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A ESPACIALIDADE COMO DIMENSÃO DO HORROR

Marcio Markendorf

Além de constituir um dos componentes elementares de estruturação narrativa, o


estudo da espacialidade no gênero de horror afigura-se um objeto teórico incontornável
porque participa de um conjunto de representações coletivas acerca do imaginário do
medo. A experiência emocional do horror encontra sua forma prototípica nas ficções do
século XVIII, sobretudo em narrativas marcadas por um romantismo gótico, estilo artístico
responsável pela tradição do relato noturno em histórias que estimulam o medo. A
delimitação não sugere que outras formas narrativas fossem destituídas de elementos
espaciais em seus enredos – os pequenos casebres isolados na floresta ou castelos mágicos
longe da aldeia, como nos contos de fadas e nas fábulas são prova disso – mas preocupa-se
em sinalizar o momento em que o gênero de horror estabelece o sentimento de medo com
base no relato noturno associado a uma percepção mais acentuada do espaço da ação
narrativa. Por isso, ainda que este ensaio não consista em uma elaborada e sistemática
arqueologia de ideias da dimensão espacial no horror, ao menos procura demonstrar como
tal imaginário solidificou-se ao longo do tempo e prolonga-se de modo proteico até a
contemporaneidade, perfazendo variações que estabelecem relações diretas com o contexto
histórico e o gênero narrativo no qual circulam.
Cabe sublinhar, pois, a seguinte tese: a questão espacial está tão expressivamente
presente na imaginação do horror que talvez seja impossível afirmar a experiência
emocional do horror sem a tradição do relato noturno e da espacialidade. Mesmo após
séculos de urbanização – e da transferência das bases de dominação da nobreza e da Igreja
para a burguesia –, o papel do espaço como catalisador dos afetos do horror é
continuamente reafirmado pelas escolhas de cenário e locações, condição que dialoga com
um imaginário formatado pelas narrativas e perpetuado na cultura de massas. Pode-se
arriscar dizer que, ao menos em termos ocidentais, o relato noturno e o espaço são
condições básicas para existência do horror, pois remetem à atmosfera de medo e ao
campo de movimentação do objeto fóbico, o monstro.
Por um lado, parece limitante a adesão ao postulado de que a natureza do horror
seja definida exclusivamente pela presença de monstros em cena, tal como defende o
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filósofo Noël Carrol (1999), pois o sentimento de medo e de perplexidade instaurado pelo
horror independe de uma criatura intersticial, capaz de simbolicamente expressar sensações
de perigo e de impureza. No terror urbano, por exemplo, a simples ideia de um assassino
serial disposto a fazer novas vítimas pode ser muito amedrontadora. Por outro lado,
analisar a correlação entre monstro e espacialidade permite uma postura mais complexa
acerca das funções de ocultação, encarceramento e deriva labiríntica nas ambiências do
horror.
Dentre as funções pragmáticas inerentes a muros e outras edificações pode-se citar
a proteção objetiva contra as agressões externas, tal funcionalidade de abrigo contra
objetos fóbicos estimula o subjetivo sentimento de segurança. Entretanto, na contramão
desse fundamento objetivo-subjetivo, o espaço arquitetônico no horror gótico não
proporciona refúgio, pois sua configuração espacial retém as vítimas na esfera do perigo e
sob o poder aprisionador do monstro, além de libertar forças infernais e reprimidas de
lugares ocultos. A edificação em vez de limitar o acesso de agentes agressores, torna a
movimentação monstruosa acessível não apenas do exterior para o interior, mas também
do interior para o exterior.
O espaço arquitetônico, sob tal perspectiva, cumpre a função pragmática de
circunscrição da esfera de influência do monstro, de modo que a área e o perímetro do
cenário definem o território de dominação da criatura. Com base nesse contexto, cabe
observar que o princípio de ação do monstro assenta-se em um caráter tirânico e egótico –
tudo deve sujeitar-se às suas vontades e os seres lhe pertencem como objetos. O vínculo do
monstro a uma propriedade e a determinação de seu pertencimento a um território limitado,
portanto, são os fatores que impedem a atomização de sua força opressora e desejante. Essa
é claramente a funcionalidade da unidade de lugar. Se na novela de detetive a unidade de
espaço é fundamental para a limitação do número de culpados, o mesmo procedimento
técnico no horror colabora para a limitação e a singularização das vítimas. Mrs. Voorhees e
Jason Voorhees estão para Camp Crystal Lake do mesmo modo que Freddy Krueger está
para a Elm Street, Michael Myers para a vizinhança de Haddonfield.
Ao evocar os monstros do audiovisual, mais um termo de delimitação do locus
horrendus deve ser definido para a circunscrição do espectro de análise. A reflexão sobre a
espacialidade da narrativa, marcada pela atmosfera inquietante do relato noturno e pela
potência destrutiva de um monstro, pretende compreender a ressignificação do espaço
gótico no cinema de horror. Não poderia ser de outro modo uma vez que, constituindo uma
vertente romântica da ficção, a literatura gótica produziu um forte impacto na fantasia de
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ambiência do horror moderno, especialmente quanto às tensões provocadas pelas


