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O ornamento
da massa
Siegfried Kracauer
O ornamento
da massa
tradução
Carlos Eduardo J. Machado
e Marlene Holzhausen
9 prefácio Miriam Hansen
construções
163 O grupo como portador de ideias
191 O saguão de hotel
perspectivas
205 A Bíblia em alemão
221 Catolicismo e relativismo
231 A crise da ciência
243 Georg Simmel
279 Sobre os escritos de Walter Benjamin
287 Franz Kafka
cinema
303 O mundo de calicó
311 As pequenas balconistas vão ao cinema
327 Cinema, 1928
343 Culto da distração
2 Martin Jay, “The extraterritorial life of Siegfrief Kracauer”, Salmagundi, números 31-32, ou-
tono/inverno de 1975-76, reimpresso em Permanent Exiles. Nova York: Columbia University
Press, 1986, pp. 152-97; Inka Mülder-Bach, “‘Mancherlei Fremde’: Paris, Berlin und die Ex-
traterritorialität Siegfried Krakauers”. Juni: Magazin für Kultur & Politik, Mönchengladbach,
número 3.1, 1989, pp. 61-72.
3 Ver Thomas Y. Levin, Siegfried Kracauer: Eine Bibliographie seiner Schriften, Marbach am
10 Neckar: Deutsche Schillergeselschaft, 1989. A maioria dos artigos de Kracauer para o →
cinema ainda não escrita” (esforços nessa direção aparecem em suas críticas
a partir do outono de 1923), o filme se tornou, nos anos subsequentes, uma
espécie de prova textual.
As primeiras críticas de Kracauer de A rua dão testemunho do nascimento
de sua teoria do cinema a partir do espírito de uma filosofia da história ou,
mais precisamente, de uma teologia da história. Enquanto sua crítica de A rua,
de 3 de fevereiro de 1924, é principalmente uma paráfrase entusiática a partir
do olhar do protagonista errante, a crítica da edição vespertina de 4 de fe-
vereiro assume um tom mais generalizante, apresentando o filme de Grune
como “uma das poucas obras da produção moderna de filmes na qual um
objeto é moldado de uma maneira que apenas o cinema é capaz e que realiza
possibilidades que apenas o cinema pode realizar”. A afinidade entre o meio
e seu suposto objeto é fundamentada não somente na capacidade fotográfica
do cinema de mostrar uma realidade externa, mas também em seus procedi-
mentos sintáticos, nas possibilidades da montagem:
O cinema costura cena com cena e dessas imagens que se desenrolam sucessi-
vamente recompõe mecanicamente o mundo – um universo mudo no qual ne-
nhuma palavra passa de ser humano a ser humano, no qual a fala incompleta das
impressões visuais é a única linguagem. Quanto mais o objeto representado pode
ser mostrado pela mera sucessão de imagens, tanto mais corresponde à técnica
cinematográfica de associação.
→ Frankfurter Zeitung, muitos dos quais publicados sob pseudônimo ou mesmo anonimamente,
pode ser encontrada em seu caderno de anotações, “Kracauer Papers”, Deutsche Literaturar-
chive, Marbach am Neckar. Desde a realização deste ensaio, boa parte dos escritos de Kracauer
para o Frankfurter Zeitung, com exceção de suas resenhas de filmes, foi reimpressa em seus
Schriften 5. 1-3, ed. Inka Mülder-Bach, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1990. 11
que formam novas séries de imagens como em um caleidoscópio”. Kracauer
concebe o cinema como expressão material – não apenas representação – de
uma experiência histórica particular. A solidão do indivíduo em um mundo
fragmentado e vazio que o crítico vê ser evocada no filme de Grune ressoa
com o pathos da experiência pessoal; o filme empresta a esse pathos uma sig-
nificação alegórica, uma ressonância coletiva.
O que irrompe no errante solitário nas ruas vorazes da noite é expresso no filme em
uma sequência vertiginosa de imagens futuristas, e o filme é livre para expressá-lo
dessa forma porque a vida interior debilitada não pode liberar nada além de ideias
fragmentárias. Os eventos se emaranham e desemaranham, e assim como os seres
humanos são mortos-vivos, coisas inanimadas tomam naturalmente parte no jogo.
Uma parede sem reboco anuncia um assassinato, um anúncio elétrico tremula
como um olho que pisca: tudo uma desordem confusa [Nebeneinander], um caos
[Tohuwabohu] de almas reificadas e coisas aparentemente animadas.4
Essas imagens são familiares para o leitor dos primeiros escritos de Kracauer,
tais como sua investigação epistemológica Soziologie als Wissenschaft [Sociolo-
gia como ciência], seu tratado filosófico sobre o romance policial, ou seu ensaio
programático de 1922, “Die Wartenden” [“Aqueles que esperam”].5 Kracauer
vê o processo histórico que culmina na modernidade como a perda crescente
do sentido da vida, a dissociação entre verdade e existência; o mundo se de-
sintegrando em uma multiplicidade caótica de fenômenos. Esse processo é
4 Na resenha publicada no dia anterior, a figura do “errante solitário” é referida como “den
Sehnsüchtigen”, aquele que espera. Tampouco é coincidência que a última frase da citação
de Kracauer utilize a palavra hebraica Tohuwabohu, uma imagem recorrente no Gênesis
utilizada em alemão como vernáculo para “caos”.
5 Soziologie als Wissenschaft: Eine erkenntnistheoretische Untersuchung (1922), reimpresso
em Siegfried Kracauer, Schriften I, ed. Karsten Witte, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1971;
Der Detektivroman: Ein philosophischer Traktat (1922-1925), publicado em Schriften I; “Die
Wartenden”, Frankfurter Zeitung, 12 mar. 1922, reimpresso em Siegfried Kracauer, Das
Ornament der Masse, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1963. Nesta edição, Aqueles que espe
12 ram, p. 149.
análogo, nas esferas econômica e social, à racionalização capitalista e à aliena-
ção concomitante da vida humana, do trabalho e das relações interpessoais. O
sujeito é “lançado na infinitude fria de um espaço e de um tempo vazios”, uma
condição resumida na expressão de Lukács “desabrigo transcendental”.6 Para
um grande número de indivíduos vivendo na “solidão das grandes cidades” –
Kracauer inclui entre “aqueles que esperam” acadêmicos, homens de negócio,
médicos, advogados e intelectuais de todo tipo – esse estado, na medida em
que eles têm consciência dele, resulta em um sentimento de isolamento, de
exílio do mundo no qual vivem e agem.
Enquanto ainda faz ressoar a retórica do “desabrigo transcendental”, “Aque-
les que esperam” também marca o distanciamento em relação ao pessimismo
cultural e à nostalgia dos escritos iniciais de Kracauer. Dirigido contra as ten-
tativas prematuras de restaurar o sentido (da antroposofia ao círculo de George,
passando pelo misticismo religioso, mas também contra o ceticismo “ansioso”
de alguém como Max Weber), o ensaio propõe uma atitude de “espera” auto-
consciente, ativa, um “estar-aberto hesitante” [zögerndes Geöffnestein] (p. 159).
A rejeição de panaceias para o mal-estar moderno é acompanhada por uma
mudança de foco do “eu teórico” ao “eu da humanidade inteira”, do “mundo
irreal de forças sem forma e valores elevados esvaziados de sentido” ao “mundo
da realidade e seus domínios”. Por causa da unilateralidade do pensamento
teórico, adverte Kracauer, uma lacuna “aterrorizante” se abriu entre o pensa-
mento e a realidade contemporânea que é “uma realidade que encarna coisas
e pessoas que, por conseguinte, exigem ser vistas concretamente” (p. 160).
A abertura cautelosa de Kracauer para os domínios não teorizados da ex-
periência moderna implica uma mudança simultânea na atitude em relação
7 Inka Mülder-Bach, “Der Umschlag der Negativität: zur Verschränkung von Phaenome-
nologie, Geschichtsphilosophie und Filmaesthetik in Siegfried Kracauers Metaphorik der
‘Oberfläche’”. Deutsche Vierteljahresschrift, número 61.2, 1987, pp. 359-73; ver também Mülder,
op. cit., pp. 86-95.
8 “The mass ornament”, tradução de Barbara Correll e Jack Zipes. New German Critique, pri-
14 mavera 1975, p. 67; tradução modificada. Na presente edição, p. 91.
do messianismo judaico moderno e secular que Anson Rabinbach identificou
nos escritos de Ernst Bloch e Walter Benjamin. A relação de Kracauer com o
messianismo judaico é um assunto complexo, especialmente porque essa tra-
dição persistiu em uma variedade de sensibilidades radicais, de princípios her-
menêuticos e em combinações com outros discursos (psicanálise, marxismo,
anarquismo libertário, sionismo etc.).9 Criado em um ambiente consciente-
mente judaico e tendo participado brevemente da Freies Jüdisches Lehrhaus
(um círculo frankfurtiano de estudos e debates ligado ao rabino Nehemiah
Nobel), Kracauer passou a criticar veementemente o ressurgimento do pen-
samento messiânico. Ele rejeitou os “entusiastas messiânicos de inspiração
comunista” [messianische Sturm-und-Dranggister kommunistischer Färbung],
assim como outros movimentos de renovação religiosa, que considerava ir-
racionalistas, românticos e profundamente idealistas por eclipsarem tanto o
mundo real quanto o mundo divino que consideravam conhecer tão bem.10
O que claramente afastou Kracauer de um escritor como Bloch foi sua tenta-
9 Anson Rabinbach, “Between Enlightenment and the Apocalypse: Benjamin, Bloch and
Modern German Jewish Messianism”. New German Critique, número 34, inverno 1985,
pp. 78-124; Leo Löwenthal, Mitmachen wollte ich nie: Ein autobiographisches Gespräch mit
Helmut Dubiel. Frankfurt/Main: Suhrkamp, 1980, pp. 19ss., 27, 59, 156; Martin Jay, “Politics of
Translation: Siegfried Kracauer and Walter Benjamin on the Buber-Rosenzweig Bible”. Leo
Baeck Institute Year Book, números 21, 1976, reimpresso em Permanent exiles, pp. 198-216.
Sobre o messianismo judaico em geral, ver o ensaio canônico de Gershom Scholem, “The
messianic Idea in Judaism”, em The Messianic Idea in Judaism and Other Essays on Jewish
Spirituality. Nova York: Schoken, 1972.
10 Ver também a resenha polêmica de Kracauer do livro de Ernst Bloch Thomas Münzer,
“Prophetentum”, Frankfurter Zeitung, 27 ago. 1922; e suas cartas a Leo Löwenthal de 1921 a
1924. A carta de 4 de dezembro de 1921 foi republicada em Löwenthal, op. cit., pp. 244-47; as
cartas de 19 de dezembro de 1921, 31 de agosto de 1923 e 12 de abril de 1924 foram parcialmente
republicadas em Ingrid Belke e Irina Renz (ed.) Siegfried Kracauer 1889-1966. Marbacher
Magazin número 47, 1988, pp. 36, 39-40. Kracauer também reprovava a versão de Benjamin
do messianismo, apesar de ter reagido a ela de forma menos violenta do que a de Bloch; ver
a carta de Kracauer a Adorno, de 7 de junho de 1931, e a carta que escreveu a Löwenthal, em
6 de janeiro de 1957, após ler a primeira coletânea de escritos de Benjamin: “Muitas coisas
empalideceram e sofrem de um dogmatismo messiânico que, de meu ponto de vista, parece
abstruso e arbitrário”, “Kracauer Papers”, Marbach. Ver também Mülder, op. cit., pp. 45ss. 15
tiva de salvar conceitos como “razão” e “verdade”, e sua crença na possibilidade
de uma transfiguração “gentil” da natureza em nome da razão (apesar de ele
reconhecer a cumplicidade do Iluminismo com as mudanças devastadoras
operadas pelas formas capitalistas de racionalidade).11
Ainda assim, Kracauer participa do discurso do messianismo judaico mo-
derno de maneira significativa. Mesmo após ter substituído categorias metafí-
sicas por conceitos emprestados ao Iluminismo e ao jovem Marx, suas observa-
ções da vida cotidiana continuaram a se caracterizar por uma tendência implícita
marcadamente apocalíptica, em especial sua percepção da modernidade como
um abalo traumático que conduzirá à catástrofe. Como Benjamin e Bloch, ele
não era capaz de vislumbrar a mudança como algo imanente à história, como
nas noções burguesas e liberais de progresso e reforma, mas apenas como uma
quebra total. Consequentemente, a função do intelectual era “esperar” em vez
de intervir: “Devemos permanecer escondidos, quietistas, inativos, um espinho
no pé de nossos semelhantes, conduzindo-os ao desespero em vez de dar-lhes
esperança”.12 Ao mesmo tempo, o intelectual devia tomar parte no trabalho de
redenção – concebida nesse caso segundo o sentido utópico da restauração de
todas as coisas passadas e presentes e ligada ao conceito cabalístico de tikkun.13
14 Schröter, op. cit., pp. 25 e 28. Para um exemplo das estratégias de estilo dos primeiros ensaios
de Kracauer, ver as páginas finais deste ensaio.
15 Adorno, em sua palestra inaugural de 1931, usa imagens similares quando faz referência a
Freud e à virada epistemológica ao “Abhub der Enscheinungswelt” [“Recusa do mundo fe-
nomênico”], “Die Aktualität der Philosophie”, em Gesamemlte Schriften 1. Frankfurt/Main:
Suhkamp, 1972, p. 336. Sobre o gnosticismo literário, especificamente na obra de Kafka, ver
Harold Bloom, The Strong Light of the Canonical: Kafka, Freud and Scholem as Revisionists
of Jewish Culture and Thought. Nova York: City College, 1987, pp. 1-25. 17
Zerfall” [“Forma e desintegração”], “a nova forma [das Gestaltete] não pode
ser vivida a não ser que as partículas que desintegraram sejam recolhidas e
preservadas” (Frankfurter Zeitung, 21 de agosto de 1925). E, o que é ainda mais
importante, uma vez que a ordem original das coisas foi irrevogavelmente
perdida e a verdade não pode ser restaurada em nenhum sentido imediato e
imanente, o processo de desintegração precisa ser levado adiante a fim de que
se desnude o “caráter preliminar de todas as configurações existentes”.16
Segundo essa concepção gnóstica da Weltzerfall (desintegração do mundo),
aquele filme assume uma dupla função para o jovem Kracauer, um papel cru-
cial no “jogo de azar radical do processo histórico [Vabanque-Spiel des Geschi-
chtsprozess]”. Em certo sentido, o cinema compartilha esse papel com a foto-
grafia, para a qual Kracauer elaborou uma teoria no seu grande ensaio de 1927.
Como indicou Heide Schlüppmann, a concepção de fotografia de Kracauer
vai além de uma mera oposição da imagem fotográfica à “imagem da memória”,
além do efeito ideológico de banir o tempo em favor do presente eterno das
revistas ilustradas e do cinejornal. 17 Ao contrário, enquanto sintoma e agente
da petrificação do mundo, a fotografia também junta os detritos da história
e a revela em toda sua negatividade. Assim, funciona como um arquivo dos
“últimos elementos da natureza alienados da intenção” – “o mundo dos mortos
em sua independência em relação aos homens”. Se a contingência da imagem
fotográfica põe abaixo as ficções burguesas do sujeito autônomo, ela também
oferece à consciência humana a chance de reconhecer e de se ligar ao “funda-
mento natural” de forma completa. Se o cinema quer, como a fotografia, assu-
mir tal função cognitiva de registro, ele precisa aderir ao mundo das aparências,
à superfície muda, externa, do mundo. O cinema não se relaciona com aquele
mundo, no entanto, na forma de uma representação icônica (o que conflitaria
18 Essa afirmação em certa medida lembra o argumento de Philip Rosen sobre André Bazin,
salvo que para Kracauer a preservação cinematográfica de um momento passageiro não pode
nunca ser uma emanação positiva da criação mas, ao contrário, captura o tempo apenas em
sua negatividade, em sua deriva em direção à catástrofe, a única fonte da qual a redenção
pode vir. Ver Rosen, “History of image, image of history: subject and ontology in Bazin”.
Wide Angle, 9.4, 1987, pp. 7-34. 19
direção da realidade verdadeira”. (Frankfurter Zeitung, 16 de dezembro de 1923);
essa mesma realidade, no entanto, deve permanecer desconhecida. O modelo
dessa dimensão utópica oculta da primeira teoria do cinema de Kracauer é
Franz Kafka, assim como Marcel Proust aparece como o santo padroeiro de
seu ensaio posterior Teoria do filme. Kafka aparece quase no final do ensaio
sobre a fotografia, na transição crucial da desordem provisória da fotografia
às possibilidades do cinema:
Podemos dizer que a crítica de Kracauer, um ano antes, sobre O castelo contém
o esboço de uma estética do cinema utópica. Apesar de Kracauer não se referir
explicitamente ao cinema, ele situa o romance de Kafka segundo os mesmos
parâmetros com os quais, durante aqueles anos, abordara o cinema: (1) uma vi-
são gnóstica da história, centrada no abismo entre a existência humana e a ver-
dade [die Abgesperrheit des Menschen von der Wahrheit]; (2) o gênero do conto
de fadas, que prefigura a vitória miraculosa da verdade sobre as forças cegas da
natureza (o projeto não realizado do Esclarecimento); e (3) a psicanálise, em
particular a noção freudiana de denegação, e o discurso do inconsciente no
horror e nos sonhos. Assim, ele vê em O castelo um conto de fadas negativo,
“die Matrize des Märchens” [a matriz do conto de fadas], no qual os fragmentos
mudos da vida habitual são organizados uns contra os outros em uma série de
deslocamentos e inversões cuja ordem oculta aparece apenas da perspectiva
da verdade ausente, não realizada. Em vez de Märchenglück (a fortuna, a sorte,
a felicidade dos contos de fadas), o romance de Kafka é submerso em medo,
no horror de que a verdade possa estar definitivamente enterrada. Kracauer
compara esse medo, por um lado, à experiência do sonhador, à “desintegração
do ser humano no sonho que se rende aos elementos deslocados não apenas
20 pelo jogo dos impulsos”. Por outro lado, ele invoca o mito de Medusa, ao qual
retornaria em Teoria do filme, dando-lhe uma interpretação gnóstica: “o judeu
Kafka traz o horror ao mundo porque o semblante da verdade deste se reti-
rou. Se esse semblante fosse revelar-se, o mundo enlouqueceria de felicidade”
(Frankfurter Zeitung, 28 de novembro de 1926).19
O potencial gnóstico-messiânico do cinema assume um tom político na
relação de Kracauer com a arte e a cultura burguesas. Com a constatação do
caráter cognitivo do cinema, Kracauer dá as costas às instituições da alta cul-
tura alemã das quais havia sido exilado mais do que por sua vontade própria.
Assim como para outros intelectuais e artistas de vanguarda da república de
Weimar, o cinema figura para Kracauer como uma crítica prática dos escom-
bros da cultura burguesa, de tentativas anacrônicas de esconder o verdadeiro
estado de desintegração e instabilidade, que na terminologia de Benjamin
poderia ser caracterizado como uma falsa restauração da aura. Kracauer ha-
via criticado persistentemente tais tentativas, da forma fechada da biografia
histórica à tradução da Bíblia de Buber e Rosenszweig, passando pelo círculo
de George. É a partir dessa constelação que Kracauer valoriza o termo Zers-
treuung [distração, diversão], invocado com desprezo pelos conservadores
culturais para se referirem ao abandono da audiência às superfícies brilhantes
e às aparências glamourosas:
Estas exteriorizações têm a sinceridade como vantagem. Não é através dela que a
verdade é posta em perigo. Mas através da ingênua afirmação de valores culturais
que se tornaram irreais, através do duvidoso abuso de conceitos como personali-
dade, interioridade, tragicidade etc., que certamente, por si sós, indicam conteúdos
objetivos de alto valor, mas que em razão das transformações sociais perderam
em grande parte a sustentação da qual nutriam. Valores, que na maioria dos ca-
sos, assumem hoje um sabor equívoco, uma vez que desviam a atenção dos males
20 “Kult der Zerstreuung: Über die Berliner Lichtspielhäuse”, Frankfurter Zeitung, 4 mar. 1926;
tradução de Thomas Y. Levin, em New German Critique, número 40, inverno 1987, p. 94,
tradução modificada. Na presente edição, p. 343.
21 Walter Benjamin, “A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução”, segunda versão
(1936), seção XIV. Os pensadores. Tradução de José Lino Grünewald. São Paulo: Abril Cul-
22 tural, 1975, pp. 9-34.
toma da crescente distância entre a esfera da verdade e a existência moderna,
e do dilema resultante daquela distância para o artista contemporâneo. Em
um ensaio escrito ainda com o tom teológico inicial, “O artista em seu tempo”
(publicado no periódico judaico Der Morgen), Kracauer descreve aquele di-
lema como um problema de conexão [Verknüpfung], de estreitar a distância
entre os princípios da criação estética e a necessidade de confrontar a reali-
dade contemporânea. Antes de citar exemplos da poesia, arte e música (e, em
seguida, apenas de forma breve, contrastar o expressionismo com variações
da Neue Sachlichkeit e do construtivismo), ele retorna mais uma vez ao filme
de Grune, A rua.
A leitura anterior do filme é retomada como uma alegoria da vida após a
queda, mas a conduz adiante para identificar sua atitude como se fosse com-
partilhada por “seres humanos que se engajam seriamente com a realidade e
por isso são duplamente afetados pelo poder das forças que hoje transformam
o mundo em uma via urbana, deformando-o”. Essas pessoas não mais “espe-
ram” pacientemente, mas ficaram impacientes com a “tentativa romântica de
embelezar as realidades da tecnologia e da economia”.
Eles farão qualquer coisa que estiver a seu alcance para fazer o mundo revelar seu
caráter fantasmagórico, para deixar o Nada reinar como quiser. Eles são niilis-
tas em nome do positivo e se apressam em direção ao fim do desespero, com re-
ceio de que um “sim” interrompa aquele processo a meio caminho e o torne sem
efeito… Portanto, eles hiperbolizam a negação, estendem o vazio e rejeitam a alma
onde ela é apenas um fingimento. Eles acreditam que a América [uma metáfora
contemporânea para a modernidade desencantada] desaparecerá apenas quando
descobrir-se a si mesma completamente…22
22 “Der Künstler in dieser Zeit”, Der Morgen, 1.1, abril 1925, pp. 105-06. A seção sobre A rua
foi republicada, sob o título “Filmbild und Prophetenrede”, em Frankfurter Zeitung, 5 mai.
1925. 23
do contrário, eles apenas reproduzirão a lacuna entre “a imagem cinemato-
gráfica e a profecia”.23
O gesto radical de Kracauer no ensaio é sua passagem de questões me-
tafísicas e filosóficas à discussão do filme – sem desculpas, justificativas
ou explicações. Ele não aborda a questão sobre o cinema em geral, ou esse
filme em particular, ser arte. Em um mundo moderno que, para parafrasear
a afirmação de Rabinbach sobre Benjamin, “não sofreu apenas o desen-
cantamento, no sentido que Weber dá ao termo, [mas] foi infinitamente
empobrecido e privado de um discurso que pudesse adumbrar a natureza
da experiência”,24 o significado do cinema como um tal discurso era muito
mais urgente para Kracauer do que o problema de seu valor estético. Por-
tanto, um filme como A rua serve a Kracauer como um instrumento de
diagnóstico ou, mais precisamente, como uma forma de visão que ele iden-
tifica com seu próprio discurso histórico-filosófico. A função do cinema
no contexto da arte e cultura contemporâneas é expressar o dilema, não
necessariamente resolvê-lo.
Em 1926, no entanto, Kracauer estava ciente de que a produção cinemato-
gráfica média não fazia mais do que avançar a negatividade do processo his-
tórico. Ao contrário, o cinema parecia inclinado a exceder a cultura burguesa
ao remendar os efeitos de desintegração e petrificação. Como nota Kracauer,
de forma gentilmente sarcástica, no final de seu ensaio “O mundo de calicó”
(Frankfurter Zeitung, 28 de janeiro de 1926). Uma viagem encantada pelos
cenários surrealistas do estúdio UFA, a tarefa do diretor consiste na:
difícil tarefa de dar ao material de imagens aquela unidade que está na bela de-
sordem como a própria vida que a vida deve à arte […] Em geral o final é feliz: as
nuvens de vidro formam-se e dissipam-se. Acredita-se nas quatro paredes. Tudo
é natureza garantida (p. 310).
25 “Das Geheimnis von Genf ”, Frankfurter Zeitung, 29 mar. 1928. Ver também “Kult der
Zerstreuung: Kino in der Münzstrasse”. Frankfurter Zeitung, 2 abr. 1932. Republicado em Sie-
gfried Kracauer, Strassen in Berlin und anderswo. Berlim: Arsenal, 1987, pp. 69-71; e, em es-
pecial, “An der Grenze des Gestern: Zur Berliner Film und Photoschau”. Frankfurter Zeitung,
12 jul. 1932.
26 “Die Jupiterlampen brennen weiter: zur Frankfurter Aufklärung des Potemkins-Film”. Frank-
furter Zeitung, 16 mai. 1926. Republicado em Siegfried Kracauer, Kino: Essays, Studien, Glos-
sen zum Film, ed. Karsten Witte. Frankfurt/Main: Suhrkamp, 1974, pp. 72-76. 25
piração entre indústria e público. De 1927 em diante, suas críticas e ensaios ex-
ploram as fórmulas ideológicas pelas quais o cinema transmuda contradições
sociais e econômicas em fábulas de sucesso individual, aventuras exóticas e
sentimentalismo. Na série “As pequenas balconistas vão ao cinema” publicada
anonimamente (Frankfurter Zeitung, março de 1927, O ornamento da massa,
p. 311), Kracauer expõe em linhas gerais uma gama de “temas típicos” recorren-
tes nas produções médias. Esses temas indicam “como a sociedade deseja ver a
si mesma” e, portanto, oferecem um exemplo do alcance da ideologia corrente.
O que faz dessas fábulas algo tão questionável não é seu caráter fantasioso,
pois Kracauer insistentemente faz a defesa da improbabilidade das aventuras
no estilo Kolportage ou “filme policial” contra as pretensões do filme de arte,
do drama histórico, ou sua bête noir, o “filme de sociedade” [Gesellschaftfilm].
Na verdade, o problema está em seu modo específico de deformar, embelezar,
distorcer, reprimir uma realidade social que deve ser filmada. “O que deveria
ser projetado na tela é deixado de lado e imagens enganadoras, que nos afas-
tam da imagem da existência, enchem a superfície”. O filme de ficção mediano,
afirma Kracauer em um ataque cáustico em “Cinema, 1928”, é nada mais do
que uma “tentativa de escapar” dos problemas do presente. Essa abordagem
predomina nos seus escritos sobre cinema até 1933; ela retorna, a partir de uma
perspectiva histórica modificada, em De Caligari a Hitler, sua “história psico-
lógica do cinema alemão”, escrita no exílio e publicada em 1947.27
Nesse livro, o filme de Grune reaparece, dessa vez como um “produto apo-
lítico da vanguarda”. De acordo com Kracauer, o filme fez um sucesso razoável
com uma audiência ampla “que era, no entanto, principalmente de intelectuais”.
Enquanto ainda elogia o esforço “realista” do caráter cotidiano do cenário do
filme, A rua aparece agora como uma alegoria para o movimento regressivo da
rebelião à submissão, um tema central de De Caligari a Hitler. O protagonista
27 Para resenhas em que Kracauer desenvolve uma crítica da ideologia sob a perspectiva dos
efeitos sobre o espectador ver, por exemplo, “Eine Berliner Range”, Frankfurter Zeitung, 23 abr.
1927 (que começa com o lamento, “Ach diese Berliner Geselschaftsfilme!” [Ah, esses filmes
berlinenses de sociedade!]); “Kiki”, Frankfurter Zeitung, 1 abr. 1927; “Klettermaxe”, Frank-
furter Zeitung, 10 mar. 1927; “Eine Dubarry von heute”, Frankfurter Zeitung, 19 fev. 1927; e
26 “Heute tanzt die Marriet’”, Frankfurter Zeitung, 14 abr. 1928.
errante é reduzido a um tipo social, um filisteu agindo segundo mecanismos
historicamente específicos e – retrospectivamente, politicamente fatais – psi-
cológicos.28 Com essa análise, Kracauer não muda apenas seu quadro analítico,
da filosofia da história à crítica da ideologia; ele também renega sua fascina-
ção anterior pelo filme, sua identificação crítica com a experiência do errante
duplamente exilado.
Seria ingenuidade ignorar as razões para essa mudança. Em fins dos anos
1920, a situação política na Alemanha (da qual Kracauer tinha muito mais
consciência do que seu amigo Adorno) exigia intervenções mais específicas da
parte dos intelectuais do que as teorias de racionalização, reificação e alienação
fundamentadas em uma teologia negativa. Se, ironicamente, o ponto de vista
teológico havia capacitado Kracauer a abandonar o domínio da cultura bur-
guesa e do idealismo filosófico e dirigir seu olhar materialista aos meios de con-
sumo de massa, a crescente cumplicidade social e contestação política desses
meios demandava uma linguagem diferente. A “espera” que Kracauer julgara
ser a única atitude possível a ser adotada pelos intelectuais estava agora sendo
involuntariamente realizada pelos milhares, se não milhões, de indivíduos, à
espera nas filas para pão, nas agências de emprego, nas salas de cinema abertas
o dia todo, ou em abrigos aquecidos.29 À época em que De Caligari a Hitler foi
escrito, as consequências apocalípticas da obra anterior de Kracauer haviam
sido realizadas com uma vingança: o jogo de azar radical do processo histórico
havia sido perdido, em uma catástrofe inimaginável.
Seria equivocado, no entanto, apresentar a relação entre a sua primeira teo-
ria do cinema, de inspiração teológica, e seu comprometimento crescente com
a crítica da ideologia a partir de 1926 como se fossem fases cronologicamente
distintas de um desenvolvimento linear. Na verdade, os dois discursos andam
paralelamente e se entrelaçam, com ênfase variada e diferentes graus de con-
28 Siegfried Kracauer, De Caligari a Hitler: uma história psicológica do cinema alemão. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988, pp. 119-123. Ver também Kracauer, Theory of Film, p. 72.
29 “Arbeitsnachweise”, Frankfurter Zeitung, 17 jun. 1930; “Wärmehallen”, Frankfurter Zeitung,
18 jan. 1931; “Kino in der Münzstrasse”, Frankfurter Zeitung, 2 abr. 1932; todos republicados
em Siegfried Kracauer, Strassen in Berlin und anderswo. 27
tradição, em toda a obra posterior de Kracauer. Isso é evidente acima de tudo
em seu conceito de “realidade”, cujo sentido oscila entre conotações metafísicas
e materiais, perceptivas, sociais, psicanalíticas, ideológicas e políticas.30
Já no ensaio “Aqueles que esperam”, a noção de “realidade” de Kracauer co-
meça a deslizar da “esfera espiritual”, cujo sentido se esvaiu, à esfera da existência,
da multiplicidade alienada, confusa, contraditória da vida moderna. Kracauer
afrouxa o vínculo com o real, com a “verdade” ausente em favor de uma afinidade
com o fenomênico, o “concreto”, o “profano”: o lugar próprio da verdade… é em
meio à vida pública “comum”. A rejeição incondicional de Kracauer de formas
metafísicas de renovação o forçou a submergir no mundo decaído, buscando
envolvimento com suas formas, movimentos e ornamentos desconhecidos.
Em certa medida, esse envolvimento era estratégico, uma forma de transformar
a realidade por meio de uma subversão mimética. Como escreve em “Forma e
desintegração”, a “vida real” (ainda comprometida com a “verdade” ausente) pre-
cisa vestir “a máscara do desrealizado e do vulgar a fim de afetar uma realidade
que continua a dominar ali onde ela é vulnerável. Pode ser que, com o intuito
de mudar aquela realidade de forma decisiva, seja [preciso aplicar uma alavanca
em seu próprio meio]…” (Frankfurter Zeitung, 21 de agosto de 1925).
A oscilação do crítico entre verdade e existência, os polos da realidade, é
condensada no paradoxo de uma “realidade des-realizada”, uma presença mate-
rial desprovida de substância ostensiva ou origem. A partir de meados de 1920,
Kracauer procura colocar esse paradoxo em movimento, liberar sua contradi-
ção paralisante em favor da possibilidade da ação política. Em análise da topo-
grafia social de Paris, por exemplo, ele dissolve a articulação dupla de classe e
cultura de consumo em uma configuração de centro e periferia.31 Ele contrasta
os faubourgs, lugar da pobreza e do valor de uso, com a abundância de merca-
dorias, imagens, anúncios, luzes e publicidade dos bulevares e conclui:
30 Sobre o conceito de realidade em Kracauer ver Leo Haenlein, Der Denk-gestus des aktiven
Wartens im Sinn-Vakuum der Moderne: Zur Konstituition und Tragweite des Realitätskonzepts
Siegfried Kracauers in spezieller Rücksicht auf Walter Benjamin. Frankfurt/Berna/Nova York:
Lang, 1984.
28 31 Mülder-Bach, “Mancherlei Fremde”, op. cit., p. 63.
As largas avenidas vão dos faubourgs ao esplendor do centro. Mas este não é o cen-
tro que se quer. A felicidade que almejam os pobres lá fora é acessível por outras
vias do que as que existem atualmente. Devem, portanto, percorrer as ruas até o
centro, pois seu vazio é hoje bem real. (p. 60)
32 “Im Luxushotel”, Frankfurter Zeitung, 14 set. 1928. O próprio Kracauer invoca o aforismo de
Wilde em um artigo sobre “Atrizes belas”, Frankfurter Zeitung, 8 dez. 1928. 29
ção ideológica estavam inseparavelmente relacionadas: a realidade ataca as
fronteiras entre ambas.33
Por problemática que seja a abordagem de “As pequenas balconistas”, em
especial no que diz respeito a questões de gênero, o ensaio estende o conceito
de realidade com a finalidade de incluir uma dimensão psicossocial: “As fan-
tasias idiotas e irreais dos filmes são os sonhos cotidianos da sociedade, nos
quais se manifesta a sua verdadeira realidade e tomam forma os seus dese-
jos de outro modo represados”(p. 313). Enquanto essas fantasias se voltam às
imbricações do romance e da mobilidade social, seu discurso transcende os
limites de classe em um mise-en-abîme do imaginário social: “Na realidade
não ocorrerá com frequência que uma faxineira se case com o proprietário
de um Rolls Royce; por outro lado, não é o sonho de todo proprietário de
Rolls Royce que as faxineiras sonhem em ascender até eles?”. Ao avaliar a
força de tais fantasias, Kracauer joga duas noções de realidade uma contra
a outra: “Ao contrário: quanto mais incorretamente apresentam a superfície
das coisas, tanto mais corretos eles se tornam e tanto mais claramente refletem
o mecanismo secreto da sociedade”. Segundo esse modelo essencialmente freu-
diano de análise cultural, a realidade reside tanto nos mecanismos de repressão
quanto no conteúdo reprimido; em outras palavras, a realidade só pode ser
compreendida em suas contradições.
Os objetos da repressão coletiva não são apenas “desejos coletivos” que
eventualmente irrompem nas fantasias cinematográficas, mas, principal-
mente, aquilo de que os espectadores desejam escapar: “a existência normal
em seu horror imperceptível [das normale Dasein in seiner unmerklichen
Schrecklichkeit]”.34 Ao mesmo tempo que se mostra fascinado pelo hotel de
luxo como espaço de simulação, Kracauer não deixa dúvidas quanto ao caráter
exclusivo daquele espaço e de seus habitantes (“eles se assemelham aos lírios
33 Discordo neste ponto de Thomas Elsaesser, que afirma que a crítica da ideologia de Kra-
cauer obscurece e por isso “falsifica” sua “preocupação [proto-pós-moderna] com o cinema
enquanto esfera marginal da vida e sua fascinação com o cinema enquanto experiência de
efeitos de superfície”. “Cinema – The irresponsible signifier or ‘The Gambler with History’:
film theory or cinema theory?”. New German Critique, número 40, inverno 1987, p. 82.
30 34 Siegfried Kracauer, Die Angestellten (1929), em Schriften 1, p. 298.
do campo: em vez de preocupações, têm iates”). Se para um pós-modernista
como Baudrillard a implosão da realidade é universal e completa (indepen-
dentemente de qual seja a experiência subjetiva-pragmática dos indivíduos),35
para Kracauer é ainda uma questão de perspectiva, de horizonte social, isto é,
de classe, daquela experiência. Assim, ele entende até mesmo as “imagens es-
paciais” das agências de emprego como “sonhos da sociedade”, “hieróglifos” a
serem decifrados em termos da realidade social.36 A analogia entre os espaços
da fantasia e as áreas de exigências que eles reprimem apenas ressalta a con-
tradição: essas áreas fazem parte da autorrepresentação da sociedade, mesmo
que – e porque – permanecem escondidas do olhar público. Portanto, Kracauer
repetidamente relaciona a realidade da produção e circulação contemporânea
de imagens à realidade de seus limites: a injustiça, a pobreza, o sofrimento e a
morte. “A fuga das imagens é a fuga da revolução e da morte.”37
Poderia-se dizer que a insistência de Kracauer com a discrepância entre a
realidade do novo meio de consumo e uma realidade mais autência do sofri-
mento humano assume a função do conceito de verdade transcendentalmente
fundamentado de seus escritos anteriores, de inclinação teológica. Em um
35 Ver, por exemplo, de Jean Baudrillard, “The Ecstasy of Communication”, tradução de John
Johnston, em Hal Foster (ed.), The Anti-Aesthetic: Essays on Postmodern Culture. Seattle: Bay
Press, 1983, pp. 133, nota 4.
36 “Arbeitnachweise”, em Strassen, p. 52. Ver também a discussão da noção de “imagens espa-
ciais” [Raumbilder] enquanto sonhos da sociedade, e a sugestão benjaminiana da cidade
enquanto “coletividade sonhadora”, na carta de Adorno a Kracauer, 25 de julho de 1930, e a
resposta de Kracauer, 1 de agosto de 1930, “Kracauer Papers”, Marbach.
37 Siegfried Kracauer, Die Angestellten, op. cit., pp. 248 e 289. O capítulo sobre a cultura do la-
zer dos empregados de colarinho branco é intitulado “Asyl für Obdachlose” que faz alusão
à experiência de “desabrigo transcendental”, agora um fenômeno de massa, mas também se
refere à inseparabilidade estrutural do glamour da cultura de massa e a miséria da qual ela
tenta fazer as pessoas se esquecerem. Em tom semelhante, a execução de Sacco e Vanzetti se
torna um tema recorrente nos artigos de Kracauer de 1927, como em, por exemplo, “Amerika
im Film”, Frankfurter Zeitung, 24 ago. 1927: “A outra América, não a real, que executou Sacco
e Vanzetti”. E ele acha especialmente polêmicos o sentimentalismo e o sadismo da versão
feita pela Universal Films em 1927 de Uncle Tom’s Cabin, “porque ela nos lembra da luta dos
negros pela libertação que não foi filmada”, Frankfurter Zeitung, 6 mai. 1928. 31
sentido epistemológico estrito, isso talvez seja correto, mas na prática a rela-
ção entre dois tipos de realidade assume com mais frequência a forma de uma
constelação que o crítico constrói a partir da estrutura contraditória da vida
social contemporânea.38 O que parece ser mais problemático é a lógica econô-
mica que exige que a expansão de uma realidade só possa ocorrer às custas da
outra (“a fuga das imagens é a fuga de…”). Kracauer desenvolve pela primeira
vez essa tese no ensaio sobre a fotografia, a partir da oposição entre a imagem
fotográfica e imagem da memória, e na noção concomitante de que a proli-
feração de imagens fotográficas (nos cinejornais e nas revistas ilustradas, por
exemplo) reduz a capacidade de rememoração involuntária dos seres huma-
nos. Assim como Benjamin em seu ensaio sobre Baudelaire, Kracauer invoca
Bergson e Proust, e com eles uma tradição judaica segundo a qual a memória
é lançada contra o impulso adiante da história.39 Em artigo sobre a estreia em
Frankfurt de dois filmes sonorizados, ele conclui:
O cinema sonorizado é até agora o vínculo final na cadeia de uma série de inven-
ções poderosas que, com certeza cega e como se guiada por um desejo secreto,
cada peça da mobília está repleta dos destinos que se desenrolaram no passado. Há
uma cama dupla, a poltrona alta, a prataria – todas essas coisas têm a qualidade de
testemunhas: estão palpavelmente embebidas de substância humana e agora elas
são capazes de falar, muitas vezes melhor do que os seres humanos são capazes. Em
quase nenhum filme – excetuando os filmes russos – o poder das coisas mortas foi
trazido à força à superfície de forma tão ativa e completa como aqui [Frankfurter
Zeitung, 29 de março 1928].43
42 “Tonbildfilm”, em Siegfried Kracauer, op. cit., pp. 410-11. O parágrafo conclui: “O filme so-
norizado irá atingir seu verdadeiro significado apenas quando desvelar uma existência antes
desconhecida, os sons e ruídos que nos cercam que nunca comunicaram com as impressões
visuais e sempre iludiram os sentidos”. Em diversas críticas após a introdução da sonoriza-
ção, Kracauer esboça algo como uma fenomenologia cinematográfica do ruído – contra a
dominação da voz enquanto diálogo – reminiscente de direções similares na música mo-
derna de Russolo a Cage, passando por Satie. Sobre o significado da sonorização na teoria
do cinema de Kracauer, ver artigo recente de Helmut Lethen, “Sichbarkeit: Kracauers Lie-
beslehre”, em Michael Kessler e Thomas Y. Levin (ed.), Siegfried Kracauer: Neue Interpreta-
tionen. Tübingen: Stauffenburg Verlag, 1990, pp. 195-228 e 205-14.
43 Republicado em Witte, op. cit., pp. 136ss.
44 Walter Benjamin, “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, op. cit. Ver tam-
34 bém Hansen, “Benjamin, cinema and experience”, loc. cit., pp. 207-12.
Como Benjamin e, antes dele, Béla Balázs, Kracauer adapta o método fisio-
nômico, a interpretação do caráter a partir de traços faciais imperceptíveis, ao
reino da estética do cinema e seus parâmetros psicossociais. Mas ele insiste de
forma mais enfática do que Balázs no papel da linguagem na relação do cinema
com a realidade. Em resenha do livro de Balázs, Der sichtbare Mensch oder die
Kultur des Films [O homem visível ou a cultura do cinema], de 1924, ele parafra-
seia o argumento do livro em termos definitivamente linguísticos: “assim como
as pessoas na tela se mantêm caladas… as coisas são dotadas de uma língua.
Pela primeira vez, talvez, elas falam. O cinema recupera a ‘pequena vida’ das
coisas e a insere no mundo dos símbolos” (Frankfurter Zeitung, 10 de julho de
1927). Uma vez que a linguagem é o meio de redenção (aqui também Kracauer
é fiel ao pensamento messiânico),45 a relação do cinema com a realidade implica
um trabalho duplo de transcrição: no nível da produção, na seleção e constru-
ção do material por meio de técnicas cinematográficas; e no nível da recep-
ção, na atividade interpretativa de espectadores e críticos. A rejeição de Balázs
da linguagem verbal (isto é, escrita), segundo Kracauer um “sério equívoco”
[schlimme Entgleisung], o leva a uma fusão romântica de fisionomia e luta de
classes, uma confusão entre a mera visibilidade e a realidade genuína.
Para Kracauer, a natureza que devolve o olhar do fisionomista da vida mo-
derna não é pré-verbal, tampouco primordial. A “dimensão material” explo-
rada pela câmera “às custas da dimensão intencional” é ainda um espaço social
e histórico, um espaço de maneira nenhuma isento de, ou oposto à, “ideologia”,
como ele mais tarde parece sugerir no epílogo da Teoria do filme. É a paisagem
alheia de um mundo decaído que confronta o espectador com os seus escom-
bros fragmentários e suas novas configurações. Quando Kracauer abandona
as premissas metafísicas sob as quais o mundo decaído nada mais significa do
que “desabrigo transcendental”, ele “calmamente” (ou talvez não tão calma-
mente) “embarca em viagens de aventura” pelas “ruínas esparsas”, que é como
49 Ver, por exemplo, “Kalikowelt” e “Abschied von der Lindenpassage” (Frankfurter Zeitung,
21 dez. 1930), ambos republicados em O ornamento da massa. Na presente edição, → 37
da vida após a queda, no entanto, é sua postura pragmática de comentarista
diário da assim chamada produção mediana. Assim, mesmo as críticas mais
rotineiras dos filmes mais rotineiros, muitas vezes nada além do que sinopses
crescentemente desinteressadas, quando não paródias, das tramas, podem
conter uma ressalva sobre “as belas cenas naturais” ou sobre “tomadas do am-
biente urbano”, sobre estilos de atuação e interpretação, façanhas acrobáticas,
de montaria e dança, ou técnicas cinematográficas bem manejadas. Ainda, na
medida em que Kracauer é tanto um crítico de cinema quanto autor de rese-
nhas de filmes, ele frequentemente comenta a qualidade da exibição enquanto
performance, a experiência teatral mais do que a experiência cinematográfica,
elogiando em alguns casos o acompanhamento musical ou (mais raramente)
o comportamento da plateia.
O tema da “crítica redentora” em Kracauer, para tomar emprestada a ex-
pressão que Habermas usa em relação a Benjamin, está ligado à questão de
que tratarei no restante deste artigo – a questão da autopercepção metodoló-
gica e crítica. Pois penso que a inclinação gnóstico-messiânica dos primeiros
escritos de Kracauer sobre cinema e cultura de massa não apenas motivou o
seu interesse pela cultura de massa como objeto, mas também deu forma a sua
abordagem desse objeto. Essa abordagem é caracterizada por uma maneira
peculiar de entrelaçar experiência e crítica – um modo de interpretação que
é significativo não apenas em comparação com o purismo teórico de Adorno,
→ respectivamente p. 303 e p. 357. Benjamin exalta a força política das “sobreposições surrea-
listas” de Kracauer em sua resenha de Die Angestellten, em Gesammelte Schriften 3, p. 226.
Para a descrição feita por Kracauer de Keaton como um cavaleiro de conto de fadas, ver sua
crítica de Steamboat Bill Jr., em Frankfurter Zeitung, 27 nov. 1928, republicada em Siegfried
Kracauer, Kino: Essays, Studien, Glossen zum Film, p. 183-184. Para sua defesa da “improvisação”
ver, por exemplo, “Zirkus Sarrasani”, Frankfurter Zeitung, 13 nov. 1929; “Stehbars im Süden”,
Frankfurter Zeitung, 8 out. 1929, republicado em Siegfried Kracauer, Strassen in Berlin und
anderswo. Berlim: Arsenal, 1987, 2ª edição, p. 51 (“O valor das cidades é medido pelo número
de lugares que dedicam à improvisação”); “Der Eisenstein-Film”. Frankfurter Zeitung, 5 jun.
1928, republicado em Witte, op. cit., p. 79; e “An der Grenze des Gestern”. Frankfurter Zeitung,
38 12 jul. 1932.
e sua cegueira em relação à cultura de massa, mas também para os impasses
das teorias contemporâneas do cinema e das teorias da pós-modernidade.
Como se sabe, Adorno repreendia Kracauer por sua falta de dialética, uma
acusação que aparece cedo na longa correspondência dos dois, e que aparece
publicada na homenagem ambivalente de Adorno a Kracauer por seu aniver-
sário de 75 anos. A acusação é a de que Kracauer se detém a meio caminho
em seu embate com a antinomia de teoria e experiência. De um lado, Adorno
acusa Kracauer de subjugar o fenômeno da experiência à sua própria subjetivi-
dade crítica: “No olhar que é sugado para o interior do objeto, o lugar da teoria
está sempre já tomado pelo próprio Kracauer”.50 De outro, atribui a “priori-
dade do ótico” nos escritos de Kracauer à sua afinidade psicobiográfica com o
mundo danificado das coisas, uma cumplicidade que, na opinião de Adorno,
não deixa espaço para a “resistência à reificação”. Adorno não chega a afirmar,
mas insinua de forma complexa, que a imersão de Kracauer no mundo deca-
ído é equivalente a uma colaboração com o status quo.51 O que escapa à crítica
de Adorno – e o que parece sintomático nessas duas acusações conflitantes
– é que Kracauer poderia ver-se a si mesmo ao mesmo tempo como parte do
mundo decaído e comprometido com sua transformação.
Diversos ensaios de Kracauer de meados dos anos 1920 em diante exibem
uma mudança notável de perspectiva, em um mesmo texto, sobre o objeto de
cultura de massa em discussão. Assim como em sua leitura programática do
filme de Grune, ainda que com ênfase invertida, esses ensaios tendem a cons-
truir uma distância impessoal por meio de uma reflexão sociológica, de crítica
cultural, ou filosófica, para então mudar, em um determinado ponto, para a
voz da experiência pessoal, para a identificação e a participação. A mudança
é muitas vezes encenada por meio de uma passagem retórica da terceira para
a primeira pessoa, na maioria das vezes do plural ou, em outra variante, até
É difícil imaginar que Adorno pudesse escrever qualquer coisa parecida, apesar
de a crítica precedente de Kracauer não prescindir da perspicácia com a qual
o primeiro teria visto esses fenômenos. A diferença metodológica, nesse caso,
se reduz a uma questão de classe. Ao reconhecer que o comportamento social-
mente estereotipado e alienado faz parte de sua própria experiência, Kracauer
se recusa a deixar que seu privilégio intelectual o engane a respeito de seu status
social real – que, ao contrário de Adorno, era bastante próximo dos trabalhado-
res urbanos cujos hábitos de consumo e lazer estudava. Em sua série de ensaios
a respeito daquela nova classe, Die Angestellen [“Os empregados”, 1929], ele age
como um “observador participante” não apenas por questões de método socio-
lógico, mas porque ele sabia quão pouco o separava do destino daqueles.52
O sujeito que se move entre o exterior e o interior do material não é, evi-
dentemente, unificado, tampouco é o sujeito soberano, idêntico, da filosofia
transcendental e da cultura burguesa. É um sujeito “sem pele”, para modificar
a caracterização de Kracauer oferecida por Adorno; e ele sabe que é fragmen-
tário e precário. Ainda, ele parece ser atraído por situações pelas quais suas
próprias condições de possibilidade são ameaçadas. Tais situações são recor-
rentes nos escritos de Kracauer que retratam sua perambulação pelas ruas e
praças da cidade (como em sua “Memória de uma rua de Paris”), e estão no
centro da outra variação da mudança retórica, a mudança para a segunda
pessoa do singular. Em seu belo ensaio sobre “Tédio” (Nesta edição, p. 351),
por exemplo, o ato de ouvir rádio, e sua imposição sem limites do mundo a
nós, é comparado a “um desses sonhos sonhados com estômago vazio. Uma
bola minúscula rola de bem longe até você, expandindo-se em uma grande
52 Para um exemplo dessa atitude, ver Die Angestellten, em Schriften 1, pp. 221-22. Sobre a con-
cepção de Kracauer do intelectual como empregado de colarinho branco, ver Hans G. Helms,
“Der wunderliche Kracauer”, parte 1, Neues Forum, número 18, jun./jul. 1971, p. 28. 41
tomada e urrando sobre você; você não pode detê-la, escapar dela também
não, permanece aguilhoado como um bonequinho impotente…”. No ensaio
intitulado “O olhar proibido” (Frankfurter Zeitung, 9 de abril 1925), a figura
da boneca (ou marionete) reaparece em um cenário igualmente masoquista e
paranoico e é outra vez introduzido por uma passagem da descrição em ter-
ceira pessoa a um “tu” enfático. A fonte da ansiedade paralisante nesse caso é
a pianella, um mecanismo musical dotado de marionetes dançarinas feéricas,
que é a peça central de um restaurante miserável. O texto, em crescendo, chega
a um ponto no qual o espectador, enfeitiçado pela mágica dos espelhos, luzes
e movimento, é tomado por um choque: “despertas de repente de um sonho;
mas não despertas para a realidade, pois um véu se rompe e agora, naquele
exato momento, o fantasma aparece”. O fantasma surge das figuras dançantes
de um século que passou, mas é uma emanação do olhar proibido que pertence
ao limbo dos mortos não redimidos. “É assim: um encontro ocorre entre seres
que não existem realmente, tu, que és também um fantasma no nada vazio, és
assombrado por figuras amaldiçoadas que te recusam passagem e, ao contrá-
rio, te arrastam para dentro do reino da perda”.53
Tais cruzamentos marcam a passagem do próprio Kracauer pelo “centro
vazio”, para retomar sua caracterização do mapa de Paris. Pois a violação deli-
berada – que beira a aniquilação – do ego burguês não é apenas uma fantasia
da sensibilidade masoquista; é, antes, a própria condição da experiência para
Kracauer. Mesmo na Teoria do filme, Kracauer faz que a descoberta pela câ-
mera do “mundo material com suas correspondências psicofísicas” dependa
da abdicação do sujeito unificado: “somos livres para experienciá-lo [isto é, o
mundo em seu estado de dormência] porque somos fragmentados”.54 O con-
ceito de experiência de Kracauer deve a formulação tanto a Freud quanto a
53 Siegfried Kracauer, Strassen, p. 74. A pianella descrita por Kracauer prefigura estranhamente
um objeto semelhante – e efeitos semelhantes – do filme de Fedor Ozep, Der lebende Leich-
nam, de 1928, que Kracauer resenhou para o Frankfurter Zeitung de 28 de fevereiro de 1929.
54 Idem, Theory of film, p. 300. Antes, no mesmo livro, Kracauer vincula essa receptividade
“fragmentada” à disposição psíquica à melancolia e ao sentimento de distanciamento de si
(v. pp. 16-17). Ver também sua defesa da passividade e da autoanulação como virtudes epis-
42 temológicas em History: The Last Things Before the Last, pp. 84-86.
Simmel e a Scheler, uma vez que ele percebe a fragmentação do sujeito em
termos teológicos e históricos. Também segundo esse ponto de vista, seu con-
ceito de experiência recobre a noção de “aura” de Benjamin, em especial na
sugestão de um encontro consigo mesmo, com a marca do estranhamento,
desestabilizador, que foi explicitado por Gershom Scholem.55
O sujeito da crítica redentora de Kracauer é fragmentado e isolado, isolado
em um sentido transcendental e em seu exílio dos bastiões decadentes da cul-
tura burguesa. Mas nesse estado precário o sujeito não está só, ao menos não
no nível da construção retórica. Assim como o “tu” enfático nas passagens ci-
tadas acima apela ao leitor para que reconheça a experiência, Kracauer recor-
rentemente invoca uma comunidade de contemporâneos que compartilha seu
sentimento de alienação e seu envolvimento com o preliminar – de “Aqueles
que esperam” ao “flâneur genuíno”, ao “vagabundo” que entende a Lindenpas-
sage como uma “passagem pelo mundo burguês” que é ao mesmo tempo crí-
tica e post-mortem (Frankfurter Zeitung, 21 de dezembro de 1930. Na presente
edição, p. 363). E assim como Kracauer incluiu a si entre os consumidores de
cultura de massa (ainda que não de forma consistente, como a polêmica de
gênero em torno de “As pequenas balconistas” mostra), ele também procede
segundo a suposição de que, em princípio, a capacidade de reflexão crítica
estava disponível também para outros – mesmo para aqueles submetidos à
manipulação capitalista. Se, na prática, os consumidores são no geral cúmpli-
ces, os limites entre eles e os intelectuais críticos não são definidos, mas são
escorregadios e relativos. Uma crítica redentora, afinal, tem de ser capaz de se
tornar pública e geral, ou não é verdadeiramente redentora.56
Quero concluir com uma imagem do pensamento [Denkbild] na qual Kra-
cauer evoca a possibilidade de que o consumidor possa se relacionar com
o glamour da superfície de maneira simultaneamente receptiva e reflexiva.
