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São Paulo, domingo, 04 de fevereiro de 2001

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A zona dos sentimentos

O cineasta e ensaísta Alexander


Kluge discute o pensamento de
Theodor Adorno e Heiner Müller e
fala do livro que acaba de lançar na
Alemanha

Os sentimentos, por definição, são anti-realistas,


pois os homens constroem sempre uma contra-
imagem da realidade, ou seja, contra a superstição
de que a realidade seja "realista"; considero a
realidade como uma construção sintética de
relações de poder da faculdade da imaginação
José Galisi Filho
especial para a Folha

É quase impossível, à primeira vista, distinguir a linha


divisória entre o cineasta, o romancista, o teórico e o
produtor de televisão Alexander Kluge. Para Jürgen
Habermas, ele representa um dos últimos artistas da
vanguarda histórica que ainda buscam os "resíduos utópicos"
no projeto moderno.
Foi Theodor Adorno (1903-1969) quem convenceu o jovem
doutor em direito no fim dos anos 50 de que o cinema
poderia ser um caminho mais promissor para sua imaginação
dialética. Kluge trabalhou inicialmente como assistente de
Fritz Lang (1890-1976) entre 1958 e 59. Em 1960,
produziria o documentário "Brutalidade em Pedra, a
Eternidade do Ontem", sobre os delírios arquitetônicos de
Albert Speer e, em 1962, assinaria o "Manifesto de
Oberhausen", que declarava a morte dos cinema "dos pais",
inaugurando na então Alemanha Ocidental o cinema de
autor, ainda sob a dominância da nouvelle vague de Godard.
Kluge sempre permaneceu fiel ao seu método, no qual não
existe nenhuma diferença entre a montagem literária e a
cinematográfica, pela síntese de "imagens dialéticas", como
comentou certa vez Adorno em uma carta a Walter Benjamin
de 2 de agosto de 1935. A realidade já se oferece ao olhar do
cineasta como uma montagem que deve ser implodida pela
desmoralização do que lhe parece mais caro: seu lastro
documental. A reorganização desse "material" opera pela
justaposição e pela "citação" de fragmentos originários de
sua camada mais superficial, na forma de um protocolo
judicial detalhado, sem uma linha narrativa hierárquica.
O cinema representaria assim, como sempre afirmou Kluge,
uma "sonda" exploratória dessas camadas mais densas do
material histórico. O diferencial semântico que deriva desse
deslocamento permite-lhe assim uma alternância entre
abstração estética e a visualização de um "plano" do
cotidiano, organizando na porosidade desse material a
soberania da faculdade da imaginação.
Nesse sentido, suas "contra-histórias" não oferecem nenhuma
moral sob o lema de seu terceiro longa-metragem: "No
Perigo e na Má Sorte, Traz o Meio-Termo a Morte", uma
variante do princípio do aprendizado histórico contido nas
"Teses" de Walter Benjamin. "Vidas" (1962) e "O Poder dos
Sentimentos" (1983) são exemplos narrativos da imaginação
sintética de Kluge. Já no plano da teoria, "História e
Obstinação", 1981, em parceria com Oskar Negt, reorganiza
a economia política sob a égide da faculdade da imaginação
no sentido de uma montagem cinematográfica. Alexander
Kluge concedeu de sua casa em Munique a entrevista a
seguir.
Dez anos após o fim da União Soviética são lançados esses
dois volumes de quase 2.000 páginas ("Crônica dos
Sentimentos"). Hans Magnus Enzensberger observou certa
vez o senhor não é um "narrador insensível". Quais são os
"sentimentos" dessa cartografia? O fim desse gigantesco
império liberou energias criativas formidáveis que estavam
até então congeladas e se abrem como um amplo território à
nossa imaginação. Sentimentos não significam, nesse
contexto, a instrumentalização sentimental ou comercial dos
afetos. Como sabemos, a idéia de sentimento foi de tal
