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Siegfried Kracauer

O ornamento
da massa
Siegfried Kracauer

O ornamento
da massa

tradução
Carlos Eduardo J. Machado
e Marlene Holzhausen
9 prefácio Miriam Hansen

introdução: geometria natural


51 Garoto e touro
53 Dois planos
57 Análise de um mapa de cidade

objetos externos e internos


63 A fotografia
81 A viagem e a dança
91 O ornamento da massa
105 Sobre livros de sucesso e seu público
117 A biografia como forma de arte da nova burguesia
123 Rebelião dos estratos médios
149 Aqueles que esperam

construções
163 O grupo como portador de ideias
191 O saguão de hotel
perspectivas
205 A Bíblia em alemão
221 Catolicismo e relativismo
231 A crise da ciência
243 Georg Simmel
279 Sobre os escritos de Walter Benjamin
287 Franz Kafka

cinema
303 O mundo de calicó
311 As pequenas balconistas vão ao cinema
327 Cinema, 1928
343 Culto da distração

desfecho: como ponto de fuga


351 Tédio
357 Adeus à Passagem das Tílias

365 referências bibliográficas

377 índice de nomes


Prefácio
Perspectivas descentradas
Miriam Hansen*

Em crítica de A rua, de Karl Grune, para o Frankfurter Zeitung em fevereiro


de 1924, Kracauer descreve a sequência introdutória do filme. O protagonista
(Eugen Klöpfer) está deitado no sofá em uma “sala de estar pequeno-burguesa
que deveria ser um lar [Heimat], mas não chega a sê-lo”. Fascinado com o jogo
de luz e sombra no teto, o sonhador se levanta para olhar pela janela. Ali onde
sua esposa vê apenas a rua tal como ela é, seu olhar “lhe revela uma vida intensa
e desordenada, insensatamente tentadora que, infelizmente, não é mais apenas
um lar como a sala de estar, mas sim, ao contrário, aventura e possibilidades
ainda não experimentadas”.1
A configuração de um duplo desabrigo – entre a farsa do interior burguês
e a alteridade anônima da rua moderna – se tornaria emblemática da posição
do próprio Kracauer, de sua autodefinição como intelectual. Conforme afir-

 * Professora na Universidade de Chicago, autora de Babel and Babylon: Spectatorship in Ame-


rican Silent Film (1991) e de ensaios publicados em New German Critique, October, entre
outras. Nota da autora: agradeço a Karsten Witte, Hauke Brunkhorst, Heide Schlüpmann,
Mary Douglas e especialmente a Albrecht Wellmer pelas discussões estimulantes e pelos
comentários críticos. A pesquisa e a redação deste ensaio foram viabilizadas pela ajuda ge-
nerosa do Alexander von Humboldt-Stiftung.
1 Siegfried Kracauer, “Die Strasse”. Frankfurter Zeitung, 3 fev. 1924. 9
maram alguns críticos, seu exílio não começou em 1933, e sua posterior alega-
ção de “extraterritorialidade” pessoal (em carta a Adorno de 8 de novembro
de 1963) apenas tornou explícito um tema recorrente em seus escritos desde
o início.2 No que segue, perseguirei evidências de configurações do exílio em
dois aspectos sobrepostos da obra de Kracauer: (1) a constituição da cultura
de massa como um objeto, a partir das perspectivas cruzadas de uma filosofia
da história e da crítica da ideologia; e (2) a relação do escritor com aquele ob-
jeto, a construção de fenômenos de cultura de massa na tensão entre distan-
ciamento crítico e experiência pessoal. Essa discussão terá implicações para
a compreensão de seus escritos posteriores sobre cinema, em especial para
Teoria do filme: a redenção da realidade física (1960), ao reconsiderar a inter-
pretação limitada do conceito de “realidade” que é causa, entre os críticos de
língua inglesa, da recepção predominante do autor como um “realista ingê-
nuo”. Além de restaurar a complexidade de Kracauer como figura intelectual,
uma complexidade que tem sido reduzida às vicissitudes do exílio e do mer-
cado acadêmico, também espero elucidar a relevância dos primeiros escritos
de Kracauer para alguns debates em curso. Pois em sua própria historicidade,
por suas contradições e ambivalências, eles levantam questões que tocam nos
dilemas da cultura de massa em uma era pós-moderna.
Uma vez que Kracauer voltou a A rua diversas vezes no curso de sua car-
reira, seus comentários a respeito do filme servem como um fio condutor
pelo itinerário teórico do próprio crítico. Ele começou escrevendo críticas
para o Frankfurter Zeitung em 1921 e nos anos seguintes escreveu cerca de mil
artigos críticos, cobrindo praticamente todos os filmes exibidos nos cinemas
alemães (e, depois, franceses).3 Apesar de A rua não ter sido o primeiro filme
a instigá-lo a desenvolver aquilo que então chamou de “uma metafísica do

2 Martin Jay, “The extraterritorial life of Siegfrief Kracauer”, Salmagundi, números 31-32, ou-
tono/inverno de 1975-76, reimpresso em Permanent Exiles. Nova York: Columbia University
Press, 1986, pp. 152-97; Inka Mülder-Bach, “‘Mancherlei Fremde’: Paris, Berlin und die Ex-
traterritorialität Siegfried Krakauers”. Juni: Magazin für Kultur & Politik, Mönchengladbach,
número 3.1, 1989, pp. 61-72.
3 Ver Thomas Y. Levin, Siegfried Kracauer: Eine Bibliographie seiner Schriften, Marbach am
10 Neckar: Deutsche Schillergeselschaft, 1989. A maioria dos artigos de Kracauer para o →
cinema ainda não escrita” (esforços nessa direção aparecem em suas críticas
a partir do outono de 1923), o filme se tornou, nos anos subsequentes, uma
espécie de prova textual.
As primeiras críticas de Kracauer de A rua dão testemunho do nascimento
de sua teoria do cinema a partir do espírito de uma filosofia da história ou,
mais precisamente, de uma teologia da história. Enquanto sua crítica de A rua,
de 3 de fevereiro de 1924, é principalmente uma paráfrase entusiática a partir
do olhar do protagonista errante, a crítica da edição vespertina de 4 de fe-
vereiro assume um tom mais generalizante, apresentando o filme de Grune
como “uma das poucas obras da produção moderna de filmes na qual um
objeto é moldado de uma maneira que apenas o cinema é capaz e que realiza
possibilidades que apenas o cinema pode realizar”. A afinidade entre o meio
e seu suposto objeto é fundamentada não somente na capacidade fotográfica
do cinema de mostrar uma realidade externa, mas também em seus procedi-
mentos sintáticos, nas possibilidades da montagem:

O cinema costura cena com cena e dessas imagens que se desenrolam sucessi-
vamente recompõe mecanicamente o mundo – um universo mudo no qual ne-
nhuma palavra passa de ser humano a ser humano, no qual a fala incompleta das
impressões visuais é a única linguagem. Quanto mais o objeto representado pode
ser mostrado pela mera sucessão de imagens, tanto mais corresponde à técnica
cinematográfica de associação.

O processo de representação cinematográfica captura, portanto, algo da essên-


cia da vida moderna – “uma vida desprovida de substância, vazia como uma
lata de estanho, uma vida que em vez de vínculos internos [statt des innerlichen
Zusammenhangs] não toma conhecimento de nada além de eventos isolados

→ Frankfurter Zeitung, muitos dos quais publicados sob pseudônimo ou mesmo anonimamente,
pode ser encontrada em seu caderno de anotações, “Kracauer Papers”, Deutsche Literaturar-
chive, Marbach am Neckar. Desde a realização deste ensaio, boa parte dos escritos de Kracauer
para o Frankfurter Zeitung, com exceção de suas resenhas de filmes, foi reimpressa em seus
Schriften 5. 1-3, ed. Inka Mülder-Bach, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1990. 11
que formam novas séries de imagens como em um caleidoscópio”. Kracauer
concebe o cinema como expressão material – não apenas representação – de
uma experiência histórica particular. A solidão do indivíduo em um mundo
fragmentado e vazio que o crítico vê ser evocada no filme de Grune ressoa
com o pathos da experiência pessoal; o filme empresta a esse pathos uma sig-
nificação alegórica, uma ressonância coletiva.

O que irrompe no errante solitário nas ruas vorazes da noite é expresso no filme em
uma sequência vertiginosa de imagens futuristas, e o filme é livre para expressá-lo
dessa forma porque a vida interior debilitada não pode liberar nada além de ideias
fragmentárias. Os eventos se emaranham e desemaranham, e assim como os seres
humanos são mortos-vivos, coisas inanimadas tomam naturalmente parte no jogo.
Uma parede sem reboco anuncia um assassinato, um anúncio elétrico tremula
como um olho que pisca: tudo uma desordem confusa [Nebeneinander], um caos
[Tohuwabohu] de almas reificadas e coisas aparentemente animadas.4

Essas imagens são familiares para o leitor dos primeiros escritos de Kracauer,
tais como sua investigação epistemológica Soziologie als Wissenschaft [Sociolo-
gia como ciência], seu tratado filosófico sobre o romance policial, ou seu ensaio
programático de 1922, “Die Wartenden” [“Aqueles que esperam”].5 Kracauer
vê o processo histórico que culmina na modernidade como a perda crescente
do sentido da vida, a dissociação entre verdade e existência; o mundo se de-
sintegrando em uma multiplicidade caótica de fenômenos. Esse processo é

4 Na resenha publicada no dia anterior, a figura do “errante solitário” é referida como “den
Sehnsüchtigen”, aquele que espera. Tampouco é coincidência que a última frase da citação
de Kracauer utilize a palavra hebraica Tohuwabohu, uma imagem recorrente no Gênesis
utilizada em alemão como vernáculo para “caos”.
5 Soziologie als Wissenschaft: Eine erkenntnistheoretische Untersuchung (1922), reimpresso
em Siegfried Kracauer, Schriften I, ed. Karsten Witte, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1971;
Der Detektivroman: Ein philosophischer Traktat (1922-1925), publicado em Schriften I; “Die
Wartenden”, Frankfurter Zeitung, 12 mar. 1922, reimpresso em Siegfried Kracauer, Das
Orna­ment der Masse, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1963. Nesta edição, Aqueles que espe­
12 ram, p. 149.
análogo, nas esferas econômica e social, à racionalização capitalista e à aliena-
ção concomitante da vida humana, do trabalho e das relações interpessoais. O
sujeito é “lançado na infinitude fria de um espaço e de um tempo vazios”, uma
condição resumida na expressão de Lukács “desabrigo transcendental”.6 Para
um grande número de indivíduos vivendo na “solidão das grandes cidades” –
Kracauer inclui entre “aqueles que esperam” acadêmicos, homens de negócio,
médicos, advogados e intelectuais de todo tipo – esse estado, na medida em
que eles têm consciência dele, resulta em um sentimento de isolamento, de
exílio do mundo no qual vivem e agem.
Enquanto ainda faz ressoar a retórica do “desabrigo transcendental”, “Aque-
les que esperam” também marca o distanciamento em relação ao pessimismo
cultural e à nostalgia dos escritos iniciais de Kracauer. Dirigido contra as ten-
tativas prematuras de restaurar o sentido (da antroposofia ao círculo de George,
passando pelo misticismo religioso, mas também contra o ceticismo “ansioso”
de alguém como Max Weber), o ensaio propõe uma atitude de “espera” auto-
consciente, ativa, um “estar-aberto hesitante” [zögerndes Geöffnestein] (p. 159).
A rejeição de panaceias para o mal-estar moderno é acompanhada por uma
mudança de foco do “eu teórico” ao “eu da humanidade inteira”, do “mundo
irreal de forças sem forma e valores elevados esvaziados de sentido” ao “mundo
da realidade e seus domínios”. Por causa da unilateralidade do pensamento
teórico, adverte Kracauer, uma lacuna “aterrorizante” se abriu entre o pensa-
mento e a realidade contemporânea que é “uma realidade que encarna coisas
e pessoas que, por conseguinte, exigem ser vistas concretamente” (p. 160).
A abertura cautelosa de Kracauer para os domínios não teorizados da ex-
periência moderna implica uma mudança simultânea na atitude em relação

6 Siegfried Kracauer, Sociologie als Wissenschaft, p. 13. A noção de desabrigo transcendental de


Georg Lukács [transzendentale Obdachlosigkeit] é desenvolvida em A teoria do romance, tra-
dução de José Marcos de Macedo. São Paulo: Editora 34, 2000. Kracauer resenhou A teoria
do romance em Neue Blätter für Kunst und Literatur, 4.1, 4 out. 1921, pp. 1-5. Ver também Inka
Mülder, Siegfried Kracauer – Grenzgänger zwischen Theorie und Literatur: Seine frühen Schriften
1913-1933. Stuttgart: J. B. Metzler, 1985, pp. 19ss. Sobre a noção de Weltzerfall [desintegração do
mundo] ver Michael Schröter, “Weltzerfall und Reckonstruktion: Zur Physiognomik Siegfried
Kracauers”, Text+Kritik, número 68 (dedicado a Kracauer), Munique: Beck, 1980, pp. 18-40. 13
à “superfície” [Oberfläche] que tomou o lugar de qualquer substância “real”.
Como mostrou Inka Mülder-Bach, por volta de 1924/25 a metáfora da super-
fície assume um novo sentido, marcando uma virada ou mudança [Umschlag]
de um locus de pura negatividade, o mundo atomizado da mera aparência, a
um local em que a realidade contemporânea se manifesta em uma multipli-
cidade iridescente de fenômenos.7 Apesar de o próprio tropo da superfície
ainda implicar a topografia vertical da filosofia idealista (essência/aparência,
a hierarquia de verdade e realidade empírica), na atividade crítica de Kracauer
a Ober-fläche [superfície] perde paulatinamente o seu prefixo e se transforma
em Fläche [plano], um plano de configurações preliminares que exige inves-
tigação e interpretação. Não mais meros indícios de declínio metafísico, tais
configurações oferecem insights cruciais da dinâmica histórica do presente,
isto é, do presente como parte da história. Como afirma Kracauer na muito
citada introdução metodológica do ensaio “O ornamento da massa” (Frankfurter
Zeitung, 9 de junho de 1927), “o lugar que uma época ocupa no processo his-
tórico pode ser determinado de modo muito mais pertinente a partir da aná-
lise de suas discretas manifestações de superfície do que dos juízos da época
sobre si mesma”.8 Daí a mudança de enfoque teórico de Kracauer das grandes
questões metafísicas da época para os fenômenos da vida cotidiana, para o
efêmero, para espaços e mídias culturalmente marginais e desprezados, e para
os rituais de uma cultura de massa emergente.
No entanto, creio que o interesse teórico de Kracauer pelo cinema, assim
como tomou forma nas críticas de 1923/24, de certa maneira precede essa mu-
dança de tom, enfoque e atitude; ele tem raízes anteriores bastante específicas
em uma construção teológica da história, e na forma peculiar de materialismo
que essa construção consagra. Se considerarmos o ensaio “Aqueles que espe-
ram” exemplo dessa construção, não é difícil reconhecer nele uma variação

7 Inka Mülder-Bach, “Der Umschlag der Negativität: zur Verschränkung von Phaenome-
nologie, Geschichtsphilosophie und Filmaesthetik in Siegfried Kracauers Metaphorik der
‘Oberfläche’”. Deutsche Vierteljahresschrift, número 61.2, 1987, pp. 359-73; ver também Mülder,
op. cit., pp. 86-95.
8 “The mass ornament”, tradução de Barbara Correll e Jack Zipes. New German Critique, pri-
14 mavera 1975, p. 67; tradução modificada. Na presente edição, p. 91.
do messianismo judaico moderno e secular que Anson Rabinbach identificou
nos escritos de Ernst Bloch e Walter Benjamin. A relação de Kracauer com o
messianismo judaico é um assunto complexo, especialmente porque essa tra-
dição persistiu em uma variedade de sensibilidades radicais, de princípios her-
menêuticos e em combinações com outros discursos (psicanálise, marxismo,
anarquismo libertário, sionismo etc.).9 Criado em um ambiente consciente-
mente judaico e tendo participado brevemente da Freies Jüdisches Lehrhaus
(um círculo frankfurtiano de estudos e debates ligado ao rabino Nehemiah
Nobel), Kracauer passou a criticar veementemente o ressurgimento do pen-
samento messiânico. Ele rejeitou os “entusiastas messiânicos de inspiração
comunista” [messianische Sturm-und-Dranggister kommunistischer Färbung],
assim como outros movimentos de renovação religiosa, que considerava ir-
racionalistas, românticos e profundamente idealistas por eclipsarem tanto o
mundo real quanto o mundo divino que consideravam conhecer tão bem.10
O que claramente afastou Kracauer de um escritor como Bloch foi sua tenta-

