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Ficções da realidade - Como um filme: o


imaginário das catástrofes
Fernanda Müller e Marcio Markendorf - Publicado em 18.06.2007

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Designando na tragédia clássica a conclusão ou a consumação da ação trágica, a


catástrofe adquiriu novas feições em nossa sociedade. Desgraça por excelência, a
katástrophe grega remete a um acontecimento principal, decisivo e fulminante, cujo tom
funesto que repele, escarnece e aterroriza, é o mesmo que arrebata, enfeitiça e mantém
atônito o espectador. A diferença é que o desenlace dramático parece ter migrado do
palco para outras formas de expressão artística, irrompendo nos quadros, rasgando • Anuncie no DUPLI
páginas e, sobretudo, projetando nas telas todas as suas fúrias. Seja na forma de • Cadastre-se no DUPLI
epidemias, seja na de catástrofes provocadas pela natureza ou pelo homem, criou-se
uma relação peculiar em que as representações tornaram-se uma forma de mediar
nossa própria percepção diante de um quadro real ou temido em nosso cotidiano.

O primeiro deles tem a ver com a propagação de doenças na forma de um surto


generalizado. Não seria demais afirmar que a partir do momento em que o homem
passou a viver em grupos, passou também a ser acometido por epidemias, tanto as que
surgem rapidamente num lugar e atingem, a um só tempo, um grande número de
pessoas, quanto as infectocontagiosas que atuam de modo cíclico e periódico em
determinadas regiões. Nesse sentido, pensar em grandes contingentes humanos sendo
varridos do mapa por moléstias não se trata de uma ficção contemporânea, mas de
capítulos recorrentes na história das civilizações, atualizados na mente das pessoas
sempre que tomam conhecimento de novos surtos que ameaçam se alastrar mundo
afora. É possível concluir que a representação de epidemias não é uma novidade em si,
pois abundam relatos a esse respeito da Antiguidade Clássica à Modernidade. Todavia, a
força e a forma utilizadas em sua expressão foram renovadas nos últimos séculos, quiçá
nos últimos cinqüenta anos, a partir da utilização de outras próteses para o olhar.

Para uma boa parcela da população, epidemias são o caminho mais curto para o caos,
uma vez que a própria Organização Mundial de Saúde reconhece que vírus, bactérias e
parasitas são, de longe, a principal causa de mortalidade humana. Registradas há
milênios, as maiores epidemias apontadas pelos historiadores foram deflagradas pelas
pestes bubônica e pneumônica: a peste de Atenas, a peste de Siracusa, a peste
Antonina, a peste do século III, a peste Justiniana e a Peste Negra do século XIV. Não
podemos deixar de citar as epidemias que atingiram escala mundial, como foi o caso
das oito grandes pandemias de cólera que assolaram o mundo entre os séculos XIX e
XX, a grave Gripe Espanhola de 1918, o Tifo, cujas epidemias mortíferas iniciaram-se no
século V a.C. e se estenderam até a Segunda Guerra Mundial, e, ainda, a versão mais
moderna a ganhar escala internacional: a AIDS. Esses terríveis flagelos inspiraram a
imaginação de inúmeros pintores, sobretudo no período Renascentista, originando obras
que marcaram a história das artes plásticas e certamente auxiliaram na construção do
imaginário da enfermidade destrutiva, como é o caso das telas “A peste em

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Atenas” (1652-1654), do pintor Michael Sweerts, “A peste em Nápoles” (1656), de


Domenico Gargiulo, “A peste em Ashdod” (1630), de Nicolas Poussin e “O triunfo da
morte” (1562), de Pieter Bruegel.