manifestações monstruosas: há desorientação por parte dos personagens quando anomalias
são percebidas nos espaços superiores e, momentos depois, sem razão aparente, repercutem
nos espaços inferiores; lugares ocultos formam portais para outras dimensões, constituem
“relicários negros” para adoração ou aprisionamento de entidades, ocultam toda sorte de
documentos (fotografias, diários, fitas de áudio e vídeo etc.) que relatam a história
pregressa do espaço e o destino dos antigos moradores; por mais que a casa seja ampla e
permita diversos esconderijos possíveis – abrigos contra o mal – cria-se a impressão de que
a presença monstruosa é ubíqua, de modo que se institui um perverso e falso jogo de hide-
and-seek com os personagens.
Dentre a “parafernália dramática” do gótico, como destaca o escritor H. P.
Lovecraft (2007, p. 28), era elemento integrante “o castelo [...] com sua antiguidade
espantosa, vastas distâncias e ramificações, alas desertas e arruinadas, corredores úmidos,
catacumbas ocultas insalubres e uma galáxia de fantasmas e lendas apavorantes como
núcleo de suspense e pavor demoníaco”, além, claro, da série infinita de outros “acessórios
de palco” tais como “luzes estranhas, alçapões úmidos, lâmpadas apagadas, embolorados
manuscritos ocultos, dobradiças rangentes, cortinados se mexendo”. Tal medievalismo
presente na estética romântica, portanto, fixou a iconografia clássica do locus horrendus:
castelos sinistros, abadias decadentes, igrejas e monastérios arruinados, bem como outras
edificações de funcionalidade religiosa ou militar.
O que parece estar em destaque no modelo de ambientação e cenário descrito por
Lovecraft é uma espacialidade extensiva, de modo que parece seguro afirmar que o horror
necessita de espaço para se espraiar e, assim, produzir uma atmosfera característica. No
cerne estrutural do horror, não é a ação o objeto de desejo da ficção, o desideratum do
gênero narrativo, mas a questão atmosférica (LOVECRAFT, 2011a, p. 157) – de modo que
a experiência do medo não tem existência sem este componente. Contudo, o que pode
produzir a atmosfera adequada? A resposta estaria, a princípio, imediatamente centrada no
relato noturno, pois o escuro é fonte de impressões fóbicas. Entretanto, o espaço também
deveria ser considerado na construção do espectro climático da história, pois o “conjunto
de fenômenos” (LOVECRAFT, 2011b, p. 89) que propicia a abordagem do monstro como
eixo narrativo só pode manifestar-se em uma cartografia de amplitude considerável. Um
apartamento de pequenas dimensões prescinde da atmosfera adequada do horror visto que
o deslocamento, o aprisionamento e o ocultamento seriam inexpressivos – e embora a
claustrofobia possa ser um componente presente no gótico, o horror necessita do monstro
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persecutório e onipresente. Por essa lógica, pode-se depreender que a espacialidade


constitui, ao lado do monstro e do relato noturno, a causalidade para a produção do efeito
atmosférico, podendo o monstro não ser efetivamente material.
A construção ampla, com espaços ascendentes e descendentes, conectados por
escadarias e corredores, prevalece no design dos cenários do horror cinematográfico. A
grande diferença é que, acompanhando o progresso urbano, a grandeza do castelo medieval
adquire outras variantes formais. Assim como a ficção científica, o horror precisa
continuamente revalidar os contratos de verossimilhança com o leitor/espectador a fim de
assegurar a experiência do medo, razão para que os dispositivos acompanhem as
tecnologias do contexto de circulação. No caso específico das moradas familiares – quase
sempre um sobrado ou casarão – o projeto da casa frequentemente incorpora aspectos
dimensionais cujas características fazem ressonância às edificações medievais, ainda que
sob uma perspectiva mais moderna e compacta. Outras variantes formais que merecem
destaque são o presídio, o hospital psiquiátrico, a fábrica, o asilo, o orfanato, o hotel, a
cidade abandonada. Quanto aos novos “acessórios de palco”, os quadros fantasmagóricos
são substituídos por espelhos refletores de entidades sobrenaturais, os manuscritos ocultos
têm como variante as gravações de vídeo, as ruidosas correntes tornam-se brinquedos
infantis assustadores, os calabouços ressurgem na versão doméstica do sótão ou do porão
abarrotado, poeirento e escuro.
Porque as opções de cenários não estão rigidamente associadas a determinados
momentos históricos, podendo subsistir e reaparecer em diversos outros períodos, não é
pretensão neste trabalho estabelecer um quadro cronológico do desenvolvimento da
espacialidade gótica no cinema. Constituirá um campo mais fértil de discussão arrolar os
principais modelos de espacialidade recorrentes – especialmente no que diz respeito às
edificações – para a compreensão do papel do espaço na dimensão do horror: a acastelada
construção isolada, o edifício coletivo, a moradia marcada por dissonantes eventos
pregressos e a cabana em meio à floresta.
Desde as primeiras obras cinematográficas de horror, em sua maioria adaptações de
obras clássicas da literatura de horror e a exploração de figuras icônicas do medo, os
cenários adotavam uma franca perspectiva gótica – a localidade estava situada em uma
topografia abissal (desfiladeiros, montanhas, penhascos, ilhas remotas), alhures, separada
e/ou incomunicável com o entorno. Não seria difícil notar nesse modelo a reverberação das
propriedades rurais acasteladas do medievo, residências fortificadas destinadas à proteção
dos senhores, nobres e servos de um feudo, diametralmente opostas aos bolsões de
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povoamento presentes nas aldeias e aglomerados citadinos. Com dupla funcionalidade,