9 Anson Rabinbach, “Between Enlightenment and the Apocalypse: Benjamin, Bloch and
Modern German Jewish Messianism”. New German Critique, número 34, inverno 1985,
pp. 78-124; Leo Löwenthal, Mitmachen wollte ich nie: Ein autobiographisches Gespräch mit
Helmut Dubiel. Frankfurt/Main: Suhrkamp, 1980, pp. 19ss., 27, 59, 156; Martin Jay, “Politics of
Translation: Siegfried Kracauer and Walter Benjamin on the Buber-Rosenzweig Bible”. Leo
Baeck Institute Year Book, números 21, 1976, reimpresso em Permanent exiles, pp. 198-216.
Sobre o messianismo judaico em geral, ver o ensaio canônico de Gershom Scholem, “The
messianic Idea in Judaism”, em The Messianic Idea in Judaism and Other Essays on Jewish
Spirituality. Nova York: Schoken, 1972.
10 Ver também a resenha polêmica de Kracauer do livro de Ernst Bloch Thomas Münzer,
“Prophetentum”, Frankfurter Zeitung, 27 ago. 1922; e suas cartas a Leo Löwenthal de 1921 a
1924. A carta de 4 de dezembro de 1921 foi republicada em Löwenthal, op. cit., pp. 244-47; as
cartas de 19 de dezembro de 1921, 31 de agosto de 1923 e 12 de abril de 1924 foram parcialmente
republicadas em Ingrid Belke e Irina Renz (ed.) Siegfried Kracauer 1889-1966. Marbacher
Magazin número 47, 1988, pp. 36, 39-40. Kracauer também reprovava a versão de Benjamin
do messianismo, apesar de ter reagido a ela de forma menos violenta do que a de Bloch; ver
a carta de Kracauer a Adorno, de 7 de junho de 1931, e a carta que escreveu a Löwenthal, em
6 de janeiro de 1957, após ler a primeira coletânea de escritos de Benjamin: “Muitas coisas
empalideceram e sofrem de um dogmatismo messiânico que, de meu ponto de vista, parece
abstruso e arbitrário”, “Kracauer Papers”, Marbach. Ver também Mülder, op. cit., pp. 45ss. 15
tiva de salvar conceitos como “razão” e “verdade”, e sua crença na possibilidade
de uma transfiguração “gentil” da natureza em nome da razão (apesar de ele
reconhecer a cumplicidade do Iluminismo com as mudanças devastadoras
operadas pelas formas capitalistas de racionalidade).11
Ainda assim, Kracauer participa do discurso do messianismo judaico mo-
derno de maneira significativa. Mesmo após ter substituído categorias metafí-
sicas por conceitos emprestados ao Iluminismo e ao jovem Marx, suas observa-
ções da vida cotidiana continuaram a se caracterizar por uma tendência implícita
marcadamente apocalíptica, em especial sua percepção da modernidade como
um abalo traumático que conduzirá à catástrofe. Como Benjamin e Bloch, ele
não era capaz de vislumbrar a mudança como algo imanente à história, como
nas noções burguesas e liberais de progresso e reforma, mas apenas como uma
quebra total. Consequentemente, a função do intelectual era “esperar” em vez
de intervir: “Devemos permanecer escondidos, quietistas, inativos, um espinho
no pé de nossos semelhantes, conduzindo-os ao desespero em vez de dar-lhes
esperança”.12 Ao mesmo tempo, o intelectual devia tomar parte no trabalho de
redenção – concebida nesse caso segundo o sentido utópico da restauração de
todas as coisas passadas e presentes e ligada ao conceito cabalístico de tikkun.13

11 Kracauer desenvolve a relação entre o messianismo judaico e a tradição do Iluminismo em


um ensaio, até onde sei, inédito, intitulado “Conclusões” (“Kracauer Papers”, Deutsches
Literaturarchiv, Marbach am Meckar), escrito para uma antologia sobre a contribuição ju-
daica à cultura alemã, provavelmente antes de saber do Holocausto. Sobre a análise avant la
lettre da Dialética do Esclarecimento, ver por exemplo “Das ornament der Masse” e “Ausfruhr
der Mittelschichten: Eine Auseinandersetzung mit dem ‘Tat’-Kreis”, Frankfurter Zeitung, 10
e 11 dez. 1931, Na presente edição, “O ornamento da massa” e “Rebelião dos estratos médios:
uma discussão com o Círculo Tat”, p. 91 e 123 respectivamente.
12 Carta a Leo Löewenthal, 12 de abril de 1924, reproduzida em Belke e Renz, op. cit., p. 40.
13 Ver Scholen, “Messianic idea”, em op. cit., p. 4. O tema da redenção atravessa toda a obra
de Kracauer e se torna central, como indicado pelo subtítulo de Teoria do filme: a redenção
da realidade física. Em discussão sobre a tradução alemã do subtítulo com Rudolf Arnheim
(que havia sugerido “Rückgewinnung”), Kracauer escreve: “Ainda acho que ‘Erlösung’ não
seria mal, exatamente por causa de sua conotação teológica”. Carta, 30 nov. 1960, “Kracauer
Papers”, Marbach am Neckar. Segundo Karsten Witte, a tradução para “redenção” por fim
16 escolhida, “Erretung”, foi sugerida por Adorno.
A afinidade de Kracauer com o discurso do messianismo secular surge
menos em suas construções conceituais do que em princípios recorrentes e
tropos interpretativos (como, por exemplo, a imagem de uma Umschlag, ou
virada, iminente). Como observa Michael Schröter, uma “aura de anseio es-
catológico” emana das “metáforas luminosas” dos textos de Kracauer, seja no
gênero aparentemente bem definido da crítica cultural e da análise socioló-
gica ou nos trabalhos literários como sua novela autobiográfica Ginster (1928).
Traindo a intensidade de uma experiência chocante, essas metáforas muitas
vezes excedem a estrutura explícita dos argumentos de Kracauer e assumem
uma vida teórica própria.14
No aspecto conotativo, as considerações de Kracauer a respeito da desin-
tegração do mundo também fazem ressoar o legado do gnosticismo judaico,
apesar de o gnosticismo judaico, enquanto doutrina, lhe parecer tão suspeito
como outras variações do misticismo religioso. Apoiado nos conceitos we-
berianos de racionalização e desencantamento, suas análises ecoam outras
críticas contemporâneas da reificação, de Simmel a Lukács. Como Lukács, e
talvez ainda mais do que ele, Kracauer evoca por meio de imagens de petrifi-
cação e mortificação, de detritos, fragmentos, cascas vazias, larvas e máscaras,
o mundo após a queda.15 Apesar mesmo de seu ímpeto antimetafísico, tais
imagens lembram a tradição gnóstica: apontam para os indícios negativos de
um Deus que se retirou. Como evidência material da negatividade da histó-
ria, esses indícios têm de ser preservados e interpretados para que, quando a
grande quebra ocorrer, o mundo possa ser redimido da forma mais completa
possível, e as faíscas incrustadas mesmo na matéria mais decaída possam ser
liberadas. Como diz Kracauer em outro ensaio programático, “Gestalt und

14 Schröter, op. cit., pp. 25 e 28. Para um exemplo das estratégias de estilo dos primeiros ensaios
de Kracauer, ver as páginas finais deste ensaio.
15 Adorno, em sua palestra inaugural de 1931, usa imagens similares quando faz referência a
Freud e à virada epistemológica ao “Abhub der Enscheinungswelt” [“Recusa do mundo fe-
nomênico”], “Die Aktualität der Philosophie”, em Gesamemlte Schriften 1. Frankfurt/Main:
Suhkamp, 1972, p. 336. Sobre o gnosticismo literário, especificamente na obra de Kafka, ver
Harold Bloom, The Strong Light of the Canonical: Kafka, Freud and Scholem as Revisionists
of Jewish Culture and Thought. Nova York: City College, 1987, pp. 1-25. 17
Zerfall” [“Forma e desintegração”], “a nova forma [das Gestaltete] não pode
ser vivida a não ser que as partículas que desintegraram sejam recolhidas e
preservadas” (Frankfurter Zeitung, 21 de agosto de 1925). E, o que é ainda mais
importante, uma vez que a ordem original das coisas foi irrevogavelmente
perdida e a verdade não pode ser restaurada em nenhum sentido imediato e
imanente, o processo de desintegração precisa ser levado adiante a fim de que
se desnude o “caráter preliminar de todas as configurações existentes”.16
Segundo essa concepção gnóstica da Weltzerfall (desintegração do mundo),
aquele filme assume uma dupla função para o jovem Kracauer, um papel cru-
cial no “jogo de azar radical do processo histórico [Vabanque-Spiel des Geschi-
chtsprozess]”. Em certo sentido, o cinema compartilha esse papel com a foto-
grafia, para a qual Kracauer elaborou uma teoria no seu grande ensaio de 1927.
Como indicou Heide Schlüppmann, a concepção de fotografia de Kracauer
vai além de uma mera oposição da imagem fotográfica à “imagem da memória”,
além do efeito ideológico de banir o tempo em favor do presente eterno das
revistas ilustradas e do cinejornal. 17 Ao contrário, enquanto sintoma e agente
da petrificação do mundo, a fotografia também junta os detritos da história
e a revela em toda sua negatividade. Assim, funciona como um arquivo dos
“últimos elementos da natureza alienados da intenção” – “o mundo dos mortos
em sua independência em relação aos homens”. Se a contingência da imagem
fotográfica põe abaixo as ficções burguesas do sujeito autônomo, ela também
oferece à consciência humana a chance de reconhecer e de se ligar ao “funda-
mento natural” de forma completa. Se o cinema quer, como a fotografia, assu-
mir tal função cognitiva de registro, ele precisa aderir ao mundo das aparências,
à superfície muda, externa, do mundo. O cinema não se relaciona com aquele
mundo, no entanto, na forma de uma representação icônica (o que conflitaria

16 Em Kracauer, a categoria do preliminar e do provisório na história reaparece, como parte de


uma analogia ampla entre a historiografia e a fotografia, no livro publicado postumamente
History. The Last Things Before the Last. Nova York: Oxford University Press, 1969.
17 Heide Schlüppmann, “Phenomenology of film: On Siegfried Kracauer’s Writings of the
1920’s”. New German Critique, número 40, inverno 1987, pp. 97-114; ver também Schröter, op.
cit., pp. 26-27. O ensaio de Kracauer “Die Photographie”, Frankfurter Zeitung, 28 out. 1927,
18 foi republicado em O ornamento da massa. Na presente edição, “A fotografia”, p. 63.
com a Bilderverbot bíblica), mas na forma de um índice impresso do processo
histórico, exibindo o estado de agregação do presente.18
A segunda função do cinema no projeto histórico de Kracauer deriva das
técnicas especificamente cinematográficas não compartilhadas com a foto-
grafia, em particular montagem, sobreposição e outros efeitos especiais. Se a
fotografia reflete os detritos da história meramente em desordem, o cinema
tem a possibilidade de avançar nessa desordem ao suspender sistematicamente
“toda relação habitual entre os elementos da natureza” e ao “associar partes e
segmentos a fim de produzir configurações estranhas”. As primeiras tentativas
de Kracauer de definir a “essência” ou o “espírito” do cinema enfatizam a tarefa
antinaturalista do cinema de “quebrar os contextos aparentemente naturais de
nossa vida” (Frankfurter Zeitung, novembro de 1923), de “promover a trans-
formação contínua do mundo externo, o louco deslocamento de seus objetos
[die verrückte Verrükung ihrer Objekte]” (Frankfurter Zeitung, 29 de janeiro de
1926). Por consequência, o crítico dará preferência aos gêneros fantásticos, aos
contos de fada e ao burlesco [Groteske], isto é, a comédias pastelão. No desdo-
brar sistemático do caos que lhe é característico, a comédia pastelão expõe a
lógica estreita e compulsiva da racionalização capitalista: “precisamos conceder
esse mérito aos americanos: com os filmes de pastelão eles criaram uma forma
que oferece um contrapeso à sua realidade: se naquela realidade eles sujeitam
o mundo a uma disciplina muitas vezes insuportável, os filmes por sua vez
desmantelam de forma vigorosa essa ordem autoimposta” (ibid).
Por fim, a capacidade de deslocamento e disjunção, de figuração e desfigu-
ração do cinema abriga uma possibilidade utópica, em conformidade com a
tradição messiânica. “O drama cinematográfico genuíno”, escreve Kracauer em
1923, “assume a tarefa de ironizar o caráter fantasmagórico [Scheinhaftigkeit]
de nossa vida ao apresentar de forma hiperbólica sua irrealidade apontando na

18 Essa afirmação em certa medida lembra o argumento de Philip Rosen sobre André Bazin,
salvo que para Kracauer a preservação cinematográfica de um momento passageiro não pode
nunca ser uma emanação positiva da criação mas, ao contrário, captura o tempo apenas em
sua negatividade, em sua deriva em direção à catástrofe, a única fonte da qual a redenção
pode vir. Ver Rosen, “History of image, image of history: subject and ontology in Bazin”.
Wide Angle, 9.4, 1987, pp. 7-34. 19
direção da realidade verdadeira”. (Frankfurter Zeitung, 16 de dezembro de 1923);
essa mesma realidade, no entanto, deve permanecer desconhecida. O modelo
dessa dimensão utópica oculta da primeira teoria do cinema de Kracauer é
Franz Kafka, assim como Marcel Proust aparece como o santo padroei­ro de
seu ensaio posterior Teoria do filme. Kafka aparece quase no final do ensaio
sobre a fotografia, na transição crucial da desordem provisória da fotografia
às possibilidades do cinema:

Caberia, portanto, à consciência demonstrar a provisoriedade de todas as confi-


gurações dadas, senão até mesmo de despertar o pressentimento de ordem justa
do existente natural. Nas obras de Franz Kafka, a consciência emancipada assume
esta obrigação; ela destroça a realidade natural e contrapõe os fragmentos um ao
outro, mudando-lhes a ordem. (p. 79)