Passando para o âmbito da literatura, podemos perceber como as epidemias foram - e


ainda são - uma preocupação tão grande de civilizações, povos e nações quanto as
guerras. Mitologias, tratados filosóficos, poéticas, epopéias, relatos de viagem e
inúmeras outras formas de escrita evidenciam a presença constante desse inimigo,
sempre a espreita do homem. Um primeiro exemplo é a obra “A guerra do Peloponeso”,
em que Tucídides relata a peste que dizimou Atenas em 428 a.C. Conta o autor que "a
enfermidade desconhecida castigava com tal violência que desconcertava a natureza
humana. Os pássaros e os animais carnívoros não tocavam nos cadáveres apesar da
infinidade deles que ficavam insepultos. Se algum os tocava caía morto". Mantendo um
diálogo na forma e no conteúdo com os autores de seu tempo, revela a tentativa da
imparcialidade de um relato em terceira pessoa, que busca um distanciamento capaz de
conferir maior respaldo ao narrado. As cenas que se seguem, dão continuidade ao
descrito acima, invariáveis no desespero dos sobreviventes, no horror dos doentes
agonizantes e na morbidez das cidades povoadas de corpos em decomposição.

Quase vinte séculos depois, e praticamente inalterada, essa estrutura narrativa parece
ainda gozar de boa saúde ao representar as epidemias. “Um diário do ano da peste”, de
Daniel Defoe, é um bom exemplo dessa prosa. Publicado em 1722, retrata na forma de
um romance-reportagem a epidemia de peste bubônica que assolou a Londres de 1665.
Baseando-se possivelmente em jornais da época para construir a trama, Defoe não deixa
de lançar mão de técnicas literárias, inclusive na exploração de personagens, para lançar
seu olhar de escritor e repórter sobre um evento que dizimou cerca de 100.000
londrinos. Lado a lado com Defoe estão os diários taquigrafados de Samuel Pepys,
membro do Parlamento inglês, que trazem uma particular combinação de registro íntimo
e de testemunha ocular, composição rara na época em questão. Muito embora os diários
compreendam os anos entre 1600 e 1669, só vieram a público em 1825, depois de
descobertos e decifrados.

Dentre as literaturas mais próximas da Modernidade, destacamos o romance “A


peste” (1998), de Albert Camus, inspirado em uma das últimas epidemias de peste
bubônica ocorridas na Argélia, no ano de 1944. Embora até mesmo a Bíblia nos ofereça
testemunhos sobre surtos dessa doença que teria vitimado filisteus, Camus prima em
seu romance pela profundidade com que representa os conflitos humanos à medida que
os infectados são colocados em quarentena sob condições desumanas, e os serviços
civis começam a falhar. Seu retrato nos lembra mais do que uma Argel sitiada, nos
coloca diante de uma cidade sob a égide de adversários tão mais bárbaros quanto
invisíveis. Mais recentemente, o romance “O amor nos tempos do cólera” (1985), de
Gabriel García Márquez, conferiu um outro tom ao discurso epidêmico. Diante da
pandemia dessa doença, ocorrida entre 1961 e 1975, o autor faz uso do realismo
fantástico para contar uma história de amor que se passa no século XIX, em meio a
barreiras sanitárias. Embora a representação da doença se faça presente, interferindo
na trama, as reflexões não escondem as tragédias humanas do cotidiano que segue seu
curso, apesar de tudo. Muito particular, e um tanto insólita, é a publicação de “Ensaio
sobre a cegueira” (1995), em que José Saramago narra uma inexplicável praga de
cegueira, que se alastra lentamente. Apesar de ser um mal abstrato e desconhecido
para todos nós, o surto coloca as personagens diante de uma sociedade que
desmorona, perdendo tudo aquilo que após milênios nos habituamos a chamar de
civilização, expondo - de algum modo próximo a Camus e em algum grau a Márquez -
quais são as facetas da natureza humana que emergem quando as pessoas são
obrigadas a viver confinadas e a confiar umas nas outras. A concepção de tais romances
contemporâneos mantém em comum a figura do médico que acompanha o
desenvolvimento da epidemia, auxiliando os pacientes em seu tratamento e criando um
canal para traçar panoramas críticos sobre o caos local. Aliado a figura do homem da
medicina surgem alguns profissionais de saúde e muitos enfermos, mas merece
destaque a figura da valorosa e dedicada esposa, com quem o médico pode
compartilhar suas expectativas e tecer reflexões em todos os casos narrados. Uma vez
que a diversidade das personagens é pequena, o diferencial fica a cargo da profundidade
das relações que vão se modificando em meio à desordem e ao medo. Fazendo
referência ao ressurgimento de doenças antigas, como a medieval cólera ou a milenar
peste, ou criando novas, como a ficcional cegueira branca, as obras descritas são
indícios do interesse que as epidemias despertam no público ainda hoje.