habitacional e guerreira, o castelo medieval frequentemente ocupava um terreno
estrategicamente elevado, contava com dispositivos diversos de proteção (fosso, ponte
levadiça, torres de vigilância, altas muralhas, calabouços, passagens secretas para situações
de fuga) e um grande número de cômodos. Vale, ainda, destacar que a referida propriedade
rural era constituída por um conjunto de partes contíguas ao castelo, tais como a igreja, a
aldeia, os campos de cultivo e pastagem e as florestas.
Inspirado nesse ícone da edificação feudal, e fazendo jus ao medievalismo
cultivado pela estética romântica, O Castelo de Otranto, de Horace Walpole, foi
concebido. Publicado em 1764, a crítica, mais tarde, atribuiu à obra o título de precursora
da literatura gótica, sobretudo porque influenciou enormemente a literatura posterior,
notadamente no que diz respeito à descrição minuciosa do espaço arquitetônico, anoso e
decadente, sobre o qual a história se assenta. Aliás, o caráter ancestral e o estado arruinado
das edificações será uma marca bastante reconhecível das narrativas de traços góticos.
Das primeiras manifestações do horror no cinema pode-se destacar a adaptação de
um clássico da cientificção gótica, Frankenstein (Frankenstein, James Whale, 1931). Nesse
filme, o cenário de experimentos ocultos do médico-título é uma torre irregular, de aspecto
decadente, situada no alto de uma montanha, usada como laboratório; o espaço onde o
monstro é cercado e morto pelos enfurecidos populares é um moinho avelhentado e
decaído. As características apresentadas permitem estabelecer correlação com a
espacialidade gótica quanto à correlação entre propriedade e tirania. Contudo, não se trata
do poder ilimitado e despótico de um soberano sobre sua propriedade (o que poderia fazer
dele, por extensão de sentido, um monstro), mas de um tipo de exercício tirânico do saber
científico – aquele que rompe determinados limites aceitáveis. Na fábula de Whale, Dr.
Henry Frankenstein, obcecado pela ideia da criação da vida, consegue animar uma criatura
formada por parte de diferentes cadáveres humanos e, na fronteira entre o excesso e a
exceção, produz uma anomalia científica – um monstro. Ambos os personagens, o médico-
monstro e a criatura-monstro estão associados a uma propriedade de design gótico, seja
para a concepção (a torre-laboratório) seja para a aniquilação (o moinho-crematório).
Em outra seara do horror, responsável por trazer ao cinema as criaturas living dead,
Zumbi – a legião dos mortos (White Zombie, Victor Halperin, 1932) explora as ansiedades
políticas sobre a escravidão – o que toma o zumbi como uma metáfora da alienação da
força de trabalho por um cruel senhor de terras – ao mesmo tempo em que se vale da
exótica religiosidade caribenha para apresentar sua fábula. Dois cenários chamam a
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atenção na narrativa: o tétrico moinho de açúcar movimentado por força de trabalho zumbi
e o covil do feiticeiro vodu Murder Legendre. Este segundo, por estar situado à beira de
um precipício, mantém correlação direta com a dimensão do infinito e o sublime colossal
do romantismo gótico; o interior da morada remete às características verticais, aos vitrais,
aos arcos ogivais do estilo gótico. Ademais, Legendre é representado como uma espécie de
soberano déspota por comandar uma horda de zumbis e exercer terror nas cercanias de sua
propriedade, transformando todos seus desafetos em mortos-vivos.
Já a narrativa audiovisual O gato preto (The black cat, Edgar G. Ulmer, 1934),
creditada como história livremente inspirada no conto homônimo de Edgar Allan Poe, tem
o mérito de enunciar o evento que se tornará lugar-comum no cinema de horror: em uma
noite escura e tempestuosa, os ocupantes de um veículo quebrado só conseguem abrigo na
singular residência das cercanias da estrada desolada. O edifício em questão é uma
moderna mansão húngara, propriedade do satanista Hjalmar Poelzig, localizada no topo de
um morro, contraditoriamente não oferecendo pavimentação condizente de acesso e
apresentando, à entrada, um cemitério de toscas cruzes de madeira. Complementando as
informações tétricas, sabe-se que a mansão fora construída no mesmo lugar onde havia as
ruínas do forte Marmorus, um sangrento cenário de guerra nos Cárpatos que, segundo a
fábula, tornou-se notório por ser “o maior cemitério do mundo". A casa construída sobre
um antigo cemitério, aliás, se tornará outro dos lugares-comuns do cinema de horror.
O que os três exemplos citados possuem em comum são projetos arquitetônicos
cujas características estruturais têm ressonância das edificações góticas, não apenas em
vista do design das construções, mas também em razão da topografia do terreno em que
estas se encontram. Embora a questão do espaço interior como elemento desorientador seja
incipiente ou nula, a localidade espacial – situada alhures e distante de outras ocupações –
e o caráter tirânico/monstruoso dos seus proprietários são os traços mais enfatizados pela
narrativa cinematográfica. Cabe observar que, com o desenvolvimento das sociedades e do
próprio cinema, há o deslocamento do medo para espaços cada vez mais urbanizados e
cujos contratos de verossimilhança com o público sugerem relações mais acentuadas com o
presente do que com o passado – estratégia minimamente explorada no filme de Edgar G.
Ulmer. Ao longo do tempo, com as mutações na dimensão espacial do horror, o objeto
fóbico do horror – o monstro – passará a ser situado em uma localidade mais realista ao
redesenhar a prototípica cartografia castelo-aldeia do imaginário gótico. Curioso, nesse
sentido, é perceber em um drama como Cidadão Kane (Citizen Kane, Orson Welles,
1941), a aplicação nos primeiros minutos do filme de uma atmosfera soturna no entorno de
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uma mansão acastelada, enorme, esplendorosa e inacabada – batizada sintomaticamente de