maneira estilizada pelo século 19, seja como clímax
romanesco ou ponto de descobertas, seja como impulso
caótico, que se torna difícil dissociá-la desses clichês.
Inicialmente trata-se de aprender esses afetos, mapeá-los na
história de nosso corpo, de nossa faculdade imaginativa. Por
exemplo, o sentido de equilíbrio, que somente
experimentamos quando o perdemos. Quando se considera,
por exemplo, o funcionamento do músculo do riso. Então
podemos afirmar que essa zona da qual se originam tais
sentimentos é uma instância que parece ter permanecido livre
da colonização das demais.
Os homens aprenderam historicamente a dividir seu corpo
em dois territórios: o baixo e o alto corporal. O pulmão, o
espírito, os pensamentos e a dimensão da virtualidade
orientam-se para cima, enquanto existiria uma zona de
guerrilha entre esse alto e esse baixo que não obedece à
jurisdição de nenhuma das duas. Essa é a zona corporal dos
sentimentos, um território mais antigo que a própria
linguagem discursiva, por exemplo. Por meio de alguns
movimentos respiratórios, podemos produzir o riso. Esse riso
é arcaico. A soma dessas reações, não apenas dos afetos ou
dos sentimentos em termos do sentimentalismo, dizem, na
verdade, respeito à própria distinção entre o corpo e o
espírito. Trata-se da produção em massa das faculdades, é a
zona dos sentimentos. Grande parte desse material resulta da
manipulação de documentos históricos, produzindo uma
espécie de ficção científica de uma meta-história precisa e
fantástica ao mesmo tempo. Que espécie de "realismo" é
esse? Uma parte considerável desse material do presente não
é imediatamente dramatizável, salvo por meio dessa zona
intermediária. Os sentimentos, por definição, são anti-
realistas, pois os homens constroem sempre uma contra-
imagem da realidade, ou seja, contra a superstição de que a
realidade seja "realista". Esse é um dos pensamentos-chave
de meu trabalho ao longo das últimas décadas. Considero a
realidade como uma construção sintética de relações de
poder da faculdade da imaginação. A realidade, nesse
sentido, pelo menos, não é realidade no mesmo presente de
nossa existência.
Quando imagino o objeto "Brasil", por exemplo, ele se
apresenta como a somatória de todos os afetos, paixões
destes últimos 500 anos de sua história. Essas imagens são
reais. Alexander von Humboldt (1769-1859) empreendeu
uma longa viagem de reconhecimento por lá, mas essas
impressões não são reais para o presente. O anti-realismo dos
sentimentos é uma realidade experimentada em cada um de
nós a todo momento, não precisamos "descobri-la", pois ela
se inscreve mesmo na atividade espontânea da imaginação. A
imaginação sempre recua quando não pode suportar ou
elaborar imediatamente um objeto da realidade e, dessa
forma, ela já opera uma crítica prática.
Os homens geralmente se enganam redondamente quando
aceitam a "realidade" como dada. Mas aceitá-la também na
sua múltipla determinação contraditória seria no cotidiano
impraticável, portanto estamos revestidos de diversas
camadas de defesa. Como advogado não poderia me
conduzir pela minha fantasia, mas como escritor estou
habilitado a produzir os "contra-objetos". E, desde que os
homens existem, eles relatam sempre contra a realidade
quando escrevem a própria história. Esse é o núcleo de toda a
historiografia. Poderíamos comparar a realidade à figura de
um monarca. A soberania dele somente existe quando seus
súditos a reconhecem. O seu primeiro contato com a
produção cinematográfica no final dos anos 50 ocorreu por
meio da mediação de Adorno. Como ele se deu? Sim, foi
num curso inaugural de filologia sobre o historiador Tácito,
em Frankfurt. Diante de mim sentava-se um senhor com
olhos castanhos belíssimos e de grande intensidade, quase
inteiramente calvo.

