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Cinema expressionista alemão:

o estranho, o estranhamento
e o efeito de estranhamento

German expressionist cinema: the uncanny,


the estrangement and the estrangement effect

Resumo: A análise de alguns filmes do cinema expressionista ale-


mão produzidos no início do século XX possibilita apontar a exis-
tência de temas comuns e recorrentes como a submissão volun-
tária dos indivíduos, a manipulação da massa pelo líder, o tema da
personalidade cindida e o duplo. Ainda que essas temáticas pare-
çam referir-se, à primeira vista, somente aos transtornos psicoló-
gicos dos personagens, Sigfried Kracauer procura demonstrar a
relação existente entre os temas tratados nos filmes expressio-
nistas e a realidade social da Alemanha no pós-guerra. Nesta pers-
pectiva, este trabalho tem como proposta discutir a relação entre
aspectos da realidade psíquica individual, sobretudo a alienação
Lineu Norio Kohatsu
mental e a alienação e o estranhamento produzidos pela realida- Instituto de Psicologia da
de social. Põe em contato o estranho (Das Unheimliche) discutido Universidade de
por Freud, o conceito de estranhamento (Entfremdung) de Marx São Paulo (IP-USP)
e o efeito de estranhamento na arte (Verfremdungseffekt) de Ber- lineu@usp.br
tolt Brecht, discutido por Herbert Marcuse.
Palavras-chave: cinema expressionista alemão; psicologia; teo-
ria crítica da sociedade

Abstract: The analysis of some of the German expressionist


films produced in the early twentieth century enables us point
to the existence of common and recurring themes such as the
voluntary submission of individuals, the mass manipulation by
leaders, the split personality, and the double. Although such is-
sues seem to refer, at first, only to the characters’ psychological
disorders, Sigfried Kracauer seeks to demonstrate the relation-
ship between the topics covered in expressionist films and Ger-
many’s social reality in the postwar period. In this perspective,
the aim of this paper is to discuss the relationship between as-
pects of the individual psychic reality, especially alienation, men-
tal alienation, and estrangement produced by social reality. It
puts together the strange (Das Unheimliche) discussed by Freud,
the concept of estrangement (Entfremdung) by Marx, and the
effect of estrangement in art (Verfremdungseffekt) by Bertolt
Brecht, discussed by Herbert Marcuse.
Keywords: German expressionist cinema; psychology; criti-
cal theory of society
Introdução à dimensão subjetiva e espiritual diante de
um mundo aterrorizador. O expressionismo

A
proposta deste artigo é discutir algu- surge como um grito de desespero, referen-
mas questões suscitadas a partir da ciando Munch, perante um pesadelo som-
análise de alguns filmes do expressio- brio que parece não ter fim.
nismo alemão, incluindo alguns dos conside- No cinema, sob influência das inova-
rados predecessores. ções do teatro, os recursos cênicos e de
Embora produzidos na Alemanha no iluminação são explorados ao máximo para
mesmo período e reunidos sob o rótulo do criar essa atmosfera de terror; assim, as dis-
expressionismo, os filmes citados apresen- torções dos cenários, sobretudo em Caligari,
tam uma rica diversidade. Em alguns, é notá- distanciam-se do naturalismo para represen-
vel a presença de aspectos formais que carac- tar o atormentado mundo interno dos perso-
terizam o expressionismo, como cenários e nagens. Os recursos de iluminação são tam-
iluminação; em outros, ainda que se perceba bém explorados de diversas formas; ora com
certo naturalismo no cenário e na representa- contrastes violentos produzidos por uma luz
ção dos atores, nota-se fortemente presente dura que cria sombras assustadoras, como a
temáticas exploradas no expressionismo: per- de Scapinelli, em O estudante de Praga, ou do
sonagens obcecados por visões e conflitos in- vampiro Nosferatu, ora com a suavidade de
ternos, a personalidade cindida e a presença um chiaroscuro que remete à Caravaggio ou
do duplo, a submissão voluntária dos indivídu- à Rembrandt, como em Fausto de Murnau.
os e a manipulação da massa. Embora o mundo interno dos perso-
A ausência de uma padronização nos nagens tenha sido o foco do cinema expres-
filmes expressionistas pode ser decorrência sionista, para Kracauer, a análise dos filmes
do próprio expressionismo. Mais do que um expressionistas revela, sobretudo, as tendên-
movimento, tendência, mentalidade ou mo- cias psicológicas das massas, os estratos mais
dismo, o expressionismo pode ser conside- profundos da mentalidade coletiva. Para além
rado uma visão de mundo (Weltanschauung) da dimensão subjetiva, a análise dos filmes
perante um mundo em ruínas e na iminên- permite, também, problematizar o estranha-
cia de uma catástrofe. Compartilhando mento provocado pela realidade objetiva e
essa visão de mundo, a partir de influências material condicionada pelo modo de produ-
do gótico, barroco e romantismo, foram ção capitalista, que produz a alienação e es-
manifestando-se experiências estéticas de tranhamento, conforme Marx.
grupos de artistas plásticos como A ponte Por fim, questiona-se o papel da arte e
(Die Brücke), de Dresden, e O cavaleiro azul da cultura como meio de negação da realida-
(Der Blaue Reiter), de Munique, que tinham de alienante e suas possibilidades diante da
diferentes posicionamentos e concepções invasão da superestrutura pela infraestrutura,
sobre arte. Posteriormente, surgiram as pelo predomínio crescente da racionalidade
manifestações na literatura e, em sua fase tecnológica em todas as esferas da vida, for-
final, no teatro e no cinema. Mesmo dife- talecendo a realidade unidimensional capaz
rentes em muitos aspectos, essas manifes- de assimilar, cada vez mais, as manifestações
tações tinham em comum a atenção voltada de recusa e oposição.