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Trazendo esses dramas para ainda mais perto de nós, observamos como a
disseminação de doenças letais em tempos de globalização é imprevisível, posto o
desenvolvimento das doenças e o grande deslocamento de pessoas ao redor do mundo
numa velocidade nunca antes pensada. Acabamos colocados diante de dois desafios de
nosso tempo: tratar com antibióticos doenças que se tornam mais e mais resistentes e
até imunes a eles, sem poder contar com barreiras sanitárias realmente eficazes. A esse
respeito, sugere um médico em depoimento à Revista Veja, numa matéria sobre saúde
pública: "O sonho de Fleming, de erradicar as doenças contagiosas, nunca pareceu tão
longe de se realizar. Ao menos os infectologistas e os roteiristas de filmes de terror terão
emprego por um bom tempo. As forças da natureza parecem dispostas a ajudar".

Aproveitando tal ensejo, o cinema de fato tem se dedicado à produção de longas


tratando de pandemias. Exemplo é “Epidemia” (Outbreak, 1994, Wolfgang Petersen), no
qual um vírus misterioso oriundo das selvas africanas ameaça o mundo. Todavia, a
história, encabeçada por um casal romântico de médicos que lutam para descobrir a
cura desse agente misterioso, extrapolou as telas devido ao surto de uma doença que se
propagava pela África, o Ébola, matando em menos de dez dias até 90% dos doentes,
em meio a um sofrimento inenarrável. Segundo Marcelo Leite, que critica a perspectiva
alarmista da imprensa na cobertura do assunto: "o frenesi provocado pela epidemia (...)
parece provir muito mais do terror causado pela descrição de sintomas popularizados por
um filme e um bestseller do que de uma avaliação racional do perigo que representa".

Episódios como esse, em que ficção e realidade se confundem, não são casos isolados.
As últimas crises coletivas, a SARS, em 2003, e a Gripe Aviária, em 2005 e 2006, foram
cobertas/alimentadas pelos meios de comunicação que fizeram amplas reportagens
sobre a proliferação - real e imaginária - dessas doenças pela Ásia e por outros países,
fazendo com que as fronteiras em todo o mundo passassem a exibir avisos sanitários,
mobilizando seus órgãos de saúde para combatê-las e certamente motivando a criação
de mais uns tantos outros filmes dentro dos próximos anos. A trama cinematográfica, em
todo caso, não parece restringir-se apenas aos reflexos de uma praga desconhecida
oriunda de uma floresta selvagem, mas também aponta para as consequências que
atitudes bem intencionadas podem provocar. Ilustrando tal quadro temos o filme
“Extermínio” (28 Days Later, 2002, Danny Boyle), no qual um grupo de ativistas
ambientais no estilo Green Peace libertam macacos de um laboratório sob o pretexto de
proteger os animais da violência. No entanto, ignorando os avisos dos cientistas,
libertam macacos infectados por um perigoso vírus que, como resultado, alastram uma
grande epidemia que deixa atrás de si um sem número de mortos. Um quadro mais
assustador para uma possível pandemia está na ficção futurista de “12 Macacos” (Twelve
Monkeys, 1995, Terry Gilliam) no qual um grupo de bioterroristas auto-intitulado ‘O
Exército dos 12 Macacos’ teria espalhado um vírus mortal que varreu do mapa a maior
parte da humanidade. Dentre os sobreviventes que vivem em comunidades no subsolo
regidas por um governo cinzento e tirânico, um homem é enviado para o passado para
recolher informações sobre o vírus e auxiliar os cientistas do futuro a descobrirem a cura.