Podemos dizer que a crítica de Kracauer, um ano antes, sobre O castelo contém
o esboço de uma estética do cinema utópica. Apesar de Kracauer não se referir
explicitamente ao cinema, ele situa o romance de Kafka segundo os mesmos
parâmetros com os quais, durante aqueles anos, abordara o cinema: (1) uma vi-
são gnóstica da história, centrada no abismo entre a existência humana e a ver-
dade [die Abgesperrheit des Menschen von der Wahrheit]; (2) o gênero do conto
de fadas, que prefigura a vitória miraculosa da verdade sobre as forças cegas da
natureza (o projeto não realizado do Esclarecimento); e (3) a psicanálise, em
particular a noção freudiana de denegação, e o discurso do inconsciente no
horror e nos sonhos. Assim, ele vê em O castelo um conto de fadas negativo,
“die Matrize des Märchens” [a matriz do conto de fadas], no qual os fragmentos
mudos da vida habitual são organizados uns contra os outros em uma série de
deslocamentos e inversões cuja ordem oculta aparece apenas da perspectiva
da verdade ausente, não realizada. Em vez de Märchenglück (a fortuna, a sorte,
a felicidade dos contos de fadas), o romance de Kafka é submerso em medo,
no horror de que a verdade possa estar definitivamente enterrada. Kracauer
compara esse medo, por um lado, à experiência do sonhador, à “desintegração
do ser humano no sonho que se rende aos elementos deslocados não apenas
20 pelo jogo dos impulsos”. Por outro lado, ele invoca o mito de Medusa, ao qual
retornaria em Teoria do filme, dando-lhe uma interpretação gnóstica: “o judeu
Kafka traz o horror ao mundo porque o semblante da verdade deste se reti-
rou. Se esse semblante fosse revelar-se, o mundo enlouqueceria de felicidade”
(Frankfurter Zeitung, 28 de novembro de 1926).19
O potencial gnóstico-messiânico do cinema assume um tom político na
relação de Kracauer com a arte e a cultura burguesas. Com a constatação do
caráter cognitivo do cinema, Kracauer dá as costas às instituições da alta cul-
tura alemã das quais havia sido exilado mais do que por sua vontade própria.
Assim como para outros intelectuais e artistas de vanguarda da república de
Weimar, o cinema figura para Kracauer como uma crítica prática dos escom-
bros da cultura burguesa, de tentativas anacrônicas de esconder o verdadeiro
estado de desintegração e instabilidade, que na terminologia de Benjamin
poderia ser caracterizado como uma falsa restauração da aura. Kracauer ha-
via criticado persistentemente tais tentativas, da forma fechada da biografia
histórica à tradução da Bíblia de Buber e Rosenszweig, passando pelo círculo
de George. É a partir dessa constelação que Kracauer valoriza o termo Zers-
treuung [distração, diversão], invocado com desprezo pelos conservadores
culturais para se referirem ao abandono da audiência às superfícies brilhantes
e às aparências glamourosas:

Estas exteriorizações têm a sinceridade como vantagem. Não é através dela que a
verdade é posta em perigo. Mas através da ingênua afirmação de valores culturais
que se tornaram irreais, através do duvidoso abuso de conceitos como personali-
dade, interioridade, tragicidade etc., que certamente, por si sós, indicam conteúdos
objetivos de alto valor, mas que em razão das transformações sociais perderam
em grande parte a sustentação da qual nutriam. Valores, que na maioria dos ca-
sos, assumem hoje um sabor equívoco, uma vez que desviam a atenção dos males

19 Para um desenvolvimento ligeiramente diferente do mito de Medusa ver, de Kracauer, Theory


of film – The Redemption of Physical Reality. Nova York: Oxford University Press, 1960, pp.
305-06. Ver também os artigos de Gertrude Koch, “‘Not yet accepted anywhere’: exile, me-
mory and image in Kracauer’s conception of history”, e de Heide Schlüpmann, “The subject
of survival: on Kracauer’s Theory of Film”, em New German Critique, número 54, outono 1991,
respectivamente pp. 95 e 111. 21
objetivos da sociedade além do conveniente, orientando-os para a pessoa privada.
Nos âmbitos da literatura, da música, do teatro, são bastante frequentes tais recalca-
mentos [Verdrängungserscheinungen]. Apresentam-se como manifestações da arte
superior e na realidade são produtos ultrapassados que se evadem das necessida­
des atuais da época – um fato que é indiretamente confirmado pela produção res-
pectiva, que é também intrinsecamente uma arte epigonal. O público berlinense
comporta-se de uma maneira adequada à verdade no seu sentido mais profundo,
recusando cada vez mais estes acontecimentos artísticos que, por motivos óbvios,
não vão além da mera pretensão, atribuindo a sua preferência ao brilho superficial
das stars, dos filmes, das revistas e das decorações.20

A natureza traumática da transformação social não apenas desafia as preten-


sões estéticas de verdade e generalidade, como também coloca em questão
a hierarquia tradicional da qual a instituição da arte se valeu para excluir e
suprimir outras formas de cultura, em especial, a cultura mais física das clas-
ses inferiores. Em resenha de um livro sobre o circo (que, incidentalmente,
esboça alguns pensamentos centrais do ensaio sobre a fotografia), Kracauer
escreve: “Com o declínio da velha ordem social, colapsam os limites com os
quais a estética clássica havia nervosamente segregado a arte do picadeiro da
arte elevada” (Frankfurter Zeitung, 26 de julho de 1926).
Benjamin, desenvolvendo o conceito de “distração” de Kracauer em seu
ensaio “A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução”, traça um
paralelo entre o desafio da cultura de massa à estética tradicional e o ata-
que da arte de vanguarda às instituições artísticas desde o seu interior (como
nas manifestações de Dada).21 Para Kracauer, as vanguardas artísticas são não
apenas um modelo crítico (o qual, no momento em que Benjamin escrevia o
referido ensaio, já pertencia ao passado), como também ela própria um sin-

20 “Kult der Zerstreuung: Über die Berliner Lichtspielhäuse”, Frankfurter Zeitung, 4 mar. 1926;
tradução de Thomas Y. Levin, em New German Critique, número 40, inverno 1987, p. 94,
tradução modificada. Na presente edição, p. 343.
21 Walter Benjamin, “A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução”, segunda versão
(1936), seção XIV. Os pensadores. Tradução de José Lino Grünewald. São Paulo: Abril Cul-
22 tural, 1975, pp. 9-34.
toma da crescente distância entre a esfera da verdade e a existência moderna,
e do dilema resultante daquela distância para o artista contemporâneo. Em
um ensaio escrito ainda com o tom teológico inicial, “O artista em seu tempo”
(publicado no periódico judaico Der Morgen), Kracauer descreve aquele di-
lema como um problema de conexão [Verknüpfung], de estreitar a distância
entre os princípios da criação estética e a necessidade de confrontar a reali-
dade contemporânea. Antes de citar exemplos da poesia, arte e música (e, em
seguida, apenas de forma breve, contrastar o expressionismo com variações
da Neue Sachlichkeit e do construtivismo), ele retorna mais uma vez ao filme
de Grune, A rua.
A leitura anterior do filme é retomada como uma alegoria da vida após a
queda, mas a conduz adiante para identificar sua atitude como se fosse com-
partilhada por “seres humanos que se engajam seriamente com a realidade e
por isso são duplamente afetados pelo poder das forças que hoje transformam
o mundo em uma via urbana, deformando-o”. Essas pessoas não mais “espe-
ram” pacientemente, mas ficaram impacientes com a “tentativa romântica de
embelezar as realidades da tecnologia e da economia”.

Eles farão qualquer coisa que estiver a seu alcance para fazer o mundo revelar seu
caráter fantasmagórico, para deixar o Nada reinar como quiser. Eles são niilis-
tas em nome do positivo e se apressam em direção ao fim do desespero, com re-
ceio de que um “sim” interrompa aquele processo a meio caminho e o torne sem
efeito… Portanto, eles hiperbolizam a negação, estendem o vazio e rejeitam a alma
onde ela é apenas um fingimento. Eles acreditam que a América [uma metáfora
contemporânea para a modernidade desencantada] desaparecerá apenas quando
descobrir-se a si mesma completamente…22

Claramente, Kracauer vê a si mesmo como um desses “niilistas”, ainda que ele


os conclame a não abandonar a esperança pela revelação da verdade ausente;

22 “Der Künstler in dieser Zeit”, Der Morgen, 1.1, abril 1925, pp. 105-06. A seção sobre A rua
foi republicada, sob o título “Filmbild und Prophetenrede”, em Frankfurter Zeitung, 5 mai.
1925. 23
do contrário, eles apenas reproduzirão a lacuna entre “a imagem cinemato-
gráfica e a profecia”.23
O gesto radical de Kracauer no ensaio é sua passagem de questões me-
tafísicas e filosóficas à discussão do filme – sem desculpas, justificativas
ou explicações. Ele não aborda a questão sobre o cinema em geral, ou esse
filme em particular, ser arte. Em um mundo moderno que, para parafrasear
a afirmação de Rabinbach sobre Benjamin, “não sofreu apenas o desen-
cantamento, no sentido que Weber dá ao termo, [mas] foi infinitamente
empobrecido e privado de um discurso que pudesse adumbrar a natureza
da experiência”,24 o significado do cinema como um tal discurso era muito
mais urgente para Kracauer do que o problema de seu valor estético. Por-
tanto, um filme como A rua serve a Kracauer como um instrumento de
diagnóstico ou, mais precisamente, como uma forma de visão que ele iden-
tifica com seu próprio discurso histórico-filosófico. A função do cinema
no contexto da arte e cultura contemporâneas é expressar o dilema, não
necessariamente resolvê-lo.
Em 1926, no entanto, Kracauer estava ciente de que a produção cinemato-
gráfica média não fazia mais do que avançar a negatividade do processo his-
tórico. Ao contrário, o cinema parecia inclinado a exceder a cultura burguesa
ao remendar os efeitos de desintegração e petrificação. Como nota Kracauer,
de forma gentilmente sarcástica, no final de seu ensaio “O mundo de calicó”
(Frankfurter Zeitung, 28 de janeiro de 1926). Uma viagem encantada pelos
cenários surrealistas do estúdio UFA, a tarefa do diretor consiste na:

difícil tarefa de dar ao material de imagens aquela unidade que está na bela de-
sordem como a própria vida que a vida deve à arte […] Em geral o final é feliz: as
nuvens de vidro formam-se e dissipam-se. Acredita-se nas quatro paredes. Tudo
é natureza garantida (p. 310).

23 Siegfried Krakauer, loc. cit., p. 106.


24 24 Rabinbach, op. cit., p. 102.
Por volta dessa época, Kracauer também começa a criticar a gentrificação das
salas de cinema e das práticas de exibição, contrastando formas anteriores,
anárquicas, de distração com o entretenimento cultivado que estava tomando
o seu lugar, o “voyeurismo ligado à experiência real” com a “diversão” propor­
cionada pela produção mediana.25
A avaliação do cinema elaborada por Kracauer a partir de uma filosofia da
história dá lugar paulatinamente a uma abordagem comprometida com a crí-
tica da ideologia – que antecipa de maneira crucial a denúncia de Horkheimer
e Adorno da indústria cultural. Essa mudança, que em alguma medida re-
flete suas leituras de Marx, no ano anterior, é apontada na crítica de Kracauer
de O encouraçado Potemkin intitulada “Die Jupiterlampen brennen weiter”
(“Os refletores ainda estão acesos”, Frankfurter Zeitung, 16 de maio de 1926).
Ele saúda o filme de Eisenstein como uma ruptura radical vis-à-vis o grosso da
produção cinematográfica americana e europeia, não por razões estéticas mas
porque, pela primeira vez, um filme abordou um tema “real” e fala “da verdade”
relevante. Essa verdade é “a luta dos oprimidos contra os opressores”; é “o mo-
mento da revolução”.26 Com sua crítica, Kracauer se junta a Herbert Ihering, Lu
Märten, Benjamin e outros críticos na campanha de defesa do Potemkin contra
a ameaça de censura e abuso político. Nos termos de sua teoria do cinema em
formulação, no entanto, o imperativo político que obriga o cinema a expressar
a “verdade” como um termo positivo toma o lugar de sua função anterior de
capturar e apresentar de forma hiperbólica a negatividade da história, o fan-
tasma da realidade de um mundo após a queda.
Ao contrário, Kracauer passa a considerar a conexão sistemática entre o
cinema enquanto empresa capitalista e a mensagem social dos filmes, a cons-

25 “Das Geheimnis von Genf ”, Frankfurter Zeitung, 29 mar. 1928. Ver também “Kult der
Zerstreuung: Kino in der Münzstrasse”. Frankfurter Zeitung, 2 abr. 1932. Republicado em Sie-
gfried Kracauer, Strassen in Berlin und anderswo. Berlim: Arsenal, 1987, pp. 69-71; e, em es-
pecial, “An der Grenze des Gestern: Zur Berliner Film und Photoschau”. Frankfurter Zeitung,
12 jul. 1932.
26 “Die Jupiterlampen brennen weiter: zur Frankfurter Aufklärung des Potemkins-Film”. Frank-
furter Zeitung, 16 mai. 1926. Republicado em Siegfried Kracauer, Kino: Essays, Studien, Glos-
sen zum Film, ed. Karsten Witte. Frankfurt/Main: Suhrkamp, 1974, pp. 72-76. 25
piração entre indústria e público. De 1927 em diante, suas críticas e ensaios ex-
ploram as fórmulas ideológicas pelas quais o cinema transmuda contradições
sociais e econômicas em fábulas de sucesso individual, aventuras exóticas e
sentimentalismo. Na série “As pequenas balconistas vão ao cinema” publicada
anonimamente (Frankfurter Zeitung, março de 1927, O ornamento da massa,
p. 311), Kracauer expõe em linhas gerais uma gama de “temas típicos” recorren-
tes nas produções médias. Esses temas indicam “como a sociedade deseja ver a
si mesma” e, portanto, oferecem um exemplo do alcance da ideologia corrente.
O que faz dessas fábulas algo tão questionável não é seu caráter fantasioso,
pois Kracauer insistentemente faz a defesa da improbabilidade das aventuras
no estilo Kolportage ou “filme policial” contra as pretensões do filme de arte,
do drama histórico, ou sua bête noir, o “filme de sociedade” [Gesellschaftfilm].
Na verdade, o problema está em seu modo específico de deformar, embelezar,
distorcer, reprimir uma realidade social que deve ser filmada. “O que deveria
ser projetado na tela é deixado de lado e imagens enganadoras, que nos afas-
tam da imagem da existência, enchem a superfície”. O filme de ficção mediano,
afirma Kracauer em um ataque cáustico em “Cinema, 1928”, é nada mais do
que uma “tentativa de escapar” dos problemas do presente. Essa abordagem
predomina nos seus escritos sobre cinema até 1933; ela retorna, a partir de uma
perspectiva histórica modificada, em De Caligari a Hitler, sua “história psico-
lógica do cinema alemão”, escrita no exílio e publicada em 1947.27
Nesse livro, o filme de Grune reaparece, dessa vez como um “produto apo-
lítico da vanguarda”. De acordo com Kracauer, o filme fez um sucesso razoá­vel
com uma audiência ampla “que era, no entanto, principalmente de intelectuais”.
Enquanto ainda elogia o esforço “realista” do caráter cotidiano do cenário do
filme, A rua aparece agora como uma alegoria para o movimento regressivo da
rebelião à submissão, um tema central de De Caligari a Hitler. O protagonista

27 Para resenhas em que Kracauer desenvolve uma crítica da ideologia sob a perspectiva dos
efeitos sobre o espectador ver, por exemplo, “Eine Berliner Range”, Frankfurter Zeitung, 23 abr.
1927 (que começa com o lamento, “Ach diese Berliner Geselschaftsfilme!” [Ah, esses filmes
berlinenses de sociedade!]); “Kiki”, Frankfurter Zeitung, 1 abr. 1927; “Klettermaxe”, Frank-
furter Zeitung, 10 mar. 1927; “Eine Dubarry von heute”, Frankfurter Zeitung, 19 fev. 1927; e
26 “Heute tanzt die Marriet’”, Frankfurter Zeitung, 14 abr. 1928.
errante é reduzido a um tipo social, um filisteu agindo segundo mecanismos
historicamente específicos e – retrospectivamente, politicamente fatais – psi-
cológicos.28 Com essa análise, Kracauer não muda apenas seu quadro analítico,
da filosofia da história à crítica da ideologia; ele também renega sua fascina-
ção anterior pelo filme, sua identificação crítica com a experiência do errante
duplamente exilado.
Seria ingenuidade ignorar as razões para essa mudança. Em fins dos anos
1920, a situação política na Alemanha (da qual Kracauer tinha muito mais
consciência do que seu amigo Adorno) exigia intervenções mais específicas da
parte dos intelectuais do que as teorias de racionalização, reificação e alienação
fundamentadas em uma teologia negativa. Se, ironicamente, o ponto de vista
teológico havia capacitado Kracauer a abandonar o domínio da cultura bur-
guesa e do idealismo filosófico e dirigir seu olhar materialista aos meios de con-
sumo de massa, a crescente cumplicidade social e contestação política desses
meios demandava uma linguagem diferente. A “espera” que Kracauer julgara
ser a única atitude possível a ser adotada pelos intelectuais estava agora sendo
involuntariamente realizada pelos milhares, se não milhões, de indivíduos, à
espera nas filas para pão, nas agências de emprego, nas salas de cinema abertas
o dia todo, ou em abrigos aquecidos.29 À época em que De Caligari a Hitler foi
escrito, as consequências apocalípticas da obra anterior de Kracauer haviam
sido realizadas com uma vingança: o jogo de azar radical do processo histórico
havia sido perdido, em uma catástrofe inimaginável.
Seria equivocado, no entanto, apresentar a relação entre a sua primeira teo-
ria do cinema, de inspiração teológica, e seu comprometimento crescente com
a crítica da ideologia a partir de 1926 como se fossem fases cronologicamente
distintas de um desenvolvimento linear. Na verdade, os dois discursos andam
paralelamente e se entrelaçam, com ênfase variada e diferentes graus de con-