Impulso, Piracicaba • 23(57), 103-118, maio.set. 2013 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767
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O estranho – Das Unheimliche No referido trabalho, Freud procura de-
monstrar a ambivalência do termo Unheimli-
“Sou o que pareço e não pareço o ch. O estranho pode ser algo secretamente
que sou. Enigma inexplicável para familiar que foi submetido a repressão e re-
mim mesmo: meu eu está dividido tornou. Assim, esse estranho não é nada novo
em dois”.
ou alheio, mas, pelo contrário, muito familiar.
Ernst Hoffmann, O elixir do diabo
Freud toma inclusive o conto O homem da
O universo do fantástico não foi origi- areia para discutir o estranho.
nalmente inaugurado pelo cinema expressio- Embora, em princípio, a concepção psi-
nista alemão, embora este o tenha explorado canalítica acerca do estranho e o estranho
até a exaustão, do início ao fim. Segundo Kra- na literatura pareçam coincidentes, Todorov,
cauer, foi a literatura fantástica, sobretudo de que inclusive cita o artigo de Freud, suspeita
Ernst Theodor Amadeus Wilhelm Hoffmann, que não haja coincidência perfeita entre os
que exerceu grande influência na criação dos termos, todavia, não se aprofunda nessa dis-
roteiros utilizados pelos filmes. tinção. De toda forma, é importante ressaltar
Para Todorov (2008), a incerteza e a que o sentimento de estranheza, referido
hesitação entre realidade e ficção é o que ca- por Freud, não encontra solução por meio de
racteriza o fantástico, distinto do estranho e uma explicação racional, visto que se situa na
do maravilhoso. O conto O homem da areia, dimensão do inconsciente reprimido. Neste
de Hoffmann (1993), é um representante típi- artigo, a categorização dos filmes nos gêne-
co do gênero. Em princípio, a história parece ros maravilhoso, fantástico ou estranho não
tratar dos delírios e alucinações de Natanael, será priorizada, pois estes serão analisados
o jovem protagonista. Todavia, a história é somente como representação do universo
escrita de modo que o leitor fique em dúvida subjetivo dos personagens.
sobre o que é fruto da imaginação do perso- O expressionismo, de modo geral, in-
nagem e o que é realmente decorrente dos cluindo-se aí o cinema, voltou suas luzes para
feitiços do temível Coppelius. o lado sombrio da alma humana, àquilo que
Todorov situa o fantástico entre o mara- é irracional, obscuro, macabro, enigmático.
vilhoso e o estranho. No maravilhoso há o pre- Sob influência do teatro, a realidade externa
domínio do imaginário, mas os acontecimen- serviu como tela para as projeções do mundo
tos sobrenaturais não provocam qualquer interno dos personagens.
estranheza, pois fazem parte desse universo, Segundo Mattos:
tal como nos contos de fadas. No estranho,
os expressionistas fizeram do mun-
os acontecimentos que se mostram como so- do interno da personagem principal
brenaturais ao longo da narrativa encontram, o único elo entre os diversos ele-
no final, uma explicação racional, sendo re- mentos da trama. Encenava-se no
duzidos a fatos conhecidos e a experiências palco o próprio desenvolvimento
prévias do passado. Tal explicação remete à psicológico da personagem, seus
discussão feita por Freud (1976a) em seu arti- conflitos e sua visão de mundo.
Todo o cenário estava a serviço da
go “O estranho” (Das Unheimliche), publicado
explicitação de sua posição existen-
no outono de 1919.
cial. (MATTOS, 2002, p. 59).

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No filme O gabinete do Dr. Caligari (Das Kracauer observa que algumas caracte-
Kabinett des Dr. Caligari, 1920),1 dirigido por rísticas predominantes dos filmes expressio-
Robert Wiene, a deformação proposital do nistas já podiam ser notadas em filmes con-
cenário, pintado com linhas geométricas, ex- siderados precursores do expressionismo: O
pressa a alucinação, o delírio e a vertigem vi- estudante de Praga, O Golem, ambos dirigidos
vidos pelo personagem. No ambiente onírico por Paul Wegener; Homunculus (1916), de
do Gabinete das figuras de cera (Das Wachsfi- Otto Rippert e O Outro (Der Andere, 1913), de
gurenkabinett, 1924), de Paul Leni, os cenários Max Mack; este último é considerado o pri-
não pretendem retratar o mundo de forma meiro filme de autor na Alemanha, e também
objetiva, ao contrário, alguns se assemelham, o primeiro drama psicanalítico do cinema (cf.
inclusive, a cavidades do interior de um or- NAZÁRIO, 2002, p. 507). O estudante de Pra-
ganismo, tal como em O Golem (Der Golem, ga, por sua vez, inspirado em Ernst Hoffmann,
1920), embora em seus cenários externos te- Edgar Alan Poe e na lenda de Fausto, “intro-
nham predominado as formas góticas. duz no cinema um tema que se tornaria uma
Sobre O estudante de Praga (Der Student obsessão do cinema alemão: uma preocupação
Von Prag, 1913), dirigido por Paul Wegener, temerosa com o eu profundo”. (KRACAUER,
Kracauer escreve: 1985, p. 36).
As quatro histórias da década de 1910
Toda ação exterior é apenas uma abordam temas que serão intensamente ex-
imagem que reflete o que acontece
plorados na década seguinte: a divisão da
na alma de Baldwuin. Baldwin não é
consciência, a personalidade duplicada e a
uma parte do mundo, senão que o
mundo está contido em Baldwin e é manipulação dos indivíduos.
reflexo dele. (KRACAUER, 1985, p.
36). (Tradução nossa) O duplo: a consciência dividida
O tema comparece em alguns filmes ex-
No filme A última gargalhada (Der letzte pressionistas, mas de modo diverso. No caso
Mann, 1924), de Murnau, mesmo a atmosfera do filme O estudante de Praga, a imagem do
fantástica não sendo tão marcante, os efei- personagem Baldwin refletida no espelho
tos causados pelos movimentos de câmera, torna-se seu duplo, que segue as ordens do
pela iluminação e pela montagem sugerem feiticeiro Scapinelli para cometer assassi-
vertigens sofridas pelo personagem, um ve- natos. Em Fantasma, de Murnau, Lorenz é
lho funcionário de hotel em decadência. Fan- atropelado pela carruagem de Veronika, uma
tasma (Phantom, 1922), também dirigido por rica dama, por quem se apaixona. Obcecado,
Murnau, apresenta, no início, cenários natura- acredita que Mellita, uma jovem oportunista,
listas, mas, na medida em que o personagem é sua amada, sendo manipulado por ela, sua
vai sendo tomado pela paixão obsessiva que mãe e o amante, até levá-lo a cometer crimes
o leva a ruína, as distorções das casas, resul- e parar na prisão. Em Metrópolis (Metropolis,
tantes dos efeitos de montagem, expressam 1927), de Fritz Lang, o duplo é representado
o mundo interno que está desabando. por um robô que toma a forma da líder dos
operários com o objetivo de manipulá-los. É
interessante notar como o tratamento é dis-
1 O título original em alemão será apresentado somente tinto nos três filmes citados. Em O estudante
na primeira citação do filme.