Em artigo do Frankfurter Zeitung intitulado “Berg-und-Talbahn” (“Montanha-
russa”), publicado, significativamente, no dia da queda da Bastilha em 1928,
55 Scholem, “Walter Benjamin and his Angel” (1972), On Jews and Judaism in crisis. Nova York:
Schocken, 1976, p. 236.
56 Idem, “The messianic idea”, op. cit., p. 16. 43
Kracauer descreve uma montanha-russa do Lunapark de Berlim. A fachada
da montanha-russa exibe uma reprodução do horizonte urbano de Nova York:
“Os trabalhadores, o povo miúdo, os empregados que passam sua semana
sendo oprimidos pela cidade, agora triunfam no ar em cima de uma Nova
York superberlinense”. Essa fachada, no entanto, é incompleta; assim que o
carrinho atinge o pico, ele revela um esqueleto nu:
Então essa é Nova York – uma superfície pintada e, por detrás, o Nada? Os casai-
zinhos estão encantados e desencantados ao mesmo tempo. Não que considerem
a pintura grandiosa da cidade uma mera fraude, mas é que eles veem através da
ilusão, e o triunfo sobre as fachadas já não significa grande coisa para eles. Eles
permanecem, hesitantemente, no local em que as coisas exibem sua face dupla;
eles seguram os diminutos arranha-céus em suas mãos abertas; eles estão libera-
dos de um mundo cujo esplendor eles todavia conhecem.57
57 Siegfried Kracauer, Strassen, pp. 35-36. Para uma sequência mais cética a essa imagem do
pensamento [Denkbild], que contrasta os prazeres organizados do Lunapark de Berlim às
aventuras desregradas das foires de Paris, ver o artigo de Kracauer do ano seguinte, “Orga-
44 nisiertes Glück: Zur Wiedereröffnung des Lunaparks”. Frankfurter Zeitung, 8 mai. 1930.
de interpretação. A América, a encarnação da modernidade desencantada,
pode ser superada apenas “quando descobre completamente a si mesma”, isto
é, quando radicaliza suas promessas históricas e as transforma em práticas
sociais e culturais.
Se a tradição do messianismo judaico secular e do gnosticismo secular
pode ser resgatada apesar de suas premissas metafísicas, deve ser nesse sentido:
ela permitiu ao intelectual conscientemente marginal analisar a modernidade
como um projeto já em desintegração, mas ainda incompleto – um projeto
que, ao menos para Kracauer, implicava necessariamente a democratização da
cultura. Impelido por um impulso poderoso de interpretação, ele dirigiu o seu
olhar crítico-redentor às configurações materiais e às transformações da vida
cotidiana, buscando a realidade ali onde ela lhe parecia ser mais contraditória,
ambígua e provisória. Nessa tarefa, ele próprio permaneceu inevitavelmente
no limiar da ambiguidade, se não da ambivalência – entre uma crítica da rei-
ficação fundada em uma teologia da história e o reconhecimento de formas
novas, especificamente modernas, de experiência e de relações de representa-
ção e de recepção. Onde a mensagem não imobiliza o método, ele coloca em
relevo uma modernidade imanente na qual a desintegração e a emancipação
estão inextricavelmente emaranhadas, na qual as contradições entre elas pre-
cisam ser negociadas em termos dos horizontes concretos da linguagem, das
instituições e da esfera pública.
Texto originalmente publicado sob o título “Decentric perspectives: Kracauer’s early writings
on film and mass culture” [Perspectivas descentradas: os primeiros escritos de Kracauer sobre
o filme e a cultura de massa], em New German Critique, número 54, outono de 1991, integral-
mente dedicado a Siegfried Kracauer. Reproduzido aqui por especial deferência da autora. 45
O ornamento da massa
para Theodor W. Adorno
Introdução: geometria natural
49
Garoto e touro
Estudo de um movimento
52
Dois planos
A baía
O quadrado
1 Nas cartas a Kracauer, Walter Benjamin conta como, em Marselha, ambos descobrem essa
rua fantástica, que Kracauer passa a denominar “Lugar de observação”. Ver Walter Benjamin,
Briefe an Siegfried Kracauer. Editado pelo Theodor W. Adorno Archiv, Marbach: Deutsche
54 Schillergesellschaft, 1987, pp. 33 e 44.
de fundo, para cujo acesso faltam escadas magníficas. O cheiro dos restos de
frutos do mar entumesce verde-acinzentado pelas portas abertas; pequenas
lâmpadas vermelhas indicam o caminho. Cenários móveis são improvisados
no espaço de uma olhadela: fileiras de arcobotantes, tábuas com inscrições ará-
bicas, degraus em parafuso. Deixados para trás, são demolidos e reconstruídos
em um novo lugar. A sua disposição é conhecida pelo sonhador.
Um muro anuncia o lugar. Incansável, ele se mantém ereto e veda o labi-
rinto. Um sulco acompanha-o com obediência canina, trotando ao seu lado
a cada passo. Frestas dinamitadas no muro formam pequenos buracos em
largos intervalos, que não permitem a entrada da luz nos espaços atrás. Ou-
tros muros de mesmo comprimento se encurtam como vias férreas, mas esse
não. Os seus pontos de fuga divergem, seja porque o sulco desce, seja porque
a vegetação sobre o muro sobe constantemente. De repente, ao lado do sulco,
a praça se abre.
Ela é um quadrado estampado no emaranhado urbano com uma forma
extraordinária. Blocos de casernas se formam ao seu redor, a parede de fundo
está pintada de vermelho. Uma rampa, partindo da parede, se lança para frente,
para, e é subitamente interrompida. As linhas horizontais foram traçadas com
uma régua, com toda a precisão.
Na praça deserta ocorre o seguinte: a força do quadrado atrai ao seu centro
aquele que foi apanhado. Ele está só, e também não está. Embora observado-
res não sejam visíveis, os raios de seus olhares atentos atravessam as janelas,
os muros. Feixes deles cruzam o espaço e se dividem ao meio. O medo fica
completamente nu; à sua mercê. Nenhum ramalhete de palmeiras, capaz de
cobrir esta nudez, acaricia os cantos. Um tribunal se reúne nos assentos invi-
síveis ao redor do quadrado. É o momento que antecede o pronunciamento do
veredicto, que não é proferido. A seta pontuda da rampa aponta para aquele
que espera, persegue-o, um indicador móvel. Os olhos de retratos famigera-
dos perseguem assim constantemente o contemplador. A parede vermelha de
fundo está separada do plano do quadrado por uma fenda, da qual sobe uma
estrada escondida pela rampa.
Neste emaranhado de vielas pictóricas, ninguém procura o quadrado. Em
uma reflexão meticulosa o seu tamanho teria de ser descrito como moderado. 55
Mas, quando os seus observadores se sentam em suas cadeiras, ele se expande
para os quatro lados do mundo, esmaga as partes miseráveis, brandas do so-
nho: é um quadrado sem compaixão.
56
Análise de um mapa de cidade
Faubourgs e centro
Alguns faubourgs de Paris são asilos gigantescos de todo o tipo de pessoas sim-
ples, de subempregados a trabalhadores, profissionais da indústria e aqueles
considerados perdedores porque outros se consideram a si mesmos como vi-
toriosos. A maneira como têm co-habitado durante séculos afora se expressa
na figura do asilo, que certamente não é burguês, nem tampouco proletário
no sentido de morar em meio a chaminés, casernas e estradas. É ao mesmo
tempo miserável e humano. Sua humanidade consiste não apenas no fato de
que a existência nos faubourgs contém resquícios da vida natural que preen-
chem este modo de vida. Muito mais importante é que esta existência plena
está sob o signo da ruptura.
60
Objetos externos e internos
A fotografia
Assim é como parece uma Diva do cinema. Ela tem 24 anos, está na capa de
uma revista ilustrada, diante do Hotel Excelsior no Lido. Estamos em setem-
bro. Se alguém olhasse através de uma lupa veria, na retícula, os milhões de
minúsculos grãos que formam a diva, as ondas e o hotel. Certamente a imagem
não pretende mostrar uma retícula de grãos, mas a diva de carne e osso no
Lido. A reportagem a chama de demoníaca; nossa diva demoníaca. No entanto,
ela não carece de uma certa expressividade. O penteado à la garçonne, a pose
sedutora da cabeça, os doze cílios à direita e à esquerda – todos os detalhes
bem apreendidos pela câmera fotográfica estão lá rigorosamente dispostos
no espaço, uma imagem sem reparos. Todos a reconhecem encantados, pois
já viram o original na tela de cinema. Ela está tão bem que ninguém pode
1 Das Märchen vom Schlaraffenland [O conto do país da cocanha], Kinder und Hausmärchen,
1812-15. 63
confundi-la com nenhuma outra, mesmo que ela seja talvez a décima segunda
figurante de uma dúzia de Tillergirls.2 Está sonhando diante do Hotel Excelsior
que goza de sua fama; um ser de carne e osso, nossa diva demoníaca, de 24
anos. Estamos em setembro.
Era assim também que parecia a avó? A fotografia de mais de sessenta anos
e já uma fotografia no sentido moderno do termo, retrata-a como uma jovem
de 24 anos. Já que fotografias são semelhantes, esta deveria ser também seme-
lhante. A foto foi cuidadosamente tirada no estúdio de um fotógrafo da corte.
Mas falta a tradição oral, pois da imagem isoladamente não é possível recons-
truir a avó. Os netos sabem que ela morou nos últimos anos num quartinho
estreito com vistas para a parte velha da cidade e que, para divertir as crianças,
colocava soldadinhos de chumbo para dançar em uma placa de vidro.3 De sua
vida os netos conhecem uma história má e duas máximas verídicas que foram
transmitidas um pouco modificadas de uma geração a outra. Que a fotografia
decerto representa a avó, aquele pouco que se conservou dela na memória e
que talvez tenha até sido mesmo esquecido, deve-se acreditar nas palavras dos
pais, que afirmam, por seu lado, ter aprendido da própria mãe. Os depoimen-
tos de testemunhas são incertos. Afinal, pode se dar conta de que a fotografia
não seja da avó, mas de uma amiga parecida. Nenhum de seus contemporâ-
neos está vivo, e a semelhança? Muito pouca, pois o original desapareceu há
muito tempo. A imagem, desvanecida pelo tempo, tem pouco em comum com
os traços impressos na memória a que os netos se submetem, estupefatos, no
esforço de ir ao encontro de semelhante mulher que é reproduzida fragmen-
2 Grupo de dançarinas treinadas à maneira militar. O nome foi cunhado por causa do coreógrafo
de Manchester John Tiller. Surgido no final do século XIX, o grupo chegou à Alemanha sob a
direção de Eric Charell, que foi, de 1924 a 1931, diretor da Grosses Schauspielhaus de Berlim.
Suas produções de revistas e operetas foram precursoras dos musicais atuais.
3 No romance autobiográfico, Georg, que Kracauer concluiu em 1934 durante seu exílio pa-
risiense, ele recorda numa passagem um de seus prazeres de infância junto ao “campo de
batalha de vidro” repleto de soldadinhos de chumbo. “Sua avó”, descreve no texto, “colocava
ocasionalmente [os soldadinhos] sob uma placa de vidro e cobria a parte inferior com seu
dedo de modo a desordenar o tabuleiro”. Ver Siegfried Kracauer, Schriften 7. Frankfurt am
64 Main: Suhrkamp, 1973, p. 251.
tariamente na fotografia. De qualquer modo, a fotografia retrata, digamos, a
avó ou, na realidade, uma jovem qualquer em 1864. A jovem sorri e continua
sorrindo, um sorriso estático que não acessa mais a vida que lhe deu origem.
A semelhança não ajuda mais. Os manequins sorriem do mesmo modo imóvel
e perpétuo, nos salões de cabeleireiro. Os manequins não pertencem à nossa
época, poderiam estar juntamente com seus semelhantes na vitrine de vidro
de um museu com a inscrição: “Trajes de 1864”. Os manequins encontram-se
no museu por causa de seus trajes históricos, do mesmo modo que a avó na
fotografia é um manequim arqueológico que serve para ilustrar o traje da
época. Como as pessoas se vestiam naquela época: coques, cintura bem justa,
crinolina e jaqueta à la zuavo.4 Diante dos olhos dos netos a avó se dissolvia em
detalhes então na moda tornados démodé. Os netos riem dos trajes que, com
o desaparecimento de seus usuários, lembram um campo de batalha – uma
decoração exterior tornada independente. São impiedosos, pois as jovens ves-
tem-se diferentemente hoje. Riem, mas expressam ao mesmo tempo um certo
espanto. Pois, por meio da ornamentação dos trajes, na qual a avó desapareceu,
acreditam tocar um instante do tempo passado, tempo que não mais retorna.
O tempo, na verdade, não é fotografado juntamente com o sorriso e o coque.
Mas, a própria fotografia, assim acreditam, é uma representação do tempo. Se
a fotografia lhes oferecesse apenas a duração, não apreenderiam nada da mera
temporalidade, mas seria o tempo através deles a criar imagens.
“Dos primeiros anos da amizade entre Goethe e Karl August.” – “Karl August
e a eleição dos conjurados de 1787 em Erfurt.” – “Visita de um cidadão da
Boêmia a Iena e Weimar (1818).” – “Recordações de um ginasiano de Weimar
(1825-30).” – “Um relato contemporâneo da cerimônia Goethe em Weimar de
7 de novembro de 1825.” – “A redescoberta do busto de Wieland de Ludwig
Klauer.” – “Projeto para um monumento nacional em homenagem a Goethe
4 Jaqueta feminina em moda por volta de 1860, inspirada nos uniformes dos Zuavos, tropa
colonial francesa composta de berberes e europeus recrutados na Argélia em 1830-31. 65
em Weimar”. O herbário destas e de outras investigações faz parte de Os Anais
da Associação Goethe, cuja série não está destinada programaticamente à con-
clusão. Ridicularizar a filologia sobre Goethe, cujas contribuições são reuni-
das nos anais, seria inútil, tanto mais que ela mesma diz adeus a este mundo
que reúne; entretanto o pseudoesplendor das numerosas obras monumentais
dedicadas à figura, ao ser e à personalidade etc. de Goethe mal começou a
ser questionado. O princípio da pesquisa filológica sobre a obra de Goethe é
aquele do pensamento historista5, que surgiu mais ou menos na mesma época
da técnica fotográfica moderna. Em resumo, os seus representantes pensam
poder esclarecer de modo puro qualquer fenômeno a partir de sua gênese e
acreditam apreender também a realidade histórica ao reconstituir sem lacunas
a série de acontecimentos na sua sucessão temporal. A fotografia oferece uma
continuidade espacial, o historismo quer preencher a continuidade temporal.
De acordo com o historismo, o espelhamento completo de uma sequência in-
tratemporal contém simultaneamente o sentido de conteúdo que ocorreu no
mesmo período. Se na representação de Goethe faltam os elementos interme-
diários da eleição dos conjurados de Erfurt ou as recordações do ginasiano de
Weimar, padece, portanto, de uma falta de realidade. Para o historismo, trata-se
de fazer uma fotografia do tempo. Esta fotografia do tempo corresponderia
a um filme gigantesco que representasse universalmente os acontecimentos
relacionados.6
5 Quando este ensaio foi publicado em 1927, no Frankfurter Zeitung, Kracauer referia-se ex-
plicitamente ao nome de Wilhelm Dilthey como representante do pensamento historista.
6 Kracauer se refere a esta passagem na introdução a History: The Last Things Before the Last
[História: as últimas coisas antes da última], quando descreve sua surpresa ao perceber a
continuidade entre seu trabalho sobre cinema e o trabalho sobre história: “De modo fulgu-
rante tornaram-se claros para mim os muitos paralelos existentes entre meios fotográficos,
realidade histórica e câmera-realidade. Há pouco tempo deparei com meu ensaio sobre
‘Fotografia’ e fiquei inteiramente surpreso ao constatar que comparei o historismo com a
fotografia já neste artigo dos anos 1920”. Op. cit. Nova York: Oxford University Press, 1969,
pp. 3-4. Versão alemã: Siegfried Kracauer. Geschichte: Vor den letzten Dingen. Schriften 4.
66 Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1971, p. 15.
3
7 Herói da mitologia alemã, protetor fiel e conselheiro, Eckart adverte os Nibelungos diante
do Rüdegers Mark a respeito da negociação com os Hunos. Kracauer associa aqui Eckart
e a fidelidade tal qual é manifesta no conto de Ludwig Tieck, Tannenhäuser e o fiel Eckart
(1799) e no texto de Goethe O fiel Eckart (1811).
8 Johann Peter Eckermann (1792-1854), secretário particular de Goethe, em conversa com o
escritor em 18 de abril de 1827, referida em Gespräche mit Goethe in den letzten Jahren seines
68 Lebens. Wiesbaden: Insel Verlag, 1955, p. 578.
mostra grande e revela que se coloca, com seu espírito livre, além da natureza
e age em relação a ela à altura de seus próprios fins. A luz dupla é certamente
uma violência e você pode até dizer que é contra a natureza. Mas se é contra a
natureza, digo ao mesmo tempo que é mais elevada que a natureza, digo tam-
bém que é o gesto sutil do mestre que mostra de modo genial que a arte não
está inteiramente subordinada à necessidade natural e que possui também suas
próprias leis”. Um pintor retratista que se submeta inteiramente à “necessidade
natural” criará, no melhor dos casos, fotografias. Em uma época determinada,
que começou com o Renascimento e que talvez hoje tenha se esgotado, a “obra
de arte” se atém certamente à natureza, cuja especificidade se revelou mais e
mais a esta época; mas através da natureza, ela se dirigia aos “fins elevados”.
Trata-se do processo do conhecimento no material das cores e contornos, e
quanto maior ele é, mais se aproxima da transparência das últimas imagens
da memória, onde se junta aos traços da “história”. Um homem retratado por
Trübner pediu ao artista que não se esquecesse das rugas e marcas de seu
rosto. Trübner apontou para fora da janela e lhe disse. “Lá fora mora um fotó-
grafo. Se você quer marcas e rugas, vou chamá-lo e ele lhe fará tudo; eu pinto
a história…”9 Para que a história seja representada, deve-se destruir a conexão
meramente superficial oferecida pela fotografia. Enquanto na obra de arte o
significado do objeto torna-se fenômeno espacial, na fotografia o fenômeno es-
pacial de um objeto é seu significado. Ambos os fenômenos, o “natural” e o do
objeto do conhecimento, não se correspondem. Na obra de arte se suprime o
primeiro em favor do segundo, reunindo ao mesmo tempo a semelhança alme-
jada pela fotografia. A semelhança se relaciona à aparência exterior do objeto
que não se revela imediatamente como se mostra ao conhecimento: é apenas
a transparência do objeto que é mediada pela obra de arte. É comparável a um
espelho mágico que não reflete o indivíduo em questão tal qual aparece, mas
tal como este deseja ser ou como é fundamentalmente. A obra de arte se de-
sintegra também com o tempo; mas o seu significado aflora de seus elementos
decompostos enquanto que a fotografia acumula os elementos.
9 Wilhelm Trübner (1851-1917), pintor “naturalista” alemão, mais conhecido pela sua obra ini-
cial, sobretudo pelos retratos “realistas” inspirados em Courbet. 69
Até a metade do século XIX, o método diapositivo foi frequentemente prati-
cado pelos pintores. A técnica deste período de transição não era ainda inteira-
mente despersonalizada e a ele correspondia um ambiente espacial no qual as
pistas de significado eram ainda encontráveis. Com a crescente progressão da
técnica os objetos são esvaziados de significado e, ao mesmo tempo, a fotografia
artística perde sua razão de ser: não alcança o nível da obra de arte, somente a
sua imitação. Os retratos de criança são de Zumbusch10 e Monet, o padrinho
das impressões fotográficas de paisagens. As composições que não vão além
de uma hábil imitação de maneiras conhecidas malogram justamente na re-
presentação do resto de natureza ainda possível, em certa medida, à técnica
mais avançada. Os pintores modernos compuseram seus quadros a partir de
fragmentos fotográficos para sublinhar a justaposição de fenômenos reificados,
dispersos nas relações espaciais. Esta intenção artística se contrapõe à da foto-
grafia artística. Ela não procura elaborar um objeto subordinado devido a téc-
nica fotográfica, mas revestir, servindo-se do estilo, o fato meramente técnico.
O fotógrafo artístico é um artista diletante que imita uma maneira artística,
furtando-lhe seu conteúdo, em vez de apoderar-se do que não tem conteúdo.
Do mesmo modo a ginástica rítmica pretende abranger a alma, da qual não
sabe nada. Esta, como a fotografia, tende a confiscar a vida nas suas instâncias
elevadas, para extrair um procedimento que é meramente elevado quando en-
contra o objeto para sua técnica. Os fotógrafos artísticos agem no sentido da-
quelas forças sociais que se interessam pela aparência do espírito, pois temem
sua verdadeira essência; esta poderia explodir a base que lhe fundamenta, cuja
aparência serve como transfiguração. Vale, portanto, o esforço em descobrir as
estreitas relações existentes entre ordem social e fotografia artística.
10 Ludwig von Zumbusch (1861-1927) foi pintor alemão de telas “primitivas” (naïve), retratos
70 e paisagens em pastel.
memória sobrevive à ausência de memória por causa do tempo. A fotografia
que não visa esta imagem da memória deve ser colocada em relação, por sua
natureza, ao momento contingente de seu nascimento, “a essência do cinema é
em certa medida a essência do tempo”,11 observa E. A. Dupont, em seu livro so-
bre o cinema comercial, que tem como tema o ambiente cotidiano fotografável
(citado segundo Rudolf Harms: Philosophie des Films). Mas, a fotografia é uma
função do tempo fluente, sua significação objetiva, no entanto, se transforma ao
pertencer ao âmbito do presente ou a alguma fase do passado.
A fotografia atual que reproduz um fenômeno familiar à consciência con-
temporânea oferece, em limitada proporção, uma passagem à vida do original.
Ela revela cada vez uma exterioridade que, conforme a duração de seu domí-
nio, é um meio de expressão tão universalmente conhecido como a língua. O
contemporâneo acredita ver na fotografia a própria diva do cinema, não ape-
nas pelo seu corte de cabelo à la garçonne ou pela pose de sua cabeça. Ele não
a mediria bem, sem dúvida, a partir da fotografia isolada. Mas, felizmente, a
diva está entre os vivos, e a página título da revista ilustrada cumpre a tarefa de
recordar sua realidade corpórea. O que significa que a fotografia atual cumpre
o papel de mediadora, é um signo ótico da diva que se trata de reconhecer. Se
sua característica decisiva é ser sobrenatural, deve-se duvidar ao final. O sobre-
natural nela mesma é, de qualquer modo, menos uma mensagem da fotografia
que a impressão do espectador de cinema que viu o original na tela. Reconhe-
cem-na como representação do sobrenatural, apenas isto. Não por causa de sua
semelhança, mas apesar de sua semelhança, denuncia a imagem do sobrenatu-
ral. Entretanto, ela pertence à imagem ainda oscilante da memória da diva, a
qual a semelhança fotográfica não se refere. A imagem de memória produzida
pela contemplação de nossa querida diva penetra dentro da parede da seme-
lhança na fotografia e lhe empresta então alguma transparência.
11 Ewald André Dupont, Wie ein Film geschrieben wird und wie man ihn verwertet. Berlim:
Reinhold Kühn, 1919; citado em Rudolf Harms, Philosophie des Films. Leipzig: Felix Meiner,
1926. Kracauer chegou a escrever uma resenha sobre o livro em 10 de julho de 1927, no Frank-
furter Zeitung. Ver a parte Bücher vom Film em Siegfried Kracauer, seção Kleine Schriften
zum Film. Schriften 6.1. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2004, pp. 370-74. 71
Quando a fotografia envelhece, a relação imediata com o original não é
mais possível. O corpo de um falecido parece menor do que sua figura viva. A
velha foto dá também a impressão de apequenamento do presente. A vida lhe
foi retirada, cuja manifestação espacial encobre a mera configuração do espaço.
De forma invertida se relacionam imagens da memória com a fotografia, que
engrandecem o monograma da vida recordada. A fotografia é o sedimento de-
positado pelo monograma e ano após ano diminui seu valor de signo. O teor
de verdade do original se retém na sua história; a fotografia retém o resíduo
do qual a história se despediu.
Quando a avó da fotografia não é mais encontrável, a imagem tomada do
álbum de família se desfaz necessariamente em seus detalhes. Do penteado
à la garçonne da diva, o olhar pode se dirigir ao seu caráter sobrenatural; do
nada da avó, o olhar se volta ao coque, fixando-se nos detalhes da moda. À
ligação temporal da fotografia corresponde aquela da moda. Já que não pos-
sui outro sentido que não seja o daquele invólucro humano atual, a moda
moderna é translúcida, a antiga obsoleta. O corte de cintura justa do vestido
sai da fotografia e entra no nosso tempo, comparável a um edifício senhorial
de outros tempos evacuado para demolição, pois o centro foi transposto para
outra região da cidade. Nestes edifícios se instalam geralmente os membros
das classes inferiores. Apenas os trajes muito antigos alcançam a beleza das
ruínas, já que perderam toda ligação com o presente. Trajes usados há pouco
tempo adquirem um efeito cômico. Os netos se divertiam com a crinolina de
1864 usada pela avó, chegam até mesmo a pensar que as pernas das moças
modernas desapareceriam debaixo dela. O passado recente que se pretende
ainda vivo está mais morto que o mais remoto cujo significado mudou com
o tempo. O cômico da crinolina explica-se pela impotência de sua pretensão.
Sobre a foto, o traje da avó é reconhecido como um resquício rejeitado que
pretende continuar a se afirmar. É reduzido na soma de seus detalhes a um
cadáver com ar de grandeza, como se ainda houvesse vida nele. Mesmo a pai-
sagem e qualquer objeto na fotografia é como um traje. Pois o que é conservado
na imagem não são os traços que a consciência quer dizer. A representação
apodera-se das conexões das quais esta consciência se originou, englobando-a,
72 portanto, sem querer admitir os elementos que são atrofiados. Quanto mais a
consciência se priva das ligações naturais mais se reduz a natureza. Ao fundo
das velhas gravuras que possuem a fidelidade das fotografias, mostram-se as
colinas renanas como montanhas. Com o desenvolvimento técnico, elas foram
reduzidas a diminutas colinas, e a mania de grandeza daquelas antigas vistas
mostra-se um pouco ridícula.
O fantasma é cômico e terrível ao mesmo tempo. O riso não é a única res-
posta às velhas fotografias. Representa simplesmente o passado, mas o detrito
foi presente uma vez. A avó foi um ser humano, ao qual pertenciam o coque,
o espartilho e a alta cadeira estilo renascença com colunas contorcidas. Um
peso morto que não foi jogado fora, mas que se leva sem problemas. Hoje a
imagem vagueia pelo presente como o fantasma de uma castelã. Os fantas-
mas perambulam somente por onde se cometeu uma má ação. A fotografia
torna-se um fantasma porque a boneca vestida com os trajes de época foi viva
uma vez. Através da imagem sabemos que todos estes elementos estranhos e
enganadores foram incluídos na vida como acessórios evidentes. Estes elemen-
tos, cuja falta de transparência se comprova nas velhas fotografias, estavam
antes indissoluvelmente ligados aos traços de transparência. Esta associação
terrível que persiste na fotografia provoca calafrio. Um calafrio similar é sus-
citado drasticamente pelas cenas dos filmes do pré-guerra que são projetados
em Paris no cinema de vanguarda Studio des Ursulines, que mostram como
os traços acumulados nas imagens da memória estão impregnados de uma
realidade que desapareceu há muito tempo. A repetição de velhas modinhas,
ou a leitura de cartas que foram escritas no passado evocam, como a imagem
fotográfica, uma unidade que se desintegrou. Esta realidade fantasmal é irre-
dimível. É constituída de partes no espaço, cuja composição é muito pouco
necessária, as quais poderiam ser imaginadas em qualquer outra disposição.
Estas coisas foram coladas em nós como nossa própria pele, como está colado
em nós ainda hoje o que nos possui. Nada disto nos contém, e a fotografia
reúne fragmentos em um nada. Quando a avó estava diante da objetiva, estava
por um segundo no contínuo espacial que se apresentava à objetiva. No lugar
da avó, é aquele instante que foi eternizado. Quem observa velhas fotografias
é tomado por calafrios, já que estas não tornam evidentes o conhecimento do
original, mas a configuração espacial de um instante; não é o ser humano que 73
emerge de sua fotografia, mas a soma do que se pode extrair dele. Soma que
o aniquila enquanto o reproduz: o ser humano não existiria se coincidisse com
a fotografia. Um jornal ilustrado publicou recentemente fotografias da juven-
tude e da velhice de personalidades conhecidas, sob o título: “O rosto do ho-
mem célebre. Assim eram antes, assim são hoje!”. Marx quando jovem e Marx
como dirigente político, Hindenburg como tenente e nosso Hindenburg. As
fotografias são justapostas como quadros estatísticos e não se pode supor a
imagem mais antiga da mais recente nem reconstituir a mais recente da mais
antiga. Deve-se aceitar, de boa-fé e lealmente, o fato que o quadro de inven-
tário ótico está intrarelacionado. Os traços do ser humano são conservados
apenas na sua “história”.
6
Os jornais diários ilustram cada vez mais os seus textos e o que seria uma revista
sem material iconográfico? A prova cabal da enorme importância da fotografia
nos dias atuais está no crescimento das revistas ilustradas. Elas reúnem, jun-
tamente com a diva do cinema, todos aqueles fenômenos que são acessíveis à
câmera fotográfica e ao público. Os bebês são do interesse das mães, os rapazes
são atraídos pelo par de belas pernas femininas. E as jovens adoram contemplar
as celebridades do esporte e do palco no convés de um transatlântico em dire-
ção a países longínquos. Em países longínquos ocorrem lutas de interesses. Mas
o interesse não está voltado para elas e sim para as cidades, para as catástrofes
naturais, os heróis do espírito e os políticos. Em Genebra reúne-se o Congresso
da Sociedade das Nações. O que serve para mostrar os senhores Stresemann
e Briand12 em entrevista diante da entrada do hotel. As novas modas devem
ser também divulgadas, senão, no verão, as garotas não saberão quem são. As
beldades da moda participam dos acontecimentos mundanos com os jovens
senhores; nos países longínquos há tremores de terra, sr. Stresemann está sen-
tado sob as palmeiras de um terraço, para as mães há nossos pequenos.
12 Aristide Briand (1862-1932), ministro das relações exteriores da França (1925-32), e Gustav
74 Stresemann (1878-1929), ministro das relações exteriores da Alemanha (1923-29).
A intenção das revistas ilustradas é reproduzir completamente o mundo
acessível ao aparelho fotográfico; registram espacialmente o clichê das pes-
soas, situações e acontecimentos em todas as perspectivas possíveis. A seu
procedimento corresponde o cinejornal da semana; uma soma de fotografias,
enquanto que para o cinema autêntico, a fotografia é utilizada apenas como
meio. Nunca houve uma época tão bem informada sobre si mesma, se ser bem
informado significa possuir uma imagem das coisas iguais a elas no sentido
fotográfico. A maior parte das revistas ilustradas se refere a objetos que exis-
tem no original, enquanto fotografias da atualidade. As cópias são, portanto,
fundamentalmente, signos que se referem a um original que poderia ser re-
conhecido. A diva sobrenatural. Mas, na realidade, a referência ao original
não é de modo algum a finalidade desta razão fotográfico-jornalística. Se a
fotografia se oferece à memória como suporte, é a memória que deve deter-
minar a escolha. Mas esta torrente de fotografias varre todos os seus diques. O
assalto de coleções de imagens é de tal modo violento que talvez ameace des-
truir os traços decisivos à consciência. O mesmo destino afeta as obras de arte
por meio de sua reprodução. Para a multiplicação do original vale a sentença:
companheiro de prisão, companheiro de forca; no lugar de aparecer atrás das
reproduções, a obra tende a desaparecer na sua multiplicidade e a continuar
sua vida enquanto fotografia artística. Nas revistas ilustradas o público vê o
mundo que as revistas impedem realmente de perceber. O contínuo espacial
segundo a perspectiva da câmera fotográfica recobre o fenômeno espacial do
objeto conhecido, e sua semelhança desfigura os contornos de sua “história”.
Nunca uma época foi tão pouco informada sobre si mesma. Nas mãos da
sociedade dominante a invenção das revistas ilustradas é um dos mais pode-
rosos instrumentos de greve contra o conhecimento. Para o sucesso de uma
tal greve se usa em primeiro lugar o arranjo pitoresco das imagens. A sua
justaposição exclui sistematicamente a conexão que se oferece à consciência.
A “ideia-imagem” cancela a ideia, a nevasca de fotografias trai a indiferença
em relação ao que as coisas querem dizer. Não deveria ser assim; mas para as
revistas ilustradas americanas em todo caso, imitadas de todos os modos nos
outros países, o mundo identifica-se com a quintessência das fotografias. Esta
identificação não ocorre por acaso. Pois o próprio mundo adquiriu um “rosto 75
fotográfico”, pode ser fotografado, pois este se funde no contínuo espacial que
se forma com os instantâneos. Pode depender apenas de uma fração de se-
gundo, o que é suficiente para a exposição do objeto, para que um desportista
se torne célebre, segundo os fotógrafos sob o comando das revistas ilustradas.
As figuras de belas garotas e de jovens rapazes são também assunto para a câ-
mera fotográfica. Que ela devora o mundo é um sinal do medo da morte. A
recordação da morte, que está presente em pensamento em toda imagem da
memória, as fotografias gostariam de banir pela sua própria acumulação. Nas
revistas ilustradas, o mundo torna o presente fotografável e o presente foto-
grafado torna-se inteiramente eternizado. Parece ter extirpado a morte, mas
na realidade a fotografia a abandonou.
13 Johann Jacob Bachofen (1815-1887). “Oknos der Seilflechter”, em Versuch über die Gräbersym-
bolik der Alten, Gesammelte Werke, volume 4. Basel: Benno Schwabe, 1954, p. 359. Conhecido
por sua penitência no Hades, o mítico Ócnos foi condenado a enrolar uma corda de palha
76 que era constantemente devorada por um burro.
medida em que a consciência começa se interiorizar e com isto desaparece
aquela “identidade entre homem e natureza” (Marx, A ideologia alemã), a ima-
gem assume, passo a passo, uma significação derivada, imaterial. Mas mesmo
se esta significação progredisse, segundo a expressão de Bachofen, para uma
definição do “psíquico e do espiritual”, está de tal modo ligada à imagem que
não seria possível se separar dela. Por longos períodos da história representa-
ções figurativas conservaram-se como símbolos. Tanto que o homem necessita
deles, ele se encontra em um estado de dependência prática das condições na-
turais, dependência que condiciona a expressão visível e tangível da consciên-
cia. Apenas com o crescente domínio sobre a natureza a imagem perde a sua
força simbólica. A consciência, destacando-se da natureza e contrapondo-se a
ela, não é mais ingenuamente forjada no invólucro mitológico: a consciência
pensa por conceitos que, certamente, podem ser utilizados com uma intenção
totalmente mitológica. Em determinadas épocas a imagem conserva ainda sua
força: a representação simbólica torna-se assim uma alegoria. “A alegoria re-
presenta simplesmente um conceito geral ou uma ideia que é diferente dela; a
representação simbólica, ao contrário, é a ideia mesma encarnada e tornada
tangível aos sentidos”,14 afirma Creuzer em sua definição da diferença entre os
dois tipos de imagem; sobre o plano simbólico, o pensamento está contido na
imagem, no plano alegórico, o pensamento conserva e utiliza a imagem, como
se a consciência vacilasse em rejeitar este invólucro. O esquematismo é tosco.
Mas é suficiente para tornar visível a mudança nas representações, a saída da
consciência do seu estado de sujeição à natureza. Quanto mais decididamente,
no curso do processo histórico, a consciência se liberta de tal sujeição, tanto
mais puro se lhe apresenta o seu fundamento natural. Pois o que se quer dizer
não se apresenta mais em imagens, mas o que se quer dizer emana da natu-
reza e a perpassa. A pintura europeia dos últimos séculos reproduziu, cres-
centemente, uma natureza despojada de significados simbólicos e alegóricos.
Não por isso, certamente, os traços humanos refigurados são desprovidos de
significado. Ainda na época dos velhos daguerreótipos a consciência está de
14 Georg Friedrich Creuzer (1771-1858). Symbolik und Mythologie der alten Völker, besonders
der Griechen, volume 4. Leipzig: Carl Wilhelm Leske, 1836-43, p. 540. 77
tal modo integrada à natureza que os rostos representam conteúdos insepa-
ráveis da vida natural. Já que a natureza se transforma em perfeita sincronia
com o estado de consciência daquele momento, o fundamento natural vazio
de significado faz sua aparição no mesmo tempo que a fotografia moderna.
Também a fotografia, não diversamente dos outros modos de representação
anteriores, está subordinada a um grau determinado de desenvolvimento da
vida prático-material. É o processo de produção capitalista que a engendra.
A mera natureza que aparece na fotografia vive sua vida inteiramente na rea
lidade da sociedade engendrada por este processo. Pode-se imaginar uma
sociedade presa de uma natureza muda, não possuindo nenhum significado
por mais abstrato que seja seu silêncio. Os contornos de uma tal sociedade
aparecem nas revistas ilustradas. Se esta tivesse alguma consistência, a eman-
cipação da consciência teria como consequência seu próprio extermínio; a
natureza não apreendida pela consciência senta-se à mesa que esta abando-
nou. Mas esta sociedade não possui nenhuma consistência, oferecendo assim
à consciência emancipada uma chance incomparável. Não imiscuível às con-
dições naturais, como nunca ocorreu antes, a consciência pode experimentar
sobre elas seu próprio poder. A guinada em relação à fotografia representa o
jogo de azar da história.
80
A viagem e a dança
1 “Mais les vrais voyageurs sont ceux-là seuls qui partent/ Pour partir; coeurs légers, semblables aux
ballons”. Do poema “A viagem” [Le Voyage], em As flores do mal [Les Fleurs du Mal] (1861). [ed.
bras.: Poesia e prosa, tradução de Ivan Junqueira, Rio de Janeiro: Nova Aguiar, 1995, p. 213]
2 Johann Wolfgang Goethe, Italienische Reise. Gedenkausgabe der Werke, Briefe und Gespräche
ed. Ernst Beutler, volume 11. Zürich: Artemis, 1950, pp. 7-613 [ed. bras.: Viagem à Itália, 1786-
1788. Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Companhia das Letras, 1999]. 81
não corresponde ao escopo da alma, mas à busca pura e simples de um novo
lugar, não de uma paisagem específica, mas muito mais da estranheza de seu
rosto. Daí a preferência pelo exótico, pela compulsão em descobrir algo que
seja inteiramente diferente, não porque este tenha sido anteriormente imagi-
nado como sonho. Quanto mais o mundo, graças ao automóvel, ao cinema,
ao avião, se encolhe, tanto mais também o conceito de exótico torna-se rela-
tivo; no lugar de se ater, como ainda hoje talvez, às pirâmides e ao Chifre de
ouro, caracteriza então qualquer lugar apreciado do mundo, na medida em
que parece incomum a outro lugar apreciado do mundo. Esta relativização do
exótico segue pari passu seu banimento da realidade – de tal modo que cedo
ou tarde as inclinações românticas terão que se agitar para erigir cercas nas
reservas naturais, nos locais pitorescos isolados, onde se pode esperar por vi-
vências que hoje nem mesmo Calcutá pode mais oferecer. O que logo será o
caso. Graças às vantagens da civilização, são praticamente ínfimas as partes da
superfície terrestre que se podem chamar ainda de terra incógnita, os homens
se sentem em casa por toda parte, em seu país ou em qualquer lugar – ou não se
sentem em casa em lugar nenhum. Eis o porquê, em sentido estrito, da viagem
estar tão à la mode atualmente, não serve mais para as pessoas fruírem a sen-
sação de espaços estranhos – um hotel é igual ao outro e a natureza ao fundo
é conhecida do leitor de revistas ilustradas – mas é empreendida para o seu
próprio bem. A ênfase cai sobre o desligamento enquanto tal que a viagem
oferece e não sobre o interesse que se procura neste ou noutro lugar; sua sig-
nificação repousa no fato de permitir o consumo do five o’ clock-tea num lugar
casualmente menos habitual do que no espaço dos negócios cotidianos. Cada
vez mais a viagem torna-se a ocasião incomparável para se estar em qualquer
lugar, ou mesmo lá onde se está habitualmente; cumpre sua função decidida-
mente como transformação espacial, como troca transitória de estadia.
3 Referência a Ein Walzertraum, opereta em três atos de Felix Doermann e Jacobson, com
82 música de Oskar Straus (1870-1954).
nuciosamente regrada da Française; e terminou também tudo o que conota
aquela cerimoniosidade dançante: o flerte amável, o gracioso encontro nesse
meio sensual – a velha geração é a única ainda a conjurá-la. A dança da socie-
dade moderna, alienada da trama de convenções que rege as camadas médias,
tende a representar pura e simplesmente o ritmo; a dança não mais exprime os
conteúdos determinados no tempo, o tempo tornou-se o verdadeiro conteúdo
da dança. Se, nos seus inícios, a dança era um ato de culto, hoje é um culto do
movimento; se anteriormente o ritmo era uma declaração psicoerótica, hoje o
ritmo satisfaz a si mesmo, cancelando em si todo significado. Um tempo que
não almeja nada a não ser a si mesmo: eis a intenção secreta do jazz, sua ori-
gem é vizinha da escultura negra. Esforça-se em levar a melodia à extinção e
de tornar pouco a pouco as cadências mais longas, assinalando o declínio do
sentido, porque nela se desvela e aperfeiçoa a mecanização já presente na me-
lodia. Aqui se consuma a passagem da significação designada pelo movimento
em movimento que se limita a se autodesignar, é o que comprova igualmente o
uso de figuras devidamente recortadas pelos professores de dança parisienses.
Seus resultados não são determinados por uma lei objetiva de conteúdo, a qual
a música também se adequaria, mas nascem livremente dos diferentes impul-
sos de movimento que orientam a música. Uma individuação, se assim se quer,
que não visa de modo algum ao individual. Com efeito, o jazz, não impor-
tando quão vital seja seu comportamento, abandona ele mesmo o vital, pura
e simplesmente; os tipos de andamento inaugurados por ela, e que tendem
visivelmente não ser mais que desprovidos de significação, não são mais que
simples representações rítmicas das vivências temporais, para as quais o sin-
copado é a última felicidade. Certamente, a música, enquanto acontecimento
temporal, não pode prescindir do ritmo; são, portanto, duas coisas distintas
para ela: aprender o essencial pelo ritmo ou encontrar no ritmo o inessencial.
Seu estilo desportista hoje testemunha o fato de que tem como meta, além do
movimento disciplinado, nada de essencialmente significativo.
A viagem e a dança possuem, portanto, uma inquietante tendência a se
formalizar, não são mais acontecimentos que se desenvolvem igualmente no
espaço e no tempo, mas estampam a metamorfose do espaço e do tempo em
acontecimento. Se fosse diferente, seus conteúdos não se deixariam determi- 83
nar em medida crescente pela moda. Esta extermina o valor próprio das coisas,
sobre as quais estende seu domínio, ao submeter a forma dos fenômenos às
transformações periódicas que não são fundadas nas relações entre as pró-
prias coisas. Sua imposição caprichosa deforma o mundo; teria um caráter
simplesmente destruidor se não fosse, ao mesmo tempo, a confirmação, em
um domínio por si mesmo ordinário, da íntima ligação humana aos objetos
eles mesmos transformados em signos. Que a criação e a escolha das estações
balneárias atualmente revelam em boa parte o arbitrário da moda, esta não faz
mais que trazer uma prova suplementar da crescente indiferença em relação
ao fim mesmo da viagem. Deste modo, a tirania arbitrária da moda permite
também a conclusão, em relação à dança de salão, que os movimentos favori-
tos da estação não são necessariamente ricos de conteúdo.
Certamente, enquanto instituições formalizadas, a viagem e a dança estão,
já faz um tempo, enormemente comprometidas. A qual lugar, a qual passe de
dança se dá preferência, estas questões estão ligadas sem dúvida, como aquela
do penteado, às instruções deste estranho e dessacralizado anônimo, na socie-
dade que dá o tom sobre a cegueira dos caprichos e consome com indulgência
o espaço e o tempo. Essa parece ser a exigência. A aventura do movimento
enquanto tal, eis o que provoca entusiasmo; o escorregar de um lado para ou-
tro dos espaços e tempos normais em direção ao que não foi ainda mesurado
excita a paixão; a vagabundagem através das dimensões vale como ideal. Esta
vida dupla espaciotemporal mal poderia ser desejada com tamanha intensi-
dade se não fosse a desfiguração da vida real.
O homem real, que não renunciou a se tornar uma simples figura de um fun-
cionamento mecanizado, se opõe à dissolução no espaço e no tempo. Está lá
presente, sem dúvida, neste espaço, mas sem se identificar ou sem se abismar
nele, se expande além das latitudes e longitudes até uma infinitude supraespa-
cial que não sofre nenhuma confusão com a infinitude do espaço astronômico.
E o tempo, muito menos, lhe abarca como percurso vivido ou que é medido
pelo relógio; mais do que isso, está apto à eternidade que é diferente do tempo
infinitamente prolongado. Vive também no mais aquém, que nele aparece e
84 em que ele está – ele vive no mais aquém não isoladamente, sabendo do cará-
ter condicional e inacabado de quem já experimentou a morte. De qual outra
maneira tudo o que transcorre no tempo e no espaço poderia atingir um tal
nível de realidade, senão através das relações do homem com o incondicionado,
mais além do espaço e acima do tempo? Enquanto existente, este homem real
é um cidadão de dois mundos propriamente dito ou mais precisamente: existe
em ambos os mundos – envolvido na vida espaciotemporal não sendo subsu-
mido a esta, se orienta em direção ao mais além, no qual todo o “aqui” encon-
traria sua significação e sua conclusão. A necessidade do “aqui” obter uma tal
complementação se manifesta na obra de arte. Na medida em que a arte con-
figura o fenomênico, a arte lhe dispõe de uma forma que lhe permite dotar de
uma significação exterior a ele, relacionando-se a um sentido que transcende
espaciotemporalmente e eleva o efêmero à criação. O homem real se comporta
de maneira concreta frente a frente a este sentido, que na obra de arte se une
ao existente em uma unidade estética. Preso ao aqui e carente de mais-além,
ele se conduz, literalmente, a uma dupla-existência que não se deixa cindir em
duas posições a ocupar sucessivamente, mas ao contrário, refuta toda laceração
na medida em que participa de ambos os reinos em virtude de uma tensão in-
terior. Sofre a tragédia porque aspira a realizar aqui o incondicional, conhece
a reconciliação porque a imagem da perfeição se reflete nele. Está constante-
mente ao mesmo tempo no espaço e no limiar do infinito supraespacial, no
fluxo do tempo e no reflexo da eternidade, e esta dualidade de sua existência
forma uma unidade, pois seu ser é justamente a tensão entre aqui e acolá. Quer
viaje, quer dance, jamais viagem e dança são para ele acontecimentos que lhe
conferem sentido. Recebe o seu conteúdo e a sua forma, como toda atividade
daquele outro reino ao qual se dirige.
As potências que conduzem à mecanização não transcendem nem o espaço
nem o tempo. Vivem da graça de um intelecto que não conhece a graça. Na
medida em que crê poder experimentar o mundo com base em pressupostos
mecanicistas, se libera em relação ao mais além e leva a realidade a um es-
tado de desvanecimento pelo homem que se situa mais além do espaço e do
tempo. Este intelecto tornado autônomo engendra a técnica e conduz a uma
racionalização da vida e submete a vida à técnica. Na medida em que pode
realizar um tal nivelamento radical do elemento vital apenas a preço de re- 85
nunciar a determinação espiritual do homem, e no momento em que está tão
liso e brilhante como um automóvel, deve remover as camadas intermediárias
da psique, não se pode atribuir nenhum senso real a esta atividade mecânica
sob esta figura mecânica que criou. A técnica torna-se fim em si mesma que
dá origem a um mundo que, dito de modo vulgar, não deseja mais do que a
tecnicização de todos os acontecimentos. Por quê? Não se sabe. O mundo sabe
apenas que, graças ao intelecto, o espaço e o tempo podem ser conquistados e
se orgulha desta dominação mecânica. Rádio, telefotografia e outras invenções
do gênero da fantasia racional servem todos com ausência de fins a um único
fim: a pervertida onipresença em todas as dimensões calculáveis. A expansão
do tráfego pela terra, ar e mar representa um evento extremo, os recordes de
velocidade constituem um fato excepcional. Certamente, pois não resta nada
mais a desejar para um homem, apenas portador do intelecto, feliz superação
das barreiras espaciotemporais que confirma sua soberania racional. Quanto
mais tenta, no entanto, lidar com as coisas com auxílio da matemática, mais
se torna ele mesmo um dado matemático no espaço e no tempo. A sua exis-
tência se decompõe em uma série de atividades impostas pela organização, e
nada corresponde mais à mecanização porque ele, por assim dizer, se reduz a
um ponto, a um membro do aparato intelectual. A coação para se degenerar
nesta direção já pesa gravemente sobre os homens. Encontram-se possuídos
de forças num cotidiano que os manobra a serviço dos excessos técnicos e,
apesar ou talvez em decorrência da justificação humanitária do taylorismo,
tornam-se, em vez de senhores das máquinas, maquinizados.
Nesta situação dominada pelas categorias mecanicistas, de onde vem à
superfície os rostos das figuras de Georg Grosz, tornou-se mais difícil aos
homens conduzir uma dupla existência que seja verdadeiramente tal. Se estes
aspiram estabelecer uma relação com a realidade, entretanto, em vez disso, co-
lidem contra o muro daquelas categorias e são atirados na arena espaciotem-
poral. Gostariam de experimentar o infinito e são pontos no espaço, gostariam
de se relacionar com o eterno e são engolidos pelo tempo que flui. O acesso às
esferas almejadas está bloqueado, sua exigência de realidade pode se exprimir
apenas de modo impróprio.
86
Os homens civilizados, por assim dizer, encontram hoje na viagem e na dança
um substituto para aquela esfera que os nega. Como são prisioneiros do sis-
tema de coordenadas espaciotemporais e não podem se colocar além das for-
mas de contemplação da contemplação das formas, o mais-além torna-se em
parte para eles apenas uma mudança de sua posição no espaço e no tempo.
Para assegurar o seu direito de cidadania nos dois mundos eles, reduzidos a
pontos no espaço e no tempo, devem encontrar-se alternativamente neste e
naquele lugar e mover-se ora com esta ora com aquela velocidade. A viagem e
a dança adquiriram um significado teológico para as figuras presas nas garras
da mecanização, são possibilidades essenciais de viver, mesmo que de maneira
imprópria, aquela dupla existência constitutiva da realidade. Como viajantes
distanciam-se do lugar habitual; e chegam a um outro lugar desconhecido, é o
meio que lhes resta para mostrar a si mesmos que transcendem as regiões do
mais-aquém às quais pertencem. Realizam a experiência da infinitude supra-
espacial, através da viagem em um espaço geográfico indefinido, que não visa
a nenhuma região particular, mas que logo esgota o seu significado no simples
fato de mudar de lugar. Como já foi dito, o entrecho da realidade se decompõe
em uma sucessão, em uma sequência. Enquanto se dirigem para o incondi-
cionado não se encontram apenas no espaço, mas vivem no espaço; as figuras
da atividade mecanizada, ao contrário, encontram-se ou em seus lugares ha-
bituais ou alhures, o estar aqui ou acolá não são nunca simultâneos, a indis-
solúvel duplicidade cinde-se em dois acontecimentos separados. O mesmo se
sucede com a vivência do tempo. A dança é para os homens violentados pelo
intelecto a possibilidade de abarcar o eterno; a dupla existência torna-se para
eles um duplo comportamento no próprio tempo; é somente no efêmero que
apreendem o não-efêmero. Pois igualmente decisivo, no interior de um meio
temporal, é esta transformação formal, este sair fora do tempo da atividade
profana para passar para um outro tempo; é o ritmo em si e não aquele indi-
cado pela dança. E também neste meio as figuras reduzidas a pontos podem
de um só fôlego, por assim dizer, se dar conta da dupla existência, como fazem
os homens realmente existentes. Extirpa-se a tensão que o eterno assume no
temporal, não só ao mesmo tempo aqui e acolá, mas aqui e sucessivamente
alhures – aqui de um modo qualquer. A imagem deformada da eternidade lhes 87
resulta apenas como sucessão de uma reunião do conselho de administração
e de uma exibição na dança.
A maneira como são realizadas hoje as superviagens espaciotemporais con-
firma à saciedade esta verdade: seu usufruto é de fato uma desfiguração da
existência real, reclusa nela mesma. O que se espera e o que se retém da viagem
e da dança: a liberação da gravidade terrestre, a possibilidade de uma relação
estética em relação à fadiga organizada – o que corresponde a uma elevação
além do efêmero e limitado da qual o homem real pode experimentar em re-
lação ao eterno e ao incondicionado. Só que as figuras não percebem o mais
aquém em sua limitação, mas se livram de todo condicionamento cotidiano
no interior mesmo da limitação do aqui. O mais aquém equivale para eles à
atividade corrente do escritório, compreende apenas o achatamento cotidiano
no espaço e no tempo, mas não o humano puro e simplesmente (logo, a viagem
e a dança). E quando nos intervalos refutam sua fixidez espaciotemporal, lhes
parece que o mais aquém já lhes conduz ao mais-além, pois lhes falta a palavra
para isso. Quando viajam, não importando qual a destinação, as amarras se
rompem, imaginam que a infinitude se estende diante deles; já no trem, eles se
transportam para outro lugar e o mundo, onde desembarcam, é para eles um
novo mundo. Do mesmo modo, aquele que dança também possui o ritmo da
eternidade; o contraste entre o tempo, no qual ele paira e o tempo que lhe ex-
termina, é sua própria felicidade em um âmbito impróprio, e a dança mesma
pode se reduzir a um só passo, pois o essencial é apenas a dança.
89
O ornamento da massa
hölderlin 1
O lugar que uma época ocupa no processo histórico pode ser determinado
de modo muito mais pertinente a partir da análise de suas discretas mani-
festações de superfície do que dos juízos da época sobre si mesma. Estes, en-
quanto expressão de tendências do tempo, não representam um testemunho
conclusivo para a constituição conjunta da época. Aquelas, em razão de sua
natureza inconsciente, garantem um acesso imediato ao conteúdo fundamen-
tal do existente. Inversamente, ao seu conhecimento está ligada sua interpre-
tação. O conteúdo fundamental de uma época e os seus impulsos desprezados
se iluminam reciprocamente.
1 “Die Linien des Lebens sind verschieden,/ Wie Wege sind, und wie der Berge Grenzen./ Was
hier wir sind, kann dort ein Gott ergänzen/ Mit Harmonien und ewigen Lohn und Frieden.”
“Para Zimmer” [An Zimmern]. Friedrich Hölderlin, Sämtliche Werke, Berlim, 1923. 91
2
2 Tillergirls: companhia de revista americana, que veio em turnê à Europa pela primeira vez
92 em 1929 e se apresentou em Berlim.
construção e nada além disso. A construção do edifício depende do formato
e do número das pedras. É a massa que é empregada aqui. Tão-somente en-
quanto parte da massa – não enquanto indivíduos, que creem serem formados
a partir do seu interior – é que os homens são fragmentos de uma figura.