Tramas como as supracitadas, reiteram a idéia de que o inferno pode estar cheio de
boas intenções, afinal, o homem pode ser o responsável tanto por criar quanto por
desencadear e disseminar epidemias. Sem querer ou intencionalmente. Se Hiroshima e
Nagazaki são o marco zero da preocupação mundial com a energia atômica e seu uso
para fins armamentistas, os envelopes contaminados com Antraz, que circularam pelos
EUA pós-11 de Setembro, desencadearam a histeria generalizada por uma possível
Guerra Biológica. Até mesmo o Brasil entrou em pânico depois de uma série de piadas
de mau gosto conhecidas por “trotes de antraz” no qual uma pequena quantidade de pó
branco – quase sempre raspas de giz – era enviada dentro de envelopes. E como era de
se esperar, o cinema, mais uma vez aproveitando-se dos incidentes reais, amplificou o
temor bacteriológico em suas telas widescreen. Tal qual o ocorrido no recém lançado “O
Fator Hades” (Covert One: The Hades Factor, 2006, Mick Jackson), onde vislumbramos
a assombrosa possibilidade de um vírus hemorrágico ser disseminado por terroristas
biológicos do Afeganistão.

Se epidemias disseminadas por agentes microscópicos podem causar estragos tão


grandes, o que o homem poderia esperar da natureza quando esta resolve exibir a
grandiosidade das suas forças? A resposta remete ao imaginário das catástrofes, tanto
as naturais quanto as causadas pelo ser humano, direta ou indiretamente. Quanto a
isso, o filósofo francês Jean Baudrillard faz uma afirmação categórica ao defender que a
Natureza, reduzida a uma mera fonte de energia, não encontra outra saída para vingar-

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Natureza, reduzida a uma mera fonte de energia, não encontra outra saída para vingar-
se de tal reducionismo senão na forma de catástrofes naturais. Frente a esse risco de
morte e destruição inesperadas que a natureza pode oferecer, fica um tanto difícil
acreditar que outrora essa entidade foi vista tão somente como o lar dos amantes, nas
páginas de românticos como Goethe, ou como o lugar selvagem no qual o homem
nasceria bom, na filosofia de Jean-Jacques Rousseau. O paisagismo, que entrou para
as artes plásticas no século XVIII, foi um dos precursores ao demonstrar através de
suas telas que a natureza não é apenas uma fonte de sensação ou sentimento, mas é
também um lugar de reflexão em que o homem se coloca pequeno frente à grandeza
dessa força. As pinturas de William Turner (1775 – 1851), de Caspar David Friedrich
(1774 – 1840) e de John Constable (1776 – 1837), por exemplo, comprovam o quanto a
percepção da natureza estava atravessada por uma noção de poder supremo e de
imensidão. A uma visão persistente de que o ambiente intocado pelo homem é o lócus
do atraso, onde tudo estaria por fazer e pacientemente à espera do desbravamento, e da
exploração humana, sobrevém a resposta impetuosa e indomada das forças naturais.

A idéia de submissão e de controle que ferramentas como a bússola, o microscópio e o


satélite foram gradativamente oferecendo, mostrou-se irreal. Apesar de estar muito perto
de desvendar o DNA humano e de clonar pessoas, sendo capaz até de ir para o espaço
e prever intempéries com alguma antecedência, o homem não deixa de demonstrar
todas as suas limitações quando a fúria da natureza se faz presente. Da metáfora do
Paraíso ao braço forte do Juízo Final, o fato é que a natureza parece ter despertado de
um sono quase tranqüilo, deixando de ser o pano de fundo de uma tela ou a paisagem de
um cartão postal, para se tornar a grande protagonista em cena. Em parte pela
velocidade na difusão de informações sobre catástrofes, em parte pela aceleração no
ritmo das alterações climáticas ocorridas no planeta, o imaginário de uma natureza
potencialmente destruidora vem ganhando forma: através da literatura e do cinema
podemos perceber o quanto o homem deixou de desafiar uma natureza intocada, tal qual
um Robinson Crusoé, para proteger-se de uma entidade hostil, em cujo olhar vislumbra a
morte.