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de Praga, Baldwin não reconhece que seu du- A análise mostra o quanto as persona-
plo é projeção de sua personalidade, tal como lidades são regredidas psicologicamente, in-
ocorre em O duplo, de Dostoievski. Em Fan- capazes de perceberem a si e aos objetos de
tasma, não é o sujeito que é duplicado, mas o modo não cindido. Mergulhados e alienados
objeto de sua paixão. Mediante a frustração em seus devaneios e em suas obsessões, es-
insuportável da perda do objeto, divide-o ma- ses personagens não conseguem perceber
niqueistamente: de um lado, a idealizada e o mundo de forma objetiva; é nesse sentido
pura Veronika, de outro, a perversa Mellita, que o mundo torna-se apenas um palco para
a quem Lorenz obedece masoquistamente. a projeção de suas fantasias, cenário de seus
Metrópolis, por sua vez, mostra como a massa pesadelos. Não se sabe de onde surgem as
obedece cegamente o duplo de sua líder. ameaças, se são reais ou imaginárias, pois não
Nesses três filmes, nota-se que as figu- há distinção entre o mundo interno e o mun-
ras duplicadas apresentam características do externo, entre sujeito e objeto; a percep-
sombrias e destrutivas, sendo manipuladas ção do mundo é achatada no primeiro plano,
passivamente e sem resistência. Essas ima- onde se situa o eu perseguido por seus me-
gens duplicadas representam perfeitamente dos, sem perspectivas ou ponto de fuga, tal
o lado sombrio e reprimido da personalidade, como as pinturas geométricas do cenário de
existindo como o outro que é projetado para Caligari. O eu e o mundo tornam-se indisso-
fora; o indivíduo não precisa se confrontar ciáveis, assim como a fantasia e a realidade.
com a dimensão desconhecida e negada de si. Nesse cenário, tudo é estranho e ameaçador.
Para Freud, o processo da projeção
pode ser observado quando “uma percepção A relação senhor-servo: da
interna é suprimida e, ao invés, seu conteúdo, dominação à submissão voluntária
após sofrer certo tipo de deformação, ingres- O tema da submissão e obediência cega
sa na consciência sob a forma de percepção é tratado em vários filmes expressionistas,
externa” (FREUD, 1969, p. 89). como em O estudante de Praga e Fantasma,
Horkheimer e Adorno ressaltam a dis- já citados; em Metrópolis, o robô obedece
tinção entre a projeção e a falsa projeção, automaticamente às ordens do cientista Ro-
apontando antissemitismo como exemplo twang; em O gabinete do Dr. Caligari, Cesare, a
da segunda. Na falsa projeção, “os impulsos criatura sonâmbula, comete vários assassina-
que o sujeito não admite como seus e que, tos hipnotizado por Caligari; em Dr. Mabuse, o
no entanto, lhe pertencem são atribuídos ao jogador (Dr. Mabuse, der Spieler, 1922), de Fritz
objeto: a vítima em potencial” (HORKHEI- Lang, o estelionatário Mabuse usa a hipnose
MER; ADORNO, 1985, p. 174). Desse modo, é para manipular os jogadores durante as par-
compreensível o motivo pelo qual o indivíduo tidas; em Nosferatu (Nosferatu Eine Sympho-
obcecado pelo desejo de matar torna-se para- nie des Grauens, 1922), de Murnau, o vampiro
noico, justificando seu desejo como legítima enfeitiça suas vítimas que caminham como se
defesa. Diante da incapacidade de autorrefle- fossem criaturas sonâmbulas.
xão, o indivíduo não consegue discernir o que Em todos esses filmes, os personagens
é resultado de sua projeção e o que é próprio agem como se estivessem destituídos de
do outro, empobrecendo-se cada vez mais, e subjetividade, agindo como autômatos sem
perdendo a capacidade de diferenciar-se. alma. Tal situação remete à descrição dos in-

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divíduos em situação de grupo feita por Le solução deus ex machina, surgem os primeiros
Bon, citado por Freud (1976b). Para Le Bon, raios de sol que destroem o vampiro, libertan-
o indivíduo no grupo tende a perder sua per- do a jovem de seu encanto. Aparentemente,
sonalidade consciente, obedecendo a todas não há indícios no filme, além da fala de Nos-
as sugestões do operador e cometendo atos feratu, de que a jovem estava entregando-se
em completa contradição com seu caráter, por vontade própria ao vampiro. Afinal, por
assemelhando-se muito ao estado de hipno- que um indivíduo iria se a uma figura que po-
se. A personalidade desvanece e a vontade e deria levá-lo à destruição? Por que se sentiria
o discernimento perdem-se; o indivíduo deixa atraído e seduzido por uma figura manifesta-
de ser ele mesmo e transforma-se em um au- mente perversa?
tômato. A capacidade intelectual é reduzida Lorenz, do filme Fantasma, é o exemplo
e as inibições cedem, regredindo ao nível da do indivíduo que se deixa manipular e ser ar-
barbárie e liberando os instintos cruéis, bru- ruinado, tal como ocorre com o professor em
tais e destrutivos. O anjo azul (Der blaue Engel). Em Dr. Mabuse, a
Se, por um lado, os filmes mostram a dançarina Carozza e a Condessa Dusy Told são
total submissão dos personagens, por outro seduzidas pelo manipulador Mabuse, mesmo
retratam também situações em que os per- sabendo de suas ações criminosas. O que se
sonagens conseguem resistir à manipulação nota nesses casos é a atração e a fascinação
da consciência, tal como ocorre no filme Dr. que os indivíduos sentem em relação à perso-
Mabuse, na cena em que o advogado do Es- nalidade manipuladora, atraídos pela relação
tado resiste à tentativa de hipnose feita pelo sadomasoquista e liberando as pulsões eróti-
criminoso. cas e destrutivas.
Há ainda as situações em que a conces- Em sua análise da psicologia das massas,
são ocorre de modo consciente. No filme O Freud (1976b) vai além das hipóteses de Le Bon
estudante de Praga, Baldwin é assediado pelo sobre sugestão e contágio. Uma contribuição
feiticeiro, mas assina voluntariamente o con- importante de Freud é, sem dúvida, sobre o
trato que o obriga a ceder sua imagem em processo de identificação dos indivíduos com o
troca de riqueza. O mesmo ocorre com Faus- líder. Para Freud, a identificação é uma das for-
to (Faust – Eine Deutsche Volkssage, 1926), de mas mais primitivas do laço emocional e é por
Murnau, que realiza um pacto com Mefisto meio desta que os indivíduos frequentemente
para obter a juventude. se relacionam com os líderes dos grupos.
Em Nosferatu, o Conde Orlok, mesmo a Segundo Adorno e Horkheimer (1971),
distância, consegue enfeitiçar a jovem Ellen, Freud busca compreender as condições que
mas o que chama a atenção é a fala do vam- permitem ao indivíduo, na massa, liberar-se
piro: “Ninguém poderá salvar do encanto, so- dos obstáculos que impedem a expressão de
mente uma mulher pura que vai oferecer de seus impulsos inconscientes. Freud não se
vontade própria o seu sangue” (MURNAU, detém na ideia de sugestão como explicação
1922). Se a jovem deve oferecer-se de vontade do fenômeno que afeta os indivíduos na mas-
própria, por que ela teve que ser hipnotizada? sa; vai além, quando levanta a hipótese da li-
Na cena final, que parece levar à consumação bido como elemento unificador dos grupos.
do ato vampiresco, subitamente, como numa Os indivíduos estão ligados libidinalmente

