em minha nádega direita, por
baixo do vestido e diretamente na pele, fazendo-me arfar. Com a
voz rouca e carregada de volúpia, diz:
— Você vai usar essa coleira toda vez que eu comer sua
boceta. Não é um pedido, Lyanna. É uma ordem.
— Só no sexo? — pergunto, arqueando a sobrancelha. —
Não prefere que eu a use por aí para todo mundo saber que eu
tenho dona?
A frase parece deixá-la extasiada. As pupilas dilatam, uma
mão aperta minha cintura e a outra estala mais um tapa em minha
nádega, dessa vez mais forte. A ardência me faz estremecer e
conter um gemido baixo.
— Você gosta de brincar com fogo, princesa — murmura,
escorregando os dedos até o zíper do meu vestido. Abre-o devagar
conforme um sorriso fraco cresce no canto dos seus lábios.
— Estou me queimando desde que te conheci, Alessia.
Ajudo a tirar a peça, que é jogada para longe. Inclino-me para
frente e solto uma lufada quando esfrego os peitos contra os seus
ainda cobertos pela camisa. Meus mamilos estão duros e sensíveis,
tornando o atrito ainda mais gostoso.
Ela pega a coleira da minha mão, abre a fivela e coloca em
meu pescoço. Quando a fecha na nuca, arrepio dos pés à cabeça
ao ver a mudança em seu olhar. Fica mais… primitivo. É como se eu
fosse a caça e ela, a caçadora.
— Ficou bom? — pergunto.
Suas íris, quase tomadas por completo pelas pupilas, sobem
até as minhas. Sem aviso prévio, ela puxa a corrente da guia e o
movimento aperta meu pescoço. Fico sem ar por alguns segundos,
ofego e solto um gemido alto, fincando as unhas em seu ombro.
— Pra caralho — sussurra.
Não tenho tempo para me recompor, pois Alessia gruda a
boca na minha e me beija com urgência. Chupa minha língua, lambe
meu lábio e deixa meu corpo mole com a intensidade do beijo. Ela
inverte nossas posições, nos deitando no colchão, mas não
permanece na cama. Levanta-se e começa a tirar cada peça de
roupa bem devagar, como se estivesse me dando um show de
striptease. Quando percebo, já estou acariciando minha boceta por
baixo da calcinha enquanto assisto a calça escorregando pelas suas
pernas até ser jogada longe.
Faço movimentos circulares em meu clitóris à medida que a
vejo engatinhando em minha direção. Quando para em cima de
mim, inverto e fico por cima, sentada em seu quadril. Abocanho seu
seio direito, lambendo e sugando o mamilo inchado. Ela agarra meu
cabelo e bate em minha bunda, tão forte que sobressalto e gemo
em seu peito. Levo a mão livre até sua boceta molhada e insiro dois
dedos de uma só vez, ouvindo-a gemer e arquear a coluna. Estoco
mais rápido e mamo seu peito com a mesma intensidade,
arrancando suspiros e gemidos deliciosos dela.
— Você é tão boa, Lyanna — ela diz entre respirações
ofegantes, e o elogio me faz grunhir baixinho em satisfação. —
Minha cadela obediente.
Assinto, solto seu mamilo e subo para o pescoço. Beijo e
chupo, deixando marcas roxas das quais não vou me arrepender
amanhã. E nem ela. Acelero as investidas, monto em sua coxa e
começo a me esfregar nela ao mesmo tempo que fodo sua entrada.
Seus espasmos começam e ela me agarra mais forte, apertando
meu cabelo e dando um tapa atrás do outro em minha bunda,
incentivando-me a rebolar em sua perna. O atrito do tecido contra
meu clitóris me faz gemer cada vez mais alto, me juntando a ela nos
espasmos e no tremor.
De repente, Alessia segura meu pulso e cessa as estocadas.
Afasto o rosto, olhando-a em confusão, mas logo entendo o porquê:
— Quero gozar esfregando minha boceta na sua.
Porra, sim. Por favor.
Tiro minha calcinha, respiro fundo e prendo o cabelo num
coque desarrumado. Quando estou prestes a levantar suas pernas
para me encaixar de frente, ela nega com a cabeça e muda a
posição no colchão, ficando na horizontal.
— De lado. Você vai se assistir no espelho enquanto rebola
em mim.
Obediente, eu me encaixo de lado. Apoio um dos pés no
colchão ao lado da sua barriga enquanto dobro a outra perna
embaixo da dela, a qual seguro para manter de apoio. No ângulo em
que estamos, basta que eu erga a cabeça para encarar meu reflexo
à frente.
Então é por isso que ele foi colocado aqui.
Já no primeiro contato dos nossos clitóris, nós duas
gememos. Começo com movimentos lentos, para cima e para baixo,
esfregando os dois juntos. Ambos estão tão encharcados que
deslizam fácil, provocando um barulho que preenche o cômodo
junto dos nossos gemidos. Acompanho tudo através do espelho,
ficando ainda mais excitada ao ver a coleira em meu pescoço com o
nome dela.
Alessia dá um tapa forte em minha nádega, que está sensível
devido aos anteriores, e eu choramingo com a ardência. Tenho
certeza de que as marcas dos seus dedos estão na minha pele e
não vejo a hora de admirá-las.
Vejo seus peitos pulando, assim como os meus, o corpo
arrastando no colchão por conta dos movimentos e a boca aberta.
Ela pega a guia da coleira e puxa a corrente, fazendo-me jogar a
cabeça para trás e gemer alto com a sensação de asfixia misturada
ao atrito das nossas bocetas.
— Continua rebolando gostoso assim — ela pede.
Eu anuo, incapaz de proferir uma frase. Um grito me escapa
quando atinjo um ponto sensível e tenho um espasmo intenso,
assim como ela. Minhas pernas fracas começam a tremer e Alessia
percebe, então inicia os movimentos e rebola mais rápido do que
eu. Estamos em sintonia, num encaixe perfeito, e acho que nunca
senti tanto prazer antes. Meu corpo queima, o suor escorre e mal
consigo manter as pálpebras abertas.
— Gosta do que vê no espelho? — pergunta, ofegante, e
nossos olhares se cruzam no reflexo. — É melhor se lembrar dessa
imagem toda vez que ousar pensar que não é minha. Você é minha.
Minha mulher e minha cadela.
Sorrio em êxtase diante das suas palavras. Amo sua
possessividade e suas palavras sujas.
Admiro cada centímetro de seu corpo: o cabelo bagunçado;
os olhos verdes vidrados nos meus; a boca aberta emitindo gemidos
deliciosos; o tronco balançando em completa sincronia com o meu;
e as tatuagens decorando sua pele. As malditas tatuagens que me
enlouquecem pra caralho.
Ela é gostosa de qualquer forma, mas assim, embaixo de
mim e com a expressão de puro prazer… vou realmente me lembrar
dessa imagem para o resto da vida.
Inclino-me para frente, apoio as mãos no colchão e vou mais
rápido, esfregando com força e desespero. Recebo tapas conforme
Alessia me segura pela corrente da coleira e auxilia nos
movimentos, criando um atrito ainda maior.
Estamos gemendo alto e, a essa altura, já desisti de manter
os olhos abertos. Eles estão apertados e tremendo, sinalizando que
meu orgasmo está próximo. Sinto tanto prazer que as lágrimas
começam a descer e preciso me concentrar para não desencaixar
minha boceta da dela devido aos espasmos.
— Eu vou gozar — digo num sussurro, torcendo para que ela
escute.
— Encharca minha boceta com seu gozo, Lyanna.
Sua ordem me faz gozar tão forte que abro a boca, mas
nenhum som consegue sair. Sinto o líquido jorrando e fazendo
exatamente o que ela disse. Cinco segundos depois, Alessia
arqueia a coluna e grita, gozando junto comigo. Não paro de rebolar,
prolongando nosso prazer, até que meu corpo mole fica incapaz de
se mover.
Caio no colchão, sentindo-o molhado com nossos gozos, e é
como se eu tivesse perdido a consciência por um tempo. Volto à
realidade quando Alessia me puxa para cima e, de alguma forma,
me carrega no colo. Não tenho ideia de como ela encontrou forças
para isso quando eu sequer consigo abrir os olhos de tão fraca.
Quando noto que estou sendo colocada numa banheira cheia
de água quente e confortável, me empenho para abrir as pálpebras.
Ela se encaixa atrás de mim, encostando-se na parede, e me
aconchego entre suas pernas.
— Estou morta — ela sussurra em meu ouvido.
Já não estou mais com a coleira, então ela deve ter tirado de
mim antes de me trazer ao banheiro.
— Eu também — respondo, jogando a cabeça em seu ombro.
— Acho que… não vou conseguir andar por uns dias.
Ela ri e eu abro um sorriso fraco, deleitando-me com a carícia
em minha barriga.
— Gostou do presente? — questiona, beijando minha
bochecha.
— Muito — confesso, fechando as pálpebras novamente. Se
ela não me impedir, vou acabar dormindo na banheira. — Mas
gostei mais ainda de ser chamada de “sua cadela”.
Alessia ri de novo, beija meu pescoço e me aninha contra si.
— Você ainda vai ouvir muitas e muitas vezes.
Espero que sim, penso.
“Melhor me dar sua lealdade
Porque estou conquistando o mundo, você verá
Eles vão me chamar de realeza”
Royalty | Neoni
 