Se a literatura teve um papel importante num primeiro momento, foi sobretudo no cinema
que as catástrofes se revelaram com energia, expondo a fragilidade da condição
humana diante de um ente que pode ser bom, mas sabe, e por vezes quer, ser cruel.
Esse medo do caos, da aniquilação e da impossibilidade de sobrevivência, inclusive
devido a disseminação de epidemias e outras formas de massacre como os expostos
anteriormente, foi expressado a partir das últimas décadas do século XX na forma dos
disaster movies, ou filmes-catástrofe, que se tornaram um gênero extremamente popular.
O gosto por filmes desse tipo não deixa de ter origem no aspecto sensacionalista das
grandes tragédias e permite que o espectador libere as paixões violentas do inconsciente
na sala de projeção. O constante flerte com a identificação de eventos cotidianos e o
possível-crível da ficção cinematográfica acabam por banalizar sensivelmente a
destruição e, no final das contas, a traduzem na forma de clichês. Isto porque, tais filmes
são obras elaboradas a partir da mistura de três elementos principais: 1) enredo
apocalíptico com grandes cenas de destruição urbana; 2) apelo melodramático aliado à
histeria coletiva e 3) cenas de ação, de preferência temperadas com efeitos especiais
que, com o apogeu da tecnologia, surpreendem cada vez mais ao enfatizar o clima de
tensão e o poder aniquilador. Tal fórmula consegue captar o espectador, de modo que,
em geral, esse tipo de produção atinge níveis elevados de bilheteria, encontrando um
espaço cativo em meio ao grande público que habitualmente freqüenta os cinemas.

Muito embora geralmente previsíveis, tais filmes encontraram o apogeu na Hollywood


dos anos 70, quando os EUA viviam a crise moral do escândalo de Watergate. Naquela
época, os filmes catástrofe defendiam a necessidade da lei e da ordem por meio de uma
autoridade forte, capaz de lidar com todas as intempéries, doenças, acidentes,
catástrofes enfim. A título de exemplo podemos citar “Terremoto” (Earthquake, 1974), do
diretor Mark Robson. Retratando como um imenso tremor destruiu a cidade de Los
Angeles, problematiza a nova rotina imposta a uma população que se esforça para
recuperar o cenário urbano e, com ele, a própria vida. Essa tônica de reequilíbrio e
reconstrução atravessa quase todos os outros filmes, fundamentando não somente o
gênero, mas sua futura trajetória. Embora tenha caído um tanto no esquecimento
durante a década de 80, a partir dos anos 90 os filmes-catástrofe voltaram a ser um
importante filão da indústria cinematográfica. Produzidos com orçamentos milionários e
estrelados quase sempre por grandes nomes do cinema, encontram nos efeitos
especiais, cada vez mais apurados, seu diferencial. Um dos mais recentes e
impactantes, “O dia depois de amanhã” (The Day After Tomorrow, 2004), do diretor e

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impactantes, “O dia depois de amanhã” (The Day After Tomorrow, 2004), do diretor e
roteirista alemão Roland Emmerich, é um dos precursores em representar como uma
convulsão na crosta terrestre, causada por uma transformação climática de grandes
proporções, poderia alterar a geografia ao redor do mundo.