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ao líder e também aos demais membros do Eu criei uma máquina com a ima-
grupo; em relação ao líder, ocorre o proces- gem do homem, que nunca se can-
so de transferência a partir do processo de sará e nem cometerá erros. […].
Agora os trabalhadores vivos não
identificação com o pai. Mediante a identifi-
terão mais utilidade. (LANG, 1927).
cação, ocorre o esforço dos indivíduos para
tornarem-se semelhantes ao outro, tomado
O robô é criado com o intuito de supe-
como modelo. O ideal de ego não alcançado
rar as limitações humanas e tornar dispensá-
projeta-se no líder. Por outro lado, todos se
vel a força de trabalho, mas posteriormente
assemelham, a partir do momento em que
é utilizado para provocar a desmobilização
partilham o mesmo ideal de ego. O grupo sa-
dos operários.
tisfaz, assim, o desejo de envolver-se como
Se, por um lado, a máquina-robô asse-
membro de uma multidão.
melha-se ao homem, no filme os operários
Para encerrar esta parte, é oportuno
assemelham-se à máquina, verdadeiros autô-
recordar a tese de Kracauer de que os filmes
matos com gestos e movimentos repetitivos,
revelam os estratos mais profundos da men-
marchando em blocos, indiferenciados, re-
talidade coletiva, as tendências psicológicas
duzidos à massa homogênea, diferentemen-
das massas. Nesse sentido, alguns aspectos
te dos burgueses que são representados de
apontados de forma breve neste segmento
modo individualizado.
ajudam a compreender alguns comportamen-
Os operários, por sua vez, são transfor-
tos de massa, como a identificação e submis-
mados em máquina; o robô ganha semelhan-
são cega ao líder que, posteriormente, favo-
ça ainda maior com os humanos quando é
receram a ascensão do nazismo.
transformado para tornar-se idêntico à jovem
Maria, líder dos os trabalhadores. Infiltrada
O estranhamento perante a entre os operários, o robô-Maria incita-os a
realidade objetiva quebrarem as máquinas. Esta passagem elu-
Metrópolis, com direção de F. Lang e ro-
cida de forma clara a disposição da massa
teiro de Thea von Harbou e Lang, tem como
em seguir cegamente um líder e dar vazão às
mote central a luta de classes, representada
pulsões destrutivas. Na cena final, Rotwang,
em um contexto de ficção científica, remeten-
que havia sequestrado a jovem Maria, segue
do também à discussão do desenvolvimento
para o alto da catedral, perseguido pelo jo-
tecnológico com fins voltados para a domina-
vem Freder, filho do grande empresário. O
ção social.
pai e a multidão de operários assistem à luta
Em Metrópolis, os temas do duplo e do
que é travada entre Rotwang e Freder, até
autômato são retomados pela figura eroti-
que o primeiro despenca do alto. Freder salva
zada de um robô metálico com silhueta fe-
Maria, a operária, e beija-a – primeiro sinal da
minina, com curvas e seios, construído pelo
conciliação entre as classes. Já, embaixo, de
cientista Rotwang, interpretado por Friedrich
um lado, um operário, e de outro, o sr. Joh –
Rudolf Klein-Rogge.
entre deles, o jovem Freder. Maria diz: “Não
Logo início do filme, Rotwang revela
pode haver entendimento entre as mãos e o
suas pretensões, quando apresenta sua cria-
cérebro a menos que o coração atue como
ção ao industrial Joh Fredersen:

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mediador” (1927). Freder aproxima as mãos tos que produz. Todavia, o trabalhador não
do pai e do operário, que se cumprimentam. reconhece os objetos como produto de seu
No final, a conciliação entre capital e trabalho trabalho, pois este lhe surge como um ser
e a confraternização entre as classes. estranho, independente do produtor, con-
Ainda que o final seja decepcionante no forme Marx (2004).
que se refere à crítica social, há vários aspec- A relação entre o trabalhador e o pro-
tos no filme de Lang que podem estimular a duto de seu trabalho é de estranhamento
discussão sobre a relação mimética entre a (Entfremdung) e alienação (Entäusserung). O
humanidade e a máquina. trabalho e o produto não pertencem ao tra-
No ensaio Elementos do anti-semitismo balhador, portanto este não se afirma em sua
(1985) – os limites do esclarecimento, Horkhei- atividade, pelo contrário, nega-se nela, sobre-
mer e Adorno discutem o conceito de mi- tudo naquilo que tem de mais humano.
mese. Para os frankfurtianos, o mimetismo A opressão gerada pelo trabalho aliena-
é uma das formas mais primitivas de sobre- do impede qualquer forma de desenvolvimen-
vivência utilizadas pelos homens diante do to e humanização, mortificando seu corpo
perigo. O avanço da racionalidade permitiu, e arruinando seu espírito. Não há satisfação
de certo modo, o abandono dessa prática, alguma nessa atividade em que o trabalhador
substituindo-a pela práxis racional na civiliza- não se reconhece como sujeito e produtor,
ção. Contudo, apesar do progresso técnico, o mas é obrigado a sujeitar-se ao autossacrifício
germe do mimetismo conservou-se na socie- porque necessita sobreviver. Para resistir à
dade. De modo distinto da magia, a fórmula mortificação imposta, o trabalhador ausenta-
matemática pode ser considerada uma forma -se espiritualmente, torna-se alheio, como se
sublime de mimetismo, cujo fim, como técni- não fosse ele a estar ali, mas outro a executar
ca, é a adaptação ao inanimado a serviço da o trabalho. Sua atividade não mais lhe perten-
autoconservação por meio da automação dos ce, agora é de outro.
processos espirituais. O trabalho estranhado gera um estra-
A máquina, construída à semelhança do nhamento do trabalho, do produto do tra-
que o homem acredita ser ele mesmo, torna- balho, da natureza, da condição do homem
-se o duplo. Ao passo que a máquina reivindica como um ser genérico, do seu corpo, enfim,
autonomia do criador, este parece acomodar- o estranhamento do homem pelo próprio
-se, cada vez mais, à condição de autômato homem. “Quando o homem está frente a si
limitado à capacidade de pensar por tickets. mesmo, defronta-se com ele o outro homem”
No modo de produção capitalista, o (MARX, 2004, p. 86).
trabalhador perde de vista a finalidade de O cinema expressionista retratou um
seu trabalho, que serve tão somente à acu- mundo estranho, reduzido a uma tela de
mulação do capital. O resultado do trabalho projeção de conteúdos que o sujeito não re-
já não mais lhe pertence, tal como ocorrera conhece como seus. Enclausurado em sua
outrora, mas pertence àquele que detém a loucura, o indivíduo perde a capacidade de
propriedade dos meios de produção. Quan- reconhecer o mundo em sua objetividade e
to mais riqueza produz, mais pobre torna-se somente o percebe como um universo povoa-
o trabalhador, reduzido à condição de mer- do por fantasmas que o perseguem e o amea-
cadoria, situado no mesmo nível dos obje- çam. Impedido de contato com o mundo real,

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o indivíduo estranha seus próprios pensamen- nela seu próprio desenvolvimento
tos, que se tornam seu outro. e satisfação. Essa identificação não
Para além da dimensão subjetiva, por é uma ilusão, mas uma realidade.
Contudo, a realidade constitui uma
outro lado, a realidade objetiva impede o
etapa mais progressiva de aliena-
indivíduo de compreender o mundo e reco-
ção. Esta se tornou inteiramente
nhecer-se nele. Mesmo agindo sobre ele por objetiva. O sujeito que é alienado é
meio do trabalho, o indivíduo não vê sentido engolfado por sua existência aliena-
em suas ações reproduzidas mecanicamen- da. Há apenas uma dimensão, que
te, qual máquina, assemelhando-se, cada vez está em toda parte e tem todas as
mais, a criaturas inanimadas, sem vida e sem formas. As conquistas do progresso
autonomia. desafiam tanto a condenação como
a justificação ideológicas; perante o
Na sociedade industrial avançada, “o re-
tribunal dessas conquistas, a “falsa
sultado não é o ajustamento, mas a mimese:
consciência” de sua racionalidade
uma identificação imediata do indivíduo com se torna a verdadeira consciência.
a sua sociedade e, através dela, com a socie- (MARCUSE, 1979, p. 31).
dade em seu todo” (MARCUSE, 1979, p. 31).
O sofrimento inicialmente imposto parece Do estranhamento (Entfremdung)
ter sido introjetado como um ideal a ser per- ao efeito de estranhamento
seguido. O que era negado passa a ser dese- (Verfremdungseffekt)
jado. A redução da existência à máquina não Alguns fatos contribuíram para o desen-
é mais recusada; tanto o espírito como o cor- volvimento do cinema alemão: a necessidade
po, mesmo mantendo-se separados, buscam de elevar a qualidade dos filmes para compe-
assemelhar-se a ela, tomada como ideal. Tor- tir com os filmes estrangeiros, a desvaloriza-
nar o corpo máquina já não é mais necessário ção da moeda alemã, o marco, favorecendo a
para execução do trabalho pesado, pois este exportação dos filmes e a efervescência inte-
foi substituído pela máquina, mas a exigên- lectual manifestada na Alemanha pós-guerra,
cia mantém-se como um ideal, como fim em durante a República de Weimar, período de
si mesmo, preservando sua irracionalidade. surgimento das vanguardas artísticas, com
A cisão corpo/psique não é mais estranhada, destaque para o expressionismo. No cinema,
tampouco provoca sofrimento. O incômodo no entanto, o expressionismo chega quando
da sublimação, por outro lado, que exigia a o movimento já se encontra desgastado na
unidade entre corpo e psique, não é mais exi- literatura e nas artes plásticas, mas tomando
gido em um mundo no qual a satisfação se- novo fôlego com as inovações realizadas no
xual pode ser imediata. Em um mundo pleno teatro (cf. MATTOS, 2002).
e unidimensional, só resta a adesão da cons­ Como meio de expressão híbrido, mes-
ciência feliz. clando influências da literatura, das artes
Nessa perspectiva: plásticas e do teatro, o cinema foi explorado
para fins diversos como entretenimento, pro-
o conceito de alienação parece paganda política e ideológica, crítica social,
tornar-se questionável quando os
negócio e arte, que dificilmente podem ser
indivíduos se identificam com a
separados.
existência que lhes é imposta e têm