 
Estalo o pescoço, solto uma lufada de ar e embaralho
depressa as cartas. Ando de um lado para o outro na enorme Sala
de Reunião para tentar me acalmar e relaxar. Não posso perder a
postura pela primeira vez diante do Conselho, especialmente nesta
reunião.
Será a mais difícil e desafiadora de todas e por isso, estou
nervosa. Na verdade, “nervosismo” é um eufemismo para mascarar
um sentimento que sempre me recusei a admitir que tenho: medo.
Muito, muito medo. As próximas horas serão determinantes para o
futuro da Vendetta, mas, para ser sincera, estou mais preocupada
com o meu futuro. Com o futuro de Lyanna.
Com o nosso futuro.
Três batidas na porta interrompem meus passos. Giro sobre
os calcanhares a tempo de ver Jayden entrando ao lado de Yuna e
ambos me olhando com cautela, como se esperassem pelo
momento em que vou surtar.
— Tudo certo? — King pergunta.
— Não muito — sou sincera.
Nossa relação voltou ao normal depois que conversamos e
pedi desculpa por ter lhe dado um soco no rosto. Não perguntei
sobre Sienna e o que está acontecendo entre eles, porque não
parecia ser o momento certo e eu não queria estragar nossa
amizade. No entanto, pretendo sim ter uma conversa com ambos
separadamente. Seja lá o que eles tenham, o fato de Jayden ser o
Subchefe da máfia e Sienna a herdeira torna tudo um pouco mais
complicado.
E eu, não só como chefe mas como irmã e melhor amiga,
preciso saber com o que estou lidando para me preparar caso algo
dê errado.
— Já sabe o que vai falar para eles sobre a Lyanna? — Yuna
indaga num tom apreensivo.
— A verdade. Pelo menos, parte dela.
— Chloe disse que os soldados de todas as subdivisões
estão fascinados por você — Yamazaki revela e arqueio as
sobrancelhas. — Por conta do sucesso na missão contra a Holy
Devils.
— Menos os mais velhos, presumo.
— Na verdade, ela falou que alguns deles também estão
impressionados e que ter conquistado Los Angeles fez você ganhar
um bocado de pontos com o alto escalão.
Embora eu já soubesse que isso aconteceria, ouvir a
confirmação saindo de sua boca faz meus músculos relaxarem.
Sinto-me mais confiante e esperançosa de que ter agregado a
segunda maior cidade do país à nossa máfia faça com que eles
sejam mais receptivos na reunião de hoje.
— Eles estão começando a enxergar que você nasceu para
liderar a Vendetta, Alessia — Jay diz, sorrindo de lado e acariciando
meu ombro. — Vai dar tudo certo. Estamos aqui para te apoiar.
Solto uma respiração profunda, retribuo o sorriso e assinto.
Quando a porta é aberta e os membros começam a entrar, engulo o
nó na garganta, guardo as cartas e caminho até minha cadeira. A
maioria deles está conversando aos sussurros e os olhares de canto
não passam despercebidos por mim.
— Agradeço pela presença de todos — profiro, mantendo a
cabeça erguida e a entonação firme.
O cômodo fica completamente silencioso. Há quase quarenta
pessoas aqui, visto que convoquei os representantes das outras
divisões também. Jayden está ao meu lado direito, Yuna ao
esquerdo e Chloe um pouco mais à frente. Quando nossos olhos se
cruzam, ela me lança uma piscadela e um sorriso fraco a fim de me
tranquilizar.
— Acredito que já saibam, mas eu gostaria de começar
dizendo que a missão contra a Holy Devils foi um sucesso.
Destruímos a gangue, resgatamos Lyanna e nos tornamos a
organização dominante em Los Angeles. Aproveito o momento para
informar que pretendo fazer uma cerimônia especial em
homenagem a todos os nossos soldados que morreram para que
pudéssemos ter a maior conquista da história da Vendetta.
A notícia parece surpreendê-los e presumo que seja porque
não esperavam que eu me importasse, já que declarei estar ciente
de todas as mortes que poderíamos ter caso enfrentássemos a
gangue. No entanto, ter consciência de que não existe guerra sem
morte não significa que não me importo com o óbito de cada um que
deu a vida pela máfia. Quero honrá-los e agradecê-los de alguma
forma.
— Dito isso, quero esclarecer alguns pontos sobre a missão.
O primeiro deles é sobre “ter rendido” nossa máfia, algo que não
aconteceu de fato e que jamais aconteceria em nenhuma
circunstância. Junto a Ventura — aponto para ela com o queixo —,
montei um plano secreto após descobrir, através de Duncan, que
seu objetivo sempre foi roubar nossos soldados; nosso poder. Ele
deixou claro que tudo que fez desde o início das negociações com
Dante foi visando dominar a Vendetta no futuro. Então, percebi que
nada do que planejamos daria certo se Oliver e Logan, que estava
no comando, pensassem que não estávamos dispostos a nos
render. Simulei uma rendição e, no mesmo segundo, ordenei que
Chloe atirasse em Perkins. Ninguém além dela poderia saber, pois
precisava funcionar e eu tinha consciência de que geraria uma
indignação coletiva caso acreditassem que eu estava realmente nos
rendendo ao inimigo.
Não façam perguntas, penso. Não façam malditas perguntas.
Como, por exemplo: “Por que eles acreditariam que você
renderia a máfia apenas para salvar Lyanna Bellini?”.
Para evitar, continuo depressa:
— Depois de tudo que fiz por nós, até mesmo quando ainda
não tinha uma posição no alto escalão, acredito que esteja claro que
eu não nos renderia sob hipótese alguma. Já estava disposta a
morrer pela Vendetta antes dos dezoito anos e agora, sendo chefe,
não há nada e nem ninguém capaz de me fazer render nossa máfia.
A expressão no rosto de cada um é bastante diferente das
primeiras reuniões que tivemos. Consigo enxergar o avanço em
minha relação com o Conselho e, apesar das complicações, tenho
esperança de que eles me respeitarão da mesma forma que
respeitaram Dante. Em pouco tempo de liderança, mostrei meu
comprometimento com a organização e meu desejo em nos tornar
ainda maiores e mais poderosos. É inegável até mesmo para eles.
— O segundo ponto é sobre nossa nova divisão em Los
Angeles. Gostaria de já iniciar a criação do alto escalão e, portanto,
darei uma semana para que os senhores pensem e escolham os
nomes que acreditam serem as melhores opções. No entanto… —
Escorrego o olhar até Chloe e ao notar que não desvio quando volto
a falar, ela franze as sobrancelhas: — Não haverá votação para a
posição de capo, pois é do meu desejo que seja concedida a Chloe
Ventura. Nossa última missão mostrou a todos o quão competente e
leal ela é e não há ninguém em quem eu confie mais para liderar
uma das nossas maiores cidades. Parabéns, Ventura, será uma
honra tê-la como minha capo.
Ela paralisa. O semblante cai em puro choque, a boca se
abre e posso jurar que vejo seus olhos lacrimejando pela primeira
vez desde que nos conhecemos. Sem que eu precise pedir, os
membros começam uma salva de palmas a ela.
Abro um sorriso sincero e carinhoso, torcendo para que
Chloe entenda que esta é minha forma de agradecer por tudo que
ela fez, não só para a Vendetta, mas principalmente para mim. Sua
ajuda foi essencial nos últimos meses e ainda que seja sua
obrigação não prejudicar a máfia, sou grata por ela não ter dito a
ninguém sobre Lyanna e eu.
Chloe Ventura é uma joia rara e sou sortuda por tê-la ao meu
lado.
— Obrigada, chefe — responde com a voz embargada,
engolindo em seco para reprimir as lágrimas. — Muito obrigada.
Assinto, respiro fundo e me ajeito na cadeira.
Chegou a hora.
— O terceiro e mais importante assunto é sobre Lyanna
Bellini. — Eles se entreolham, apreensivos, e preciso esconder as
mãos embaixo da mesa para ninguém perceber que comecei a
tremer. — Durante a missão, foi revelado uma informação sobre
Lyanna que diz respeito a nós… à Vendetta.
Agora, eles parecem confusos. As únicas pessoas que
sabiam desse segredo estão mortas ou sob o meu domínio, então o
boato não correu pelo submundo.
— Lyanna foi roubada de seus pais biológicos quando tinha
poucos dias de vida para substituir o bebê natimorto de Alessandro
Bellini. Ele assassinou os pais e incendiou a casa, fazendo com que
todos acreditassem que os três morreram no incêndio. — Aos
poucos, vejo a expressão dos mais velhos se transformando em
puro choque. A história teve um enorme impacto nas pessoas
naquela época, justamente por ser triste demais. Então, acho que
eles já estão ligando os pontos. — O que estou querendo dizer é
que Lyanna é filha de Sloan e Garrett Mancini, dois antigos soldados
da Vendetta. Já submeti os DNAs para análise, mas, de qualquer
forma, todas as outras provas das quais fui atrás comprovam que
Lyanna é um membro legítimo da Vendetta, inclusive a confissão do
próprio Alessandro.
Um, dois, três segundos.
Três segundos é o tempo necessário para a enxurrada de
exclamações começar. Quase sobressalto com o grito proferido
próximo a mim e sequer tento compreender o que eles estão
falando ao mesmo tempo.
— Parem! — vocifero, batendo a mão na mesa. Eles se
calam. — Sei que os senhores têm inúmeras perguntas, mas
preciso continuar. Durante os dias em que Lyanna ficou sob o
domínio da Holy Devils, eles a torturaram para fazê-la hackear
nosso sistema e obter todas as informações possíveis sobre a
Vendetta, as quais seriam espalhadas para as autoridades e para os
nossos inimigos. O vídeo que foi divulgado tinha o objetivo de me
assustar após Logan Perkins me enviar uma ameaça garantindo
que Lyanna seria a chave para sermos destruídos. Porém, sabendo
o quão perigosa a gangue era, ela se recusou a fazer qualquer coisa
que ele ordenasse. É por isso que foi tão torturada e levou a facada
no peito vista por todos nós.
É tudo mentira. Eles não fizeram isso, mas é completamente
crível e eu preciso de motivos que façam com que o Conselho goste
um pouco mais dela. E como previ, algumas sobrancelhas arqueiam
em surpresa enquanto outras pálpebras se estreitam.
— Lyanna não tinha razões para ficar do nosso lado, muito
pelo contrário. Se tivesse ajudado Perkins e obtido as informações
sobre nossa máfia, não estaríamos aqui hoje. Se nossos dados
caíssem nas mãos do FBI, a Vendetta deixaria de existir. Por isso,
embora Lyanna tenha crescido e feito parte da máfia inimiga,
acredito que devemos levar isso em consideração.
— Você está querendo dizer que devemos confiar nela? —
um deles pergunta.
Nego com a cabeça.
— Não espero que nenhum de vocês confie nela de um dia
para o outro. Eu não confio — minto. — Mas, discutindo com minha
consigliére, chegamos ao entendimento de que Lyanna nos salvou
de uma crise irreparável. Como don da organização, não posso
deixar que isso passe em branco.
— Não estou entendendo muito bem, chefe — uma das
mulheres da divisão de Nova Iorque diz —, o que estamos
debatendo aqui? A possibilidade de Lyanna ser inserida na
Vendetta?
— Para ser sincera, Emily… talvez. Tenho bastante interesse
nas habilidades de Lyanna e acredito que poderíamos crescer ainda
mais se a tivéssemos ao nosso lado. Ainda que nossa equipe de
segurança seja uma das melhores, ninguém no submundo
consegue fazer o que ela faz. Tê-la na Vendetta nos daria a chance
de ser a maior organização criminosa do mundo. Teríamos mais
poder, mais território e muito, muito mais dinheiro. Se eu não
acreditasse que Lyanna fosse a peça que falta para nos tornarmos
infalíveis, não traria o assunto à tona. Porém, depois de descobrir
que ela nasceu entre nós e tem o direito de ser iniciada na máfia,
não poderia perder a oportunidade de nos tornar os maiores não só
do país, como do mundo.
Eles ficam em silêncio, mas consigo enxergar que a ideia não
parece tão ruim em suas mentes. Os semblantes pensativos não
transbordam indignação ou desprezo, o que já é um ótimo sinal. Sei
que a aceitação não vai acontecer do dia para a noite, mas usar a
tática de ganharmos mais poder, dinheiro e território é quase
infalível. Eles não vão se importar com o histórico de Lyanna
quando ela conseguir informações milionárias para nós e o bolso de
cada um deles se encher ainda mais com dinheiro.
As vozes voltam a me bombardear com perguntas ao mesmo
tempo. Sinto uma pontada na têmpora e respiro fundo,
escorregando os olhos até Jayden. Ele sorri de lado e balança a
cabeça para me dizer que as coisas estão indo bem.
— Como podemos saber que Lyanna não vai nos trair? — um
Conselheiro de Vegas indaga.
— Lyanna pediu, na verdade ordenou, que eu matasse
Alessandro.
Diversos olhos se arregalam em choque e as conversas
cessam instantaneamente.
— Ele a traiu da pior forma possível e Lyanna o quer morto
por isso. Após conversar com ela sobre o futuro de Alessandro e da
Timoria, posso garantir a todos vocês que não existe a menor
possibilidade dela nos trair.
— Ela ordenou que você matasse… o próprio pai? — outro
questiona, soando incrédulo.
— Ele não é o pai dela — corrijo. — E, além do mais,
Alessandro foi o responsável pela morte de Antonietta. Parece que
Lyanna tem a mesma tolerância que nós para traidores.
Mais um ponto para ela.
— Não vejo problema — Emily revela —, contanto que seja
um processo lento. Acho que nenhum de nós confia nela para inseri-
la totalmente na máfia logo de cara. Se Lyanna mostrar que
podemos confiar nela e se seu trabalho nos render frutos, aí
concordo em fazer dela um membro oficial da Vendetta. Até lá, ela
pode ser uma associada.
— Concordo cem por cento, Emily — digo. — Minha intenção
é exatamente essa.
— É perigoso — outro fala, franzindo o cenho. — Poderia nos
mostrar as provas sobre o nascimento dela, chefe?
Assinto, gesticulo para Jayden e ele pega a maleta do chão.
Abre, retira todos os envelopes e começa a distribuir para cada um.
— Vou dar um tempo para que vocês leiam e discutam.
Retorno em meia hora para chegarmos numa resposta.
 