28 Siegfried Kracauer, De Caligari a Hitler: uma história psicológica do cinema alemão. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988, pp. 119-123. Ver também Kracauer, Theory of Film, p. 72.
29 “Arbeitsnachweise”, Frankfurter Zeitung, 17 jun. 1930; “Wärmehallen”, Frankfurter Zeitung,
18 jan. 1931; “Kino in der Münzstrasse”, Frankfurter Zeitung, 2 abr. 1932; todos republicados
em Siegfried Kracauer, Strassen in Berlin und anderswo. 27
tradição, em toda a obra posterior de Kracauer. Isso é evidente acima de tudo
em seu conceito de “realidade”, cujo sentido oscila entre conotações metafísicas
e materiais, perceptivas, sociais, psicanalíticas, ideológicas e políticas.30
Já no ensaio “Aqueles que esperam”, a noção de “realidade” de Kracauer co-
meça a deslizar da “esfera espiritual”, cujo sentido se esvaiu, à esfera da existência,
da multiplicidade alienada, confusa, contraditória da vida moderna. Kracauer
afrouxa o vínculo com o real, com a “verdade” ausente em favor de uma afinidade
com o fenomênico, o “concreto”, o “profano”: o lugar próprio da verdade… é em
meio à vida pública “comum”. A rejeição incondicional de Kracauer de formas
metafísicas de renovação o forçou a submergir no mundo decaído, buscando
envolvimento com suas formas, movimentos e ornamentos desconhecidos.
Em certa medida, esse envolvimento era estratégico, uma forma de transformar
a realidade por meio de uma subversão mimética. Como escreve em “Forma e
desintegração”, a “vida real” (ainda comprometida com a “verdade” ausente) pre-
cisa vestir “a máscara do desrealizado e do vulgar a fim de afetar uma realidade
que continua a dominar ali onde ela é vulnerável. Pode ser que, com o intuito
de mudar aquela realidade de forma decisiva, seja [preciso aplicar uma alavanca
em seu próprio meio]…” (Frankfurter Zeitung, 21 de agosto de 1925).
A oscilação do crítico entre verdade e existência, os polos da realidade, é
condensada no paradoxo de uma “realidade des-realizada”, uma presença mate-
rial desprovida de substância ostensiva ou origem. A partir de meados de 1920,
Kracauer procura colocar esse paradoxo em movimento, liberar sua contradi-
ção paralisante em favor da possibilidade da ação política. Em análise da topo-
grafia social de Paris, por exemplo, ele dissolve a articulação dupla de classe e
cultura de consumo em uma configuração de centro e periferia.31 Ele contrasta
os faubourgs, lugar da pobreza e do valor de uso, com a abundância de merca-
dorias, imagens, anúncios, luzes e publicidade dos bulevares e conclui:

30 Sobre o conceito de realidade em Kracauer ver Leo Haenlein, Der Denk-gestus des aktiven
Wartens im Sinn-Vakuum der Moderne: Zur Konstituition und Tragweite des Realitätskonzepts
Siegfried Kracauers in spezieller Rücksicht auf Walter Benjamin. Frankfurt/Berna/Nova York:
Lang, 1984.
28 31 Mülder-Bach, “Mancherlei Fremde”, op. cit., p. 63.
As largas avenidas vão dos faubourgs ao esplendor do centro. Mas este não é o cen-
tro que se quer. A felicidade que almejam os pobres lá fora é acessível por outras
vias do que as que existem atualmente. Devem, portanto, percorrer as ruas até o
centro, pois seu vazio é hoje bem real. (p. 60)

A migração da realidade para o centro vazio desafia a própria distinção entre


real e irreal, entre uma essência anterior e um reino superficial de imagens.
Kracauer traduz o aforismo de Wilde sobre a imitação da arte pela natureza
na observação de que a vida social se tornou indistinguível do cinema. Com-
parando os hóspedes de um hotel de luxo com suas contrapartes bidimensio-
nais dos filmes de sociedade, ele indaga, “teriam elas baixado das telas a uma
existência efêmera ou seriam os filmes modelados a partir deles? Chega a pa-
recer que vivem pela graça de um diretor imaginário”.32 Já no ensaio “As pe-
quenas balconistas vão ao cinema” ele nota uma convergência entre os níveis
cinematográfico e extracinematográfico da realidade, atribuindo esse efeito a
credulidade e conformismo das mulheres espectadoras. “Em geral, os filmes
sensacionalistas de sucesso e a vida correspondem entre si, pois as senhori-
tas datilógrafas moldam a sua vida segundo os exemplos que veem na tela de
cinema. No entanto, pode ser que os exemplos mais hipócritas sejam aqueles
roubados da vida” (p. 313).
Essa observação de Krakauer parece antecipar o tema pós-moderno da
implosão da realidade em imagens, da passagem da representação à simula-
ção. Mas Kracauer não deve ser reduzido a um hiper-realista baudrillardiano,
da mesma maneira que não deve ser descartado por ser um realista ingênuo.
Na medida em que os desenvolvimentos históricos justificaram tais análises,
ele estava certamente tão disposto quanto, digamos, Adorno, a reconhecer
a transformação fundamental das relações de representação e recepção em
curso no campo da cultura e consumo de massa. Isso não significa, porém, que
ele teria descrito, muito menos endossado, aquele processo de forma acrítica.
Para Kracauer, a fascinação com os efeitos superficiais do cinema e sua fun-

32 “Im Luxushotel”, Frankfurter Zeitung, 14 set. 1928. O próprio Kracauer invoca o aforismo de
Wilde em um artigo sobre “Atrizes belas”, Frankfurter Zeitung, 8 dez. 1928. 29
ção ideológica estavam inseparavelmente relacionadas: a realidade ataca as
fronteiras entre ambas.33
Por problemática que seja a abordagem de “As pequenas balconistas”, em
especial no que diz respeito a questões de gênero, o ensaio estende o conceito
de realidade com a finalidade de incluir uma dimensão psicossocial: “As fan-
tasias idiotas e irreais dos filmes são os sonhos cotidianos da sociedade, nos
quais se manifesta a sua verdadeira realidade e tomam forma os seus dese-
jos de outro modo represados”(p. 313). Enquanto essas fantasias se voltam às
imbricações do romance e da mobilidade social, seu discurso transcende os
limites de classe em um mise-en-abîme do imaginário social: “Na realidade
não ocorrerá com frequência que uma faxineira se case com o proprietário
de um Rolls Royce; por outro lado, não é o sonho de todo proprietário de
Rolls Royce que as faxineiras sonhem em ascender até eles?”. Ao avaliar a
força de tais fantasias, Kracauer joga duas noções de realidade uma contra
a outra: “Ao contrário: quanto mais incorretamente apresentam a superfície
das coisas, tanto mais corretos eles se tornam e tanto mais claramente refletem
o mecanismo secreto da sociedade”. Segundo esse modelo essencialmente freu-
diano de análise cultural, a realidade reside tanto nos mecanismos de repressão
quanto no conteúdo reprimido; em outras palavras, a realidade só pode ser
compreendida em suas contradições.
Os objetos da repressão coletiva não são apenas “desejos coletivos” que
eventualmente irrompem nas fantasias cinematográficas, mas, principal-
mente, aquilo de que os espectadores desejam escapar: “a existência normal
em seu horror imperceptível [das normale Dasein in seiner unmerklichen
Schrecklichkeit]”.34 Ao mesmo tempo que se mostra fascinado pelo hotel de
luxo como espaço de simulação, Kracauer não deixa dúvidas quanto ao caráter
exclusivo daquele espaço e de seus habitantes (“eles se assemelham aos lírios

33 Discordo neste ponto de Thomas Elsaesser, que afirma que a crítica da ideologia de Kra-
cauer obscurece e por isso “falsifica” sua “preocupação [proto-pós-moderna] com o cinema
enquanto esfera marginal da vida e sua fascinação com o cinema enquanto experiência de
efeitos de superfície”. “Cinema – The irresponsible signifier or ‘The Gambler with History’:
film theory or cinema theory?”. New German Critique, número 40, inverno 1987, p. 82.
30 34 Siegfried Kracauer, Die Angestellten (1929), em Schriften 1, p. 298.
do campo: em vez de preocupações, têm iates”). Se para um pós-modernista
como Baudrillard a implosão da realidade é universal e completa (indepen-
dentemente de qual seja a experiência subjetiva-pragmática dos indivíduos),35
para Kracauer é ainda uma questão de perspectiva, de horizonte social, isto é,
de classe, daquela experiência. Assim, ele entende até mesmo as “imagens es-
paciais” das agências de emprego como “sonhos da sociedade”, “hieróglifos” a
serem decifrados em termos da realidade social.36 A analogia entre os espaços
da fantasia e as áreas de exigências que eles reprimem apenas ressalta a con-
tradição: essas áreas fazem parte da autorrepresentação da sociedade, mesmo
que – e porque – permanecem escondidas do olhar público. Portanto, Kracauer
repetidamente relaciona a realidade da produção e circulação contemporânea
de imagens à realidade de seus limites: a injustiça, a pobreza, o sofrimento e a
morte. “A fuga das imagens é a fuga da revolução e da morte.”37
Poderia-se dizer que a insistência de Kracauer com a discrepância entre a
realidade do novo meio de consumo e uma realidade mais autência do sofri-
mento humano assume a função do conceito de verdade transcendentalmente
fundamentado de seus escritos anteriores, de inclinação teológica. Em um

35 Ver, por exemplo, de Jean Baudrillard, “The Ecstasy of Communication”, tradução de John
Johnston, em Hal Foster (ed.), The Anti-Aesthetic: Essays on Postmodern Culture. Seattle: Bay
Press, 1983, pp. 133, nota 4.
36 “Arbeitnachweise”, em Strassen, p. 52. Ver também a discussão da noção de “imagens espa-
ciais” [Raumbilder] enquanto sonhos da sociedade, e a sugestão benjaminiana da cidade
enquanto “coletividade sonhadora”, na carta de Adorno a Kracauer, 25 de julho de 1930, e a
resposta de Kracauer, 1 de agosto de 1930, “Kracauer Papers”, Marbach.
37 Siegfried Kracauer, Die Angestellten, op. cit., pp. 248 e 289. O capítulo sobre a cultura do la-
zer dos empregados de colarinho branco é intitulado “Asyl für Obdachlose” que faz alusão
à experiência de “desabrigo transcendental”, agora um fenômeno de massa, mas também se
refere à inseparabilidade estrutural do glamour da cultura de massa e a miséria da qual ela
tenta fazer as pessoas se esquecerem. Em tom semelhante, a execução de Sacco e Vanzetti se
torna um tema recorrente nos artigos de Kracauer de 1927, como em, por exemplo, “Amerika
im Film”, Frankfurter Zeitung, 24 ago. 1927: “A outra América, não a real, que executou Sacco
e Vanzetti”. E ele acha especialmente polêmicos o sentimentalismo e o sadismo da versão
feita pela Universal Films em 1927 de Uncle Tom’s Cabin, “porque ela nos lembra da luta dos
negros pela libertação que não foi filmada”, Frankfurter Zeitung, 6 mai. 1928. 31
sentido epistemológico estrito, isso talvez seja correto, mas na prática a rela-
ção entre dois tipos de realidade assume com mais frequência a forma de uma
constelação que o crítico constrói a partir da estrutura contraditória da vida
social contemporânea.38 O que parece ser mais problemático é a lógica econô-
mica que exige que a expansão de uma realidade só possa ocorrer às custas da
outra (“a fuga das imagens é a fuga de…”). Kracauer desenvolve pela primeira
vez essa tese no ensaio sobre a fotografia, a partir da oposição entre a imagem
fotográfica e imagem da memória, e na noção concomitante de que a proli-
feração de imagens fotográficas (nos cinejornais e nas revistas ilustradas, por
exemplo) reduz a capacidade de rememoração involuntária dos seres huma-
nos. Assim como Benjamin em seu ensaio sobre Baudelaire, Kracauer invoca
Bergson e Proust, e com eles uma tradição judaica segundo a qual a memória
é lançada contra o impulso adiante da história.39 Em artigo sobre a estreia em
Frankfurt de dois filmes sonorizados, ele conclui:

O cinema sonorizado é até agora o vínculo final na cadeia de uma série de inven-
ções poderosas que, com certeza cega e como se guiada por um desejo secreto,

38 Metodologicamente, a prática crítica de Kracauer durante esse período corresponde a sua


defesa da montagem na estética cinematográfica, que enfatiza a construção mais do que a
representação ponto a ponto da realidade. Criticando uma resenha socialdemocrata que
reclama da ausência da força de trabalho em um cinejornal especial, Kracauer faz a objeção
de que é, antes, uma questão de “mudança de arranjo”: “Fosse o falatório sem sentido subs-
tituído por uma construção [Anordnung] na qual uma imagem pudesse comentar a outra, a
força de trabalho não precisaria necessariamente aparecer em carne e osso mas poderia,
por assim dizer, aparecer nas entrelinhas”. Frankfurter Zeitung, 22 set. 1931, republicado em
Siegfried Kracauer, Kino: Essays, Studien, Glossen zum Film, p. 15.
39 Walter Benjamin, “Sobre alguns temas em Baudelaire” (1939), em Obras escolhidas 3 – Charles
Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. Tradução de José Martins Barbosa e Hemerson
Alves Baptista. São Paulo: Brasiliense, 1989, pp. 103-49; e seu ensaio sobre Nicolai Leskov, “O
narrador” (1936-7), Obras escolhidas 1 – Magia e técnica, arte e política. Tradução de Sérgio
Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994, pp. 197-221. Ver também Siegfried Kracauer,
History. The Last Things Before the Last, pp. 82-86, 160-63 e passim. Sobre a oposição entre
história e memória na tradição judaica ver Yosef Hayim Yerushalmi, Zachor: Jewish History
32 and Jewish Memory. Seattle/Londres: Washington University Press, 1982.
empurra em direção à representação completa da realidade humana. Isso torna-
ria possível, em princípio, arrancar a totalidade da vida de sua transitoriedade e
transmiti-la na eternidade da imagem.