Entre os enredos mais marcantes estão os filmes de asteróides em rota de colisão com
a Terra, como no antigo “O Fim do Mundo” (When Worlds Collide, 1951, Rudolph Mate)
ou em “Armageddon” (Armageddon,1998, Michael Bay) e “Impacto Profundo” (Deep
Impact, 1998, Mimi Leder); vulcões em erupção em cidades paradisíacas ou grandes
metrópoles; tempestades em alto mar onde o frágil corpo humano se depara com ondas
aparentemente sobrenaturais; acidentes nucleares de proporções sem precedentes;
prédios em incêndios avassaladores; furacões que arremessam para o alto tudo o que
encontram em seu caminho e terremotos que passam deitando cidades inteiras. Ao lado
destes, ainda existem os filmes que retratam acidentes, sobretudo de avião, de carro e
de trem, e os problemas dos sobreviventes ao lidarem com seus instintos mais primitivos
em meio ao inóspito até a chegada do resgate. Em comum, em todo caso, está a
observação de dois medos fundamentais dados, sobretudo, no nível inconsciente do
indivíduo: a Teoria do Caos - segundo a qual o bater de asas de uma simples borboleta
poderia causar um tufão em outra parte do mundo -, e a lei nietzschiana do Eterno
Retorno - a repetição ou amplificação de eventos históricos e catastróficos já ocorridos,
como aqueles que levaram à destruição de Pompéia e ao acidente em Chernobyl, às
bombas atômicas no Japão e aos terremotos na China, em São Francisco e em Lisboa,
e, porque não, aos incidentes que levaram à própria extinção dos dinossauros e à era
glacial. Inconscientes ou não, tais medos se alinham sob o eixo da imprevisibilidade,
travestido quase sempre pelas metáforas do Acaso ou do Destino, pois são
regulamentadas por leis desconhecidas ou mesmo divinas. Quanto a isso, podemos nos
remeter novamente a Baudrillard quando este afirma o seguinte: “A catástrofe é a
irrupção de algo que não funciona mais segundo as regras, ou então funciona segundo
regras que não conhecemos e que talvez nunca venhamos a conhecer. Nada mais é aí
simplesmente contraditório ou irracional, tudo é paradoxal.”

Sem poder localizar uma explicação satisfatória para um jogo aparentemente


contraditório das leis naturais, desempenhamos o papel de pequenos e meros
espectadores. Embora a idéia de vontade divina - da qual o bíblico Dilúvio é um forte
representante - tenha sido substituída pela noção de conseqüência humana e nos
colocado no centro nevrálgico da catástrofe, muitas vezes ambos os conceitos
coexistem. A erupção de vulcões, por exemplo, mesmo que constitua um capítulo à
parte na série de desastres naturais, carrega em si, certa aura de manifestação divina,
infernal e apocalíptica, a começar pelos filmes precursores “Os Últimos Dias em
Pompéia” (Gli Ultimi Giorni di Pompei,1959, Sergio Leone) e “Krakatoa - O Inferno de
Java” (Krakatoa, East of Java,1969, Cesc Gay), que certamente influenciaram a
concepção de “Volcano - A Fúria” (Volcano, 1997, Mick Jackson) e de “O inferno de
Dante” (Dante’s Peak, 1997, Roger Donaldson). A internalização desse imaginário
sobrenatural e destrutivo via filmes-catástrofe, é bastante perceptível quando comparada
com a recepção subjetiva de eventos dessa magnitude. É desse modo que
“Twister” (Twister,1996, Jan De Bont), parece muito mais real para as famílias
estadunidenses ou da América Central que enfrentam a fúria dos ventos com certa
periodicidade, ou para os catarinenses que aguardavam a chegada do Catarina, o
primeiro furacão registrado no sul do Oceano Atlântico, em março de 2004.
“Poseidon” (Poseidon, 2006, Wolfgang Petersen), e “Mar em fúria” (The Perfect Storm,
2000, Wolfgang Petersen), constituem outra marco nessa relação, uma vez que foram
apontados por especialistas como os mais reais na representação de uma tormenta em
alto mar, com câmeras capazes de registrar a chegada das ondas abissais em todos os
ângulos. Além disso, sua narratividade extrapola a cena, concedendo forma às tsunamis
que varreram o Oceano Índico em dezembro de 2004, consagrando a desconhecida
expressão "tsunamis" entre nós. Os filmes sobre terremotos fazem parte da mesma
leva, como aponta o precursor da década de 70, e mexem inclusive com medos culturais
quase arquetípicos, como o da velha lenda de que a Califórnia possa afundar no oceano
Atlântico por conta de um tremor intenso do qual “10.5 – O dia em que a Terra não
agüentou” (10.5, 2004, John Lafia) é um bom exemplar.