O ornamento é fim em si mesmo. Também o ballet de épocas passadas
usava ornamentos que se movimentavam tal qual um caleidoscópio. Mas, can-
celado o seu significado ritual, eles permaneciam como a figuração plástica
da vida erótica, que esta vida erótica produzia a partir de si e determinava os
seus traços. Os movimentos de massa das girls, em compensação, situam-se
no vazio; é um sistema de linhas que perdeu todo o seu significado erótico,
mas, todavia, indica o local no qual o erótico se manifesta. Assim também as
constelações vivas nos estádios não possuem o significado das evoluções mi-
litares. Não importa a regularidade com que estas sempre surjam, sua regu-
laridade era considerada como meio para um fim; assim a marcha de parada
nascia dos sentimentos patrióticos que, por sua vez, eram despertados nos
soldados e nos súditos. As constelações não têm nenhum significado além de
si mesmas, e a massa, sobre a qual elas são visíveis, não é uma unidade ética
como uma companhia de soldados. Além disso, não se pode também des-
crever essas figuras como acessório decorativo da disciplina de ginástica. As
unidades de girls treinam muito mais para produzir um número imenso de
linhas paralelas e, para obter um desenho de proporções impensadas, seria
desejável treinar massas humanas cada vez mais amplas. O resultado final é o
ornamento, para cuja clausura [Verschlossenheit] os elementos portadores de
substância se esvaziam.
O ornamento não é pensado pelas massas que o realizam. É absolutamente
linear: nenhuma linha emergindo das partículas da massa prevalece sobre a fi-
gura inteira. Nisto assemelha-se às fotografias aéreas de paisagens e de cidades,
nas quais não emerge do interior dos elementos dados, mas aparece sobre estes.
Os atores também não calculam o quadro cênico em sua totalidade, embora
participem conscientemente da sua construção e, no caso dos bailarinos do
ballet, a figura ainda está sujeita à influência dos seus atores. Quanto mais a
sua relação é meramente linear, tanto mais a figuração se subtrai à imanência
consciente daqueles que a constituem. Com isso, a figura não é atingida por 93
um olhar que poderia ser mais decisivo, mas ninguém a veria, se diante do
ornamento não se sentasse uma massa de espectadores que se comportasse
esteticamente em relação a ele e não representasse ninguém.
O ornamento, separado de seus portadores, deve ser compreendido racio-
nalmente. Ele se compõe de ângulos e círculos, tal como aparecem nos manuais
de geometria euclidiana; incorpora também componentes elementares da fí-
sica, tais como ondas e espirais. Mas as excrescências de formas orgânicas e as
emanações permanecem excluídas da vida psíquica. As tillergirls não podem
mais ser recompostas em criaturas humanas e jamais os exercícios livres da
massa são assumidos pelos corpos totalmente conservados, cujas contorções
se negam à compreensão racional. Os braços, as coxas e as outras partes do
corpo são os menores elementos constitutivos da composição.
A estrutura do ornamento da massa reflete aquela estrutura de toda a situa
ção contemporânea. Visto que o princípio do processo de produção capitalista
não se originou puramente da natureza, deve destruir os organismos naturais
que representam um instrumento ou uma resistência. Comunidade popular
e personalidade se dissolvem quando o que se exige é a calculabilidade; tão-
somente como partícula da massa é que o indivíduo pode, sem atrito, esca-
lar tabelas e servir máquinas. Indiferente à diversidade da forma, o sistema a
partir de si leva ao cancelamento de todas as particularidades nacionais e à
fabricação de massa operária que, em todos os pontos da terra, possa ser em-
pregada de modo uniforme. O processo de produção capitalista é fim em si
mesmo tal como o ornamento da massa. As mercadorias que produz não são,
na verdade, produtos para serem possuídos, mas somente para ampliarem o
lucro, que se quer ilimitado. O seu crescimento está ligado àquele da empresa.
O produtor não trabalha para um ganho pessoal, do qual pode usufruir só
em escala mínima – na América o lucro excedente é destinado a instituições
culturais como bibliotecas, universidades etc. onde se cultivam intelectuais
que, com sua atividade futura, restituirão o capital antecipado com juros sobre
juros [Zinseszinsen] – o produtor trabalha para engrandecer a empresa. Que
produza valores não ocorre em razão do valor. Se antes, até certo ponto, o tra-
balho servia para produzir e consumir esses valores, eles passaram a ter efeitos
94 secundários a serviço do processo produtivo. As atividades que nele refluem
alienaram-se dos seus conteúdos substanciais. O processo de produção segue
publicamente o seu curso secreto. Cada qual executa a sua pequena ação na
esteira de montagem, exercita uma função parcial, sem conhecer o todo. Simi-
larmente ao desenho do estádio, a organização situa-se acima da massa, uma
figura monstruosa, cujo criador a subtrai do campo de visão daqueles que a
realizam e que mal a têm como observadores. – Ela é planejada segundo prin-
cípios racionais, dos quais o sistema taylorista extrai somente a última conse-
quência. Na fábrica, as pernas das tillergirls correspondem às mãos. Para além
das capacidades manuais busca-se calcular também as disposições psíquicas
por meio de testes de aptidões psicotécnicas. O ornamento da massa é o reflexo
estético da racionalidade aspirada pelo sistema econômico dominante.
As pessoas cultas – o que nem todas chegam a ser – julgaram negativamente
o ingresso das tillergirls e das imagens nos estádios. Aquilo que entretém a
multidão é considerado como pura distração da multidão. Contrariamente à
sua opinião, o prazer estético nos movimentos ornamentais da massa é legítimo.
Na verdade, eles pertencem às raras criações da época que dão forma a um
material já existente. A massa organizada nesses movimentos vem das fábricas
e dos escritórios; o princípio formal, segundo o qual é moldada, determina-a
também na realidade. Se do horizonte do nosso mundo são subtraídos conteú
dos significativos da realidade, a arte deve necessariamente trabalhar com os
que restaram, pois uma representação estética é de fato tanto mais real quanto
menos renuncia àquela realidade que se situa fora da esfera estética. A despeito
do escasso valor que sempre se atribui ao ornamento da massa, segundo o seu
grau de realidade, ele se situa acima das produções artísticas, que cultivam os
sentimentos nobres obsoletos em formas passadas; também não quer ter em
si nenhum significado ulterior.
103
Sobre livros de sucesso e seu público
1 Friedrich Burschell escreveu sobre Stefan Zweig; Efrain Frisch sobre Remarque; Erich Fran-
zen sobre Jack London; Siegfried Kracauer sobre Frank Thiess e a obra Dois homens [Zwei
Menschen] de Richard Voss.
2 Cf. o ensaio de Kracauer “A biografia como forma de arte da nova burguesia”, neste volume. 105
cá-lo do material e examiná-lo separadamente. Para a apresentação deste ponto
de vista serão utilizados os resultados obtidos pelas análises publicadas.
3 Kracauer faz aqui um jogo de palavras entre Wünschelrute [varinha mágica] e Wünsche
[desejos] [N.T.]
4 Referência à Editora Ullstein, que publicou o romance de Remarque Im Westen nichts Neues
[Nada de novo no front]. A obra foi publicada em inglês no mesmo ano e, em 1930, foi filmada
por Lewis Milestone [ed. bras.: Nada de novo no front. Trad. Helen Rumjanek. Porto Alegre:
LP&M, s.d.]. Ver a resenha de Kracauer “Im Westen nichts Neues: Zum Remarque-Tonfilm”
[Nada de novo no front: Do filme sonoro sobre Remarque]. Schriften, volume 2, pp. 456-59.
5 Áugures eram sacerdotes da antiga Roma que, diante de ações militares e políticas impor-
tantes do Estado, indagavam a vontade dos deuses. Para tanto, eles observavam, dentre outros,
o voo dos pássaros ou o comportamento das galinhas ao se alimentarem no cerco sagrado. 107
encorajam e eles mesmos tentam produzir bom tempo. Eu conheço um livro
cujo sucesso subsequente se deveu ao empurrão que recebeu na largada. O seu
lançamento estava previsto para logo após as eleições de setembro, antes das
quais ele já estava pronto para ser distribuído. Mas, diante dos resultados da
eleição, o livro foi retido e algumas partes, que aparentemente poderiam ofen-
der o sentimento das massas – claramente influenciadas pelo nacionalismo –,
foram rapidamente modificadas. Estes fatos não só confirmam mais uma vez
que o número de edições não é um critério de valor, como também indicam
os verdadeiros motivos que fazem de um livro um grande sucesso. Ele é o si-
nal de um experimento sociológico bem-sucedido, a prova de que, mais uma vez,
uma mistura de elementos obteve êxito ao corresponder ao gosto da massa
de leitores anônimos. O sucesso de um livro particular pode ser explicado so-
mente pela necessidade desses leitores, que, de modo voraz, devoram certos
componentes ao mesmo tempo que recusam decididamente outros, mas não
pelas qualidades da própria obra – ou melhor, só na medida em que satisfazem
aquelas necessidades. E caso essas qualidades ainda contivessem traços reais
de substância, não é na qualidade de conteúdos que estaria assegurada a fama
do livro, mas muito mais na capacidade de respostas a tendências difundidas
no espaço social. O sucesso de um livro como mercadoria depende em última
instância da sua habilidade de satisfazer a demanda de amplas camadas sociais
de consumidores. Uma demanda é muito geral e muito constante para se dei-
xar influenciar em sua direção por preferências privadas ou por mera sugestão.
Ela deve repousar sobre as condições sociais dos consumidores.
Qual é a posição social do público que suporta o sucesso das edições? De
maneira alguma o sucesso está fundado em uma clientela dentro do prole-
tariado. O consumidor proletário lê principalmente aquilo cujo conteúdo já
recebeu um carimbo de aprovação ou então lê o que a burguesia já leu. Nos
dias de hoje ainda é a burguesia que concede celebridade e riqueza indiscutí-
vel para alguns autores. Mas ela não é mais, como antes, uma classe relativa-
mente fechada em si mesma, mas compreende uma pluralidade de camadas
sociais que se estendem da alta burguesia ao proletariado. Estas camadas se
formaram nos últimos cinquenta anos e ainda se encontram no meio de um
108 processo de transformação radical. O que se sabe delas? O fato de que não
sabemos nada ou quase nada sobre elas explica facilmente porque é impossí-
vel verificar as chances de sucesso de um livro já de antemão. Nós possuímos
uma espécie de instinto de classe, mas este também é falho. Como resultado,
toda criação literária que alcança a aceitação do mercado assemelha-se a um
bilhete premiado de loteria.
6 Siegfried Kracauer, Die Angestellten: Aus dem neuesten Deutschland [Os empregados: da
mais nova Alemanha], foi publicado primeiramente em partes no Frankfurter Zeitungen, em
1929, e posteriormente como livro (idem, ibidem, Frankfurt: Frankfurter Societäts-Druckerei,
1930). Republicado em Schriften, volume 1, pp. 205-304. 109
As transformações estruturais acima sugeridas, diga-se de passagem, deram
origem a tendências que por enquanto ainda precisam permanecer dissimu-
ladas, pois contradizem os conceitos tradicionais. Trata-se aqui daquelas ten-
dências que correspondem à nossa situação efetiva, e que em toda parte são
difíceis de ser realizadas, mas que não coincidem exatamente com os princí-
pios fundamentais da empresa privada. Assim, por exemplo, o direito público
invade cada vez mais a esfera individual e conquista novas competências; a
ideia de obrigação social adquiriu na verdade contornos tão sólidos, que não
pode mais ser suprimida; urbanismo e planejamento do território transcen-
dem o egoísmo individual; a coletivização da vida está aumentando. No en-
tanto, até o momento, essas correntes – que levam em conta a realidade social
e as necessidades materiais – estão longe de determinar o sistema no qual se
desenvolvem. Elas, em certa medida, se ocultam sob um incógnito e, mesmo
que se materializem de fato, não se afirmam por aquilo que são, pois a cons-
ciência dominante está habituada a outros esquemas.
Haveria lugar disponível para essas tendências, pois muitos dos conteúdos
de consciência da burguesia foram tão desmantelados quanto os seus portado-
res. Privados de seus fundamentos econômicos e sociais, eles não podem se
manter por muito mais tempo. Penso no desaparecimento gradual da cons-
ciência de classe nos inúmeros círculos de funcionários e de empregados; no
abandono de atitudes individualistas, perceptível com frequência na prática;
mas, sobretudo, na falta de ilusão dos homens que dirigem a economia. Um
grande desencantamento se instalou precisamente nos cargos mais altos e as
ideias, que uma vez serviram para impulsionar a economia, são agora apenas
ornamentos retóricos para discursos em dias de festa. A renúncia aos conteú-
dos, agora destronados pelas circunstâncias atuais, é um indício de que aque-
les ameaçados de empobrecimento espiritual têm certo sentido de realismo.
Contudo, somente poucos olham para além do seu próprio umbigo. A maioria
reverencia na arte, na ciência, na política etc. os ideais que há muito percebe-
ram no seu próprio domínio.
O desmascaramento de algumas ideologias (ainda não claramente ad-
mitidas) é um indício do enfraquecimento da consciência burguesa? O mu-
110 tismo que se instalou nas camadas mais altas contribui, em todo caso, para a
radicalização da geração mais nova. Não se pode viver só de pão, muito menos
quando não se tem nenhum. Mesmo os radicais de direita se emanciparam
em parte do modo de pensar burguês, pois acreditam que ele não lhes serve
mais. Mas esta é uma emancipação em nome de forças irracionais, capazes de
estabelecer a todo momento um compromisso com os poderes burgueses. A
maioria da classe média e dos intelectuais, no entanto, não participa desse le-
vante mítico, que com razão lhe parece uma regressão. Ao invés de se deixar
coibir pelo vazio espiritual – que domina nas esferas mais altas – para fugir do
espaço fechado da consciência burguesa, ela busca ao contrário conservar esta
consciência por todos os meios. Menos por crença positiva do que por medo –
medo de se afogar no proletariado, de ser desclassificada espiritualmente e de
perder o contato com os verdadeiros conteúdos culturais. Contudo, onde en-
contrar reforço para a superestrutura ameaçada? Ela dispensa diferentes apoios
materiais e as novas camadas – que se consideram parte da burguesia – não
são os seus suportes naturais. Elas nem mesmo têm uma ideia do lugar a que
pertencem, e apenas defendem privilégios, talvez tradições. Surge a pergunta
importante: como é que se fortalecem em sua posição? Uma vez que nas cir-
cunstâncias atuais não podem simplesmente adotar o inventário da consciên
cia burguesa como tal, precisam recorrer a toda espécie de alternativas para
assegurar a sua antiga posição de poder espiritual/intelectual.
“As análises de livros muito lidos”, escrevi em meu ensaio sobre Frank Thiess,
“são um artifício para a investigação de camadas sociais, cuja estrutura não
pode ser determinada pela abordagem direta.”7 De fato, em nossas investiga-
ções anteriores, obtivemos informações decisivas sobre o comportamento das
8 Siegfried Kracauer, “Richard Voss Zwei Menschen”. Frankfurter Zeitung, 1 mar. 1931. Publi-
cado em Schriften, volume 5, parte 2, pp. 287-94.
9 Friedrich Burschell, “Stefan Zweigs Novellen” [As novelas de Stefan Zweig]. Frankfurter Zei-
112 tung, 15 mar. 1931.
Em relação à prosa de Stefan Zweig também se constata que algumas de suas
frases exercem “um efeito irresistível sobre muitos escritores contemporâneos,
que querem manter um idealismo empalidecido a qualquer preço…” 10 Espe-
cialmente nas camadas mais altas, que exigem estilo e distância. O tom faz a
música e Zweig – tal como podemos ver em suas novelas – encontra o tom
exato, que ressoa nos círculos mais cultivados, preocupados com o bom gosto,
a cultura e a educação. A classe média e especialmente as massas empobrecidas
exigem, não a distância, pela qual se paga caro, mas o coração, que é gratuito.
O sentimento é tudo quando todo o resto falta. Ele humaniza a tragédia sem
extingui-la e obscurece a crítica, que poderia se tornar perigosa para a con-
servação de conteúdos envelhecidos. Para a ausência de tensão Voss trata de
encontrar uma compensação em um modo de representação que, em grande
parte, é o responsável pela ressonância do livro. Ele está repleto daquela es-
pécie de sentimentalidade (destituída de qualquer forma literária) que atrai
as massas anônimas. Remarque alcança, portanto, os seus efeitos porque sabe
como comover. “Esta qualidade comovente” explica o ensaio consagrado ao
seu romance, “aponta […] sociologicamente para aquelas classes sobre as quais
exerce um efeito mais forte e que determinam o sucesso do livro. É a expressão
de uma posição intermediária entre aceitação e rebelião – uma posição que
corresponde à atitude da classe média”.11
Com frequência, os conteúdos que precisam ser estabilizados não são ex-
plicitamente invocados, mas procura-se preservá-los de modo indireto fu-
gindo para um lugar distante qualquer para evitar entrar em conflito com eles.
Se não são tocados, eles não se esfacelam com facilidade. Eles são colocados
sob um sino de vidro e seus patrões saem para um passeio de carro. Um dos
destinos mais tentadores desses passeios foi e permanece sendo o erotismo. A
propósito de Thiess, que o procura com frequência, há a seguinte observação:
“Eu creio que muitos leitores são atraídos pela atmosfera sensual que ele uti-
liza em abundância e contra a qual não se pode fazer a menor objeção, uma
10 Idem, ibidem
11 Ephraim Frisch, “Erich Maria Remarque: Im Westen nichts Neues” [Erich Maria Remarque:
Nada de novo no front]. Frankfurter Zeitung, 5 abr. 1931. 113
vez que para a representação da atitude fundamental ela é completamente
apropriada ao que se destina”.12 Do mesmo modo, as aventuras geográficas
são populares, pois em parte elas desviam a atenção do espiritual/intelectual.
Dentre os autores que entregam estas aventuras a domicílio está Jack London.
A análise de sua obra mostra, contudo, que no seu caso aquilo que é decisivo
é a íntima ligação com a natureza. Ela é, como provam os livros de sucesso, o
grande refúgio pelo qual aspiram as massas de leitores. Se eles confiassem na
razão [ratio], que não coincide com a natureza, então as construções de suas
consciências poderiam estar ameaçadas; no retorno para a natureza, por sua
vez, todos os conteúdos problemáticos permanecem intocados. Seja a natureza
trágica ou demoníaca – não importa: em ambos os casos ela é um doce retiro
para todos aqueles que não desejam ser despertados. “Os heróis das novelas
de Zweig são Amok.13 Eles são loucos, enfeitiçados ou encantados, não res-
ponsáveis por seus atos, mas através destes desejam com certeza demonstrar
alguma coisa, algo indeterminado, misterioso…”14 A natureza nas obras de
Jack London é até mesmo muito bem-intencionada em relação ao homem, é
uma natureza ideal, a qual ele pode ouvir despreocupado. Ele já sobreviveu a
todos os perigos possíveis – “mas não há nenhum demônio que o persegue e,
tal como os vagabundos de Hamsun, o conduz à beira do abismo; ele segue
apenas a sua ‘natureza’.” 15 Insondável, a natureza é finalmente o limite de toda
justificação, é muda. Uma vantagem que justamente garante o sucesso. Pois
os atuais detentores de grandes sucessos de livros, guiados pelos seus instin-
tos de autopreservação, não desejam nada mais intensamente que o precipitar
de questões embaraçosas no abismo do silêncio. Uma vez que – com ou sem
razão – temem a resposta, insistem para que sejam levantadas barreiras para
bloquear o avanço do conhecimento. A sua exigência chama-se: indiferença. É
12 Siegfried Kracauer, “Bemerkungen zu Frank Thiess” [Anotações sobre Frank Thiess], op. cit.,
p. 317.
13 No original, amokläufer, do verbo Amoklaufen, que significa perder o controle, perder as
estribeiras. Jogo de palavras com o título do romance Amok, de Zweig. Leipzig: Insel Verlag,
1922.
14 Burschell, “Stefan Zweig Novellen”, loc. cit.
114 15 Erich Franzen, “Jack London”. Frankfurter Zeitung, 12 abr. 1931.
ela que sem dúvida alguma constitui a base do sucesso de Remarque dentre a
pequena burguesia internacional. Na análise do romance se diz: “A única dis-
cussão sobre a guerra em seu livro evidencia aquela […] indiferença que se
limita a constatar que ‘O melhor mesmo é não ter guerra alguma’. Quando aqui
ou ali se manifesta indignação, ela se volta contra a autoridade subalterna, e o
ódio é dirigido contra aqueles patriotas à paisana automotivados – por exem-
plo, contra um professor que é censurado de modo violento por encorajar os
menos dotados a se alistarem voluntariamente”.16
As nossas análises fornecem, portanto, um quadro bastante abrangente
dessas estruturas da consciência nas novas estratos da burguesia. Estas últimas
estão engajadas em tentar amparar certos conteúdos que, hoje em dia, não têm
mais suporte suficiente. Usando de todos os meios possíveis, elas querem evi-
tar a confrontação de ideais absolutos com a realidade social contemporânea,
e se esquivam desta acareação fugindo em todas as direções e para todos os
esconderijos. Elas preferem residir no seio da natureza, onde podem renun-
ciar à linguagem e se defender contra a razão [ratio], que visa à destruição das
instituições, e formas sobreviventes de consciência, mitológicas.
Aquele que deseja modificar alguma coisa precisa estar informado sobre aquilo
que deve ser modificado. O valor dos artigos publicados em nossa série reside
exatamente em sua habilidade de facilitar a intervenção na realidade social.17
16 Idem, ibidem
17 Este parágrafo final do artigo, que Kracauer omite na sua edição de 1963 da obra Das Orna-
ment der Masse, foi subsequentemente reinserido por Karsten Witte na reedição póstuma
do livro, em 1977. 115
A biografia como forma de arte da nova burguesia
1 Emil Ludwig (1881-1948) autor alemão conhecido sobretudo pelas suas numerosas biografias,
dentre elas Napoleon. Berlim: Rowohlt, 1926 [ed. bras.: Napoleão. Trad. Mário de Sá. Porto
Alegre: Globo, 1938, 4.a ed.]; Lincoln. Berlim: Rowohlt, 1930 [ed. bras.: Lincoln. Porto Alegre:
Globo, 1953]; Goethe. Stuttgart: Cotta, 1920 [ed. bras.: Goethe, 2 vols. Trad. Gilberto Miranda
(Erico Veríssimo). Porto Alegre: Globo, 1940]. 117
os heróis atuais, em grande parte, provêm da história, e suas biografias são
publicadas pelas editoras de literatura, em massa, para a massa.
Na Europa ocidental já se instalou há certo tempo a tendência de conside-
rar a descrição biográfica, sem mais nem menos, como uma moda passageira.
Ela não é uma moda, assim como tampouco o eram os romances de guerra.
As suas motivações independem da moda e devem muito mais ser buscadas
nos acontecimentos da história mundial dos últimos quinze anos. Emprego a
expressão “história mundial” com grande relutância, pois ela facilmente induz
a um estado de excitação que só seria apropriado no momento em que a his-
tória do mundo se tornasse realmente uma história do mundo todo. No rádio,
por exemplo, no qual se ouve o anúncio repetido com frequência “Aqui, Paris”
ou “Aqui, Londres”, a mera menção destas cidades cosmopolitas tem o mesmo
efeito de uma cachaça ordinária. Não se pode negar, no entanto, que a guerra
mundial, juntamente com as transformações políticas e sociais que se lhe se-
guiram, e que, por fim, as novas invenções tecnológicas realmente abalaram
e revolucionaram o cotidiano dos assim denominados povos civilizados. No
domínio aqui tratado esse desenvolvimento teve o mesmo efeito que a teoria
da relatividade na física. Se, com Einstein, o nosso sistema espaciotemporal se
tornou um conceito limite, também o sujeito soberano se torna um conceito-
limite graças ao ensino tangível da história. No passado mais recente todo
homem foi forçado a experienciar a sua própria insignificância – assim como
a dos outros – de modo muito eficaz, para ainda crer no poder soberano de
qualquer indivíduo. É precisamente este poder soberano, contudo, que cons-
titui a premissa da literatura burguesa produzida nos anos que antecederam
a guerra. A estrutura fechada da forma do romance tradicional reflete aquela
unidade, suposta, da personalidade, e a sua problemática é sempre individual.
Atualmente o artista criativo perdeu de uma vez por todas a confiança no sig-
nificado objetivo de qualquer sistema individual de referência. Com o desa-
parecimento dessa rede de coordenadas fixas, todas as curvas aí graficamente
representadas também perderam a sua forma representativa. O escritor não
só não pode mais apelar para o seu eu, como tampouco o mundo lhe oferece
ainda um suporte, pois estas duas estruturas determinam uma a outra. O seu
118 eu é relativizado, e o mundo, com os seus conteúdos e as suas figuras, gira se-
gundo uma órbita impenetrável. Não por acaso fala-se da “crise” do romance.
Esta reside no fato de que o modelo de composição do romance tradicional
tornou-se inválido com a abolição dos contornos do indivíduo e seus anta-
gonistas. (Com isso não se afirma, contudo, que o romance, enquanto gênero
artístico, se tornou histórico. Poderia se imaginar que ele ressurge em uma
nova forma, adaptada a esse mundo confuso, e que esta própria confusão ad-
quire forma épica.)
Em um mundo incompreensível, privado de contornos, a marcha da His-
tória torna-se elemento constitutivo. A mesma história que ocasionou isso
emerge como uma terra firme no mar dos amorfos e dos que não são passí-
veis de receber forma. Para o escritor contemporâneo que não pode e não quer
representá-la de modo direto como o faz o historiador, a História se condensa
na vida dos seus heróis visíveis. Estes não se tornam sujeitos de biografias gra-
ças ao culto dos heróis, mas pela necessidade de uma forma literária legítima.
De fato, o curso de uma vida historicamente significativa parece conter todos
os elementos constitutivos que, nas circunstâncias atuais, tornam possível a
criação de uma obra em prosa. A existência que ela capta é a cristalização da
obra da história, cuja inviolabilidade é incontestável. E não está a objetividade
da representação garantida pelo significado histórico do modelo original? Nele
os biógrafos literários creem finalmente ter encontrado o suporte que em vão
procuraram em outros lugares, o sistema de relações válido, que os desobriga
do arbítrio subjetivo. O seu caráter obrigatório é claramente uma consequên-
cia de sua natureza factual. A personagem principal da referida biografia viveu
realmente e todos os aspectos desta existência são documentados. O núcleo da
obra em prosa, proposto primeiramente pela ficção narrativa, é novamente re-
cuperado por um destino historicamente reconhecido. Este destino também é,
ao mesmo tempo, a garantia da composição. Toda figura histórica já contém a
sua própria forma: ela começa em um momento específico, envolve-se em um
conflito com o mundo, adquire contornos e substância, recolhe-se na velhice e
desaparece. Deste modo, o autor não é obrigado a vir à baila com um esquema
formal individual, mas já recebe um pronto em suas mãos, que lhe é tão obri-
gatório quanto para um outro qualquer. Isto o atrai não tanto pela comodidade
quanto pelo fato de aliviar a sua consciência; pressupondo-se que não se trata 119
daquelas biografias produzidas em série por razões econômicas. Pois se a bio-
grafia pode concorrer hoje com o romance é somente porque – diferentemente
deste, que carece de toda e qualquer referência – utiliza conteúdos que deter-
minam a sua forma. A moral da biografia é que, no caos das práticas artísticas
atuais, ela representa a única forma de prosa aparentemente necessária.
Uma forma de prosa da burguesia estabelecida, que obviamente é coa-
gida a rejeitar todos os conhecimentos e problemas formais que colocam sua
existência em perigo. A burguesia sente na carne o poder da História e, sem
dúvida, percebe que o indivíduo se tornou anônimo. Contudo, deste discer-
nimento, que se impõe a ela com a força das experiências fisionômicas, não
tira nenhuma conclusão capaz de esclarecer a situação atual. No interesse da
autopreservação, a burguesia evita confrontar-se com essa situação. A elite
literária da nova burguesia não se empenha seriamente em penetrar a dialé-
tica materialista, nem se expõe abertamente ao embate das massas inferiores,
nem ousa dar um passo para além do limite por ela alcançado, para além da
própria classe. E, no entanto, ela só poderia tocar o fundo do problema se,
sem qualquer proteção ideológica, se colocasse no ponto de ruptura da nossa
estrutura social, confrontando-se, nesta posição avançada, com as forças so-
ciais, nas quais se encarna hoje a realidade. Somente aqui e em nenhum outro
lugar devem ser buscados aqueles conhecimentos que, talvez, garantam uma
verdadeira forma de arte. De fato, a validade que esta forma de arte requer é
própria apenas da expressão mais progressiva da consciência, que pode se de-
senvolver aqui, e somente aqui. A forma literária pode nascer desta consciência
mais avançada, que oferece um ponto de apoio; no entanto, ela também pode
não nascer dessa consciência e, então, nesse caso, a criação artística nos seria
vedada no presente. (Se acima se disse que a própria confusão poderia alcançar
uma forma épica, é preciso acrescentar agora que isto só ocorre sobre o fun-
damento de uma consciência verdadeiramente emancipada, que percebe esta
confusão). Como forma da literatura da nova burguesia, a biografia é um sinal
de fuga ou, mais precisamente, de evasão.2 Para não se traírem pelos conhe-
cimentos que questionam a verdadeira existência da burguesia, os biógrafos
120 2 Kracauer faz aqui um jogo de palavras entre Flucht (fuga) e Ausflucht (evasão). [N.T.]
permanecem na soleira – para a qual foram empurrados pelos acontecimentos
mundiais – como se eles estivessem diante de um muro. Ao invés de ultrapassar
esta soleira, eles se refugiam, outra vez, no interior do mundo burguês, fato
que pode ser demonstrado pela análise das biografias standard. Embora estas
obras biográficas contemplem a ação da História, elas se perdem de tal modo
na sua contemplação, que não mais encontram o caminho de retorno ao pre-
sente. A sua escolha de sujeitos dentre as grandes figuras da história é pouco
exigente e, em todo caso, não está condicionada ao reconhecimento da situa-
ção atual. Elas desejam se livrar da psicologia, que determinou a prosa anterior
à guerra, mas, apesar da objetividade aparente da sua matéria, trabalham em
parte com as mesmas velhas categorias psicológicas. Elas lançaram o indivi-
dualismo suspeito pela porta do fundo e, pela entrada principal, reconduzem
ao interior da casa burguesa os indivíduos oficialmente endossados. Com isto
alcançariam ao mesmo tempo um segundo objetivo: a rejeição inarticulada de
uma autoridade que emerge das profundezas da massa. A biografia literária
é um fenômeno-limite, que permanece atrás da fronteira.
Ela é, portanto, muito mais que uma simples fuga. Certamente a burguesia
se encontra hoje em um período de transição e é também verdade que há um
duplo significado em todas as suas realizações. A sua intenção é defender a sua
existência e, com isto, demonstra involuntariamente que esta transição já se
realizou. Assim como os emigrantes reúnem todos os seus pertences pessoais,
assim também a literatura burguesa reúne o mobiliário, pois em breve terá
de desocupar o lugar atual. O motivo da fuga, ao qual a grande maioria das
biografias deve a sua existência, é ofuscado por aquele da salvação. Se existe
uma confirmação para o fim do individualismo, ela deve ser vista no museu
das grandes personalidades, que a literatura contemporânea orgulhosamente
eleva. E a maneira indiscriminada com a qual esta literatura se apodera de
todo e qualquer político e estadista evidencia não só a incapacidade de rea-
lizar uma seleção correta no período específico, mas igualmente a pressa do
salvador. Trata-se de organizar retratos para uma sala de exibição, na qual um
tipo de memória, para a qual cada retrato tem o mesmo valor, pode deleitar-se
consigo mesmo. Por mais questionável que possa ser uma ou outra biografia,
o brilho da despedida repousa na sua reunião. 121
Acredito que exista somente uma única obra biográfica que difere funda-
mentalmente de todas as outras. É a biografia de Trotsky.3 Ela viola as con-
dições impostas à biografia literária. Aqui a descrição da vida do indivíduo
histórico não é um meio para se esquivar da compreensão de nossa própria
situação; ao contrário, ela serve apenas para revelá-la. É por isso que nesta
autorrepresentação se delineia um indivíduo diverso daquele visado pela li-
teratura burguesa. É um tipo de indivíduo que já se superou, na medida em
que somente se torna real pela sua transparência em face da realidade, e não
pela afirmação da sua própria realidade. Este novo tipo de indivíduo situa-se
fora da nebulosidade das ideologias: ele existe somente na medida em que se
anula no interesse das necessidades atuais, reconhecidas.
3 Leon Trotsky, Moia Zhizn: Opyt Autobiofrafii. Berlim: Izdvo Granit, 1930 [ed. bras.: Minha
122 vida. Trad. Lívio Xavier. São Paulo: Paz e Terra, 1990].
Rebelião dos estratos médios
Uma discussão com o Círculo Tat
O jornal Die Tat1 tem hoje em dia um número significativo de leitores, parti-
cularmente dentre os intelectuais da classe média. Isto se explica não só pelo
fato de que o Círculo Tat defende conscientemente os interesses práticos e
ideológicos dessas classes, como também pela sua própria forma de luta. O
seu formato é do tipo que a inteligência alemã não está acostumada.
1 Periódico mensal, religioso e filosófico, fundado em 1902 e publicado desde 1912 pela Editora
Eugen Diederich. Sob a direção de Hans Zehrer, que assumiu o cargo de editor em 1929, a
publicação tornou-se órgão do Círculo Tat, um grupo de escritores que, como discípulos
dos trabalhos escritos de Carl Schmitt, defendia uma doutrina de Estado antiparlamentarista.
Em seus argumentos a favor de uma síntese autoritária de nacionalismo e socialismo, Die
Tat foi central para a revolução conservadora e pavimentou um caminho ideológico para o
nacional-socialismo nascente. Alcançou o apogeu como publicação política em 1931-32, com
circulação de aproximadamente 30 mil exemplares. De 1933 a 1939, sob a direção de G. Wirs-
ing, adotou abertamente uma postura fascista radical e continuou de 1939 a 1944 sob o título
Das zwanzigste Jahrhundert [O século XX]. Ver Hans Hecker, Die Tat und ihr Östeuropa-Bild,
1909-1933 [Die Tat e sua imagem da Europa oriental, de 1909-1933]. Köln: Wissenschaft und
Politik, 1974. 123
“Ouça a juventude que hoje em dia segue os nacional-socialistas ou os co-
munistas. É o melhor material humano que a Alemanha já teve.”2 Uma decla-
ração como esta demonstra que os artigos publicados em Die Tat se baseiam
em uma ampla e autêntica experiência: a da solidariedade do necessitado povo
alemão. Nesse sentido, eles se diferenciam de numerosas outras análises da
situação contemporânea, que ora são dominadas por imperativos partidários
e preferências de grupos de interesse, ora por construções teóricas que não
levam em consideração vínculos existenciais particulares. Partindo de suas
experiências fundamentais, os colaboradores de Die Tat se esforçam para com-
preender concretamente a situação concreta. E por mais questionáveis que
sempre sejam as interpretações de Fried sobre a economia3, elas são uma co-
mida caseira saudável (embora não contenham o mínimo valor nutricional)
quando comparadas com a ostentação idealista, que ainda é constantemente
servida à geração nova em livros e auditórios. O desejo de renunciar ao idea-
lismo e se envolver propriamente com as coisas dá origem, em última análise,
às tentativas de soluções que estão fora do alcance do mero tratamento de
problemas táticos, mas que, baseadas em uma posição geral, procuram com-
preender a situação mais ou menos estrategicamente. Ainda se poderá verificar
se estas soluções são realmente soluções. No entanto, o certo é que um grande
número de pessoas, que vê o declínio material e de ideias ocorrendo diante de
seus olhos, acredita poder se animar com as reflexões atuais de Die Tat.
Em razão da seriedade e relevância de Die Tat, um exame deste jornal é
duplamente importante: no interesse de seus leitores assim como no interesse
do círculo de seus colaboradores. De antemão, no entanto, quero me abster
de dar importância central às posições econômicas de Fried e ao programa
especial que, como se sabe, exige que a Alemanha adote, entre outras coisas,
2 Não-assinado [Hans Zeher], “Wohin treiben wir?” [Para onde vamos?], Die Tat 23, número
5, ago. 1931, p. 354.
3 Pseudônimo de Ferdinand Friedrich Zimmermann (1898-1967), jornalista alemão e profes-
sor de economia. De 1923 a 1932 foi editor de economia do Vossische Zeitung e do Berliner
Morgenpost; de 1931 a 1933 foi assistente de Die Tat e era membro do Círculo Tat. Em 1933
sucedeu Hans Zehrer como editor-chefe do Tägliche Rundschau, em 1934 tornou-se membro
124 da SS e, em 1953, assumiu o posto de editor de economia do jornal Die Welt.
uma forma particular de economia dirigida [Planwirtschaft], a autarquia, a
orientação para o sudoeste europeu e o apoio da Rússia soviética. Muito mais
decisiva é uma análise da postura que dá origem aos vários pensamentos e
propostas, pois coerência [Stimmigkeit] dos resultados está ligada à coerên-
cia desta postura mesma. Em um de seus ensaios, Zehrer4 escreve: “Nunca
houve um novo movimento que, em sua fase inicial, não tivesse sido levado
ad absurdum pela racionalidade aparente de uma velha linguagem, a serviço
dos interesses de poderes conservadores e tradicionais!”.5 Esta observação é
inteiramente apropriada se ela pretende rejeitar objeções que acreditam atin-
gir o cerne de um movimento criticando as suas expressões conceituais. Ela
não poderá ser usada, no entanto, para isentar a linguagem de Die Tat, cujas
formulações fluentes são qualquer coisa diferente do balbucio desamparado
que, de acordo com Zehrer, é supostamente uma característica de todo novo
movimento. Por bem ou por mal nós temos de atribuir a esta linguagem certa
importância… Infelizmente, é do mesmo modo impossível evitar trazer os
pontos de vista defendidos pelo jornal para uma confrontação com a razão,
para a qual o Círculo Tat, como se sabe, não é um bom interlocutor. Eu creio,
contudo, que é possível se expor sem medo ao perigo que envolve o emprego
da razão. De um lado, porque a argumentação só é possível se os direitos da
razão são reconhecidos; de outro, porque, não importa se, intencionalmente
ou não, Die Tat também tem com muita frequência recorrido e mesmo ape-
lado expressamente à tão menosprezada razão.
Antecipemos algumas das principais conclusões da análise a seguir, que está
baseada nos cadernos do jornal publicados no último ano. As ideias – guias
do Círculo Tat são o reflexo preciso da situação difícil da classe média. Elas
apontam para uma postura que é essencialmente irreal e cheia de contradições.
4 Hans Zehrer (1889-1966): jornalista alemão, escritor e editor do Vossische Zeitung de 1923 a
1931. Editor clandestino de Die Tat em 1929, tornou-se o seu editor oficial em 1931 e foi editor-
chefe do Tägliche Rundschau de 1932 até 1933, quando foi forçado pelos nazistas a renunciar
aos dois últimos cargos.
5 Idem, “Rechst oder links? Die Verwirrung der Begriffe” [Direita ou esquerda? A confusão
dos conceitos]. Die Tat 23, número 7, out. 1931, p. 507. 125
Dada a sua confusão improdutiva, essas ideias não apresentam nenhum tipo
de solução.
A experiência fornece a Die Tat o conceito de povo [Volk], que ele postula como
um conceito fundamental irredutível. Em um momento fala-se do “pensa-
mento étnico [völkisch] de totalidade”, e logo a seguir as instituições públicas
são inspecionadas para determinar a sua “proximidade ao povo”. De acordo
com este conceito empregado romanticamente, povo refere-se a alguma coisa
que cresceu organicamente e se opõe tanto a todas as teorias que são liberais
no seu sentido mais amplo – aquelas que adotam o individual como a base da
comunidade – quanto ao conceito moderno de massa. “Nós não pensamos em
termos de massa, mas em termos de pessoas e povos [Völker].”6 Exatamente
aquilo que tem a ver com as pessoas é o que será explorado mais tarde.
À luz desta orientação inicial, não causa surpresa o papel importante que
o conceito de espaço [Raum] desempenha. Um povo se apresenta fisicamente
no espaço. Isto explica a satisfação mal dissimulada com a qual se observa que
“hoje o mundo se desintegra em espaços nacionais, individuais, fechados”;7 daí
a convocação programática de autarquia. A noção de espaço domina Die Tat
de tal modo, que Zehrer ainda fragmenta o espaço total do povo em subdivi-
sões, às quais ele – assim como Nadler8 – atribui um poder formativo. Como
Zehrer explica: “Nós afirmamos a paisagem como um espaço fechado em si
mesmo, que tem um tipo de existência muito particular e está ligado ao sangue,
9 Hans Zehrer, “Rechts oder links?” [Direita ou esquerda], op. cit., p. 558
10 Referência não localizada.
11 Ferdinand Fried, “Der Weg der Reichsfinanzen” [O caminho das finanças do Reich]. Die Tat
23, número 3, jun. 1931, p. 179.
12 Referência não localizada.
13 Horst Grüneberg, “Die Föderalistische Kulisse” [O bastidor federalista]. Die Tat 23, número
4, jul. 1931, p. 293.
14 Idem, “Mittelstandspolitik, Staatspolitik” [Política de classe média, política de Estado], op.
cit., p. 209. 127
identificado com a razão. O intelecto é considerado a principal arma do li-
beralismo e, uma vez que Die Tat teme – com razão – não conseguir barrar
o liberalismo combatendo-o com suas próprias armas, prefere usar outras,
muito mais violentas. “A esta razão”, escreve Zehrer, “antes de mais nada, só
se pode opor uma nova crença, e uma crença jamais pode discutir com o seu
oponente dialeticamente, pois se ela o persegue em seu terreno, sempre será a
mais fraca”.15 Mas como se institui uma crença no mundo real, se ela se recusa
a uma explicação? A resposta primitiva de Zehrer é: “O único argumento que
não se ajusta na estrutura do sistema liberalista16 da razão e da discussão é a
espada. A espada e o punho!”. Em resumo, os agentes [Täter] de Die Tat se blin-
dam contra a razão, abaixam as suas viseiras para não observarem nenhum de
seus argumentos e buscam a salvação na barbárie. Em seu ódio cego, eles con-
seguem responsabilizar a razão por acontecimentos nos quais ela é realmente
inocente. “Razão!”, brada Zehrer, “Em nome desta razão milhões de pessoas
morreram.” Uma investigação mais precisa revelaria certamente que foram as
forças da irracionalidade [Unvernunft], invocadas por Zehrer, exatamente as
responsáveis pelo desencadeamento da Guerra Mundial.
Assim, se Die Tat não luta sob o signo da razão, persegue então uma outra
estrela-guia. Zehrer dá a seguinte definição: “Uma nova crença, um novo mito
substituirão o sistema liberal.” O conceito de mito, que nas publicações do
Círculo Die Tat é tão fortemente enfatizado quanto a ideia de uma economia
dirigida, emerge das águas da Lebensphilosophie e é desenvolvido com base em
Sorel.17 Ele atribui o grande significado do conceito de mito evidentemente ao
fato de que, ao não confiarem mais nos efeitos reprimidos do conhecimento
racional, as pessoas se sentem compelidas a substituí-lo por imagens resplan-
15 Hans Zehrer, “Rechts oder links?” [Direita ou esquerda?], op. cit., pp. 510-11.
16 Adjetivo que tem sentido específico, diferente do termo “liberal”, referindo-se a uma deter-
minada corrente de pensamento político-econômica alemã, como fica claro ao longo do
texto.
17 Como exemplos da recepção da obra de Georges Sorel no Die Tat, cf. Zehrer, “Rechts oder
links?” [Direita ou esquerda?], op. cit., pp. 527-28, e E. W. Eschmann, “Moderne Soziologen
II: Georges Sorel” [Sociólogos modernos II: Georges Sorel], Die Tat 22, número 5, ago. 1930,
128 pp. 367-77.
decentes, em relação às quais as forças irracionais se comprimem de uma ma-
neira secreta. Além disso, ao invés de revelar uma ou outra dessas imagens,
Zehrer infortunadamente se limita a intimá-las. E, na verdade, a única coisa
que é certa é que Zehrer simplesmente vê as classes médias como portadoras
abalizadas do mito por ele proclamado. “Essas classes não podem experimen-
tar a sua solidariedade com a grande comunidade, com o povo e a nação, por
meio de uma união, um clube, uma classe ou qualquer outro tipo de organiza-
ção. Elas só podem experimentar essa solidariedade através do ideal, quer dizer,
no mito.” Quando muito se poderia ainda acrescentar que este mito teria de
ser nacional. A esse imperativo, Zehrer, em uma referência sem ambiguidade,
explica que a tarefa do futuro é “criar uma nova Volk-comunidade sob a égide
do mito de uma nova nação”.18
Povo, Estado, mito – estes conceitos fortemente interrelacionados se refe-
rem a uma realidade substancial. Em virtude da sua orientação estar voltada
para essa realidade, Die Tat está portanto qualificado para realizar uma crítica
substantiva das condições dominantes. Na verdade, ele só se desvia do estado
de coisas existentes pelo fato de que este é essencialmente insuportável. Para
mim, sem sombra de dúvidas, a influência que o Círculo Tat conquistou re-
pousa na sua crítica sobre esta época. Como não poderia deixar de ser na pos-
tura aqui caracterizada, ela atinge, sobretudo, a pobreza material [Substanzar-
mut], que se expande no regime atual. Deixo em aberto se, para a apresentação
dessa pobreza, se deveria necessariamente partir do denominador comum dos
conceitos acima mencionados, ou se não seria igualmente interessante partir
de outros conceitos, como por exemplo aqueles de classe. No momento, o que
importa é somente que com a ajuda das próprias categorias, Die Tat foi capaz
de diagnosticar deficiências significativas. E na verdade estou pensando não
só em Fried, que força de uma maneira certamente muito violenta as distor-
ções contemporâneas do management capitalista nas suas pinturas em afresco,
mas também em declarações de menores dimensões, que atingem o cerne
das condições atuais. Elas retificam, por exemplo, a noção de profissão vulgar,
excessivamente otimista, desmascaram os poderes que florescem sob a pro-
18 Hans Zehrer, “Rechts oder links?” [Direita ou esquerda?], op. cit., pp. 532, 559. 129
teção da fachada federalista, e analisam cuidadosamente a situação de alguns
partidos. Provavelmente a crítica mais contundente de Die Tat, no entanto, é
o seu protesto permanente contra o pensamento livre. Contudo, ele prejudica
a sua própria posição porque com frequência se desvia e trava uma batalha
sob uma falsa bandeira. Quão irresponsável é a sua afirmação de que a inteli-
gência judaica carece de talento construtivo; quão maliciosa, e não mais que
maliciosa, é a seguinte frase: “Einstein, o gênio da propaganda da modéstia,
anda constantemente ao redor do mundo, usando a arma da teoria da relati-
vidade para defender a não-prestação do serviço militar e o sionismo”.19 Atrás
desses lapsos – indignos de um jornal sério – há, portanto, a constante con-
fusão daquele pensamento com a “razão liberalista” ou simplesmente com a
própria razão, com a qual ele já não tem nada mais em comum. A linguagem
de Die Tat – que Zehrer defende de antemão como um produto de circuns-
tâncias atenuantes – não é desajustada, mas imprecisa, e só obscuramente o
objeto atual dos seus ataques cintila através da neblina por ele mesmo produ-
zida. Este objeto é a ratio, que nega a sua origem e não mais reconhece limites,
em oposição à razão [Vernunft] em geral e à “razão liberalista” em particular,
que, antes de tudo, se baseia na fé na humanidade. Esta ratio desatada, que de
modo algum pode simplesmente ser designada como intelecto, é apequenada
como razão e muito mais, tal como um demônio da natureza [Naturdämon],
domina o razoável. E é precisamente esta falta de poder da razão que permite
à ratio vigorar hoje em dia tão sem restrições. Ela, a ratio cega, é quem inspira
àquele ávido por lucro realizar suas transações; quem produz a irresponsa-
bilidade de certo tipo de jornalismo de segunda categoria; quem é a culpada
pela precipitação do processo de racionalização e por todos aqueles cálculos
de uma economia degenerada, que levam em conta inúmeros fatores, exceto
os homens. Assim como criou inconscientemente um aparato técnico, diante
do qual nos encontramos como aprendizes de feiticeiro, inábeis para exorcizar
os elementos evocados, a ratio também corroeu os laços que até então man-
tinham formalmente a coesão da sociedade. As consequências terríveis desta
19 H. [pseudônimo jornalístico não identificado], “Der Fall Charlie Chaplin” [O caso Charlie
130 Chaplin], Die Tat 23, número 2, mai. 1931, p. 158.
desintegração induzida pela ratio – sobretudo para os estratos médios – pro-
curei apresentar em meu livro Die Angestellten [Os empregados].20 Ao serem
dessubstancializadas, estes estratos agora não dependem de nada mais a não
ser da neutralidade obrigatória do pensamento sem conteúdos. É na mudez
deste pensamento que se refugia o sistema social e econômico, severamente
abalado, ao qual nós atualmente estamos submetidos.
20 Publicado primeiramente como uma série de artigos no Frankfurter Zeitung, esse estudo
sobre a classe de empregados surge na forma de livro pela Frankfurt Societäts-Drückerei,
em 1930. 131
vale dizer, eles não correspondem à realidade – que já deveria existir – para
se poder apelar à sua legitimidade. E o significado desses conceitos se exaure
completamente no fato de ser sintoma de um contramovimento que, sem dú-
vida, se pode descrever como romântico.
O fato de o Círculo Tat não contar com o surgimento de um líder [Führer]
mas, por conseguinte, contar com a capacidade criativa de uma elite espi-
ritual que ele crê realmente existir, revela uma certa reflexão. É realmente
provável que, acima de tudo, ele se considere parte da genuína elite por ele
mesmo desejada, e de fato o Círculo Tat realmente é a nata da juventude
alemã. Ainda assim ele não se abstém de glorificar agora mesmo o eventual
líder. Zehrer sonha com aquele que é esperado: “O anseio por este indivíduo
está latente no povo há mais de uma década. Nós não queremos nos iludir: no
momento em que a primeira palavra de comando severa, mas justa, de uma
vontade realmente pessoal atingir o povo alemão, as pessoas entrarão em for-
mação e cerrarão fileiras […] e este respirará aliviado, pois saberá novamente
para onde está indo”.21 O povo alemão certamente não fará nenhuma destas
coisas porque – e enquanto – a própria boa vontade política se dispersa na
ânsia de um líder. A vinda e a permanência deste líder depende única e exclu-
sivamente de uma compreensão correta e construtiva da situação, e ele desa-
parece novamente quando, apoiando-se somente em seu status de líder, não
compreende a situação (Clemenceau, Lloyd Georg etc.).22 Ao invés de criar –
na medida em que isto é possível – as condições necessárias em que um líder
enfim pode aparecer, Zehrer glorifica o líder como tal logo de início. Esta é
uma estratégia muito difundida, que provém obviamente de uma aversão ao
21 Hans Zehrer, “Rechts oder links?” [Direita ou esquerda?], op. cit., p. 556.
22 Georges Clemenceau (1841-1929), político francês e jornalista, consolidou o seu poder político
como primeiro-ministro pró-militarista fiel à França e foi ministro durante a Primeira Guerra
Mundial. A violenta imposição de sua vontade política, evidenciada claramente no modo
pelo qual excluiu a Assembléia Nacional Francesa das negociações de paz de Versailles, sig-
nificou o fim de sua carreira política. O político britânico David Lloyd George (1863-1945)
teve uma carreira prematura como secretário militarista do Estado de Guerra antes de se
tornar primeiro-ministro (1916-22) durante a Primeira Guerra Mundial. A sua desconfiança
132 em relação a outros comandantes e burocratas levou ao seu isolamento crescente.
parlamentarismo da democracia liberal, mas que não tem nenhuma conse-
quência. Ao contrário! Pelo fato de gastar todo o tempo entoando hinos ao
líder, antes que ele tenha chegado, negligencia-se precisamente preparar-lhe o
caminho e, na pior das hipóteses, torna-se presa de charlatões. A antecipação
de um líder não apressa o seu advento, muito mais retarda a sua aproximação.
A única coisa que possivelmente facilitaria esta chegada é o questionamento
constante sobre o que seria necessário fazer para que isto aconteça. E é so-
mente o líder já manifesto – e não o antecipado – que pode aspirar a entrar na
consciência do povo como uma imagem. A imagem de Lenin circundada por
uma auréola é o fim e não o início de uma carreira de um líder, é o produto
de ações baseadas em conhecimento.
Mesmo o conceito de mito, sob cujo signo o novo Estado-Volk deve se
constituir, é um contraconceito sem poder. Nascido da rebelião contra o li-
beralismo desnaturado, ele deseja estabelecer uma força mais efetiva no lugar
da razão, que supostamente falhou. Mas o mito não pode ser estabelecido.
Ele é, segundo Bachofen, “nada além do que a representação das experiên-
cias do povo à luz da fé religiosa”.23 Ou, como Carl Albrecht Bernoulli aponta
nos esclarecimentos de sua edição de Bachofen: “O mito é válido ou inválido,
dependendo de sua eficácia ou não-eficácia para nós. Em todo caso, se ele ‘é’
ou ‘não é’ depende do nosso mundo emocional […]”.24 Isto só aparentemente
contradiz o discurso de Mussolini antes da marcha para Roma, no qual ele
credita ao fascismo ter criado o mito da “nação”. De fato, mesmo Carl Schmitt
– não sem simpatia – em seu livro Die geistesgeschichtliche Lage des heutigen
Parlamentarismus [A situação histórico-espiritual do parlamentarismo atual]
cita essa passagem do discurso, denomina os acontecimentos a ele ligados “um
exemplo do poder irracional do mito nacional.”25 Antes, deveria ser examinado
23 Johann Jakob Bachofen, Urreligion und antike Symbole: Systematisch angeordnete Auswahl
aus seinen Werken in drei Bänden [Religião primitiva e símbolos da Antiguidade. Seleção de
suas obras em três volumes organizada de modo sistemático]. Organizada por Carl Albrecht
Bernouilli, volume 1. Leipzig: Reclam, 1926, p. 182.
24 Idem, p. 47.
25 Carl Schmitt, Die geistesgeschichtliche Lage des heutigen Parlamentarismus [A situação histórico-
espiritual do parlamentarismo hoje]. München: Duncker & Humbolt, 1923, p. 472. 133
até que ponto o assim denominado mito fascista não é simplesmente a supe-
restrutura ideológica de relações materiais e sociais específicas e se ele poderia
sobreviver somente na base de sua própria força irracional. O próprio Zehrer
revela em certo ponto involuntariamente quão fraco é o fundamento sobre o
qual repousa o programa de mito do Círculo Tat. Em relação ao comunismo,
ele escreve: “Não se pode, no entanto, subestimar a sua posição. Ele tem um
mito – o alegado modelo da Rússia – que é […] independente do conteúdo
teórico do comunismo, e a sua função é exclusivamente reunir a massa e tomar
o poder”.26 Ignorando completamente a frivolidade com que a relação entre
teoria e subsequentemente prática, entre o slogan e sua realização, é trivializada
aqui por esse venerador do irracional, a questão que se deve colocar é: quais
fatores são responsáveis por engendrar o mito do comunismo? A resposta: exa-
tamente a teoria que Zehrer tanto desprezou. E somente graças ao poder desses
discernimentos teóricos é que o comunismo russo foi capaz de tornar a Rússia
aquilo que o Círculo de Die Tat – mas não o comunismo mesmo – considera
ser um mito. E mesmo que, tal como Carl Schmitt (de acordo com Sorel) ex-
põe em seu livro já anteriormente citado, as energias nacionais tenham sido as
responsáveis pela vitória da Revolução Russa, não foi o que invocamos; mas
aquilo a que nos referimos é o socialismo. Disto resulta que talvez até mesmo
nos dias de hoje um mito pode se originar da realização de conhecimentos,
embora a exigência direta do mito seja infundada. Pode-se assim caracterizar
o apelo ao mito de Die Tat como uma reação sem conteúdo.