 
Antes de voltar para casa, há uma coisa que eu precisava
fazer: falar com Sienna.
Posterguei essa conversa o máximo que consegui, mas já
está na hora de ela saber da verdade. De tudo. Minha irmã não é
mais uma adolescente indefesa e já não corre o perigo de antes,
além de merecer saber o que realmente aconteceu.
Estou nervosa pra caralho quando bato três vezes na porta
do novo apartamento dela. Sienna se mudou ontem da antiga casa
de Dante e confesso que fiquei surpresa, pois não esperava que ela
fosse sair de lá. Jayden a ajudou a escolher uma localidade boa e
um apartamento perfeito — em suas palavras.
Tive que ignorar o fato de que, coincidentemente, este lugar é
bem próximo do dele.
A porta é aberta e sou recebida por um sorriso enorme.
— Ale! Vem, entra! Tô tão feliz por você ser a primeira a
conhecer meu apartamento. — Ela me puxa pelo braço e fecha a
madeira atrás de nós. — Quer dizer, Jayden já conhece, mas você
entendeu.
Meu estômago embrulha e tento retribuir o sorriso, mas tudo
que faço é uma careta. Acho que meu nervosismo está estampado
na minha cara, pois ela franze as sobrancelhas.
Por favor, não me odeie. Por favor, não me odeie.
— O que aconteceu? — pergunta, dando um passo adiante
para esquadrinhar meu rosto.
Numa tentativa de acalmar as batidas aceleradas do coração,
observo ao redor. Alguns soldados ajudaram na mudança, então já
está tudo em seu devido lugar. Não posso negar que, de fato, o
lugar é perfeito para Sienna. A decoração tem o estilo clássico e
embora esteja somente na sala, tenho certeza de que todo o resto
parece um castelo da realeza.
— Queria ter te ajudado com tudo isso — revelo, olhando-a.
— Sou péssima com decoração, mas teria ficado feliz em ajudar.
Tudo está lindo, Enna. Posso conhecer os outros cômodos?
Ela parece contente com minha curiosidade. Assente, segura
minha mão e me arrasta até as escadas. Como previ, o apartamento
todo parece um lugar de uma família real. É bem o estilo dela e a
cada nova porta aberta acompanhada de um sorriso enorme em seu
rosto, meu coração se enche de orgulho. Faço diversos elogios e
ela fica ainda mais alegre ao ouvi-los, como se minha aprovação
fosse importante.
Sienna amadureceu muito, principalmente desde que retornei
à cidade. Acho que todo o caos trazido por mim fez com que as
coisas mudassem em sua cabeça, além do choque em ter sido
quase morta e depois entrado num tiroteio com a gangue rival.
Alguns anos atrás, eu nunca permitiria que ela se colocasse em
risco daquela forma, mas talvez já esteja na hora de eu aceitar que
minha irmã não é mais uma criança. Ela até tem seu próprio lugar
agora e parece mais madura em todos os sentidos, até mesmo
naquele que não quero admitir: relacionamentos.
Quero protegê-la para sempre, pois é um instinto natural meu
que nunca vai desaparecer. Nosso mundo me fez crescer
superprotetora com aqueles que eu amo, porque eles podem ser
tirados de mim num estalar de dedos. E eu não conseguiria viver se
minha irmã se fosse. No entanto, tenho que deixá-la seguir o próprio
caminho agora e tomar suas próprias decisões, seja em sua vida
pessoal ou dentro da organização.
E isso começa agora ao saber de toda a verdade.
— Sienna, precisamos conversar — digo, quando voltamos à
sala e nos sentamos
— Sobre o que aconteceu em Los Angeles? — ela presume,
virando-se de frente para mim. Engulo em seco, respiro fundo e
passo a mão gelada no rosto. Estou tremendo e ela percebe. — Ale,
o que está acontecendo? Você está pálida.
Ela vai entender, não vai?
Sienna tem um coração enorme. Não tem como ela te odiar
depois de saber do que ele fez com você.
Por favor, não me odeie. Por favor, não me odeie.
— Eu… não… não é só sobre isso — gaguejo, mirando o
chão.
Nem consigo olhar para ela de tão aflita que estou. Me
preparei para esse momento há muitos anos e, mesmo assim, sinto
que não tive preparo nenhum. Acho que nem uma década seria o
suficiente para me acalmar em relação a isso.
Ela vai entender. Ela vai entender. Ela vai entender.
Reúno coragem para me virar no estofado, de frente para ela,
e sustentar o contato visual. Meu comportamento está a deixando
nervosa, já que não me lembro da última vez que Sienna me viu
assim. Ela já deve imaginar que o assunto é bem sério somente
pela maneira como a encaro.
— Você está me assustando — murmura, receosa.
— É sobre Los Angeles também, mas tudo começa com
Dante — solto, engolindo a saliva.
Sua expressão muda aos poucos e ela solta uma respiração
profunda.
— Tudo bem… pode falar.
Ela vai entender.
Por favor, não me odeie.
— Dante me odiava com todas as forças, Sienna. Eu fazia
todo o trabalho sujo para ele, porque era um meio de me quebrar.
Me destruir por dentro. Ele queria me transformar numa máquina
sanguinária incapaz de amar qualquer coisa além da máfia. Todos
aqueles hematomas que você via em meu corpo quando eu ainda
era uma criança… — Respiro fundo. — Ele ordenava que alguns
soldados me dessem uma surra com bastante frequência para “me
dar uma lição”. Quando comecei a lutar de volta e matei todos eles,
Dante percebeu que eu finalmente tinha me transformado em quem
ele queria que eu fosse. E foi aí que minha reputação começou. Eu
passei a gostar de caçar, torturar, matar… porque era bom ver o
medo nos olhos das pessoas; era bom pra caralho ser temida,
mesmo que isso tenha sido resultado de muita porrada e muitos
crimes.
“Nunca permiti que você se envolvesse nos negócios da
máfia porque eu não queria que você conhecesse esse lado meu,
Sienna. Você conhecia minha reputação, mas eu já… já fiz coisas
muito piores do que você imagina. Fiz tudo em nome de Dante para
garantir que ele não machucasse quem eu amava ou, pior, que
desistisse de mim e começasse e tornar você o projeto mortífero
dele. E toda aquela merda tinha funcionado, porque a Vendetta era
tudo que me importava. Além de você, Jayden e Yuna, não havia
absolutamente ninguém para quem eu dava a mínima. Todos
poderiam morrer e eu sequer sentiria pena. Até… até conhecer
Lyanna.”
Minha irmã está imóvel, encarando-me com a boca um pouco
aberta e os olhos arregalados. Nem está piscando e talvez tenha se
esquecido de respirar. Estática.
— Conheci ela há dez anos, num bar fora da cidade, mas só
dois anos depois nós conversamos pela primeira vez. Desde o
primeiro diálogo, eu já sabia que estava arruinada. Lyanna roubou
tudo de mim: meu coração, meus pensamentos, minha alma. Eu
não conseguia mais viver normalmente, porque tudo em que eu
pensava era ela. Tudo que eu fazia era para ela — para tentar
chamar sua atenção ou encontrá-la. Nos primeiros meses, tudo
mudou dentro de mim. A vida passou a ter cor e os dias já não eram
mais tão pesados e insuportáveis. Eu acordava feliz, pois sabia que
a veria no final da noite; veria seus lábios pintados de vermelho, os
olhos escuros mais lindos que já conheci, o sorriso que me
fascinava e as palavras ácidas que me faziam queimar em puro
desejo. Quando percebi, já tinha encontrado um novo propósito pelo
qual valia a pena viver: ela. Não o crime e a máfia, mas uma mulher
que insistia em dizer que me odiava ao mesmo tempo que devolvia
meus olhares apaixonados na mesma intensidade, mesmo que não
percebesse. Estávamos as duas arruinadas e era impossível voltar
atrás.
A primeira lágrima escorre em sua bochecha e sinto o mesmo
acontecendo comigo. Pisco forte, deixando que as demais desçam,
e solto uma lufada antes de continuar:
— Nós namoramos por quase três anos. Foram os melhores
anos da minha vida, Sienna. Antes de Lyanna, tudo era preto e
branco, sem um futuro e sem sentimentos. Eu me resumia a tortura,
sangue e crueldade. Ansiava pela morte todos os dias, porque
quando você se envolve dessa maneira no crime, é difícil enxergar
motivos para continuar vivo. Só que depois dela… comecei a querer
viver. Lyanna me mostrou que havia um futuro me esperando, nos
esperando, e que valia a pena lutar por ele. Não havia nada no
mundo que eu quisesse mais do que ter um futuro com ela. Uma
casa, uma família, um legado… estava disposta a fazer qualquer
coisa para garantir que, seja lá o que acontecesse, nós
estivéssemos juntas no final.
O semblante da minha irmã é de pura surpresa. Ela não é
burra ao ponto de não ter percebido que minha relação com Lyanna
não nasceu nos últimos meses, mas acredito que não esperava tudo
que estou dizendo. E ainda nem comecei a pior parte.
— Ela se tornou tudo para mim. Alguém por quem eu mataria
e morreria sem pensar duas vezes, independente do motivo. A mais
importante de todas. — Solto um riso baixo e sarcástico. — E Dante
nunca permitiria que existisse algo que eu amasse mais do que a
máfia.
Por favor, não me odeie.
Ela vai entender.
— Ele descobriu sobre nosso namoro poucos meses antes
do meu sumiço, mas eu só soube no dia da morte de Antonietta
Bellini. Você se lembra desse escândalo, não é? — Ela assente.
— Foi ele? Quer dizer… nós? — indaga baixo, engolindo em
seco.
— Foi ele, sim, com a ajuda de Oliver Duncan. O líder da
gangue de Los Angeles.
Sienna levanta as sobrancelhas. Espero que ela consiga
digerir tantas informações ao mesmo tempo, pois não quero deixar
nenhuma ponta solta ou informações omitidas.
— Oliver tinha problemas sérios com a Timoria e planejou se
vingar matando Antonietta e Lyanna. Dante já fazia negócios com
ele e viu essa oportunidade como o meio mais fácil de se livrar dela
para que eu “voltasse às raízes”. Ele não podia permitir que eu
colocasse alguém acima da Vendetta. Então, naquele dia, Dante
disse vários absurdos para me fazer dar uma surra nele de
propósito. Seria a justificativa perfeita para quando os mais
próximos perguntassem o porquê de ele ter me castigado.
Suas pálpebras espremem e o cenho franze em confusão.
— Eu sumi por cinco anos porque ele me mandou para longe,
Sienna. Os soldados me apagaram e quando acordei estava
amarrada em uma sala com soldados de Duncan. A surra foi uma
armação para impedir que eu atrapalhasse o plano dos dois. Dante
dava dinheiro para que Oliver me mantivesse presa e disse que ele
poderia fazer o que quisesse comigo, contanto que me fizesse
querer morrer todos os dias. O que eles fizeram comigo por anos foi
realmente pior do que a morte. Não vou entrar em detalhes, porque
acho que… que você não precisa dessas imagens na sua cabeça,
mas… às vezes não sei como sobrevivi.
Suas lágrimas não param de descer, agora mais do que
antes. A boca está aberta em choque, a testa crispada e o olhar
muito, muito triste. É um misto de incredulidade com tristeza.
— Eu implorei para que Duncan deixasse Lyanna em paz e
me usasse no lugar dela. Depois de um tempo, ele aceitou.
Comecei a participar de lutas clandestinas e fiz muito dinheiro para
aquela gangue nojenta. Eu odiava cada segundo, mas faria tudo de
novo para mantê-la em segurança. Também havia você, Jayden e
Yuna… Dante seria capaz de qualquer coisa para me destruir e eu
não podia arriscar que ele tocasse em nenhum dos três. A mera
possibilidade de ele te machucar me enlouquecia, Enna. Não saber
se ele estava me substituindo por você me matava, porque eu
nunca me perdoaria caso você se transformasse em mim.
Eu nunca me perdoaria caso você se transformasse em mim.
Essa é a frase que esteve entalada em minha garganta por
muito tempo, desde antes de toda essa confusão. Sienna é o meu
oposto e jamais vou permitir que minha sujeira se espalhe por ela.
Minha irmã é boa demais para esse mundo e sinto que não a
mereço em minha vida.
— Todos eles me odiavam pra caralho e não pegaram leve. O
fato de eu não ceder em nenhum momento fazia a raiva crescer
cada vez mais. Eles queriam me ouvir implorando pela morte,
queriam destruir a grande Executora da Vendetta, só que ganharam
o contrário disso. Entre uma tortura e outra, eu mostrava o motivo
de ter a reputação que eu tenho. Ria, provocava e desafiava os
capangas de Duncan. Essa cicatriz — aponto para o meu rosto —
foi feita pelo próprio Oliver quando quase matei um dos seus
homens. Tudo isso… tudo isso foi bancado pelo Dante, Sienna.
Depois de um tempo eu descobri que até uma parcela do dinheiro
das minhas lutas ia para o bolso dele.
Ela cobre a boca com a mão e soluça baixinho. Deveria me
sentir mal por estar arruinando completamente a imagem que ela
tinha dele, mas não dou a mínima. O filho da puta já está morto e
não merece que ela se lembre dele de uma maneira boa. Sienna
precisa saber quem era Dante Romano de verdade.
— Eu escapei e passei dois anos no México montando um
plano para me vingar. Você entende que eu não podia deixar essas
pessoas saírem impune por tudo isso, Sienna? Não só pelo que
causaram em mim, mas por terem feito Lyanna me odiar por algo
que não fiz. Saber que ela me detestava com todas as forças me
matou por dentro ao ponto de eu voltar a desejar a morte porque já
não via mais um futuro com ela. E morrer era melhor do que isso.
Um pequeno sorriso triste surge no canto dos seus lábios.
Finalmente contar à minha irmã sobre o amor da minha vida é
melhor do que eu imaginava.
Porém, agora vem a pior parte. Puxo o ar, fecho as mãos em
punho e encaro meu colo. Não quero ver sua reação. Não quero ver
a decepção e a fúria em seu olhar.
— Então, eu o matei. Matei o Dante.
Silêncio.
Silêncio.
Silêncio.
Devagar, ergo novamente os olhos até os dela. Não consigo
decifrar ao certo o que encontro, mas definitivamente há mágoa ali.
— Você… matou ele? Foi você? — pergunta num sussurro.
Eu assinto.
— Voltei para Las Vegas para matá-lo e começar minha
vingança.
Silêncio.
Nos encaramos sem dizer nada. Seu semblante muda tanto
em tão pouco tempo que sou incapaz de entender o que está se
passando em sua cabeça. Seja lá o que for, é nítido que ela está se
sentindo traída.
— Você teve meses para… — Respira fundo, parecendo
ofegante. — … para me contar isso. Você… me viu chorando no
caixão dele… meu Deus, é por isso que estava fechado? Porque
você torturou ele a esse ponto?
Cortei ele em pedacinhos, sim.
— É — me limito a dizer.
Sienna arregala os olhos, entrelaça os dedos em frente à
boca e desvia o olhar. Acho que nunca a vi tão incrédula antes.
— Fiquei semanas trancada no quarto e você não pensou em
me contar a verdade?! — vocifera. — Por que agora?
— Se eu contasse antes, você acreditaria? Se não visse com
os próprios olhos do que Duncan é capaz, acreditaria? Eu não
estava pronta para te contar que fui torturada e humilhada por anos,
Sienna. Não é bem essa a visão que eu quero que você tenha de
mim. Vivi um inferno e precisava de tempo para conseguir dizer isso
em voz alta.
Ela se levanta e começa a andar de um lado para o outro.
Passa a mão no rosto, coloca a outra na cintura e balança a cabeça
em negação.
— É muita coisa para digerir — fala. — Ele… ele não era o
homem que eu pensava. Me sinto uma idiota! Como fui tão
inocente? Acreditei que ele era um bom pai e…
— Ele era decente com você — intervenho. — Estava longe
de ser um bom pai, mas pelo menos não te fez passar por nada
disso. Apesar dos pesares, Dante concordava comigo que você não
merecia se envolver nessa merda toda.
— Você pensa que não aguento umas porradas, Alessia?! —
questiona num tom alto. — Acha que só porque não sou uma
assassina temida, não sirvo para a máfia?
— Não foi isso que eu disse. — Levanto-me e avanço em sua
direção. — Você é boa demais para esse mundo sujo, Sienna. Eu
nunca quis… nunca quis te magoar. Sempre fiz tudo para te
proteger e te dar uma vida melhor do que a minha.
Ela aperta as pálpebras e cobre o rosto. Ouço-a soluçar alto
e puxo-a para perto, envolvendo-a num abraço apertado.
— Por favor, não me odeie — imploro. — Por favor, Enna,
não me odeie. Eu precisava disso para viver. Precisava saber que
ele não estava mais respirando para encontrar alguma paz entre os
meus demônios internos.
Ela soluça e chora alto. É um choro tão agonizante que
quebra meu coração em milhares de pedaços.
— A ideia de tê-lo andando tranquilamente por esta cidade
enquanto eu tinha passado os últimos anos sendo torturada,
humilhada e abusada… eu não conseguiria, Sienna. Se ele não
morresse, quem morreria seria eu. Você entende?
Ela sai do abraço e se afasta. Limpa a bochecha com as
costas das mãos e me olha.
— Eu não te odeio — murmura. — Nem consigo imaginar
tudo que você enfrentou, mas… mas é muita coisa para digerir. Ele
ainda era meu pai e você, minha irmã… tudo que eu sempre quis foi
ter uma família normal, só que nós nunca nem fomos uma família.
Já doía antes, só que agora é ainda pior, porque você… matou ele.
Você matou o nosso pai. É uma loucura do cacete, Alessia! Não
consigo acreditar que tudo isso aconteceu e eu não fazia ideia. Me
sinto tão ingênua, meu Deus.
— Você não é ingênua. É uma boa pessoa. São coisas
diferentes.
Ela ri, sarcástica.
— Não existe “boa pessoa” no mundo do crime! — exclama.
— Sou a herdeira da máfia! Onde é que isso se enquadra em ser
uma boa pessoa?
— Você não vai liderar a Vendetta — garanto. — Não porque
acho que não é capaz, mas porque sei que não é o que você quer e
principalmente porque isso te destruiria. Arruinaria cada pedacinho
de você até não sobrar mais nenhum resquício da Sienna que existe
hoje. E diferente de mim, você não vai gostar. O poder e o medo
não vão te dar nenhum prazer, muito pelo contrário. Eles vão te
comer viva.
Ela sabe que estou certa. É por isso que solta uma
respiração profunda, ainda sacudindo a cabeça de um lado para o
outro, e desvia a atenção para a parede. Aperta os cantos dos olhos
com os dedos, depois limpa as bochechas úmidas e volta a me
encarar.
— Eu não te odeio — repete. — E entendo sua decisão.
O quê?!
Acredito que meu choque tenha ficado explícito demais, já
que ela continua:
— Depois de tudo que você falou, seria impossível não
entender, Alessia. Só alguém muito egoísta e mesquinha te julgaria
por isso. Como eu poderia te culpar se nunca passei por nem um
por cento de toda essa merda pela qual você passou? Eu sinto
muito, muito mesmo. Queria poder ter te ajudado, mas eu só fiquei
com tanta raiva quando você partiu… não fazia ideia de que era por
conta disso. Sinto muito, Alessia. Muito mesmo.
— Não é culpa sua — asseguro. — Não se sinta culpada por
nada.
Ela solta uma lufada de ar e engole a saliva.
— Estou chateada por ter sido enganada durante esses
meses e me sentindo uma grande idiota por inúmeras razões, mas é
que é muita coisa para processar ao mesmo tempo. Pode me deixar
sozinha, por favor? Depois conversamos melhor.
— Claro. Eu… eu volto outro dia, quando você quiser.
Ela entende.
Ela não me odeia.
— Obrigada, Enna — sussurro, abrindo um sorriso sincero.
Não sei se ela gostaria de um abraço agora, então decido
não invadir seu espaço pessoal. Caminho até a porta, giro a
maçaneta e a fito uma última vez para repetir:
— Obrigada por entender.
 