Xanadu – para enfatizar a derrocada do controverso milionário Charles Foster Kane, o
Kubla Khan da América, “repórter-tirano” dos meios de comunicação.
Seguindo as necessidades próprias da fusão de ficção científica e horror, o modelo
espacial do horror gótico também é passível de ser encontrado em versões high-tech.
Exemplo disso é o cargueiro estelar Nostromo em Alien – o oitavo passageiro (Alien,
Ridley Scott, 1979). O design da espaçonave comprova que as semelhanças estruturais
com um castelo medieval são flagrantes, especialmente pelas quatro torres alusivas às
catedrais góticas. Para além dessas características exteriores, os espaços internos são
longilíneos, repletos de corredores interconectados, passagens, dutos de ventilação
apertados e escuros, diferentes níveis de piso, área de manutenção de equipamentos com
luzes espectrais. Esses elementos são produtores da atmosfera de suspense e de
perseguição claustrofóbica, sobretudo porque o cargueiro-acastelado está algures no espaço
sideral. O reforço do referido locus horrendus abissal consta no próprio material gráfico de
divulgação do filme – “In space no one can hear you scream” (no espaço ninguém pode
ouvir você gritar) – frase-premissa de horror que remete tanto ao caráter isolado da
espaçonave quanto ao fato científico de que o som não se propaga no espaço sideral.
Exemplos como esse demonstram que, ainda que o horror sofra uma reconfiguração
espacial para adaptar-se a contextos mais capitalistas, modernos, urbanos e de classe
média, não há a perda da importância da espacialidade na construção da atmosfera e como
recurso de movimentação do objeto fóbico. Antes disso, a persistência da dimensão
espacial diz respeito à ontologia do gênero e demonstra o caráter essencial e atemporal do
tratamento da espacialidade no horror. A referida transfiguração do cenário, motivada pela
impossibilidade de manutenção das dimensões e do design de um castelo medieval no
cenário citadino do século XX e XXI, na maioria das vezes implicará em uma redução na
área das edificações. Não significa que revisitações paródicas e intertextuais – com
referências claras ao famoso romance de Mary Shelley – não possam acontecer nessa seara
tal como o castelo de traços góticos de Edward Mãos de Tesoura (Edward Scissorhands,
Tim Burton, 1990), situado ao lado de um colorido subúrbio de classe média norte-
americano, ou o bizarro castelo do travesti transexual alienígena Frank’N’Further de Rocky
Horror Show (The Rocky Horror Picture Show, Jim Sharman, 1975), localizado no interior
dos Estados Unidos. Retomadas do típico cenário de horror gótico igualmente são
possíveis podendo ser citado o exemplar Drácula de Bram Stoker (Bram Stoker’s Dracula,
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Francis Ford Coppola, 1992) cujo castelo ergue-se a beira de um precipício e a propriedade
e seu senhor são dominantes em relação ao vilarejo próximo.
De todo modo, ainda que o cenário tipicamente gótico não persista no ciclo de
desenvolvimento do horror, muito em função dos novos contratos de verossimilhança
estabelecidos com o espectador, cabe destacar que a espacialidade continua a exercer
função central na construção do gênero. E, como será demonstrado, há uma apropriação
metonímica – e até metafórica – da espacialidade gótica nos cenários do horror moderno e
contemporâneo.
Tome-se como exemplo os dois principais cenários de Psicose (Psycho, Alfred
Hitchcock 1960), cujos espaços contemplam o drama dos corredores, perfazendo um jogo
de comunicação horizontal entre os personagens, e o drama das escadarias e pavimentos,
por meio do qual se fundamenta o suspense nas relações verticais entre um motor hotel
decadente e a velha casa pertencente a Norman Bates. Em uma visão panorâmica do
ambiente pode-se perceber que a localização topográfica do dominante sobrado atrás do
Bates Motel guarda semelhanças com o perfil do terreno no qual se assenta o castelo
gótico. Cabe ressaltar, ainda, outras aproximações com o tom gótico, em razão das
mulheres em perigo, da libertação de forças criminosas motivadas pelo desejo sexual e a
repressão, do travestimento e da disposição esquizofrênica da personalidade. No que diz
respeito às edificações para fins de hospedagem, merece destaque o ficcional Overlook, o
hotel-personagem de O iluminado (The shining, Stanley Kubrick, 1980), adaptação
cinematográfica da obra homônima de Stephen King, porque lá se encontram longos,
labirínticos e claustrofóbicos corredores, dezenas de cômodos, expressões de excesso e de
exceção – a do elevador de sangue e a aparição das gêmeas assassinadas, por exemplo –,
além de áreas de lazer amplificadoras da sensação de aprisionamento e desorientação, a
exemplo do labirinto de arbusto, The Overlook Maze. O estabelecimento hoteleiro, de
acordo com a fábula, estaria situado nos altos das montanhas rochosas do Colorado, e para
os cenários externos Kubrick usou uma locação real, a fachada do Timberline Lodge.
No âmbito das habitações coletivas, multifamiliares ou escolares encontram-se as
obras que versam sobre abandonados – e alegadamente mal-assombrados – hospitais
psiquiátricos, presídios, hospitais, orfanatos, conventos, abadias, prédios de apartamentos,
internatos ou externatos. Nos referidos espaços, a narrativa privilegia uma forma coral da
expressividade do mal, pois há uma multivocalidade de fantasmas e, consequentemente,
uma plurimanifestação de fenômenos anômalos, dissonâncias provocadas por algo que
poderia ser chamado de violenta memória traumática das paredes. Por meio desse
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conceito, os limites de uma propriedade poderiam ser definidos ao modo de uma zona
obscura do subconsciente fantasmagórico: as mortes violentas ou os traumas sofridos pelos
antigos moradores permanecem repetindo-se e projetam-se sobre novos moradores ou
simples visitantes como uma descarga emocional vingativa e, por isso mesmo,
potencialmente destruidora.
O orfanato (El orfanato, J.A. Bayona, 2007), por exemplo, com roteiro original de
Sergio G. Sánchez, aposta em uma história articulada entre o passado de uma propriedade,
um orfanato, e o presente de uma ex-residente que retornou ao lugar para reabrir o edifício
e exercer no edifício uma função social semelhante. Contudo, na edificação como um todo
há uma dimensão cíclica de remorso, de inquietação, de perseguição perversa da inocência
indefesa, de punição mortal – algo representado por seis fantasmas de crianças. Por essas
razões, além da importância do espaço descendente de um porão, lugar onde viveu um
interno, isolado dos demais por ter má formação congênita, há um fulcral espaço contíguo:
uma caverna na praia próxima ao antigo orfanato, onde o mesmo garoto, atraído para uma
brincadeira irresponsável, encontrará a morte.
Na leva dos hospitais psiquiátricos cujas paredes reverberam os traumas dos
pacientes vitimados por tratamentos desumanos está Fenômenos paranormais (Grave
encounters, Vicious Brothers, 2011). A fábula do audiovisual segue uma equipe de TV
responsável por um programa de ghost hunting reality show na tentativa de registrar
alguma atividade paranormal em um espaço considerado assombrado, o Hospital
Psiquiátrico Collingwood, dimensionado como uma construção de 06 prédios em 80 acres
de terreno. Construída no estilo mockumentary, portanto um found footage, versão
contemporânea do procedimento narrativo do tipo ‘manuscrito encontrado’ das histórias
góticas, a narrativa audiovisual demonstra como o grupo de paranormais charlatães irá se
deparar com eventos fantasmagóricos reais, emanados do passado de um hospital que
havia recebido mais de 80 mil internos durante o período de funcionamento. Alas
arruinadas, quartos tétricos, mobiliário revirado e imundo, longos e desorientadores
corredores conferem a atmosfera de horror ao cenário, com destaque para uma alteração
fantástica da disposição interna das alas que transformam o espaço em um labirinto ou um
circuito fechado inescapável.
No filme Corrente do mal (It follows, David Robert Mitchell, 2014) uma revisão da
narrativa trivial do horror é proposta tendo como ponto de foco adolescentes moradores de
um bairro de classe média norte-americano, nos arredores da “cidade-fantasma” de Detroit.
Ainda que se trate de uma ficção contemporânea ao espectador, o imaginário em torno da
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construção abandonada é mantido; muito provavelmente é por isso que a multivocalidade