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Caligari é um exemplo clássico da reu- pois o cinema era concebido para ser, acima
nião de diferentes fins no mesmo filme. Con- de tudo, uma diversão popular e proletária,
forme alguns estudiosos do cinema alemão para ser visto pelas massas. O conteúdo
(KRACAUER, 1985; EISNER, 1985; ROBINSON, “arte” tinha de ser atraente para a massa e,
2000), os roteiristas Janowitz e Mayer tiveram ao mesmo tempo, atrair o espectador mais
como propósito criar uma história fantástica seletivo.
para fazer crítica ao autoritarismo das institui- Caligari teve sua première mundial em 26
ções, sobretudo à psiquiatria; no entanto, o de fevereiro de 1920, no Marmorhaus de Ber-
roteiro e o final foram modificados por suges- lim, o cinema de maior prestígio da cidade. O
tão do diretor e a narrativa foi transformada filme foi recebido favoravelmente pela crítica
em uma história sobre as fantasias e delírios e permaneceu em cartaz no mesmo cinema
de um paciente psiquiátrico. Kracauer comen- por várias semanas e com lotação esgotada
ta que Erich Pommer, o produtor, aceitou o todos os dias. O filme foi também distribuído
roteiro subversivo, mas tendo em mente que nos Estados Unidos pela Goldwyn, tendo sua
o cinema alemão precisava conquistar merca- première em Nova York em 3 de abril de 1921,
dos, inclusive os estrangeiros. O resultado é no imenso e esplêndido Capitol Cinema, sen-
que se tem, ao final, um filme conformista e do recebido pela imprensa americana com o
não um filme revolucionário, tal como preten- mesmo entusiasmo dos críticos alemães, con-
dido, inicialmente, pelos roteiristas. forme Robinson (2000).
Para Robinson, na década de 1920, o Diante dos fatos, coloca-se em dúvida o
expressionismo já havia deixado de ser uma poder de crítica social do cinema expressio-
vanguarda perigosa e estava na moda. Em nista alemão. Essencialmente, o cinema é um
Dr. Mabuse (1922), de Lang, há um diálogo meio de expressão produzido nos moldes in-
interessante que aborda isso. O conde Told dustriais, que visa atingir o maior número pos-
pergunta ao Dr. Mabuse: “Qual é a sua posi- sível de pessoas. O movimento expressionis-
ção em relação ao expressionismo?”. Mabu- ta, em seu início, foi marcado pela ousadia e
se responde: “O expressionismo é uma mera contestação, mas quando chega ao cinema, o
brincadeira, mas por que não? Hoje tudo é expressionismo já se encontra enfraquecido.
uma brincadeira”. Questiona-se, desse modo, se o mesmo vigor
Caligari estava longe de ser um desafio de crítica manteve-se ou apenas suas formas
estranho e assustador para o público. E mais, artísticas foram absorvidas como meros or-
o filme havia sido feito “consciente e estra- namentos para satisfazer tanto o grande pú-
tegicamente, na linha principal da produção blico quanto aqueles que esperavam ver no
comercial de seu tempo, com o elemento cinema algo mais do que apenas o entreteni-
‘arte’ calculado como uma atração extra e mento das massas.
positiva, ainda que incerta, para a bilheteria” Tal como mostrado, nesse sentido, Ca-
(ROBINSON, 2000, p. 54). Segundo o autor ligari é emblemático; sua história, inicialmen-
citado, o filme chegou justamente no mo- te crítica, foi transformada em algo digerível
mento em que a indústria cinematográfica para a massa, tanto que lhe garantiu sucesso
alemã precisava dele. junto aos públicos alemão e americano. Em
Robinson ainda afirma que nesse perí- que medida Caligari e outros filmes expressio-
odo não havia “cinema de arte” para a elite, nistas podem ser considerados meio de estra-

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nhamento da realidade social, ou foram ape- da da vida ordinária, vai sendo incorporada
nas meio de entretenimento das massas que a esta, perde sua força subversiva, seu con-
buscavam alheamento das questões sociais, teúdo destrutivo e sua verdade. A socieda-
encontrando nesse tipo de filme, portanto, de industrial absorve a dimensão artística
apenas um universo de fantasia e alienação? e assimila seu conteúdo antagônico, recon-
Na sociedade industrial desenvolvida, o cilia e harmoniza-se com aquilo que se lhe
entretenimento torna-se prolongamento do opõe, fortalecendo a unidimensionalidade
trabalho alienado; se na produção o trabalha- da existência. A literatura e a arte, conforme
dor empresta seu corpo para ser extensão da Marcuse, “eram essencialmente alienação,
máquina, no ócio a mente recusa-se a lembrar conservando e protegendo a contradição
o sofrimento que deve ser esquecido. Assim, – a consciência infeliz do mundo dividido,
o cinema torna-se um meio de entretenimen- as possibilidades derrotadas, as esperanças
to em que o trabalhador não é obrigado a não-concretizadas e as promessas traídas”
pensar, mas apenas divertir-se, alienando-se, (MARCUSE, 1979, p. 73). A dimensão ficcio-
ainda mais, da realidade opressora. nal da arte e da literatura revelava o quanto a
Para Marcuse (1979), o alto desenvolvi- vida cotidiana era falsa e mutilada, servindo
mento tecnológico promoveu, não somente como contraponto, de negação, da ordem
o aumento do controle social, a redução das estabelecida.
estratégias de enfrentamento e a integração Mesmo diante do poder integrador da
política, mas também repercutiu no âmbito sociedade tecnológica, Marcuse ressalta a
cultural, liquidando os elementos de oposi- luta contra a absorção pela realidade unidi-
ção e transcendentes da “cultura superior” mensional, apontando os esforços da avant-
– esta, sempre considerada em contradição -garde para criar um alheamento, citando a
com a realidade social. A incorporação da cul- proposta de teatro de Brecht. Para o drama-
tura à ordem social vai ocorrendo na medida turgo, o teatro deve romper a identificação
em que seus elementos são transformados do espectador com os acontecimentos do
em mercadorias, reduzidos ao valor de troca palco e promover o efeito de alheamento –
e tornados equivalentes aos demais produtos “Verfremdungseffekt” –, produzindo a disso-
materiais de consumo, perdendo seu valor ciação para que o mundo possa ser reconhe-
de verdade. A cultura tradicional, ainda que cido tal como ele é. Rompe-se, desse modo,
servisse somente a uma minoria privilegiada, com aquilo que está naturalizado no cotidia-
expressava uma alienação livre e consciente no, transcendendo-o. Para Marcuse, o teatro
da vida ordinária, dos negócios, enfim, do âm- de Brecht preserva a promesse de bonheur
bito da necessidade e da luta cotidiana pela transformando-a em fermento político.
sobrevivência. Embora reconhecendo o potencial po-
A “alienação artística” diferencia-se, lítico e revolucionário do teatro de Brecht,
desse modo, do conceito marxista, pois é Marcuse (1970) esclarece que, não é só por-
entendida, segundo Marcuse, como trans- que uma obra é destinada à classe trabalha-
cendência consciente da existência alienada, dora que deve ser considerada revolucioná-
mostrando-se, assim, incompatível com o ria, mas sobretudo apresenta uma mudança
mundo do progresso. Contudo, na medida radical no estilo e na técnica que subverta as
em que a “cultura superior”, antes separa- formas dominantes da percepção, tal como