A tradição dos filmes-catástrofe está assentada decididamente nos grandes transtornos


geológicos, muito embora possa também ser representada por desastres artificiais ou,
em parte, motivados por causas naturais, como seria o caso de filmes ao modo de
“Titanic” (Titanic, 1997, James Cameron) que acabam sendo enquadrados em gêneros
do tipo drama ou romance por estarem centralizados em um par romântico. Com alguma

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do tipo drama ou romance por estarem centralizados em um par romântico. Com alguma
ressalva também poderíamos falar nos filmes que esbarram no catastrófico de origem
maravilhosa ou improvável, ao que seriam fortes representantes as refilmagens dos
clássicos “Godzilla” (Godzilla, 1998, Roland Emmerich), “King Kong” (King Kong, 2005,
Peter Jackson) e “A Guerra dos Mundos” (War of the Worlds, 2005, Steven Spielberg)
que passaram a fazer parte do imaginário coletivo a partir da década de 30. Apesar de
não representarem exemplarmente o gênero, tais filmes, ainda que a revelia das
classificações, fazem parte dos disaster movies por conter muito da tragédia e da
destruição, do pânico e da barbárie, que o homem enfrenta na luta pela sobrevivência
diante de uma situação - real ou imaginária - fora de controle.

Apesar da atmosfera de superprodução, ou talvez devido a ela, cria-se uma aparente


contradição, porque ao mesmo tempo em que muitos desses filmes são descritos como
uma sucessão de roteiros exagerados e repetitivos, por outro lado, acabam por povoar
tão fortemente o imaginário das pessoas, que passam a influenciar a maneira como o
grande público capta eventos similares quando ocorridos na vida real. Deste modo, e por
sua vez, os filmes “World Trade Center” (2006, Oliver Stone), e “Vôo 93” (United 93,
2006, Paul Greengrass), mostram às avessas essa relação de vida e ficção se
misturando em telas e ruas sitiadas pela catástrofe humana. Segundo Oliver Stone, seu
filme seria feito para o mundo, por isso espera que seja capaz de transcender o 11 de
Setembro: "É um filme sobre qualquer pessoa, em qualquer parte, que sente o sabor da
morte", declara. Tais palavras, de quem espera que o cinema espelhe a vida, acabam
por se embaralhar com o discurso de pessoas que vivenciaram essa tragédia e
declaram a sensação da vida espelhar o cinema.

Susan Sontag dá um depoimento provocador sobre a construção desse imaginário


cinematográfico das tragédias, afirmando que o atentado foi classificado de “irreal”,
“surreal” e “como um filme” por muitas das vítimas que o presenciaram. Ou seja: após
quatro décadas de superproduções hollywoodianas, “como um filme” teria substituído a
maneira de captar uma catástrofe inassimilável de outro modo. No caso específico de
Vôo 93, há uma boa safra de filmes que tratam de aviões seqüestrados e em iminente
ameaça de explosão como o precursor “Aeroporto” (Airport, 1970, George Segal). E se a
arte imita a vida, o contrário também é verdadeiro. No filme “Aeroporto 75” (Airport 1975,
1974, Jack Smight), um pequeno avião colide com um 747 e uma aeromoça se vê
obrigada a assumir o controle da aeronave depois que parte da tripulação foi morta,
permitindo um final bem diferente para o que foi a maior tragédia da aviação brasileira,
ocorrida em setembro de 2006 envolvendo um Boeing da GOL. Em matéria de edifícios,
como se dá em World Trade Center, é bom lembrar dos filmes que tratam de incêndios
em grandes construções, como em “Inferno na Torre” (The Towering Inferno, 1974, John
Guillemin e Irwin Allen), assim como das tristes imagens do incêndio no Edifício Joelma,
em 1974, que inspiraram o filme “Joelma 23º Andar”, lançado em 1978.