dos fantasmas e a maldição herdada pelas vias do sexo assuma uma conotação metafórica
sugestiva para transmissão de doenças venéreas. Na história figuram duas locações
polarizadoras do conflito e que, em vista da combinação entre vazio, decadência e
amplitude, estimula uma experiência visual bastante inquietante: a primeira, o térreo de
uma fábrica condenada, um gigantesco espaço aberto fracamente iluminado pelo luar e
pelas luzes da rua; a segunda, um clube com ampla piscina coberta cujas atividades foram
encerradas. Esses cenários assumem uma perspectiva inquietante tendo em vista o
apequenamento sofrido pelos sujeitos em cena, perdidos nas dimensões colossais, e a
impressão de que as edificações poderiam esmagá-los. A vítima – e também futura
agressora – aparece amarrada a uma cadeira de rodas no espaço vazio do edifício
abandonado em um contexto de espacialidade que combina o vazio, a decadência, a
amplitude e uma mulher em perigo.
No caso das moradas familiares, o projeto arquitetônico da casa frequentemente
contempla varanda ampla, sótão, porão, escadas e corredores, três ou mais dormitórios,
dois ou três banheiros, sala de estar, sala de jantar, cozinha, vestíbulo, quarto de vestir,
quarto de brinquedos, área de serviço, garagem e outros apêndices que amplificam a área
útil da propriedade tais como piscina, abrigo de barcos, estufa e depósito externo. Esse
modelo hipotético de residência, a princípio destinado ao bem-estar e conforto dos
moradores, será tomado como campo de dominação e de movimentação do monstro. Nesse
sentido, os lugares ascendentes e descendentes, as áreas contíguas, e espaços ocultos
resultantes de reformas, tornam-se espécies de vasos comunicantes de uma casa pulsante,
as veias más de um coração negro. Nas narrativas sobre casas familiares, o encontro com o
Mal é sempre resultado da mudança de uma família – simbolicamente representado como a
entrada em um mundo especial. Mas, se durante a mudança o imaginário presente é o da
casa dos sonhos, no decorrer dos dias se perceberá o lar como prisão – um lar falso
positivo – porque serve menos para proteção e mais para a libertação do caos e o
enclausuramento dos novos inquilinos.
É o que se sucede à residência de grande porte da 112 Ocean Avenue, palco das
manifestações sobrenaturais descritas em Horror em Amityville (The Amityville Horror,
Stuart Rosenberg, 1979), filme baseado na pretensa história verídica de Jay Anson sobre a
família Lutz. Sem entrar em detalhes sobre a veracidade da história ou acerca do processo
de adaptação, o foco do olhar é o modo como a espacialidade foi construída na fábula
audiovisual. Em primeiro lugar, a mansão colonial, ao contrário de como é explorado no
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filme, não se encontrava tão isolada de outras casas, a ponto de sequer notarmos algum
vizinho próximo – a edificação originalmente pertencia a uma região residencial do
subúrbio de Long Island, Nova Iorque. O isolamento, pois, claramente constitui uma opção
estética para reforçar a atmosfera de medo em torno da residência. Em segundo lugar,
opera-se uma licença dramática acerca da história pregressa do terreno, contexto que
justificariam as atividades paranormais: a casa estava assentada em um antigo cemitério
indígena e, naquele mesmo sítio, um bruxo de Salem havia praticado adoração demoníaca.
Em terceiro lugar, a direção de arte confere à mansão um aspecto personificado, como se
as janelas fossem dois olhos vazios de uma bocarra demoníaca. Tal característica
personalizada da casa faz eco com a descrição antropomorfizada do solar em A Queda do
Solar de Usher, conto de Edgar Allan Poe, de 1839.
Combine, então, uma mansão necessitada de reformas, afastada de outros vizinhos,
um antigo cemitério indígena, rituais de adoração demoníaca e a personificação do imóvel
(a ideia de casa-viva) com um sêxtuplo assassinato real: Ronald DeFeo, em 1974,
aproximadamente um ano antes das ações que tomam lugar no filme, havia assassinado a
tiros a própria família naquele mesmo endereço. A pretensa casa dos sonhos, comprada
abaixo do preço de mercado, logo comprovará o saber popular de quanto o barato sai caro.
Além dessa conjuntura, a mansão de Amityville explora outra faceta de uma