 
Fecho a porta atrás de mim, tiro o paletó e o penduro no
cabideiro. Ouço um barulho na cozinha, caminho até lá e me
encosto no batente ao encontrar Lyanna praguejando baixinho
enquanto tira uma travessa do forno. Cruzo os braços, abro um
sorriso de lado e digo:
— Senti falta disso.
Ela me olha por cima do ombro, tira a luva da mão e se
aproxima. Engole a saliva, acaricia minha nuca e me dá um selinho.
Abraço sua cintura, encosto nossas testas e resvalo nossos narizes
juntos.
— E aí? — pergunta num sussurro, quase como se não
quisesse saber da resposta.
Lyanna sabe que eu contaria ao Conselho sobre seu
nascimento na Vendetta, mas não sabe que discutimos acerca de
sua inserção na máfia. Eu não quis revelar, já que arruinaria tudo se
eles não aceitassem e eu precisasse dizer isso a ela.
— Você tem uma reputação e tanto no submundo, linda —
murmuro, iniciando um rastro de beijos pela sua mandíbula. —
Todas as bruxarias que você faz… elas conquistam qualquer um.
Ela segura meu rosto e o afasta para capturar meus olhos.
Prenso os lábios a fim de conter um sorriso, mas não consigo
disfarçar. Lyanna espreme as pálpebras e me lança um olhar
desconfiado.
— Como assim?
— Eles aceitam você.
O choque é instantâneo em seu semblante. Ela se afasta, dá
um passo para trás e abre a boca sem emitir nenhum som. Parece
uma estátua de tão imóvel.
— Me… aceitam? — a voz estremecida sai quase inaudível.
— Nós te queremos na Vendetta, principessa. Queremos que
trabalhe com a gente e que faça parte da nossa máfia.
Seu rosto empalidece e decido me aproximar novamente.
Seguro suas mãos trêmulas, abraço sua cintura e puxo-a para mim.
— Não é possível — ela diz, balançando a cabeça. — Não
faz sentido, Alessia. Eu sou… como é que eles…
— A mudança que você faria na nossa organização é valiosa
demais, Lyanna. Eles sabem que ter você ao nosso lado é uma
oportunidade imperdível. Vai demorar para que eles confiem em
você, mas ninguém duvidará da sua lealdade depois de te verem
em ação, linda.
Ela fica calada, ainda processando a bomba que acabei de
jogar em seu colo.
— Você disse que seria impossível te aceitarem. O Conselho
aceitou. Agora, a pergunta é… Você quer fazer parte da Vendetta?
“Comportamento é frio
Sua presença é calorosa
Mas eu
Eu apenas continuo perseguindo a tempestade”
Storm | Honors
 

Duas semanas depois


 
Puxo-o com força para fora do carro e o empurro para frente.
Ele tropeça e quase cai, mas consegue seguir o caminho e dar
alguns passos adiante com a ajuda dos dois soldados, um de cada
lado, segurando-o pelo braço. Dou a volta e me coloco à dianteira
de todos.
— Aqui está a prova — digo, impaciente e sem a menor
vontade de prolongar essa merda. — Ele está vivo.
Os poucos homens da Timoria que vieram ao encontro —
solicitado por eles mesmos — engolem a saliva ao verem o estado
de Alessandro. Não sei o porquê do choque, já que faz mais de
duas semanas que o capturei e não tenho minha reputação à toa. É
óbvio que o desgraçado comeria o pão que o diabo amassou depois
de tudo que fez.
As coisas na organização rival estão indo de mal a pior. Meu
plano de dominá-los está sendo mais fácil do que imaginei, já que
eles estão enfraquecidos e perdendo apoio. A notícia sobre Lyanna
se espalhou em poucos dias pelo submundo inteiro, assim como a
informação de que Alessandro está comigo. O Subchefe da Timoria
fugiu no momento em que percebeu que não havia como eles
vencerem esta guerra, então meio que se tornaram uma autogestão
— sem figuras de liderança.
Todas as subdivisões da Timoria estão em crise, sem saber o
que fazer, e a maioria dos membros fugiu diante da ameaça de
serem atacados pela Vendetta. Chloe me disse que quase todo o
alto escalão saiu do país. Eles não são estúpidos e sabem que não
demoraria para que eu fosse atrás de cada um deles.
Cansei de esperar, no entanto. Essa estupidez tem que
acabar de uma vez por todas.
— Chefe — um deles diz, apreensivo. — Estamos… um
pouco perdidos.
Um pouco?
— Faça o que… ela quiser — Alessandro responde, sem
forças, sequer erguendo o olhar do chão. — Parem de lutar.
Acabou.
É a primeira vez que ouço este homem falando algo
inteligente e sensato. Já tinha passado da hora de ele aceitar que
resistir é inútil e só vai piorar as coisas do outro lado.
— Não! Não podemos desistir! — o idiota retruca,
inconformado. Reviro os olhos, apanho o maço do bolso e acendo
um cigarro. Os olhos azuis e cansados deslizam até mim e ele
franze o cenho em completo desprezo. — Você vai pagar por tudo
isso, Romano!
— Sério? — meu tom transborda tédio, porque estou
entediada pra caralho. — Vocês não estão cansados de enterrarem
corpos? Quantos foram nas últimas duas semanas mesmo? Uns
cinquenta? Se não quiser que esse número ultrapasse os duzentos,
pare de ser um imbecil e ouça o que Alessandro está dizendo.
Estava tentando ser compreensiva, mas minha paciência se
esgotou. Vocês já perderam, superem e parem de encher a porra do
meu saco.
Silêncio preenche o terreno baldio onde estamos. Os rivais
me fuzilam com o olhar ao passo em que trago o cigarro e conto os
segundos para dar o fora daqui e voltar para minha mulher.
Lyanna está morando no meu apartamento desde que
descobriu aquele segredo. As últimas duas semanas têm sido
completamente mágicas e às vezes não consigo acreditar que está
de fato acontecendo. Acordo e vou dormir com o seu corpo quente
emaranhado ao meu, a vejo na maior parte do dia e posso protegê-
la de qualquer coisa.
O melhor de tudo é que ela está trabalhando para a Vendetta.
Minha gatinha selvagem está trabalhando na minha máfia. Parece a
porra de um sonho com o qual sonhei por uma década e nunca
imaginei que se tornaria real. Mesmo que tenha ficado um pouco
relutante, ela aceitou se inserir aos poucos. É perceptível que
Lyanna não se sente “em casa” ou pertencente à organização ainda,
mas eu não esperava que acontecesse tão cedo. Sei que vai
demorar um bom tempo até ela estar confortável em ser um
membro da máfia que foi sua inimiga por tantos e tantos anos.
Ela já se mostrou bem valiosa semana passada ao encobrir
nossos rastros em Los Angeles para que a polícia local não
chegasse até nós. Não tenho ideia de como fez, porém, ela fez. E
deu muito certo.
Acho que o Conselho vai aprová-la mais cedo do que eu
pensava, no final das contas.
— Não vamos… — o infeliz volta a retrucar, ignorando o que
falei.
— É o seguinte — interrompo. — Vou ser bem clara: A partir
de hoje, a Timoria não existe mais. Os soldados que resistirem
serão mortos e aqueles que se renderem podem ter uma segunda
chance em outro país, do outro lado do mundo. Las Vegas inteira
será da Vendetta. Todos os seus territórios serão da Vendetta.
Todos os seus clientes serão da Vendetta. Tudo e todos que eram
de vocês, agora são da Vendetta. Fui clara o suficiente?
Eles abrem a boca em choque, arregalam os olhos e
arquejam. Um deles ousa soltar uma risada irônica e aproveito para
sacar a arma e atirar em sua testa. Os demais agem em reflexo e
pegam seus revólveres, mas levantam as mãos em sinal de
rendição no instante em que meus homens miram neles.
— Posso considerar poupar a família de vocês — continuo,
guardando a Glock de volta —, contanto que não resistam. Aqueles
que resistirem terão toda a família executada. Vou repetir: fui clara o
suficiente?
O descontentamento é explícito no semblante de todos eles.
Contudo, notando que realmente não há mais nada que possam
fazer, assentem e largam as armas no chão. Com um aceno de
cabeça meu, os soldados avançam e prendem todos eles para levá-
los ao caminhão que trouxemos.
Dou duas batidinhas de solidariedade no ombro de
Alessandro e ele sequer retribui meu olhar. Com um sorriso
vitorioso, marcho até meu carro.
 

 
Mais uma semana se passa e posso dizer que tudo anda
melhor do que eu planejava. Dominamos todos os territórios que
antes pertenciam à Timoria e mandamos os soldados que se
renderam para a Noruega. As coisas estão indo tão bem que às
vezes tenho medo do que pode vir a acontecer, já que nunca
experimentei a felicidade por muito tempo sem que uma tragédia
acontecesse.
Uma das coisas que mais me deixaram realizada é ter Las
Vegas inteira para mim. Me locomover por qualquer canto dessa
cidade e saber que ela é minha não tem preço. Sinto que esse lugar
é uma extensão da minha alma desde que consigo me lembrar e
saber que agora todo centímetro dele é meu… parece, pela
milésima vez, a porra de um sonho.
No entanto, ainda existem momentos complicados.
Como este.
— Tem certeza, amor? — pergunto novamente e ela assente.
Lyanna está em silêncio desde que saímos de casa, há
quase meia hora. Tento confortá-la com carinhos e palavras, mas é
nítido que nada vai tornar a situação mais fácil.
Abro a porta, ela entra e eu fecho. Respiro fundo, passo as
mãos gélidas no rosto e ando de um lado para o outro no corredor
enquanto espero ela se despedir de Alessandro. Não sei quanto
tempo se passa, mas não parece ser muito. Quando retorna, vejo o
rosto pálido coberto por lágrimas e os olhos vazios encarando o
chão.
— Faça ser rápido — sussurra e começa a andar para longe.
Ela sobe as escadas e some do meu campo de visão. Após
uma lufada profunda, saco a arma do coldre e entro.
 

“Na tempestade, eu permaneço lúcida


Porque na minha mente só tem você
Diga sim para o paraíso
Diga sim para mim”
Say Yes To Heaven | Lana Del Rey
 