No entanto, ele imediatamente qualifica esse adágio protobaziniano. A cap-


tura cinematográfica total da realidade se estende apenas àqueles aspectos da
vida que se manifestam espacialmente e correspondem ao tempo mensurável,
cronológico, denunciado por Bergson – em oposição ao tempo da experiência,
o tempo da Recherche de Proust:

A realidade preservada no filme sonorizado corresponde tão pouco à realidade


que Proust tinha em mente, que as duas excluem, mais do que complementam,
uma à outra… É como se os seres humanos estivessem perdendo a vida intensiva
que resiste à sua transformação em imagem à medida que se tornam capazes de
capturar a vida extensiva, espacial.40

Há sem dúvida uma conexão entre a explosão histórica da produção mecânica


– e eletrônica – de imagens e o declínio de certas formas de memória, mas isso
não deve conduzir necessariamente a conclusões conservadoras. Tampouco
Kracauer ou, igualmente, Benjamin, desejariam descartar a possibilidade de
que o cinema e a fotografia tenham viabilizado novas formas de memória e
experiência (que para ambos são dois termos quase sinônimos).41 No mesmo
artigo sobre o cinema sonorizado Kracauer de fato considera essa possibilidade,
convocando a tecnologia de sonorização para o projeto de redenção: “Resgatar
a algazarra desprovida de intenção das ruas para uma intervenção no nosso
mundo é a tarefa exclusiva do novo recurso técnico, assim como tornar acessível

40 “Tonbildfilm: Zur Vorführung im Frankfurter Gloria-Palast”, Frankfurter Zeitung, 12 out. 1928.


Republicado em Siegfried Kracauer, Schriften 2. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1979, p. 411.
41 Sobre o conceito de experiência em Benjamin, ver Marleen Stoessel, Aura, das vergenesse
Menschliche: zur Sprache und Erfahrung bei Walter Benjamin. Munique: Hanser, 1983; sobre
o papel do cinema em relação a esse conceito, ver meu ensaio “Benjamin, cinema and ex-
perience: ‘The Blue Flower in the Land of Technology’”, New German Critique, número 40,
inverno 1987, pp. 179-224. 33
à consciência a vida de luz e sombras era tarefa da técnica cinematográfica
prévia”.42 Mais do que o jogo formal de luz e sombras, recursos cinematográfi-
cos como o close, o movimento de câmera e a edição são capazes de capturar o
mundo das coisas em sua interdependência habitual, inconsciente, com a vida
humana, com as marcas das relações sociais, psíquicas e eróticas. Escrevendo
sobre Thérèse Raquin, de Jacques Feyder, Kracauer exalta a representação do
apartamento pequeno-burguês parisiense, “que é habitado por fantasmas”:

cada peça da mobília está repleta dos destinos que se desenrolaram no passado. Há
uma cama dupla, a poltrona alta, a prataria – todas essas coisas têm a qualidade de
testemunhas: estão palpavelmente embebidas de substância humana e agora elas
são capazes de falar, muitas vezes melhor do que os seres humanos são capazes. Em
quase nenhum filme – excetuando os filmes russos – o poder das coisas mortas foi
trazido à força à superfície de forma tão ativa e completa como aqui [Frankfurter
Zeitung, 29 de março 1928].43

A atribuição de uma nova forma de capacidade anamnésica ao cinema por


Kracauer toca na conhecida metáfora benjaminiana de um “inconsciente ótico”,
que se refere à capacidade da câmera de explorar um “espaço inconsciente-
mente permeado”.44

42 “Tonbildfilm”, em Siegfried Kracauer, op. cit., pp. 410-11. O parágrafo conclui: “O filme so-
norizado irá atingir seu verdadeiro significado apenas quando desvelar uma existência antes
desconhecida, os sons e ruídos que nos cercam que nunca comunicaram com as impressões
visuais e sempre iludiram os sentidos”. Em diversas críticas após a introdução da sonoriza-
ção, Kracauer esboça algo como uma fenomenologia cinematográfica do ruído – contra a
dominação da voz enquanto diálogo – reminiscente de direções similares na música mo-
derna de Russolo a Cage, passando por Satie. Sobre o significado da sonorização na teoria
do cinema de Kracauer, ver artigo recente de Helmut Lethen, “Sichbarkeit: Kracauers Lie-
beslehre”, em Michael Kessler e Thomas Y. Levin (ed.), Siegfried Kracauer: Neue Interpreta-
tionen. Tübingen: Stauffenburg Verlag, 1990, pp. 195-228 e 205-14.
43 Republicado em Witte, op. cit., pp. 136ss.
44 Walter Benjamin, “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, op. cit. Ver tam-
34 bém Hansen, “Benjamin, cinema and experience”, loc. cit., pp. 207-12.
Como Benjamin e, antes dele, Béla Balázs, Kracauer adapta o método fisio-
nômico, a interpretação do caráter a partir de traços faciais imperceptíveis, ao
reino da estética do cinema e seus parâmetros psicossociais. Mas ele insiste de
forma mais enfática do que Balázs no papel da linguagem na relação do cinema
com a realidade. Em resenha do livro de Balázs, Der sichtbare Mensch oder die
Kultur des Films [O homem visível ou a cultura do cinema], de 1924, ele parafra-
seia o argumento do livro em termos definitivamente linguísticos: “assim como
as pessoas na tela se mantêm caladas… as coisas são dotadas de uma língua.
Pela primeira vez, talvez, elas falam. O cinema recupera a ‘pequena vida’ das
coisas e a insere no mundo dos símbolos” (Frankfurter Zeitung, 10 de julho de
1927). Uma vez que a linguagem é o meio de redenção (aqui também Kracauer
é fiel ao pensamento messiânico),45 a relação do cinema com a realidade implica
um trabalho duplo de transcrição: no nível da produção, na seleção e constru-
ção do material por meio de técnicas cinematográficas; e no nível da recep-
ção, na atividade interpretativa de espectadores e críticos. A rejeição de Balázs
da linguagem verbal (isto é, escrita), segundo Kracauer um “sério equívoco”
[schlimme Entgleisung], o leva a uma fusão romântica de fisionomia e luta de
classes, uma confusão entre a mera visibilidade e a realidade genuína.
Para Kracauer, a natureza que devolve o olhar do fisionomista da vida mo-
derna não é pré-verbal, tampouco primordial. A “dimensão material” explo-
rada pela câmera “às custas da dimensão intencional” é ainda um espaço social
e histórico, um espaço de maneira nenhuma isento de, ou oposto à, “ideologia”,
como ele mais tarde parece sugerir no epílogo da Teoria do filme. É a paisagem
alheia de um mundo decaído que confronta o espectador com os seus escom-
bros fragmentários e suas novas configurações. Quando Kracauer abandona
as premissas metafísicas sob as quais o mundo decaído nada mais significa do
que “desabrigo transcendental”, ele “calmamente” (ou talvez não tão calma-
mente) “embarca em viagens de aventura” pelas “ruínas esparsas”, que é como

45 “O pensamento enfoca a restauração de sentidos perdidos, conotações suprimidas, e está


muitas vezes ligado a um sentimento de redenção pela linguagem e pela leitura de textos que
revelam a presença oculta ou os indícios de uma época messiânica”. Rabinbach, “Between
Enlightenment and Apocalypse”, loc. cit., pp. 84-85. 35
a vida moderna se apresenta na passagem famosa de Benjamin, depois que o
cinema “explodiu o mundo-prisão [urbano e industrial] com a dinamite de um
décimo de segundo”.46 Ele o faz em uma progressão de disfarces e papéis, do
flâneur ao detetive ao chiffonnier ou Lumpensammler (uma imagem que herda
de Benjamin), um catador juntando os escombros deixados pela tempestade
do progresso, conferindo aos objetos encontrados a nova função de alegorias
da experiência moderna.47 Para Kracauer, como para Freud, há sentido em
tudo, mesmo no detalhe mais insignificante, mais desprezível, mesmo estando
afastados de seu contexto original; tudo, assim, exige interpretação.
Como Benjamin, fascinado pelos surrealistas, Kracauer tentou resgatar a
possibilidade da experiência da aura como um modo cognitivo em um mundo
pós-lapsariano, secular. Esse projeto é exemplificado em uma imagem do pen-
samento [Denkbild] chamada “Ansichtspostkarte” (“Cartão postal fotográfico”,
Frankfurter Zeitung, 26 de maio de 1936), que estranhamente torna literal e ao
mesmo tempo alegórico aquilo que Benjamin havia chamado, um ano antes,
referindo-se ao surrealismo, de “iluminação profana”.48 Kracauer descreve o
“brilho suave”, “tão apaziguante quanto inexplicável”, que parece emanar da
Kaiser-Wilhelm-Gedächtniskirche à noite. O brilho é na verdade um reflexo
– o “reflexo das fachadas de luz” pelas quais os cinemas imponentes do Kur-
fürstendamm berlinense, com seus pilares de luz, pôsteres reluzentes e vitrines
espelhadas, “transformam a noite em dia com o fim de banir o horror da noite

46 Walter Benjamin, Illuminations, p. 236.


47 Benjamin se refere a Kracauer como um Lumpensammler em uma resenha de Die Angestellten,
“Ein Aussenseiter macht sich bemerkbar”, em Gesammelte Schriften 3, Frankfurt am Main:
Suhrkamp, 1982. Kracauer mais tarde se lembrou desse epíteto com bastante orgulho; ver car-
tas a Adorno de 28 de agosto de 1954 e 16 de janeiro de 1964 “Kracauer Papers”, Marbach.
Benjamin comenta a figura do chiffonier em Baudelaire em Passagen, Gesammelte Schriften
5.1, Frankfurt am Main: Suhrkamp, pp. 441ss [ed. bras. Passagens, Belo Horizonte: Editora
ufmg: São Paulo: Imprensa Oficial, 2007, 1 a. reimpressão, pp. 395-96].
48 “Surrealismo: o último instantâneo da inteligência europeia”. Obras escolhidas 1 – Magia
e técnica, arte e política, pp. 21-35. Ver também Jürgen Habermas, “Consciousness-raising
or Redemptive Criticism: The Contemporaneity of Walter Benjamin” (1972). New German
Critique, número 17, primavera 1979, pp. 30-39 e 45-46; e Hansen, “Benjamin, cinema and
36 experience”, loc. cit., p. 193. “Ansichtspostkarte” foi republicado em Strassen, pp. 37-38.
do dia de trabalho de seus frequentadores”. Mas mesmo o esforço ideológico
agressivo, que vai além do objetivo de propaganda, cintila em termos ambíguos,
à maneira de oxímoros: “um protesto flamejante contra a escuridão de nossa
existência, um protesto de uma sede de vida que flui, como por si mesma, ao
enlace desesperado do comércio dos prazeres”. Adicionando outra conotação
à concepção de Kracauer, a Kaiser-Wilhelm-Gedächtniskirche exibe “o reflexo
não intencional desse brilho sinistro”:

O que o espetáculo de luzes deixou de lado e o que o comércio excluiu é preservado


pelas paredes desoladoras. O lado de fora da igreja, que não é ele próprio uma igreja,
se torna o refúgio daquilo que foi expulso e esquecido e que reluz de forma tão bela
como se fosse a mais sagrada das coisas sagradas. Lágrimas secretas encontram
assim seu lugar de recordação [Gedächtnis]. Não no interior escondido – no meio
da rua, aquilo que foi negligenciado e que é inconspícuo, é colhido e transformado
até que comece a radiar um conforto para todos.

Refugo do brilho implacável da simultaneidade e presença modernas, a fachada


luminosa do lugar obsoleto da interioridade se torna uma superfície para a re-
cordação (Kracauer faz um trocadilho com o nome da igreja), uma tela pública
ou, de forma menos pomposa, um cartão postal que nos convida a projetar
aquilo que está sendo eclipsado, ainda que indefinido e nada espetacular.
Enquanto o Kracauer moralista confronta seus leitores com as contradi-
ções da realidade cotidiana, diversos escritos seus anteriores a 1933 revelam
um veio surrealista: são propelidos por uma fascinação boquiaberta pelas no-
vas e estranhas cenas e justaposições, por uma curiosidade indomável pelo
desconhecido, pelo provisório e ainda indefinido, pelas configurações incon-
gruentes e pelos espaços de improvisação. Como Keaton, o cavaleiro silencioso,
Kracauer vaga pela floresta mágica da paisagem urbana moderna, mas, como
Kafka, sabe que esse conto de fadas não pode ter um final feliz, porque o fei-
tiço é real.49 O inverso do desejo de Kracauer de submergir-se no emaranhado

49 Ver, por exemplo, “Kalikowelt” e “Abschied von der Lindenpassage” (Frankfurter Zeitung,
21 dez. 1930), ambos republicados em O ornamento da massa. Na presente edição, → 37
da vida após a queda, no entanto, é sua postura pragmática de comentarista
diário da assim chamada produção mediana. Assim, mesmo as críticas mais
rotineiras dos filmes mais rotineiros, muitas vezes nada além do que sinopses
crescentemente desinteressadas, quando não paródias, das tramas, podem
conter uma ressalva sobre “as belas cenas naturais” ou sobre “tomadas do am-
biente urbano”, sobre estilos de atuação e interpretação, façanhas acrobáticas,
de montaria e dança, ou técnicas cinematográficas bem manejadas. Ainda, na
medida em que Kracauer é tanto um crítico de cinema quanto autor de rese-
nhas de filmes, ele frequentemente comenta a qualidade da exibição enquanto
performance, a experiência teatral mais do que a experiência cinematográfica,
elogiando em alguns casos o acompanhamento musical ou (mais raramente)
o comportamento da plateia.
O tema da “crítica redentora” em Kracauer, para tomar emprestada a ex-
pressão que Habermas usa em relação a Benjamin, está ligado à questão de
que tratarei no restante deste artigo – a questão da autopercepção metodoló-
gica e crítica. Pois penso que a inclinação gnóstico-messiânica dos primeiros
escritos de Kracauer sobre cinema e cultura de massa não apenas motivou o
seu interesse pela cultura de massa como objeto, mas também deu forma a sua
abordagem desse objeto. Essa abordagem é caracterizada por uma maneira
peculiar de entrelaçar experiência e crítica – um modo de interpretação que
é significativo não apenas em comparação com o purismo teórico de Adorno,

→ respectivamente p. 303 e p. 357. Benjamin exalta a força política das “sobreposições surrea-
listas” de Kracauer em sua resenha de Die Angestellten, em Gesammelte Schriften 3, p. 226.
Para a descrição feita por Kracauer de Keaton como um cavaleiro de conto de fadas, ver sua
crítica de Steamboat Bill Jr., em Frankfurter Zeitung, 27 nov. 1928, republicada em Siegfried
Kracauer, Kino: Essays, Studien, Glossen zum Film, p. 183-184. Para sua defesa da “improvisação”
ver, por exemplo, “Zirkus Sarrasani”, Frankfurter Zeitung, 13 nov. 1929; “Stehbars im Süden”,
Frankfurter Zeitung, 8 out. 1929, republicado em Siegfried Kracauer, Strassen in Berlin und
anderswo. Berlim: Arsenal, 1987, 2ª edição, p. 51 (“O valor das cidades é medido pelo número
de lugares que dedicam à improvisação”); “Der Eisenstein-Film”. Frankfurter Zeitung, 5 jun.
1928, republicado em Witte, op. cit., p. 79; e “An der Grenze des Gestern”. Frankfurter Zeitung,
38 12 jul. 1932.
e sua cegueira em relação à cultura de massa, mas também para os impasses
das teorias contemporâneas do cinema e das teorias da pós-modernidade.
Como se sabe, Adorno repreendia Kracauer por sua falta de dialética, uma
acusação que aparece cedo na longa correspondência dos dois, e que aparece
publicada na homenagem ambivalente de Adorno a Kracauer por seu aniver-
sário de 75 anos. A acusação é a de que Kracauer se detém a meio caminho
em seu embate com a antinomia de teoria e experiência. De um lado, Adorno
acusa Kracauer de subjugar o fenômeno da experiência à sua própria subjetivi-
dade crítica: “No olhar que é sugado para o interior do objeto, o lugar da teoria
está sempre já tomado pelo próprio Kracauer”.50 De outro, atribui a “priori-
dade do ótico” nos escritos de Kracauer à sua afinidade psicobiográfica com o
mundo danificado das coisas, uma cumplicidade que, na opinião de Adorno,
não deixa espaço para a “resistência à reificação”. Adorno não chega a afirmar,
mas insinua de forma complexa, que a imersão de Kracauer no mundo deca-
ído é equivalente a uma colaboração com o status quo.51 O que escapa à crítica
de Adorno – e o que parece sintomático nessas duas acusações conflitantes
– é que Kracauer poderia ver-se a si mesmo ao mesmo tempo como parte do
mundo decaído e comprometido com sua transformação.
Diversos ensaios de Kracauer de meados dos anos 1920 em diante exibem
uma mudança notável de perspectiva, em um mesmo texto, sobre o objeto de
cultura de massa em discussão. Assim como em sua leitura programática do
filme de Grune, ainda que com ênfase invertida, esses ensaios tendem a cons-
truir uma distância impessoal por meio de uma reflexão sociológica, de crítica
cultural, ou filosófica, para então mudar, em um determinado ponto, para a
voz da experiência pessoal, para a identificação e a participação. A mudança
é muitas vezes encenada por meio de uma passagem retórica da terceira para
a primeira pessoa, na maioria das vezes do plural ou, em outra variante, até