vertente temática comum do horror, aquela que diz respeito à memória das paredes. Não se
trata aqui, contudo, de uma memória traumática – fantasmas que exigem dos moradores a
reparação sacrificial de um dano anterior. O filme de Rosenberg explora um tipo de
memória de repetição, visto que os moradores quase operam uma espécie de psicodrama
sobrenatural, dramatizando/repetindo eventos traumáticos pregressos. Não é à toa,
portanto, que George Lutz sofra de insônia pontual: às 03h15, horário do morticínio da
família de DeFeo, esteja acordado e, no decorrer dos dias, suas feições tornem-se muito
próximas das do assassino em série. Instâncias estas que demonstram como a casa-viva
procura repetir as memórias como uma compulsão.
Mas não são apenas as casas carentes de reparos a figurar como vilãs no cenário do
horror. Na contramão dessa perspectiva, há o novíssimo sobrado do condomínio
residencial Cuesta Verde, de propriedade da família Freeling, assediado por forças
sobrenaturais e pela alucinação da natureza em Poltergeist – o fenômeno (Poltergeist, Tobe
Hooper, 1982). Os fantasmas que importunam a casa vivem um “sonho perpétuo” de que
continuam vivos, pois ignoram que já estão mortos e querem se apropriar da força de vida
dos vivos, especialmente de uma criança considerada iluminada, Carol Anne. O vínculo
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entre fantasmas e crianças, iluminadas ou não, é um tema, aliás, muito comum nesse
gênero narrativo, algo presente em O Iluminado, Horror em Amityville e em muitas outras
ficções.
Amityville e Cuesta Verde também exploram o jogo entre o conhecimento e o
desconhecimento da história arquitetônica e/ou topográfica das habitações. Por um lado, a
família Lutz conhece a história que determina o baixo custo da propriedade, assume o risco
de mudar-se para uma “nova vida” (entre aspas, por assumir um caráter ambíguo, bom e
mau ao mesmo tempo) e, por conta do vórtice de eventos que a capturou, demonstra que
um passado condenado não deve ser perturbado. Por outro lado, inocentes quanto à
natureza da propriedade em que vivem, os Freeling igualmente são prejudicados por forças
ocultas libertadas: tendo o Cuesta Verde sido construído sobre um antigo cemitério local, a
residência onde moram apresentará uma árvore seca com traços antropomórficos –
temporariamente viva e devoradora –, cadáveres flutuando na piscina em construção,
caixões emergindo em diversos lugares da casa e espíritos saindo de portais no interior da
residência. Em termos narrativos, o conhecimento e o desconhecimento podem acentuar o
suspense (o que virá em seguida?) ou o mistério (qual a razão disso tudo?), o que pode
levar a efeitos atmosféricos completamente diferentes. Em termos específicos da
espacialidade, evidenciam que os lugares possuem memória e, talvez por isso, assumam-se
como um sistema fechado, independente.
Quanto a isso é fato observável que nas histórias de casas mal-assombradas, ao
contrário do que se poderia esperar, raramente há contaminação com as propriedades da
vizinhança, como provam Horror em Amityville e Poltergeist – nenhuma das outras
residências do Cuesta Verde parece ter registrado fenômenos semelhantes mesmo que boa
parte da região tivesse pertencido ao antigo cemitério. A história, portanto, trabalha sobre a
unidade de espaço, algo não apenas no âmbito do recorte narrativo, mas também da
delimitação do campo de poder do monstro. No filme de Tobe Hooper, o Mal não chega
até o passeio nem aos vizinhos próximos, ficando circunscrito ao perímetro do terreno. Na
história de Stuart Rosenberg, embora pareça ser um dispositivo pouco usual, os efeitos
sobrenaturais até chegam ao padre Delaney em sua própria paróquia, mas este teria sido
contaminado por contato ao visitar a família Lutz.
Nas duas narrativas anteriores, fica evidente que o cinema de horror costuma
explorar a persistência ou ressonância do culto às forças demoníacas, da necromancia, de
rituais pagãos em uma sociedade racional. É tema, na verdade, resultado de uma dicotomia
simples do moderno e do antigo, do racional e do irracional, do cristão e do pagão. No
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roteiro de Evocando espíritos (The haunting in Connecticut, Peter Cornwell, 2009),