O mesmo vale para o conceito de espaço. Por exemplo, ao reivindicar que
a elite espiritual se reúna necessariamente dentro do país, Zehrer eleva um
fator casual a fator determinante. Sem dúvida é certo que uma nova doutrina
– que é a única a definir uma elite – se propaga facilmente entre vizinhos, mas
a relação entre vizinhos está longe de ser a pré-condição para a criação dessa
elite. É com uma lógica similar que Die Tat trata quase sempre o espaço como
uma grandeza em si, quando, na verdade, ele adquire significado somente pe-
las substancialidades realizadas dentro dele e as quais esse espaço deve, sem
dúvida, preservar, transformar e exalar. Este é um culto do espaço que se volta
134 26 Hans Zehrer, “Rechts oder links?” [Dieita ou esquerda?], op. cit., p. 544.
diretamente contra um tipo de pensamento – não incomum nos círculos li-
berais – que tende para o internacionalismo, sem contudo estabelecer traços
espaciais inteiramente característicos. No entanto, uma vez que que essa con-
tramedida transforma esse espaço em um absoluto, ela ultrapassa excessiva-
mente os limites e cria um conceito inflado, oco, que torna o espaço um es-
pantalho. Não posso resistir a dar um exemplo de arte-espaço [Raumkunst] de
Fried, retirado de um ensaio publicado no caderno de maio, n° 31, e intitulado
“Der Umbau der Welt” [A reestruturação do mundo]: “O ocidente capitalista
[…] irá provavelmente ainda perder a sua influência sobre a América do Sul
e a Austrália, onde o movimento nacionalista trabalha cada vez mais no sen-
tido do isolamento, da desvinculação da economia mundial e da autonomia.
Parece possível que também a África do Sul caia fora. Na América do Norte,
o conflito amadurecido entre os fazendeiros superendividados do oeste e o
poder financeiro-industrial do leste conduzirá finalmente para uma simbiose
econômica similar àquela entre a Europa central e Rússia. Como resultado,
toda a América do Norte, incluindo-se o Canadá, se tornará completamente
autossuficiente e se isolará do resto do mundo. Com isto restam etc. […]”.27
A irrealidade desta arquitetura publicitária é, sem dúvida, óbvia. Ela qualifica
a economia que se manifesta no espaço simplesmente como uma variável
deste espaço e adultera a necessidade de limites aduaneiros como sendo uma
virtude da autarquia.
Mais assustadora ainda é a reação de Die Tat em relação ao sentido que o li-
beralismo – e não só o liberalismo – confere aos acontecimentos. Tanto quanto
compreendo a tendência de se desviar de uma situação que parece ter perdido
todo o sentido, o caminho que Fried toma em direção ao nada do barbarismo
– completamente consciente do que está fazendo – parece-me inaceitável. Ele
afirma também estar procurando um sentido – contudo, não o sentido do que
deveria ser, mas do que é –, mas esta explanação não o impede de citar e apro-
var o seguinte trecho de Spengler: “A história do mundo é o tribunal do mundo
[…] ela sempre sacrificou a verdade e a justiça ao poder e à raça, e condenou
27 Ferdinand Fried. “Der Umbau der Welt” [A re-estruturação do mundo], Die Tat 23, número
2, mai. 1931, p. 126. 135
à morte homens e povos, para os quais a verdade era mais importante do que
atos e a justiça mais essencial do que poder”.28 Seria muito fácil refutar a decla-
ração de Spengler com exemplos – eu penso no caso Dreyfuss – que provam
exatamente o contrário. Aquilo que aqui interessa, no entanto, é somente o
fato de que Fried, ao adotar esta tese, revela a mesma pobreza de sentido de
realidade que Die Tat manifesta exatamente ali onde postula a nova realidade.
Pois a frase que ele coloca como realidade – isto é, que a verdade e a justiça no
processo histórico do mundo sempre foram vítimas do poder e da raça – não
se origina de fato da relação atual com a realidade, mas é muito mais fruto de
uma perspectiva puramente histórica. Esta é a mesma perspectiva que Die Tat
aplica em um outro trecho nos seguintes termos realmente justificados: “Ba-
sicamente, do ponto de vista ético, se poderia perguntar se no fundo a pers-
pectiva histórica não é a-histórica, na medida em que ela se recusa a entrar
na dialética da história e, assim, tornar-se realmente ‘histórica’”.29 Se Fried se
metesse com a dialética da história, ele teria de reconhecer que poder e raça
triunfam regularmente apenas quando estão a serviço daquelas doutrinas que
corporificam verdade e justiça; teria, portanto, de reconhecer que poder e raça
só estão condenados ao fracasso se ambos procuram exercer o poder como tal.
Fried se esquiva dessa dialética. Como resultado desta postura não-realista, ele
toma uma contemplação histórica duvidosa como uma máxima para a ação, e
exagera a pressuposição natural da postura substantiva em direção à substân-
cia por si mesma. A sua posição não é nada mais do que oposição a qualquer
espécie de sentido e ela mesma é tão destituída de conteúdo como somente
pode ser a natureza sem luz.
Die Tat, portanto, não constrói uma realidade diferente, mais substancial,
oposta à liberal; reivindica sobretudo uma realidade que não se deixa reivin-
dicar. Se alguém quisesse ser malicioso poderia ter levado um dos ídolos do
28 Oswald Spengler, Der Untergang des Abendlandes [O declínio do Ocidente], volume 2, Mün-
chen, C. H. Beck, 1918-1922, p. 1194 [ed. bras.: A decadência do ocidente. Trad. Herbert Caro.
Brasília: Editora da UnB, 1982]. Apud Ferdinand Fried, “Die Auflösung” [A desintegração].
Die Tat 23, número 2, mai. 1931, p. 141.
29 E.W. Eschmann, “Moderne Soziologen III” [Sociólogos modernos III], Die Tat 23, número
136 2, maio 1931, p. 141.
Círculo Tat a uma luta contra ele: refiro-me a Spengler. Ele disse uma vez que
a alma nórdica já esgotara as suas capacidades interiores a tal ponto que só
lhe restariam “o impulso, a paixão criativa, uma forma de existência espiri-
tual sem substância”, e que ao menos ela deveria simular que suas atividades
tivessem um conteúdo. “Ibsen chamou isto a mentira da vida” continua Spen-
gler “e há um elemento dela em toda a atividade espiritual da civilização da
Europa ocidental, na medida em que ela se orienta para um futuro religioso,
artístico e filosófico, um objetivo imaterial, um terceiro Reich, ao passo que o
tempo todo no mais profundo íntimo há um pressentimento sombrio que
insiste em não se calar, um pressentimento de que toda esta atividade é uma
ilusão, é a autodecepção desesperada de uma alma histórica […] Bayreuth, no
seu desejo de ser algo, está baseada nessa mentira de vida em contraposição
a Pergamon, que realmente foi algo.”30 Estas observações feitas recentemente
por Spengler – cujo conteúdo de cognição não pode ser examinado aqui –
referem-se ao socialismo, mas descrevem muito mais o âmbito conceitual do
Die Tat. Este também deseja alguma coisa que uma vez realmente foi algo. E
posso acrescentar que não se conquista realmente nada enquanto for objetivo
de um ato da vontade.
Se os conceitos do Círculo Tat fossem apenas irreais – mas eles também so-
frem a miséria da contradição. Não aquela espécie de contradição indispen-
sável que se coloca ali, no limite de todo sistema fechado, onde se encontram
os seus pressupostos, mas uma contradição do tipo que dissolve o sistema a
partir do seu interior. Há bons motivos para que os colaboradores de Die Tat,
tal qual exorcistas seguindo os rastros das bruxas, farejem por toda parte li-
beralismo, contando o número de gotas desditosas que dele as pessoas têm
em seu sangue. Para eles, o conservadorismo e o socialismo estão completa-
mente contaminados. E o que é o bolchevismo russo? “É um liberalismo com
31 Hans Zehrer, “Rechts oder links?” [Direita ou esquerda?], op. cit., p. 542.
138 32 Idem, ibidem, p. 542.
de Estado. Este indivíduo autônomo está muito mais apto a ser o detentor do
velho sistema liberal do que de uma autarquia. A habilidade do liberalismo de
conquistar o lugar de honra em uma concepção completamente antiliberal só
comprova o poder das ideias liberais herdadas. Como ensina o exemplo drás-
tico provindo da Rússia, precisamente a suspensão da autonomia do indivíduo
é necessária para as pessoas serem “integradas dentro” do Estado soberano. E
embora as pessoas ligadas a Die Tat acusem a União Soviética de liberalismo,
os soviéticos sabem muito melhor do que elas que a construção de uma eco-
nomia de Estado nacional não pode tolerar uma “cultura da personalidade”.
Desejar abertamente uma tal cultura da personalidade e, simultaneamente,
construir o conceito de Estado total é, em todo caso, um contrassenso.
Die Tat não se limita a transferir o foco de decisão para o indivíduo, mas
delineia também um quadro bem definido da sua existência futura. “Ele terá
muito menos para fazer do que atualmente, pois não poderá mais trabalhar
oito horas por dia. Por conseguinte, terá mais tempo do que tem hoje. Ele po-
derá se deitar no sol e ao ar livre. Terá mais sossego, mais segurança. E – ele
talvez sentirá novamente prazer em se ocupar de valores espirituais sérios,
para os quais atualmente não tem nem tempo, nem paz e nem tranquilidade.”33
Quem é esta pessoa, atrás da qual cintila a distância uma casa de final de se-
mana? É o pequeno burguês individualista que cresceu no liberalismo, o qual
o Estado permite ser um bom homem e que certamente é o menos indicado
para criar a nova ordem que Die Tat deseja. O próprio Zehrer fala claramente
que a esse indivíduo falta élan. Em relação aos russos, em certo momento ele
declara elegiacamente: “a força motriz deste novo estado econômico é, em
sua essência, o grande élan revolucionário que não podemos mais copiar dos
russos, pois nós estamos no fim desse ardor liberalista. Cremos ainda na tec-
nologia? Cremos ainda na máquina? Cremos ainda no êxtase da grande li-
berdade que atinge uma pessoa livre de todas as ligações e que é lançada no
presente? Não, nós não cremos mais nisto. Nós nos cansamos disto!”.34 Admito
que, depois de tudo isso, não posso mais imaginar o nascimento de um novo
39 Idem, ibidem
40 Ernst Wilhellm Eschmann, “Übergang zur Gesamtwirtschaft” [Transição para a economia
global], Die Tat 23, número 6, set. 1931, p. 456. Eschmann, jornalista e posteriormente editor
de Die Tat, resenhou o estudo Die Angestellten [Os empregados] para este jornal. Cf. “Die
Angestellten: Ergänzung zu S. Kracauer” [Os empregados: complemento a S. Kracauer], Die
142 Tat 22, número 2, 1930, pp. 460-63.
do qual provém – assim como a sua glorificação de Estado, espaço e mito.
Mostrou-se claramente que estes conceitos não fazem referência a nenhum
país, mas são uma miragem no deserto. A classe média não tem consciência
de quão irreais esses conceitos são, mas esta irrealidade é um fato, e sem dú-
vida ela possui uma vaga ideia dela. Em todo caso, o seu abandono de ideais é
o único a explicar a sua contínua vacilação entre dois extremos. Um extremo
é o apelo à violência bruta, que surge do sentimento de que só poderia se
manter viva através dela. A batalha espiritual a que se é conduzido por Die
Tat ameaça portanto degenerar sempre em uma revolta não-espiritual. Ele
denomina a espada um argumento, deixa o sangue triunfar sobre o dinheiro
e inequivocamente tende a colocar o poder ctônico heroicizado contra toda
vida formada conscientemente. Em todos os conceitos que fornece à classe
média, é a natureza bruta como tal que se move. O outro extremo é a posição
liberal, que foi abandonada. Pois, se a classe média – que rejeitou o marxismo
– deseja assegurar a sua própria consciência – na ausência de uma consciência
não-burguesa e não-proletária – precisa no final sempre retornar para a tra-
dição burguesa obsoleta e sua propriedade intelectual herdada. O escoamento
de sua consciência está obstruído: ou ela se esgota ou se acumula e é forçada
a correr novamente para o seu ponto de origem. Isto e nada mais pode expli-
car o aparecimento repentino do conceito de indivíduo e da razão em Die Tat,
que está em desacordo com as tendências atuais do jornal.
As publicações do Círculo Tat consequentemente refletem esta desintegra-
ção da classe média destituída (causada pela situação material e idealista), que
se refugia no romantismo e é jogada de um lado ao outro entre violência e
razão. Isso, no entanto, também significa que essas publicações são incapazes
de oferecer qualquer alternativa e apenas expõem a situação corrente. Se Die
Tat não pode ir além desta exposição, então a revolta precisa sucumbir por
causa de sua confusão ideológica ou ser encampada por forças que possuam
uma constituição mais forte. Se eu não estou completamente enganado, há
três perigos em relação aos quais o Círculo Tat é particularmente vulnerável.
O primeiro é que, contra a sua vontade, o capital explora-o como um grupo
de ataque avançado na batalha contra o socialismo marxista, somente para
mais tarde, se necessário for, jogá-lo ao mar como um peso morto, depois 143
de ter servido aos seus propósitos. Não seria a primeira vez a acontecer algo
parecido, e nesse processo o socialismo da classe média estaria liquidado. O
segundo perigo é que o Círculo Tat, em razão do seu esforço vão de impor
um programa tão contraditório e não-realista, tende cada vez mais para um
barbarismo, que já manifesta de forma latente, vibrando a espada com a sua
mão direita. Enquanto guardiã das tradições culturais, a classe média é que
sofreria a maior parte das consequências. O terceiro perigo é que às pessoas de
Die Tat poderia suceder o mesmo que aos românticos alemães: no final, eles
irão buscar refúgio na religião. A partir do momento em que, através da prá-
tica, reconhecerem que os seus conceitos não correspondem a nenhuma rea-
lidade, eles ainda poderão se lançar de cabeça na realidade da crença religiosa.
Já se percebe agora que eles têm certa tendência para o protestantismo radical.
Esta se revela, por exemplo, na afirmação de que “hoje se trata em primeira
instância de uma grande transformação espiritual, que está em processo e que
tem como foco novamente o homem em sua totalidade […]”.41 Se a fé estivesse
disponível, a palavra “totalidade” – também usada frequentemente em outros
contextos – assumiria o peso aqui imaginado. Mas a atividade política de Die
Tat encontraria com isso o seu fim.
42 Idem, p. 559.
43 Ernst Willhelm Eschmann, “Übergang zur Gesamtwirtschaft” [Passagem para a economia
global], Die Tat 23, número 6, set. 1931, p. 457. 145
incomparavelmente maior. Ele quer reunir pessoas da direita com pessoas da
esquerda, mas a sua verdadeira função não difere daquela dos “Jornais de célu-
las operárias vermelhas” [Rote Betriebszellenzeitungen]. Estes são descritos por
Christian Reil no caderno de abril como jornais que exercem uma influência
bem limitada, que não vai além do círculo dos membros do seu próprio par-
tido, pois eles “em grande parte consistem em artigos que criticam os sindi-
catos livres e a linguagem apropriada, que deve ser especificamente colocada
ao nível dos funcionários para ser efetiva, parece faltar completamente aos
comunistas, ao menos nas circunstâncias atuais […]”.44 É exatamente desta
maneira que o Círculo Tat falha em relação às classes trabalhadoras. Ao in-
vés de penetrar a realidade que lhe diz respeito, Die Tat se perde na pseudo-
realidade das imagens de Estado e de mito, que retrata como uma alternativa
para o arquidemônio do marxismo e do liberalismo pintados na parede. Seus
conceitos opositivos realizam-se, porque neles a esquerda é um mero conceito.
No entanto, a fim de realizar a experiência do povo, Die Tat teria de ir até o
proletariado e incluí-lo também.
Um esforço semelhante pressuporia, no entanto, que Die Tat se deixasse
conduzir não por reações emocionais, mas por conhecimentos. E isto me con-
duz ao segundo aspecto da posição do Círculo Tat que precisa ser revisado.
Creio que, a serviço de sua própria tarefa, Die Tat irá restaurar a dignidade
da razão. A rebelião que instigou contra a razão pode ser talvez entendida
como um ato desesperado por parte da classe média ameaçada, e não é de
modo algum o meio apropriado para impedir a devastação da ratio incontro-
lada. Ao contrário! Este último tipo de pensamento não-refreado, separado de
todo o humano [Kreatürlichen], e que foi capaz de – no pós-guerra – ignorar
com impunidade todos os limites nos campos da economia e da política, tem
muito mais afinidade com o barbarismo do que com a razão; incluindo-se a
44 Kracauer aqui atribui erroneamente esta citação a Christian Reil, cujo artigo “Die Wahrheit
über Frankreich” [A verdade sobre a França], inicia-se na mesma página do trecho citado. V.
Die Tat 23, número 1, abr. 1931, pp. 59-62. Este, no entanto, é um artigo de Montanus intitu-
lado “Werkzeitungen als ‘weiße Salbe’ des kapitalistischen Systems” [Jornais técnicos como
146 ‘unguento’ do sistema capitalista], Die Tat 23, número 1, abr. 1931, p. 59.
razão liberal. Essa ratio é, repetindo um ponto já abordado anteriormente, o
expoente de forças cegas da natureza, e nada seria mais absurdo e mais inútil
do que querer combatê-la com a ajuda dessa mesma simples natureza, que
se manifesta nessa ratio. Só a razão pode restringir esta ratio desmesurada; a
razão cujas características incluem o estar ciente de suas próprias limitações.
Certa vez, em um trecho de Die Tat lia-se: “Nós admiramos os franceses como
inimigos durante a guerra. Em viagens pela França, muitos de nós, mais tarde,
conhecemos o estilo de vida do pequeno-burguês francês e dos camponeses
e compreendemos a sua mentalidade estática, conservadora”.45 Pois bem, esta
mentalidade certamente admirável pertence a um povo que confere à razão
honra divina e reconhece sinceramente o seu papel. O Círculo Tat também
não deveria se entregar por mais tempo ao infrutífero rancor contra a razão,
que também o desvia de seus verdadeiros objetivos. No caderno de novem-
bro Erwin Ritter explica que “nós torcemos […] pelo retorno do intelectual
à modéstia”.46 O intelectual modesto: este, afinal, é a razão – razão que nessa
situação na qual hoje em dia nasce a urgência de decisões é mais necessária
do que nunca. Pois sem o pleno esforço da razão, sem a clara e decisiva rejei-
ção das forças obscuras do antiespírito/anti-intelecto [Wiedergeist], o círculo
de pessoas reunidas em torno de Die Tat não terá jamais aquilo que lhes é tão
caro: a nova economia, que só pode ser uma obra do conhecimento, e o novo
povo, composto pela esquerda e pela direita, cujos contornos idealiza.
Existe atualmente um grande número de pessoas que, sem que saibam umas
das outras, estão ligadas por um fato comum. Ao escaparem da profissão de
uma fé particular, conquistaram sua parte dos bens culturais e educacionais,
hoje em geral acessíveis, e tendem a viver com um sentido alerta do seu tempo.
Esses eruditos, homens de negócios, médicos, advogados, estudantes e intelec-
tuais de todo tipo gastam grande parte dos seus dias na solidão das grandes
cidades. E uma vez que estão sentados em escritórios, recebendo clientes, diri-
gindo negociações, dando palestras, no alarido das atividades eles certamente
esquecem com frequência o seu próprio ser interior, e acreditam estar livres
do peso que secretamente carregam. Mas, quando se recolhem da superfície
para o centro do seu ser, são acometidos por uma profunda melancolia, que
se origina do reconhecimento do seu confinamento [Eingebanntsein] em uma
situação espiritual/intelectual particular, uma melancolia que, no final, sufoca
todas as camadas do seu ser. É o sofrimento metafísico pela falta de um sentido
mais elevado no mundo, um sofrimento que se deve a uma existência em um
espaço vazio e que torna estas pessoas companheiras de infortúnio.
É importante, ainda assim, tornar visíveis alguns caminhos, que devem con-
duzir a uma nova pátria da alma. Ignorar a doutrina antroposófica não é de
todo possível,1 visto que a necessidade honesta e a aspiração de numerosos
adeptos dependem dela. O grande número de adeptos de Steiner pode ser
explicado em grande parte pelo reconhecimento – baseado no ponto de vista
1 O movimento espiritual conhecido como antroposofia foi fundado, em 1912, pelo cientista e
editor Rudolf Steiner (1861-1925), na convicção de um mundo espiritual no âmbito do pen-
samento puro (quer dizer, independente do sentido) – um mundo que pode, no entanto, ser
compreendido pela capacidade intelectual altamente desenvolvida. De acordo com Steiner
o envolvimento original do homem com o mundo espiritual em um estado semelhante
ao sonho foi empobrecido pelo materialismo da cultura contemporânea, com sua ênfase
152 sobre o empírico.
da insustentabilidade da nossa situação espiritual/intelectual – de um método
cientificamente verificável, capaz de auxiliar as pessoas a perceber realidades
suprassensoriais e a averiguarem o destino humano, o que desperta a falsa
impressão de que o seu método estabelece conexões seguras com o absoluto.
Na verdade, não é tentador pisar nessa ponte ilusória, estendida entre ciência
e religião e sem sacrificium intellectus poder crer em, quer dizer, reconhecer
coisas miraculosas? O crescimento do movimento se deve certamente ao fato
de que, sociologicamente, aspectos cruciais da comunidade de Steiner repre-
sentam o modelo de igreja que abraça caridosamente o indivíduo isolado e lhe
dá a sensação de proteção e tranquilidade. É compreensível porque muitas pes-
soas são vítimas de tais tentações que, sem dúvida, por uma série de motivos
muito pertinentes, não constituem uma tentação para uma pessoa reflexiva,
mas uma imagem distorcida de uma autêntica participação no absoluto.
Há outros caminhos que, ao menos, não podem ser descritos como cami-
nhos enganosos. Aí surgem, por exemplo, as tendências comunistas à maneira
de um Sturm und Drang messiânico, que habitam um mundo de noções apo-
calípticas e aguardam a chegada do messias que proclamará o reino de Deus
na terra. Eles opõem a perfídia da mera existência sem sentido com visões
resplandecentes de realização plena e de subjugação de nossa frágil mudança.
A época impiedosa produz esses sonhadores quiliásticos, que irrompem do vá-
cuo em tempo furioso a fim de tomar certas posições religiosas de assalto. Em
sua fixação na comunidade utópica desejada, no entanto, atropelam comple-
tamente qualquer coisa considerada como forma ou lei, pois consideram-nas
como preliminares de ordem inferior. – Este novo tipo de messianismo está
remotamente relacionado com a ideia de comunidade, que frequentemente
germinou do solo protestante e tem, portanto, caráter religioso. Tal como o
primeiro, mas por diferentes razões, a ideia de comunidade afirma ser capaz
de prescindir da forma no âmbito humano. De acordo com esta noção, a co-
munidade, em um sentido estrito, não está baseada nem em uma ideia de-
finível, em uma doutrina recebida, nem mesmo no sentimento das pessoas
de se pertencerem juntas, mas na “experiência de comunidade”. Isto significa
que a continuidade de sua existência depende da inclinação positiva daque-
les que a desejam livremente e, portanto, para sua sobrevivência ela necessita 153
do contínuo e renovado esforço espiritual de seus membros. Se em um mo-
mento a experiência afirmativa – comunitária – do indivíduo – e aqui “indiví-
duo” é entendido em seu sentido contemporâneo, imperfeito – torna-se o fun-
damento primário da comunidade, então a consequência inteiramente lógica
é, em princípio, condenar formas supraindividuais saturadas de sentido como
produtos petrificados da experiência pura e como intervenções desnecessárias
entre o eu e o tu. – Em oposição a isto, os que creem na forma [Formgläubige]
– como são encontrados, por exemplo, no Círculo George2 – reverenciam a lei
divina como o princípio de comunidade que mantém todos unidos. Não só
porque remove o elemento do acaso de todas as relações com Deus e com as
outras pessoas, dá suporte aos necessitados e reflete uma realidade superior no
temporal, mas também porque cria aquela ordem hierárquica, aquela estrati-
ficação de círculos necessária diante da diferença profunda entre as pessoas.
De acordo com o julgamento daqueles que creem na forma, a integração em
uma associação firmemente estabelecida e a devoção à figura que incorpora o
absoluto – um absoluto que, aliás, é perceptível somente através desta figura
– libertam as pessoas da ausência de laços e estabelecem limites à tendência
imperfeita de infinitude.
Estas possibilidades e realizações – que não serão mais apreciadas aqui –
diferem em sua orientação (embora não necessariamente em sua essência)
das tentativas que objetivam o ressuscitar das velhas doutrinas humanistas,
esperando talvez eliminar o vácuo pela entrada nas religiões positivas, cujo
conteúdo de verdade precisa vir novamente à tona. Qualquer um que se apro-
2 Fundado pelo poeta lírico Stefan George (1868-1933), o Círculo George reuniu um número
expressivo de escritores alemães no período – dentre eles Hugo von Hofmannsthal, Frie-
drich Gundolf e Max Dauthendey – cujas contribuições foram em grande parte publicadas
no jornal Blätter für die Kunst [Folhas para a Arte] de 1892 a 1919. Stefan George recusou o
naturalismo desde o início e procurou combater a degradação da linguagem literária elimi-
nando rimas impuras e irregularidades métricas e insistindo em vogais e consoantes cui-
dadosamente escolhidas para produzir uma construção poética harmoniosa. A concepção
um tanto nietzscheana de George sobre a aristocracia espiritual do poeta e o seu apelo – em
Das neue Reich (1928) [O novo Reich] – ao renascimento da Alemanha como uma espécie
154 de nova Grécia foram mal interpretados pelos nazistas como presságio do novo Reich.
xime delas, vindo da zona de contingência relativista, depara com declarações
de crença e comunidade cultural, com a força do absoluto que elimina o iso-
lamento e a individuação, e com o conhecimento devoto que liberta da diva-
gação descrente. Aqueles que nos dias de hoje observam o edifício das várias
religiões do lado de fora e com novos olhos, com olhos da nostalgia, têm uma
experiência similar à do peregrino que, após inúmeras odisseias, acredita ter
avistado a casa protetora. Estas formações vivas e admiráveis, que cresceram
despreocupadamente através do tempo e a ele resistiram, abarcam um mundo
e uma realidade diferentes daqueles em que eventos físicos e processos econô-
micos se desenrolam em uma caótica diversidade. Elas garantem ao crente a
unificação do eu com Deus e com o tu e, graças também à tradição na qual se
incorporam e por meio da qual perduram, elas transportam-no para fora da
esfera de mudança sem sentido para o interior da esfera de uma eternidade
saturada de sentido. De tais decisões e encontros são atualmente tiradas conse-
quências por toda parte. Assim como uma nova vida é lançada ao catolicismo
há, portanto, forças religiosas se movendo vigorosamente no interior da co-
munidade protestante, forças que inclusive já estão em parte dirigidas direta-
mente contra a variante secular do protestantismo; e o judaísmo – sobretudo
o judaísmo sionista – não fica na retaguarda. O fato de que riachos secundá-
rios da religião também comecem a correr é evidenciado pelo voltar-se para o
misticismo e o estabelecimento de várias seitas. A extensão da correria para a
qual se dirige a necessidade religiosa em busca de preenchimento corresponde
ao tamanho do autêntico (e talvez por vezes também imaginado) desespero.
E assim não é de surpreender que essa necessidade religiosa finalmente che-
gue às doutrinas do leste. Em geral, de acordo com sua necessidade particular,
as pessoas ora desejam autoridade incondicional e desenvolvimento rígido
das formas, ora envolvimento individual e mais livre no âmbito das religiões: a
aceitação da existência da fé já formulada se alterna com o esforço para relaxar
com o fato dado. Há de se desculpar aquele que procura a supervalorização,
muitas vezes encontrada, da segurança que torna possível o repouso na fé.
1 Ver, por exemplo, o trabalho de 1908 de Georg Simmel sobre o grupo em Soziologie: Unter-
suchungen über die Formen der Vergesellschaftung [Sociologia: Investigações sobre as formas
da socialização], reimpresso no volume 11 da Gesamtausgabe [Obra completa]. Frankfurt am
164 Main: Suhrkamp, 1992.
ideia surgem e desaparecem também com esta; sua unidade não é parte ima-
nente da vida orgânica, crescente, mas é criada a partir de um determinado
conceito que quer vir à vida por meio desta unidade. Fica evidente de quais
grupos se trata propriamente nesta conexão: sobretudo aqueles grupos que
devem se constituir a fim de realizar uma ideia, quando esta ideia se move
do estágio da proclamação à realização. Como o desenvolvimento da própria
ideia, o desenvolvimento de todas as individualidades de grupo deste tipo, que
passam a existir apenas em razão de uma ideia, está sujeito a regularidades
gerais. Os grupos e as ideias pertencem estreitamente um ao outro, um vem
após o outro e não se pode interpretar o curso de uma ideia sem determinar
a essência da individualidade de grupo que lhe cria.
Na caracterização da essência de um grupo portador de uma ideia, há
dois procedimentos diametralmente contrapostos. De acordo com uma visão,
que poderia talvez ser chamada de autoritativa, a ideia, que estabelece a uni-
dade do grupo, é localizada definitivamente acima dos membros individuais
e completamente acima das vontades subjetivas. A ideia absolutamente sobe-
rana se desdobra numa esfera impenetrável a quaisquer impulsos subjetivos,
a vontade individual (como vontade de um indivíduo existente para-si) de
modo algum entra aqui em consideração. Para os defensores desta doutrina,
o indivíduo singular é uma figura puramente acidental sem núcleo essencial;
para eles, somente a ideia possui sentido e conteúdo essencial, uma ideia que
demanda a submissão de cada um. Os indivíduos são efêmeros, enquanto a
ideia é eterna, permanecendo intocável pelo tempo. Segundo esta teoria, o
Estado, por exemplo, é uma essencialidade autônoma e supraindividual, a
qual não pode ser comparada às pessoas que o incorporam, mas em última
instância não possui nada em comum com elas; estas pessoas são igualmente
apenas a matéria na qual o Estado se realiza, uma matéria passiva que se deixa
moldar e que não possui nenhuma influência na forma da ideia enquanto tal.
Os mandamentos do Estado estão de acordo com isso, imunes a toda crítica
individual, por mais justificada que seja. O direito vigente é uma constituição
que, uma vez instaurada, é uma fonte que se situa além de toda deliberação
empírica, e por isso, apesar de estar em falta momentaneamente com a cons-
ciência jurídica, não pode ser em princípio suspensa. Pois, de acordo com a 165
doutrina autoritativa, todos os grupos que portam ideias ou que se formaram
a partir delas são unidades inseparáveis, seus conteúdos ideais pairam como
autofinalidades no absoluto, que não podem ser nem criados ou eliminados,
não há nenhuma ponte que una o âmbito de existência eterna das ideias com
a vida do grupo em constante mutação.
De acordo com outra interpretação, que podemos denominar de individua
lista, toda ideia que possui controle sobre um grupo emana do espírito de todos
os indivíduos que constituem o grupo. Em geral existem apenas indivíduos
singulares, e assim não há razão para assumir a individualidade de grupo que
sente e pensa como unidade e que é dotada de sua própria essência. O espírito
do grupo: a harmonia dos espíritos de todos os membros do grupo, o grupo
não é mais do que a soma de seus membros. Os defensores desta posição
atomizadora negam a unidade qualitativa e a peculiaridade do grupo como
um todo, em vez disso, transferem a realidade e a força de gravidade aos indi-
víduos em vez de ao conjunto, às opiniões da multidão condicionadas tempo-
ralmente em vez das ideias dominantes supratemporais. Sua doutrina termina
com as seguintes teses prático-políticas: “o Estado (o direito etc.) existe para as
pessoas e não as pessoas para o Estado (o direito etc.)”. Deste modo, as ideias,
as quais o grupo professa, perdem a sua substância, tornam-se expressão de
uma flutuante e leve vontade de uma multiplicidade de indivíduos, e possuem
seu direito à existência na medida em que estes indivíduos estão de acordo
com elas. Quando se assume a primeira interpretação, o indivíduo desaparece
no mundo social e sua significação se expia no interior de um grupo. As ideias
se destacam dele e, como estrelas, descrevem órbitas sobre sua cabeça. Ao se
concordar com a segunda interpretação, o indivíduo é a única realidade no
mundo social, enquanto a individualidade de grupo torna-se um fantasma,
as ideias são relegadas ao espírito dos indivíduos singulares, não possuindo
nenhuma vida à parte, independente.
Nenhuma destas duas interpretações, cujas fontes de visão de mundo são
evidentes, correspondem exatamente de modo fenomenológico aos fatos de-
monstráveis. Antes de tudo, no que concerne à doutrina autoritativa, esta traça
uma profunda linha de separação entre, de um lado, as ideias e os grupos que
166 as incorporam e, de outro, as pessoas que constituem estes grupos. Partindo
de uma correta observação, segundo a qual os movimentos dos grupos e o
destino das ideias levadas a cabo pelos grupos assim se realizam de facto como
se tratassem de movimentos e destinos de essências autônomas, indo longe
demais, as ideias que emanam do grupo (que se constituem nele em primeiro
lugar) tornam-se construções soberanas que não possuem mais a mínima re-
lação com a existência dos indivíduos singulares. Da perspectiva da visão au-
toritativa, a gênese histórica das ideias é tão inexplicável como o seu declínio.
Quando e onde as ideias emergem é deixado em aberto; basta que elas este-
jam lá, cristalizadas como essencialidades fora do tempo em meio ao funcio-
namento do mundo social. De acordo com esta visão, o ser coletivo do grupo
está aferrado à ideia, enquanto os indivíduos eles próprios sucumbem no reino
das sombras, sem criar a ideia e sem ser nem mesmo afetado por ela.
A outra, a doutrina individualista faz jus à realidade na medida em que es-
tabelece uma relação direta entre as efetivas entidades sociais e os indivíduos
singulares. Aqui, as ideias não estão tão inacessivelmente distantes de modo a
impossibilitar a sua criação e a sua destruição por meio dos indivíduos, nem os
grupos são entendidos como unidades indissolúveis que resistem com sucesso
à decomposição e à desintegração de suas partes. Apesar de tudo isso, a dou-
trina individualista equivoca-se ao reconhecer que as ideias, as quais os grupos
incorporam, não são mais do que simples expoentes de almas individuais. Não
está nem em condições de apreender o desenvolvimento das ideias no mundo
social (cuja experiência ensina com frequência independentemente da von-
tade individual), nem em condições de explicar a potente autoafirmação da
individualidade de grupo em relação a seus membros singulares. O segundo
procedimento ata as ideias demasiadamente próximas do indivíduo singular,
enquanto o primeiro procedimento desloca-as exclusivamente para regiões su-
praindividuais. Com a intenção de localizar todo o poder e grandeza na alma
individual, que é concebida como fim em si mesma, o individualismo exacer-
bado cai no erro (que poderia ser caracterizado como erro lógico) de depreciar
os maiores produtos da alma individual – sobretudo, as ideias – roubando-lhes
o significado e a soberania que deveriam estar garantidos para eles pela sua
herança. Igualmente inconsistente no procedimento individualista é o juízo
que deprecia as entidades de grupo de toda autonomia e egoidade [Ichheit], já 167
que, do mesmo modo, emanam dos indivíduos, e todo aquele que atribui um
sentido último a estes indivíduos não pode, decerto, sacrificar a consistência
e autossuficiência do que é o próprio fazer deles. Quando se concebe todas
estas criações (ideias, grupos etc.) como destituídas de qualquer essência, en-
tão quem perde também ao final sua essência é o criador (o eu singular); ele
é transformado em um demolidor eterno do mundo e poderia deste modo
apenas afirmar que seu eu é projetado nas obras efetivas. O individualismo
que temos aqui é um autêntico produto do esclarecimento [Aufklärung], que
não dá atenção às diferenças de visão de mundo entre os homens, que aceita
simplesmente a completa concordância de todo ser racional e pode, portanto,
facilmente não perceber o grupo como uma formação à parte, decorrente da
transição entre a ideia e o indivíduo singular. Com o desenvolvimento da dife-
renciação de indivíduos com a mesma orientação em múltiplas personalidades
cosmológicas, aflora em seguida o movimento característico das ideias e das
entidades de grupo em horizontes de consciência que podem ser reduzidos
em nada menos do que efeitos espirituais de uma multiplicidade infinita de
espíritos individuais heterogêneos.
Portanto o grupo é o mediador entre os indivíduos e as ideias que preen-
chem o mundo social. Sempre quando uma ideia irrompe da obscuridade e
experimenta uma formulação, se produz uma disposição similar na alma dos
indivíduos que lhes vão de encontro, e começa ser realizada se estas pessoas se
unem para formar um grupo que quer lutar para transformar a ideia em reali-
dade. A ideia não transcende os indivíduos, como é proclamado pela doutrina
autoritativa, mas influi constantemente por si e por meio deles neste processo,
no entanto, estes indivíduos são transformados em portadores de ideias e, em
seguida, deixam de ser independentes, além do eu singular que se movimenta
livremente, mas ligados à ideia e formados por ela, com pensamento e senti-
mento unitariamente circunscritos. Porque a ideia forma seu interior, desta-
cam-se da massa de indivíduos independentes da ideia; seguem um caminho
particular cuja direção é já assinalada pela ideia. Por ora, é suficiente dizer que
o grupo é apenas aquela união de pessoas com a mesma constituição espiritual
necessária para a realização de ideias; não é uma associação arbitrária de indi-
168 víduos espiritualmente indeterminados. É uma entidade coletiva na medida
em que as expressões de consciência de todos os seus membros emergem da
mesma base, no caso, do fundamento da ideia, e deste modo desembocam a
priori em ações unitárias. O grupo, e a ideia que incorpora, segue uma exis-
tência à parte, além dos indivíduos, somente quando comparado com a mul-
tiplicidade de ações arbitrárias individuais que foram assumidas de antemão,
mas não quando comparado com as almas individuais de formação similar.
Apenas quando os membros de um grupo se desprendem da ideia que pesa
sobre eles como uma obrigação externa; somente então, a adesão à ideia lhes
parece uma essencialidade independente que lhes oprime.
Os membros do grupo, ao compreender a si mesmos, nas suas qualida-
des particulares, como portadores de ideias, colocam em seguida a questão
de como tal ideia, que estratifica seus interiores, é assumida e reformulada.
Toda ideia que amalgama um grupo se cristaliza numa forma de contornos
bem demarcados. Torna-se um programa político, com palavras de ordem e
dogmas característicos; resumidamente, apresenta-se como um dever-ser de
conteúdos delimitados e que exige realização. Mas este dever-ser especificado
de modo preciso aponta sempre além de si mesmo; sua formulação dada pelo
grupo torna-se meramente uma faceta visível de um vasto itinerário espiri-
tual que o grupo percorre do início ao fim. Não há absolutamente nenhuma
expressão espiritual que possa existir por si mesma, sem estar entrelaçada a
uma ampla conexão de significado. Brota sempre de alguma convicção úl-
tima e dirige sempre a outras expressões, cuja combinação forma um todo
de significado unitário. Como resultado, a ideia socialmente efetiva contém
sempre em si a direção na qual pretende ser ampliada, é a expressão abreviada
de algum aspecto conjunto, o qual é sempre enfatizado, aspecto este que se
apresenta como necessário a uma época particular e em circunstâncias sociais
específicas. Os membros dos grupos, que se colocam a favor de um conteúdo
ideal, vivenciam e querem mais do que este dever-ser que se formula e que já
foi formulado; tomam um caminho que os leva através do mundo inteiro, e
o conteúdo que prescrevem a si é apenas uma onda que se lança na contra-
corrente de suas consciências; ou melhor: este conteúdo demarca o lugar no
qual a corrente de seu pensamento deve ir de encontro com uma dada situa
ção. É totalmente sem importância ou no máximo de interesse psicológico 169
se a direção da consciência, na qual aflora a ideia, é já dada ou se o conteúdo
inicialmente dado do dever-ser começa a formar um grande percurso. Em
todo caso, os membros do grupo extraem todas as possibilidades depositadas
de forma embrionária na ideia, e a desdobram até a totalidade que nela já está
implícita. Os programas dos partidos políticos possuem seus fundamentos
de visão de mundo, e todas as exigências ideais reguladoras para a formação
de grupos são produtos de convicções básicas, que influenciam tudo ao redor
deles e assim estabelecem conexões dotadas de sentido entre estas exigências
e outras pretensões espirituais e valorativas.
Há uma enorme diferença entre pessoas constituídas como indivíduos e
aquelas constituídas por ideias como membros de grupos, conforme foi ca-
racterizado acima, e a consideração desta diferença leva antes de tudo à visão
da natureza específica da individualidade de grupo. Para começar, apenas al-
gumas ideias determinadas penetram no espírito do indivíduo singular. Vão
certamente ampliar e permitir a formação de um caminho que se estende de
um lado a outro do mundo. Mas o indivíduo que existe para-si é (ao menos
como possibilidade) um microcosmo no qual pulsam desejos e forças espiri-
tuais diversas; por isso, a conexão de sentido criada por meio da ideia apenas
em raríssimos casos ocupa o conjunto da consciência. Pensamentos e intui-
ções que se originam de outras regiões da alma interferem nesta conexão, dis-
persando-a e a intercruzando. Supondo que a ideia chegasse a se desenvolver
inteiramente no indivíduo, então poderia conquistar uma supremacia pura e
claramente sobre o espírito individual apenas se se tratasse de um princípio
sublime a comover o eu como um todo. Certamente, o indivíduo vivencia
ideias, dando-lhes forma e dedicando-se a elas, mas sempre mais do que um
mero portador de uma ideia; não é tão fácil para o sujeito romper as cadeias
de seu destino único para que a ideia possa agir no espaço vazio e não-preen-
chido de sua alma. Diferentemente, quando o indivíduo sai de seu isolamento
e torna-se membro de um grupo. No grupo, o indivíduo vale na medida em
que é pura incorporação da ideia. Suas relações com outros membros servem
exclusiva e inteiramente para a construção e realização do conteúdo do dever-
ser criado pelo grupo; tudo mais que nele todavia vive e quer saber deve fazer
170 valer fora do grupo. Com isso, ao tornar-se membro de um grupo, uma parte
do ser individual – parte formada pela ideia –, separa-se do plano conjunto
de seu ser, plano este que, potencialmente, é capaz de realizar, e coloca-se em
ação independentemente. Assim como o diapasão é afinado em um único tom,
do mesmo modo o grupo está de acordo apenas em relação à ideia defendida
por ele; no momento em que o grupo se constitui, tudo o que não diz respeito
à ideia é automaticamente excluído; as pessoas unidas em grupo não são mais
indivíduos inteiros, mas apenas fragmentos de indivíduos cujo direito de exis-
tência deve-se exclusivamente em função das finalidades do grupo. O sujeito
como eu único em relação a outros eus únicos: um ser cuja habilidade deve
ser concebida sem fim e que, incapaz de ser completamente dominado pela
ideia, continua a viver na região localizada fora da esfera de influência da ideia.
O sujeito como membro de grupo: um eu-parcial que foi separado de seu ser
conjunto que não pode sair dos trilhos prescritos pela ideia.
Atingindo agora este ponto da análise, pode-se finalmente compreender
por que há algo como um ser coletivo, uma individualidade de grupo que não
pode ser dissolvida numa multiplicidade de indivíduos, mas, certamente, que
se move sobre suas cabeças de acordo com suas próprias leis, com frequência
e aparentemente com independência das expectativas e (momentâneas) ne-
cessidades de seus participantes. O grupo abarca, assim, em vez de indivíduos
inteiramente formados, apenas eus reduzidos, abstrações de pessoas em si, o
grupo é um puro instrumento da ideia e nada mais. Mas não é surpreendente
que pessoas que não possuem mais pleno controle de si mesmas ajam diferen-
temente daquelas que têm plena posse de si próprias? Há uma poderosa ne-
cessidade no curso das ideias em meio ao mundo social. O indivíduo singular
que se contempla deve se unir a outros para transformar o dever-ser em ser.
No momento então em que o grupo torna-se ser, ocorre, portanto, a redução
dos eus, e, no lugar de muitos indivíduos, que se empenham na realização da
ideia, há agora muitas criaturas dependentes da ideia e vivendo de sua graça.
Estas criaturas são complementadas pela ideia enquanto tal – e apenas por
meio desta ideia – e devem afundar na falta de substância se sentissem que se
desgarraram dela. A ideia não aparece nelas, mas as cria, não são elas que
realizam a ideia, mas, ao contrário esta as realiza e sopra-lhes vida. Faz sen-
tido falar da individualidade de grupo como um ser independente. Pois estes 171
eus-parciais, estas criaturas pela metade ou um quarto de criaturas nasceram
apenas no processo de preparação para ações comuns (isto é, para encontros
do grupo), têm o seu lugar não nos indivíduos isolados, mas emergem antes
de tudo da união dos indivíduos em entidades espirituais que se separam deles
e que só podem existir em grupo.
O fato de que o indivíduo pleno desaparece no grupo possui uma influência
decisiva no caráter que representam e orientam as individualidades de grupo
no mundo social. Na medida em que a pessoa se comporta como entidade in-
dividual, nela crescem mil emoções, desejos, ideias e sentimentos tenros que se
entrelaçam um no outro; e mesmo o traço da alma mais silencioso e sutil pode
ser colocado também em conexão espiritual. Mas se este sujeito se une a uma
multiplicidade indiscriminada de pessoas para formar um grupo (determinado
por uma ideia), então o eu-parcial que separa a si mesmo desta subjetividade
não expõe mais a infinita multiplicidade de traços próprios a ele como indiví-
duo singular. E isto por razões essenciais à sua natureza. Pois quando um nú-
mero de pessoas se aglutina num grupo, então é pura e simplesmente impossível
para elas se relacionarem com a plena extensão de suas almas. A via espiritual,
na qual se move o pensamento do grupo deve ser construída de tal modo que
todos os membros do grupo possam se movimentar. A totalidade individual
do sujeito é então banida do novo eu-de-grupo resultante, e apenas os traços
comuns a todos os vários sujeitos que pertencem ao grupo podem contribuir
à construção da individualidade de grupo. Em outras palavras: o pulsante, in-
consciente e organicamente distendido reino vital do eu individual é estranho
à individualidade de grupo. É pobre em comparação com aquele em traços e
aspirações, falta-lhe o fundamento anímico fértil e criativo que emite a multi-
plicidade racional inapreensível de conteúdos. Investiga-se em vão na busca de
transições escorregadias, de sentimentos anônimos e de camadas de vivências
alojadas de um extremo ao outro que se encontram (pelo menos potencial-
mente) no indivíduo; incapaz de estender-se em várias dimensões, move-se
numa única direção, não se afastando nem à esquerda nem à direita sem desin-
tegrar-se. A linearidade do desdobramento constitui um traço fundamental da
essência da individualidade de grupo. A esta característica da unidimensiona-
172 lidade está ligada necessariamente uma certa rigidez e ao modo tosco em que
se apoia o eu-de-grupo, como questão de princípio, jamais pode sustentar em si
a intrincada massa de vivências homogêneas do eu individual. Como resultado,
perde-se algo de flexibilidade e de delicadeza, e muitas regiões de oportunidade
e de vivências disponíveis ao indivíduo permanecem-lhe inacessíveis.
A característica de toda ideia que engendra o grupo deve corresponder na-
turalmente ao caráter da individualidade de grupo que é reconhecida como
essencial à sua natureza. Ao indivíduo singular, em contrapartida, a ideia pode
se dar de infinitas maneiras, desde que possa inseri-la tanto de modo grosseiro
como sutil em diferentes conexões de pensamentos. Quando incorpora uma
ideia, tece a partir dela inumeráveis fios que o envolvem com outros conteúdos
de sua consciência, produzindo um tecido de relações no qual a ideia está de
tal modo entrelaçada que não pode ser dissociada deste como uma construção
autônoma. O grupo, ao contrário, pode apenas se constituir a si próprio gra-
ças a tais conteúdos ideais, carecendo assim de qualquer centelha intangível.
E nisto reside sua particularidade, ao renunciar à plenitude que corresponde ao
eu individual e que ainda retém do amplo espectro de vivências apenas algu-
mas cores primárias. No entanto, um ser deste tipo pode digerir apenas deter-
minados ideais de relativa rigidez; conteúdos para os quais não possui órgão
adequado são simplesmente repelidos. Toda vez que uma ideia cultivada por
uma personalidade significativa é incorporada num grupo, a inconfundível in-
dividualidade ligada a esta personalidade se dissolve na transição, rompendo as
conexões entre a ideia e todos os múltiplos âmbitos de vivência, nas quais está
ancorada, enquanto se mantém sob o controle do eu-individual. Nada pode
indicar de modo mais evidente a mudança que realiza a ideia em tal situação,
por exemplo, a aversão de Wagner aos wagnerianos, ou a afirmação de Marx
de que não é marxista. Para imaginar por outros motivos uma atitude deste
tipo, se explica porque o criador de ideias não reconhece mais suas próprias
ideias, chegando mesmo a repudiá-las, quando estas em seu curso pelo mundo
social produzem um grupo e passam a se desenvolver em uma outra esfera
seguindo suas próprias leis.
É inerente às ideias deste tipo, no entanto, uma incontrolável necessidade
de se desenvolver além de seus limites, uma necessidade de se tornar eterna.
Na medida em que o eu-individual se coloca inteiramente pela sua realização 173
e na medida em que estas ideias são circunscritas por um feixe de irradiações
direcionado ao infinito, conservam mesmo assim uma certa labilidade, encai-
xando-se cá e lá e deixando-se modular de múltiplas maneiras. Quando passam,
entretanto, a ser defendidas por grupos, perdem sua elasticidade individual,
metamorfoseando-se numa construção fortemente enrijecida, descrita ante-
riormente, que avança como se fosse movida por uma implacável compulsão.
Pode-se colocar em dúvida até que ponto um indivíduo singular, inteiramente
dominado por uma ideia, se mantém de um modo ou de outro, pois jamais as
muitas fontes de seu ser podem ser retiradas inteiramente de seu ocultamento.
A individualidade de grupo, ao contrário, não possui nenhuma outra fonte do
que aquela constituída pela ideia, e que penetra na realidade com implacável
consequência. É como se fosse simplesmente a força de propulsão inerente
à ideia que a impelisse adiante na direção que tomou, como se seu caminho
fosse o produto do desenvolvimento de possibilidades imanentes à ideia e das
resistências que emergem caso a caso. Já que a individualidade de grupo não
se apropria de conteúdos que preenchem o mundo social, suas ações são puras
expressões de que a ideia pode possivelmente estar de acordo com qualquer
situação dada; basicamente, a individualidade de grupo põe em movimento
apenas aquelas ações que seriam também apropriadas à ideia se fossem para
penetrar na multiplicidade em estado incorpóreo e impulsionado meramente
pela sua força originária inata. No entanto, deve-se atentar que as ideias que se
desdobram deste modo logicamente são já sempre formações em boa medida
esquemáticas e toscas; pois este embrutecimento [Vergröberung] de seu ser é
evidentemente o preço que se deve pagar para ser capaz de percorrer o longo ca-
minho do dever-ser ao ser e não desaparecer no processo sem deixar traços.
A individualidade de grupo é válida unicamente na medida em que contri-
bui para a realização da ideia à qual está subordinada. Assim como o Golem
é aniquilado se é retirada de sua boca a folha de papel na qual está escrita a
fórmula que lhe dá vida, assim também com o grupo, que desaparece se é se-
parado da ideia que lhe dá existência.2 Já que o eu-de-grupo, que é separado
2 Na mística e no folclore judaico, um certo sábio da lenda talmúdica foi capaz de dar vida a
174 uma enorme efígie feita de barro por meio do encanto de frases que soletravam palavras →
do eu singular pleno, existe apenas por meio da ideia, deve igualmente ruir
de imediato se lhe retira o fundamento no qual está construído (ou, o que
ocorre frequentemente, torna-se uma entidade de grupo inteiramente nova
e constituída de modo diverso). Nesse sentido, o eu-de-grupo se diferencia
profundamente do indivíduo singular. Este último é capaz de sobreviver a
toda ideia a qual se dedicou uma vez, permanecendo decerto o mesmo eu. Tal
conteúdo é também assimilado no curso do tempo: a conexão de sua vida é
sempre reconstituída novamente, não importando quais direções venham a
tomar, retornando finalmente à inesgotável fonte de sua vida. O que separa o
eu-individual do eu-de-grupo é antes de tudo a vivência do retorno [Umkehr].
Uma personalidade devota de uma ideia particular pode abandoná-la e passar
a dedicar-se ao que foi anteriormente denunciado. No entanto, a essência subs-
tancial do indivíduo se mantém também mesmo após sua mudança, a antiga
pessoa continua presente na nova pessoa convertida, mas como alguém que
se transformou, a imbricação de vivências não tolera nenhuma ruptura com
o que existiu uma vez; resumindo: o ser individual não é exterminado, mas
simplesmente transportado para uma outra forma de existência. Esta mu-
dança radical é impossível para a rígida individualidade de grupo. Pode mu-
dar (como será ainda demonstrado), mas não pode se colocar contra a ideia,
cujo encargo foi criado em primeiro lugar. Já que não é de modo algum mais
do que o portador vivo e representante do percurso espiritual estabelecido
pela ideia, teria que aniquilar a si próprio se desejasse eliminar este percurso.
É considerável que as mesmas pessoas que renunciaram materialmente a um
grupo determinado possam reaparecer num novo grupo cuja orientação é o
contrário da do anterior; mas trata-se antes da formação de uma outra indivi
→ sagradas ou um dos nomes de Deus. Esta efígie era o Golem. Segundo a versão da lenda
encontrada no Sefr Yezirah (Livro da criação), quando estas frases eram escritas numa folha
de papel e colocadas na boca do Golem ou fixadas em sua cabeça, este ganhava magicamente
vida e morria subitamente ao ser-lhe retirada a folha de papel. Recontada por Grimm em
1808, a fábula foi retomada pelos românticos alemães (Ludwig Achim von Armin e por E. T. A.
Hoffmann) e posteriormente por Gustav Meyrink no romance Golem, de 1915, e ganhou três
versões cinematográficas dirigidas por Paul Wegener, com magníficos cenários expressionis
tas desenhados pelo arquiteto Hanz Pölzig. 175
dualidade de grupo que é essencialmente estranha à anterior e que nada mais
contém desta.
A estreita conexão de grupos e ideias é, ademais, de alguma significação
para o surgimento de classes e de camadas do povo que se consideram como
unidade e, consequentemente, se isolando uma das outras. Há certamente al-
guma verdade na visão segundo a qual a tosca diferença de classes no Estado
moderno advém de uma antiga usurpação da terra por meio de um conquis-
tador estrangeiro que se torna subsequentemente classe superior; no entanto,
não é suficiente como explicação, pois, como resultado histórico e não de uma
perspectiva sociológica, ofusca a importante circunstância para o surgimento
de classes e camadas sociais – supondo que haja uma grande comunidade
sem qualquer estratificação entre seus membros e que estes partilham mais
ou menos dos mesmos níveis culturais e puramente humanos. Pode-se de-
monstrar, no entanto, com uma certeza quase matemática, que esta situação
não pode perdurar por muito tempo, pois contradiz certas qualidades básicas
da essência humana. Segundo a constituição do homem que conhecemos e
desde tempos imemoriais, é simplesmente impossível estabelecer uma extensa
divisão de trabalho em qualquer grande comunidade se devem ser satisfeitas
todas as necessidades de civilização e cultura de um povo maduro. A recusa
consciente à diferenciação leva necessariamente ao estágio primitivo. Órgãos
administrativos se constituem, as várias profissões intelectuais e do comércio
surgem acima da condição camponesa e assim por diante. Na medida em que
a vida permanece em fluxo, uma infinidade de ideias que criam a ocasião para
a formação de grupos continuará a brotar. Os membros de todas as profissões
desenvolvem invariavelmente entre si um percurso espiritual apropriado à sua
situação social; isto significa que transformam a si próprios em individuali-
dades socialmente típicas. O mesmo modo de pensar e as múltiplas relações
fraternas entre eles os levam normalmente a partilhar juntos efetivamente de
grupos unificados (corporações, associações profissionais de todos os tipos),
ou pelo menos a sentir como se fossem seus próprios grupos. De qualquer
maneira, a comunidade pressuposta aqui dá origem a uma série de grupos
que constitui em parte o resultado de ideias circulantes no mundo social (se
176 não houvesse tais ideias, então o dever-ser transformar-se-ia diretamente em
ser, o que seria o fim dos tempos) e em parte a incorporação de perspectivas
conjuntas correspondentes aos diferentes setores da sociedade.