50 Theodor W. Adorno, “O estranho realista: sobre Siegfried Kracauer”. Tradução de Celeste


Aída Galeão. Notas de literatura. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1973, pp. 31-51.
51 Adorno, op. cit., p. 31. Sobre a longa amizade entre Adorno e Kracauer, ver Martin Jay,
“Adorno and Kracauer: Notes on a Troubled Friendship”, Salmagundi, número 40, inverno
1978. Republicado em Martin Jay, Permanent Exiles, pp. 217-36. 39
mesmo para a segunda pessoa do singular. Para tomar um exemplo do ensaio
sobre a fotografia, Kracauer descreve a foto de uma avó principalmente a par-
tir das reações dos netos: eles riem do vestido antiquado e, “mas expressam ao
mesmo tempo um certo espanto. Pois, por meio da ornamentação dos trajes,
da qual a avó desapareceu, acreditam tocar um instante do tempo passado,
tempo que não mais retorna”. Diversos parágrafos depois, perto do fim do
ensaio, o crítico assume o arrepio como seu: “Estas coisas foram coladas em
nós como nossa própria pele, como está colado em nós ainda hoje o que nos
possui. Nada disto nos contém e a fotografia reúne fragmentos em um nada”.
Daí que “quem observa velhas fotografias é tomado por calafrios”. Esse gesto
de identificação é significativo por causa de sua tensão com o argumento de
superfície do texto, que afirma que a fotografia, em especial após sua prolife-
ração pelas revistas ilustradas, é uma tentativa de reprimir o medo da morte,
em contraste com a imagem da memória na qual o pensamento a respeito da
morte ainda está presente. Ao atribuir à fotografia da avó o poder de inspi-
rar uma reflexão da – e sobre a – mortalidade, o escritor prepara a virada do
argumento do fim do ensaio, quando a negatividade fotográfica recebe uma
função no projeto de redenção.
As mudanças retóricas de perspectiva de Kracauer são especialmente in-
teressantes quando ele, ao passar para a primeira pessoa, identifica-se com
tipos de comportamento social, em particular com formas de consumo, que
ele havia previamente criticado a partir do que parecia ser um ponto de vista
culturalmente superior. Em ensaio sobre “A viagem e a dança” (Frankfurter
Zeitung, 15 de março de 1925. Nesta edição, p. 81), Kracauer interpreta a
ascensão do turismo e de formas modernas de dança como sintomas da
mecanização e da racionalização, da implementação de uma “pervertida oni-
presença em todas as dimensões calculáveis” (p. 86). Segundo a mesma aná-
lise, essas atividades de lazer são sintomáticas da “dupla existência” imposta
aos seres humanos que foram desligados da esfera espiritual. Ainda assim,
esse Ersatz não é apenas “real” em sua negatividade mas também oferece a
“possibilidade de uma relação estética em relação à fadiga organizada” (p. 88).
A virada da crítica à redenção é outra vez acompanhada por uma mudança
40 do sujeito gramatical:
“Somos como as crianças quando viajamos, nos alegramos e brincamos com a nova
velocidade, desta livre errância… Da mesma maneira, na dança, escandimos um
tempo até então inexistente, um tempo que nos foi preparado por mil invenções…
A técnica nos surpreendeu, as regiões que abriu estão ainda vazias…” (p. 89).

É difícil imaginar que Adorno pudesse escrever qualquer coisa parecida, apesar
de a crítica precedente de Kracauer não prescindir da perspicácia com a qual
o primeiro teria visto esses fenômenos. A diferença metodológica, nesse caso,
se reduz a uma questão de classe. Ao reconhecer que o comportamento social-
mente estereotipado e alienado faz parte de sua própria experiência, Kracauer
se recusa a deixar que seu privilégio intelectual o engane a respeito de seu status
social real – que, ao contrário de Adorno, era bastante próximo dos trabalhado-
res urbanos cujos hábitos de consumo e lazer estudava. Em sua série de ensaios
a respeito daquela nova classe, Die Angestellen [“Os empregados”, 1929], ele age
como um “observador participante” não apenas por questões de método socio-
lógico, mas porque ele sabia quão pouco o separava do destino daqueles.52
O sujeito que se move entre o exterior e o interior do material não é, evi-
dentemente, unificado, tampouco é o sujeito soberano, idêntico, da filosofia
transcendental e da cultura burguesa. É um sujeito “sem pele”, para modificar
a caracterização de Kracauer oferecida por Adorno; e ele sabe que é fragmen-
tário e precário. Ainda, ele parece ser atraído por situações pelas quais suas
próprias condições de possibilidade são ameaçadas. Tais situações são recor-
rentes nos escritos de Kracauer que retratam sua perambulação pelas ruas e
praças da cidade (como em sua “Memória de uma rua de Paris”), e estão no
centro da outra variação da mudança retórica, a mudança para a segunda
pessoa do singular. Em seu belo ensaio sobre “Tédio” (Nesta edição, p. 351),
por exemplo, o ato de ouvir rádio, e sua imposição sem limites do mundo a
nós, é comparado a “um desses sonhos sonhados com estômago vazio. Uma
bola minúscula rola de bem longe até você, expandindo-se em uma grande

52 Para um exemplo dessa atitude, ver Die Angestellten, em Schriften 1, pp. 221-22. Sobre a con-
cepção de Kracauer do intelectual como empregado de colarinho branco, ver Hans G. Helms,
“Der wunderliche Kracauer”, parte 1, Neues Forum, número 18, jun./jul. 1971, p. 28. 41
tomada e urrando sobre você; você não pode detê-la, escapar dela também
não, permanece aguilhoado como um bonequinho impotente…”. No ensaio
intitulado “O olhar proibido” (Frankfurter Zeitung, 9 de abril 1925), a figura
da boneca (ou marionete) reaparece em um cenário igualmente masoquista e
paranoico e é outra vez introduzido por uma passagem da descrição em ter-
ceira pessoa a um “tu” enfático. A fonte da ansiedade paralisante nesse caso é
a pianella, um mecanismo musical dotado de marionetes dançarinas feéricas,
que é a peça central de um restaurante miserável. O texto, em crescendo, chega
a um ponto no qual o espectador, enfeitiçado pela mágica dos espelhos, luzes
e movimento, é tomado por um choque: “despertas de repente de um sonho;
mas não despertas para a realidade, pois um véu se rompe e agora, naquele
exato momento, o fantasma aparece”. O fantasma surge das figuras dançantes
de um século que passou, mas é uma emanação do olhar proibido que pertence
ao limbo dos mortos não redimidos. “É assim: um encontro ocorre entre seres
que não existem realmente, tu, que és também um fantasma no nada vazio, és
assombrado por figuras amaldiçoadas que te recusam passagem e, ao contrá-
rio, te arrastam para dentro do reino da perda”.53
Tais cruzamentos marcam a passagem do próprio Kracauer pelo “centro
vazio”, para retomar sua caracterização do mapa de Paris. Pois a violação deli-
berada – que beira a aniquilação – do ego burguês não é apenas uma fantasia
da sensibilidade masoquista; é, antes, a própria condição da experiência para
Kracauer. Mesmo na Teoria do filme, Kracauer faz que a descoberta pela câ-
mera do “mundo material com suas correspondências psicofísicas” dependa
da abdicação do sujeito unificado: “somos livres para experienciá-lo [isto é, o
mundo em seu estado de dormência] porque somos fragmentados”.54 O con-
ceito de experiência de Kracauer deve a formulação tanto a Freud quanto a

53 Siegfried Kracauer, Strassen, p. 74. A pianella descrita por Kracauer prefigura estranhamente
um objeto semelhante – e efeitos semelhantes – do filme de Fedor Ozep, Der lebende Leich-
nam, de 1928, que Kracauer resenhou para o Frankfurter Zeitung de 28 de fevereiro de 1929.
54 Idem, Theory of film, p. 300. Antes, no mesmo livro, Kracauer vincula essa receptividade
“fragmentada” à disposição psíquica à melancolia e ao sentimento de distanciamento de si
(v. pp. 16-17). Ver também sua defesa da passividade e da autoanulação como virtudes epis-
42 temológicas em History: The Last Things Before the Last, pp. 84-86.
Simmel e a Scheler, uma vez que ele percebe a fragmentação do sujeito em
termos teológicos e históricos. Também segundo esse ponto de vista, seu con-
ceito de experiência recobre a noção de “aura” de Benjamin, em especial na
sugestão de um encontro consigo mesmo, com a marca do estranhamento,
desestabilizador, que foi explicitado por Gershom Scholem.55
O sujeito da crítica redentora de Kracauer é fragmentado e isolado, isolado
em um sentido transcendental e em seu exílio dos bastiões decadentes da cul-
tura burguesa. Mas nesse estado precário o sujeito não está só, ao menos não
no nível da construção retórica. Assim como o “tu” enfático nas passagens ci-
tadas acima apela ao leitor para que reconheça a experiência, Kracauer recor-
rentemente invoca uma comunidade de contemporâneos que compartilha seu
sentimento de alienação e seu envolvimento com o preliminar – de “Aqueles
que esperam” ao “flâneur genuíno”, ao “vagabundo” que entende a Lindenpas-
sage como uma “passagem pelo mundo burguês” que é ao mesmo tempo crí-
tica e post-mortem (Frankfurter Zeitung, 21 de dezembro de 1930. Na presente
edição, p. 363). E assim como Kracauer incluiu a si entre os consumidores de
cultura de massa (ainda que não de forma consistente, como a polêmica de
gênero em torno de “As pequenas balconistas” mostra), ele também procede
segundo a suposição de que, em princípio, a capacidade de reflexão crítica
estava disponível também para outros – mesmo para aqueles submetidos à
manipulação capitalista. Se, na prática, os consumidores são no geral cúmpli-
ces, os limites entre eles e os intelectuais críticos não são definidos, mas são
escorregadios e relativos. Uma crítica redentora, afinal, tem de ser capaz de se
tornar pública e geral, ou não é verdadeiramente redentora.56
Quero concluir com uma imagem do pensamento [Denkbild] na qual Kra-
cauer evoca a possibilidade de que o consumidor possa se relacionar com
o glamour da superfície de maneira simultaneamente receptiva e reflexiva.
Em artigo do Frankfurter Zeitung intitulado “Berg-und-Talbahn” (“Montanha-
russa”), publicado, significativamente, no dia da queda da Bastilha em 1928,

55 Scholem, “Walter Benjamin and his Angel” (1972), On Jews and Judaism in crisis. Nova York:
Schocken, 1976, p. 236.
56 Idem, “The messianic idea”, op. cit., p. 16. 43
Kracauer descreve uma montanha-russa do Lunapark de Berlim. A fachada
da montanha-russa exibe uma reprodução do horizonte urbano de Nova York:
“Os trabalhadores, o povo miúdo, os empregados que passam sua semana
sendo oprimidos pela cidade, agora triunfam no ar em cima de uma Nova
York superberlinense”. Essa fachada, no entanto, é incompleta; assim que o
carrinho atinge o pico, ele revela um esqueleto nu:

Então essa é Nova York – uma superfície pintada e, por detrás, o Nada? Os casai-
zinhos estão encantados e desencantados ao mesmo tempo. Não que considerem
a pintura grandiosa da cidade uma mera fraude, mas é que eles veem através da
ilusão, e o triunfo sobre as fachadas já não significa grande coisa para eles. Eles
permanecem, hesitantemente, no local em que as coisas exibem sua face dupla;
eles seguram os diminutos arranha-céus em suas mãos abertas; eles estão libera-
dos de um mundo cujo esplendor eles todavia conhecem.57

A visão certamente pertence ao momento, mas a dupla consciência que Kra-


cauer esboça como possibilidade, como ponto de partida, difere de forma pa-
tente da especialização cega que Horkheimer e Adorno atribuem aos peões
da indústria cultural.
A imagem do pensamento [Denkbild] de Kracauer implica a visão de uma
modernidade cujo feitiço enquanto progresso é quebrado, cujos elementos de-
sintegrados se tornaram disponíveis para uma prática emancipatória. Quando
os passageiros da montanha-russa gritam involuntariamente, ao mergulharem
no abismo, seu grito expressa não apenas um medo existencial, mas também
êxtase [Seligkeit], a alegria de “atravessar uma Nova York cuja existência está
suspensa, que deixou de ser uma ameaça”. Uma vez que a realidade é forçada a
exibir sua “face dupla”, suas imagens bidimensionais podem ser reapropriadas
como um discurso de experiência a ser negociado em um contexto público

57 Siegfried Kracauer, Strassen, pp. 35-36. Para uma sequência mais cética a essa imagem do
pensamento [Denkbild], que contrasta os prazeres organizados do Lunapark de Berlim às
aventuras desregradas das foires de Paris, ver o artigo de Kracauer do ano seguinte, “Orga-
44 nisiertes Glück: Zur Wiedereröffnung des Lunaparks”. Frankfurter Zeitung, 8 mai. 1930.
de interpretação. A América, a encarnação da modernidade desencantada,
pode ser superada apenas “quando descobre completamente a si mesma”, isto
é, quando radicaliza suas promessas históricas e as transforma em práticas
sociais e culturais.
Se a tradição do messianismo judaico secular e do gnosticismo secular
pode ser resgatada apesar de suas premissas metafísicas, deve ser nesse sentido:
ela permitiu ao intelectual conscientemente marginal analisar a modernidade
como um projeto já em desintegração, mas ainda incompleto – um projeto
que, ao menos para Kracauer, implicava necessariamente a democratização da
cultura. Impelido por um impulso poderoso de interpretação, ele dirigiu o seu
olhar crítico-redentor às configurações materiais e às transformações da vida
cotidiana, buscando a realidade ali onde ela lhe parecia ser mais contraditória,
ambígua e provisória. Nessa tarefa, ele próprio permaneceu inevitavelmente
no limiar da ambiguidade, se não da ambivalência – entre uma crítica da rei-
ficação fundada em uma teologia da história e o reconhecimento de formas
novas, especificamente modernas, de experiência e de relações de representa-
ção e de recepção. Onde a mensagem não imobiliza o método, ele coloca em
relevo uma modernidade imanente na qual a desintegração e a emancipação
estão inextricavelmente emaranhadas, na qual as contradições entre elas pre-
cisam ser negociadas em termos dos horizontes concretos da linguagem, das
instituições e da esfera pública.

Tradução de Joaquim Toledo Jr.