história de Adam Simon e Tim Metcalfe alegadamente baseada em fatos reais, há o drama
da memória da casa, da criança especial (um garoto vitimado pelo câncer), da edificação
carente de cuidados (logo, a versão moderna das ruínas góticas) e, também, da luta pela
manutenção da unidade familiar (batalha contra as tentativas de desagregação e supressão
das forças sobrenaturais). Além do tema dos manuscritos encontrados, artefatos
reveladores do passado da Aickman House, o antigo funeral home da história, há um
particular trabalho com espaços pouco usuais: o dumbwaiter (elevador de alimentos), o
crematório e as paredes forradas de cadáveres na sala. Esses seriam os “corações” da casa,
espécies de portais ou pontos de passagem.
Em Poltergeist, por exemplo, o centro dos eventos sobrenaturais – o coração – é o
closet do quarto de Carol Anne; em Horror em Amityville, um aqueduto de matéria negra e
viscosa atrás de uma parede no porão. De modo geral, espaços ocultos fechados funcionam
como um conteúdo recalcado da memória da casa que, ao ser aberto, liberta a matéria
recalcada – quase sempre de modo extremamente violento. Vide a metonímia do horror
presente no poço fechado do qual emerge Samara em O chamado (The ring, Gore
Verbinski, 2002), espírito que exige uma corrente de mortes punitiva e irreconciliável. Ou,
ainda, o aspecto figurativo do monstro como uma entidade que precisa ser domesticada e
mantida escondida no porão, referência ao processo depressivo de uma mãe que culpa o
filho pela morte do marido em O senhor Babadook (The Babadook, Jennifer Kent, 2014).
O mesmo ciclo de mortes disparado por monstros está presente em A mulher de
preto (The woman in black, James Watkins, 2012), adaptação do romance homônimo de
Susan Hill, publicado em 1983. Na história, o espírito vingativo de uma mulher, cujo filho
morreu em um acidente, assombra os moradores de um vilarejo próximo. Acusada pela
própria irmã de ser incapacitada mentalmente, estratégia perversa elaborada para adoção
do sobrinho, Jennet se vê separada do garoto Nathaniel e, em um acesso de desespero, após
o acidente que vitimaria seu rebento, comete suicídio. Logo, na condição de fantasma não
reconciliado com o passado, torna-se um espírito sombrio e punitivo – a mulher de preto
que dá título ao filme – que, ao ser vista por visitantes inadvertidos, tem como efeito
imediato a morte de alguma criança do vilarejo próximo em circunstâncias violentas e
terríveis, extensão de domínio pouco usual nos filmes de horror. O espaço onde se passa a
ação é a Eel Marsh House, mansão localizada em uma região charcosa e que
temporariamente permanece isolada do continente durante a maré cheia, condições
geográficas que acentuam o sentimento de isolamento, decadência e maldição da
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propriedade. Para o cenário da ficção de Watkins, foi empregada como locação externa
Cotterstock Hall, uma imponente casa senhorial, assentada em Northamptonshire,
Inglaterra, e datada de 1658.
O tema dos fantasmas presos ao passado de seus atos e o cenário incomunicável
aparece de modo muito produtivo também no filme Os outros (The others, Alejandro
Amenábar, 2001), peça audiovisual cuja novidade repousa no ponto de vista da trama – o
dos mortos, ignorantes de sua condição, que imaginam estarem sendo assombrados por
fantasmas (no caso, os vivos). Grace Stewart assassinara os dois filhos e cometera suicídio
em resposta ao não retorno do marido da guerra. Segundo a fábula, os três viveriam
isolados em uma imensa e nevoenta mansão vitoriana, situada em Jersey, uma das Channel
Islands, pertencentes ao Reino Unido. A locação do filme, no entanto, é o Palácio de Los
Hornillos, construção arquitetônica em estilo neogótico situada na província de Cantabria,
na Espanha.
No âmbito das cidades assoladas pelo Mal, histórias nas quais há um
superdimensionamento do espaço do horror não pertencentes ao escopo deste ensaio,
merecem destaque a pequena cidade de Tarker's Mill, molestada por um o lobisomem
inominado em Bala de prata (Silver bullet, Daniel Attias, 1985); a cidade fictícia de
Gatlin, dominada pela perversa seita das crianças do milho em Colheita maldita (Children
of corn, Fritz Kiersch, 1984); a nevoenta cidade de Silent Hill no Terror em Silent Hill
(Silent Hill, Christophe Gans, 2006), marcada por um terrível destino coletivo; e Raccoon
City, palco de um incidente biológico cujo vírus transforma as pessoas em zumbis no
horror científico de Resident evil – o hóspede maldito (Resident evil, Paul W. S. Anderson,