 
A campainha toca e eu sobressalto no sofá devido ao susto.
Levanto-me, caminho até a porta e abro. Vejo Sophie e Kai parados
ali, ela com um pequeno sorriso e ele com os olhos abaixados.
— Oi, Ly! — Soph diz e me abraça. Dou espaço e os dois
entram. — Como estão as coisas por aqui? Alessia está em casa?
— Ela está no Fortuna — respondo. — E vocês? Estão bem?
Meus melhores amigos também tiveram a oportunidade de
trabalhar na Vendetta. Foi muito, muito difícil convencer Kai, uma
vez que seu ódio pela organização sempre foi enorme. Na verdade,
seu ódio por Alessia. Ele pegou minhas dores quando Antonietta
morreu e nunca aprovou nosso relacionamento por medo das
consequências que eu enfrentaria. Mesmo assim, depois de muita
conversa e argumentos irrefutáveis, ele acabou cedendo.
Sophie entrou para a equipe de mercadorias e já está se
enturmando com a galera como se nunca tivesse existido rivalidade
nenhuma. É impossível não se apaixonar por ela. Kai, por outro
lado, é um soldado comum por escolha própria. Alessia permitiu que
Jayden fosse seu instrutor para que ele conseguisse uma posição
um pouco mais alta na equipe de Força Bruta, mas ele recusou.
Acredito que sua fase de negação vai demorar para acabar, porém
espero que aceite a nossa nova realidade logo. Nossa amizade
anda meio estranha e isso me deixa bem triste.
Depois que Alessandro foi morto há uma semana, ele está
ainda mais recluso. No fundo, ele sabe que dei a permissão para
que Alessia matasse nosso antigo chefe e não preciso ouvir de sua
boca para saber que Kai reprova completamente essa decisão.
Então, estamos meio distantes.
Eles estão morando juntos em um apartamento próximo ao
meu, só que não estamos nos vendo todos os dias por conta da
mudança de rotina. Ainda estamos nos ajeitando.
— Estamos, sim! — Soph ergue as sacolas que carrega nos
braços e sorri. — Viemos fazer o nosso jantar!
— Você leu a minha mente, gata. — Dou um beijo em sua
bochecha. — Vem, vamos para a cozinha.
Chegamos ao cômodo e minha amiga desata a falar sobre
como está sendo sua experiência na Vendetta. Fico feliz em saber
que ela está gostando tanto e que está sendo bem recebida apesar
de ter feito parte da Timoria. No entanto, o silêncio de Kai me
incomoda.
— Kai — chamo, e ele desliza os olhos de Soph até mim. —
Como ‘tá sendo para você?
— Difícil — é tudo que sai de sua boca.
Ficamos em silêncio, aguardando uma resposta mais
elaborada.
— Só isso? — indago, arqueando a sobrancelha.
— Não tem muito o que falar, Lyanna. “Difícil” resume tudo.
Suspiro e assinto. Insistir vai piorar a situação e não quero
brigar com ele.
Nós dois ajudamos Sophie nas receitas que ela separou e
entre conversas, risadas e dedos queimados, quase uma hora se
passa. A porta da frente se abre e sei que é Alessia, pois ela me
mandou uma mensagem há pouco tempo avisando que logo estaria
em casa.
— Acho que minha cozinha nunca cheirou tão bem — ela diz
ao entrar no cômodo. Sorrio instantaneamente ao vê-la e sou
puxada pela cintura para receber um beijo caloroso. — Oi, linda.
— Oi, meu amor — sussurro de volta. — Está com fome?
— Pra caralho — revela, cumprimentando Sophie com um
aceno. — E aí, Wilson. Tudo certo? Meu povo está te tratando bem?
— Estão, sim, mas tem muito trabalho. Nunca vi tanta droga
sendo exportada de uma vez só.
Alessia abre um sorriso convencido e vitorioso.
— E você, Jeon?
— Tudo certo — ele responde a contragosto.
Troco um olhar compreensivo com Alessia e ela dá de
ombros, sentando-se e me puxando para o seu colo.
— O que vocês…
Sua fala é cortada pelo toque de seu celular. Quando o
apanha, ergue o queixo e sorri para nós.
— Parece que temos companhia.
No mesmo segundo, a porta é aberta. Duas vozes altas
adentram o apartamento e em poucos segundos Sienna e Jayden
aparecem na cozinha. Eles paralisam ao ver Sophie e Kai, mas logo
avançam para cumprimentá-los.
— E aí, primeira dama — Jay zomba, apertando meu ombro.
Reviro os olhos com o apelido que ele começou a usar na
última semana. Porém, não posso negar que gosto bastante.
— Oi, Lyanna! — Sienna diz, dando um beijo em minha
bochecha.
Ainda não tivemos muitas chances de estabelecer uma
amizade, mas espero que aconteça logo. Sienna é uma das
pessoas mais importantes para Alessia e sempre ouvi coisas
incríveis sobre ela no submundo.
Depois que as duas conversaram sobre toda a situação, sinto
que as coisas estão mais leves. Alessia me disse que na segunda
vez que foi ao apartamento da irmã, ela já tinha pensado bastante
sobre tudo que descobriu e não a odiava por ter matado Dante.
Acho que se ela tivesse reagido de outra maneira, minha mulher
ficaria devastada por um bom tempo. A relação das duas mudou
para melhor, como se todas as mágoas antigas e sem explicações
de Sienna tivessem tido um ponto final; um fechamento. Acredito
que tenha sido como eu: algumas coisas passaram a fazer todo
sentido e não havia mais motivos para prosseguir com aqueles
sentimentos ruins.
— Que cheiro bom, meu Deus! — exclama, olhando para o
fogão. — O que vocês cozinharam? Se eu soubesse, tinha vindo
ajudar.
— Cadê a Yuna? — Alessia pergunta.
— Tinha um encontro — King responde.
— E onde você estava, Sienna? — Minha nova chefe indaga,
levantando a sobrancelha. Intercala o olhar entre sua irmã e Jayden,
que engole em seco e finge estar entretido com uma das panelas.
— Estavam juntos?
— Jayden me buscou para vir até aqui.
— Você comprou um carro novo — retruca, semicerrando as
pálpebras.
A coitada parece aflita, então decido intervir:
— Quem vai me ajudar a arrumar a mesa?
Sienna se voluntaria no mesmo segundo. Antes de sair do
colo de Alessia, lanço-a um olhar reprovador e ela retribui, me
encarando como se dissesse: “não vou fingir que sou burra”.
O jantar é muito agradável e me faz sentir bem. Nunca
imaginei que este momento aconteceria, mas gosto bastante de ter
Alessia junto dos meus amigos e de estar junto dos amigos e da
irmã dela. Ela entrelaça nossas mãos por baixo da mesa e beija
minha testa enquanto ouvimos Sienna e Jayden discutindo sobre
alguma coisa boba. Conversamos sobre coisas aleatórias e sobre a
Vendetta, sem deixar que o clima fique pesado e estrague o
momento.
Meu coração parece mais leve e mais contente no final da
noite quando os quatro vão embora e me junto à Alessia na
banheira. Sentada entre suas pernas, com a cabeça encostada em
seu ombro e os olhos fechados, digo:
— Gostei muito dessa noite.
— Eu também gostei, linda. Sempre sonhei com isso.
— Sério?
— Sim. Você com meus amigos e minha família, na minha
máfia… Ainda acho que estou sonhando.
O canto da minha boca se arqueia involuntariamente.
Aconchego-me ainda mais contra ela, seus braços serpenteando
minha cintura e meus dedos acariciando suas pernas tatuadas.
— Parece mentira — confirmo. — Pensei que a gente nunca
conseguiria ter isso.
— “Isso”?
Suspiro e sussurro:
— Paz.
Alessia beija minha têmpora e sinto seu sorriso contra minha
pele. Um carinho gostoso começa em minha cintura e quase derreto
na água quente.
— Se depender de mim, você terá paz para o resto da sua
vida, Lyanna. Quero que seus dias sejam repletos de alegria e amor
ao meu lado.
— Não sei se isso é possível no mundo da máfia, mas eu
também quero.
— Você é a primeira dama agora, linda — brinca, beijando a
região abaixo de minha orelha. — Tudo que você quiser é possível.
— Tudo que eu quero é você, chefe — provoco, sabendo que
ela ama me ouvir a chamando assim.
— Não me provoque, mulher — murmura, selando os lábios
em meu ombro e subindo até o pescoço. Inclino a cabeça para o
lado a fim de lhe dar mais acesso e ela ri baixinho no meu ouvido.
— Não tem ideia do quanto eu amo te ver assim, meu amor. Você
está… feliz.
— Estou mesmo. — Solto uma respiração longa com o
pensamento que me atinge. — Sou uma pessoa ruim por isso? Por
estar feliz poucos dias depois dele morrer?
Eu me senti mal no início, porém, passou rápido. Não consigo
perdoá-lo e não consigo me sentir mal por ter permitido que Alessia
o matasse. O que Alessandro fez mudou tudo e foi a maior traição
que já vivenciei em toda a minha vida.
— Claro que não — ela assegura, apertando-me contra si
conforme distribui beijos curtos em minha pele. — Não se sinta mal
por nada disso, Lyanna. Ele sofreu as consequências dos próprios
atos, assim como Dante.
— Tem um ponto positivo nessa merda toda — murmuro,
virando-me de lado para capturar seus olhos. A felicidade é tão
explícita em seu rosto quanto é no meu. — Isso aqui.
Balanço o dedo entre nós duas e Alessia sorri. As íris verdes
brilham tanto que me deixam entorpecida. Tudo sobre ela é
hipnotizante.
— Estamos juntas de novo — complemento.
— E não vamos nos separar desta vez — garante, segurando
minha nuca e me puxando para um beijo.
Não vamos nos separar desta vez, repito em minha cabeça.
Nunca mais.
“Ela está fora de si, eu estou enlouquecendo
Nós temos esse amor do tipo maluco
Eu sou dela e ela é minha
No final, somos ela e eu”
Him & I | G-Eazy feat. Halsey
 

Dois meses depois


 
Nunca pensei que viver pudesse ser tão bom.
Para alguém que só conheceu o lado obscuro da vida, é
difícil me acostumar com a felicidade e o sucesso dos últimos
meses sem me preocupar com alguma tragédia no fim do túnel. Tive
momentos incríveis ao longo dos anos, sim, mas eles sempre
antecederam muita destruição.
Desde que nasci, meus dias foram programados para serem
repletos de sangue, morte e sofrimento. As únicas ocasiões em que
eu tinha a efêmera sensação de felicidade eram proporcionadas
pelas drogas.
Até conhecer Lyanna.
Lyanna mudou tudo. Lyanna mudou minha vida. Lyanna
mudou o meu futuro.
A escuridão foi substituída pela luz do sol; a melancolia ao
me afundar numa banheira de dinheiro foi substituída pelo calor do
seu corpo colado ao meu; o tédio provocado pela realidade de voltar
para uma casa vazia e silenciosa foi substituído pela ansiedade em
vê-la chegando na cozinha da nossa casa com sua saia plissada e o
sorriso mais lindo que já tive o prazer de ver.
Se não fosse por ela, não sei se eu ainda estaria viva. Talvez
já tivesse sido morta por algum inimigo ou pelo meu próprio chefe. A
ideia de morrer nunca me preocupou e, para ser sincera, às vezes
eu almejava que acontecesse logo. Eu sabia que aconteceria mais
cedo do que o normal e não me importava.
Até conhecer Lyanna.
Depois dela, a vida passou a ter significado. Passou a ter cor
e propósito.
Comecei a gostar de viver. Mesmo em um mundo tão
sombrio e infeliz, era prazeroso acordar todos os dias. Era bom
levantar da cama e saber que, no final da noite, eu veria aqueles
olhos tão lindos; sentiria o gosto da sua boca e borraria o batom
escarlate; beijaria cada centímetro do seu corpo; ouviria sua risada
deliciosa e me afundaria cada vez mais naquele conto de fadas.
Lyanna fez com que eu me importasse com a morte, pois
morrer significava deixá-la sozinha neste mundo destruído. Morrer
significava não ver mais os seus olhos tão lindos e beijar cada
centímetro do seu corpo. Então, passei a lutar para que a morte não
chegasse tão cedo para mim e tampouco para ela.
Passei a lutar por nós.
Em momentos como este, vendo-a pentear o cabelo em
frente ao espelho vestindo apenas uma blusa minha enquanto fumo
um baseado na cama, percebo que esse sempre foi o meu futuro.
Ela sempre foi o meu futuro, mesmo quando eu achava que não
tinha um.
Nunca fui religiosa, mas é difícil acreditar que alguém tão
perfeita não foi criada por Deus apenas para mim.
— Alessia? — ela chama, me arrancando do devaneio. Vira
de frente para mim com as duas mãos na cintura e os olhos
espremidos. — Estou falando com você há dez minutos! Por que
está sorrindo para mim como uma psicopata?
— Porque eu te amo pra caralho.
E quero me casar com você.
Seus ombros caem e um sorrisinho lindo delineia os lábios.
Caminha até a cama, engatinha no colchão e se senta no meu colo
com as pernas de cada lado. Coloco o baseado na escrivaninha,
abraço sua cintura com um braço e acaricio sua nuca com a mão
livre. Não consigo parar de sorrir, e nem é por conta da maconha.
É porque quero me casar com ela.
Nos últimos dois meses, isso vem sendo meu principal desejo
e algo com o qual sonho todas as noites. Lyanna está sendo cada
dia mais bem recebida na Vendetta, o Conselho já está começando
a confiar bastante nela e acho que nunca tivemos tantas operações
bem sucedidas — por causa dela. Somos a única máfia do país
agora e é até um pouco surreal pensar na quantidade de poder e
dinheiro que temos. Como prometi aos Conselheiros, ela está sendo
uma peça fundamental nessa expansão e tenho certeza de que as
coisas vão melhorar ainda mais.
Tudo isso me faz pensar cada vez mais em pedi-la em
casamento. Estava receosa antes por não saber se ela se adaptaria
à organização e acabasse saindo, mas em poucos meses já é como
se ela sempre tivesse sido uma de nós.
Ainda acho que vou acordar e perceber que tudo isso foi um
sonho. É bom demais para ser verdade.
— Estou feliz — revelo, encostando a cabeça na cabeceira.
Meu polegar faz movimentos circulares em sua pele e ela
desliza as mãos pelo meu peito desnudo — a camisa de botões está
aberta e não uso sutiã. Com um sorriso genuíno, responde:
— Eu também.
— Está feliz na Vendetta?
Ela hesita para responder, talvez porque não goste de admitir
para si mesma. Porém, após engolir a saliva e respirar fundo,
assente devagar.
— Está feliz comigo?
Desta vez, seu semblante se ilumina no mesmo instante.
Olha-me como se a pergunta fosse óbvia e não precisasse de
resposta, e sei que é verdade. Só que gosto de ouvi-la dizer.
— Estou feliz com você — confirma, arrastando as unhas em
meus ombros. — Nunca estive tão feliz em toda a minha vida, na
verdade. Kai e Sophie também estão felizes, mesmo que Kai se
recuse a admitir. Não pensei que… seria tão fácil.
Levanto as sobrancelhas em completa descrença e ela
continua:
— Não foi isso que eu quis dizer! Nada foi fácil para
chegarmos até aqui, eu sei. Estou falando sobre nos juntarmos a
vocês… achei que seria difícil demais e, para ser sincera, não
acreditava que funcionaria.
— Eu te disse que daria certo, principessa. Como é que não
daria certo se você é a primeira dama? — brinco e ela revira os
olhos com um sorriso divertido.
— Quero só ver o que vai acontecer quando descobrirem que
sou a primeira dama.
— Nada. — Dou de ombros. — Você não é mais uma inimiga.
Trabalha para mim agora, é um membro da Vendetta e já se
mostrou insubstituível, além de confiável. Não há absolutamente
nenhuma objeção ao nosso relacionamento e mesmo se houvesse,
não faria diferença. Contanto que não prejudique a liderança, minha
vida pessoal não diz respeito a ninguém.
Seus olhos parecem brilhar diante das minhas palavras. Por
alguns segundos, tento enxergar neles o mesmo desejo que vem
queimando meu peito há um tempo. Será que Lyanna também quer
se casar comigo? Ou será que acha rápido demais?
Nós falávamos sobre casamento durante nosso namoro e,
naquela época, ela queria. Porém, muita coisa mudou e depois de
todas as merdas pelas quais passamos, não tenho certeza se ainda
quer.
Não só quero casar, como também quero ter filhos com ela.
Três ou quatro. Quero construir uma família e ser a mãe que nunca
tive; quero ver Lyanna tendo a mesma relação que tinha com
Antonietta com nossas filhas; quero levar minha esposa e meus
filhos para uma viagem em nosso iate e quero morrer sabendo que
deixei um legado na Terra.
— Alessia? — Pisco forte para sair do devaneio. Ela está me
esquadrinhando com as sobrancelhas franzidas e uma expressão
confusa. — O que está acontecendo? Já faz um tempinho que você
está estranha…
— Só estou cansada do trabalho, linda — minto, resvalando
os dedos pela lateral de sua perna.
Detesto mentir para Lyanna, mas o medo de assustá-la e
estragar as coisas entre nós é ainda maior do que o embrulho no
estômago por omitir a verdade. Não quero continuar mentindo caso
ela faça mais perguntas, então me inclino e grudo seus lábios aos
meus. Deleito-me com o gosto do uísque em sua língua conforme
agarro sua bunda e puxo-a para perto, colando nossos corpos.
Emaranho os dedos em seu cabelo, apertando do jeito que ela
gosta, e recebo um arquejo baixinho contra minha boca. Suas mãos
brincam com minha pele, criando um trajeto de arranhões do
pescoço até a barriga. O toque me arrepia e me faz contrair o
abdômen em reflexo, o que a faz sorrir como a diabinha que é.
Aperto suas madeixas com mais força quando sinto os dedos
chegando perto demais dos meus peitos. O polegar avança, acaricia
devagar meu mamilo intumescido e faz movimentos circulares.
— Lyanna… — advirto, já um pouco ofegante.
— Quero chupar os seus peitos.
Puta merda. Essa mulher vai me matar.
Abro a boca para dizer que, porra, com certeza ela deve fazer
aquilo. No entanto, a maldita campainha toca e a assusta. Solto um
palavrão alto, irritada pra cacete pela interrupção, e cogito ignorar.
Seja lá quem for, não é mais importante do que minha mulher quase
implorando para chupar os meus peitos.
Só que a campainha toca de novo. De novo e de novo e de
novo.
Lyanna choraminga, se joga na cama e faz um beicinho. Não
acredito que fomos interrompidas.
— Puta que pariu! — esbravejo, bufando e me levantando.
Atravesso os corredores e a escada enquanto fecho os
botões da camisa e o zíper da calça. Abro a porta com raiva e
encontro não um, mas quatro filhos da puta à minha frente.
Jayden, Yuna, Sophie e Kai.
E minha irmã, que não se enquadra no xingamento mas que,
sem dúvida nenhuma, ganhou um pouquinho do meu ódio hoje.
— Que porra vocês estão fazendo aqui às nove da noite?! —
vocifero.
Eles arregalam os olhos e sobressaltam, não esperando por
essa reação.
— Como assim, Alessia? — é Sienna quem pergunta,
empurrando-me de leve pelo ombro para entrar no apartamento.
Encaro-a incrédula à medida que ela examina meu corpo inteiro e
acaba me fuzilando com o olhar. A voz sobe alguns decibéis quando
exclama: — Você se esqueceu da minha festa?!
Puta… merda…
Minha irmã vai me matar.
Sienna é quase a nossa organizadora oficial de festas. Ela
leva isso muito a sério — ao ponto de passar noites em claro e
chorar de tanto estresse —, como se fosse de fato sua profissão.
Está há quase um mês organizando uma festa para comemorar o
sucesso da Vendetta e fez questão de que todos os membros da
máfia fossem convidados, o que me dá calafrios ao pensar na
quantidade de pessoas que terá naquele lugar.
Ela nos fez prometer que iríamos e dei a minha palavra mais
de uma vez. Não acredito que me esqueci. Em minha defesa, passei
o dia resolvendo burocracias sobre exportações de mercadorias e
mal tive tempo para respirar.
É por isso que fiquei tão irritada quando a minha única
chance de relaxar — e transar com a minha mulher — foi
atrapalhada.
— Não — minto, só que é impossível acreditar.
— O que você estava fazendo? — indaga em uma entonação
inquisitória. Com uma rápida examinada em minha boca vermelha e
o cabelo um pouco bagunçado, sua indignação cresce ainda mais.
— Estava transando?!
— Eu tive um dia…
— Você é a chefe da máfia, pelo amor de Deus! Você tem
que estar lá! — me interrompe, bufando e revirando os olhos.
Aponta para as escadas como uma mãe autoritária. — Vai se
arrumar agora!
Viro-me para os quatro, que estão parados ao lado da porta
com sorrisos zombeteiros. Até mesmo Kai, que raramente
demonstra algo positivo perto de mim, parece estar se divertindo
com a fúria de Sienna. Jayden ergue as mãos em sinal de rendição
e espremo as pálpebras em uma promessa silenciosa de que vou
matá-lo por se divertir às custas da minha desgraça.
— Alessia! — chama minha atenção de novo. Com uma
lufada profunda, volto-me para ela. — Vai. Se. Arrumar. Agora!
Quando foi que dei tanta liberdade para essa pestinha se
comportar como minha chefe?
— Já estou indo! — garanto, marchando com passos irritados
até as escadas. Lyanna aparece no topo e levanto a mão para
impedi-la de descer. Puxo-a pela cintura em direção ao quarto e
sussurro: — É melhor ela não ter a confirmação de que estávamos
quase transando.
“Eu morri todos os dias esperando você
Querido, não tenha medo, eu te amei
Por mil anos
Eu te amarei por mais mil”
A Thousand Years | Christina Perri
 