Texto originalmente publicado sob o título “Decentric perspectives: Kracauer’s early writings
on film and mass culture” [Perspectivas descentradas: os primeiros escritos de Kracauer sobre
o filme e a cultura de massa], em New German Critique, número 54, outono de 1991, integral-
mente dedicado a Siegfried Kracauer. Reproduzido aqui por especial deferência da autora. 45
O ornamento da massa
para Theodor W. Adorno
Introdução: geometria natural

49
Garoto e touro

Estudo de um movimento

Aix-en-Provence, meados de setembro de 1926

Um garoto mata um touro. A frase de uma gramática escolar é representada


em uma elipse amarela, na qual o sol ferve. Olha-se para a oval a partir das
tribunas e árvores, em que os nativos pendem como bananas azuis. O touro
brame estúpido pela arena. Diante da praga delirante, o garoto está só.
Ele é um ponto laranja com uma trança cingindo o pescoço. Treze anos
de idade, rosto de menino. Outros jovens da sua idade correm pela pradaria
em fantasias luxuosas e salvam a índia de pele branca do martírio. Diante de
um touro, fugiriam. O garoto para imóvel e sorri cerimonioso. O animal su-
cumbe a uma marionete.
Ela instiga o furacão conforme as regras do ritual, que refletem sua imagem
ampliada. Mesmo um bonequinho poderia lançar o pano vermelho, no qual o
touro reconhece o contrafetiche. Ele quer derrubar o menino, o pano se afasta
suspenso no ar, transformado pelo bonequinho em um arabesco. Fosse uma
coisa da natureza, ele deixaria se espetar, diante do voo planado das pregas
ondulantes esmorecem as forças. 51
A marionete se transforma em fêmea cor-de-laranja que atrai o desastrado.
Aproxima-se dele com passos balançantes, as mãos içam duas pequenas lan-
ças coloridas. Um riso teatral da ereta heroína anuncia a batalha amorosa. O
touro é enredado pelo ritmo premeditado. A fantasia ficou elástica, e logo
o pequeno mago espetou em seus flancos as pequenas lanças. Três pares de
lanças desenham na praga agulhas de tricô em novelo de lã, com fitas desfral-
dadas. Ele quer se livrar delas, mas em vão, a geometria está assentada firme
nas corcovas.
O garoto estende um trapo da vermelhidão de uma crista de galo. Tão longa
é a espada escondida dentro da capa, que com ela o garoto poderia escalar o
próprio ar. Os atributos do plano e da linha marcam a proximidade do fim. A
marionete faz o trapo cintilar e movimenta a espada em círculos que se estrei-
tam. O touro estremece frente ao poder dos ornamentos. Estes, que enredavam
o touro como anéis de fumaça, depois atingem-no em alguns pontos, e cada vez
mais, ameaçadoramente, o pressionam, para que ele desapareça nas lonas.
Ainda é um jogo. A espada deseja retroceder, a vermelhidão não deveria
ir de encontro ao sangue. Uma única estocada, uma rápida, penetrante cinti-
lação, que salta na muralha. A espada lança-se da marionete, não foi o garoto
que a impeliu. O elemento surpreso paralisa-se e arregala os olhos. Sob a linha
da espada triunfa a curvatura da massa a naufragar. Agora reinam as cores e
os amplos embalos.
O vencedor em miniatura dá uma volta completa enquanto voam sobre ele
bonés e bolsas, buquês de júbilo. O sol arde na elipse. O garoto para imóvel
e sorri cerimonioso.

52
Dois planos

A baía

Marselha, um anfiteatro deslumbrante, se eleva ao redor do retângulo do velho


porto. As três margens da praça, pavimentadas pelo mar, cuja profundidade
adentra a cidade, têm como bainhas três fileiras uniformes de fachadas. Em
frente à entrada da baía, a Cannebière, a rua de todas as ruas, quebra a lumi-
nosidade plana da praça, estendendo o porto até o interior da cidade. Ela não
é a única conexão entre os terraços arrojados e a monstruosidade da praça,
de cujas fundações os quarteirões se elevam como jatos d’água de uma fonte.
As igrejas, assim como as faces das colinas ainda descobertas, apontam para a
praça como o ponto de fuga de todas as perspectivas. Raramente se reuniu um
público assim em torno de uma arena. Se transatlânticos ocupavam a bacia, as
suas trilhas de fumaça faziam tremular as casas mais remotas; se fogos de arti-
fício eram disparados sobre o plano, a cidade era testemunha da iluminação.
Nenhum transatlântico ocupa a baía, nenhum fogo de artifício desliza para
baixo. Somente barcos à vela pequenos, lanchas e pinaças restam indolentes
nas margens. Na época da pescaria com barcos à vela, o porto era um calei-
doscópio, expedindo desenhos em movimento no cais. Eles se distribuíam
pelos poros; nas mansões senhoris situadas atrás da parte frontal das margens 53
brilhavam as grades. O esplendor se deteriorou e a baía da rua de todas as ruas
se degenerou em um retângulo. Do seu abandono compartilha o braço lateral
do rio, um córrego esquecido, que não espelha as casas imóveis.
A cidade mantém as suas redes de pesca abertas. O resultado da pescaria
é coletado nos novos tanques do porto, que, juntamente com a linha da costa,
descrevem uma poderosa trajetória. A chegada e a partida dos transatlânticos
até seu desaparecimento no horizonte constituem o polo da vida. A desolação
das paredes nuas dos armazéns é uma ilusão; o príncipe do conto de fadas veria
a sua fachada. Nas cavidades esponjosas do bairro portuário a fauna humana
formiga e nas poças o céu está imaculado. Palácios obsoletos se transformaram
em bordéis, que sobrevivem a toda galeria de ancestrais. A massa de humanos,
na qual pessoas de diferentes nações se misturam, é afogada por avenidas e
ruas repletas de bazares. Elas definem os limites dos bairros, para os quais a
afluência de pessoas se dispersa. A eterna massa dos pequenos comerciantes
brada nas voltas conchiformes de um ou outro bairro.
Sem frequentadores, a baía se espreguiça no centro. A sua simples existên-
cia impede os arcos de se fecharem. As ruas morrem em suas margens; ela do-
bra retas em curvas. Em seu espaço público desaparece o óbvio, o seu vazio se
propaga para um recanto distante. A baía é tão calada que, por entre os gritos,
surge como pausa. As fileiras repletas do anfiteatro se distribuem ao redor de
uma cavidade. Os espectadores eretos voltam suas costas para ela.

O quadrado

Aquele que encontrou o lugar não o procurou.1 As ruelas, serpentinas de papel


amassadas, estão atadas entre si sem um nó. Pelas ondulações do solo percor-
rem travessas, que se esfregam no reboco, despencam nas profundezas dos po-
rões e são arremessadas novamente para o seu ponto de partida. Uma morada

1 Nas cartas a Kracauer, Walter Benjamin conta como, em Marselha, ambos descobrem essa
rua fantástica, que Kracauer passa a denominar “Lugar de observação”. Ver Walter Benjamin,
Briefe an Siegfried Kracauer. Editado pelo Theodor W. Adorno Archiv, Marbach: Deutsche
54 Schillergesellschaft, 1987, pp. 33 e 44.
de fundo, para cujo acesso faltam escadas magníficas. O cheiro dos restos de
frutos do mar entumesce verde-acinzentado pelas portas abertas; pequenas
lâmpadas vermelhas indicam o caminho. Cenários móveis são improvisados
no espaço de uma olhadela: fileiras de arcobotantes, tábuas com inscrições ará-
bicas, degraus em parafuso. Deixados para trás, são demolidos e reconstruídos
em um novo lugar. A sua disposição é conhecida pelo sonhador.
Um muro anuncia o lugar. Incansável, ele se mantém ereto e veda o labi-
rinto. Um sulco acompanha-o com obediência canina, trotando ao seu lado
a cada passo. Frestas dinamitadas no muro formam pequenos buracos em
largos intervalos, que não permitem a entrada da luz nos espaços atrás. Ou-
tros muros de mesmo comprimento se encurtam como vias férreas, mas esse
não. Os seus pontos de fuga divergem, seja porque o sulco desce, seja porque
a vegetação sobre o muro sobe constantemente. De repente, ao lado do sulco,
a praça se abre.
Ela é um quadrado estampado no emaranhado urbano com uma forma
extraordinária. Blocos de casernas se formam ao seu redor, a parede de fundo
está pintada de vermelho. Uma rampa, partindo da parede, se lança para frente,
para, e é subitamente interrompida. As linhas horizontais foram traçadas com
uma régua, com toda a precisão.
Na praça deserta ocorre o seguinte: a força do quadrado atrai ao seu centro
aquele que foi apanhado. Ele está só, e também não está. Embora observado-
res não sejam visíveis, os raios de seus olhares atentos atravessam as janelas,
os muros. Feixes deles cruzam o espaço e se dividem ao meio. O medo fica
completamente nu; à sua mercê. Nenhum ramalhete de palmeiras, capaz de
cobrir esta nudez, acaricia os cantos. Um tribunal se reúne nos assentos invi-
síveis ao redor do quadrado. É o momento que antecede o pronunciamento do
veredicto, que não é proferido. A seta pontuda da rampa aponta para aquele
que espera, persegue-o, um indicador móvel. Os olhos de retratos famigera-
dos perseguem assim constantemente o contemplador. A parede vermelha de
fundo está separada do plano do quadrado por uma fenda, da qual sobe uma
estrada escondida pela rampa.
Neste emaranhado de vielas pictóricas, ninguém procura o quadrado. Em
uma reflexão meticulosa o seu tamanho teria de ser descrito como moderado. 55
Mas, quando os seus observadores se sentam em suas cadeiras, ele se expande
para os quatro lados do mundo, esmaga as partes miseráveis, brandas do so-
nho: é um quadrado sem compaixão.

56
Análise de um mapa de cidade

Faubourgs e centro

Alguns faubourgs de Paris são asilos gigantescos de todo o tipo de pessoas sim-
ples, de subempregados a trabalhadores, profissionais da indústria e aqueles
considerados perdedores porque outros se consideram a si mesmos como vi-
toriosos. A maneira como têm co-habitado durante séculos afora se expressa
na figura do asilo, que certamente não é burguês, nem tampouco proletário
no sentido de morar em meio a chaminés, casernas e estradas. É ao mesmo
tempo miserável e humano. Sua humanidade consiste não apenas no fato de
que a existência nos faubourgs contém resquícios da vida natural que preen-
chem este modo de vida. Muito mais importante é que esta existência plena
está sob o signo da ruptura.

A avenida Saint-Ouen sábado à tarde é uma grande feira. Não no sentido de


que estivesse acampado aqui um circo ambulante, mas que a avenida está
prenhe deste circo e que segue adiante junto com ele. A obrigação de prover
o domingo reúne uma multidão que, a um astrônomo, poderia parecer uma
nebulosa. Ela se comprime em densos conglomerados nos quais os indivíduos
esperam bem empacotados até que sejam cá e lá novamente desempacotados. 57
Entre os consumidores, há os que apreciam o espetáculo da desintegração
constante do complexo ao qual pertencem. Um sinal que os mantêm na pe-
riferia da vida.
Se o Mediterrâneo banhasse a avenida, suas lojas dificilmente poderiam se
abrir sem a proteção de vitrines. Elas expelem uma corrente de mercadorias
que serve para a satisfação de necessidades humanas; sobem pelas fachadas,
interrompendo a largura da rua para saltar ao mesmo tempo, se elevando com
força redobrada mais além do turbilhão de pedestres. As árvores da floresta
virgem, isto é, os pernis, inclinam suas extremidades além dos produtos natu-
rais que são empilhados aqui, antes de figurar como obra-prima no cardápio.
Ao lado, os utensílios domésticos germinam em toalhas de linhagem sobre as
quais uma charmosa vegetação floral espalha o dia-a-dia.
A necessidade leva as coisas à esfera do calor humano. Da massa orgânica
dos compartimentos de gêneros alimentícios surge um aparelho de vidro e
metal, cuja ponta afiada parece ter nascido com um único propósito, o do
prazer em torturar. Pelo seu brilho, pode-se considerar o instrumento capaz
de espetar, por puro prazer, as magníficas peças do açougue, os peixes e os
guisados de mexilhão, para os quais se mostra o mais adequado. É um dosador
de azeite que, no seu bojo de vidro, goteja porções amarelas bem medidas, em
pequenos recipientes, de que se servem os fregueses. A penúria do entorno
empresta-lhe uma atmosfera amigável e transforma esta abelha mecânica em
um duende doméstico inofensivo que se ocupa do preparo da comida e que
também é bom para as crianças.
Se a feira contém o catálogo das grandes lojas em sua integralidade quase
cósmica, não é mais, portanto, que a versão popular do grande mundo. O que
está disponível é de pouco valor e de contornos incertos, como nas fotografias
ruins. Não é por acaso que as revoluções eclodiram dos faubourgs. Falta-lhes
a felicidade, o esplendor sensível.

Este esplendor se estende sobre o mundo superior dos bulevares, no centro da


cidade. A multidão aqui é muito diferente da de lá. Não é uma meta nem uma
hora precisa que determina seu movimento; este escoa sem cessar. Os palá-
58 cios escurecidos pelo tempo, e que perduram como imagens, mal conseguem
vencer o poder sobre pessoas e carros que emana de suas belas proporções.
Ninguém imaginou o plano em função do qual os diversos elementos, com-
pondo o espetáculo vivo, garatujam o caos de linhas sobre o asfalto; na verdade
este plano não existe, as metas estão enclausuradas em pequenas partículas
individuais, e é a lei da menor resistência que indica a direção das curvas.
Atrás dos vidros das vitrines, o necessário se confunde com o supérfluo,
o mais necessário não está exageradamente exposto. Pessoas de todos os ní-
veis sociais podem perder toda a tarde a contemplar pedras preciosas, peles
e toaletes noturnas cuja magnificência inequívoca acena de modo promissor
no final dos romances de folhetim [Kolportage-Romane]. A possibilidade de
avaliar seu montante torna seu valor real mais inabordável do que poderia
ser. Sua proximidade espacial contém a injunção de se adentrar em uma loja
depois da outra, sob o pretexto de se fazer um inventário, e de comprar toda
espécie de objetos. Mas qualquer um que dispusesse de todos eles seria o úl-
timo a possuí-los.
Com o início do crepúsculo, as luzes atingem a altura dos olhos. Invariá-
vel como as bolinhas de um ábaco, vagueia o arco de lâmpadas por meio do
labirinto de setas de fogo e de impulsos bengalis. Nos quarteirões principais
da vida noturna a iluminação é tão forte que é necessário fechar as pálpebras.
As luzes são reunidas pelo próprio prazer em vez de iluminar as pessoas. Seu
brilho pretenderia apenas clarear a noite e expulsá-la. Seus letreiros luminosos
ofuscam a vista sem se deixar decifrar. Seu brilho vermelho, prolongado nos
olhos, se coloca como vazios no pensamento.
Os quiosques de jornal erguem-se em meio ao turbilhão como templos
minúsculos onde as publicações do mundo se encontram. Aqueles que se com-
batem na vida como adversários põem-se lado a lado, maior concórdia seria
impossível. Onde se encontram jornais em ídiche ao pé de textos árabes com
letras garrafais em polonês, a paz está garantida. Só que, no entanto, os jornais
não se conhecem um ao outro. Cada exemplar é dobrado sobre si mesmo e se
satisfaz com a leitura de suas próprias colunas. Independentemente da estreita
relação corporal entre eles, entremeadas pelas folhas de papel, as suas notícias
são tão desprovidas de qualquer relação que ficam sem notícias sobre si mes-
mas. Nos intervalos reina sem limites o demônio da ausência de espírito. 59
Isto acontece não apenas em Paris. Os centros das grandes metrópoles, que
são também o lugar do esplendor, se assemelham mais e mais entre si. As suas
diferenças desaparecem.
As largas avenidas vão dos faubourgs ao esplendor do centro. Mas este não
é o centro que se quer. A felicidade que almejam os pobres lá fora é acessível
por outras vias do que as que existem atualmente. Devem, portanto, percorrer
as ruas até o centro, pois seu vazio é hoje bem real.