Auschwitz não é um fantasma, mas


uma realidade histórica; Adorno me
contou uma vez uma história em que
ele se via no meio de uma reunião
como um morto -eu mergulho nesse
pensamento dentro do cérebro dele

Quando eu o olhava, ele me retribuía o olhar num misto de


irritação e interesse. Fiquei me perguntando se aquele
homem seria justamente quem Thomas Mann descrevera em
seus diários como Theodor Wissengrund Adorno. Então,
resolvi abordá-lo diretamente: "O senhor é Theodor
Wissengrund Adorno?". Tornamo-nos a partir de então
amigos. Por motivos que não vêm ao caso, me tornei depois
conselheiro jurídico do próprio Instituto de Pesquisa Social,
mas não fui aluno e sim um amigo. O senhor descreve nessas
"Crônicas" a "morte terrena" de Adorno. Ao entrar na
"dimensão paralela", Adorno percebe que não está no
parnaso, mas sim diante do reticulado caótico da periferia de
São Paulo. O que o fantasma de Adorno está fazendo
exatamente em São Paulo? Duas perguntas: não seria essa
ocasião uma aporia típica do mestre para, primeiro, exorcizar
o próprio fantasma e o da velha teoria crítica, e segundo,
acertar as contas com o desafeto Heidegger? São duas
narrativas distintas. A de Heidegger relatarei em outro
momento. Vamos à primeira. Essa história se originou do
fato de que Adorno morreu num roupão branco, como os
candidatos romanos, daí justamente a origem da palavra
"cândido" (branco), pois é aquele que se apresenta numa toga
branca e chega sem sua bolsa. É justamente assim que os
mortos entram no parnaso. E, como não está ainda
inteiramente provado pela ciências naturais se existe de fato
ou não ou um parnaso, salvo na imaginação dos poetas que o
descreveram, posso então tomar essa referência da topografia
literária para fazer essa analogia.
Esse mundo paralelo das idéias nos circunda, e quando
pensamos na idéia tradicional cristã do paraíso, posso afirmar
que o traçado caótico da periferia de São Paulo seja bastante
pertinente para se opor àquela topografia do platonismo. São
Paulo é um corpo vivo e dinâmico, também caótico em seus
movimentos, e aqui se desenha uma contra-imagem daquela
topografia e daquela hierarquia espiritual do "Evangelho". O
espírito de Adorno atravessa paisagens literárias
contrastantes, da mesma maneira que nas metamorfoses de
Ovídio. E aquilo que os mortos fazem não podemos julgar,
pois seria doutrinário.
Ora, você parte do pressuposto de que a teoria crítica está
morta e liquidada como um fantasma europeu. Não posso
avaliar o que seja a recepção da teoria crítica num contexto
como o da América Latina, mas ela certamente foi e é a
resposta européia a Auschwitz como processo civilizatório, e
Auschwitz não é um fantasma, mas uma realidade histórica.
O próprio Adorno me contou uma vez uma história em que
ele se via no meio de uma reunião como um morto. Eu
mergulho nesse pensamento dentro do cérebro dele. Qual foi
a contribuição do pensamento dramatúrgico de Heiner
Müller para o cineasta Alexander Kluge? De Müller,
basicamente, aprendi o laconismo, uma concisão narrativa
que ele dividia com o historiador Tácito, que retira a energia
de suas narrativas pela depuração de qualquer excesso
retórico. Trata-se de narrativas quase em estado puro. Müller
conduziu essa compactação a uma pureza lírica única no
final de sua vida, uma cifra do século que passou. O cineasta
Kluge parece se interessar também pela fenomenologia do
"olhar dissolvente" dessa dramaturgia que, partindo do
idealismo alemão em seu ataque ao fundamento da realidade
por meio de um pensamento sem objetos, atinge a guerra
total moderna de extermínio. Em Müller, a tempestade
eletrônica da mídia realiza o "apagamento do mundo nas
imagens". Sem dúvida, o tema do olhar em Müller realiza
esse percurso, sim, existe essa convergência histórica, mas há
também contra-impulsos a ele no próprio idealismo alemão.
Clausewitz foi o único que escreveu um livro que renega