Mas a individualidade de grupo é sempre um ser unitário e de certo modo
primitivo que, como foi visto, se desenvolve a partir de suas próprias leis e que
de modo algum é sinônimo da soma dos indivíduos singulares que formam o
grupo. As individualidades surgem na comunidade e não podem ser determi-
nadas, de modo algum, completamente a partir de indivíduos isolados, pois
esta se movimenta como se estivesse acima de suas cabeças. Mas, estes espíritos
de camadas, classes e grupos desenvolvem-se necessariamente em diferentes
direções, pois são determinados por constantes dadas pelos diferentes luga-
res sociais (caso não fosse assim, não haveria nenhuma divisão de trabalho, o
que contradiz nossos pressupostos); seus representantes, os eus-parciais que
foram diferenciados dos considerados indivíduos plenos, são, enquanto tais,
rígidos, intransigentes e incapazes de qualquer mudança radical, podendo
até ser destruídos. O frequentemente observado egoísmo de grupo pode ser
explicado pelo fato de que as individualidades de grupo, constituídas por al-
guma ideia, não são nada mais do que a incorporação daquelas essencialidades
que querem ser eternas; são impelidas a qualquer preço à autoafirmação, ou
perdem sua existência; melhor dizendo: devem permanecer fiéis para sem-
pre à conexão de sentido que representam, já que existem apenas em razão
desta, e seriam suplantadas quando tentassem ir além desta conexão de sen-
tido. Na nossa comunidade ideal brotam assim características de grupo e de
camadas sociais, que se sentem enquanto unidade e, caso tivessem em torno
de si apenas espaço vazio, certamente iriam ter a necessidade de se expandir
sem limites. Um grupo significa para outro grupo uma forma de resistência
com a qual se empenha e vai além pela afirmação de sua própria existência,
procurando se distinguir a si próprio incisivamente de outras individualida-
des coletivas que ocupam o mesmo espaço social. Tudo isto demonstra que a
formação de diferentes classes, camadas etc. que se colocam à parte uma das
outras é o resultado inevitável do progressivo processo de diferenciação, exceto
talvez numa comunidade utópica constituída exclusivamente por pessoas da
mais elevada intensidade. Mas isto não implica que nem as classes (especial-
mente as econômicas) permaneçam existindo na forma que alcançaram até 177
agora, nem que devam lutar entre si mais brutalmente do que já fazem hoje.
Deve ser observado de passagem que uma diminuição do egoísmo de grupo
e do antagonismo entre os espíritos de grupo, uma erradicação das desigual-
dades econômicas e assim por diante são coisas alcançáveis, ao contrário de
uma eliminação completa da estruturação hierárquica das camadas sociais e
de todas as diferenças de nível entre os grupos. Provavelmente as observações
mais profundas que já foram feitas sobre este tema encontram-se na filosofia
social tomista. Os idealistas utópicos podem continuar a imaginar que, talvez
por meio da educação, pode-se criar uma comunidade de “livres e iguais”, uma
comunidade cujos membros individuais e grupos encontram-se sem atrito em
uma perfeita, por assim dizer, harmonia pré-estabelecida. Tais coisas podem
ser belamente imaginadas e prestam um serviço indispensável como princípio
normativo; a realidade, no entanto, não corresponde simplesmente às exigên-
cias da razão e é tarefa da ontologia desvendar o terrível em-si desta realidade.
O maior obstáculo para a realização destes ideais da razão encontra-se no fato
de que quando as pessoas se esforçam inteiramente numa direção (isto é, de-
senvolvem-se com grande intensidade) podem ser receptivos a outra direção
somente quando se encontram numa situação de relaxamento. Uma vez na
“esfera de relaxamento” [Entspannung], no entanto, agem não com o conjunto
da força de seus espíritos, mas recaem no entorpecimento deixando-se domi-
nar pelo nebuloso e pesado poder da matéria. Em outras palavras: a realidade,
o meramente existente, é, em qualquer tempo e lugar, sempre intransponível,
e mesmo a essência da individualidade de grupo permanece, portanto, insu-
perável, imprimindo sempre na comunidade suas marcas características.
A duração de vida de um grupo é determinada, sobretudo, se não inteira-
mente, pelas metas que constituem o grupo enquanto tal; é independente sim-
plesmente da vida e morte dos indivíduos que compõem o grupo. No percurso
pelo tempo a individualidade de grupo extrai as possibilidades imanentes da
ideia, ou mais precisamente: procura afirmar a ideia, enquanto preenche a vida
o tempo nela se esvai. O indivíduo enquanto indivíduo pode pensar e sentir
como e o que quiser; na medida em que se torna membro de grupo deve se
subordinar à ideia; transforma-se então numa individualidade de grupo ex-
178 tratemporal, seu eu-à-parte, que está enraizado na inteira amplitude de sua
existência temporal, dá lugar assim apenas à ideia a qual seu eu se subordina.
O núncio apostólico Enéas Sílvio foi um livre-pensador inclinado favoravel-
mente a um plano de reformas; no instante, entretanto, em que se tornou papa,
considerou-se a si mesmo apenas como lutador da igreja e de suas tradições,
o espírito da igreja apoderou-se de seu outro eu anterior.3
Os conhecimentos desenvolvidos até aqui, que pertencem ao domínio da
sociologia puramente formal, possuem uma semelhança significativa com a
lei da inércia na mecânica. Isto vale apenas num espaço galileano, num espaço
vazio sem a presença de nenhuma massa. É um caso limite, um princípio que
expressa o movimento de um corpo independentemente da realidade circun-
dante. No momento em que se incluem massas o movimento não se processa
do mesmo modo, como prescreve o princípio; contudo, o princípio conserva
o seu valor, pois, ao incluir meramente na equação todas as forças atuantes no
corpo, pode-se derivar deste a fórmula para o movimento real posterior. No
“espaço galileano” a ideia forma o seu corpo de grupo e emerge um eu-de-grupo
que, numa versão pura, independente da vida particular do indivíduo singu-
lar, desenvolve as forças e conteúdos residentes na ideia. Quando se considera
agora o mesmo cenário, mas com a plenitude conjunta da realidade, torna-se
claro que as determinações formais da essência do grupo não são necessaria-
mente válidas na esfera sociológica material ou pelo menos não podem ser
unilateralmente aplicadas nesta. As forças gravitacionais do existente desviam
o eu-de-grupo de seu percurso estrito que, de acordo com sua essência geral,
deveriam seguir. Estas mesmas forças frequentemente interrompem as rela-
ções mais estreitas – o que as revela à pura intuição fenomenológica – entre o
eu-de-grupo e a ideia de que este é portador. Não é nossa tarefa aqui perscrutar
os múltiplos destinos empíricos dos quais as ideias e os grupos que as incor-
poram são objeto no mundo real. Qualquer um que tente dar cabo desta ta-
refa – em princípio insolúvel – perder-se-ia na má infinitude e descobrir-se-ia
eventualmente fazendo, entre outras coisas, observações psicológicas; pois, ao
perseguir seu objetivo, teria que se aproximar cada vez mais dos casos particu-
lares ulteriores, terminando em considerações condicionadas subjetivamente
3 Enéas Sílvio Piccolomini (1405-64), que se tornou o papa Pio II (1458-64). 179
do existente concreto sem poder extrair suas regularidades. Certos processos
típicos manifestos por ideias ou grupos podem muito bem se tornar eviden-
tes. Estes processos, que caracterizei de outro modo como o esquema típico
das categorias sociológicas mais elevadas,4 representam igualmente a primeira
estação do caminho da sociologia formal à sociologia material, e quando se
referem também a eventos individuais, conservam decerto ainda a validade
universal das intuições da essência extraídas do “espaço galileano”, intuições
que podem ser deduzidas como experimento de pensamento.
O fenômeno da cisão [Spaltung] é particularmente típico para o grupo por-
tador de ideias. No percurso de sua passagem pelo mundo social, a questão
tática que sempre se coloca é como melhor proceder numa ou noutra situação
para que a ideia pela qual o grupo se empenha possa ser realizada. Supondo
que na ocasião de fundação do grupo os membros estabeleceram um programa
fixo contendo todas as exigências para a realização da ideia gerativa do grupo
de acordo com a situação momentânea da realidade. Enquanto a individua-
lidade de grupo intervém na realidade, segundo as medidas deste programa,
modifica-se a própria realidade (em parte como resultado da ação do grupo),
criando uma nova situação que faz necessária uma outra relação do grupo.
Pressupondo que a ideia continua sendo ainda viável, seu programa tem de
ser modificado de modo a dar conta da mudança da realidade. (Que se pense,
por exemplo, nas posições dos partidos políticos antes e depois da revolução,
ou nas relações mutantes da Igreja com os poderes políticos.) As modifica-
ções de pontos de vista do grupo devem ocorrer sempre gradual e paulatina-
mente, sobretudo quando o seu meio se modifica sucessivamente. Na medida
em que são estabelecidas certas linhas diretivas para a ação do eu-de-grupo,
os partidários posteriores aderem a estas com uma fidelidade imperturbável
para que nada lhes permita sair do caminho. Toda mudança de orientação re-
quer sempre antes de tudo uma nova resolução. Como indivíduos, as pessoas
pertencentes ao grupo podem pensar o que quiserem sobre o movimento do
190
O saguão de hotel
202
Perspectivas
A Bíblia em alemão
1 Die Schrift [A Escritura] tradução para o alemão realizada por Martin Buber juntamente
com Rosenzweig. Berlim, 1925.
2 Franz Rosenzweig, Der Stern der Erlösung [A estrela da redenção]. Frankfurt: J. Kauffmann,
1921. 205
é inteiramente consequente que Rosenzweig tenha sido cativado pela reali-
dade da vida judaica religiosamente engajada. A fundação do Freies jüdisches
Lehrhaus (Instituto livre de ensino judaico), em Frankfurt,3 e a sua tradução
do volume de poemas e hinos de Yehuda Halevi4 são uma prova exterior da
sua guinada da teoria à prática. – Buber, dirigente de uma parte da geração
judaica mais nova (particularmente aquela de orientação sionista), acompanha
Rosenzweig nessa mudança. Buber é conhecido nas esferas do público alemão
menos pelas suas traduções da literatura do leste5 que pelos seus esforços, ao
longo de décadas, de tornar o chassidismo acessível. O resultado deste esforço
é a edição de uma série de coleções de legendas chassídicas que contribuíram
para o aumento significativo do patrimônio cultural do leste europeu.6
A atitude em relação à vida e ao conhecimento, manifestada por Buber
e Rosenzweig, pode ser hoje chamada “religiosa” somente com restrições.
3 Uma instituição fundada por Rosenzweig após a Primeira Guerra Mundial, onde estudan-
tes e professores – incluindo-se personalidades judaicas como Martin Buber, Ernst Simon,
Gershom Scholem, Erich Fromm e Nahum Glatzer – estudaram as origens do hebraico
clássico e debateram sua relevância contemporânea. Relatos históricos sobre o Lehrhaus
podem ser encontrados em Wolfgang Schivelbusch, “Auf der Suche nach dem verlorenen
Judentum: Das Freie Jüdische Lehrhaus” [Em busca do judaísmo perdido: o Instituto livre de
ensinamento judaico], em Intellektuellendämmerung [O crepúsculo intelectual]. Frankfurt:
Suhrkamp Verlag, 1985, pp. 33-51.
4 Rosenzweig traduziu e comentou um volume de hinos e poemas, do poeta e filósofo Yehuda
Halevi hispânico-judaico do século XX: Sechzig Hymnen und Gedichte des Yehuda Halevi
[Sessenta hinos e poemas de Yehuda Halevi]. Konstanz: Oskar Wöhrle, 1924.
5 Embora Buber não falasse chinês, editou uma coleção de textos chineses. Ver por exemplo
Reden und Gleichnisse des Tschuang-Tse: Deutsche Auswahl von Martin Buber [Sermões e
parábolas de Tschuang-Tse. Seleção alemã de Martin Buber]. Leipzig: Insel, 1910, e Chinesis-
che Geister-und-Liebesgeschichten [Histórias chinesas de espíritos e amor]. Frankfurt: Rütten
und Loening, 1911.
6 Die Geschichten des Rabbi Nachman: Nacherzählt von Martin Buber [As histórias do rabino
Nachman. Adaptadas por Martin Buber]. Frankfurt: Rütten und Loening, 1906; Die Legende
des Baalschem [A lenda de Baal]. Frankfurt: Rütten und Loening, 1908; Der große Maggid
und seine Nachfolge [O grande Maggid e seus sucessores]. Frankfurt: Rütten und Loening,
1922. Em 1927 esses três volumes foram reunidos em Die chassidischen Bücher [Os livros
206 chassídicos]. Berlim: Schocken, 1927.
O termo apenas pode ser empregado se não demarca, como é comum, um do-
mínio especial próprio – neste caso, o religioso, mas serve como designação
de uma forma de existência que intenta situar a pessoa inteira na realidade.
“Religioso” significa aqui uma prática de vida que floresce na base de uma re-
lação real com conteúdos de verdades essenciais – neste caso, aqueles inter-
mediados pelos testemunhos escritos do judaísmo – e não uma orientação da
consciência teórica ou empreendimento puramente religioso tal como aquela
do movimento litúrgico.
A nova tradução alemã da Bíblia surgiu do desejo de fortalecer esse tipo
de vida. Essa tradução não deve ser entendida como um produto literário
autônomo, mas antes como testemunho e resultado de um círculo religioso
– independentemente de ele existir de fato ou ser somente inquirido. A expec-
tativa de resposta determina a forma da tradução. A sua apresentação sem co-
mentários só pode ter sido o resultado da intenção de se dirigir diretamente
a todas as pessoas ou à comunidade inteira. A eliminação do aparato textual
crítico pressupõe também a convicção de que a palavra da Escritura retém o
seu poder permanente. Os autores aspiram à tradução literal e à fidelidade rít-
mica segundo os princípios que Rosenzweig desenvolveu na sua tradução da
obra de Yehuda Halevi.7 A língua hebraica não deve ser germanizada; antes, o
alemão deve se expandir dentro do hebraico de modo a captar aqueles que a
ele se dirigem com a força de um retrato fiel.
O primeiro volume propõe uma tarefa filológica essencial: a comparação
do texto com o original, o exame do ritmo, a discussão dos desvios da versão
massorética (isto é, da versão abalizada tradição judaica).8 Assim, por mais es-
7 Cf. o “Posfácio” de Rosenzweig na sua edição dos Sechzig Hymnen und Gedichte [Sessenta
hinos e poemas] de Halevi, pp.107-119.
8 Quando o hebraico deixou de ser uma língua viva, os transmissores da tradição bíblica, co-
nhecidos como massoretas, realizaram anotações escritas por mais de cinco séculos, com o
intuito de preservar a ênfase correta e as expressões para a leitura da Bíblia hebraica. Toda
edição impressa da Bíblia hebraica – cujo modelo é a segunda “Grande Bíblia rabínica” pu-
blicada por Daniel Bomberg (1524-25), em Veneza, e editada por Ya´aqov ben Hayyim ibn
Adoniyyah – constitui uma tradição textual única e é apresentada como o texto massorético
(“recebido”). 207
sencial que essa tarefa filológica possa ser, ela não é a mais urgente. Muito mais
urgente é a obrigação de examinar a – em si fechada – forma da língua alemã
na própria tradução, uma limitação de foco que pode ser tomada sem hesitação,
pois os autores de fato procederam de modo competente e consciente. A ati-
tude à qual a obra pertence é delineada pela análise da língua; a sua expressão
linguística torna indiretamente transparente o próprio sentido dessa atitude.
Ela é a postura do círculo religioso que pode ser alcançado de imediato por
essa tradução em alemão. Sob o signo da “renovação religiosa”9 formaram-se
também grupos no interior das esferas de influência católica e protestante,
que formalmente estão de acordo com aqueles que se agruparam em torno de
Buber e de Rosenzweig em sua pretensão comum de restabelecer as relações
das pessoas com as verdades reveladas na religião. Aquilo que se pode dizer
sobre o círculo de leitores ideais dessa versão da Bíblia também pode ser re-
levante para eles. A língua assemelha-se à mancha entre as omoplatas de Sie-
gfried, sobre a qual caiu a folha da tília: é o único lugar no corpo da realidade
poderosa que não está protegido pela mágica do sangue do dragão.10
9 Referência ao subtítulo do estudo de Max Scheler, de 1921. Vom Ewigen im Menschen [Do
eterno no homem]. Bern: Franke, 1954-68.
10 No épico medieval Nibelungenlied [Canção dos Nibelungos], o jovem Siegfried se banha no
sangue do dragão que acabara de matar, para se tornar invulnerável. Sem que tivesse co-
nhecimento, uma folha de tília caiu em suas costas durante esse banho, deixando um lugar
intocado pelo sangue mágico. Este é o único lugar onde ele pode ser – e, em última análise,
208 é – mortalmente ferido.
O conteúdo deste conhecimento determina a viabilidade da tradução e sua
forma; ele pode impedir uma atitude em relação ao original que, de uma
perspectiva estética imanente, seria apropriada em outros textos. A tradução
de Borchardt da Divina Comédia para o alemão da época de Dante11 – um
empreendimento legítimo no âmbito meramente estético – está baseada em
um princípio que é inapropriado para o texto da Bíblia, simplesmente porque
lhe daria uma distância estética que roubaria a sua verdade do seu significado.
Trazer esta verdade para o presente não é, contudo, sinônimo de assimilá-la
facilmente para este presente. Em um período alienado da palavra da Bí-
blia, o seu conteúdo não está bem servido com uma tradução que conseguiu
acesso na linguagem vulgar somente ao sacrificar aquilo que originalmente
se queria dizer. A atualização correta da Escritura, aqui solicitada, se opõe
ao compromisso que destrói a verdadeira palavra, a qual crê intermediar.
De acordo com a sua natureza, essa atualização precisa ser inspirada pelo
espírito revolucionário, pois a verdade não se revela no existente. O texto
original retorna para o seu retiro intraduzível quando a linguagem revolu-
cionária de uma época histórica – a linguagem que agora (não importa quão
transformada e incompleta possa ser) por si só atinge a verdade – se dissociou
da formulação desse texto primordial.
Nesse sentido a Bíblia de Lutero é atual. Graças à constelação histórica no
momento de sua redação, o protesto revolucionário contra os abusos da Igreja
(que são simultaneamente abusos socioeconômicos) encontra a sua expressão
precisa no retorno à palavra da Escritura. A sua tradução foi um meio de luta
11 O poeta, dramaturgo e ensaísta Rudolf Borchardt (1877-1945) não só traduziu A Divina Co-
média de Dante (München: Verlag der Bremer Presse, 1922), mas também a sua Vita Nova,
Berlim: Rowohlt, 1922. A primeira encontra-se disponível sob o título Dantes Comedia:
Deutsch [A Comédia de Dante: alemão], editada por Marie Luise Borchardt, Stuttgart: Ernst
Klett, 1967. Sobre Borchardt como tradutor de Dante, cf. George Steiner, After Babel: Aspects
of Language and Translation. Londres: Oxford University Press, 1975, pp. 338-41 [ed. bras.:
Depois de Babel. Questões de linguagem e tradição. Trad. Carlos Alberto Franco. Curitiba:
Editora da ufpr, 2006]; Hans-Georg Dewitz, Dante Deutsch: Studien zu Rudolf Borchardts
Übertragung der Divina Commedia [Dante em alemão: estudo sobre a tradução de A Divina
Comédia por Rudolf Borchardt]. Göppingen: Kümmerle, 1971. 209
que deveria impedir o emprego “papista” da Vulgata. Aqui a verdade da Bíblia
se confirma pela sua atualização, o religioso se estende (assim como, mais tarde,
na tradução do Pentateuco12 por Moses Mendelssohn) ao político, que, por sua
vez, não pode se furtar caso a inverdade no mundo ainda deva perecer à sua
frente. Mas a adequação do texto de Lutero como um instrumento revolucio-
nário se deve enfim ao fato de que, no seu momento de origem, o pensamento
secular mal tinha começado a se emancipar do teológico. Somente a íntima
relação entre ambos é que torna possível a expansão da língua alemã “ordinária”
em direção à linguagem da Bíblia, habilitando esta última a invadir a primeira:
uma expropriação da posse – cuidadosamente guardada – dos poderes conser-
vadores da Igreja que, a serviço da neopreparação de uma verdadeira ordem
das coisas, é disseminada entre as classes mais baixas do povo. De maneira
exemplar (embora não possa mais ser imitada), Lutero busca a Escritura das
esferas inacessíveis e insere-a na vida do povo, puxa-a para baixo até o lugar
mais insignificante, para o qual a verdade é atraída porque este é precisamente
o lugar falho na construção da ordem humana interior. “Nada de palavras de
castelos e de cortes” escreve ele para Spalatin. “Este livro deseja ser explicado
tão-somente de modo simples e trivial.”13
12 Die fünf Bücher Mose, zum Gebrauch der jüdischdeutschen Nation, nach der Übersetzung
des Herrn Moses Mendelssohn [Os cinco livros de Moisés, para uso da nação judaico-alemã,
segundo a tradução do sr. Moses Mendelssohn]. Berlim, 1780. Esta tradução, que foi ini-
cialmente publicada em caracteres hebraicos (posteriormente na ortografia germânica) vem
acompanhada por um comentário, o Bi´ur, que combina exegese tradicional com estética
literária moderna.
13 Carta de 30 de março de 1522 para Georg Spalatin (1484-1545), teólogo e defensor de Lutero
na corte do príncipe eleitor saxão Friedrich III; in Kurt Aland (ed.), Luther Deutsch [O ale-
210 mão de Lutero]. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1991, p. 120.
alcançou a si mesma como uma entidade com conceitos e objetivos próprios.
Nessa sociedade, e não nas religiões positivas, é que reside a atualidade do
presente. Esta atualidade localiza-se de maneira exata ali onde está decidida-
mente ameaçada a vida comum das pessoas no sentido da verdade. Observa-se,
no entanto, que as relações de poder sociais e econômicas, que determinam
a estrutura espiritual [geistige] da sociedade de hoje em todas as suas rami-
ficações, constituem o impedimento efetivo da própria existência. No curso
do processo histórico, estas relações de poder vieram à luz de modo cada vez
mais claro; as culturas mais autoconfiantes foram condenadas ao declínio por-
que estavam baseadas nos frágeis fundamentos dessas relações de poder. Por
amor à verdade – que se anuncia no processo histórico como uma compulsão
lógica – ocorre que o âmbito profano dos fatos econômicos ganhou atualidade
decisiva. Pois se a autoridade autodeterminada dos fatores materiais arruinou
os produtos culturais a eles acoplados, uma nova ordem não pode ser buscada
senão pela mudança destes fatores. Isto, por sua vez, não pode ocorrer até que
esses fatores emerjam despidos de todos os invólucros que os protegem e ocul-
tam. Assim, no presente, o lugar da verdade em si é no meio da vida pública
“comum” – não porque os aspectos econômicos e sociais sejam significantes em
e por si sós, mas porque são os fatores determinantes. Certamente eles não po-
dem responder na íntegra pelo campo das experiências religiosas e espirituais
[geistige]. Por um lado, os conteúdos dessas experiências carecem de uma base
real, porque as relações sociais estão arruinadas. Por outro, a permanência
nesse âmbito religioso e espiritual [geistige] desvia as pessoas da incumbência
de uma reorganização da ordem social. Grande parte dos produtos literários de
hoje, que de modo naïf se mantêm em esferas puramente espirituais [geistige]
– a que corresponde um indivíduo privado que não existe mais – é uma tenta-
tiva involuntária ou intencional de estabilização da situação social vigente. O
seu status como manifestações de repressão tira-lhes o peso. Nessas esferas, a
verdade não pode mais ser encontrada diretamente.
Juntamente com a verdade, se afastou também a linguagem. Lutero con-
fiou em sua habilidade de fundir a linguagem da Bíblia com aquela do povo;
o classicismo, o romantismo e o idealismo foram capazes de usar uma lin-
guagem que só pôde ser determinada legitimamente pelo espírito [Geist] e 211
carregada [getragen] pelo eu, vacilando entre a subjetividade transcendental
e a personalidade, porque a dependência parcial de suas ideias e convicções
da estrutura externa da sociedade profana ainda estava oculta. Uma vez que
o papel decisivo das forças materiais se torna aparente, esses constructos lin-
guísticos perdem o seu poder preciso. Eles não desapareceram completamente.
Eles estão preservados nas convicções historicistas e, marcados pela tristeza,
residem agora no espaço estético. A extensão de suas sentenças [Satzperiode]
e as suas configurações ainda falam de uma harmonia incontestável com um
mundo objetal que há muito tempo já se tornou volátil. Não é nestas formas
linguísticas que a realidade pode ser encontrada, embora a beleza se demore
no seu meio. Segundo o curso tomado pela verdade, a realidade buscou refúgio
em uma linguagem, cuja forma e material categorial expressam a consciência
de que os eventos essenciais têm lugar hoje no terreno profano. Por mais reti-
cente e negativa que essa linguagem possa ser, ela é a única a ter ao seu lado a
necessidade, pois só ela se forma no ponto no qual o sofrimento pode ser rever-
tido. Em contrapartida, é inteiramente consequente que constructos linguísti-
cos, demonstrando sua negligência para a situação corrente pela apropriação
despreocupada dos significados positivos e agora dúbios, percam o seu poder
ontológico pretendido e sejam entregues à arbitrariedade subjetiva. A vulga-
rização de conceitos, tomados do domínio da existência interior e exaltada, é
um evento tão inalterável e não-acidental como a perda rápida de substância
em toda linguagem, que atualmente pretende ser sagrada e esotérica (como,
por exemplo, a prosa do círculo de George). Entrar nessas esferas linguísticas
abandonadas significa renunciar à realidade.
14 Die 24 Bücher der Heiligen Schrift, nach dem masoretischen Texte [Os 24 livros da Escritura
Sagrada, segundo os textos massoréticos], editado por Leopold Zunz, tradução de H. Ar-
nheim et al. Berlim: Veit, 1838. Leopold Zunz (1794-1886), professor alemão, editor e diretor
do Jüdische Lehrseminar (Instituto judaico) de Berlim, foi um dos fundadores do importante
Verein für Kultur und Wissenschaft der Juden [Associação para a cultura e a ciência dos ju-
deus] (1819-24), que registrou um método histórico para o estudo acadêmico do judaísmo.
15 Os tradutores Buber e Rosenzweig utilizam o verbo preposicionado “brütend allüber” que
significa “meditar, refletir”. Sem a preposição, o verbo “brüten” significa “chocar”, acepção
que Kracauer utiliza para ironizar a tradução. [N.T.] 213
De modo similar, o uso de expressões restauradoras como “amante popular”
[Weihbuhle] (em oposição ao termo “meretriz” [Hure] de Lutero e “concu-
bina” policialesca de Zunz [Beischläferin]) e “local de marca” [Malstatt] (para
o qual Lutero simplesmente escreve “marca” [Mal]) corresponde ao modo
pelo qual os deuses e os heróis se expressam nos dramas musicais. Isto vale
igualmente para a exortação: “Ocupe o teu sêmen o portal dos seus inimigos”
[Besetze dein Same das Hochtor seiner Hasser!] (comparado ao “e o teu sêmen
ocupe os portões dos seus inimigos” de Lutero). Dos elevados campos heroicos
de Wagner uma estrada muito trilhada conduz às planícies vizinhas de Felix
Dahn e Gustav-Freytag,16 para as quais se é rapidamente trasladado por pala-
vras como “sem medida” [ohnemaß] e “certamente” [fürwahr] ou a saudação
muito antiquada e excitantemente pontuada: “Com sua licença, meu Senhor!”
[Mit Verlaub, mein Herr!].
Já basta: a linguagem é arcaizante em grandes trechos. Como resultado de
considerações que falharam em determinar os seus efeitos, a tradução utiliza
precisamente aquelas palavras agora totalmente ilegítimas de “castelo e de
corte”, que Lutero deliberadamente rejeitou. A sua origem é obvia: elas pro-
vêm do movimento mitológico e do antiquado neoromantismo do já passado
século XIX, que foram mantidos pela classe média culta, necessitada de reta-
guarda espiritual [geistige] que, naquela época, em razão de sua adequação
à situação social, pretendia reivindicar certa realidade. Que essa linguagem
nesse meio-tempo tenha caído em ruínas fica claro pela comparação com o
alemão de Lutero, que sobreviveu.
17 Wilhelm Michel, Martin Buber: sein Gang in die Wirklichkeit [Martin Buber: seu percurso
em direção à realidade]. Frankfurt: Rütten und Loening, 1926, p. 12.
18 Stefan George, Der Stern des Bundes [A estrela do Testamento]. Berlim: Georg Bondi, 1914. 215
desta ou de outras germanizações que ignoram a sua própria posição histó-
rica. Se assim fosse, a realidade alcançada se revelaria perigosamente aparen-
tada daquela planejada pelo romantismo nacional [völkische Romantik]. Mas
isto também não contradiz necessariamente o fato de que, ao contrário da
tendência ultraluterana de germanizar todas as coisas, os nomes próprios são
inseridos em hebraico: Eszaw [Esaú], Ribka [Rebeca] e Jirmejahu [Jeremias] o
anunciador. Os interesses nacionais talvez reivindiquem aqui os seus direitos
de povo-da-terra [erdvölkisch].
Se a realidade destes nomes não é o que se intenta, então aquilo que se pode
ainda supor é que um interesse estético induziu o transplante da vegetação exó-
tica da nomenclatura hebraica para o meio ambiente puramente germânico.
Esse interesse estético seria certamente oposto àquele favorável à realidade.
Porém, seja a obra motivada ou não por esses interesses estéticos, sua disposi-
ção e linguagem parecem, em última instância, ser determinadas por eles. Tão
questionável quanto possa ser o efeito estético da tradução, ele confirma indire-
tamente que a sua realidade é somente estética. Mas exatamente ali onde deseja
de modo decisivo ter um efeito real, ela recai na impotência do estético. A de-
cisão de não incluir um comentário – supostamente para apresentar a verdade
da Escritura sem qualquer intervenção – dá a impressão de ter sido feito em
nome da pureza artística. As procriações linguísticas, criadas com a intenção
de ressuscitar a substância da Escritura, não aparecem como muito essenciais
no ritmo recriado empaticamente – (Borchardt faria melhor que isto) – mas
são de certo modo coagidas a entrar nele com grande esforço e enfatizam deli-
beradamente a sua beleza, por mais descorada que ela seja. Aqui a arte não se
baseia na realidade; muito mais, é a realidade que desaparece no artístico.
Esta germanização da Escritura não abala o presente. Em oposição à versão
de Lutero, que invadiu a sua época como uma realização revolucionária, esta
tradução não tem relevância na atualidade. O distanciamento da linguagem
denuncia aquele do conteúdo; a verdade não é transmitida nas palavras gastas
pelo uso de uma época só recentemente passada, cuja estrutura sociológica
dificilmente teria sido compreendida. Os tradutores precisariam ter detec-
tado quais domínios deveriam ser hoje explodidos pela verdade. Enquanto
216 a Bíblia de Lutero atacou com precisão o ponto decisivo, a germanização de
Buber e Rosenzweig se desvia da esfera pública de nossa existência social e se
volta para o privado. Em sua tradução, o texto da Bíblia, que está destinado a
escancarar o cotidiano, é removido do campo do cotidiano e se torna a base
de uma peça de teatro imaginária de consagração. E é somente como tal que
esse alemão teve alguma vez validade limitada; mas ele jamais foi expressão
de uma opressão real ou um meio de conhecimento.
O anacronismo desta tradução dá ao procedimento, do qual nasce, um
significado reacionário. Ao evitar a linguagem profana, ela reprime o pro-
fano; ao alçar voo do âmbito da esfera pública ordinária, abandona as neces-
sidades com as quais mantém a verdade do seu lado. Sem dúvida, este âmbito
é o da exterioridade, mas a elevação do seu interior está ligada à transformação
do exterior. O vocabulário da versão da Escritura para o alemão prova que ela
deve falar em termos obrigatórios para indivíduos, cujas relações sociais não
foram levadas em conta. Ela desvia o foco de significado da exterioridade e,
assim, se torna um instrumento que se volta contra a sobrevivência da verdade.
O eu-privado por ela solicitado, em razão da falsa elevação do seu eu, necessita
obstruir o seu próprio acesso na esfera pública. A sua irrealidade é desvendada
pelo gesto romântico da tradução, cujo efeito estético marca-a como sintoma
de fuga, bem como o âmbito do privado como refúgio. As consequências po-
tenciais (incluindo-se as políticas) de tal retirada emergem da entonação na-
cionalista de algumas das manifestações neobíblicas.
É necessária uma crítica dos princípios da tradução porque sustentada por
um firme conceito de realidade. Buber desenvolve-o em seu livro publicado
alguns poucos anos atrás, que trata de filosofia da religião, intitulado Ich und
Du [Eu e tu].19 Aqui ele diferencia o “Du-Welt” (o mundo no qual o eu e o tu,
enquanto indivíduos completos, se encontram em uma relação não-objetal
um com o outro) do “Es-Welt”20 (no qual as pessoas se objetivam perante ele e,
assim, entram em uma relação abstrata com esses objetos, dos quais se sepa-
raram). Enquanto naquele todos os seres alcançam a realidade pela sua união
19 Martin Buber, Ich und Du. Berlim: Schocken, 1922 [ed. bras.: Eu e tu. Trad. Newton Aquiles
von Zuben. São Paulo: Cortez Moraes, 1974].
20 Na língua alemã, “es” é pronome neutro, que não tem correspondente em português. [n.t.] 217
interior, neste último todas as coisas que poderiam testemunhar sobre a vida
real petrificam suas declarações de uma forma inautêntica. É destino do ho-
mem se afundar nesse “Es-Welt” e o retorno de lá nos é negado. Assim, para
Buber, a verdade só pode se manifestar ali onde o homem a alcança com todo
o seu ser, mas resiste a qualquer contemplação teórica, que presume possuí-la
em forma abstrata como um objeto. Esta interpretação, que joga o real contra
o irreal e o concreto contra o não-concreto, tornou-se para uma parte da lide-
rança espiritual [geistige], uma ideologia muitíssimo bem-vinda, uma vez que
em termos formais ela é inteiramente correta. À luz das condições sociais, as
classes instruídas dependem precisamente dessas atitudes (que em si são ino-
fensivas) como uma espécie de salva-vidas para sua consciência. O conceito
de realidade de Buber assume imediatamente um caráter ideológico quando,
porventura, a realidade não mais existente do ponto de vista do seu conteúdo
deseja defender a superioridade de uma teoria, que, não obstante (ou, melhor,
em virtude de) sua abstração é hoje o lugar da atualidade. A germanização
da Escritura realizada por Buber e Rosenzweig é a evidência convincente de
tal prática; o caráter de sua realidade é denunciado pela sua linguagem, cuja
tendência poetizante é muito mais estranha à realidade do que muita prosa
dos dias atuais. Buber se esquece – e muitos também se esquecem com ele –
que a própria verdade perambula de ponto a ponto, de esfera a esfera, e que,
em um determinado momento, ela pode muito bem ser compelida a atacar
nos campos profanos, nos quais a crítica social (como sempre abstrata) se en-
contra muito mais em casa que uma mera contemplação da realidade, que a
omite. Hoje, esses campos profanos constituem os espaços essenciais da rup-
tura. Buber sacrifica-os quando se retira para o seu “Du-Welt”, onde – para
usar a sua própria terminologia – só pode esperar encontrar um “Es”.
Mas se a realidade pode ser recuperada somente por meio de um caminho
que conduz através da “irrealidade” do profano, então hoje a Escritura não
pode mais ser traduzida. A própria intenção de sua germanização já se dis-
tancia da verdade, na medida em que ela presume proporcionar diretamente
a palavra com toda a sua força original. A situação de Lutero não é a nossa; já
se foi o tempo em que a língua alemã – ou qualquer outra língua – foi capaz
218 de ocultar legitimamente a verdade da Escritura. Para nós esta verdade precisa
permanecer preservada na tradução de Lutero, ou então ela não existe mais.
Foi através da versão de Lutero, e somente através dela, que a Escritura en-
trou na realidade em um momento específico de nossa história. E é nela que
também se baseia a tradição que ainda quer ser capaz de manter a Escritura
nessa realidade, depois que o profano se separou das esferas teológicas. A única
coisa que corresponderia a esse mundo profano seria uma edição textual crítica
que talvez pudesse trazer Kautzsch21 para o estado atual da moderna pesquisa
judaica da Escritura e, como se costuma dizer, satisfazer todas as pretensões
legítimas da ciência. Entre a exegese filológica e a tradução de Lutero não há
espaço para um terceiro empreendimento. Não há a menor dúvida de que
uma edição comentada, nascida do caminho do pensamento historista dos
dias atuais, e cujo objetivo seria apenas esclarecer e preservar o Urtext [texto
original], no decurso do tempo, transmitiria o espírito da Escritura – que en-
quanto obra foi deliberadamente silenciada por ele – de modo mais fiel que a
tentativa romântica e arbitrária de Buber e Rosenzweig, que desejam forçá-lo
a falar extemporaneamente.
21 Emil Kautzsch (1841-1910), teólogo protestante alemão, ocupou o cargo de professor em Basel,
Tübingen e Halle. Como seguidor de Wellhausen, editou a Hebräische Grammatik [Gramá-
tica hebraica] através da Friedrich Gesenius (revisada de acordo com a 28° edição de 1909);
traduziu e editou Die Apokryphen und Pseudoepigraphen des Alte Testaments [Os apócrifos
e pseudoepígrafes do Velho Testamento]. Tübingen; Mohr, 1900.
22 Uma referência ao subtítulo do estudo de Wilhelm Michel, já citado anteriormente: Martin
Buber: Sein Gang in die Wirklichkeit [Martin Buber: seu percurso em direção à realidade]. 219
de fato estão abandonando a realidade pública para cuidarem de si mesmos e
salvarem sua existência privada. Poderia ocorrer que acreditassem estar ser-
vindo à verdade e, de fato, não tivessem ideia de onde encontrá-la em toda sua
atualidade. Pois atualmente o acesso para a verdade está no profano.
220
Catolicismo e relativismo
1 Max Scheler, Vom Ewigen im Menschen [Do eterno no homem], volume I: Religiöse
Erneuerung [Renovação religiosa]. Leipzig: Der neue Geist, 1921; republicada em Scheler,
Gesammelte Werke [Obras reunidas], volume V. Bern: Francke, 1954-1968.
2 O subtítulo “Religiöse Erneuerung” [Renovação religiosa], que constitui o título da parte
introdutória do ensaio “Probleme der Religion” [Problemas da religião], designava original-
mente o primeiro volume da obra planejada para três volumes. Uma vez que Scheler nunca
escreveu os volumes restantes, o subtítulo foi retirado das últimas edições do livro. 221
comum entre as observações puramente filosóficas de um lado, e os estudos
mais político-culturais de outro. Para um autor do status de Scheler, no entanto,
só um exame de princípios fundamentais produz frutos. E assim é menos im-
portante examinar o conteúdo dos ensaios bastante divergentes entre si do que
extrair o cerne conceitual, que produz os resultados essenciais do livro.
No prefácio, Scheler caracteriza a tarefa a que se propôs realizar na parte
central do livro sobre a filosofia da religião. Ele quer expor “os fundamentos
básicos da construção sistemática de uma teologia natural” e, ao mesmo tempo,
estabelecer, pela sua apresentação, uma plataforma, na qual os adeptos de di-
ferentes religiões possam se encontrar e, transcendendo as incompatibilidades
específicas, se reconciliar. O conhecimento natural de Deus, prossegue Scheler,
somente cumprirá esta tarefa “quando libertar o cerne do agostinismo de seu
invólucro histórico e empregar os recursos conceituais da filosofia fenomeno-
lógica para provê-lo com um fundamento novo e profundamente enraizado”.
Fica claro que o autor se colocou dois objetivos: um filosófico, outro pedagó-
gico. Se, para ir diretamente ao ponto principal, sua tentativa de extrair os atos
“naturais” e os conteúdos da fé não foi bem-sucedida, esta crítica é certamente
justificada e temos de admitir a grandeza dessa tentativa e reconhecer o poder
intuitivo com que Scheler imerge no mundo dos fenômenos religiosos. Os seus
equívocos são produto de uma indagação geral que, por sua vez, tem origem
em certa necessidade da nossa situação espiritual [geistige] corrente.
Em primeiro lugar, algumas definições conceituais são essenciais para a
exposição que segue. Scheler distingue religião positiva e religião “natural”, e
entende esta última como o conhecimento naïf de Deus, que qualquer pessoa
dotada de razão pode obter a todo e qualquer momento por meio do ato reli-
gioso. A religião natural ganha a posse de seus objetos de fé através da revelação
natural que, em oposição ao conhecimento espontâneo, é a autorrevelação de
fatos essenciais que o indivíduo pode experimentar no ato religioso natural.
Como tal não se prende ao ser e à doutrina de pessoas específicas, como na
revelação das religiões positivas.
As ambiguidades fatídicas que permeiam todo o livro já são evidentes na
discussão do conceito de religião natural. De um lado, tem-se a impressão de
222 que Scheler pressupõe uma religião natural comum a todas as pessoas, ao passo
que, de outro, ele explica que a “religião natural em todas as religiões” depende
de uma forma históriconatural específica de conceber o mundo, isto é, que a
religião natural, em última instância, tem um caráter diferente no interior de
esferas culturais diferentes. Parece evidente que, no segundo caso, não se pode
mais falar de uma religião natural válida universalmente.
Ainda que por ora se ignore essa vacilação desconcertante, deve-se, no en-
tanto, questionar em que relação o conhecimento natural de Deus se encontra
com o discernimento conquistado pela via metafísica. Em suas investigações
sistemáticas – em si extremamente meritórias – Scheler critica as várias deci-
sões sobre as relações entre a filosofia e a religião encontradas no curso da his-
tória do pensamento ocidental. No processo, ele mesmo chega a uma distinção
nítida entre conhecimento racional metafísico e conhecimento religioso que
pode ser conquistado pelas ações da religião natural (uma distinção que tam-
bém parece muito duvidosa, embora por razões que não podem ser aqui arti-
culadas). De acordo com Scheler, filosofia e religião representam dois campos
de ação completamente independentes e igualmente válidos e que, de modo
algum, podem ser derivados um do outro. A tarefa de entretecer em uma uni-
dade superior o conhecimento que flui dessas duas esferas distintas é destinada
para a “teologia natural” que, desta maneira, entra finalmente em ação.
Com o auxílio da “filosofia fenomenológica”, Scheler deseja, dentre outras
coisas, realçar objetivamente a essência específica do ato religioso natural, bem
como a essência da esfera objetal a ele atribuída e, ao mesmo tempo, desen-
volver leis para aquilo que é correto e falso no domínio religioso. Se a feno-
menologia deve cumprir tudo o que Scheler dela requer, então ela precisa ter
verdadeiros poderes miraculosos e se estará ansioso para saber o que possui de
tão especial. Para dizê-lo de modo conciso, como requer o presente contexto, a
fenomenologia visa à observação de “essências” espirituais e, por conseguinte,
nada tem a ver com a apresentação e explanação da realidade existente. Ela
está muito mais interessada em revelar o incomparável “o quê” [Washeit] –
quer dizer, a essência – de todas as coisas dadas possíveis. Segundo Scheler, a
compreensão de tais essências requer que o filósofo cultive o amor pelo valor
absoluto e pelo ser, rebaixe o seu ego natural e pratique a autodisciplina. Sche-
ler, contudo, não revela se a satisfação de todos estes pré-requisitos (que são 223
de ordem psicológica, embora assegure o contrário) seria de fato uma garan-
tia suficiente de que aquele que os satisfizer chegará realmente à essência das
coisas. A execução do “voo moral” que Scheler reivindica, em todo caso, ainda
não constitui em si um critério suficiente para a verdade do conhecimento que
se conquistou desse modo.
O esforço de destacar uma religião natural (ou seja, uma teologia natural)
pode seguramente ser descrito como bem-sucedido somente se os resultados
produzidos pela “intuição de essências”, que Scheler realiza no domínio da
religião natural e da metafísica, forem absolutamente irrepreensíveis. Mas, tal
como alguns poucos testes já mostraram, esses resultados contradizem em
parte uns aos outros e, em geral, são bastante duvidosos como um todo. Se
em um ponto Scheler expõe, por exemplo, que os grupos das intuições essen-
ciais que surgem entre sujeitos diversos (povos, raças etc.) diferem em caráter
e tem a opinião absolutamente relativista de que todos esses discernimentos
diferentes e ideias sobre o espírito de Deus poderiam ser verdade, um pouco
mais tarde, no entanto, diz que a doutrina da criação do mundo pela vontade
de Deus (resultante do contexto de essências) refuta definitivamente outras
famosas doutrinas metafísicas sobre Deus e o mundo e fala novamente sobre
os “enganos terríveis” de Calvino. De onde surgiram essas escalas de valor e
esses critérios de verdade?
Pergunta-se em vão – ou melhor – é até mesmo possível já se antecipar a
resposta. Antes de apresentá-la, no entanto, recomenda-se examinar de modo
mais preciso algumas intuições de essência no que diz respeito à religião natural,
assim como a relação das pessoas para com a religião em geral. Do conteúdo
destas intuições será possível revelar então sua verdadeira origem com a clareza
desejável e será possível julgar sua suposta evidência e sua objetividade. Se-
gundo Scheler, por exemplo, uma metafísica de valor apropriada precisa adotar
firmemente a doutrina de que todo o infortúnio no mundo está fundado em um
poder concentrado do mal e que, além disso, o “mal” só pode ser um atributo
da essência de uma pessoa, está fundado no poder de uma pessoa má. Assim,
Scheler considera um fato essencial (digno de consideração) que o Teísmo
traga consigo a crença no pecado original, que a aparição do herético e do sin-
224 gularismo religioso é absurda (!) etc. Com o auxílio da fenomenologia, Scheler
consegue demonstrar com grande facilidade que, para nós contemporâneos,
uma nova religião (quer dizer, na verdade, uma religião diferente da católica)
seria impossível. Dentre outras coisas isto significa, por exemplo, que a meta de
todos os grandes “homines religiosi” é a restauração da religião originária (no
processo da qual, certamente, uma espécie de nova religião possa talvez afinal
surgir); que o santo é a “forma concebível mais elevada do ser”, cuja própria
ideia já o torna necessariamente o “único” (uma conclusão que em si mesma
seguramente não exclui o advento de novos santos); que a humanidade en-
quanto espécie está envelhecendo e que, por conseguinte, a humanidade mais
velha tem nos dias atuais a obrigação de manter a crença naquilo que uma vez
foi experimentado como realidade transcendente pela humanidade mais nova
etc. Entrem para uma igreja (este é mais ou menos o tom desses argumentos),
pois qualquer outra ação é “essencialmente impossível”, ou então “absurda”.
Basta de exemplos – o segredo da fenomenologia de Scheler está claro como
o dia. Ele consiste, em poucas palavras, no fato de que, em um primeiro mo-
mento, renunciando à própria avaliação, Scheler visa capturar a essência de
uma coisa particular mais ou menos no espaço vazio; no outro momento, no
entanto, passa a descrever as coisas como são percebidas por um espectador
de um ponto de vista muito específico que naturalmente impõe uma apreciação
particular. Dependendo da sua necessidade, ele é ora relativista, ora – católico.
Se ao menos admitisse abertamente seu catolicismo por toda parte! Mas isto
é justamente o que ele não faz. Em geral é precisamente no momento em que
ele abandona o relativismo – quando afirma, por exemplo, que a ausência de
uma “autoridade eclesiástica” infalível em matéria de salvação é absurda em
um mundo criado e guiado por um Deus todo-benevolente e todo-verdadeiro
– que mantém um ponto de vista católico pré-concebido, e passa seus discer-
nimentos conquistados através de suas perspectivas como necessidades essen-
ciais, usando-as então como base para o catolicismo.
Um Münchhausen que puxa a si mesmo pelos cabelos para fora d’água!3
Como relativista malgré lui, ele concorda que todos os povos tenham um ca-
→ caçador e esportista em países estrangeiros. Uma seleção dessas histórias, a ele atribuídas e
publicadas entre 1781-83 sob o título Vademecum für lustige Leute [Vademecum para gente
alegre], formou a base para o volume anônimo, posteriormente publicado em Londres, em
1785. Esta coleção, bem como as outras edições, resultou a edição britânica canônica de 1793
226 intitulada The Adventures of Baron Münchhausen.
da religião natural, Scheler realmente sentou-se entre duas cadeiras. Por um
lado, ele ofende os católicos, porque através dela relativiza concepções cató-
licas e fundamenta em uma espécie de base fenomenológica as verdades de
salvação concretas da igreja, que de fato destroem seu significado dogmático.4
Sem dúvida, a religião natural é doutrina eclesiástica, mas, precisamente por
sê-lo, os seus conteúdos não podem ser percebidos livres de pressuposições
no espaço vazio. Por outro lado, Scheler ofende os não-católicos porque eles
muito rapidamente detectam o católico dissimulado atrás das intuições de
essência e tornam-se desconfiados dos conhecimentos, cuja fonte é delibe-
radamente mantida tão oculta. Teria sido melhor se Scheler tivesse revelado
claramente o seu ponto de vista ou então cumprido realmente o seu projeto
imparcial. Contudo, aquele que, como ele, deseja satisfazer a todos, no final
não satisfaz a ninguém.
Enquanto a tarefa filosófica permanecer não-resolvida, a intenção pedagó-
gica também não poderá ser alcançada. Em relação com o que se disse acima,
dificilmente se pode esperar que devotos de diferentes confissões de fé se en-
contrem – ou até se reconciliem – sobre a ponte de uma religião natural cons-
truída por Scheler. Parece igualmente questionável (e os próprios católicos
serão os primeiros a contestar) – se é possível chegar ao catolicismo pela porta
da fenomenologia – quer dizer, se a intuição de essência pode de fato ter um
efeito missionário. A fenomenologia é – como demonstra de modo não me-
nos importante o exemplo de Scheler – simultaneamente um “pau para toda
obra”, que pode ser usada tanto pelos budistas quanto pelos protestantes ou
católicos. Ao empregar – e certamente também fazer mau uso – da fenome-
nologia como uma apresentação para a concepção de mundo católica, Scheler
prova ser um eclético real, pois somente um eclético em assuntos religiosos
iria querer recrutar o auxílio da observação fenomenológica para forçar nesta
4 Um artigo do dr. Otto Gründler intitulado “Die Bedeutung der Phänomenologie für das Geis-
tesleben” [O significado da fenomenologia para a vida espiritual], que apareceu no caderno de
outubro de 1921 do jornal Hochland, demonstra que, em alguns círculos católicos, ainda não
se está ciente do significado limitado da filosofia fenomenológica ou do seu sentido atual. 227
direção ao mesmo tempo os discernimentos metafísicos e as verdades reli-
giosas de salvação.
Esta é uma prática na qual se perde a confiança naïf, bem como a impar-
cialidade filosófica, restando apenas um produto artificial que, na melhor das
hipóteses, satisfaz apenas o retardatário educado. Quem dentre nós não o co-
nhece – aquele intelectual contemporâneo que, incapaz de permanecer por
mais tempo no vácuo da falta de crença, busca refúgio em qualquer lugar ba-
seado em um ato romântico do desejo? Para esse tipo de pessoa, talvez, Scheler
aplaine o caminho ao catolicismo. Mas pessoas desse tipo que utilizam tais
caminhos sinuosos da fraqueza (embora seja uma fraqueza muito compreen-
sível), certamente não são as melhores, uma vez que ambicionam a satisfação
prematura de sua longa nostalgia ofegante ao invés de perseverar bravamente
no vácuo e… esperar. De resto, deve-se avaliar como extremamente positivo
o fato de que em seu mais recente livro Scheler procura, por sua vez, fortalecer
e propagar aquela atitude espiritual/intelectual contemplativa própria da es-
sência do catolicismo. Esta atitude funciona como um contrapeso imperativo
contra o vácuo industrial e contra um ativismo, que considera o movimento
como um fim em si.
A insustentabilidade da posição filosófica básica de Scheler não contradiz
de modo algum o significado das suas produções filosóficas nos outros do-
mínios do pensamento por ele investigados. Este intelecto, dotado do mais
brilhante talento, enquanto psicólogo revela uma perspicácia que, nos dias de
hoje, é sem dúvida rara entre os pensadores. O seu ensaio “Reue und Wie-
dergeburt” [Arrependimento e renascimento], por exemplo – incluído em
seu novo livro – não se levando em conta algumas passagens contestáveis, é
uma obra-prima da análise psicológica em grande medida de essencialidades
espirituais [geistige] – um tipo de análise que é uma das mais belas flores que
desabrocharam no ethos cristão. Ao desdobrar as especificidades de certas
construções espirituais [geistige] a partir de uma perspectiva católica, Sche-
ler esclarece muitas questões e, diga-se de passagem, fornece provavelmente
à vida católica muito mais energia do que pelas suas construções no domí-
nio das religiões naturais. Além disso, a sua habilidade de abarcar e dissecar
228 variedades espirituais [geistige] torna-o altamente qualificado para descobrir
conexões sociológicas ocultas. E assim não é de surpreender que, dentre os
resultados mais valiosos do livro, encontram-se as numerosas declarações
sobre as relações recíprocas sociologicamente necessárias, de um lado, entre
as denominações religiosas consideradas como uma série de sistemas histó-
rico-filosóficos e, de outro, as condições sociais. Em geral, as manifestações
críticas de Scheler contra os sistemas do idealismo formal e contra a filosofia
da religião de Schleiermacher5 (que se origina do esforço de Scheler de com-
preender o ser material das coisas), poderiam ser aprovadas se, em razão da
fragilidade de sua concepção nuclear, estiverem fundidas com consistência e
suficientemente baseadas.