Essa confusão entre realidade e ficção também se mostra responsável por embaralhar o
telespectador do documentário “Uma verdade inconveniente” (An Inconvenient Truth,
2006) do ex-candidato à presidência dos EUA, Al Gore. Frente a provocação humana
Recomende este artigo
que desafia a natureza, o desequilíbrio causado pelo homem parece sem volta, cabendo Recomende o artigo "Especial
medidas capazes de, no máximo, retardar as conseqüências de seus próprios atos. Ficções da realidade" de Fernanda
Nessa película, o que se vê é um grande alerta numa tentativa de conscientizar o mundo Müller e Marcio Markendorf.
Email do amigo
para a grande ameaça do aquecimento global que, literalmente, paira sobre a Terra.
Enviar
Enumerando as mais devastadoras alterações climáticas que aconteceram nos últimos
anos, Al Gore aponta medidas preventivas para conter uma futura catástrofe climática
que já acomete o mundo e deve se agravar nas próximas décadas se o nível de
poluição, a destruição da natureza e o uso indiscriminado dos recursos naturais não-
renováveis continuar no mesmo patamar de hoje. O que mais assusta no documentário
é que, de repente, nos sentimos personagens de um filme-catástrofe, com a figura do
mocinho que inutilmente tenta alertas as pessoas e convencer os mais céticos de que
os sinais da catástrofe iminente estão todos aí. A mensagem que fica é a de que o
grande vilão dessa história não é a natureza, mas o próprio homem que a enfureceu.
Uma tragédia sem palco algum, encenada atrás das cortinas de fumaça do mundo real.
Cujo desenlace, talvez, ainda dependa de nós.

Num panorama final, poderíamos dizer que a construção de um imaginário


contemporâneo sobre epidemias e catástrofes alimenta a produção de telas, livros e
filmes, enquanto delas se alimenta, num grande círculo vicioso. A perda da confiança na
capacidade humana de derrotar definitivamente os microorganismos e a fúria que a
natureza vem mostrando, extrapolaram as representações feitas no passado não

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natureza vem mostrando, extrapolaram as representações feitas no passado não


simplesmente pela magnitude que esses eventos possam ter hoje - haja visto, por
exemplo, que o maior terremoto que se registrou em todos os tempos ocorreu na China
do século XV - mas em boa parte pela forma dramática como a mídia é capaz de difundir
estes eventos, cujos efeitos especiais do cinema tornam ainda mais dramáticos. Nosso
imaginário precisou aprender a lidar com tanta informação que se embaralha com a
ficção. Assim, desastres e doenças avassaladoras tornaram-se algo de proporções tão
absurdas a ponto de serem descritos em seu ápice como "cinematográficos". Estamos
diante de um imaginário de fim moralizante ou de prospecção analítica no qual prevalece
o assombro da humanidade diante do desequilíbrio que pode até provocar, mas que até
agora se demonstra incapaz de conter.

Especial Ficções da Realidade


• Apresentação
• Parte 1 - Os aliens somos nós
• Parte 2 - Como um filme: o imaginário das catástrofes
• Parte 3 - Violência: entre o ato consumado e o consumista
• Parte 4 - Homem biopolítico, ciência biodegradável
• Parte 5 - A República dos Homens e o Império das Máquinas

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