Quatro meses depois


 
— Não vai mesmo me falar para onde estamos indo? —
Lyanna pergunta pela centésima vez
— Já disse que não.
Ela bufa alto e cruza os braços. Abro um sorriso perverso,
mesmo que ela não consiga ver por conta da venda nos olhos.
Estico a mão e aperto sua coxa, recebendo um arquejo surpreso.
— Ei! — reclama, mas não demora para colocar os dedos por
cima dos meus.
— Sabe o que seria legal? — pergunto, umedecendo os
lábios e intercalando a atenção entre a estrada e seu corpo delicioso
coberto por um vestido minúsculo vermelho.
— O quê?
— Eu meter os dedos na sua boceta enquanto você está
vendada e eu dirijo.
Sua mandíbula trinca e a respiração falha. Queria que ela
visse o sorriso no meu rosto, porque de jeito nenhum resistiria a ele.
— Alessia… — murmura, engolindo a saliva. — Você é uma
filha da puta.
— E você é uma gostosa.
Aperto novamente sua pele e afasto o toque. Ela pragueja
baixinho e volta a cruzar os braços com um pequeno bico adorável
nos lábios. Se não estivéssemos a exato um minuto do nosso
destino, não teria recolhido a mão.
— Chegamos — anuncio, desligo o carro e saio do veículo.
Abro sua porta e a ajudo a se levantar. — Cuidado aqui.
Lyanna se apoia no meu braço, paro atrás dela e abraço sua
cintura. Com o queixo apoiado em seu ombro e o coração batendo
acelerado, sussurro:
— Pode tirar a venda.
Um pouco hesitante, ela obedece. Quando vê o que está à
nossa frente, arregala os olhos e perde o fôlego. A junção do brilho
que toma conta do seu olhar conforme esquadrinha cada centímetro
da parte de fora com o fim do pôr do sol que nos rodeia é uma das
melhores coisas que já vi na vida.
Faz tudo valer a pena. Cada mínima coisa.
— É a nossa… nossa casa? — questiona, incrédula. —
Você… mandou reformar?
— Mandei, sim — confirmo e planto um beijo em seu
pescoço. — Gostou do jardim?
Consegui manter Lyanna ocupada e afastada desta casa nos
últimos meses para que a reforma acontecesse sem que ela
descobrisse. Eu amava como era antes, mas queria algo mais…
nós. Desde que fui embora há quase seis anos, o imóvel ficou
abandonado e não tinha vida em nenhum canto daqui. Agora, há
flores e plantas por todo o jardim e uma fachada completamente
nova, mais moderna e viva.
Mais parecida com o tipo de casa na qual quero construir
uma família.
— Vem, linda — chamo, guiando-a pelo caminho de pedras.
Abro a porta e paro ao seu lado para observá-la. Sua boca
forma um “O” ao estudar todos os detalhes reformados — que a
pouca luz permite ver —, desde o piso até os móveis novos. Gira o
rosto para fisgar meu olhar e pergunta:
— Você reformou a casa inteira?
Assinto devagar com um sorriso grande.
— Inteira.
Esta não é a única surpresa, no entanto. O cômodo está
repleto de velas acesas e aromáticas, que soltam um cheiro doce
quase idêntico ao seu perfume. O fogo ricocheteia contra as íris
castanhas e cria um brilho fascinante, tão único e bonito. Eu
costumava gostar mais de olhos claros, mas desde que a conheci
sou apaixonada por olhos castanhos. Ainda não vivenciei nada mais
bonito do que assisti-los brilhar diante da luz.
Na verdade, sou apaixonada pelos olhos de Lyanna. Apenas
os dela.
Puxo-a pela mão e atravessamos a sala até o corredor da
cozinha. Estou nervosa pra caralho e espero que ela não perceba o
suor em minha mão. Tenho certeza de que meu coração vai rasgar
o peito a qualquer momento de tão acelerado que está. Todo o
treinamento que tive ao longo da vida parece inútil agora, já que
sinto como se fosse desmaiar de nervosismo. É um milagre que eu
esteja conseguindo falar.
Ouço-a arquejar baixinho quando vê o balcão cheio de
comida, velas e pétalas de tulipas espalhadas. Seus olhos marejam
e não consigo evitar que os meus façam a mesma coisa, até porque
estou com vontade de chorar desde o instante em que acordei esta
manhã. Na verdade, desde o momento em que decidi que tomaria
essa decisão — e isso aconteceu há bons meses.
Nunca gostei da sensação de vulnerabilidade que as lágrimas
me trazem, mas Lyanna me faz gostar de ser vulnerável. É
confortável compartilhar momentos como este com ela e me permitir
ser… humana. Não a chefe da máfia ou a assassina temida do
submundo.
Só a Alessia. Frágil, apaixonada e humana.
— Não chore, amor — peço, dando um passo adiante para
segurar seu rosto com as duas mãos. Tento disfarçar o quão
trêmulas elas estão ao lhe dar um selinho e grudar nossas testas. —
Gostou da surpresa?
— Muito — sussurra, olhando-me com o cenho franzido típico
de quem vai chorar a qualquer instante. — Você é tão…
— Perfeita? Incrível? Surpreendente? Sua? — brinco,
sorrindo conforme selo os lábios pela extensão de sua mandíbula.
— Todas as alternativas são verdadeiras.
Ela abraça meu pescoço e aperta o corpo no meu. Após
soltar uma longa respiração, diz:
— Eu amo muito você.
Grunho baixinho, satisfeita pra caralho em ouvir isso,
especialmente agora. Me deixa um pouco mais calma. Toda vez que
ela diz que me ama tenho que me segurar para não devorar cada
centímetro dela até ela não conseguir falar.
Afasto o rosto, agarro sua nuca e a beijo com urgência. Sinto
que se eu não beijar essa mulher a cada quinze minutos, vou
morrer. Preciso sentir sua língua quente escorregando pela minha,
os dentes mordendo meu lábio e os suspiros deliciosos que ela solta
contra minha boca quando as coisas começam a esquentar.
Entrelaço os dedos em seus fios e aperto o suficiente para
fazê-la arfar. Chupo sua língua e sinto as unhas afiadas arranhando
o começo da minha coluna, o que me arranca um arquejo alto ao
sentir o arrepio subindo pela espinha. Quando perco o fôlego,
quebro o beijo e abro um sorriso travesso ao mesmo tempo que
estalo um tapa em sua nádega direita e a aperto. Ela sobressalta e
ofega com o susto, mas retribui o sorriso.
Estou tentando amenizar o clima e ficar um pouco mais
tranquila, mas não tem como. Essa é a coisa mais importante que já
fiz em toda a minha vida.
— Também amo muito você, sua gostosa.
Lyanna revira os olhos e me empurra de leve pelo ombro.
Conduzo-a até a cadeira, afasto o móvel para ela se sentar e ganho
um levantar de sobrancelhas satisfeito. Vira o rosto para observar a
mesa, provavelmente pensando que vou me sentar ao seu lado.
Não é o que pretendo fazer.
Acho que vou desmaiar. Acho que vou desmaiar.
Então, reúno toda a coragem existente dentro de mim para
colocar um dos joelhos no chão. Seus olhos me fitam de imediato e
posso jurar que seu rosto empalidece no mesmo instante em que a
respiração engata e os músculos enrijecem.
Pego sua mão, dou um beijo afetuoso nas costas e começo:
— Lyanna, as coisas sempre foram difíceis demais para nós
duas. Até hoje, não entendo o que aconteceu no exato momento em
que pus os olhos em você pela primeira vez naquele bar; tudo
mudou de uma forma que nunca serei capaz de explicar. Quando
ofereci seus batons preferidos como um presente de aniversário e
você me ameaçou da maneira mais sexy possível, eu já sabia que
estava arruinada para sempre. Você seria a minha ruína e eu, com
certeza, queria ser a sua. Desde aquele dia, comecei a fazer
absolutamente tudo para te conquistar e ter alguma coisa, qualquer
coisa, com você. Estava tão obcecada que me contentaria com um
sexo casual nem tão frequente assim, porque pelo menos teria você
de alguma forma. Mas, porra, eu sempre quis muito mais. Sempre
quis tudo com você, desde o sexo até isto aqui: nossa casa.
A primeira lágrima escorre pela minha bochecha sem que eu
consiga — e queira — impedir. O mesmo acontece com ela, que já
deve ter entendido aonde quero chegar.
— Sempre amei tudo sobre você. Seus defeitos, suas
qualidades e suas manias sempre foram perfeitos para mim. Nós
nos completamos de uma forma que ninguém nunca vai entender,
porque nossa relação é única. Nosso amor é único e eu não
exagero quando digo que estivemos juntas em vidas passadas. É a
única explicação que consigo encontrar para esse sentimento que
existe entre nós; não é normal, não é… não é como nada que eu já
vi, conheci ou ouvi falar antes. Não existe nada que você possa
fazer ou dizer que me faria te amar menos; muito pelo contrário, a
cada dia eu te amo um pouco mais.
“Eu sei que já cometi vários erros, mas tudo que faço desde
que te conheci é por você e por nós. Para garantir que tenhamos um
futuro juntas, para te proteger e te fazer sentir a mulher mais
especial e amada do mundo, porque você é. Todos os dias, acordo
com o propósito de te mostrar que ninguém neste mundo é mais
amado do que você é por mim. Eu te amo tanto que passei a
acreditar que talvez Deus realmente exista, porque tenho certeza de
que ele te criou apenas para mim.”
“Tudo que nós enfrentamos para chegar aqui… é surreal,
Lyanna. Passamos cinco anos longe, mas isso não me impediu de
te sentir ao meu lado todas as noites. Eu rezava para te ter de volta,
mas cheguei ao ponto de não conseguir mais enxergar um cenário
no qual você me quisesse de novo. Agradeço ao universo por você
não ter presenciado a minha ruína, mas sou ainda mais grata por
poder ter você ao meu lado durante minha ascensão para
construirmos nossa fortuna juntas. Porra, isso faz tudo valer a pena.
Tudo mesmo. Eu amo o que tínhamos cinco anos atrás e amo o que
temos agora, mas…”
Engulo o nó na garganta, respiro fundo e coloco a mão no
bolso. Tiro a caixinha aveludada vermelha e Lyanna cobre a boca,
soluçando alto. Seu rosto está coberto por lágrimas, a maquiagem
borrada e as pupilas dilatadas. É a visão mais bonita que já tive.
Abro a tampinha e continuo, mesmo com a voz embargada:
— Sei que não tivemos um pedido oficial de namoro desde
que eu voltei, mas acho que não precisamos disso, não é? Também
não tivemos um término oficial, de qualquer forma. O que estou
tentando dizer é… eu quero construir ainda mais com você. Quero
te chamar de “minha esposa”, te dar o meu sobrenome e uma
família. Quero ver mini Lyannas e Alessias correndo pela nossa
casa e nos dando uma baita dor de cabeça no futuro. Quero que o
submundo inteiro saiba que eu tenho dona e que você é a
verdadeira chefe, porque sou eu quem obedeço às suas ordens. —
Abro um sorriso divertido e ela ri, balançando a cabeça em negação.
— Você aceita se casar comigo, principessa?
Lyanna assente freneticamente, me puxa para cima e me
beija como se nossas vidas dependessem disso. E dependem. É um
beijo cheio de lágrimas, amor e esperança. É o beijo mais bonito
que já demos; o mais significativo e especial.
— Sim, sim, sim, sim… — ela repete sem parar, me dando
inúmeros selinhos na boca antes de distribuí-los pelo meu rosto.
Não consigo parar de sorrir e chorar. — Mil vezes sim. Sim pra
caralho.
Rio, agarro sua mandíbula e lhe dou um último beijo curto
antes de me sentar à sua frente. Seguro sua mão, que está tão
trêmula quanto a minha, e apanho o anel de noivado da caixinha. É
a porra do anel mais lindo do mundo — só não mais do que a
aliança do nosso casamento —, com um diamante vermelho e corte
retangular.
Quando encaixo em seu dedo, tenho a certeza de que este é
o momento mais feliz da minha vida até agora. Me arrependo de
não ter feito o pedido antes porque, puta merda, nunca mais vou
parar de olhar para a minha mulher usando nosso anel de noivado.
Lyanna pega o outro anel da caixinha, bem mais simples e
com um diamante vermelho menor do que o dela. Escorrega em
meu dedo, entrelaça nossas mãos e beija as costas da minha antes
de me puxar para cima. Ficamos em pé, abraço sua cintura e a
levanto para rodopiá-la no ar.
— Alessia! — protesta, rindo e serpenteando meu pescoço
com força para não cair.
Estou sorrindo tão grande que minha mandíbula dói.
Coloco-a de volta no chão, seguro seu pescoço e grudo
nossos lábios. Encosto a testa na dela e sussurro:
— Minha noiva.
Ela sorri com o dente entre os lábios e devolve o tom baixo:
— Sua noiva.
“Ela é o fogo no pecado e eu queimo respirando-a
Agora é suicídio de amor
Eu vendo minha alma por um preço alto
Verdade seja dita, eu não me importo
Porque a mão dela é meu paraíso”
Horns | Bryce Fox
 