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ocorreu com o expressionismo e o surrea- era associado à deformidade física, à doença
lismo, apontando a ausência de liberdade e mental, à monstruosidade características das
rompendo com a realidade mistificada. raças inferiores, responsáveis pela degenera-
Retomemos as perguntas anteriormen- ção biológica e cultural da humanidade.
te feitas: Em que medida o cinema expres- Em 1937, os nazistas promoveram duas
sionista pode ser considerado, tal como os exposições: uma que representava a “grande
demais filmes comerciais, apenas um meio arte alemã” e celebrava o novo homem aria-
de divertimento? Em que medida conserva al- no; a outra, a “arte degenerada”, compos-
gum traço de denúncia, de crítica e de recusa ta por obras de vários artistas identificados
à ordem social? como judeus, considerados esquizofrênicos,
Como citado anteriormente, Marcuse loucos e depravados.
considera que “o expressionismo e o surrea- Segundo Ernest Bloch, citado por Nazá-
lismo anteciparam a destrutividade do capi- rio (2002b, p.668), a exposição “Arte Degene-
talismo monopolista e emergência de novas rada” foi um “campo de concentração aberto
metas para uma mudança radical” (MAR- ao público”, o início de uma “operação de sa-
CUSE, 1979, p. 10). Kracauer (1985), que não neamento” e de um pogrom. A partir de 1938,
desconsidera o intuito comercial do cinema, o regime nazista desencadeou uma série de
demonstra que esse meio de expressão, até decretos e ações que conduziram à “solução
mesmo por ser destinado às massas, revela radical da questão judaica”, ou seja, medidas
tendências psicológicas e aspectos do ima- que foram restringindo gradativamente os di-
ginário coletivo. Assim, ainda que explorado reitos dos judeus, culminando com a segrega-
como meio de entretenimento e negócio, o ção e o extermínio. Se o nazismo representou
cinema expressionista alemão revelou ten- a ordem que levou à catástrofe, o expressio-
dências ocultas da realidade social, que culmi- nismo representou o “alarme de incêndio”,
naram com a ascensão do nazismo. parafraseando Benjamin.
Se há dúvidas sobre o potencial crítico
das obras expressionistas, um bom indício é À guisa de conclusão
a reação dos nazistas ante os artistas expres- Este artigo teve como intuito apre-
sionistas e suas obras. Mesmo após anos de sentar questões suscitadas pela análise de
sua decadência e desaparecimento como mo- alguns filmes expressionistas alemães do
vimento artístico, o expressionismo foi con- início do século XX; questões relacionadas à
siderado pelos nazistas um dos exemplos da dimensão subjetiva do indivíduo, questões
“arte degenerada” (Entartete Kunst). que relacionam essa dimensão com a reali-
Segundo Nazário (2002), o expressionis- dade social e, por fim, o papel da cultura, da
mo foi o contraponto do ideal estético do na- arte e do cinema como meios de estranha-
zismo, que se apoiou no resgate dos valores mento da realidade alienante.
clássicos e no darwinismo social para defen- O expressionismo e seus representantes
der uma ideologia racista. De um lado, o na- tinham como intuito a revelação e a representa-
zismo pregava a pureza do sangue e da raça, ção do mundo interno, obscurecido, enigmáti-
a exaltação da beleza do corpo são e forte, co e estranho à realidade iluminada pela razão.
a retidão, perfeição, organização, simetria, Isso não teria sido possível sem a exploração
dureza e rigidez; de outro, o expressionismo dos recursos técnicos e estéticos responsáveis

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pela criação da atmosfera fantástica. Nesse menos autônoma e mais invadida pela racio-
sentido, a iluminação e seus efeitos de luz e nalidade tecnológica.
sombra, por exemplo, não foram apenas ele- O alto desenvolvimento tecnológico
mentos formais para adornar os cenários, mas potencializa a intensidade das luzes com o
parte fundamental do tema central do expres- intuito de tornar cada vez mais clara a cer-
sionismo; a luta entre a luz e a sombra como a teza da realidade unidimensional, ofuscando
alegoria do conflito entre a razão e o mito. qualquer centelha de esperança de outro por-
O homem representado nos filmes ex- vir diferente desse que se impõe totalitaria-
pressionistas não é livre e autodeterminado, mente. Todavia, o aumento da luminosidade
mas amedrontado, aprisionado e perseguido não elimina as sombras e tampouco permite
por suas visões fantasmagóricas. Esse ho- vislumbrar um mundo menos ameaçador; em
mem denuncia, por sua vez, a falha trágica do nome do progresso, o medo da natureza não
dominada continua reprimido, mas agora es-
pretensioso projeto das luzes de iluminar o
condido sob uma sombra mais escura.
mundo e libertar o homem do medo, confor-
Caligari foi o prenúncio da vitória da psi-
me Horkheimer e Adorno.
quiatria sobre a loucura, da ordem autoritária
Na sociedade administrada, o desenvol-
sobre a desordem revolucionária. O potencial
vimento tecnológico amplia o potencial de
de desordem da loucura foi reduzido com sua
dominação e controle social dos indivíduos,
medicalização. No mundo da consciência feliz
restringindo, cada vez mais, o espaço de liber- dos lotófagos, os hospitais psiquiátricos pu-
dade e contestação. Nesse contexto, median- deram retirar suas trancas, abrir seus portões
te as ameaças reais de aniquilação dos indiví- e até derrubar seus muros, porque a loucura
duos impostas pela realidade cada vez mais curvou-se perante a autoridade da psiquiatria,
claustrofóbica, o sentimento persecutório representante da ordem. Caligari habita o in-
deixa de ser apenas subjetivo. terior da alma dos insanos, que agora vivem
A distinção entre a alienação mental in- como autômatos obedientes na sociedade ra-
dividual e a alienação coletiva torna-se tarefa cionalmente administrada. Mas, se Kracauer
difícil, na medida em que ambas são condi- estiver certo, e os filmes expressarem, de
cionadas pela realidade objetiva e material, fato, as tendências psicológicas das massas, a
mediadas pela dimensão cultural, cada vez revolta dos autômatos é eminente.