2002).
E, por fim, operando no sentido oposto da dilatada extensão espacial da cidade ou
do grande sobrado, estão as cabanas ou casas situadas fora dos limites da cidade, com uma
dimensão arquitetônica compacta e uma espacialidade gótica espraiada sobre a Natureza,
tais como podem ser percebidos em histórias como as de Uma noite alucinante - a morte
do demônio (Sam Raimi, 1981) e O segredo da cabana (The cabin in the woods, Drew
Goddard, 2012). A cabana na floresta, consagrada pelo uso especialmente em filmes com
adolescentes em busca de diversão e sexo, representa uma espécie de dissociação das
forças de controle presentes na cidade, incluindo o domínio da racionalidade, por isso
acabam por explorar o enlace entre crime, sobrenatural e loucura dos personagens. No
filme de Sam Raimi, por exemplo, cinco jovens encontram em uma cabana nos bosques do
Tennessee, lugar onde pretendiam passar o final de semana, o Necromicon Ex Mortis –
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livro dos mortos encadernado em pele humana e escrito com sangue – e um gravador com
notas do antigo morador, um arqueólogo que traduziu passagens do referido livro. Assim,
partindo do princípio de que dizer é invocar, tão logo a fita é escutada, espíritos malignos
que habitam o bosque acordam de seu torpor para perseguir os jovens.
A cabana, em termos funcionais, é um espaço em constante ameaça contra a
inóspita, violenta e potencialmente destruidora forças externas da Natureza combinadas
com a agência sobrenatural presente no interior da construção. Apesar do espaço reduzido
da área construída de uma cabana é o entorno, o ambiente natural, que assume um aspecto
aprisionador e desorientador; a cabana é, nesse sentido, apenas o centro do assédio, o
coração do Mal. Esse horror espacial em torno da construção deslocada e abandonada é
exemplarmente retomado em A Bruxa de Blair (The Blair Witch Project, Daniel Myrick,
Eduardo Sánchez, 1999), narrativa found footage que versa sobre três estudantes de cinema
que se perdem em uma floresta nas proximidades de Burkittsville, Maryland, durante a
filmagem de um documentário sobre a personagem-título. O filme utiliza como locação
final um lugar conhecido como Griggs House, situado na cidade de Granite, Maryland, um
sobrado arruinado que teria sido construído por volta da metade do século XIX e onde a
narrativa se encerra de modo misterioso.
Com base nos exemplos mencionados ao longo do texto, o percurso argumentativo
e ilustrativo deste ensaio pretendeu demonstrar os processos de manutenção da
espacialidade gótica no imaginário do horror moderno, razão para que se conclua ser
inarredável dos estudos de gênero cinematográfico a questão do design arquitetônico do
horror. Embora tenha se desmembrado da estética gótica e seguido como um componente
necessário a qualquer história de horror, não se pode negar a influência do imaginário
gótico na espacialidade do gênero em questão. Pode-se mesmo afirmar, sem incorrer no
erro, que o cinema de horror é, antes de tudo, um drama de arquitetura, um drama de
espaço. O protagonismo do cenário corre em paralelo com a movimentação do monstro e,
por vezes, como se observou, o cenário em si é um protagonista. O tema mereceria uma
pesquisa mais aprofundada, cujo resultado desejável seria a delimitação conceitual da
natureza do espaço gótico e a reunião em um documento analítico da amostragem
arquitetônica e espacial dos filmes de horror produzidos desde as primeiras obras do
gênero, com o intuito de criar um repertório de códigos teóricos e estéticos de grande
interesse para roteiristas, diretores de arte e pesquisadores interessados nos componentes
ordenadores da espacialidade do horror cinematográfico.
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Referências

CARROL, Noël. A filosofia do horror ou paradoxos do coração. Trad. Roberto Leal


Ferreira. Campinas: Papirus, 1999.

LOVECRAFT, Howard Phillips. O horror sobrenatural na literatura. Trad. João


Guilherme Linke. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1987.

_____. Notas sobre a escritura de contos fantásticos. In: BRAGA, Guilherme da Silva
(org.). O chamado de Cthulhu e outros contos. Trad. Guilherme da Silva Braga. São Paulo:
Hedra, 2011a, p. 153-158.

_____. Notas sobre ficção interplanetária. In: BRAGA, Guilherme da Silva (org.). A cor
que caiu do céu. Trad. Guilherme da Silva Braga. São Paulo: Hedra, 2011b, p. 87-96.

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