14 de agosto
 
Coloco os pés no apoio do banquinho, deixando meus joelhos
na altura do quadril, e acendo um cigarro. Há apenas um barman
aqui, já que os demais estão na festa. O cassino pouco iluminado
está silencioso como nunca esteve desde a sua abertura — assim
como nunca esteve fechado também. Tenho poucos minutos para
apreciar o belo uísque que acabei de pedir antes de precisar voltar
lá fora.
Saio do curto devaneio quando escuto passos se
aproximando. Bebo mais um gole, sentindo a pele quente e
ruborizada. O assento ao meu lado é ocupado e eu estreito os
olhos, afinal, quem é que passou pelos seguranças e decidiu sentar
do meu lado entre tantos banquinhos vazios?
Eu sei exatamente quem.
— Um copo de conhaque.
Uau. A voz feminina é rouca e sexy pra caralho.
Dou mais uma tragada no cigarro e mantenho a atenção na
parede à frente, repleta de garrafas. Ao afastá-lo da boca, percebo
que a ponta está manchada de vermelho por conta do meu batom, o
que me faz apanhar o tubinho no decote e abri-lo com uma mão só.
Passo a cor escarlate nos lábios, não precisando de um
espelho para pintar minha boca do jeito certo. Depois, guardo a
embalagem e observo o cigarro repousando entre os meus dedos
no balcão.
— Estou impressionada — a rouquidão soa ao meu lado.
Tenho a impressão de que a frase foi direcionada a mim e,
por isso, viro o rosto devagar.
Quando meus olhos recaem sobre ela, abro um sorriso fraco.
Arqueio as sobrancelhas, inclino a cabeça para o lado e
esquadrinho seu rosto simétrico. Os olhos verdes estudam cada
centímetro do meu, descendo até o decote ousado do vestido
vermelho de pedraria e demorando um pouco mais na fenda que
exibe minha perna esquerda. Depois, retoma o contato visual e me
dá a bela visão das pupilas dilatadas.
— Nunca conheci uma mulher capaz de passar um batom tão
bem sem a ajuda de um espelho.
Amo a sensação de tê-la encarando os meus lábios. Amo a
sensação de tê-la tão perto de mim. Amo tudo relacionado a ela.
— Você não deve conhecer muitas mulheres
impressionantes, então — revido, em um tom que cambaleia entre a
provocação e a arrogância.
Ela solta um riso baixo, quase inaudível, e fico excitada com a
forma como sou examinada.
Não é a primeira vez que encontro Alessia Romano, a chefe
da máfia, cara a cara. Na verdade, nos conhecemos há quase uma
década e em poucas semanas poderei chamá-la de “esposa”.
Desde então, estamos construindo nossa relação à base de amor,
obsessão e poder.
— Conheço muitas — responde, umedecendo os lábios
carnudos com a língua. — Mas nenhuma tão impressionante quanto
você.
Franzo o cenho em completa reprovação.
— Conhece muitas? É mesmo?
Alessia sorri e o barman volta com sua bebida. Ela bebe o
conhaque sem quebrar nosso contato visual, devolve o copo ao
balcão e leva a mão até o bolso do paletó.
Uma bolsinha transparente é colocada à minha frente.
Cheia de batons vermelhos.
— O que é isso? — pergunto.
— Não é óbvio? São batons vermelhos.
Reviro os olhos, entrando no personagem.
— Caramba, obrigada por esclarecer. Eu jamais teria
percebido que são batons vermelhos.
Notando a diversão em minha fala, Alessia sorri de canto
mais uma vez.
— Não sabia que você usava batons vermelhos — continuo.
— Não uso. São para você.
Ergo as sobrancelhas, viro o banquinho para ficarmos frente a
frente e cruzo os braços. Intercalo o olhar entre ela e os batons.
— Se acha que vou aceitar isso, precisa acordar e voltar à
realidade.
— É um presente. — Bebe mais um gole, as íris esverdeadas
brilhando em prazer com nossa encenação. — Um presente de
aniversário.
Tenho que me controlar para não pedir que ela borre o batom
que está na minha boca.
— Está brincando comigo, né?
— Não sou fã de brincadeiras, Lyanna. Sei que você gosta de
batons vermelhos e pensei que seria um bom presente de
aniversário.
Ela já me deu mais de trinta presentes de aniversário só hoje,
sem contar os “pequenos” — que de pequenos não têm nada, mas
ela diz que sim — nos últimos dias. Entre eles, um iate. Precisei
ameaçá-la para que ela não comprase a porra de uma ilha para mim
e Alessia ficou genuinamente chateada porque, em suas palavras,
“seria nosso paraíso particular”. Essa mulher é maluca e já gastou
mais de cem milhões de dólares comigo só essa semana.
— Por favor, pare de desperdiçar o meu tempo com esse
teatrinho — falo, me controlando para não me jogar em cima dela.
Faz duas horas que minha festa começou e já quero sumir
para arrancar toda sua roupa. A desgraçada está tão linda que não
consegui desviar os olhos dela por um minuto sequer, sendo até um
pouco mal educada com os convidados que vieram me parabenizar
e tentaram conversar enquanto eu desviava a cada cinco segundos
para admirar a minha noiva.
Não tenho culpa se estou hipnotizada e louca para nos
trancarmos num cômodo qualquer.
Ela fica em pé entre as minhas pernas, segura meu rosto com
as duas mãos, inclina minha nuca para trás e desliza o nariz pelo
meu pescoço. Fecho os olhos e agarro o tecido da sua roupa,
deleitando-me com a carícia.
— Você é tão arisca quanto uma gatinha selvagem —
sussurra em meu ouvido. — Como eu sempre soube que era.
Sorrio com o lábio entre os dentes e um arrepio atravessa a
coluna quando ela morde o lóbulo da minha orelha.
— Se não vai aceitar os batons, me deixe te presentear com
outra coisa — continua, entrelaçando os dedos no meu cabelo.
Diferente da primeira vez em que nos vimos, eu deixo.
“Eu esperei cem anos
Mas esperaria mais um milhão por você
Nada me preparou para o que o privilégio de ser seu faria
Eu saberia pelo que eu estava vivendo esse tempo todo
Seu amor é minha virada de página”
Turning Page | Sleeping At Last
 