A figura de Scheler iluminada nesta obra com todos os seus fracassos e mé-
ritos é, de certo modo, característica do nosso tempo. No presente, a descon-
fiança sobre a alienação de Deus se casa com um empobrecimento religioso
que é muitas vezes maior do que em qualquer outra época. As pessoas atual-
mente são impelidas a encontrar uma abertura para a crença religiosa, mas, em
geral, estão aptas a alcançar este objetivo somente através de um pensamento
que manifesta muito mais um desejo de crer do que a crença em si. Desenraiza-
dos como ainda somos, dificilmente podemos escapar do relativismo e, assim,
perambulamos incansavelmente de uma manifestação a outra, de uma cultura
a outra, submergindo – na falta de um ser próprio – no ser de um fenômeno
qualquer. Scheler é também um desses errantes. Ele é animado por uma incli-
nação ilimitada para a essência de todo o ser, e se é incapaz de alcançar o ser
em si desta essência não é uma falha exclusiva dele; antes está vinculada com
a responsabilidade de uma época carente de sentido absoluto. Isto também faz
com que procure além da fé positiva uma religião natural que, para aquele que
se aproxime dela a partir da posição do puro conhecimento, só exista como
uma ideia irrealizável no âmbito do material. Em resumo, a fenomenologia de
Scheler ainda permanece uma emanação de espiritualidade [Geistigkeit] rela-
tivista, um método que lhe dá a possibilidade de escapar constantemente do
princípio católico de modo imperceptível e escorregar para distâncias infini-
tas, só para desta amplitude assustadora buscar outra vez refúgio e, de modo
230
A crise da ciência
Sobre os escritos fundamentais de Max Weber e Ernst Troeltsch
Max Weber e Ernst Troeltsch, ambos afetados pela angústia moral da geração
mais nova, ocuparam-se intensamente desta crise ameaçadora, levantando
de novo a questão sobre as tarefas e a raison d’être de sua ciência, que se en-
contra na posição de acusada. No primeiro volume de sua – recentemente
publicada – nova obra Der Historismus und seine Probleme [O historismo
e seus problemas],2 que corresponde ao terceiro volume das Gesammelte
Schriften [Obras reunidas], Troeltsch, que será o foco da primeira parte de
2 Ernst Troeltsch, Der Historismus und seine Probleme [O historismo e seus problemas], in
232 Gesammelte Schriften [Obras reunidas], volume 3. Tübingen: Mohr, 1922.
nossa discussão, assume uma espécie de redenção da honra do pensamento
histórico e da filosofia da história. Isto é, ele trata de eliminar o caráter dúbio
da concepção de mundo do historismo (de acordo com a qual todas as ins-
tituições e os valores são deduzidos de um desenvolvimento histórico – este,
todavia, pode ser concebido) e de proteger este mesmo ponto de vista historista
da suspeita de uma geração jovem que se tornou a-histórica. Para este fim, ele
desenvolve a sua própria teoria do sentido e da essência da filosofia da história
que, aos seus olhos, parece imune a qualquer tipo de ataque. Para elucidar a
sua posição, Troeltsch liga à sua teoria uma apresentação ampla dos sistemas
da filosofia da história de Hegel e Ranke até Croce e Bergson. Este primeiro
panorama crítico da história do próprio historismo é marcado por um forte
senso de direção e testemunha a habilidade magistral – muitas vezes compro-
vada – de Troeltsch de organizar grandes quantidades de material e, portanto,
confirma a sua arte de distinguir aquilo que é essencial (o seu tratado sobre
a dialética marxista é um exemplo). O livro, que apresenta uma forma muito
extensa, foi concebido como preparação e fundação para uma filosofia material
da história, que Troeltsch esperava completar em poucos anos.
Embora fosse muito importante fazer uma apreciação de toda a obra de
Troeltsch – particularmente a sua análise histórica, que não pode ser facil-
mente sobrestimada – temos de limitar a nossa discussão aqui à tentativa de
solucionar o problema fundamental do pensamento histórico e, com isso, a
sua tomada de posição principal em relação à crise da ciência. Um exame de-
talhado das categorias fundamentais do objeto histórico e do desenvolvimento
histórico – categorias constitutivas de toda observação histórica – conduz
Troeltsch a fazer a afirmação (que ele apresenta de uma maneira totalmente
irrepreensível) de que a vida histórica desafia a assimilação através das cate-
gorias das ciências naturais. Ele continua então a desarmar os argumentos que
insistem na imbricação necessária do historismo e do relativismo. É necessário
reconhecer que Troeltsch realmente leva o problema adiante até um ponto de-
cisivo. Ele demonstra acertadamente que o processo histórico universal – cuja
compreensão possibilita primeiramente a interpretação do evento histórico
individual – não pode ser percebido em seu estado absoluto de modo pura-
mente contemplativo. Assim, a compreensão deste processo – tal como de 233
todo contexto de sentido em geral – está em princípio baseada em convicções
de valores que, por sua vez, dependem da posição particular do observador.
Uma vez que o processo histórico universal se estende até o presente e, para
além dele, até o futuro, a sua construção pressupõe sempre decisões de valo-
res da pessoa localizada no presente e orientada para o futuro. A composição
deste processo está – para utilizar a expressão de Troeltsch – necessariamente
ligada à “síntese cultural contemporânea”.3 Mas de onde extrair esses critérios
de valor que constituem essa “síntese cultural”? Troeltsch, que simplesmente
não é capaz de conceber esses critérios como absolutos atemporais, se volta
duramente contra o “misticismo fantástico” de uma geração mais jovem, que
não quer senão escapar da história, buscando abrigo em “dogmas absolutos”
e “autoridades religiosas”. Troeltsch se vê forçado à conclusão circular de que
a “síntese cultural” da observação deveria brotar do mesmo processo histórico,
cuja explanação ela supostamente deve auxiliar. No entanto, apenas com uma
“autorreflexão historicocientífica” não se chega longe. Para se descobrir real-
mente os critérios buscados deve haver, portanto, uma “intuição” sustentada
por essa autorreflexão – uma intuição que irrompe das profundezas de uma
pessoa que está preparada para tomar decisões e que a habilita a estabelecer,
em primeiro lugar, objetivos contemporâneos. A criação da “síntese cultural”
requer pois o “risco” da intuição, um risco que Troeltsch repetidamente pre-
tende justificar recorrendo a Kierkegaard. A doutrina do “salto” de Kierkegaard,
segundo Troeltsch, significa precisamente que qualquer coisa depende de um
salto decisivo “pelo qual nos movemos do passado ao futuro por nossa própria
decisão e responsabilidade”.4 Ele não se abstém de acrescentar, contudo, que
o produto da intuição somente possui “necessidade objetiva interior” quando
a pessoa que salta se lança da plataforma do conhecimento histórico seguro.
Segundo Troeltsch, onde quer que isto ocorra, os critérios de valor ganham
no processo adotado – apesar de sua determinação temporal – um significado
metafísico que os liberta do cerco do pensamento relativista. “A criação de
tais critérios é dissociada de um mero subjetivismo […] pela viva e profunda
8 Idem, ibidem, p. 565. Cf. Igualmente o ensaio de Troeltsch, “Max Weber” (1920), na coleção
de seus ensaios e conferências editado por Hans Baron. Deutscher Geist und Westeuropa
[Espírito alemão e Europa ocidental]. Tübingen: Mohr, 1925, pp. 247-52.
9 Max Weber, Gesammelte Aufsätze zur Wissenschaftslehre [Ensaios reunidos para a teoria
científica]. Editado por Johannes Winckelmann. Tübingen: Mohr, 1922. 237
“Wissenschaft als Beruf ” [Ciência como vocação],10 que desencadeou a assim
chamada “disputa da ciência”. Esses textos expõem a atitude religiosa negativa
de Weber em todo o seu caráter demoníaco. Weber experienciou tão intensa-
mente quanto qualquer um o sofrimento da geração mais nova pelo “desencan-
tamento do mundo” provocado pela ciência, mas ele também sabe que o anseio
da geração mais nova pelo absoluto não pode ser satisfeito pela ciência mesma.
De acordo com o julgamento de Weber – que nesse sentido é mais profundo
que aquele de Troeltsch, porque é mais radical – o salto para o absoluto é um
salto sobre o abismo em direção ao campo da fé e, portanto, conduz definitiva-
mente para fora do campo da ciência. Weber – um Kierkegaard com premissas
completamente invertidas – expõe sem rodeios que “a tensão entre a esfera de
valor da ‘ciência’ e aquela da salvação religiosa é inconciliável”.11 Se, no entanto,
da perspectiva da ciência, todas as decisões de valor e todos os objetivos de
nossas ações são necessariamente relativos, então, de acordo com Weber, se a
ciência deseja corresponder ao seu ideal de objetividade, precisa eliminar toda
valoração e se limitar estritamente a demonstrar as conexões entre estados de
coisas e fatos, revelar as relações estruturais internas dos bens culturais e as-
sim por diante. Para ele isto é uma questão ligada à “probidade intelectual” e
compele-o a rejeitar toda “profecia pedante” cientificamente adornada, que
pretende entregar aos auditórios aquilo que “somente um profeta ou um sal-
vador” é capaz de proclamar.
O procedimento que Weber busca para alcançar uma compreensão obje-
tiva e não-valorativa do evento significativo só pode ser aqui esboçado em li-
nhas gerais e as suas dificuldades apenas tocadas levemente. De antemão, ele
assume que a concatenação causal da sequência infinita de eventos no interior
do mundo espiritual [geistige] – uma concatenação, aliás, de cuja evidência
Troeltsch duvida por boas razões – jamais poderá ser inteiramente elucidada.
10 Max Weber, “Wissenschaft als Beruf ” [Ciência como vocação] (1919), em Gesammelte Aufsätze
zur Wissenschaftslehre [Ensaios reunidos para a teoria científica], pp. 582-613. [ed. bras.: Max
Weber, “A ciência como vocação”, Ciência e política – duas vocações. Tradução de Leonidas
Hegenberg e Octany Silveira da Mota. São Paulo: Cultrix, s.d., 4ª edição, pp. 17-52.
238 11 Idem, p. 611.
Por isso o alcance da compreensão deve se limitar somente a certas partes se-
letas do inesgotável contexto de experiência. Para este fim, Weber simplifica
e esquematiza o contexto intrincado que está examinando (por exemplo, o
“cristianismo” ou o “capitalismo”) até o ponto em que, pela ênfase unilateral
de um ponto de vista qualquer, ele é capaz de obter uma espécie de imagem
conceitual irreal em si não-contraditória – o assim denominado tipo ideal
(como, por exemplo, o “tipo ideal” do “capitalismo”). Este tipo ideal, graças
à sua não-ambiguidade e completa inteligibilidade, pode servir como ponto
de partida para uma compreensão da realidade. O número dos constructos
típico-ideais é tão ilimitado quanto o número de valores, em relação aos quais
a realidade a ser examinada pode ser considerada. Em geral, estes constructos
típico-ideais assumem uma forma que é “racional-fim” [Zweckrational], quer
dizer, eles expressam como uma ação ocorreria se ela perseguisse um propósito
específico (por exemplo, uma vantagem econômica) livre de influência afetiva,
puramente racional. Mas também ali onde este não é o caso, os constructos
típico-ideais repousam sempre sobre um tal “se”, uma vez que para apresentar
qualquer estado de coisas típico-ideal eles precisam necessariamente impor
primeiro certas condições à variedade de experiências. Como se procede pois
a explicação da própria realidade com o auxílio desses constructos ideais? De
acordo com Weber, chega-se à sua compreensão objetiva comparando o con-
texto particular de experiência com o constructo típico-ideal por ele abstraído
e determinando até que ponto os dois correspondem ou diferem entre si. E
assim, pelo uso constante dos conceitos típico-ideais inequívocos, desvenda-se
cada vez mais o contexto particular – que, certamente, não é nada mais do
que uma aproximação. Uma consequência direta da posição básica de Weber
é que o seu tratamento do material tende a ser primariamente sociológico,
o qual, tal como Troeltsch observa, “carece do modelo de uma filosofia da
história e de uma interpretação do sentido desse processo”.12 Esta renúncia
eticamente fundamentada de grandes sínteses históricas, que têm origem no
discernimento de Weber em relação à sua relatividade de valor, naturalmente
não o impede de construir certos desenvolvimentos históricos como tipos
12 Troeltsch, Der Historismus und seine Probleme [O historismo e seus problemas], p. 567. 239
ideais (conferir o seu estudo “Die protestantische Ethik und der Geist des
Kapitalismus” [A ética protestante e o espírito do capitalismo], de 1901.13 Con-
tudo, Weber jamais deixou de chamar a atenção para a confusão desses tipos
ideais com a realidade. Finalmente, no que diz respeito ao sentido da ciência,
Weber lhe atribui um papel inteiramente servil. Ela deve facilitar o domínio
tecnológico da vida, identificar as melhores estratégias para a perseguição de
variadas metas e, sobretudo, reconduzir toda decisão de valor pessoal para a
posição ideológica da qual surge, para assim forçar a pessoa engajada nesta
valoração a prestar contas de suas ações. É possível reconhecer facilmente que
este posicionamento da ciência na totalidade da vida resulta simultaneamente
em certa delimitação da infinitude material.
Assim tal como em relação a Troeltsch, deve-se também perguntar se Weber
consegue tornar o relativismo dominante e preencher a pretensão de objetivi-
dade da ciência. Certamente se pode admitir que, de acordo com suas inten-
ções, ele se abstém de partir de julgamentos de valor pessoais e seleciona tanto
o material de experiência quanto os tipos ideais somente em relação a valores.
E, no entanto, se ele emprega os tipos ideais, que são propriamente construc-
tos muito questionáveis em razão de seu caráter em grande medida empírico,
na maneira acima descrita para investigar os contextos de experiência, então
mais cedo ou mais tarde mostra-se que Weber de fato é incapaz de realizar a
objetividade buscada. Uma vez que a essência de todas as interconexões que
constituem uma realidade dada é simplesmente inesgotável, Weber teria de
adicionar com determinação construtiva uma após a outra, infinitamente, para
alcançar de modo objetivo o caso típico-ideal que torna acessível a compreen-
são da realidade. É claro que a realização plena deste processo de determinação
é em princípio impossível, pois em algum ponto se romperá inevitavelmente.
O ponto no qual ele chega a uma paralisação (quer dizer, onde o ponto espec-
tral “se” dos constructos típico-ideais colide com o “é” de uma expressão de
242
Georg Simmel
5 Weibliche Kultur [Cultura feminina] (1902) em Philosophische Kultur [Cultura filosófica], pp.
268-311; Das Abendteuer [A aventura] (1910), in Philosophische Kultur [Cultura filosófica],
246 pp. 13-30.
der Geschichtsphilosophie [Problemas da filosofia da história]6 que aborda
este tipo de análise. Diferenciação social e Sociologia são introduzidas com
uma justificação teórica do seu método de investigação sociológica. Carac-
teristicamente, Simmel dirige sempre a atenção dos conteúdos de seu pensa-
mento ao processo mesmo do pensamento; é propriamente a compreensão
de tal processo que ilumina os diversos conteúdos do pensamento. A relação
entre sujeito e objeto do conhecimento constitui, sobretudo, um dos proble-
mas fundamentais do filósofo, e é extremamente significativo observar como,
no curso de seu desenvolvimento, suas observações sobre este tema sofrem
abundantes retificações, uma modificando parcialmente a outra. Luta sempre
para encontrar um conteúdo de verdade que possa servir de fundamento para
seu relativismo. As preocupações com estas questões se desdobram frequente-
mente por meio de análises provisórias; de um modo que lhe é característico:
interrompendo sua permanência na superfície do existente, dando as costas
ao fenômeno singular que havia lhe interessado e aprofundando-se na consi-
deração teórica das condições do conhecimento. Simmel se interessou desde
muito cedo pela esfera da ética, que depois nunca abandonou. Na obra de ju-
ventude Einleitung in die Moralwissenschaft [Introdução à ciência da moral],7
decompõe os conteúdos fundamentais da ética; num dos últimos ensaios, Das
individuelle Gesetz [A lei individual],8 tenta demonstrar que a exigência mo-
ral, a qual o indivíduo sempre se subsume, é fruto do processo individual da
sua vida. Estes dois escritos enquadram, por assim dizer, a obra do pensador
e assinalam o início e o fim do caminho por ele percorrido. Simmel, podemos
afirmar aqui de modo provisório, nunca revelou diretamente o seu ethos. Lan-
6 Kant: Sechzehn Vorlesungen, gehalten an der Berliner Universität [Kant: dezesseis aulas, pro-
feridas na Universidade de Berlim]. Leipzig: Duncker & Humblot, 1904; Die Probleme der
Geschichtsphilosophie. Eine erkenntnistheoretische Studie [O problema da filosofia da história:
um estudo de teoria do conhecimento]. Leipzig: Duncker & Humblot, 1892.
7 Einleitung in die Moralwissenschaft: Eine Kritik der ethischen Grundbegriffe [Iniciação à ciên-
cia da moral: uma crítica dos fundamentos éticos], 2 volumes. Berlim: Hertz, 1892-93.
8 Das individuelle Gesetz: Ein Versuch über das Prinzip der Ethik [A lei individual: Um ensaio
sobre o princípio da ética] (1913) em Lebensanschauung: Vier metaphysische Kapitel [Con-
templação da vida: quatro capítulos metafísicos]. Munique: Duncker & Humblot, 1918. 247
çou luz, no entanto, nas convicções éticas de diversas grandes personalidades,
como Kant, Schopenhauer, Nietzsche e Goethe9 sem deixar de aprofundar o
significado ético das condições anímicas e das múltiplas correntes espirituais
por ele descritas. Como um espelho, reflete sobre nós de maneira inconfundí-
vel a sua concepção ética inata. Apenas na segunda parte de sua obra, a con-
frontação com problemas estéticos assume uma maior amplitude, sem chegar
a se condensar em uma teoria da arte. Diferentemente das suas investigações
críticas da teoria do conhecimento, a Simmel não interessa tanto analisar as
condições que tornam possível o sentir estético e a criação artística, mas muito
mais reproduzir as vivências das quais nascem algumas obras de arte típicas
e individuais. Expõe o fundamento espiritual no qual se enraízam as criações
de Michelangelo, Rodin e Rembrandt, revelando assim, sobretudo, a essên-
cia e o sentido da arte de cada um destes mestres.10 Sempre foi sua aspiração
desvelar o núcleo em torno do qual se desenvolve a obra dos artistas ou uma
época como um todo, por exemplo, Renascimento. Em certas ocasiões, atribui
a determinadas formas artísticas admiradas por nós (por exemplo, a asa de um
vaso ou uma ruína arquitetônica)11 um significado simbólico mais profundo
que de modo imprevisto esclarece como estes objetos agem sobre nossos afetos.
Com extrema elasticidade se imiscui nos fenômenos artísticos e se aproxima
de uma fórmula que possa exprimir o conteúdo peculiar dos fenômenos con-
siderados. Simmel se ocupou pouco das questões e vivências religiosas, e isto
se deve, certamente, à sua natureza estranha, desde a origem, aos instintos e
necessidades religiosas.12 Mesmo assim, por mais que se aproxime do objeto de
maneira exterior, o pensador conserva, mesmo neste caso, uma incomparável
9 Kant: Sechzehn Vorlesungen [Kant: dezesseis aulas]; Schopenhauer und Nietzsche: Ein Vortrag-
szyklus [Schopenhauer e Nietzsche: um ciclo de conferências]. Leipzig: Duncker & Humbolt,
1907.
10 Michelangelo em Philosophische Kultur [Cultura filosófica], pp. 152-78; Rodin, em idem,
179-97; Rembrandt: Ein kunstphilosophischer Versuch [Rembrandt: um ensaio de filosofia da
arte]. Leipzig: Kurt Wollf, 1916.
11 Der Henkel [A asa] em Philosophische Kultur [Cultura filosófica], pp. 126-34; Die Ruine [A
ruína] em idem, pp. 135-43
248 12 Die Religion [A religião]. Frankfurt am Main: Rütten & Loening, 1906.
força de empatia. Repetidamente analisa o papel que o sentimento religioso
desempenha, mostrando, por exemplo, quais formas de socialização estão por
trás do ímpeto de evadir-se no âmbito religioso. Em Rembrandt, Simmel lança
luz sobre a natureza da pura fé que não tem mais necessidade de ostentar um
dogma ou uma religião positiva, pois está profundamente enraizada na alma.
Em algumas figuras de Rembrandt vê esta pietas que não tem necessidade de
nenhuma atitude, que é uma qualidade de nosso ser.
Depois de ter considerado os diversos aspectos do mundo sobre os quais
o filósofo experimenta produtivamente as suas capacidades, parece-me opor-
tuno conhecer de que modo ele estrutura seu material. Como elabora a ma-
téria-prima que tem diante de si, qual percurso segue, passando de um fenô-
meno a outro, em quais unidades condensa a pluralidade das manifestações
fenomênicas? De duas diferentes maneiras podem ser apreendidas a obra de
um homem em seu conteúdo substancial. Ou se tenta compreender de que
modo estas realizações se diferenciam entre si e, esclarecendo as mudanças e
deslocamentos de pontos de vista, tenta-se apreender o desenvolvimento espi-
ritual de seu criador; ou se lança luz sobre o elemento comum, esforçando-se
em descobrir a teia de relações que lhe perpassa como um todo. A aplicação
do último procedimento é preferível toda vez que se quer penetrar no mundo
espiritual de um pensador, para se ter uma ideia provisória da sua estrutura
peculiar. Pressupõe-se que toda alma forma uma unidade viva com caracte-
rísticas constantes, não obstante esta seja o resultado de sucessivas e violentas
transformações; as manifestações da alma, apesar das múltiplas contradições
entre si, devem ser consideradas em seu conjunto por meio de um fio condutor,
de modo que sua unidade possa se expressar objetivamente. A essência de um
homem se objetiva numa ideia, que como um fio vermelho perpassa sua obra,
ou se reflete em outra peculiaridade que é constantemente cristalizada de novo
nas criações pessoais. No entanto, pode resultar difícil descobrir qual o traço
que, como irradiação de uma única personalidade, caracteriza as ações e as
opiniões de certos indivíduos. Alguns artistas, por exemplo, sofrem uma tal
metamorfose que as obras tardias parecem ser fruto de uma alma completa-
mente diversa daquela da juventude. Mesmo naturezas assim, pouco egocên-
tricas, não podem escapar delas mesmas, a sua própria tendência a mudar e 249
a renegar a si mesma revela o seu ser mais verdadeiro, e toda realização sua é
contrastada, portanto, por um caráter unitário. O filósofo, como tipo humano,
é exatamente o oposto desta natureza artística; aspira a penetrar no valor defi-
nitivo das coisas, e, para alcançar tal meta, deve lançar raízes sólidas no centro
do seu ser; e, justamente por isso, adquire certeza da verdade apenas na me-
dida em que possui certeza de si mesmo, está sujeito em grau menor do que
qualquer outro tipo humano às metamorfoses psicológicas. Qualquer tipo de
verdade que eventualmente obtenha deve ser eternamente una e a mesma, ao
mesmo tempo esta verdade é também a contrapartida de seu ser espiritual,
que nele mais do que em outros tipos humanos se realiza conscientemente
sob a forma de princípios, de máximas etc. Quem aspira ao absoluto revela
os próprios conteúdos de seu interior, que em meio a todas as transforma-
ções permanecem duráveis e constantes. Quem for minimamente familiari-
zado com o mundo das ideias de Simmel se sentirá fascinado pela atmosfera
espiritual peculiar que o envolve com uma presença quase física. A unidade
substancial de todas as obras do pensador se impõe subitamente à atenção, e
percebemos como os mais diversos problemas são abordados com o mesmo
método. É como quem, viajando por países estrangeiros, entra em contato
com tipos humanos desconhecidos: num primeiro momento o seu olhar não
percebe as diferenças individuais dos habitantes, mas apenas as características
comuns, que no seu complexo constituem para ele algo de absolutamente novo,
desviam para si sua atenção. Um campo espiritual inexplorado pode ser con-
quistado apenas se primeiramente é abarcado como um todo. Apenas depois
de ter apalpado os contornos é possível distinguir claramente as partes que o
constituem e colher particularmente as relações entrelaçadas que o unem. A
essência da filosofia de Simmel se funda naquele caráter unitário de suas cria-
ções que marca profundamente nossa mente e que só posteriormente chega
ao esclarecimento. No entanto, não é de modo algum necessário que a fonte
desta unidade deva ser, em princípio, expressa por meio de conceitos claros.
Quanto mais assistemático é um espírito – e Simmel pertence diretamente ao
grupo de pensadores assistemáticos – menos as suas obras possuem raízes em
convicções que toleram a luz plena da clareza conceitual; a unidade viva de sua
250 obra pode ser certamente revivida como empatia, mas não se pode derivá-la de
um conceito fundante enrijecido e estranho à vida. Mesmo assim, no caso de
Simmel é também possível, em se tratando de um filósofo, portanto, avançar
até uma ideia nuclear, à qual estão ancoradas quase todas as suas obras, de
modo que é possível traçar um corte transversal em sua filosofia, o qual por
certo não corte as muitas partes das conexões de seu pensamento. Em perfeita
analogia com o que foi dito, é somente em casos muito raros que o corte trans-
versal de um edifício revela a estrutura da construção inteira e a disposição de
todos os ambientes internos. Alguns elementos do construído permanecem
normalmente invisíveis; para poder vê-los é necessário recorrer ao corte longi-
tudinal e a outro corte transversal. Um destes cortes prevalece sempre, todavia,
sobre os outros. Este fornece-nos uma representação sensível da estrutura da
massa principal do edifício. O princípio nuclear do pensamento de Simmel,
que apresentarei nas páginas seguintes em todos os seus desenvolvimentos,
reveste a função de um tal corte transversal. Este abre caminho em direção
à essência da sua filosofia, sem que, por outro lado, constitua o fundamento.
Todas as manifestações da vida espiritual – assim se poderia definir o princípio
desta filosofia – possuem incontáveis relações umas com as outras, nenhuma
pode ser isolada das conexões que as ligam entre si. Esta visão representa uma
vivência fundamental de Simmel, a sua compreensão do mundo se baseia em
tal intuição; é como um guia que permite que se oriente através do labirinto
de pensamentos do filósofo com suas múltiplas ramificações de longo alcance,
sem contar todos os percursos e passagens laterais (por exemplo, os estudos de
teoria do conhecimento sobre a relação sujeito e objeto) nos quais, no entanto,
não podemos nos adentrar.13
Há dois modos de relações entre as coisas que são permanentemente
re-elaborados por Simmel. Em primeiro lugar, as relações que chamo de con-
gruência essencial, que subsiste nos fenômenos mais diversos. Do todo da vida
espiritual não se pode extrair nenhum modo de ser singular e nenhum evento
singular que possa ser observado e compreendido apenas isoladamente, por si
mesmo. Mesmo assim, se as partes, uma vez isoladas das múltiplas conexões
13 Vom Subjekt und Objekt [De sujeito e objeto], em Hauptprobleme der Philosophie [Problemas
fundamentais da filosofia]. Leipzig: Göschen, 1910, pp. 86-112. 251
nas quais estão inseridas, são consideradas como entidades de contornos bem
definidos, isto é decorrente de exigências de ordem prática facilmente com-
preensíveis; por outro lado, esta operação é legitimada pela relativa autossu-
ficiência de muitas destas partes ou de conjuntos de partes (por exemplo, de
uma época histórica ou de características psicológicas). Na maioria das vezes,
no entanto, não se tem em mente as relações intrínsecas recíprocas entre os
elementos extraídos da totalidade da vida. Estes elementos, considerados in-
dependentemente, se consolidam muitas vezes em unidades enrijecidas, cuja
significação está ligada de modo incindível a características tomadas de modo
mais ou menos arbitrário de sua totalidade de significados, em vez de ser
preenchida por meio de uma visão de sua própria totalidade. De tal modo que
os sentimentos ou, por exemplo, os traços distintivos dos caracteres tornam-se
formas com contornos rígidos, coisas muito isoladas entre si, segmentadas e
abordadas de tal modo que o seu conceito não mostra mais aquela multiplici-
dade do ser. A exigência fundamental de Simmel é de liberar todo fenômeno
espiritual do seu falso ser para si e de mostrar como este se insere nas amplas
conexões da vida. Assim exercita a sua atividade de reflexão conectando e ao
mesmo tempo desconectando relações. Na medida em que Simmel revela em
todos os lugares relações entre o que é aparentemente separado, torna cons-
ciente para nós também a complexidade de múltiplos objetos e problemas.
São muitos os exemplos de que o filósofo mostra em seus escritos sociológi-
cos em conexões necessárias entre os inumeráveis fenômenos sociais. Simmel
demonstra, por exemplo, como uma economia marcadamente baseada no
dinheiro como meio de troca determina também as relações não-econômi-
cas dos indivíduos e o estilo de vida de uma época inteira.14 Examina como
a ocorrência de um evento social particular traz consequências que afetam
a multiplicidade conjunta do social. Em outros ensaios, como aquele sobre
a sociabilidade [Geselligkeit], a coqueteria [Koketerie] e outros, ele retira do
isolamento uma série de fenômenos, mostrando o significado que os enlaça e
a causa de suas manifestações, graças à qual é finalmente possível explicar o
14 Philosophie des Geldes [Filosofia do dinheiro], capítulo 6, “Der Stil des Lebens” [O estilo da
252 vida], pp. 591-716
seu ser peculiar. Deste modo, liga o que está separado, une o que está disperso
em grandes fechos; dissipa o véu comparável ao mar de névoas nas regiões
montanhosas, que envolve tão densamente a cadeia das coisas e faz emergir
aqui e ali, isoladamente, apenas os picos mais elevados. Mesmo as relações
puramente psicológicas recebem uma atenção constante. Quando se coloca
a questão, por exemplo, de que modo virtude e felicidade se condicionam
reciprocamente – questão que só pode ser respondida de modo negativo –,15
Simmel, como em muitos outros casos, quer lançar luz definitiva sobre a re-
lação entre os sentimentos e os outros atos da vontade e do juízo do homem.
Às vezes, ele descreve um organismo psíquico cuja constituição particular é
resultado do concurso de determinados traços essenciais. E assim esboça uma
descrição do avarento, do esnobe e de outros tipos humanos.16
As relações de congruência essencial se contrapõem àquelas de analogia. O
trivial entendimento cotidiano esquece todas as transições entre os fenômenos
e esgarça o tecido de suas manifestações, cujas partes cada vez mais isoladas,
cada uma por si, reunidas em um único conceito, estreitam nossa consciência
da multiplicidade do mundo mesmo em outras dimensões. Dos recortes da
realidade baseados em vários conceitos, deixa ver apenas o que é estritamente
essencial; tal razão mune o conceito de uma etiqueta sobre a qual é indicado
apenas o que é digno de atenção pelas necessidades práticas normais. As coi-
sas em seu rígido invólucro conceitual tornam-se unilaterais; apenas um lado
delas está voltado para nós: as compreendemos apenas em relação à sua utili-
dade para nós. Não é nenhum milagre que se coloquem irreconciliáveis uma
ao lado da outra! Não havendo possibilidade de compará-las uma com outra,
dos seus muitos significados resta apenas o que indica o uso a que são desti-
nadas, tornando-se estreitas e definhadas. Quanto mais a realidade se fecha ao
homem, tanto mais estranho torna-se o mundo mediano com seus conceitos
fossilizados similares a uma careta. O homem compreende que todo fenômeno
na sua riqueza possui uma infinita variedade de elementos característicos, já
que todo fenômeno está sujeito às leis mais diversas. Na medida em que o
17 Primeiro verso de um poema tardio de Goethe, sem título: Gedichte sind gemalte Fenster-
scheibe [Poesias são vidraças pintadas] em Gedenkausgabe der Werke, Briefe und Gespräche
[Seleção de pensamentos das obras, cartas e diálogos], editados por Ernst Beutler, volume 1.
Zurique: Ártemis, 1949, p. 569. 255
coisas, menos está subsumida completamente aos conceitos abstratos; inicial-
mente revestida das imagens, brilha claramente diante de nós; a ocultamos
para possuí-la nua. Aquilo que é mais secreto necessita do véu da metáfora
para poder se manifestar inteiramente. A analogia é justa ou falsa, a metáfora é
bela ou tosca. Em outras palavras, enquanto a analogia pode ser surpreendente
ou arguta, a sua existência depende do fato que objetivamente se demonstra
verdadeiro. Nós a reconhecemos, pois corresponde a um comportamento pró-
prio dos fenômenos. A metáfora, ao contrário, é uma criação da fantasia, da
capacidade imaginativa do sentimento; é julgada esteticamente e pretende ser,
além disso, convincente e elucidativa, tornando o que é absolutamente evidente,
sem alterá-lo, o que projetamos com o nosso pensamento e com o nosso sen-
timento de um objeto. Não é um processo cognitivo como a analogia, mas um
receptáculo para nossos pensamentos sobre as coisas, uma expressão do nosso
mundo interior, um reflexo do eu no mundo dos fenômenos. A analogia: uma
relação entre objetos; a metáfora: a representação das relações entre sujeito e
objeto. Na metáfora encontram-se milagrosamente em equilíbrio o fenômeno-
base e o fenômeno que deve ilustrar o sentido. Mesmo este último é rico de
significados, mas, justamente porque é posto em relação com outro fenômeno,
resplandece no significado para iluminar a obscuridade do fenômeno de base.
Dos dois fenômenos estreitamente ligados na metáfora até formar uma uni-
dade de significado, um lança luz sobre o outro, e apenas a este outro. Ambos
tendem a se fundir na semelhança; enquanto um espera que sua obscuridade
receba luz, o outro deseja tornar-se portador de luz. Toda coisa pode ser uma
tocha, toda coisa possui sua própria tocha. Toda língua é um guia confiável
para aquele que penetra nas essencialidades, colocando-o em uma boa pista,
mesmo quando se trata de distinguir entre analogia e metáfora. A pequena pa-
lavra “como”, que na metáfora pode estar ausente, torna-se indispensável para
a união de processos análogos. Pode-se dizer: as poesias são vidraças pintadas,
porque as imagens aqui estão, portanto, no lugar do predicado. O “como” na
analogia, ao contrário, serve para indicar um comportamento do mesmo tipo,
e por isso não pode ser suprimido. Toda metáfora pode transformar-se (pelo
menos formalmente) em uma analogia. Isto se explica porque estes dois tipos
256 de relação são confundidos. Basta apenas mudar a intenção e o que antes era
metáfora se transforma em analogia. A frase: “A vida é como um rio” possui
o significado de uma metáfora, apenas se a palavra “rio” possui a função de
uma imagem. A mesma frase torna-se analogia, se “vida” e “rio” são entendi-
dos como fenômenos paralelos, como processos que se desenvolvem segundo
a regra geral.
Mesmo através da mais estreita porta lateral se pode chegar ao centro
da essência humana. Após toda esta consideração é possível extrair sérias
consequências sobre a essência de pensadores que se encontram ou preferen-
cialmente na analogia ou exclusivamente na metáfora. Pressupondo que o fi-
lósofo possui, para fazer uso das analogias, o olhar descobridor, bem como a
fantasia e o talento de criação necessários para visualizar metáforas, ele recorre
à analogia se pretende analisar apenas as relações entre as coisas, e se serve
da metáfora se pretende, ao contrário, representar o núcleo revelado das coi-
sas. O homem da analogia não oferece nunca uma explicação [Erklärung] do
mundo, pois lhe falta a força da ideia genética; ele se limita a conhecer as leis
que regulam o curso dos eventos e, dirigindo o olhar para a riqueza do mundo
fenomênico, agrega tudo o que é uniforme, reservando sempre para si o pró-
prio eu. O homem da metáfora, bem menos objetivo, permite que o mundo
atue sobre ele; o mundo lhe significa algo, e este significado ele quer represen-
tar, sua alma está prenhe de absoluto, o seu eu deseja evadir-se. A quantidade
relativamente grande de analogias em relação ao número exíguo de metáforas
presentes na obra de Simmel – antecipando aqui este dado de fato – demonstra
que o pensador não se permite uma interpretação do mundo, que seu eu não
possui aquela profundidade metafísica que lhe permitiria formular um juízo
em relação aos fenômenos que tem diante de si. Como Schopenhauer é dife-
rente! Ele é dos pés à cabeça “um homem das metáforas”, pois está munido da
palavra-chave que lhe ajuda a desvendar o significado do mundo fenomênico,
para depois transmitir a nós na forma de imagens.
Pôr a nu os fios que envolvem os fenômenos como um todo constitui uma
das tarefas (infinitas) que Simmel colocou para si, uma necessária consequên-
cia das suas convicções. Outra tarefa é aquela de apreender o múltiplo como
totalidade, tornando-se senhor desta totalidade para experienciar e exprimir
sua essência. Partindo do princípio de que tudo está em relação com tudo, 257
obtém-se necessariamente a unidade do mundo. Toda conexão singular re-
sulta desta unidade, é apenas um fragmento daquele grande todo que é o
mundo, de um mundo, todavia, que é preciso antes de tudo compreender e
abarcar em toda sua extensão, se não se quer lançar luz apenas sobre comple-
xos fragmentários e incompletos. Justamente a concatenação dos fenômenos,
afirmada por Simmel, impõe a visão de sua totalidade. Se não considerarmos
sua concatenação, teremos no máximo o conhecimento das entidades parciais,
que remete sempre além de si mesmo, isto é, que resultará inadequado ao im-
pulso verdadeiramente filosófico, voltado ao domínio da totalidade. Simmel
esforça-se, portanto, continuamente para liberar cada objeto singular, para
abarcar o mundo em sua inteireza; para alcançar o seu fim percorre duas vias:
a via da teoria do conhecimento e aquela da metafísica. A primeira leva ao
relativismo negador do absoluto, à renúncia de uma compreensão própria da
totalidade e à representação [Darbietung] das múltiplas imagens típicas do
mundo. A outra conduz a uma metafísica da vida, em uma tentativa gran-
diosa de analisar o mundo dos fenômenos a partir de um princípio absoluto.
Uma breve olhada preliminar na filosofia da vida, remanescente do último
período da obra do filósofo, permite compreender de que modo o mundo se
apresenta à consciência como unidade. Todas as criações objetivas, todas as
ideias e as potências espirituais, todas as formas definidas do ser emergem ori-
ginariamente da corrente da vida que flui incessantemente à eternidade. Esta
“vida” que, inebriante, atravessa também os indivíduos, constitui o substrato do
mundo ou, e isto não pode ser esquecido, do mundo próprio de Simmel. Ou
seja, o conjunto, em suma, de todas aquelas condições e processos que pos-
suem uma relação direta com o homem enquanto ser espiritual. A totalidade
se cinde na contraposição polar entre os princípios de leis objetivas e as rígidas
formas que estão dominadas, por um lado, e a incessante infração das formas
enrijecidas e a constante mudança da nossa condição cultural e anímica, por
outro. O mundo é compreendido quando se pode demonstrar que a vida com
o seu movimento torna-se mediadora entre os dois polos da totalidade, que
o próprio processo vital produz aquele contraste que cria abismos nos múlti-
plos contrastes, que, portanto, não podem descer aos níveis mais profundos do
258 mundo. Como é possível, então, que surja da vida não apenas o que transcorre,
mas também o que perdura? Tudo o que é vertido da vida, segundo Simmel,
tende a consolidar-se, a tornar-se uma criação autossuficiente que subjuga a
si, após impor sua própria forma, justamente aquela vida da qual inicialmente
era seu fruto. A vida é sempre algo mais do que a vida, se retirada de sua pró-
pria cadeia e se fixada a si mesma como uma forma de contornos rígidos. É o
rio e, ao mesmo tempo, a terra firme; ela coloca-se diante das criações vindas
de seu seio para afirmar-se novamente como senhora. Simmel concebe um
conceito tão amplo da vida que faz entrar aí também a verdade e as ideias que
regulam o curso da vida; nada mais está submetido à influência deste conceito;
a totalidade é reconduzida, pelo seu meio, a um único princípio originário.
Na medida em que a forma do mundo, à qual o filósofo chega, testemunha
o desejo de abarcar o mundo na multiplicidade das suas relações, a busca da
unidade não encontra nela nenhum contentamento que se satisfaça. Decerto,
ninguém sentiu mais profundamente do que Simmel que apenas o homem
munido de certezas e de valores absolutos está em condições de delimitar a
multiplicidade do real e de fixar a totalidade. Mas a sua própria incursão no
reino do absoluto não alcançou o sucesso final, nem poderia ser diversamente,
dada a natureza do seu ser.
Dado que não lhe é possível abarcar o mundo em sua totalidade, Simmel
tenta conquistá-lo por meio de uma digressão [Ausschweifen] que parte de
um simples fenômeno em todas as direções. O próprio princípio que está
na base de seu pensamento lhe impõe o domínio da totalidade. Há apenas
dois procedimentos para apreendê-la: ou se concebe um conceito de tota-
lidade na sua inteireza, o qual engloba tudo o que é particular; ou se parte
do particular, avançando nas esferas sempre mais remotas do múltiplo, de
modo a reter, pouco a pouco, a totalidade no campo visual. Quais são, por-
tanto, as unidades de que Simmel parte para irradiar-se no mundo, de que
pontos traça os seus círculos? Quando se vaga pelo mundo dos fenômenos
deparamos com uma infinidade de manifestações, cada uma com seu caráter
específico e estreitamente ligado a outros fenômenos. O plano material de
sua reflexão engloba, como já foi dito, o amplo círculo dos fenômenos so-
ciológicos, a vivência dos valores humanos, os inúmeros aspectos singulares
da psique e assim por diante. Do centro destes fenômenos destacam-se os 259
indivíduos que se diferenciam nitidamente da massa de outras essencialida-
des, formando unidades orgânicas, totalidades de caracteres bem definidos.
Dependendo do ponto de vista a partir do qual se observa o múltiplo, estes
indivíduos ou pertencem ao mundo, como seus membros, ou se contrapõem
a ele (como mundos em si mesmos): são partes ou são totalidades. Toda vez
que analisa formas individuais, Simmel as separa do macrocosmo, as libera
de seu vínculo com os fenômenos. Tornam-se para ele unidade autônoma:
Simmel se recusa a inserir o microcosmo individual na totalidade sem fim.
Quando pretendemos descrever o vaguear de Simmel pelo mundo, não deve-
mos, portanto, levar em conta os seus juízos sobre grandes figuras da história
do espírito. O homem não é para ele um dos conteúdos do mundo, mas uma
criação soberana, conclusa em si, que pode ser compreendida a partir de si
mesma. O que será definido nas páginas seguintes como “mundo” ou “tota-
lidade” representa a multiplicidade do real tal como conhecida pelo sujeito,
exceto as individualidades.
Como base para as suas incursões no mundo, o filósofo escolhe certos
conceitos gerais que lhe possibilitam descobrir a conexão reguladora dos fe-
nômenos. Para mostrar esta conexão, não se pode vivenciar o evento singular
concreto em sua incomparabilidade única, mas se deve interpretá-lo como
manifestação da essencialidade geral, situada nos vastos espaços dos mun-
dos, essencialidade que, justamente por seu caráter universal, pode ancorar as
leis. Simmel tenta resolver primeiramente a tarefa ligada a seu fim cognitivo,
ascendendo até conceitos de fenômenos existentes na realidade, sem, no en-
tanto, expressar o conteúdo puramente individual. Alguns temas abordados
em suas pesquisas sociológicas são, por exemplo, Der Arme [o pobre], Der
Fremde [o estrangeiro], Das Geheimnis und die geheime Gesellschaft [o se-
gredo e a sociedade secreta].18 Ainda com mais frequência, o filósofo escolhe
18 Der Arme [O pobre], em Soziologie [Sociologia], pp. 512-55; Exkurs über den Fremden [Ex-
curso sobre os estrangeiros] em op. cit., pp. 764-71 [versão em português em Georg Simmel
– Sociologia. Org. Evaristo de Moraes Fo. Trad Carlos Alberto Pavanelli, Coleção Grandes
Cientistas Sociais. São Paulo: Ática, 1983]; Das Geheimnis und die geheime Gesellschaft em
260 op. cit., pp. 383-455.
um momento abstrato destes conceitos gerais como ponto de partida para
suas considerações. Aquilo que havíamos reconhecido em um objeto como
um fragmento determinado e não-autônomo de sua essência é separado do
objeto e elevado do domínio abstrato à dignidade de uma categoria que en-
fileira uma multiplicidade de objetos. Podem ser considerados, por exemplo,
como momentos abstratos da obra de arte a dependência recíproca das partes,
a sua unidade, a perfeição plena de si mesma; naturalmente a obra de arte,
além disso, é também expressão anímica, espelho do tempo etc. Tais abstra-
ções constituem, em Simmel, centros de agregação, de pesquisa como Über
Kolletivverantwortlichkeit [Sobre a responsabilidade coletiva], Die Erweiterung
der Gruppe und die Ausbildung der Individualität [A ampliação do grupo
e a formação da individualidade], Das soziale Niveau [O nível social], Die
Kreuzung sozialer Kreise [A entrecruzamento de grupos], Quantitative Bes-
timmtheit der Gruppe [Determinação quantitativa do grupo], Über und Un-
terordnung [Superioridade e subordinação].19 Todo fenômeno é uma encar-
nação de uma multiplicidade de conceitos; é determinado mais precisamente
por uma série infinita de momentos abstratos. O fato de o eu cognoscente
dirigir a atenção a determinadas entidades universais depende, além da sua
constituição natural, também da meta em relação à qual seu pensamento
está orientado. Simmel se aventura em uma esfera de entidades universais
colocada mais ou menos no meio caminho entre as máximas abstrações e os
puros conceitos individuais; isto significa que priva as coisas do seu conteúdo
específico próprio quando se limita a descobrir quais conexões reguladas por
lei as ligam entre si. Já que a sua exigência principal é a de valorizar os fenô-
menos na sua individualidade, não lhe basta, naturalmente, reinscrevê-los
em formas mais amplas, nas quais se perde a qualidade peculiar dos objetos.
20 Das soziale und das individuelle Niveau (Beispiel der Allgemeinen Soziologie) [O social e o
nível individual] em Grundfrage der Soziologie, pp. 32-48 [ed. bras.: Questões fundamentais
262 da sociologia. Trad. Pedro Caldas. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2008].
psíquicas mais puras do indivíduo singular devem ser abandonadas neste seu
rebaixamento de nível social. Como é valorizado o elemento primitivo, que é
o bem comum, e o que é diferenciado e faz parte do eu privado? A valorização
é elevada em ambos os casos. O primeiro é considerado digno de ser vene-
rado, é admirado pela sua antiguidade, disseminado e irrefutável. O segundo
é colocado em observação, pois manifesta uma espiritualidade superior e, o
que é raro, incita nossa atividade etc. A este ponto cabe acrescentar uma des-
crição mais precisa das mudanças que sofrem a essência do indivíduo que se
tornou membro da massa. O seu intelecto é limitado, que aumenta a sua ca-
pacidade de sentir, a sua receptibilidade e a sua passionalidade. A massa não
mente, mas lhe falta a consciência da própria responsabilidade; ela se deixa
levar, sem discernir, pelas impressões do momento; são eliminadas todas as
inibições morais. O status do nível social, em relação àquele do nível indi-
vidual, resulta da seguinte fórmula: “O que é comum a todos pode ser apro-
priado apenas por aqueles que menos possuem”.21 O seu limite se encontra
intelectualmente sempre abaixo do nível médio, mas não se rebaixa jamais ao
nível do membro da comunidade situado em uma escala inferior. Finalmente,
Simmel dirige a atenção para uma exceção nesta fórmula, que não é comum.
Alguns indivíduos rejeitam o espírito coletivo, não partilham do rebaixamento,
como os outros, porque vivem sob a influência constante de suas melhores
energias, são personalidades pouco aptas a sacrificar a melhor parte de seu ser
em favor de uma escala inferior. Simmel recorre, assim, ao conceito de nível
social para averiguar no interior da multiplicidade real um grande número
de características peculiares; toda vez que o conceito se realiza na totalidade,
Simmel tenta reconstruir como se realizou, difundindo-se, por assim dizer,
a partir de um ponto, no mundo inteiro. Enquanto submete seu objeto – em
nosso exemplo, “o nível social” – a condições sempre diversas, ele lança luz
sobre novas características, as quais, depois de as revelar, antes de tudo, de
modo absolutamente geral, pode, em seguida, confirmar na experiência. Deste
modo chega a descobrir leis e formas dos processos que, superficialmente,
não possuem nada em comum entre si. A fundamentação das característi-
21 Idem, p. 44 263
cas estruturais do nível social leva Simmel a mostrar um grande número de
relações típicas a uma estrutura baseada nas afinidades substanciais dos fe-
nômenos. Simmel demonstra, por exemplo, que os indivíduos, reunidos em
uma massa, tornam-se privados das suas qualidades espirituais mais elevadas,
ou mostra como grupos de organismos antes reunidos se cindem em seguida,
por uma necessidade de diferenciação, em organismos singulares. Cada uma
destas características substanciais do nível social se encarna em uma série de
fenômenos, os mais díspares, que estão em relação de analogia entre si, pois
estão sujeitos a uma mesma lei, forma e estrutura.
Mas Simmel, em geral, não se limita a investigar as diversas realizações
de um conceito geral no interior do mundo dos fenômenos; tenta, antes de
tudo, descobrir por que as coisas estão entrelaçadas entre si. Não quer ape-
nas estabelecer que entre os fenômenos existe uma relação, mas explicar
também este dado de fato, reconduzindo os condicionamentos recíprocos
dos fenômenos, por assim dizer, a uma fórmula geral, graças à qual se pode
compreender então todas as leis que foram desveladas. Para alcançar tal meta,
Simmel coloca na base de uma multiplicidade de processos e de situações um
sentido unitário, e o transforma em ponto de partida para o seu irradiar-se
na totalidade. A não ser que o pensador renuncie a tal entrelaçamento de
sentido, pode difundir-se no mundo, partindo de qualquer conceito geral e
de qualquer momento abstrato, para mostrar simplesmente todos os fatos
aos quais o relativo conceito base de qualquer modo ainda se refere. Não é
tarefa sua ir além disto, e, sobretudo, isto lhe é proibido quando a unidade
do conceito, que reúne em si todos os fatos já descobertos, não se identifica
com a unidade do significado. Em muitas das suas investigações sociológi-
cas, Simmel se limita a vaguear no lado exterior dos fenômenos. O conceito
que, volta e meia, lhe serve como fio condutor se mostra insuficiente para
uma interpretação mais profunda, pois mesmo os fenômenos que podem ser
explicados por meio do conceito carecem de um fundo comum dos signifi-
cados. Esta situação modifica-se imediatamente se o conceito, em vez de ser
uma criação artificial, uma abstração arbitrária, indica realidades que são
em si e para si essencialidades mesmas. Compare-se, por exemplo, um tema
264 como Die Kreuzung sozialer Gruppe [O entrecruzamento dos grupos sociais]
com um outro como Das Abenteuer [A aventura].22 No primeiro caso, o fi-
lósofo emprega um conceito fundamental que emerge de seu puro interesse
cognitivo, enquanto a atenção se volta a uma multiplicidade que não consti-
tui uma unidade natural. O conceito base do segundo caso, ao contrário, se
refere a uma realidade experienciável na sua unidade; apenas a uma tal re-
alidade pode ser atribuído um significado, apenas ela pode ser alentada por
uma concepção que lhe confira sentido. Em um estudo sobre Gesellschaft
[Sociedade], por exemplo, Simmel a entende como uma forma de jogo da
socialização,23 chegando a explicar a essência de todos os fenômenos da vida
social. Ou o significado da “asa de um vaso” é para ele aquele que significa a
correspondência entre o mundo da obra de arte e o mundo da vida prática.24
Em todos estes exemplos o filósofo se esforça por exprimir, em conceitos, a
unidade de significados de um grupo de fenômenos a qual ele vivenciou dire-
tamente. Quer fixar esta unidade em uma fórmula que na esfera do conceito
reflete, sem resíduos, a sua vivência. A pluralidade, por exemplo, das rela-
ções inter-humanas e processos espirituais contida na palavra “sociabilidade”
representa para Simmel, assim como o indivíduo, uma compacta totalidade
de significados.25 Como não pode dar a toda plenitude do mundo um único
denominador comum, dirige seu olhar a uma variedade de complexos em
todos os lugares no mundo que pode vivenciar. Extrai o núcleo essencial de
tal conjunto com grande clareza, transformando o conceito no princípio ex-
plicativo dos fenômenos que são reintroduzidos no seu complexo de origem.
22 Über die Kreuzung sozialer Kreise [O entrecruzamento dos grupos sociais] em Über sociale
Differenzierung [Sobre a diferenciação social], pp. 237-57; Das Abenteuer [A aventura] em
Philosophische Kultur [Cultura filosófica], pp. 13-30.
23 Ensaio de Simmel, Gesellschaft [Sociedade] é, na verdade, Exkurs über das Problem: wie ist
Gesellschaft möglich? [Excurso sobre o problema: como a sociedade é possível?] em Soziologie
[Sociologia], pp. 42-61. A passagem citada por Kracauer está em Soziologie der Geselligkeit
[Sociologia da vida social] em Grundfrage der Soziologie, p. 53 [ed. bras.: Questões funda-
mentais da sociologia. Trad. Pedro Caldas. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2008].
24 Der Henkel [A asa] em Philosophische Kultur [Cultura filosófica], pp. 126-34.
25 Soziologie der Geselligkeit [Sociologia da vida social] em Grundfrage der Soziologie, pp. 48-68
[ed. bras.: Questões fundamentais da sociologia. Trad. Pedro Caldas. Rio de Janeiro: Editora
Jorge Zahar, 2008]. 265
Na medida em que no interior da totalidade não existem grupos separados
nitidamente entre si, mas cada fenômeno está em relação com outro, o filó-
sofo pode finalmente irradiar-se mais e mais na totalidade, partindo de cada
princípio que no início constituía apenas o centro de significado de um li-
mitado grupo de fenômenos.
Pretendo ilustrar esta maneira de proceder recorrendo a um exemplo par-
ticular. A essência da moda, para Simmel, está no fato que satisfaz seja a neces-
sidade de imitar seja aquela de se diferenciar dos outros. A moda representa
a forma de expressão unitária destes dois impulsos sociais fundamentais, que
graças a ela se encontram unidos em uma única manifestação. Justamente
em referência a esta característica essencial, torna-se subitamente clara uma
analogia entre a moda e a honra social: os dois fenômenos são semelhantes,
pois constituem o produto de uma separação segundo classes, e porque ser-
vem “para constituir um círculo de pessoas e de isolá-lo dos outros”.26 Partin-
do-se dessa fórmula que capta a essência da moda, resulta sem mais que as
suas criações não decorrem de necessidades objetivas, mas são um produto
de necessidades sociais e psicológicas. Na base deste conceito torna-se possí-
vel traçar um paralelo entre a moda e o dever; ambos os fenômenos estão de
acordo em relação a seu “ser estranho à realidade”, na sua indiferença em re-
lação ao “o quê”, à matéria, na qual se realizam. Aqui o procedimento de Sim-
mel torna-se claramente reconhecível. Mostra como toda nova característica
estrutural e todo novo tipo de comportamento do seu objeto se manifestam
concretamente também em outros objetos. Deste modo, Simmel pode esten-
der no mundo uma rede de analogias. Pode-se compreender facilmente que
âmbitos como o da religião e o da ciência, que representam escolhas basea-
das apenas em critérios objetivos, estejam livres do domínio da moda ou pelo
menos seu domínio no interior destes âmbitos não possuem nenhuma razão
de ser. A moda é uma prerrogativa dos estratos sociais superiores, nos quais
a necessidade de se distinguir é desenvolvida ao máximo grau. O fato de que
27 Idem, p. 40.
28 Idem, p. 41. 267
duo em relação à moda. Aquele que segue a moda se distingue dos outros, mas
não como indivíduo singular, mas como membro de um grupo determinado.