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Vollmöller, Robert Liebmann. Alemanha: Universum Film-UFA, 1930. DVD (94 min), pb. Produzi-
do por Amazon Digital e Continental Home Vídeo. Baseado no romance “Professor Unrat” de
Heinrich Mann.

Dr. Mabuse, o jogador (Dr. Mabuse, der Spieler). Direção: Fritz Lang. Produção: Erich Pom-
mer. Intérpretes: Rudolf Klein-Rogge, Aud Egede-Nissen, Gertrude Welcker, Alfred Abel e ou-
tros. Roteiro: Fritz Lang e Thea von Harbou. Alemanha: Uco-Film GmbH, 1922. DVD (120 min),
pb. Produzido por Amazon Digital e Magnus Opus. Baseado na novela “Dr. Mabuse, o jogador”
de Norbert Jacques.

O estudante de Praga (Der Student Von Prag). Direção: Paul Wegener e Stellan Rye. Pro-
dução: Paul Wegener. Intérpretes: Paul Wegener, John Gottowt, Grete Berger e outros. Ro-
teiro: Hanns Heinz Ewers. Alemanha: Deutsche Bioscop GmbH, 1913. DVD (85 min), pb. Produzi-
do por Alpha Vídeo. Baseado no conto “William Wilson” de Edgar Alan Poe.

Fantasma (Phantom). Direção: Friedrich Wilhelm Murnau. Produção: Erich Pommer. Intér-
pretes: Alfred Abel, Lya de Putti, Aud Egede-Nissen e outros. Roteiro: Thea von Harbou. Alema-
nha: Uco-Film GmbH / Bioscop-Atelier, 1922. DVD (91 min), pb. Produzido por Continental Home
Vídeo. Baseado na novela “Phantom” de Gerhart Hauptmann.

Fausto (Faust – Eine Deutsche Volkssage). Direção: Friedrich Wilhelm Murnau. Produção:
Erich Pommer. Intérpretes: Gösta Ekman, Emil Jannings, Camila Horn e outros. Roteiro: Gerhart
Hauptmann e Hans Kyser. Alemanha: Universum Film-UFA, 1926. DVD (116 min), pb. Produzido
por Continental Home Video. Baseado na peça “Fausto“ de Johann W. Goethe.

O gabinete do Dr. Caligari (Das Cabinet des Dr. Caligari). Direção: Robert Wiene. Produção:
Erich Pommer e Rudolpf Meinert. Intérpretes: Werner Krauss, Conrad Veidt, Lil Dagover, Fried-
rich Freher, Hans-Heinz von Twardowski e outros. Roteiro: Karl Mayer e Hans Janowitz. Ale-
manha: Decla-Film Gesellschaft. 1920. DVD (52 min), pb. Produzido por Continental Home Video.

Gabinete das figuras de cera (Das Wachsfigurenkabinett). Direção: Paul Leni e Leo Birinsky.
Produção: Leo Birinsky e Alexander Kwartiroff. Intérpretes: William Dieterle, Emil Jannings,
Conrad Veidt, Werner Krauss e outros. Roteiro: Henrik Galeen. Alemanha: Neptune-Film A.G./
UFA, 1924. DVD (65 min), pb. Produzido por Magnus Opus.

O Golem (Der Golem). Direção: Carl Boese e Paul Wegener. Produção: Paul Davidson. Intér-
pretes: Paul Wegener, Albert Steinrück, Lyda Salmonova e outros. Roteiro: Henrik Galeen e
Paul Wegener. Alemanha: Projektions-AG Union – PAGU, 1920. DVD (68 min), pb. Produzido por
Amazon Digital.

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Homunculus. Direção: Otto Rippert. Produção: Hanns Lippmann. Intérpretes: Olaf Fonss,
Ernst Ludwig, Adolf Paul e outros. Roteiro: Robert Reinert. Alemanha: Deutsche Bioscop GmbH,
1916. (69 min).

Metrópolis (Metropolis). Direção: Fritz Lang. Produção: Erich Pommer. Intérpretes: Alfred
Abel, Gustav Fröhlich, Rudolf Klein-Rogge, Brigitte Helm e outros. Roteiro: Thea von Harbou.
Alemanha: Universum Film-UFA, 1927. DVD (139 min), pb. Produzido por Continental Home Ví-
deo.

Nosferatu (Nosferatu Eine Symphonie des Grauens). Direção: Friedrich Wilhelm Murnau.
Produção: Enrico Dieckmann e Albin Grau. Intérpretes: Max Schreck, Gustav von Wangenheim,
Greta Schröder e outros. Roteiro: Henrik Galeen. Alemanha: Jofa-Atelier e Prana-Film GmbH,
1922. DVD (94 min), pb. Produzido por Continental Home Video. Baseado na novela “Dracula“
de Bram Stoker.

O Outro (Der Andere). Direção: Max Mack. Produção: Jules Greenbaum. Intérpretes: Albert
Bassermann, Emmerich Hanus, Nelly Ridon e outros. Roteiro: Max Mack e Paul Lindau. Alema-
nha: Vitascope GmbH, 1913. (49 min) Baseado na novela “Dr Jeckyll and Mr Hyde” de Robert
Louis Stevenson.

A última gargalhada (Der letzte Mann). Direção: Friedrich Wilhelm Murnau. Produção: Erich
Pommer. Intérpretes: Emil Jannings, Maly Delschaft, Max Hiller e outros. Roteiro: Carl Mayer.
Alemanha: Universum Film-UFA, 1924. DVD (90 min), pb. Produzido por Continental Home Ví-
deo.

Dados do Autor:

Lineu Norio Kohatsu

Mestre e Doutor em Psicologia Escolar e do

Desenvolvimento Humano. Instituto de Psicologia – USP.

Recebido: 24/03/2013

Aprovado: 03/06/2013

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