 
Hoje é o dia mais importante da minha vida.
Nos últimos meses, tudo em que eu conseguia pensar era
nisso. As coisas melhoraram ainda mais, tanto na organização
quanto na minha vida pessoal, e passei os dias sonhando com este
momento. Eventualmente, as pessoas começaram a perceber que
Lyanna e eu estávamos juntas. Em uma das reuniões do Conselho,
decidi falar que após sua inserção na máfia nos aproximamos de
maneira natural e nos apaixonamos. Eles não precisam saber da
verdade, até porque não cabe a ninguém além de nós.
Estive torturando Oliver desde o início. Visito sua cela a cada
dois dias e quando não estou lá, faço questão de que meus homens
se divirtam com ele ou coloquem alguns bichos para fazer o
trabalho. Ele está miserável, não fala uma palavra há semanas e já
desistiu de lutar. É vigiado vinte e quatro horas por dia, uma vez que
tentou se suicidar há um tempo. Não vou deixá-lo morrer pelos
próximos anos, então envio um médico de confiança para examiná-
lo diariamente e garantir que ele continue vivo até eu achar que é o
suficiente.
O mais importante de tudo, porém, é Lyanna. Tê-la ao meu
lado como sempre sonhei, abertamente e sem medo do que pode
acontecer, é um verdadeiro sonho. Às vezes, acho que não mereço
ser tão feliz assim. Não devo merecer ser tão amada dessa forma.
Depois de tudo que já fiz, como posso merecer alguém como ela?
Não chego aos pés da minha mulher, mas estou disposta a ser tudo
que ela precisa, tudo que deseja e tudo que merece.
Ela merece a porra do mundo inteiro e eu vou dá-lo a ela.
Estou tão feliz que tenho medo de acordar e perceber que
tudo não passou de um sonho; que ainda estou naquela cela
imunda, alucinando com ela e rezando para que ainda existisse um
futuro para nós duas.
E existe. Estamos construindo nosso futuro juntas, como
costumávamos sonhar no início daquele amor proibido e insano
entre as duas herdeiras de máfias rivais. É tão surreal que não
consigo dizer nada além de que sou grata por não ter escutado os
meus demônios quando tudo voltou a ser preto e branco.
Finalmente sinto que vale a pena viver.
— Você está bem? — Sienna sussurra em meu ouvido.
— Não.
— Ela já vai entrar. Tente ficar calma, ok?
— E se ela desistiu? — pergunto, desesperada.
— De todas as loucuras que você já me falou, acho que essa
é a mais inacreditável de todas — zomba, divertindo-se às custas do
meu sofrimento.
— É sério, Sienna. E se ela percebeu que não a mereço? O
que vou fazer se ela não aparecer?
— Aquela mulher é tão louca por você quanto você é por ela.
Acredite em mim, não existe nenhuma possibilidade disso
acontecer.
— Se você estiver errada, vou te expulsar da máfia.
Ela ri baixinho, planta um beijo em minha cabeça e volta para
o seu lugar. Estou embaixo do arco de tulipas brancas que simboliza
o altar, dentro do enorme salão do Fortuna, à espera de Lyanna. O
lugar está todo decorado com tulipas — sua flor favorita — e o salão
onde será a festa, em outro bloco, está ainda mais enfeitado. Todos
fizeram questão de que o casamento fosse o mais memorável do
mundo do crime.
Não precisaria de absolutamente nada para que isso
acontecesse, afinal, é o primeiro casamento lésbico do submundo.
Estamos fazendo história e sendo memoráveis apenas por existir.
Fui a primeira a entrar, acompanhada de minha irmã, e acho
que vou desmaiar se ela não entrar por aquela porta nos próximos
cinco minutos.
Vou me casar com Lyanna. Vou me casar com o amor da
minha vida. Vou me casar com a pessoa que me fez enxergar que
vale a pena lutar pela vida.
Vou. Me. Casar. Com. Lyanna.
Não consigo acreditar.
Entrelaço os dedos a fim de amenizar o tremor nas mãos, só
que é inútil. Estou tremendo dos pés à cabeça, além do choro
entalado na garganta e o coração quase pulando do peito. Nunca
senti nada assim antes. É inexplicável.
Numa tentativa de me acalmar, corro os olhos pelos
padrinhos e madrinhas. Atrás de mim estão Sienna com Jayden e
Yuna com Audrey, sua namorada. Do outro lado estão Sophie no
aguardo de Kai e Chloe com Abby, sua quase noiva. Surpreendi-me
bastante quando Lyanna disse que gostaria que Chloe fosse sua
madrinha, já que eu tinha Jayden e Yuna e as duas se aproximaram
muito desde Los Angeles.
Pouso o olhar em Chloe e vejo suas bochechas repletas de
lágrimas. Acredito que esteja tão emotiva assim porque me conhece
há muito tempo, bem mais do que a maioria das outras pessoas, e
sabe o quanto esse momento é importante para mim. Chloe
acompanhou minha evolução e meu amadurecimento de perto —
passei de alguém que detestava dormir com quem transava e
abominava sentimentos para alguém que está quase colapsando no
altar porque vai se casar com o amor de sua vida depois de viver
um inferno para que isso fosse possível.
Ela abre um sorriso genuíno, o qual retribuo. Nossa relação
ficou ainda melhor depois que ela tomou o controle de Los Angeles.
Fazê-la ser capo foi uma das melhores e mais inteligentes decisões
que já tomei. Considero-a uma melhor amiga hoje e farei de tudo
para me certificar de que ela está feliz.
Nas primeiras fileiras estão os membros do Conselho de Las
Vegas. Por mais surpreendente que seja, eles parecem satisfeitos.
A contribuição de Lyanna para a Vendetta foi mil vezes maior do que
a que todos nós prevíamos. Minha feiticeira triplicou nossos
negócios e mostrou a todos que é a melhor. Depois disso, foi
impossível que alguém se opusesse à sua permanência na máfia,
assim como ao nosso relacionamento. Eles sabem que enquanto eu
tiver Lyanna e Lyanna tiver a mim, não há nada e nem ninguém
capaz de nos parar. Vamos conquistar cada vez mais e dominar o
mundo logo, logo.
Saio do devaneio quando uma música começa.
Estou petrificada, incapaz de me mover ou de falar. Até
mesmo meus lábios estão tremendo. Quando a porta se abre, tenho
certeza de que paro de respirar e meu coração para de bater.
Nunca serei capaz de explicar o sentimento que me inunda
ao ver Lyanna entrando em seu vestido de noiva, com o véu
arrastando atrás de si e o sorriso mais lindo de todos estampando
seu rosto. A maquiagem é perfeita. O vestido é perfeito. O penteado
é perfeito. Tudo é perfeito.
Ela é tão perfeita que não consigo acreditar que é minha.
Minha mulher. Minha noiva.
Em alguns minutos, minha esposa.
Kai está acompanhando-a até o altar, também com um
sorriso. Quando eles se aproximam, obrigo minhas pernas bambas
a se moverem até alcançá-los. Lyanna recebe um beijo na têmpora
do melhor amigo e ele me dá um rápido, mas genuíno, abraço antes
de caminhar até Sophie.
Começo a chorar sem ao menos ouvir uma palavra dela,
sorrindo como uma boba. Seus olhos estão marejados e acredito
que esteja segurando as lágrimas para não borrar a maquiagem,
mas se até eu estou chorando como uma recém-nascida, Lyanna
vai desabar em poucos segundos.
Entrelaço meus dedos aos seus, encosto nossas testas e
sussurro:
— Está pronta para ser oficialmente a primeira dama,
principessa?
Ela ri baixinho e, como eu previ, a primeira lágrima escorre.
— Estou pronta para ser oficialmente a primeira dama, meu
amor.
Dou-lhe um selinho e paramos em frente ao homem que vai
fazer as formalidades do casamento, já que não vamos nos casar
pela igreja e nem nada do tipo. Juntamos nossas mãos, a poucos
passos de distância, e não consigo tirar os olhos dela.
Estou hipnotizada. De verdade.
Minha mandíbula já está doendo em virtude do sorriso
gigantesco. Acho que nunca sorri tanto assim e estou pouco me
importando para o fato de que minha postura de assassina temida e
chefe da máfia foi para os ares. Quero ser vulnerável, quero chorar
e quero aproveitar esse momento do jeito que ele deve ser
aproveitado: com muito, muito sentimento.
Estou transbordando sentimentos. Todos por Lyanna. Todos
para Lyanna.
Liam, o homem que vai celebrar nosso casamento, começa a
falar. Não presto muita atenção, porque estou fascinada por ela. Vou
me lembrar dessa imagem para o resto da vida.
É a visão mais linda que eu já tive e nenhuma outra nunca vai
chegar aos pés de Lyanna nesse vestido de noiva, olhando-me
como se eu fosse o seu mundo inteiro, a poucos minutos de se
tornar minha esposa. Minha para sempre, oficial e irrefutavelmente.
Eu a amo tanto que meu peito dói.
— As noivas dirão seus votos agora — o cerimonialista fisga
minha atenção e enfim o encaro. Ele me lança um sorriso
compreensivo e balança a cabeça em um sinal para que eu comece.
Puta que pariu, não posso desmaiar na frente dos meus
soldados.
Pigarreio, aperto as mãos de Lyanna e respiro fundo. Uma,
duas, três vezes. Ensaiei esse maldito discurso todos os dias dos
últimos cinco meses e nem é um exagero. Prometi que não choraria
durante ele e pretendo cumprir com a minha palavra.
— Lyanna, eu soube que você seria minha no segundo em
que nossos olhos se encontraram. Nas primeiras palavras ácidas e
cheias de ódio, eu tive a certeza de que você me traria um milhão
de problemas e eu adoraria cada um deles. Não precisei de muito
tempo para perceber que você não só era o amor da minha vida,
como também a mulher que mudaria tudo dentro de mim. Tudo,
Lyanna. Você mudou tudo. Foi como um furacão que eu pensei ter
previsto, mas que na realidade foi muito mais forte do que eu
poderia imaginar. Nunca fui o tipo de pessoa que acreditava no
amor e em toda essa conversa de conto de fadas, mas você me
mostrou que tudo é verdadeiro: o calor no peito depois de um dia
cansativo que só um abraço seu consegue me proporcionar; a
esperança em meio ao caos que só um beijo seu é capaz de me dar
e o amor mais genuíno e insano que alguém consegue sentir.
“Qualquer um consegue enxergar que eu não te mereço.
Você é boa demais para mim, Lyanna, e mesmo assim escolhe estar
ao meu lado; escolhe acordar nos meus braços todos os dias e
escolhe me amar. É exatamente por isso que eu não te mereço,
principessa. Você escolhe me amar mesmo com os meus inúmeros
defeitos e mesmo depois de tudo que nós passamos. Talvez eu
nunca seja capaz de te explicar metade do que eu sinto, porque
acredito que palavras não são suficientes. Nem ações e nem nada
do que o ser humano conhece. Meu amor por você transcende tudo
que já vi ou conheci neste mundo.
“Você me mostrou que amor não é sinônimo de fraqueza,
mas de força. Seu amor foi uma virada de página para mim, Lyanna.
Não me lembro de como era a vida antes de você e não pretendo
conhecer a vida depois de você, porque ficaremos juntas pela
eternidade. Minha alma sempre estará ligada à sua em todos os
universos e realidades existentes. Obrigada por existir e por me dar
a honra de te chamar de “minha”. Eu te amo, Lyanna. Per il tuo
sangue vivo e per il tuo sangue morirò[20].”
Tendo em vista o rosto dela totalmente coberto de lágrimas e
os soluços que escuto vindo dos convidados, acho que me saí muito
melhor do que esperava.
Sinto suas mãos tremendo muito e aperto-as nas minhas para
tentar lhe acalmar. Ela respira fundo, fecha os olhos por alguns
segundos e diz com a voz embargada:
— Você tem sorte que essa maquiagem é à prova d’água,
sua infeliz.
Solto uma gargalhada junto dos demais e planto um beijo nas
costas da sua mão. Soltando mais uma respiração profunda, ela
enfim começa:
— Alessia, eu sempre fui sua. Mesmo com todo o ódio, eu
não conseguia ser nada além de sua. Sua para odiar, para lutar,
para beijar e para amar. Você bagunçou completamente a minha
cabeça, o meu coração e a minha vida. Não sei qual foi o momento
exato em que eu percebi que as coisas nunca mais seriam as
mesmas, mas talvez entre uma partida e outra. Ou durante uma
conversa na varanda, um cigarro compartilhado e um olhar repleto
de significados. Cada momento me fez ser sua um pouco mais e,
quando notei, já estava sonhando acordada com nosso futuro, ainda
que não parecesse haver um. Eu tentava colocar os pés no chão
para aceitar a realidade de que nós nunca funcionaríamos, mas
todas as vezes você chegava para derrubar as minhas certezas.
Seus olhos, suas palavras, seu comportamento, seus beijos… era
impossível não sonhar com um futuro ao seu lado, Alessia.
“Antes de te conhecer, era difícil encontrar motivos para
continuar. Eu estava cansada de lutar, lutar e lutar, e sempre acabar
me sentindo como uma fracassada. Você diz que eu mudei tudo em
você, mas a verdade é que nós mudamos tudo uma na outra. Talvez
eu nunca consiga mensurar em palavras a importância que você
tem na minha vida desde o primeiro momento em que entrou nela,
porque ultrapassa todos os limites possíveis. Você me ajudou a
crescer e a enxergar o meu próprio valor. Você me fez sentir
especial, única e amada. Todos os dias. Mesmo quando não existia
nenhuma razão para eu acreditar que carregava alguma relevância
neste mundo, você estava lá para me dizer que eu sou a mulher
mais inteligente e linda de todas; para me assegurar que meu futuro
era brilhante, porque eu era brilhante; para me proteger e me amar.
“Eu te mereço, Alessia. Eu te mereço como nunca mereci
algo antes. Você é a melhor coisa que já me aconteceu e a única da
qual não me arrependo de nada, apesar de tudo. Nossa história é
cheia de altos e baixos, mas eu não a trocaria por nenhuma outra.
Ela é tão especial que vai ser transmitida por gerações nesta máfia
e todos vão conhecer Alessia e Lyanna, o casal que transformou
suas ruínas em uma fortuna. Nossos sentimentos são uma fortuna
muito maior do que todo o dinheiro e o poder que nos cerca, porque
eles são a única certeza que temos. Independente do que aconteça,
nosso amor continuará vivo para a eternidade. Obrigada por
comprar batons no meu aniversário, Alessia. Eu amo você. Per il tuo
sangue vivo e per il tuo sangue morirò.”
Quando o cerimonialista faz nossos votos individuais e nós
trocamos as alianças, sinto como se estivesse prestes a explodir.
Inclino-me para beijá-la e os convidados ovacionam, preenchendo o
salão com gritos e assobios.
Agora, mais do que nunca, tenho a absoluta certeza de que
pelo nosso sangue nós vivemos e pelo nosso sangue nós
morreremos.
 

FIM
 
 

Ainda não consigo acreditar que Fortuna & Ascensão


finalmente veio ao mundo. Eu sonhava há muito tempo em escrever
um Dark Romance entre duas mulheres e confesso que duvidei
muitas vezes de que seria possível, mas aqui estamos! Este livro foi
uma das maiores e melhores aventuras que já tive em toda a minha
vida, além de ter sido um desafio enorme como escritora. Alessia e
Lyanna me desafiaram a todo momento, em todos os capítulos, e eu
não poderia estar mais feliz em compartilhar o amor lindo e único
delas com vocês.
Quero agradecer à minha família pelo apoio e pelo
encorajamento, mesmo que tenham ficado assustados com as
loucuras que escrevi nesta obra (risos). Mãe, você continua sendo
minha maior apoiadora e minha fortaleza. Obrigada por abraçar
esse sonho comigo e por estar sempre ao meu lado,
independentemente do que eu escreva. Nada disso seria possível
sem você, eu te amo muito.
Às minhas leitoras, um milhão de “obrigadas” por me
apoiarem tanto em quaisquer circunstâncias. Eu não estaria aqui
hoje se não tivesse o carinho e o apoio de vocês. Obrigada por
embarcarem nesse novo gênero comigo, ainda que a maioria não
seja muito chegada no Dark. Amo muito vocês e agradeço todos os
dias por ter leitoras tão especiais <3
Às minhas amigas, que acompanharam o nascimento
(literalmente) deste livro há muito tempo, quando ele ainda não era
nada parecido a como é hoje. Obrigada por sempre me encorajarem
a continuar.
Agradeço também à Débora por todo o apoio surreal nesta
jornada, mesmo sendo algo novo para você. Obrigada por continuar
ao meu lado, apesar de tudo.
Não poderia deixar de agradecer às responsáveis por esta
obra: Alessia e Lyanna, vocês me transformaram muito mais do que
eu imaginava. Que experiência maravilhosa foi contar o amor tão
quebrado e único de vocês. Nunca me esquecerei dos meses que
compartilhei com minhas gatinhas mafiosas.
Por fim, agradeço a você que chegou até aqui. Espero que
tenha gostado de conhecer o mundo de Fortuna & Ascensão e que
o amor de Lyanna e Alessia tenha tocado você de alguma forma,
assim como tocou a mim.
Não se esqueçam de avaliar o livro na Amazon ou no Skoob,
pois me ajuda muito. Convido a todos para conhecerem minha outra
obra, “Cheering Beside You”, que tem um casal tão intenso e
especial quanto este. Você pode ler CBY clicando aqui.
Com todo o meu amor, Marcella
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[1]
TRAD [italiano]: Me solte antes que as coisas fiquem feias, sua bastarda. Não quero ter
que enviar sua cabeça de volta para a Vendetta.
[2]
TRAD [italiano]: “Pelo amor de Deus…”
[3]
TRAD [italiano]: “Tio”.
[4]
Pessoa que distribui as cartas no Poker.
[5]
É a mais alta de todas as mãos de poker, formada por uma sequência crescente de
cartas até o Ás, começando pelo dez, todas do mesmo naipe.
[6]
TRAD [italiano]: “A Aranha”.
[7]
TRAD [italiano]: “Do nosso sangue nascemos”.
[8]
TRAD [italiano]: “E pelo nosso sangue morreremos”.
[9]
TRAD [italiano]: “Meu Deus”.
[10]
“Fábricas” são grandes galpões onde acontecem as operações relacionadas ao tráfico,
desde produções de drogas até distribuição.
[11]
TRAD [italiano]: “Irmã”.
[12]
TRAD [italiano]: “Caralho”.
[13]
“Manilha” é a carta mais forte do jogo, sendo a próxima após a que é colocada na
mesa, na sequência de cartas do Truco.
[14]
TRAD [italiano]: “Filhos da puta” ou “canalhas”.
[15]
TRAD [italiano]: “Meu Deus, você é tão estúpida!”.
[16]
TRAD [italiano]: “Filho da puta”.
[17]
TRAD [italiano]: “Meu Deus, não consigo acreditar. Não consigo acreditar!”.
[18]
TRAD [italiano]: “Porra, eu senti tanta falta dos seus peitos”.
[19]
TRAD [italiano]: “cretina”.
[20]
TRAD [italiano]: “Pelo seu sangue eu vivo e pelo seu sangue eu morrerei”.

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