Isto explica o julgamento que se faz dele: “Aquele que segue a moda é inve-
jado como indivíduo, é aceito como representante da espécie”.29 Após lançar
luz sobre os traços psicológicos característicos dos heróis da moda, Simmel
chama atenção para o fato de que os adversários conscientes de tudo o que é
moderno aplaudem a moda do mesmo modo como aquele que se confessa seu
seguidor. Mesmo as ações deste tipo humano correspondem à necessidade de
diferenciar-se e de integrar-se com os outros, trata-se de um herói da moda
com sinal trocado. Do mesmo modo, o ateísmo é, não raramente, o produto
de um impulso religioso; instintos primários [Grundtriebe] se realizam mesmo
que por meio de conteúdos contrários. O fato de que as mulheres se curvam à
moda mais do que os homens se explica pela falta de objetividade própria do
sexo feminino e pela sua dependência ao meio social. A mulher emancipada,
que quer partilhar das aspirações do homem, deve rebelar-se logicamente tam-
bém contra a pretensão de domínio da moda. Pois a moda envolve apenas a
superfície da personalidade, em muitos casos serve de máscara aos homens
de índole profunda. Utilizam-na para se esconder, sujeitar-se a ela significa
um “triunfo da alma sobre os fatos da existência”.30 Por mais que uma moda
possa ser sem pudor não ofenderá nunca o senso de pudor que, segundo a
definição certamente insuficiente de Simmel, possui raízes no desejo de distin-
guir-se que é próprio ao indivíduo singular. Os vestidos de baile bem talhados
dão uma impressão penosa, se são vestidos em ocasiões não solenes, para as
quais não foram concebidos. A moda, como o direito, faz parte da forma de
vida em comum que regula o comportamento exterior do homem. Quanto
mais se reconhecem espontaneamente nesta forma, tanto maior será a liber-
dade interior alcançada. Certamente, mesmo o indivíduo singular cria para
si uma “moda pessoal” para satisfazer seja a necessidade de unificação dos
motivos anímicos, seja a necessidade de chamar atenção sobre algum traço
essencial que no momento lhe parece significativo e por isso mesmo gostaria
29 Idem, p. 43.
268 30 Idem, p. 52.
de desenvolvê-lo até o fim. Adota um certo estilo, em certos momentos pre-
fere empregar no discurso um tipo de ênfase, evidenciando particularmente
uma ou outra das suas características. Toda moda se comporta como se lhe
fosse dada vida eterna, não obstante ser destinada inevitavelmente a perecer.
Isto se explica, segundo Simmel, pelo fato de que a moda como conceito uni-
versal é certamente imortal, pois permite aos instintos primários uma forma
de encarná-los. As modas mudam, mas a moda permanece, e este elevar-se
sobre o tempo atinge sempre os seus conteúdos fugazes, manifestamente, a
exigência de durar no eterno…
Nem sempre Simmel elabora tipos de unidade como os acima citados, isto
é, unidade de conceito e de significado em pontos de partida para penetrar na
totalidade. Com isso ele decompõe também unidades inautênticas, que abar-
cam uma multiplicidade de elementos de fato privados de nexo. A maioria
dos conceitos da vida cotidiana não nasce da visão imediata da realidade fac-
tual; a matéria que constitui o seu fundamento é elevada à consciência apenas
de modo totalmente vago e indistinto. Não se trata de uma vivência, mas de
moeda corrente. Na sua obra de juventude Einleitung in die Moralwissenschaft
[Introdução à ciência da moral], ele se esforça em dissipar a névoa das repre-
sentações indistintas que se agregam em torno dos conceitos fundamentais
(por exemplo, em torno do conceito de egoísmo ou de altruísmo), revelando
a multiplicidade dos fatos morais e que estão na base destes conceitos. Em
vez de aceitar passivamente os conceitos em questão e de torná-los o coração
de uma doutrina ética qualquer, sem tê-los examinados previamente, Simmel
desce até os seus fundamentos para destruí-los, enquanto ilumina a mesma
realidade, a longa série de teorias que têm origem no turvo reino dos concei-
tos, que se impõe entre o sujeito cognoscente e a realidade. Mesmo agora o
seu procedimento se assemelha àquele descrito anteriormente, mas aqui lhe
interessa mais destruir um mundo construído sobre conceitos aparentes do
que iluminar os contextos existentes no seu interior.
A Filosofia do dinheiro representa um exemplo extraordinário da conquista
da realidade por parte de Simmel, conforme estamos discutindo. Pode-se ler
no prefácio: “Logo, o dinheiro aqui é apenas meio, material ou exemplo para
a representação dos nexos existentes entre os mais exteriores, os mais realis- 269
tas, as manifestações fenomênicas mais casuais e as potências mais ideais da
existência, entre as correntes mais profundas da vida individual e aquela da
história”.31 Todos os âmbitos disponíveis de questionamento são percorridos
aqui pelo pensador, que evidencia também as infinitas ligações intrincadas, no
interior destes âmbitos, entre fenômenos igualmente infinitos. Simmel oferece
diversos cortes transversais da vida social e individual na época de uma eco-
nomia do dinheiro desenvolvida. As suas considerações não são o resultado
nem de uma concepção histórica, nem de um ponto de vista típico da econo-
mia política; resultam apenas da intenção filosófica de tornar transparente à
consciência, em todas as suas partes, o entrelaçamento da multiplicidade real.
Em nenhuma outra de suas obras o pensador traça um quadro tão amplo do
entrelaçamento e entrecruzamento dos fenômenos. Lança luz sobre a sua es-
sência e, em seguida, depois de fazer com que esta seja novamente reabsorvida
em uma grande quantidade de relações, mostra como tais relações se condi-
cionam reciprocamente revelando os numerosos casos comuns. Todos fazem
parte destes fenômenos de modo aproximado: a troca, a propriedade, a avareza,
o esbanjamento, o cinismo, a liberdade individual, o estilo de vida, a cultura,
o valor da personalidade e assim por diante. Partindo do conceito de dinheiro
propriamente dito, Simmel se irradia em todas as possíveis direções do múlti-
plo; isto é, reconhece a natureza do dinheiro, as suas relações com os objetos,
o tipo de função que desenvolve, o seu lugar na cadeia dos fins. Por outro lado,
ao contrário, parte de fenômenos para ele essenciais – transformando-os em
novos núcleos –, dirige seu olhar ao dinheiro, quando, por exemplo, descobre
o significado da economia política para o desenvolvimento da personalidade e
para a formação da vida interior e exterior. A quantidade inexaurível de analo-
gias entrelaçadas chama continuamente a atenção sobre o pensamento unitá-
rio que está na base da obra inteira, um pensamento que pode ser formulado
brevemente nestes termos: de qualquer ponto da totalidade se pode chegar a
outro ponto, todo fenômeno traz e sustenta outro fenômeno, não há nada de
absoluto que exista deslocado dos outros fenômenos e que possua valor em
si. Este relativismo, que Simmel exercitou na Filosofia do dinheiro não apenas
33 Nas lições sobre Kant, Simmel escreve: “A forma da sua [de Kant] exposição deve ser comple-
tamente quebrada…” a fim que possa tornar claro o seu conteúdo superindividual.
276 34 Rembrandt, p. 2.
liaridade e nas suas conexões, são apreendidas partindo da compenetração de
ideia criativa e existência do artista, das quais são símbolo e expressão.
Apenas uma única vez, e precisamente no seu Goethe, Simmel tenta al-
cançar a raiz de uma individualidade que encontra na vida mesma a sua ma-
nifestação. O segredo da figura de Goethe está oculto, segundo ele, no fato de
que o poeta, “obedecendo completamente à própria lei, corresponde justa-
mente de tal modo à lei da coisa”;35 no fato que toda a sua vivência, também
em relação a tudo aquilo que se aproxima do exterior, se adequa à corrente da
sua personalidade de maneira maravilhosa, como se fosse guiada pelo destino,
e fundindo-se nela encontra expressão criativa. A própria realidade existencial
irrepetível é um fenômeno originário [Urphänomen] que possui um sentido
que pode ser vivido, que pode ser incluído em uma fórmula. O desprender-se
da alma, a relação com a natureza e com os homens circundantes, a qualidade
dos sentimentos, à medida que abandona ou se preserva, pode ser interpretado,
partindo do espírito do qual é pleno.
Para completar este corte transversal na filosofia de Simmel, pretendo en-
fim considerar brevemente o modo pelo qual ele se apropria da matéria das
suas reflexões. Simmel a contempla em uma relação de percepção interna e
descreve, pois, o que é contemplado. Recusa-se a derivar, de forma rigida-
mente sistemática, os dados singulares de conceitos gerais. Os pensamentos
se adaptam no seu desenvolvimento ao que é imediatamente experienciável da
realidade vital, mas certamente não acessível a todos, mesmo a mais abstrata
exposição não possui outra fonte senão aquela contemplação que a exaure ple-
namente. O ato de pensamento em Simmel se apoia sempre em uma vivência
de percepção de algum tipo, que pode ser realizado a não ser pelos próprios
meios. Desenha o que viu, todo o seu pensamento é fundamentalmente um
apropriar-se dos objetos por meio do olhar dirigido a eles.
Quem compreendeu o princípio fundamental do pensamento de Simmel
descobre também com isto os fundamentos profundos da forma de mani-
festação desta filosofia. Frequentemente se reprova o pensador pela afetação
de seu estilo, a sutileza muitas vezes excessiva. Como se tudo fosse apenas
36 Este ensaio foi publicado originalmente em 1920, na revista Logos, e constitui o capítulo
introdutório de um livro nunca publicado sobre Simmel [N.A]. Este estudo foi publicado
na íntegra em Siegfried Kracauer, Frühe Schriften aus dem Nachlass [Primeiros escritos das
obras póstumas]. Organização de Ingrid Belke e Sabine Biebl. Frankfurt am Main: Suhrkamp,
278 2004, pp. 139-280.
Sobre os escritos de Walter Benjamin
1 Walter Benjamin, Ursprung des deutschen Trauerspiels. Berlim: Rowohlt, 1928 [ed. bras.: Ori-
gem do drama barroco alemão. Tradução de Sérgio Paulo Roaunet. São Paulo: Brasiliense,
1984]; Einbahnstrasse. Berlim: Rowohlt, 1928 [ed. bras.: em Obras escolhidas, volume 2.
Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Brasiliense, 1987, pp. 9-69]. 279
O próprio Benjamin denomina o seu procedimento monadológico. Ele é a
antítese do sistema filosófico que quer garantir o seu alcance no mundo por
meio de conceitos universais e, sobretudo, a antítese da generalização abs-
trata. Enquanto a abstração une os fenômenos entre si para inserí-los em
um contexto mais ou menos sistemático de conceitos formais, Benjamin –
reportando-se aqui à teoria platônica das ideias e à escolástica – afirma a
multiplicidade descontínua não tanto dos fenômenos, mas das ideias. Estas
se manifestam nos meios obscuros da história. O drama trágico, por exem-
plo, é uma ideia.
Decisivo para este pensamento é que as ideias não se revelam pelo contato
direto com os fenômenos vivos. O observador, que mantém uma relação di-
reta com os fenômenos, pode apreender a sua forma ou pode eventualmente
interpretá-los como a realização de quaisquer abstrações. É indiferente como
ele os percebe, pois, segundo Benjamin, o modo pelo qual um fenômeno se
apresenta em uma relação direta é o menos adequado para revelar alguma
coisa sobre as essências que contém. A sua forma viva é transitória e os con-
ceitos dela derivados são insignificantes. Em resumo: o mundo mostra àquele
que se volta diretamente para ele uma figura, que precisa destruir para alcan-
çar as essências.
Em seu estudo sobre o drama, Benjamin analisa em detalhes e de modo
exemplar o complexo “drama barroco” em seus elementos significativos, uma
dissecação necessária para a exposição da ideia. Um desses elementos é a ale-
goria. A partir das fontes, Benjamin remonta à origem intencional da alegoria,
quer dizer, até o ponto de sua história no qual desvenda o seu verdadeiro sig-
nificado. Uma rara capacidade intuitiva torna-o capaz de penetrar o mundo
ancestral das essências e descobrir aquilo que são desde os primórdios. A sua
interpretação da alegoria é digna de ser admirada. Utilizando o texto original,
a interpretação é a primeira a demonstrar como a natureza (que não resistiu à
morte) – e para o barroco, a história como história do sofrimento do mundo
é a natureza – se torna alegoria sob o olhar do melancólico. E depois de todos
os elementos estarem completamente saturados com o extremo de seu signi-
ficado, Benjamin apresenta o movimento dialético, no qual eles se enovelam
280 no interior da estrutura formal do drama barroco. Em absoluta coerência com
seu pensamento, não se trata mais para Benjamin de identificar as essências
por meio de um conceito geral abstrato, pois o que lhe interessa é só a sua sín-
tese dialética, que lhe assegura a plena concretude. Se as significações se unem
em torno de uma ideia, elas saltam de uma a outra como fagulhas elétricas,
ao invés de se “anularem” em um conceito formal. No curso da história, elas
eventualmente se submetem a uma separação dialética e cada qual adquire
uma história subsequente de si mesma, sobre si mesma.
A diferença entre o pensamento abstrato tradicional e o de Benjamin seria,
portanto, a seguinte: enquanto o primeiro dilui a plenitude concreta dos obje-
tos, o último escava na densa matéria para expor a dialética das essências. Ele
não aceita nenhuma espécie de generalidade e persegue o desenvolvimento
de determinadas ideias ao longo da história. Uma vez que para Benjamin toda
ideia é uma mônada, o mundo parece-lhe revelar-se na representação de cada
uma delas. “O ser que nela [mônada] penetra com sua pré e pós-história traz
em si, oculta, a figura do restante do mundo das ideias […]”.2
O historiador, o historiador da literatura e das artes – para não mencionar
os filósofos –, encontrarão material de interesse sobre o drama barroco na
obra de Benjamin. Ele combina um conhecimento extraordinário dos signifi-
cados e das ideias com a profunda erudição de um pesquisador que, pela sua
convicção filosófica, é impelido necessariamente a remontar àquelas fontes
desconhecidas e dificilmente acessíveis. O livro propõe uma nova teoria da
tragédia antiga e, independentemente de sua interpretação da alegoria, revela
importantes essências como o destino, a honra, a melancolia nos conteúdos
materiais [Sachgehalte] da cena barroca. A obra elucida o significado dos fi-
gurantes envolvidos no drama e de todos os seus elementos e inclui também
a clássica tragédia do destino e seus descendentes românticos. Jamais alguém
havia demonstrado de modo tão convincente que as essências têm início com
a história, sem dela derivarem. Depois da obra de Benjamin, o barroco – e não
somente o barroco – será visto com outros olhos.
2 Walter Benjamin, Ursprung des deutschen Trauerspiels. Frankfurt am Main, 1963, p. 30. [ed.
bras. Idem, pp. 69-70] 281
No que se refere ao método, aqui é especialmente importante o fato de
que a obra sobre o drama barroco não contém apenas a história dos diferen-
tes significados de uma ideia encarnada no elemento material, mas também
uma visão da ordem atemporal do mundo das ideias. A mesma capacidade
intuitiva que conduz Benjamin para a origem das essencialidades, proporcio-
na-lhe o conhecimento do lugar próprio das mesmas, um conhecimento que
com todo o direito se pode chamar teológico. Para ele o mundo está obscu-
recido e obstruído, como sempre esteve de uma perspectiva teológica. Este é
precisamente o motivo pelo qual ele acredita que não é necessário respeitar a
imediaticidade [Unmittelbarkeit], demolir as fachadas, fragmentar a forma. De
modo muito coerente, Benjamin mal se aproxima de imagens e fenômenos no
momento do seu florescimento, preferindo muito mais buscá-los no passado.
Para ele, as imagens e os fenômenos vivos perturbam-no como um sonho, mas
se iluminam no estágio da desintegração. Nas obras e nas situações agora sem
vida e desviadas de toda e qualquer relação com o presente, ele recolhe os seus
frutos. Pois, privados da vida mais urgente, tornaram-se transparentes contra
a ordem das essências.
Em razão da sua capacidade de penetrar nesta ordem, Benjamin deseja
implementar o ato da redenção apropriada para a contemplação teológica.
Ele sempre tem um cuidado especial em demonstrar que as questões gran-
des são pequenas, e as pequenas, grandes. A varinha mágica de sua intuição
atinge o campo do imperceptível, do que em geral é depreciado, do que foi
preterido pela história e é precisamente aqui que ele descobre os maiores
significados. Por isso Benjamin se move no deserto do drama barroco e
confere à alegoria uma importância que, em comparação com o símbolo,
ela não possui na concepção tradicional. Sintomaticamente, na apresenta-
ção de Benjamin, a alegoria resgata os antigos deuses que, graças a ela, po-
dem continuar vivendo no mundo hostil do cristianismo medieval. O outro
motivo de sua contemplação é a descoberta daqueles momentos ocultos e
dos pontos nodais no decorrer da história, nos quais a salvação é vista dire-
tamente ou se mostra em uma imagem. “Sim, quando o Altíssimo fizer sua
colheita nos cemitérios,/ Eu que sou hoje uma caveira terei um rosto de anjo”
282 – estas palavras, proferidas por uma caveira falante na obra Hyacinthen, de
Lohenstein,3 servem como epígrafe do último capítulo do livro sobre o drama
barroco, que trata do súbito deslocamento da melancolia no mundo de Deus
e que interpreta a imagem da apoteose como um signo da salvação. Talvez
a intenção especulativa de Benjamin seja, na verdade, perseguir aqui e ali
o processo que, entre o céu e o inferno, se desenvolve às escondidas e que,
às vezes, rompe visivelmente no mundo de nossos sonhos. De modo seme-
lhante, Benjamin pode se denominar um agente secreto, no mesmo sentido
em que Kierkegaard se definia como um “agente secreto da Cristandade”.
Que Benjamin deseje despertar o mundo do seu sonho, é comprovado por
alguns aforismos radicais em Rua de mão única, dos quais publicamos alguns
em nossa seção.4 O pequeno livro, cuja apresentação é bastante tímida, con-
cilia pensamentos dos mais diversos âmbitos da vida pessoal e pública. Para
citar alguns exemplos ao acaso: relatos curiosos de sonhos; cenas de infância e
inúmeros medalhões dedicados a lugares exemplares de improvisação (como
mercados, portos etc.), cujos contornos delicados lembram baixos-relevos;
declarações sobre o amor, a arte, livros e política, muitas das quais registram
às vezes descobertas surpreendentes da meditação. As observações não têm
aliás o mesmo valor. Ao lado de notícias, que talvez ainda aguardem uma ela-
boração, encontram-se expressões do simples esprit, e aqui e ali – por exem-
plo, no capítulo “Panorama imperial”, onde Benjamin procura caracterizar a
3 Daniel Caspers von Lohenstein, “Redender Todtenkopf Herrn Matthäus Machners” de Hya-
cinthen. Em Blumen I, Breslau, 1708, p. 50; citado em Benjamin, Ursprung des deutschen
Trauerspiels, p. 228. [ed. bras.: Origem do drama barroco alemão, p. 239]
4 Benjamin, que já em 1924 previu uma reunião de seus aforismos, enviou uma seleção para Kra-
cauer para publicação no Frankfurter Zeitung. Kracauer dividiu-os em dois grupos: “Kleine
Illuminationen”[Pequenas iluminações], Frankfurter Zeitung 70, número 273, 14 abr. 1926,
e “Häfen und Jahrmarkte” [Portos e feiras], Frankfurter Zeitung 70, número 502, 9 jul.
1926 – todos republicados em fac-símile em Walter Benjamin, Briefe an Siegfried Kracauer,
ed. pelo Theodor W. Adorno Archiv, Marbach: Deutsche Schillergesellschaft, 1987, pp. 93-100.
Em uma carta dirigida a Kracauer, datada de 20 de abril de 1926, Benjamin expressa a sua
satisfação com a publicação de “Kleine Illuminationen” e agradece-o efusivamente por terem
vindo a lume com um título tão ajustado. 283
inflação na Alemanha5 – impressões privadas são monumentalizadas de modo
arbitrário. É como se em seu livro Benjamin tivesse intencionalmente publi-
cado as inúmeras perspectivas acessíveis a ele, com a finalidade de corrobo-
rar, também deste lado, a estrutura descontínua do mundo. Quanto à postura
geral de Rua de mão única, a soma dos aforismos anuncia conscientemente o
fim da era individualista, no seu estágio ingênuo-burguês. O método de dis-
sociar diretamente das unidades vividas – que ele aplica em seu livro sobre
o barroco – assume necessariamente – se aplicado ao mundo de hoje – um
significado explosivo, se não revolucionário. Na verdade, a coleção é rica em
detonações. Contudo, o que emerge desse monte de entulhos não são tanto
as essências puras, mas, muito mais, pequenas partículas materiais, que apon-
tam para essências (por exemplo, quando Benjamin examina o significado
do estado de sobriedade matutina, ou das abluções etc.). De resto, o livro se
diferencia dos trabalhos anteriores pelo seu materialismo particular. Destruir
e em seguida iluminar lá para onde de costume não se volta a nossa atenção,
corresponde propriamente ao método de Benjamin. Já no primeiro aforismo
ele afirma: “As opiniões, para o aparelho gigante da vida social, são o que é
o óleo para as máquinas; ninguém se porta diante de uma turbina e a irriga
com óleo de máquina. Borrifa-se um pouco em rebites e juntas ocultos, que
é preciso conhecer”.6
Decerto a vida em si, aquela que deve ser visada, mal é calculada. Não é
certamente uma coincidência que as interpretações em Rua de mão única con-
quistadas no presente não tenham absolutamente a força combativa daquelas
obtidas do material do drama barroco. Isto se explica pela sua convicção de
que o existente – que para ele se apresenta confuso – é na sua imediaticidade
privado de conteúdo. Benjamin é tão alheio a toda forma imediata, que nem
mesmo pensa em se confrontar com ela. Ele nem registra a impressão de qual-
quer forma dessa imeaditicidade, nem se abandona ao pensamento abstrato
7 Na republicação de 1963, o parágrafo a seguir foi omitido; nas edições posteriores voltou a
ser inserido.
8 Walter Benjamin, “Kriegerdenkmal” [Monumento a um guerreiro], em Gesammelte Schriften
4, p. 121. [ed. bras.: Obras escolhidas, volume 2, p. 45]
9 Marcel Proust, Im Schatten der jungen Mädchen [À sombra das raparigas em flor], trad. Walter
Benjamin e Franz Hessel. Berlim: Die Schmiede, 1927; Die Herzogen von Guermantes [O
caminho de Guermantes], trad. Walter Benjamin e Franz Hessel. München: Piper, 1930.
10 Walter Benjamin, Ursprung des deutschen Trauerspiels, em Gesammelte Schriften 1, p. 212. [ed.
bras., Origem do drama barroco alemão, p. 45]
11 Idem, “Kriegerdenkmal”, op. cit., p. 121. [ed. bras.: op. cit., p. 45] 285
Franz Kafka
Sob o título Durante a construção da muralha da China [Beim Bau der chine-
sischen Mauer]1 publicou-se um volume de prosa, que reúne textos inéditos
da obra póstuma de Franz Kafka. Max Brod, amigo do falecido e depositário
de sua herança literária, organizou esta obra juntamente com Hans Joachim
Schoeps. Do posfácio de ambos os organizadores, cujas tentativas de interpre-
tação não são inteiramente adequadas, deduz-se que muitos dos fragmentos
de contos e aforismos apresentados pertencem à obra tardia do escritor, morto
em 1924. Eles foram escritos nos anos da Guerra, da Revolução e da inflação.
Embora nenhuma única palavra em toda a obra estabeleça uma relação direta
com esses acontecimentos, eles estão sem dúvida dentre os seus pressupostos.
É provável que a irrupção desses eventos tenha tornado Kafka capaz de avaliar
e de elaborar o caos no mundo. “Pode existir um saber do demoníaco”, diz um
1 Franz Kafka. Beim Bau der chinesischen Mauer: Ungedruckte Erzählungen und Prosa aus dem
Nachlass, [Durante a construção da muralha da China. Contos e prosa inéditos da obra pós-
tuma]. Editado por Max Brod e Hans Joachim Schoeps. Berlim: Gustav Riepenheuer Verlag,
1931. 287
aforismo, “mas não uma crença nele, pois não existe nada mais demoníaco
do que o que aí está.”2
2 Franz Kafka, Nachgelassene Schriften und Fragmente [Escritos e fragmentos póstumos], vo-
lume 2, editado por Jost Schillemeit. Frankfurt: Fisher Verlag, 1992, p. 136.
3 Idem, “Investigações de um cão”, em Narrativas do espólio, tradução de Modesto Carone. São
Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 164. Salvo quando indicado, todas as traduções das
288 citações de Kafka são de Modesto Carone.
produz novamente temor – um entrelaçamento ameaçador que, pouco a pouco,
anula a liberdade de ação do animal. Milhares de medidas de segurança preci-
sam ser tomadas antes que o animal ouse sair da toca, e o retorno do passeio
cotidiano se transforma num empreendimento incomum. Além disso, a inu-
tilidade da construção torna-se aparente no final, pois, por mais que se proteja
das pequenas coisas que revolvem a terra, ele não pode resistir ao verdadeiro
inimigo; na verdade, este até mesmo o atrai. As medidas tomadas por medo
existencial colocam a própria existência em perigo.
Uma construção que decerto não nasce exatamente do medo, mas antes
da confusão, é como Kafka concebe indiscutivelmente a ciência; ao menos, na
medida em que ela supera determinados limites. No texto em prosa “A toupeira
gigante” [Der Riesenmaulwurf] o escritor confronta o imenso, obscuro edifício
da ciência com a inútil descoberta de um professor de uma escola de aldeia.
Enquanto a descoberta sob todas as circunstâncias conserva um conteúdo por-
que está e enquanto estiver intimamente ligada ao seu descobridor, a ciência
se eleva vertiginosamente, abandonando os homens. “Toda descoberta”, lemos
no conto da toupeira gigante, “é logo remetida ao conjunto das ciências e com
isso deixa, até certo ponto, de ser descoberta: dissolve-se no todo e desaparece,
é preciso ter um olho cientificamente escolado para depois reconhecê-la. Ela
será em breve vinculada a teses de cuja existência não ouvimos em absoluto fa-
lar e na discussão científica será arrebatada até as nuvens junto com elas. Como
iremos compreender essas coisas?” E, de modo semelhante, nas “Investigações
de um cão” diz-se da ciência da alimentação que “no seu alcance gigantesco
[ela] não só ultrapassa a capacidade de compreensão individual, mas também
a de cada um de todos os peritos tomados em seu conjunto”.4 Assim como o
medo animal encontra o próprio fim no labirinto autoconstruído, assim tam-
bém o espírito se perde nas divagações da ciência.
5 Idem, “Betrachtungen… [aforismo 20]”, op. cit., “Da Justiça, etc. …” em Parábolas e frag-
mentos e Cartas a Milena. Tradução de Geir Campos. São Paulo: Editora Tecnoprint, 1987.
p. 51.
290 6 Idem, “Investigações de um cão”, op. cit., p. 200.
mudar o tom, alterar segundo qualquer desejo, virá-la em sentido contrário;
e aquela palavra existia, pelo menos estava perto, pairava na ponta da língua,
todos podiam apreendê-la”.7 Toda obra de Kafka gira em torno do seguinte
reconhecimento: o homem está apartado da verdadeira palavra, a qual Kafka
também não percebe. É ela que também justifica suficientemente a imagem
da construção sinistra. Como se explica que as suas paredes antes tão finas se
tornaram tão impenetráveis? A resposta comprova que o olhar retrospectivo
de Kafka não é romântico. “Não; o que também objeto à minha época” afirma
o cão investigador “é que as gerações anteriores não foram melhores que as
mais novas, num certo sentido foram muito piores e mais fracas.”8 A atitude
manifestada nesta declaração esclarece a lenda subsequente – e o passo em
falso dos nossos ancestrais – da aparência de nostalgia pelo passado. “Quando
nossos antepassados se desviavam, certamente mal pensavam que esse erro
poderia ser infinito, viam, literalmente, ainda uma encruzilhada, era sempre
fácil regressar e quando hesitavam em fazê-lo era só porque ainda queriam
desfrutar, por um tempo breve, da vida canina.”9 A censura da indolência aqui
levantada – ela representa para Kafka um pecado capital – é igualmente diri-
gida no pequeno conto “O brasão da cidade” [Das Stadtwappen]10 aos constru-
tores da torre de Babel que, confiando no progresso das gerações futuras, não
se esforçaram até o limite de suas forças. Todavia – isto é muito importante –
Kafka coloca menos peso na alusão à presença de uma negligência passada do
que na lembrança da perda da palavra verdadeira. Esta última é um leitmotiv
recorrente: assim na lenda do imperador em seu leito de morte, que enviou “a
você, o só, o súdito lastimável, a minúscula sombra refugiada nas mais remota
distância diante do sol imperial”;11 no tratado “Sobre a questão das leis” [Zur
Frage der Gesetze] no qual se diz que elas, pela sua natureza, precisariam per-
12 Idem, Tagebücher [Diários]. Editado por Hans-Gerd Koch, Michael Müller, Malcolm Pasley.
Frankfurt: Fischer Verlag, 1990, p. 856.
292 13 Idem, “Investigações de um cão”, op. cit., p. 172.
conjectura “que os que silenciam são os justos mantenedores da vida”.14 É por
isso que ele não quer desanimar, mas importunar incansavelmente os compa-
nheiros a abrir conjuntamente com ele “o teto desta vida pedestre”15 para alçar
a liberdade. Mas no mesmo instante em que crê ter levantado e removido o
empecilho maior, aparece um novo obstáculo, insuperável. Uma música soa e
obriga-o a renunciar. Ela é para Kafka a forma suprema do silêncio. Por duas
vezes ela paralisa o cão. Primeiramente, durante o seu encontro com os sete
cães músicos, que produzem um ruído extraordinário. O questionador ainda
jovem quer saber deles o que é que os impele a fazer isto. “Mas eles – incom-
preensível! incompreensível! –, eles não responderam, agiram como se eu não
estivesse lá.”16 Posteriormente, a música perturba uma experiência de fome que
o cão, neste meio-tempo envelhecido, realiza em função de suas audaciosas
investigações. Por se tratar de um experimento que coloca a existência em pe-
rigo, a sua relação com as conquistas menos significativas da ciência é similar
à descoberta do professor da aldeia na “Toupeira gigante” [Riesenmaulwurf].
Mal se inicia o experimento – que tem o objetivo de ser explosivo – um cão
forasteiro se aproxima do jejuador e, após frustradas tentativas de persuadi-lo
a desistir, afasta-o do lugar do jejum por meio de um canto mágico. Esclare-
cedor é o diálogo que antecede a interrupção forçada. No seu curso, o cão que
se preparou para o jejum e que não quer se deixar envolver, percebe que o cão
forasteiro entra em contradições. Este, no entanto, para as suas correções e ape-
nas pergunta: “Não entende o que é óbvio?”.17 O evidente é o último pretexto
daqueles que desejam manter esta vida ordinária, o baluarte mais extremo,
atrás do qual se entrincheiram os guardiões do silêncio.
14 Idem., p. 164.
15 Idem., p. 163.
16 Idem, p. 153.
17 Idem, p. 196. 293
um caminho cuja falsidade de fato não estava acima de qualquer dúvida, de
tal forma que houvesse autorizado o emprego da violência?”.18 Tal como o cão
que constantemente é distraído – assim é como Kafka se sente. Ele olha para o
mundo como alguém que nele sempre foi empurrado para trás, como alguém
que precisa retornar da busca daqueles lugares onde mora o imperador e dos
quais são oriundas as leis desconhecidas. Não como se, desse modo, já tivesse
na verdade encontrado o seu caminho até elas; mas, a sua experiência é muito
mais aquela de alguém que se encontra em um estado semidesperto, cuja ca-
pacidade de reflexão se ocupa primeiramente com o sonho fugidio e no qual
esteve presente a solução de todos os enigmas. Exatamente quando ele ainda
crê que pode agarrar, quer dizer, saborear a palavra-chave, a imagem perfeita
e límpida, na qual o mundo se congelou sob o signo do mistério revelado, co-
meça a se dissolver. Atormentado, ele tenta apanhar as partes desintegradas
que, por sua vez, começam a se reunir novamente em um arranjo fundamen-
tal e errôneo. Quanto menos ele consegue reconstruir a maravilhosa imagem
desaparecida, mais desesperadamente ele corre de um lado ao outro entre os
fragmentos dispersos com a intenção de preservá-los e, se possível, ordená-
los. Essa caça determina o processo artístico de Kafka. Já nos primeiros anos,
relata ele em um aforismo, tinha o desejo de “alcançar uma visão da vida […],
na qual a vida conservaria o seu movimento natural de ascensão e queda, mas
ao mesmo tempo seria reconhecida não menos claramente como um nada, um
sonho, um estar suspenso”.19 E algumas linhas adiante: “Mas ele sequer pode-
ria desejar isto, pois o seu desejo não era um desejo, mas apenas uma defesa,
uma versão burguesa do nada, um sopro de alegria, que ele desejava conceder
ao nada […]”.20 De fato, Kafka dificilmente volta a ceder ao antigo desejo, mas
por sua vez se dá conta de que o mundo caótico que percorre de um lado ao
outro é um nada. Com o intuito de revelar a arrogante presunção do mundo
de ser alguma coisa, ele mostra que a relação entre as coisas e as pessoas é com-
pletamente divergente. A anedota “Uma confusão cotidiana” [Eine alltägliche
21 Idem, “Die Wahrheit über Sancho Pansa” [A verdade sobre Sancho Pança] em Sämtliche
Erzählungen [Narrativas reunidas]. Editado por Paul Raabe. Frankfurt: Fischer Verlag, 1970,
pp. 429-30 [ed. bras.: Narrativas do espólio, p. 103]. 295
táveis acasos da vida podem impedir a pessoa em quem acredito de cumprir
o seu dever…”.22 Se, em geral, a loucura possui método, então aqui as refle-
xões metodológicas – altamente realistas – que são o sinal característico da
loucura do mundo e, como elas não se resolvem, a sua irrealidade, em última
instância, é completamente desmascarada. Esta irrealidade não é um sonho;
ao contrário, ela é real. Ela não é um nada e, quanto mais ela se fecha em si
mesma, tanto mais é um nada. Nesta sua forma de existência ela liberta de si
seres que, sem dúvida, são invisíveis para o observador médio, mas se mani-
festam para aquele que retorna com o eco da palavra verdadeira ressoando em
seus ouvidos. Seres míticos subordinados ao murmúrio confuso da vida e seu
raisonnement. Destes seres fazem parte o animal inominado da toca, que se
recusa à contemplação, e o friorento “Cavaleiro do balde” [Kübelreiter]23 que,
a galope, em cima de sua cuba, tiritando de frio, chega ao depósito de carvão
sem que a mulher do carvoeiro se dê conta disto. Eles não são nem espíritos
nem fantasmas, mas figurações concretas das condições atuais do mundo, no
qual no lugar de reis agora só existem mensageiros. “A eles foi dada a escolha
de serem reis ou mensageiros. Seguindo uma tendência infantil todos quise-
ram ser mensageiros. É por isso que tantos mensageiros percorrem o mundo
e, uma vez que não há mais reis, eles anunciam uns aos outros as mensagens
que se tornaram sem sentido.”24 O mundo, no qual esses mensageiros correm
de um lado ao outro, assemelha-se a uma folha de moldes, sobre a qual estão
colocadas partes que não combinam entre si. Muitas vezes Kafka sente pra-
zer em escolher qualquer uma dessas linhas caóticas, persegui-la e, de certo
modo, mantê-la no jogo. O cão investigador, por exemplo, não satisfeito por
ter meditado sobre a insignificância dos resultados científicos, faz a seguinte
observação: “Nesse aspecto me basta a suma de toda ciência, a pequena regra
com que as mães separam os pequenos dos seios e os lançam à vida: ‘Molhe
Somos na verdade capazes de dar tal passo? “Talvez nossa geração esteja per-
dida…” consta nas “Investigações de um cão”. Este tímido talvez deixe um fio
de esperança. Quando ele tenta definir de maneira mais precisa o sujeito desta
esperança, Kafka revela uma insegurança, que corresponde precisamente à
distância imensurável da verdadeira palavra, e que se contrapõe à segurança,
com a qual surgem e resvalam as reflexões da racionalidade diabólica. Assim
como ele não reconhece nem rejeita completamente o progresso, assim tam-
bém reúne o distante e o próximo. “O verdadeiro caminho segue por uma
corda esticada não nas alturas, mas um pouco acima do chão. Parece mais
destinado a fazer tropeçar do que a ser percorrido.”30 A concepção segundo
a qual a solução buscada é inacessível e, ao mesmo tempo acessível aqui e
agora, toca o aforismo, que considera o Último Julgamento como uma lei
31 Cadernos in-oitavo utilizados por Kafka a partir de 1916. Na bibliografia kafkiana o termo
se consolidou para toda referência a esses cadernos com fragmentos de texto.
32 Idem, “Investigações de um cão”, op. cit., p. 164.
33 Idem, “Sobre a questão das leis”, Narrativas do espólio, p. 125. 299
o sábado à noite para o varredor de chaminés, eles lavam as cinzas do corpo”.
Ou a passagem não se daria somente depois da morte? A lenda “O brasão da
cidade” [Das Stadtwappen] termina com as frases “Tudo o que nela surgiu de
lendas e canções está repleto de nostalgia pelo dia profetizado em que a ci-
dade será destroçada por um punho gigantesco com cinco golpes em rápida
sucessão. Por isso a cidade também tem um punho no seu brasão”.34 As sagas e
as canções que anunciam a destruição da construção são elas exatas? E qual a
perspectiva que nos é oferecida? “Neste lugar”, diz Kafka em certa ocasião “eu
nunca estive: respira-se de modo diferente e muito mais resplandecente que o
sol, brilha ao seu lado uma estrela.” Encerramos aqui com esta aspiração não
confirmada do lugar da liberdade.
1 Calicó, tecido de algodão grosso originário da Índia muito utilizado na construção de ce
nários de filmagem.
2 Floresta na parte sudoeste de Berlim. 303
Encontramo-nos na cidade-estúdio da UFA em Neubabelsberg.3 É formada
por uma superfície de 350.000 m², um mundo de papier mâché. Tudo é segu-
ramente antinatural e tudo exatamente como a natureza.
5 Filme de 1925, dirigido por Carl Mayer com base em Theodor Storm, repleto da atmosfera
de uma saga medieval maligna. 305
eventos desportivos sensacionais, importa-se o bosque vienense para o filme
Walzertraum [Sonho de valsa]6 para depois cortá-lo. Outras coisas transfor-
mam-se bizarramente. Em uma velha viela, são introduzidos vestígios de ca-
sas modernas, ninguém se choca com o anacronismo. Os interesses políticos
não acompanham as transformações sociais por mais violentas que sejam. Um
posto de vigília bolchevique transforma-se em uma pacífica estação de trem
sueca, que é posteriormente transformada num picadeiro e que hoje é utilizado
para armazenar lâmpadas. Não se pode prever o fim. As leis das metamorfoses
são impenetráveis. O que acontece com os objetos: depois de adquirir o brilho
do gesso, são jogados fora.
Este regime arbitrário não se limita ao mundo que existe. Este é uma das mui-
tas possibilidades, que podem ser deslocadas em todos os sentidos, e o jogo
permaneceria imperfeito se fosse usado como um produto acabado. Por isso
os objetos são alongados e encurtados, os objetos criados são espalhados no
meio das coisas existentes, as aparições maravilhosas se realizam sem hesitação.
Os atos tradicionais da magia tornaram-se um tímido prelúdio da trucagem.
Esta procede sumariamente como a natureza, o cosmos é para a trucagem
uma bolinha de bilboquê.
Perfeitamente, os objetos projetados na tela adquirem um aspecto cotidiano,
como se estivessem na rua. No entanto, sua aparição se acompanha de circuns-
tâncias monstruosas. Os postes de luz, cuja existência de cimento e metal, pa-
recem palpáveis, são feitos de madeira e quebrados no meio; para o enquadra-
mento da imagem, o fragmento é suficiente. Um respeitável arranha-céu está
longe de se prolongar de maneira tão vertiginosa como quando aparece em
cena. Apenas a parte inferior é construída, a superior é obtida a partir de uma
pequena maquete projetada por meio de um mecanismo de espelhos. Deste
modo, os colossos são refutados; seus pés são de argila, as partes superiores não
são mais do que aparência da aparência sem substância da qual são armados.
6 Filme de Ludwig Berger de 1925, baseado na opereta de Oskar Strauss que satiziriza a vida
cortesã em Viena, um dos poucos filmes alemães a obter sucesso no exterior, sobretudo nos
306 Estados Unidos.
As forças de evocação da trucagem se desenvolveram principalmente no
domínio do sobrenatural. O filme de dimensões incomuns, a ser lançado, Faust
[Fausto], dirigido por W. Murnau, utiliza largamente este procedimento. Num
átrio, que anteriormente foi utilizado por corsários para expor seus planos de
pirataria, o globo terrestre expande-se en miniature. Fausto atravessará o éter
de um cenário a outro. Uma pista de madeira lisa que desliza duma extremi-
dade a outra descreve seu percurso aéreo. O aparelho desliza sobre este tobogã
e, graças a sua condução minuciosa, projeta as vistas da viagem. Neblinas de
vapor d’água, produzidas por um locomóvil, envolvem os cumes de gigantes-
cas montanhas, habilmente modeladas, donde emerge Fausto. A maré ter-
rível de espuma das ondas é alimentada por uma garganta lateral que jorra
água. A pulsão selvagem diminui, sob o vento das hélices, espalhando cereais,
recobrindo pradarias e os campos, aos pés de vértices abruptos cobertos de
pinheiros. Nuvens e mais nuvens se sucedem em direção ao leste, uma massa
de vidro é posta compactamente em fileiras. Na aterrizagem do Fausto, as
cabanas rodeadas de verde vão provavelmente cintilar no vermelho do cre-
púsculo em meio a mil velas. No estúdio da UFA em Tempelhof,7 onde Karl
Grune dirige Die Brüder Schellenberg [Os irmãos Schellenberg], tudo é tam-
bém fáustico. Aqui os cavaleiros do apocalipse deslizam ao redor do estúdio de
vidro em cavalos suspensos por fios de arame à meia altura do teto. Embaixo,
a ameaça de um gigantesco par de asas negras na qual Jannings,8 o grande
diabo, projeta uma sombra sobre a cidade; o par de asas brancas é usado pelo
arcanjo São Miguel.
7 Tempelhof, área industrial ao sul de Berlim e local do primeiro aeroporto (1923), tornou-se
uma das “cinema cities” a partir de 1913.
8 Emil Jannings como Mephisto em Faust: Eine deutsche Volkssage (1926) de Friedrich Murnau. 307
Mesmo assim, os restos dos elementos naturais são estocados como su-
plementos. Uma fauna do além-mar, um produto à parte das expedições ci-
nematográficas, prospera juntamente aos representantes do mundo animal
autóctone, numa extremidade retirada nos limites do setor. Uma parte destas
presas capturadas no Brasil foi transferida para o jardim zoológico, onde pode
ficar à mercê de si mesmo e enriquecer a ciência. A parte conservada funciona
como uma tropa especializada que viaja com seu empresário. Cada espécie de
animal possui o seu número no programa. Os faisões dourados e prateados vão
poder ilustrar o luxo dos milionários americanos num parque ornamental, a
garça de cabeça negra, pela sua raridade, provoca arrepios pelo seu exotismo,
gatos em grandes tomadas de cena vagam pelo salão. As pombas do filme As-
chenbrödel [Cinderela],9 de Berger, continuam ainda a voar. Entre as vedetes, o
javali selvagem que estrelará num filme de caça juntamente com um bando de
crocodilos vivos. Eles desempenham um importante papel no filme de Lothar
Mendes, Die drei Kuckucksuhren [Os três relógios cucos]. O jovem crocodilo é
uma atração especial que se pode carregar na mão; mas os adultos não são tão
perigosos como suas réplicas sem vida, as quais fazem medo aos macacos. As
estufas completam a coleção; sua vegetação serve de pano de fundo adequado
às cenas de ciúme nos trópicos.
Os habitantes do parque natural protegido são tratados com amor pelo
zoólogo da expedição. Chama-os pelo nome, cuida deles e desenvolve suas
capacidades artísticas. Apesar da imperfeição própria destas criaturas natu-
rais, são os objetos mais mimados da empresa. O fato de que saltam e voam,
sem serem colocados em movimento por um mecanismo, provoca encantos;
que se reproduzem sem haver necessidade de uma trucagem visível, parece
maravilhoso. Não se poderia supor que estas figuras primitivas são quase que
ilusões cinematográficas.
310
As pequenas balconistas vão ao cinema
314 3 Don Q., Son of Zorro [Don Q., filho de Zorro], de Donald Crisp, 1925.
mou de suspeita a lírica burguesa e receitou o esporte em seu lugar.4 O esporte
como fenômeno não-burguês – o biógrafo de Samson-Körner não deve ser in-
vejado por esta descoberta).5 Abstraindo-se de tais exceções, que se esquivam
conscientemente de parte dos condicionamentos, a maioria das obras teatrais
medíocres é, em geral, a resposta exata ao modo de sentir do público de teatro.
Este é condicionado à sociedade existente tanto quanto os filmes, dos quais se
diferencia apenas através do tédio maior.
Para pesquisar a sociedade atual, seria necessário ouvir aquilo que revelam
os produtos da grande indústria cinematográfica. Todos eles revelam um se-
gredo rude sem que na realidade o queiram. Na sequência infinita de filmes um
número limitado de temas típicos retorna sempre e eles revelam como a pró-
pria sociedade deseja ver a si mesma. A quintessência destes temas de filmes é,
ao mesmo tempo, a soma das ideologias da sociedade, despidas de seus encan-
tos através da interpretação dos motivos. A série “Die kleinen Ladenmädchen
gehen ins Kino” [As pequenas balconistas vão ao cinema] foi concebida como
um pequeno álbum de exemplos, no qual casos típicos estão sujeitos à casuís
tica moralista.
Caminho livre
4 Como um dos juízes de um concurso de poesia organizado pelo jornal Literarische Welt, em
1924, Brecht deu o seu voto ao poema de autoria do ciclista Hannes Küpper, que nem mesmo
participava da competição. Ver Brecht, “Kurzer Bericht über 400 junge Lyriker” [Relato su-
cinto sobre quatrocentos líricos jovens] (1927), republicado em Brecht, Gesammelte Werke
in acht Bänden [Obras reunidas em oito volumes], volume 8, Frankfurt: Suhrkamp Verlag,
1967, pp. 54-56.
5 Paul Samson-Körner, pugilista da categoria dos pesos médios, amigo de Bertolt Brecht. Este
tinha a intenção de escrever uma biografia sobre Samson-Körner, mas no final somente
publicou um fragmento em 1926 no Scherls Magazine. Ver “Der Lebenslauf des Boxers
Samson-Körner” [O percurso do boxeador Samson-Körner], em Brecht, Gesammelte Werke,
volume 2, Frankfurt: Suhrkamp Verlag, 1967, pp. 121-44. 315
e jovens delinquentes, semelhante àqueles dos desenhos de Zille.6 Ele foi jul-
gado inocente. Em vão o infeliz busca um trabalho decente; somente uma
prostituta se compadece dele. Mas, um dia, no jardim zoológico, o ex-detento
salva uma senhora em uma carruagem, cujos cavalos dispararam. Ela é irmã
do proprietário de uma fábrica que, em agradecimento, emprega-o em sua
empresa. Agora o caminho está livre para o homem diligente. Os seus esforços
são reconhecidos e a sua inocência é considerada comprovada. No momento
oportuno a prostituta morre de tuberculose, e o protagonista, agora em traje
a rigor, fica noivo da moça que salvara. Uma situação típica na tela do cinema,
que atesta a mentalidade social do mundo de hoje. Filmando em estúdio com
fidelidade naturalista os interiores de casas dos fundos, o cinema descreve as
condições empobrecidas que dão origem a transgressões, que não são os cri-
mes sociais reais. Ele se move imparcial entre as camadas sociais menos favo-
recidas, que oferecem motivos atraentes para um filme. Os motivos são clara-
mente selecionados. Toda e qualquer menção às diferenças de classe é evitada,
pois a sociedade está excessivamente convencida do seu status de primeira
classe, para desejar tomar consciência das reais condições. Evitada é também
qualquer menção à classe operária, que por meios políticos tenta escapar da
miséria que os diretores apresentam de modo tão comovente. Nos filmes ba-
seados em situações da vida real, os trabalhadores são artesãos patriarcais
respeitáveis e genuínos funcionários subalternos da ferrovia; ou, caso devam
aparecer como insatisfeitos, sofreram então uma tragédia pessoal, de tal modo
que o infortúnio público possa ser esquecido muito mais rapidamente. Como
tema de comoção prefere-se o Lumpenproletariat, a gentalha politicamente
privada de qualquer apoio, que contém em si elementos dúbios que parecem
merecer o seu destino. A sociedade reveste de romantismo lugares de miséria
para perpetuá-los, e satisfaz com isso o seu sentimento de compaixão, pois
neste caso não custa um único centavo. Sim, a sociedade é muito piedosa e,
para tranquilizar a sua consciência, deseja privar-se do excesso de sentimento –
com a condição de que possa permanecer como é. Por compaixão, ela estende
6 Heinrich Zille (1858-1929), caricaturista e desenhista, cuja obra é marcada por uma nota
316 constante de sátira social.
a mão ora a um, ora a outro náufrago e o salva puxando-o até o seu nível, que
realmente considera ser a única altura. Isso é que lhe dá o suporte moral, mas
mantém, ao mesmo tempo, a classe inferior como inferior, e a sociedade como
sociedade. Ao contrário: a salvação de alguns indivíduos é uma via conve-
niente para coibir o salvamento de toda a classe; um proletário que foi promo-
vido a frequentar os salões da boa sociedade garante a perpetuação de tantas
tavernas. A irmã do proprietário da fábrica frequentará mais tarde a sua velha
taverna, com seu marido salvo da miséria, e talvez ambos salvem novamente
uma pessoa. Não é necessário temer que os proletários se extingam em razão
disso. As pequenas balconistas adquirem conhecimentos nunca suspeitados
sobre a miséria humana e a bondade que vem do alto.
Sexo e caráter 7
Uma jovem e bonita garota pôs na própria cabeça a ideia de conquistar o cora-
ção de seu primo, possuidor de uma propriedade adjacente.8 Ela passa a trajar
calças compridas, se deixa empregar como seu camareiro pessoal e, a partir
daí, ela aparece como uma figura ambígua nas situações mais inequívocas. Na
ambiguidade há muitas nuances. Para descobrir a verdadeira identidade do
rapaz, o patrão entra no quarto dos criados. A garota semivestida – por cima
o uniforme dos empregados, por baixo calças rendadas – se esconde sob a co-
berta e o patrão escrupuloso agarra-a pelos pés e, devagar e sistematicamente,
começa a puxá-la para fora da cama. Tudo por amor. Ao final, noivado. O
dono da propriedade rural é rico. Antes que os ombros do camareiro lhe pa-
recessem suspeitos, ele manteve uma relação com uma garota, que surgira em
um bar dançante. Estes locais, em número e importância, não ficam atrás das
igrejas nos séculos anteriores. Não há um filme sem um local dançante, como
Nação armada
10 Volk in Not: Ein Heldenlied von Tannenberg [Povo em necessidade: um canto heróico de
Tannenberg], Wolfgang Neff, 1925.
11 Fridericus-Rex, filme de propaganda monarquista: Parte I: Sturm und Drang [Tempestade
e ímpeto]; Parte II: Vater und Sohn [Pai e filho], Arzen von Csepéry, 1920-22. 319
qual ele pode se entusiasmar muito mais do que em relação aos seus chefes
reais que, em contrapartida, lucram com esse entusiasmo. Quando o bom
Sombart chamou os alemães de “heróis” e os ingleses de “comerciantes” em
um panfleto de guerra, enganou-se de modo tão profundo quanto somente um
professor consegue fazê-lo.12 Os heróis cinematográficos de todos os países se
unem ao chefe da propaganda comercial de suas nações. Só com muito custo
as pequenas balconistas resistem ao fascínio dos desfiles e dos uniformes.
O coração de ouro
15 Wien-Berlin: Ein Liebesspiel zwischen Spree und Donau [Viena-Berlim: um jogo amoroso
entre Spree e Donau]. Hans Steinhoff, 1926. 321
sem close-ups, o desenrolar dos acontecimentos seria crédulo. Seja na cidade
dos sonhos ao ritmo de valsas ou nas belas praias do Neckar – em qualquer
lugar, contanto que não seja no presente, os ricos se apaixonam e descobrem
durante o processo que têm coração. Não é verdade que eles não possuem co-
ração; os filmes refutam aquilo que a vida nos quer fazer crer. Fora da empresa
– que certamente não seria o lugar correto para o coração – seus corações estão
sempre no lugar errado. Eles transbordam sentimentos em situações nas quais
isto pouco importa, e frequentemente são incapazes de fazê-lo como gosta-
riam, pois gastam os seus sentimentos em questões privadas de maneira tão
antieconômica, que as suas reservas desaparecem continuamente. É necessário
ter visto a delicadeza e gentileza do jovem berlinense nas suas relações com
a garota vienense sob a torre de Santo Stefano, para entender de uma vez por
todas que o seu comportamento agressivo no telefone não indica uma falta de
sentimentos. A câmera cinematográfica revela isto. O que ele realmente ama
são as operetas, e o que ele realmente cobiça é um canto idílico no qual, sem
ser perturbado, possa abrir o seu coração que precisa manter oculto em todas
as outras situações. Se não existisse a bela vienense para impedir ao seu co-
ração interferir nos assuntos econômicos, ele também poderia se refugiar na
música de um gramofone. Nestes filmes é possível provar caso a caso que, com
o aumento da prosperidade, o número de parques nacionais de preservação da
natureza para fins sentimentais se multiplica. E assim, as pequenas balconistas
aprendem a entender que o seu chefe brilhante internamente é um homem de
ouro, e aguardam com ansiedade o dia em que elas mesmas possam com o seu
coraçãozinho bobo despertar um jovem berlinense.
A filha de um milionário se faz passar por uma garota pobre, pois deseja ser
amada por aquilo que é como ser humano.17 O seu desejo é realizado por um
16 Harun al Raschid (763-809) foi o califa de Bagdá durante o período em que a maioria das
histórias das Mil e uma noites foi escrita.
322 17 Her Night of Romance [Sua noite de romance], Sidney A. Franklin, 1924.
jovem bem modesto que, na verdade, é um lorde empobrecido. Antes mesmo
que ele se confesse, vem a saber por acaso sobre os milhões que ela possui. Ele
retira o seu pedido de casamento para não se expor a malentendidos. No en-
tanto, mais do que depressa, ambos se entendem e, uma vez que dinheiro atrai
dinheiro, no final, o lorde herda uma fortuna imensa. – Em um outro filme, um
jovem bilionário perambula pelo mundo como um vagabundo porque deseja
ser amado apenas pelo que é e assim por diante.18 Incógnita revelada, excitação
da garota e viagem de núpcias em um iate de luxo. – Tal como nas Mil e uma
noites, o príncipe dos contos de fadas dos dias atuais escolhe a discrição, só que
o esplendor do final deriva dos seus milhões que ofuscam qualquer outro es-
plendor social. Uma fortuna extraordinária pode ser mantida em segredo por
razões úteis. A garota pobre que é rica e o vagabundo, que não é vagabundo:
ao manterem-se incógnitos não têm nenhum outro fim senão aquele de serem
amados pelo que são. Por que eles não jogam fora o seu dinheiro, se desejam
ser amados como seres humanos? Por que não demonstram ser qualquer coisa
que valha a pena amar, fazendo com o seu dinheiro alguma coisa mais decente?