completamente a guerra total. O princípio político está no
centro da guerra como contrapartida ao princípio do
extermínio da guerra moderna. É contra a impotência do
princípio da destruição que Clausewitz se insurge.
Clausewitz era também um homem do idealismo alemão. Já
em Novalis ou mesmo Hölderlin há contraposições para esse
extermínio da realidade.
O movimento estudantil de 68 continha também uma
continuação do idealismo alemão e do princípio de violência
que mina o fundamento da realidade, mas esse princípio de
violência é, por excelência, o princípio do terror jacobino. A
emergência da indústria, da guerra popular e da
espontaneidade do amor são princípios que nascem
simultaneamente no processo revolucionário francês. À
guerra popular opõe-se a guerra do gabinete, e daí origina-se
um princípio de brutalidade como nunca houve antes, uma
liberação de energias destrutivas e brutalidade. Com o
surgimento da linha de montagem da indústria temos um
princípio de mecanização e, portanto, de exploração
mecanizada da força de trabalho. E, quando se toma a
espontaneidade do amor, se destroem as defesas tradicionais
nas relações entre os sexos com o amor livre. Por outro lado,
pesaria também sobre Müller, sobretudo numa parcela da
crítica mais recente, a acusação de vincular-se a um
paradigma conservador da tradição vitalista de direita. No
centro dessa crítica está a idéia de que Müller não teria
entendido a abstração do mundo moderno e o caráter
anônimo da violência industrial que Auschwitz significa.
Heiner Müller não é um poeta armado nem tampouco um
revolucionário, pois um poeta não deveria agir e se
pronunciar como poeta. Não entendo isso como uma crítica
substancial, mas sim como um ataque retórico . Auschwitz
não é para ser "entendido", mas sim recusado, apenas
recusado. Não se coloca a questão de entendimento. Não
existe tampouco a idéia de um sujeito em Müller.
Como em Nietzsche, esse sujeito não passa de uma ilusão,
um conglomerado de realidades díspares e de forças sem um
"telos" determinado. Mas, diga-se de passagem, trata-se de
uma ilusão vital para todos nós. Auschwitz não tem nada a
ver com compreensão ou mesmo com a idéia de sujeito, não
podemos entender Auschwitz a partir da idéia de um "sujeito
histórico". Essa idéia de sujeito seria inteiramente
inapropriada para entender Auschwitz e sua violência. Trata-
se antes de uma resistência a isso.
Quando pensamos numa figura, por exemplo, como o
personagem do clássico romance de formação "Os Anos de
Aprendizado de Wilhelm Meister", de Goethe, que se molda
no choque com a realidade objetiva, então precisamos
apontar de antemão a disparidade dessa idéia de sujeito
diante do abismo que Auschwitz significa, abismo diante do
qual cada animal deve manifestar seu horror. Ante
Auschwitz existe apenas o horror. Entre a sentença de
Adorno, de que não é mais possível lírica após Auschwitz, e
a recusa de Müller a uma noção de sujeito vejo um
parentesco muito claro. Essa atitude dos críticos, de
quererem tomar afirmações de um escritor como parte de um
modelo explicativo de uma visão de mundo, sempre fracassa.
Escritores criam metáforas reutilizáveis e novas texturas de
significação. O que mudou essencialmente na paisagem das
mídias alemãs nestes últimos dez anos desde a reunificação?
A concentração vertical do capital aumentou
consideravelmente entre os conglomerados Bertelmmans e
Springer e outros, que só consolidaram ainda mais sua
hegemonia nos novos canais. Mas se é possível, por um lado,
organizar trustes e superestradas da informação, por outro,
não se podem dissolver as iniciativas individuais. No meu
caso, procuro construir uma terceira via independente e
alternativa nos calcanhares desses gigantes.

José Galisi Filho é mestre em teoria literária pela Universidade Estadual


de Campinas (Unicamp) e doutorando em germanística na Universidade de
Hannover (Alemanha).

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