Mas eles nem jogam fora o seu dinheiro, nem fazem alguma coisa decente com
ele. Simular uma pobreza tem muito mais o sentido de colocar claramente em
evidência a felicidade de possuir um patrimônio, e o desejo de ser amado de
modo desinteressado é um sentimentalismo que serve para obscurecer a falta
do verdadeiro amor. Pois o verdadeiro amor tem interesse, está interessado
no fato de que o seu objeto seja merecedor de algo. Para a filha do milionário
poderia ser incômodo o fato de que um enamorado a desejasse por interesse
real. Assim encobre os milhões a ela atribuídos e procura para si nos preços
muito baixos do mercado livre um marido cujo desinteresse está no fato de
que ele se encontra com uma garota sem milhões, que não é nada sem estes
milhões. Mas, dizem os moralistas dentre os ricos, aquilo que aqui importa
é a garota, não a fortuna. Segundo a conclusão destes filmes, o ser humano é
uma garota que dança bem charleston, e um jovem, que do mesmo modo
compreende muito pouco. O amor entre duas pessoas – quer dizer, entre duas
bagatelas privadas – não é por isso supérfluo, mas serve para justificar a posse
Tragédias silenciosas
324 19 Das alte Ballhaus [O antigo salão de baile], Wolfgang Neff, 1925.
morte que lembra um drama trágico de cinco atos. Os trustes que financiam
a indústria cinematográfica sabem (ou não sabem) porque vendem tais casos
mórbidos. A morte que confirma o poder das instituições dominantes coíbe
a morte durante um combate contra essas instituições. Para que este último
não ocorra, glorifica-se o primeiro. Mas os produtores de filmes glorificam-no
na medida em que eles passam por tragédia, o que na realidade é uma falta
de conhecimento ou, no melhor dos casos, um infortúnio. A magnanimidade
que a bailarina quer provar através de sua morte voluntária é um desperdício
de sentimento, mas que é cultivado pelas camadas superiores, pois diminui a
força do sentimento de injustiça. Há muitas pessoas que se sacrificam nobre-
mente porque são muito preguiçosas para se rebelarem. Deste modo, muitas
lágrimas são derramadas porque chorar às vezes é mais fácil que refletir. As
tragédias dos dias atuais são os acontecimentos privados com um início ruim,
que a sociedade enfeitou metafisicamente para preservar o status quo. Quanto
mais forte é a posição de poder da sociedade, mais tragicamente vão se portar
a fraqueza e a estupidez, e certamente todo novo acordo da indústria pesada
internacional elevará o número das dançarinas suicidas. O público está tão to-
cado pelos sintomas de envenenamento – pelos quais estas dançarinas tomam
suas vidas – que não pensa mais em neutralizar o veneno. Assim somente o
esforço para desintoxicar a sociedade deste veneno pode ser chamado de trá-
gico. Furtivamente, as pequenas balconistas limpam os seus olhos e, às pressas,
passam pó-de-arroz em seus narizes antes que a sala se ilumine.
Quase no limite
20 Das Mädchen mit der Protektion [A moça sob proteção], Max Mack, 1925. 325
geral transforma-a em uma estrela de revista e arranja um emprego para o ra-
paz. Ele seria um péssimo homem de negócios se não quisesse ter o seu lucro
com isso. A garota, no entanto, se recusa a ceder a ele, pega o seu admirador
e dá as costas ao protecionismo imundo. (O autor do filme é um escritor.)
Um mero desmascaramento das práticas sociais? O produtor do filme mere-
ceu ir à falência, pois nada tem um efeito mais desmoralizante para o público
que a revelação de atividades imorais, oficialmente sancionadas enquanto são
exercidas em segredo. O perigo é contornado no último minuto, quando o
diretor geral lamenta suas ações, corre atrás do parzinho inocente que, graças
ao pedido de desculpas, se deixa reconduzir por ele de volta. Para lustrar um
pouco a questão protecionista é necessário que também haja diretores gerais
como este. (O autor é um escritor.) – Muito mais drástico é o caso a seguir. O
rei de um país miserável do Sul levou para casa uma amante de Paris, que um
milionário americano queria possuir entre os seus bens.21 Para conquistá-la,
o milionário compra a massa popular insatisfeita e suborna o general do rei.
Rapidamente se encena um levante patriótico. As metralhadoras começam a
disparar e, nas ruas e praças, formam-se grupos de cadáveres pictoricamente
distribuídos. O general pode comunicar ao milionário que, com a captura do
rei, a garota está novamente livre e permanece diante do seu financiador com
a postura servil de um camareiro particular. É assim, portanto, que golpes de
Estado e banhos de sangue seriam organizados a pedido do grande capital?
O filme é insano. Ele mostra os acontecimentos como efetivamente ocorrem,
ao invés de conservar neles aquela dignidade que os torna possíveis. Graças
a Deus o filme recobra novamente o sorriso nas faces coradas. O americano
é, na verdade, um homem bom, digno de possuir os seus milhões. Depois de
ficar sabendo que a parisiense é fiel ao seu amado, livra o ex-rei da prisão e
envia o par feliz para uma viagem de lua-de-mel. O amor é mais forte que o
dinheiro, quando este deve angariar simpatias. As pequenas balconistas se
amedrontaram. Agora podem suspirar aliviadas.
326 21 Eine Dubarry von heute [Uma Dubarry de hoje em dia], Alexandre Korda, 1926.
Cinema, 1928
1 Alfred Hugenberg (1865-1951), político conservador e diretor das indústrias Krupp, inimigo
mortal da república de Weimar e posteriormente ministro das finanças do nazismo, assume o
controle da UFA em 1927. Desempenhou um papel crucial na consolidação do nazi-fascismo
328 com seu monopólio de jornais e da produção de filmes.
se posicionar em qualquer esquina, a câmera permanece no estúdio correndo
para tempos e espaços distantes que são completamente irrelevantes para nós.
Não é necessário ser o Lutero dos livros de escola, Otto Gebühr ou a juven-
tude da Rainha Luise,2 não é necessário que corresponda de modo algum aos
heróis da história, desviando a atenção do heroísmo mais essencial de pes-
soas sem nome – o passado mais recente já está tão distante de nós que pode
ser trazido de novo para perto. Matérias perdidas das comédias musicais de
passado recente são decerto adequadas para filmes modernos, desde que seu
humor tenha origem menos no Simplizissimus do que no Fliegenden Blättern.3
Mas se há algo que atrai os roteiristas entre todos os outros é o tema das cortes
feudais já abolidas há tempos. Segundo a opinião das companhias de cinema,
pode se encontrar nestas cortes o que o público republicano anseia por ver:
um círculo ilustre de princesas e barões, galanteria como forma de passar o
tempo, a pompa dos trajes e um assoalho recentemente bem encerado. Estas
peças reaparecem em inúmeros filmes, e se seu sucesso dependesse em nada
mais do que sorrir trajando um uniforme de cavalaria, Harry Liedtke4 já teria
conquistado a multidão há bastante tempo para apoiar o velho regime. É o ho-
mem dos sonhos de Marlitt5 e o herói de muitas operetas. Quanto mais estão
fora de moda as operetas, mais parecem estar adequadas para serem filmadas.
Der Bettelstudent [O estudante miserável], Der Orlow [Orlow], Die Geliebte
seiner Hoheit [Sua Alteza amada]– estes filmes inundam a plateia com seus
2 Kracauer se refere aqui aos filmes de Hans Kyser Luther: Ein Film der deutschen Reformation
[Lutero: um filme da Reforma alemã], de 1927; ao filme de Karl Grune, do mesmo ano, Die
Jugend der Königin Luise [A juventude da Princesa Luise]; ao ator alemão, Otto Gebühr (1877-
1954), que interpretou Frederico II, no seriado de quatro partes Fredericus Rex (1920-22), de
Arzen von Cserépy.
3 Simplicismus, semanário satírico (1896-1944; 1954-67), fundado pelos publicistas Albert Lan-
gen e Thomas T. Heine. Fligenden Blätter (1844-1944), revista ilustrada humorística que se
tornou célebre pelas suas caricaturas (Wilhelm Busch e outros) ironizando o comportamento
da burguesia alemã.
4 O ator alemão, Harry Liedtke (1888-1945), representou o papel de Armand de Foix no filme
de Ernst Lubitsch de 1919, Madame Dubarry.
5 Eugenie Marlitt, pseudônimo de Eugenie John (1825-87), popular escritor alemão, autor de
uma série de narrativas publicadas no semanário Die Gartenlaube. 329
príncipes frívolos, mas adoráveis, seus castelos de fada e seus casais insípidos.
Seus trastes, que parecem ter sido reduzidos a pó depois da revolução, adqui-
rem subitamente vitalidade. A apresentação destes trastes é normalmente uma
boa oportunidade para evocar Viena, uma cidade que os produtores cinema-
tográficos de Berlim têm no coração, pois se mostra como o mais eficaz dos
entorpecentes. A Viena do “K e K” que não conhece absolutamente nada de
7 de outubro.6 A Viena que sonha e é cheia de música, que desconhece qual-
quer carência habitacional, que tem cafés ao estilo Biedermeier, em que Strauss
ainda continua até hoje tocando, e para as garotas – So küsst nur eine fesche
Wienerin [Apenas vá e beije uma elegante vienense].7 Há também frequente-
mente muitos beijos nos filmes de guerra costumeiros como Opfer [A vítima]
e Leichte Kavallerie [A cavalaria ligeira], ambos novas versões aguadas de Ho-
tel Stadt Lemberg, nos quais as ocasionais cenas de trincheira devem exaltar o
desejo por casos de paixão privados.
Mas se o presente é finalmente representado, este desaparece de súbito do
campo visual. “Bem-aventurados os pobres de espírito, pois deles será o reino
do céu” – grande parte dos filmes que se ocupa do nosso tempo procede de
acordo com estas palavras do Sermão da montanha. Dão mais importância à
predestinação do que aos sindicatos; em todo caso escolhem entre trabalha-
dores e empregados, que são descritos como mentalmente desorganizados, al-
guns pobres casos isolados para que possam se tornar bem-aventurados. Eis o
esquema dos filmes à maneira Zille,8 que unem o útil ao agradável, descrevem
de modo horripilante um ambiente proletário e ao mesmo tempo salvam uma
pessoa deste inferno. Os caminhos destes senhores do cinema são misteriosos.
Mesmo as telefonistas, as balconistas do comércio e as secretárias particulares
6 Königlich und Kaiserlich [real e imperial], designação que se refere à dupla monarquia Austro-
Húngara (1867-1918). 7 outubro de 1928 se refere ao evento, quando um amplo e fortemente
armado continente da organização fascista Heimwehr marchou sobre Viena.
7 Filme de Arthur Bergen de 1927.
8 Gênero de filme moralizante, inspirado no caricaturista Heinrich Zille, que foca os proble-
mas sociais contemporâneos como a reintegração de ex-devotas (Die Verrufenende [Os de
má-fama] de Gerhard Lamprecht, 1925) ou o drama de um filho ilegítimo (Die Unehrlichen
330 [Os desonrados], Lamprecht, 1926).
podem ter esperança sem necessitar recorrer a seus sindicatos profissionais,
pois Lotte, uma simples manicure, não foi a única a ter seu dia de sorte9 em
Lotte hat ihr Glück gemacht [Lotte fez sua fortuna], mas outras colegas como
ela também que, quando pequenas, nunca tiveram ninguém para niná-las no
berço. Tem de ser bonita, com certeza. O reino do céu para onde estas pes-
soas escolhidas três vezes seguidas foram transportadas é a sociedade. Esta
sociedade resplandece de modo tão brilhante nos filmes dominantes como o
paraíso nas ilustrações medievais. Seus membros são choferes deles mesmos,
moram em Berlim, Paris ou na Riviera, vestem quase sempre trajes esportivos
ou opulentas toaletes noturnas e se encontram apenas em caso de necessidade
quando têm atrás de si um rico casamento. Dia após dia estão melhores e me-
lhores, e à noite vão a um bar dançar, sentam-se ao redor de uma mesa de jogo
ou até cometem adultério; isto é, chegam até mesmo a desnudar-se por pura
frivolidade, e eis que algo se sucede, desta vez por causa da moral, que deve ser
respeitada, pois senão a crença na sociedade começaria a titubear. Os filmes
cuidam do caráter inabalável da sociedade simplesmente para demonstrar que
a canção da última revista é a música que pertence a esta esfera. Certamente,
Lotte, que se casou nesta sociedade, teve seu dia de sorte.
Nem todos os filmes professam esta teologia. Há aqueles filmes mais escla-
recidos que gostariam de corresponder ao gosto de um público mais intelec-
tualizado. Estes filmes começam de modo mais ou menos radical, mas uma
radicalidade que fica no meio do caminho, e sempre se colocam contra apenas
aquelas figuras já depostas de ontem. Déspotas do passado são combatidos, as-
sim são os pré-capitalistas de Der Weber [O tecelão]. Um dos alvos preferidos
dos escárnios são os súditos do imperador (por exemplo, em Biberpelz [Pele de
castor]), cujos lugares hoje são ocupados pelos lacaios do poder monetário que
permanecem sem ser molestados. Ou se ri (como no filme Sechs Mädchen suchen
ein Nachtquartier [Seis moças procuram um quarto para dormir]) do atraso da
província com uma arrogância típica da capital imperial, que é ela própria pro-
10 Der Falsche Prinz: Eine Zeitkomödie in sieben Akten [O falso príncipe: uma comédia em sete
atos], Hanz Paul, 1927. Ver também o artigo de Kracauer de 1927, “Prinz Domela”, republi-
cado em Schriften 5-2, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1990, pp. 75-77.
11 Associação fraternal alemã, fundada em 1820 em Heidelberg, composta de estudantes de
origem aristocrática, assumiu um posicionamento antifascista que provocou sua proibição
em 1935 pelos nazistas.
12 Fundada em 1928 em resposta à mediocridade do filme comercial, buscando alternativas
para o chamado cinema sério. Uma de suas primeiras projeções foi uma re-edição de cine-
jornais, logo proibida pela censura. Ver o artigo de Kracauer, “Volksverband für Filmkunst”
[Liga popular para a arte cinematográfica] de 1928, in Schriften 6-2: Frankfurt am Main:
332 Suhrkamp, 2004, pp. 71-73.
em manter afastada de si nossa cultura, preferindo vagar pelo estranho: pelas
tribos africanas, pelos costumes e rituais dos esquimós, pelas cobras, besouros
e palmeiras. O fato de que alguns deles são bem-feitos é menos desnorteante do
que o fato de que, como se partindo de alguns preparativos prioritários, quase
todos eles se evadem do que seria o mais urgente em relação ao humano, ar-
rastando o exótico para o cotidiano em vez de investigar o exótico no dia-a-dia.
Além disso, a maioria é malfeita, um conjunto de produções sem importância
que, sem ter sido questionado se deveria agir assim, dá uma instrução de tipo
escolar que poderia ser melhor provida em qualquer enciclopédia. Da criação
de cavalos à tecelagem de tapetes, nenhum objeto está protegido das garras da
pedagogia popular dos filmes culturais. Os piores são aqueles que se insinuam
por meio de títulos poéticos inflacionados de adjetivos. A pseudopoesia celebra
o seu triunfo definitivo no filme cultural da UFA Natur und Liebe [Natureza e
amor], que não se limitando a palavras, exagera o seu potencial poético com
visões da criação e do progresso da humanidade. Não se satisfazendo em expli-
car a vida sexual, a UFA insiste em sonhar e pressagiar como uma sibila.
Entretanto, pode-se fazer a seguinte observação: boa parte da produção me-
diana consiste consciente ou inconsciente em manobras de evasão [Umgehungs-
manöver]. Parte se distancia simplesmente da nossa realidade arbitrariamente
para lugares longínquos, parte se orienta por ideologias do interesse da socie-
dade estabelecida, obstruindo a visão dos principais grupos dos espectadores
de cinema, sobretudo o dos pequenos empregados. Estas ideologias projetadas
nas telas do cinema são bem mais empoeiradas, fora de moda, do que aquelas
ideologias correntes, em três dimensões, em circulação no resto da Alemanha.
Nem uma simples balconista nem um próspero empresário podem lhes prestar
fé. Já seria o tempo, pelo menos, da UFA ter aprendido algo com a existência da
AFA.13 Mas justamente esta ignorância é característica da insuficiência geral dos
produtores cinematográficos em relação à realidade – insuficiência abrangente
Não faltam filmes que se afirmam a si mesmos como acima da média. Colocam
conscientemente exigências artísticas e são frequentemente produzidos com
grandes orçamentos. Quando uma grande soma de dinheiro foi nele investida
e o seu retorno foi ainda maior, estes são chamados então de grandes filmes.
A maioria destas criações de elite é tão irremediavelmente engessada como
a produção cinematográfica geral da qual faz parte. Pode ser subordinada à
categoria de filmes de ficção de nível elevado. A deficiência fundamental que
têm em comum com os outros filmes de ficção é que não captam a realidade;
uma falha que é duplamente desconcertante nestes filmes de alto nível, pois
estão duplamente comprometidos com a realidade. Distinguem-se da média
dos filmes por numerosos delitos que provêm do fato de certos conteúdos es-
senciais aparecem neste nível mais elevado, precavendo-se de novos objetos
contra os quais se pode agora transgredir.
337
Em geral os produtores de filme acham que satisfazem as necessidades ar-
tísticas simplesmente elevando ao máximo o nível do romance de Kolportage.
Como se o Kolportage precisasse ser salvo como uma garota que caiu ao chão!
Mas é justamente esta a opinião das companhias de cinema quando empreen
dem tais tentativas de aprimoramento, tentativas que, como é frequente, ape-
nas reduzem o valor do objeto supostamente aprimorado. O Kolportage é a
projeção de grandes objetos ao nível da trivialidade. A contraposição entre
bem e mal, o maravilhoso, a reconciliação – muitos temas significativos sem-
pre representados de modo desfigurado pelo Kolportage. Isto é o que justifica
o filme sensacional de Harry Peil,15 que possui alguns momentos excelente-
mente realizados, além disso não há nenhuma objeção a fazer contra boas
peças de vigarista como Casanovas Erbe [O herdeiro de Casanova]. Infeliz-
mente todos eles constituem uma raridade. No ímpeto de atingir níveis cada
vez mais elevados exagera-se na fábula deste tipo, ao ponto de torná-los filmes
pomposos que não suportam seus próprios limites enquanto gênero. O que
dá origem a criações elaboradas e terrificantes como o filme de Lang, Spione
[Espiões], ou Die Jacht der sieben Sünden [O iate dos sete pecados]. O que há
de sensacional nestes filmes é que não são construídos de modo apressado,
mas por meio de um refinamento inaceitável; tolos embasamentos psicológi-
cos insinuam-se entre os eventos que são justapostos sem atrito, um ao lado
do outro, e a ilusão da improvisação é reduzida à mera decoração, o que já
seria excessivamente pomposo e longo para uma ópera de gala. É caracterís-
tico dos produtores cinematográficos a falta de intuição na sua pretensão de
transformar em mercadoria de qualidade o material temático do Kolportage,
que é estranho por sua própria natureza a este tipo de exigência de qualidade.
Coisas que podem respirar na forma de um livro de brochura são sufocadas
quando editadas em capa de cetim. (Isto é literalmente verdade; na ocasião
da première um crítico trazia à mão uma obra que era um milagre da arte de
encadernação, mas que não continha mais do que o romance de Thea von
15 Harry Piel (1892-1963), ator, diretor e produtor, introduziu em meados dos anos 1920 um
338 gênero novo, conhecido por Sensationsfilm, para concorrer com os thrillers americanos.
Harbou.)16 O mesmo tipo de acordo de alta classe é imposto de modo vergo-
nhoso a materiais que nem mesmo são Kolportage, mas textos que original-
mente são mais do que Kolportage, e que são reduzidos a nada, com a intenção
de torná-los aceitáveis para o cinema (veja, por exemplo, o filme Die Liebe
der Jeanne Ney [O amor de Jeanne Ney]).
Já que a tragédia possui seu lar nas altas regiões da arte, o número de fil-
mes com final triste aumenta; os produtores de cinema acreditam piamente
que deste modo aproximam-se do trágico, quando se recusam ao costumeiro
happy end. De acordo com o jargão deles, o que é trágico? Uma desgraça qual-
quer. Ocupam-se disto e fazem negócio com arte. No filme de Henny Porten,
Zuflucht [Abrigo], há um rapaz que abandonou sua família durante a época da
revolução, até que finalmente retorna ao seu lar de origem apenas para morrer,
justamente no momento em que tudo parecia correr bem. Não há razão para
sua morte, depois de até mesmo sua pobre noiva ter sido aceita com clemência
pela família. Mas os produtores de cinema são irredutíveis: o público anseia
por arte e o personagem deve morrer. Já que se pode interpretar o Malheur
como uma espécie de punição para a convicção revolucionária do jovem, dois
coelhos são mortos com um só tiro. – Para atingir um nível mais elevado, os
produtores aproveitam até mesmo obras, cujo conteúdo está tão atado à língua,
que não permitem ser filmadas. Recentemente, um filme, Heimkehr [Regresso],
foi realizado a partir de uma novela de Leonhard Frank,17 em que na cena
principal os limites de seu meio expressivo se rompem. Um homem retorna
da guerra e recebe abrigo na casa da jovem esposa de seu amigo. Eles desejam
um ao outro, o amigo permanece ainda ausente. Mostra-se literalmente como
a mulher gira em seu leito e como em seu lugar, apenas separado por uma
parede, o homem está tão atormentado como ela. Ambos, por excitação, não
conseguem dormir. Nada acontece. O que, entretanto, acontece na linguagem
16 Thea von Harbou (1888-1954), autora e diretora de filmes, escreveu roteiros para Joe May,
F. W. Murnau, C. T. Dreyer e sobretudo Fritz Lang (Der mude Tod [A morte cansada], Dr.
Marbuse der Spieler [Dr. Mabuse, o jogador], Metropolis, Spione [Espiões]). Foi casada com
Lang até 1933, quando este a abandona em função de sua simpatia pelos nazistas.
17 Filme dirigido por Joe May de 1928, com roteiro de Fred Majo e dr. Fritz Wendhausen,
baseado no romance Karl und Anna [Karl e Anna], de L. Frank. 339
silenciosa do filme é de um despudor sem igual. Somente as palavras podem
evocar cenas do tipo, pois podem expressar o que não é transmitido pela ter-
rível corporeidade da imagem. – Muitos filmes de padrão elevado sucumbem
nas artes e ofício. São preenchidos com belas decorações que não preenchem
o filme, mas dissimulam o que é não-fílmico. Em Doña Juana, de Czinner,
ouve-se o barulho das famosas fontes de Granada, tendo suas montanhas ao
fundo, e a heroína toma o caminho no qual Don Quixote possa seguí-la. Em
torno dela toda uma natureza e salões artísticos são construídos, sem que em
nenhuma cena o drapeado não seja mais que drapeado.
Raramente experimentos artísticos têm levado o cinema a explorar novos
territórios. Sobretudo o cinema abstrato, muito cultivado em Paris, é uma
linhagem à margem que aqui não entra em questão. Como única tentativa
importante, afastando-se da produção vulgar, é de mencionar o interessante
filme-sinfonia Berlin, de Ruttmann. Uma obra sem ação propriamente que
permite que a metrópole surja como resultado duma sequência de caminhos
microscópicos individuais. Comunica a realidade de Berlim? É cego para a rea
lidade como todo filme de ficção. A causa disto é política. Em vez de penetrar
neste imenso objeto para obter uma compreensão autêntica de sua estrutura
social, econômica e política, em vez de observá-lo de modo humanamente
interessado ou mesmo de atracá-lo de um ponto de vista privilegiado para
participar dele com decisão, Ruttmann libera milhões de detalhes desconec-
tados que coexistem um ao lado do outro, inserindo no máximo transições
engenhosas que são vazias de conteúdo. Em todo caso, o filme tem por base
a ideia que Berlim seja a cidade da velocidade e do trabalho – uma ideia for-
mal, que, antes de tudo, não leva a nenhum conteúdo e talvez por isto intoxica
o pequeno-burguês alemão tanto na sociedade como na literatura. Não há
nada para ser visto nesta sinfonia, porque não mostra nem uma única cone-
xão dotada de sentido. Pudovkin em seu livro, Filmregie und Filmmanuskript
[Direção de cinema e originais de cinema], faz uma repreensão sobre a falta
de ordenação interna: “Há […] uma série de gente de cinema”, assim observa
com clara estocada contra Ruttmann, “que afirma que a montagem deve ser o
único centro organizador no filme. Acreditam que se pode tomar de qualquer
340 modo, e arbitrariamente em qualquer lugar, fragmentos, bastando apenas que
as imagens montadas sejam interessantes; e que por meio da colagem delas
juntas, segundo a forma e a espécie, pode-se produzir um filme”.
Nos seus detalhes essenciais, os filmes de arte não são melhores do que a média
das mercadorias. Nem são politicamente mais imparciais, nem chegam sequer
um milímetro mais próximo da realidade. Não transmitem nada da esfera que
pretendem abarcar. São sem conteúdo. A falta de substância é a característica
decisiva do conjunto da produção cinematográfica estabelecida.
A miséria é tão completa, que as forças de oposição são por ela mesma ab-
sorvidas. Há uma série de excelentes diretores como Lang, Grune, Murnau,
Reichmann, Boese entre outros – mas de que servem suas ideias que lhes fogem
entre os dedos da mão, se estas são dissipadas no material? O talento é des-
perdiçado e até mesmo enfraquecido pelo mau uso. Mesmo o uso de grandes
atores é em vão. Não importa quantas estrelas haja no céu que não vencem a es-
curidão egípcia desta produção. Ao contrário, esta pode apagá-las para sempre.
Wegener é em Alraune [Mandrágora]18 uma rançosa máscara demoníaca.
O declínio é tão evidente que não pode permanecer oculto. Na esfera pú-
blica alemã, só recentemente começaram a aparecer os primeiros indícios de
crítica. No entanto, a crítica em geral tende a censurar apenas certos filmes
individualmente e a indicar sintomas como a mentalidade de lucro e o sistema
do estrelato. Alguns críticos corajosos chegaram a dar um passo além e men-
cionaram, pelo menos, a relação, referida claramente acima, entre os interesses
da indústria cinematográfica e a ideologia de seus filmes. Não foi feita ainda
uma análise da situação atual na sua totalidade. Os produtores propriamente
tentam justificar seus atos, de modo pouco convincente, referindo-se ao gosto
de um público internacional.
Todos estes fundamentos e argumentos são simplesmente insuficientes; não
esclarecem de modo algum, categoricamente, o monstruoso fato de que nossa
produção supera, se isto for possível, a produção americana em matéria de falta
de substância. Isso se o vazio de nossos filmes e a maneira como estrangulam
18 Filme de Henrik Galeen de 1927, o mencionado ator Paul Wegener (1874-1948) representa o
papel de um professor. 341
toda tendência humana não é o resultado de um desaparecimento da substân-
cia, já que pode ser apenas resultado de teimosia; uma teimosia curiosa que
tem dominado na Alemanha desde o final da inflação e que tem determinado
também muitas expressões públicas. É como se durante o período de suble-
vação social e racionalização dos serviços, a vida alemã tivesse se paralisado
sensivelmente. Pode-se falar até mesmo de enfermidade. A posição da produ-
ção cinematográfica – como foi observado no início – é decerto um sinal da
condição geral de um não-espírito estabelecido. Numa metrópole provinciana,
Thérese Raquin teve que ser retirado de cartaz em poucos dias, enquanto Die
Heilige und ihr Narr [Os santos e seus loucos] teve casa lotada por três semanas
seguidas. Algo não está em ordem, de qualquer modo, nem mesmo no pior
industrialismo, não se pode considerar plenamente a massa de confusão emo-
cional existente e a irrealidade. Até onde vai esta confusão, pode-se constatar
por meio daqueles filmes que pretendem fazer uso do sucesso dos documentá-
rios russos, cujo significado toca apenas a parte mais ínfima de suas intenções
propagandistas. Mais importante é que Eisenstein e Pudovkin, diferentemente
de um mero caricaturista como Georg Groz, sabem de antemão sobre as coi-
sas humanas; ambos os diretores e seus atores realmente experimentaram a
pobreza, a fome, a injustiça e a felicidade e estão em condições de assimilar
a extensão das consequências destas experiências. Por esta e apenas por esta
razão encontram recortes e perspectivas, cujas ruas, cortes, praças e colunas
arquitetônicas contêm o poder do discurso. Alguns diretores alemães, que
aprenderam com os russos, foram maus alunos. Apropriaram-se do empreen-
dimento sem atentar para seu sentido. No filme Zuflucht [Abrigo], mencionado
anteriormente, imagens dos bairros proletários de Berlim são incorporadas
à maneira russa, imagens primorosas, mas que carecem, no entanto, daquela
relação interna do enredo. A maneira como o cinema russo apresenta o am-
biente desvela o núcleo da história. Aqui, no cinema alemão, os ambientes não
passam de decorações artificiais de um enredo pequeno-burguês. Esta é a visão
limitada com a qual os teimosos estão conscientes do mundo.
Dever-se-ia indicar caminhos? Espera-se por receitas? Não há nenhuma
receita. Sinceridade, talento de observação, humanidade – estas coisas não se
342 aprendem. Basta que a situação seja apresentada abertamente.
Culto da distração
Também na província, as massas se reúnem; mas elas são mantidas sob uma
tal pressão, que não podem se realizar espiritualmente na medida apropriada
à sua quantidade e à sua real significação social. Nos centros industriais, onde
344 aparecem compactas, essas massas, constituídas por operários, são solicitadas
em excesso e não podem realizar sua própria forma de vida. A elas são ofere-
cidos o lixo e as antiquadas diversões [Unterhaltungen] da classe superior que,
por mais que estejam interessadas em ressaltar a sua alta posição social, têm
modestas exigências culturais. Nas cidades provincianas maiores, não domina-
das de maneira predominante pela indústria, as relações tradicionais são muito
poderosas para que as massas estejam em condições de impor, sozinhas, uma
marca na sua estrutura intelectual. As camadas médias burguesas continuam
separadas delas e a se iludirem de que são guardiãs de uma cultura superior,
como se o preenchimento deste reservatório humano nada significasse. Sua
arrogância, que cria um oásis aparente para si própria, pressiona a massa para
baixo, estragando sua distração.
Não se deve esquecer que Berlim possui 4 milhões de habitantes. A sua ne-
cessidade de circulação, por si só, transforma a vida da rua em uma inescapável
rua da vida e produz figuras acessórias que penetram até mesmo no ambiente
doméstico. Mas, quanto mais os homens se sentem como uma massa, tanto
antes a massa atinge, também no campo intelectual, energias criativas que vale
a pena financiar. Ela não permanece mais abandonada a si mesma; não suporta
que lhe sejam servidos restos, mas quer ser servida em uma mesa coberta.
Pouco espaço há para as chamadas camadas cultas. Elas devem sentar-se à
mesa ou manter-se à parte em uma posição esnobe; em todo caso esta posição
provinciana acabou. Com a sua imersão na massa surge o homogêneo público
cosmopolita que – do diretor de banco aos auxiliares do comércio, da diva à
datilógrafa – sente do mesmo modo. Lamentos lacrimosos sobre esta guinada
para o gosto de massa vêm agora tarde demais. O patrimônio cultural, que
as massas recusam acolher, reduziu-se em parte à mera apropriação histórica,
porque se transformou a realidade econômico-social ligada a ele.
349
Tédio
Pessoas que possuem ainda tempo para o tédio e, no entanto, não se entediam
são, decerto, tão entediantes como as outras que não chegam a se entediar. Para
aqueles a quem o si próprio desapareceu, o si próprio cuja presença, particu-
larmente neste mundo tão administrado, estivesse necessariamente obrigada
a demorar um pouco1 sem objetivo, seja aqui ou ali.
A maioria das pessoas, certamente, não possui tempo para o ócio. Elas se
ocupam com o ganha-pão, exaurindo todas as energias, simplesmente para
suprir o estritamente necessário. Para tornar esta obrigação fatigante minima-
mente tolerável, inventaram a ética do trabalho para dissimular moralmente
sua ocupação e obter assim para si mesmos uma certa satisfação moral. Seria
um exagero afirmar que o orgulho em se considerar um ser ético dissiparia
todo tipo de tédio; mas o tédio vulgar que passa pela labuta diária não entra
em consideração já que esta nem é fatal e nem desperta para uma nova vida,
1 Kracauer faz um jogo de palavras de difícil tradução. O substantivo die Langeweile, que sig-
nifica em português, tédio, aborrecimento ou o verbo langweilen, aborrecer, entediar. Tanto
o substantivo como o verbo são compostos de duas palavras lang (longo, largo) e o verbo
weilen (demorar) ou verweilen, que podem ser separadas, por exemplo, nirgendwo lang zu
verweilen. Ele usa o substantivo, die Langeweile, o verbo langweilen, o adjetivo, langweilig e
depois separa o adjetivo lang do verbo zu verweilen. 351
mas simplesmente expressa uma insatisfação, que desapareceria num instante
caso fosse oferecida uma atividade agradável, sancionada moralmente. Apesar
disso, as pessoas, a quem o cumprimento do dever provoca bocejos, são me-
nos entediadas do que aquelas que executam suas ocupações por inclinação.
Recentemente, estes tipos infelizes são empurrados para o fundo, forçados
rudemente, até que não saibam mais onde está sua cabeça, e o tédio radical,
extraordinário, que poderia reuni-los novamente com suas cabeças, perma-
nece eternamente distante para eles.
Não há ninguém, no entanto, que não disponha de nenhum ócio. O escri-
tório não é um asilo permanente e os domingos são uma instituição. Em prin-
cípio, durante estas belas horas de tempo livre cada um teria a oportunidade
de se reanimar até um verdadeiro tédio. Mas ainda que alguém não quisesse
fazer nada, o fato é que as coisas são feitas para ele: o mundo se ocupa de que
alguém não chegue a si. E mesmo se não estiver interessado neste, o mundo
mesmo é muito interessado em que se encontre tranquilidade para verdadei-
ramente se entediar com o mundo, como este merece ao final.
Perambula-se à noite pelas ruas, repleto de uma insatisfação da qual a pleni-
tude pudesse germinar. Palavras iluminadas deslizam pelos tetos, e logo se é
banido de seu próprio vazio em um estranho anúncio. O corpo lança raízes
no asfalto, e, junto com as revelações iluminadoras, o espírito, que não é mais
o nosso espírito, vaga sem cessar na noite. Se apenas fosse permitido desapa-
recer! Mas como o Pégaso saltitando em um carrossel, este espírito deve girar
em círculo, não pode se cansar, louva-se para o alto céu a fama de um licor e
elogia o melhor cigarro de cinco centavos. Alguma mágica incita o espírito
com mil lâmpadas elétricas, das quais este se constitui e se reconstitui a si pró-
prio em frases resplandecentes.
Se este espírito retorna, por acaso, a algum ponto, logo se permite a si pró-
prio ser girado por uma manivela multiforme num cinema. Fica de cócoras
como um falso chinês, num falso bar de ópio, transforma-se em um cão ades-
trado que com performances espertas e ridículas muito agrada a uma diva do
cinema, junta-se a isto uma tempestade no cume das montanhas, e torna-se,
352 ao mesmo tempo, um artista de circo e um leão. Como poderia resistir a estas
metamorfoses? Os cartazes tomam de um golpe o espaço vazio que o espí-
rito propriamente não penetraria, o arrastam diante de uma tela que está tão
despida como um palácio vazio, e quando as imagens surgem uma depois da
outra não há mais nada no mundo além de suas evanescências. Esquece-se
de si mesmo em um processo de basbaqueamento, e o grande buraco escuro
é animado com a aparência de uma vida que não pertence a ninguém e que
exaure a todos.
Também o rádio vaporiza a essência, mesmo antes de eles terem intercep-
tado uma única emissão. Desde que as pessoas se viram compelidas pela ra-
diodifusão, se encontram em uma situação de recepção permanente sempre
prenhe com Londres, torre Eiffel e Berlim. Quem gostaria de resistir ao convite
destes carinhosos fones de ouvido? Brilham nos salões e se entrelaçam ao re-
dor das cabeças todos por si mesmos; e em vez de suscitar uma conversa cul-
tivada, que, certamente, pode ser um tédio, torna-se uma praça de jogos dos
barulhos do mundo, não obstante seu próprio potencial de tédio objetivo não
conceda nem um pouco do modesto direito ao tédio pessoal. Mudo e sem vida
sentam-se as pessoas uma ao lado da outra como se suas almas vagassem por
outro lugar distante; mas as almas não vagam de acordo com suas preferências,
são agitadas por um turbilhão de notícias, e logo ninguém mais sabe quem é a
caça e quem é o caçador. Mesmo num café, lá, onde se ronca junto como um
ouriço e que gostaria de tornar interna sua nulidade, um significativo autofa-
lante extermina qualquer vestígio da existência privada. Seus anúncios reinam
no espaço nas pausas do concerto e o garçom escutando rejeita indignado a
impertinência do pedido para livrar-se deste arremedo de gramofone.
Enquanto se padece de tal destino antenado, os cinco continentes tornam-se
sempre cada vez mais próximos. Na verdade não somos nós que nos expandi-
mos por eles, são muito mais suas culturas que tomam posse de nós no impe-
rialismo sem fronteiras. É como se tivesse um desses sonhos sonhados com es-
tômago vazio. Uma bola minúscula rola de bem longe até você, expandindo-se
em uma grande tomada e urrando sobre você; você não pode detê-la, escapar
dela também não, permanece aguilhoado como um bonequinho impotente
que é arrastado por um gigante colossal e expira em seu âmbito. Fugir é im-
possível. O imbroglio chinês deve ser discretamente desativado, se está seguro 353
de ser saqueado por um lutador de boxe americano adversário, e o ocidente
permanece onipresente, admitindo-se ou não. Todos os acontecimentos his-
tóricos neste planeta – não apenas os atuais mas também os acontecimentos
do passado, cujo amor pela vida não tem pudor – possuem apenas um desejo:
agendar um encontro onde estes supõem que estejamos presentes. Mas o se-
nhorio não se encontra em seus aposentos, viajou e não pode ser localizado,
cedendo já há algum tempo os quartos vazios para a surprise party que ocupa
os aposentos, pretendendo tornar-se o senhor.
Mas o que ocorre, no entanto, quando não se permite ser perseguido como
uma presa de caçador? Então o tédio torna-se a única ocupação adequada, na
medida em que provê uma espécie de garantia, por assim dizer, para que se
tenha ainda controle sobre sua própria existência. Se não se entediasse nunca,
provavelmente não estaria presente de modo algum e seria apenas meramente
mais um objeto de tédio, como foi dito no início, que esplandece sobre os te-
lhados ou numa bobina de filme. Mas se está presente, não teria outra chance a
não ser entediar-se pelo estrondo ubíquo que não permite que se possa existir,
e, ao mesmo tempo, para encontrar a si entediando-se por existir neste.
No melhor dos casos, em uma tarde ensolarada quando todos estão fora
de casa, se permaneceria no saguão de uma estação de trem, ou melhor ainda:
ficar-se-ia em casa, fecharia as cortinas e entregar-se-ia a seu tédio deitado no
sofá. Anuviado de tristeza, brincando assim com ideias que se tornam respei-
táveis no processo, considerando vários projetos, sem fundamento, suposta-
mente sérios. Eventualmente se contenta em nada fazer a não ser ficar consigo
e não saber de nada sobre o que se deveria fazer – de modo simpático, tocado
simplesmente por um gafanhoto de vidro sobre o tampo da mesa, que não
pode saltar, pois é feito de vidro, e por meio do absurdo de um cacto que nada
pensa sobre a sua própria extravagância. Frívolo como esta criatura decorativa,
abriga-se ainda apenas em uma inquietação interior sem propósito, uma ânsia
que é repelida e o fastio sobre o que é sem realmente ser.
Se, no entanto, tem paciência, aquela paciência que pertence ao tédio legí-
timo, experimenta bem-aventuranças que quase não são deste mundo. Aparece
354 uma paisagem na qual pavões coloridos passeiam pomposamente e imagens
de pessoas com alma enchem a visão – sua própria alma dilata-se igualmente
e você expressa extasiado o que sempre lhe faltou: uma grande paixão. Fosse
esta paixão – trêmula com um cometa – descendente, fosse esta a envolver
você, aos outros e ao mundo – ah, o tédio chegaria a um final e tudo o que
existe seria…
No entanto as pessoas permanecem como imagens distantes e no horizonte
se renuncia a grande paixão. E no tédio, que se recusa retroceder, se choca com
bagatelas, que são tão entediantes como esta.
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Adeus à Passagem das Tílias
1 A passagem de Berlim que Kracauer chama de Lindenpassage, passagem das Tílias, chamava-se
de fato Kaisergalerie [Galeria do Imperador], que ligava a Avenida das Tílias números 22-23
à Behrenstrasse, números 50-52, na esquina da Friedrichstrasse, número 164. Inaugurada em
1873, foi a primeira edificação “moderna”, puramente comercial. Inicialmente repleta de lojas
elegantes, cafés, e local para concertos, era frequentada pela aristocracia urbana, durante a
época em que estava na moda, o que durou aproximadamente dez anos. Em 1888, já com muitas
lojas vazias, o famoso Passage-Optikon mudou-se para lá, mudando de imediato o caráter do
espaço com sua coleção de dioramas, panoramas, lojas de suvenires e uma mescla de atrações.
No correr do século seguinte, a Friedrichstrasse tornou-se um local de diversão com seus con-
comitantes turistas e prostitutas, contribuindo para seu lento declínio. Após a Primeira Guerra
Mundial inicia-se sua restauração, até que em 1928 se dá sua “modernização”, reduzindo o seu
interior de três andares, cobrindo o teto com vidro. Foi destruída pelos Aliados em 1944. Ver
J. F. Geist, Passagen. Ein Bautyp des 19. Jahrhunderts. Müchen: Prestel, 1969-1979, pp. 132-145. 357
existem hoje às dúzias. Apenas em alguns lugares se vê, felizmente, ainda a
velha arquitetura renascença, aquela imitação do estilo horrivelmente belo do
tempo de nossos pais e avós. Uma brecha na nova estrutura de vidro permite
ver os andares superiores com filas infinitas de consoles sob a cornija principal,
as janelas arredondadas duas a duas, as colunas, as balaustradas e medalhões –
em todas as repetições desbotadas que hoje nenhum pedestre admiraria mais.
E uma pilastra, que aparentemente deveria ter ficado na reserva até o último
momento, mostra ainda seu relevo em ladrilho, uma composição de delfins,
trepadeiras e uma máscara na moldura do meio. Hoje tudo isto desapareceu
num amontoado de frias sepulturas de mármore.
Lembro-me ainda o arrepio que a palavra passagem [Durchgang] me provo-
cava no tempo de garoto. Nos livros que devorava na época, a passagem escura
era habitualmente o local de assaltos mortíferos testemunhados por marcas
de sangue, ou pelo menos o meio ambiente adaptado a existências duvidosas
que se colocavam uma ao lado da outra para traçar seus planos sombrios. Se
as fantasias de garoto são um pouco exageradas – algo de significativo que se
possa atribuir às passagens coincide também com o que foi a Passagem das
Tílias. Não apenas a ela, mas a todas as autênticas passagens burguesas. Há
boas razões para o que se passa em Thérese Raquin tendo como pano de fundo
a Passagem do Panorama2 em Paris, que, no meio-tempo, foi destruída e subs-
tituída pelo peso de concreto armado das luxuosas novas edificações. A época
das passagens terminou.
Sua peculiaridade era justamente ser passagem, caminhos através da vida
burguesa que habitava em frente delas e sobre suas entradas. Tudo que era ex-
cluído dela, porque não era representativo ou estava em desacordo com a visão
de mundo oficial, fez o seu ninho nas passagens. Dava guarida a tudo o que
era rejeitado e que era reposto em seu interior, o conjunto de qualquer coisa
que nada valia para a decoração das fachadas. Aqui nas passagens, os objetos
transitórios encontravam o seu direito de permanência; como ciganos que não
eram autorizados a pernoitar na cidade, mas somente nas estradas. Passava-se
por elas entre uma rua e outra. A Passagem das Tílias está ainda cheia de lojas
3 Sob a cúpula octogonal, no centro da Passagem, estava o Wiener Café, a primeira confeitaria
vienense de Berlim. Decorada luxuosamente, com salas de bilhar e de leituras e café autenti-
camente vienense com seus confeitos, foi o ponto de encontro dos grandes empresários ao
360 lado de lojas elegantes durante seus primeiros anos.
país estrangeiro era mais distante e familiar na época dos artigos de suveni-
res! A loja da Passagem está abarrotada destes artigos. Lembranças de Berlim
vêm escritas em pratos e jarros, e os concertos de flauta de Sanssouci4 são fre-
quentemente oferecidos como brindes. Estes auxílios da memória, palpáveis,
são cópias fidedignas dos locais de origem, são corpos do corpo de Berlim e são,
sem dúvida, mais adequados a oferecer a seus compradores as forças da cidade,
que estes devoram, do que as fotos que a loja de fotografias oferecem de modo
personalizado. As fotos dão a ilusão ao turista de poder levar o país visitado
para casa; enquanto o “panorama do mundo” reflete diante dos olhos aquilo
que cobiçamos e rapidamente faz esquecer o que nos é familiar.5 O “pano-
rama do mundo” é entronado na Passagem como o Museu de Anatomia; e do
corpo palpável à distância inatingível é de fato um pequeno salto. Toda vez
que, quando criança, visitava o “panorama do mundo” – que se ocultava en-
tão em uma passagem –, sentia-me, como na observação de livros ilustrados,
transportado para longe, o que era inteiramente irreal. E não podia ser dife-
rente: pois atrás do olho mágico, que é tão próximo como caixilho de janela,
passava por cidades e montanhas que com a luz artificial pareciam menos com
o destino de viagem do que faces: México e o Tirol, que no panorama mesmo
torna-se um outro México.
Estas paisagens são já quase imagens sem-teto, ilustrações de impulsos pas-
sageiros que brilham uma vez, cá e lá, através das fendas na cerca de madeira
que nos rodeia. São imagens como estas que se poderia ver com ajuda dos
óculos mágicos e é surpreendente porque a ótica da Passagem não oferece à
venda estes espetáculos. Suas folhagens de vidro que, duras e curvas, trepam
pelos lados da parede da vitrine, parecem apresentar corretamente as coisas
de acordo com os conceitos válidos na passagem. A desintegração de toda per-
manência ilusória, desintegração exigida pela Passagem, está aos cuidados da
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376
Índice de nomes
Adorno, Theodor W., 10, 15-17, 25, 27, 29, 31, Bloom, Harold, 17
36, 38-39, 41, 44, 48, 54, 283 Boese, Carl, 341
Aland, Kurt, 210 Borchardt, Marie Luise, 209
Armin, Ludwig Achim von, 175 Borchardt, Rudolf, 209, 216
Arnheim, H., 213 Burschel, Friedrich, 105, 112, 114
Arnheim, Rudolf, 16 Brecht, Bertolt, 314-315
August, Karl, 65 Briand, Aristide, 74
Brod, Max, 287, 289
Bachofen, Johann Jacob, 76-77, 133 Brunkhorst, Hauke, 9
Balázs, Béla, 35 Buber, Martin, 15, 21, 205-06, 208, 212-13,
Baron, Hans, 237 215, 217-19
Baudelaire, Charles, 32, 36, 81
Baudrillard, Jean, 31 Cage, John, 34
Bazin, André, 19, 33 Chamfort, Sébastien, 244
Biebl, Sabine, 278 Chaplin, Charles, 130, 312
Belke, Ingrid, 15-16, 278 Charell, Eric, 64
Benjamin, Walter, 15-16, 21-22, 24-25, 28, Clemenceau, Georges, 132
31-36, 38, 43, 54, 279-85, 311-12, 362 Correl, Barbara, 14
Bergen, Arthur, 330 Courbet, Gustave, 69
Berger, Ludwig, 306, 308 Creuzer, Georg Friedrich, 77
Bergson, Henri, 32-33, 233, 243 Crisp, Donald, 314
Bernoulli, Carl Albrecht, 133 Croce, Benedetto, 233
Bloch, Ernst, 15-16 Cserépy, Arzen von, 329 377
Czinner, Paul, 340 George, Stephan, 13, 21, 154, 212, 215
Glatzer, Nahum, 206
Dahn, Felix, 214 Goethe, Johann Wolfgang, 65-66, 68, 81,
Dauthendey, Max, 154 117, 248, 254-55, 274, 276-77
Dewitz, Hans-Georg, 209 Grimm, Jacob e Wilhelm, 63, 175
Dickens, Charles, 214 Groz, Georg, 342
Dilthey, Wilhelm, 66 Gründler, Otto, 227
Doermann, Felix, 82 Grune, Karl, 9, 11-12, 23, 26, 39, 307, 329, 341
Dostoiévski, Fiódor, 88 Grüneberg, Horst, 126-27, 141-42
Douglas, Mary, 9 Gundolf, Friedrich, 154
Dreyfuss, Alfred, 136
Dreyer, Carl T., 339 Habermas, Jürgen, 36, 38
Dubiel, Helmut, 15 Haenlein, Leo, 28
Dupont, Ewald André, 71 Halevi, Yehuda, 206-07
Hansen, Miriam 9, 34, 36
Eckermann, Peter, 68 Harbou, Thea von, 339
Elvestad, Sven, 201 Harms, Rudolf, 71
Einstein, Albert, 118, 130 Hecker, Hans, 123
Eisenstein, Sergei, 25, 38, 314, 342 Hegel, Georg Friedrich Wilhelm, 127, 233
Elsaesser, Thomas, 30 Heine, Thomas T., 329
Eschmann, Ernest Wilhelm, 128, 136, 142, Helms, Hans G., 41
145 Hessel, Franz, 285
Espinoza, Baruch, 243 Hindenburg, Paul von, 74
Hoffmann, E.T.A., 175
Fairbanks, Douglas, 314 Hofmannsthal, Hugo von, 154
Feyder, Jacques, 34 Hölderlin, Friedrich, 91
Foster, Hal, 31 Horkheimer, Max, 25, 44
Franklin, Sidney A., 322 Hugenberg, Alfred, 304, 328
Franzen, Erich, 105, 114
Freud, Sigmund, 17, 20, 30, 36, 42 Ibsen, Henrik, 137
Freytag, Gustav, 214 Ihering, Herbert, 25
Fried, Ferdinand (Ferdinand Freidrich
Zimmermann) 124, 127, 129, 135-36 Jannings, Emil, 307
Frisch, Efrain, 105, 113 Jay, Martin, 10, 15, 39
Fromm, Erich, 206 Johnston, John, 31
Galeen, Henrik, 341 Kafka, Franz, 6, 17, 20-21, 37, 79, 106, 287-
Geist, Johann Friedrich, 357 300, 367
Gebühr, Otto, 329 Kant, Immanuel, 195-96, 246-48, 274-76
378 George, David Lloyd, 132 Kautzsch, Emil, 219
Kessler, Michael, 34 May, Joe, 339
Keyserling, Conde Hermann Alexander Mayer, Carl, 305
von, 320 Mendes, Lothar, 308
Kierkegaard, Sören, 234, 236, 238, 283 Meyrink, Gustav, 175
Klöpfer, Eugen, 9 Michael, Wilhelm, 215
Koch, Gertrude, 21 Michelangelo, 248
Koch, Hans-Gerd, 292 Milestone, Lewis, 107
Korda, Alexandre, 326 Monet, Claude, 70
Kracauer, Siegfried, 9-45, 54, 64, 66, Montanus, 146
71, 105, 107, 109, 111-12, 114-15, 120, Mülder-Bach, Inka, 10-11, 13-15, 28, 365
142, 146, 180, 213, 265, 278, 283, 312, Müller, Michael, 292
317, 329, 332, 351, 357, 358, 365 Murnau, Werner, 307, 339 341
Kraus, Karl, 285 Mussolini, Benito, 133
Küpper, Hannes, 315
Kyser, Hans, 329 Nadler, Josef, 126
Neff, Wolfgang, 319, 324
Lamprecht, Gerhard, 330 Nietzsche, Friedrich, 154, 248, 274-75
Lang, Fritz, 305, 338-39, 341 Nobel, Nehemiah, 15
Langen, Albert, 329
La Rochefoucauld, François de, 244 Ozep, Fedor, 42
Leibniz, Gottfried Wilhem von 235
Leskov, Nicolai 32 Pasley, Malcom, 292
Lethen, Helmut 34 Paul, Hanz, 332
Levin, Thomas Y. 10, 22, 34, 365 Peil, Harry, 338
Liedtke, Harry, 329 Piccolomini, Enéas Sílvio (Papa Pio iii), 179
Lohenstein, Daniel Caspers von, 283 Pölzig, Hans, 175, 343
London, Jack, 105, 114 Porten, Henny, 339
Löwenthal, Leo, 15 Proust, Marcel, 20, 32-33, 285
Ludwig, Emil, 117 Pudovkin, Vsevolod Ilarionovich, 340, 342
Lukács, Georg, 13, 17
Lutero, Martinho, 209-16, 218-19, 329 Raabe, Paul, 295
Rabinbach, Anson, 15, 24, 35
Mack, Max, 325 Ranke, Leopold von, 233
Majo, Fred, 339 Raschid, Harun al, 322, 324
Malebranche, Nicolas, 235 Reichmann, Max, 341
Mann, Thomas, 199 Reil, Christian, 146
Marlitt, Eugenie, 329 Remarque, Erich Maria, 105, 107, 113, 115
Märten, Lu, 25 Rembrandt, 248-49, 272-76
Marx, Karl, 15-16, 25, 74, 77, 138, 142-43, Renz, Irina, 15-16
145-46, 173, 233 Ritter, Erwin (pseudônimo de Hanz Zehrer) 147 379
Rodin, Auguste, 248 Storm, Theodor, 305
Rosen, Philip, 19 Strauss, Oskar, 306, 330
Rosenzweig, Franz, 15, 205-08, 212-13, 217-19 Streseman, Gustav, 74
Rouanet, Sérgio Paulo, 34 Sudermann, Hermann, 334
Rubens, Peter Paul, 68
Russolo, Luigi, 34 Thiess, Frank, 105, 111-14
Ruttmann, Walter, 340 Tiller, John, 64, 92, 94-95, 100
Tourjansky, Victor, 323
Samson-Körner, Paul, 315 Troeltsch, Ernst, 231-41
Satie, Erik, 34 Trotsky, Leon, 122
Scheler, Max, 43, 208, 221-30 Trübner, Wilhelm, 69
Schillemeit, Jost, 288
Schmitz, Oskar, 311 Voss, Richard, 105, 112-13, 124-25
Schnitzler, Arthur, 334
Schivelbusch, Wolfgang, 206 Wagner, Richard, 101, 173, 213-14, 344
Schleiermacher, Friedrich, 229 Weber, Max, 13, 17, 24, 156, 231-32, 237-41
Schlüpmann, Heide, 9, 21 Wegener, Paul, 175, 341, 343
Schmitt, Carl, 123, 127, 133-34 Weininger, Otto, 317
Schopenhauer, Arthur, 243, 248, 257, 274-75 Wellhausen, Julius, 219
Schoeps, Hans Joachim, 287 Wellmer, Albrecht, 9
Scholem, Gershom, 15, 17, 43, 206 Wendhausen, Fritz, 339
Schröter, Michael, 13, 17-18 Wilde, Oscar, 29
Scott, Walter, 214 Wirsing, Giselher, 123
Simmel, Georg, 6, 17, 43, 151, 164, 197-98, Witte, Karsten, 9, 12, 16, 25, 34, 38, 115, 312
243-54, 257-78, 367
Simon, Ernst, 206 Yerushalmi, Yosef Hayim, 32
Soloviev, Vladmir, 88
Sombart, Werner, 320 Zehrer, Hans, 123-30, 132, 134, 138-40, 144,
Sorel, Georges, 128, 134 147
Spalatin, Georg, 210 Zille, Heinrich, 316, 330
Spengler, Oswald, 135-37, 140 Zipes, Jack, 14
Steiner, George, 209 Zumbusch, Ludwig von, 70
Steiner, Rudolf, 152-53 Zunz, Leopold, 213-14
Stiller, Mauritz, 318 Zuckmayer, Carl, 334
Stoessel, Marleen, 35 Zweig, Stephan, 105, 112-14
380
Capa: Dames (1934). Direção: R. Enright e B. Berkeley – Warner Bros./Photofest
Bibliografia
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4. Tragédia moderna
Raymond Williams