60
Objetos externos e internos
A fotografia

Caminhava no tempo da carochinha e de repente vi Roma e o


Laterano suspensos por um pequeno fio de seda, um homem
sem pés que ultrapassa um corcel veloz e uma espada afiadís-
sima cortando uma ponte ao meio.
irmãos grimm – Contos de fada 1

Assim é como parece uma Diva do cinema. Ela tem 24 anos, está na capa de
uma revista ilustrada, diante do Hotel Excelsior no Lido. Estamos em setem-
bro. Se alguém olhasse através de uma lupa veria, na retícula, os milhões de
minúsculos grãos que formam a diva, as ondas e o hotel. Certamente a imagem
não pretende mostrar uma retícula de grãos, mas a diva de carne e osso no
Lido. A reportagem a chama de demoníaca; nossa diva demoníaca. No entanto,
ela não carece de uma certa expressividade. O penteado à la garçonne, a pose
sedutora da cabeça, os doze cílios à direita e à esquerda – todos os detalhes
bem apreen­didos pela câmera fotográfica estão lá rigorosamente dispostos
no espaço, uma imagem sem reparos. Todos a reconhecem encantados, pois
já viram o original na tela de cinema. Ela está tão bem que ninguém pode

1 Das Märchen vom Schlaraffenland [O conto do país da cocanha], Kinder und Hausmärchen,
1812-15. 63
confundi-la com nenhuma outra, mesmo que ela seja talvez a décima segunda
figurante de uma dúzia de Tillergirls.2 Está sonhando diante do Hotel Excelsior
que goza de sua fama; um ser de carne e osso, nossa diva demoníaca, de 24
anos. Estamos em setembro.
Era assim também que parecia a avó? A fotografia de mais de sessenta anos
e já uma fotografia no sentido moderno do termo, retrata-a como uma jovem
de 24 anos. Já que fotografias são semelhantes, esta deveria ser também seme-
lhante. A foto foi cuidadosamente tirada no estúdio de um fotógrafo da corte.
Mas falta a tradição oral, pois da imagem isoladamente não é possível recons-
truir a avó. Os netos sabem que ela morou nos últimos anos num quartinho
estreito com vistas para a parte velha da cidade e que, para divertir as crianças,
colocava soldadinhos de chumbo para dançar em uma placa de vidro.3 De sua
vida os netos conhecem uma história má e duas máximas verídicas que foram
transmitidas um pouco modificadas de uma geração a outra. Que a fotografia
decerto representa a avó, aquele pouco que se conservou dela na memória e
que talvez tenha até sido mesmo esquecido, deve-se acreditar nas palavras dos
pais, que afirmam, por seu lado, ter aprendido da própria mãe. Os depoimen-
tos de testemunhas são incertos. Afinal, pode se dar conta de que a fotografia
não seja da avó, mas de uma amiga parecida. Nenhum de seus contemporâ-
neos está vivo, e a semelhança? Muito pouca, pois o original desapareceu há
muito tempo. A imagem, desvanecida pelo tempo, tem pouco em comum com
os traços impressos na memória a que os netos se submetem, estupefatos, no
esforço de ir ao encontro de semelhante mulher que é reproduzida fragmen-

2 Grupo de dançarinas treinadas à maneira militar. O nome foi cunhado por causa do coreógrafo
de Manchester John Tiller. Surgido no final do século XIX, o grupo chegou à Alemanha sob a
direção de Eric Charell, que foi, de 1924 a 1931, diretor da Grosses Schauspielhaus de Berlim.
Suas produções de revistas e operetas foram precursoras dos musicais atuais.
3 No romance autobiográfico, Georg, que Kracauer concluiu em 1934 durante seu exílio pa-
risiense, ele recorda numa passagem um de seus prazeres de infância junto ao “campo de
batalha de vidro” repleto de soldadinhos de chumbo. “Sua avó”, descreve no texto, “colocava
ocasionalmente [os soldadinhos] sob uma placa de vidro e cobria a parte inferior com seu
dedo de modo a desordenar o tabuleiro”. Ver Siegfried Kracauer, Schriften 7. Frankfurt am
64 Main: Suhrkamp, 1973, p. 251.
tariamente na fotografia. De qualquer modo, a fotografia retrata, digamos, a
avó ou, na realidade, uma jovem qualquer em 1864. A jovem sorri e continua
sorrindo, um sorriso estático que não acessa mais a vida que lhe deu origem.
A semelhança não ajuda mais. Os manequins sorriem do mesmo modo imóvel
e perpétuo, nos salões de cabeleireiro. Os manequins não pertencem à nossa
época, poderiam estar juntamente com seus semelhantes na vitrine de vidro
de um museu com a inscrição: “Trajes de 1864”. Os manequins encontram-se
no museu por causa de seus trajes históricos, do mesmo modo que a avó na
fotografia é um manequim arqueológico que serve para ilustrar o traje da
época. Como as pessoas se vestiam naquela época: coques, cintura bem justa,
crinolina e jaqueta à la zuavo.4 Diante dos olhos dos netos a avó se dissolvia em
detalhes então na moda tornados démodé. Os netos riem dos trajes que, com
o desaparecimento de seus usuários, lembram um campo de batalha – uma
decoração exterior tornada independente. São impiedosos, pois as jovens ves-
tem-se diferentemente hoje. Riem, mas expressam ao mesmo tempo um certo
espanto. Pois, por meio da ornamentação dos trajes, na qual a avó desapareceu,
acreditam tocar um instante do tempo passado, tempo que não mais retorna.
O tempo, na verdade, não é fotografado juntamente com o sorriso e o coque.
Mas, a própria fotografia, assim acreditam, é uma representação do tempo. Se
a fotografia lhes oferecesse apenas a duração, não apreenderiam nada da mera
temporalidade, mas seria o tempo através deles a criar imagens.

“Dos primeiros anos da amizade entre Goethe e Karl August.” – “Karl August
e a eleição dos conjurados de 1787 em Erfurt.” – “Visita de um cidadão da
Boê­mia a Iena e Weimar (1818).” – “Recordações de um ginasiano de Weimar
(1825-30).” – “Um relato contemporâneo da cerimônia Goethe em Weimar de
7 de novembro de 1825.” – “A redescoberta do busto de Wieland de Ludwig
Klauer.” – “Projeto para um monumento nacional em homenagem a Goethe

4 Jaqueta feminina em moda por volta de 1860, inspirada nos uniformes dos Zuavos, tropa
colonial francesa composta de berberes e europeus recrutados na Argélia em 1830-31. 65
em Weimar”. O herbário destas e de outras investigações faz parte de Os Anais
da Associação Goethe, cuja série não está destinada programaticamente à con-
clusão. Ridicularizar a filologia sobre Goethe, cujas contribuições são reuni-
das nos anais, seria inútil, tanto mais que ela mesma diz adeus a este mundo
que reúne; entretanto o pseudoesplendor das numerosas obras monumentais
dedicadas à figura, ao ser e à personalidade etc. de Goethe mal começou a
ser questionado. O princípio da pesquisa filológica sobre a obra de Goethe é
aquele do pensamento historista5, que surgiu mais ou menos na mesma época
da técnica fotográfica moderna. Em resumo, os seus representantes pensam
poder esclarecer de modo puro qualquer fenômeno a partir de sua gênese e
acreditam apreender também a realidade histórica ao reconstituir sem lacunas
a série de acontecimentos na sua sucessão temporal. A fotografia oferece uma
continuidade espacial, o historismo quer preencher a continuidade temporal.
De acordo com o historismo, o espelhamento completo de uma sequência in-
tratemporal contém simultaneamente o sentido de conteúdo que ocorreu no
mesmo período. Se na representação de Goethe faltam os elementos interme-
diários da eleição dos conjurados de Erfurt ou as recordações do ginasiano de
Weimar, padece, portanto, de uma falta de realidade. Para o historismo, trata-se
de fazer uma fotografia do tempo. Esta fotografia do tempo corresponderia
a um filme gigantesco que representasse universalmente os acontecimentos
relacionados.6

5 Quando este ensaio foi publicado em 1927, no Frankfurter Zeitung, Kracauer referia-se ex-
plicitamente ao nome de Wilhelm Dilthey como representante do pensamento historista.
6 Kracauer se refere a esta passagem na introdução a History: The Last Things Before the Last
[História: as últimas coisas antes da última], quando descreve sua surpresa ao perceber a
continuidade entre seu trabalho sobre cinema e o trabalho sobre história: “De modo fulgu-
rante tornaram-se claros para mim os muitos paralelos existentes entre meios fotográficos,
realidade histórica e câmera-realidade. Há pouco tempo deparei com meu ensaio sobre
‘Fotografia’ e fiquei inteiramente surpreso ao constatar que comparei o historismo com a
fotografia já neste artigo dos anos 1920”. Op. cit. Nova York: Oxford University Press, 1969,
pp. 3-4. Versão alemã: Siegfried Kracauer. Geschichte: Vor den letzten Dingen. Schriften 4.
66 Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1971, p. 15.
3

A memória não engloba nem a totalidade de um fenômeno espacial nem a to-


talidade do percurso temporal de um fato. Em comparação com a fotografia
suas caracterizações são lacunares. Que a avó esteve envolvida em uma his-
tória vil da qual não se para de falar, mas ninguém quer comentar a respeito,
não significa muito do ponto de vista do fotógrafo. Ele reconhece as primeiras
ruguinhas em seu rosto, anotou todas as datas. A memória não se ocupa de
datas, pula sobre os anos ou dilata a distância temporal. A seleção de traços
que reúne pode parecer arbitrária ao fotógrafo. A seleção foi feita desta e não
de outra maneira, pois as disposições e as intenções exigem o recalque, a fal-
sificação e a alteração de valores do objeto; uma má infinitude de fundamen-
tos [schlechte Unendlichkeit von Gründen] determina o restante a ser filtrado.
Não importa quais cenas um indivíduo recorda: elas querem dizer algo que se
relaciona a ele sem ele precisar saber o que elas querem dizer. Elas são conser-
vadas justamente em relação ao que querem lhe dizer. Organizam-se, portanto,
segundo um princípio que se diferencia daquele da fotografia na sua essência.
A fotografia apreende o que é dado como um contínuo espacial (ou temporal),
as imagens da memória conservam-no na medida em que este quer dizer al-
guma coisa. Como o que se quer dizer se consuma muito pouco no contexto
puramente espacial e no puramente temporal, as imagens estão de esguelha
em relação à reprodução fotográfica. Se do ponto de vista desta última elas
aparecem como fragmento – mas como fragmento porque a fotografia não
abarca o sentido com o qual elas se relacionam; orientadas em relação a este
último, cessam de ser fragmento – assim aparece a fotografia para elas como
uma mistura em parte composta de despojos.
A significação das imagens da memória está acoplada a seu conteúdo de ver-
dade. Na medida em que estão ligadas à incontrolável pulsão vital [Triebleben],
habita em seu interior uma ambiguidade demoníaca; imagens foscas como um
copo de leite que mal permite passar o brilho da luz. Sua transparência au-
menta na medida em que os conhecimentos lançam luz sobre a vegetação da
alma e limitam a coação da natureza [Naturzwang]. Encontrar a verdade só é
possível à consciência liberta que pondera o demoníaco das pulsões. Os traços 67
dos quais se recorda estão em relação com o que se reconhece como verdade,
suscetível de se manifestar neles ou de ser deles excluídos. A imagem, que
contém estes traços, é distinta de todas as outras imagens da memória; com
efeito, esta não conserva como as outras uma abundância de recordações opa-
cas, mas os conteúdos que concernem ao que é reconhecido como verdade.
A esta imagem, que podemos com pertinência chamar de última, devem se
reduzir todas as imagens da memória, pois é só nela que perdura o inesque-
cível. A última imagem de um indivíduo é a sua própria história. Esta omite
todos os signos e determinações que não estão em relação significativa com a
verdade designada pela consciência liberta. A maneira como um indivíduo a
representa não depende nem puramente de sua própria natureza, nem tam-
pouco da coesão aparente de sua individualidade; há, portanto, somente as
partes de seus elementos que entram na sua história. Ela se assemelha a um
monograma que condensa o nome em um arabesco que possui uma signifi-
cação enquanto ornamento. O monograma de Eckart é a fidelidade.7 Grandes
fenômenos históricos continuam a viver na lenda que, como sempre de modo
ingênuo, pretende salvar sua própria história. Nos contos de fada [Märchen]
verdadeiros, a imaginação introduziu intuitivamente os monogramas típicos.
Sob a fotografia de um indivíduo está enterrada sua história como sob um
manto de neve.

Ao descrever uma paisagem de Rubens que lhe mostrava Goethe, Eckermann


observa para sua surpresa que a luz vinha de dois lados opostos, “a qual é total-
mente contra a natureza”.8 Goethe lhe responde, “é por esta razão que Rubens se

7 Herói da mitologia alemã, protetor fiel e conselheiro, Eckart adverte os Nibelungos diante
do Rüdegers Mark a respeito da negociação com os Hunos. Kracauer associa aqui Eckart
e a fidelidade tal qual é manifesta no conto de Ludwig Tieck, Tannenhäuser e o fiel Eckart
(1799) e no texto de Goethe O fiel Eckart (1811).
8 Johann Peter Eckermann (1792-1854), secretário particular de Goethe, em conversa com o
escritor em 18 de abril de 1827, referida em Gespräche mit Goethe in den letzten Jahren seines
68 Lebens. Wiesbaden: Insel Verlag, 1955, p. 578.
mostra grande e revela que se coloca, com seu espírito livre, além da natureza
e age em relação a ela à altura de seus próprios fins. A luz dupla é certamente
uma violência e você pode até dizer que é contra a natureza. Mas se é contra a
natureza, digo ao mesmo tempo que é mais elevada que a natureza, digo tam-
bém que é o gesto sutil do mestre que mostra de modo genial que a arte não
está inteiramente subordinada à necessidade natural e que possui também suas
próprias leis”. Um pintor retratista que se submeta inteiramente à “necessidade
natural” criará, no melhor dos casos, fotografias. Em uma época determinada,
que começou com o Renascimento e que talvez hoje tenha se esgotado, a “obra
de arte” se atém certamente à natureza, cuja especificidade se revelou mais e
mais a esta época; mas através da natureza, ela se dirigia aos “fins elevados”.
Trata-se do processo do conhecimento no material das cores e contornos, e
quanto maior ele é, mais se aproxima da transparência das últimas imagens
da memória, onde se junta aos traços da “história”. Um homem retratado por
Trübner pediu ao artista que não se esquecesse das rugas e marcas de seu
rosto. Trübner apontou para fora da janela e lhe disse. “Lá fora mora um fotó-
grafo. Se você quer marcas e rugas, vou chamá-lo e ele lhe fará tudo; eu pinto
a história…”9 Para que a história seja representada, deve-se destruir a conexão
meramente superficial oferecida pela fotografia. Enquanto na obra de arte o
significado do objeto torna-se fenômeno espacial, na fotografia o fenômeno es-
pacial de um objeto é seu significado. Ambos os fenômenos, o “natural” e o do
objeto do conhecimento, não se correspondem. Na obra de arte se suprime o
primeiro em favor do segundo, reunindo ao mesmo tempo a semelhança alme-
jada pela fotografia. A semelhança se relaciona à aparência exterior do objeto
que não se revela imediatamente como se mostra ao conhecimento: é apenas
a transparência do objeto que é mediada pela obra de arte. É comparável a um
espelho mágico que não reflete o indivíduo em questão tal qual aparece, mas
tal como este deseja ser ou como é fundamentalmente. A obra de arte se de-
sintegra também com o tempo; mas o seu significado aflora de seus elementos
decompostos enquanto que a fotografia acumula os elementos.

9 Wilhelm Trübner (1851-1917), pintor “naturalista” alemão, mais conhecido pela sua obra ini-
cial, sobretudo pelos retratos “realistas” inspirados em Courbet. 69
Até a metade do século XIX, o método diapositivo foi frequentemente prati-
cado pelos pintores. A técnica deste período de transição não era ainda inteira-
mente despersonalizada e a ele correspondia um ambiente espacial no qual as
pistas de significado eram ainda encontráveis. Com a crescente progressão da
técnica os objetos são esvaziados de significado e, ao mesmo tempo, a fotografia
artística perde sua razão de ser: não alcança o nível da obra de arte, somente a
sua imitação. Os retratos de criança são de Zumbusch10 e Monet, o padrinho
das impressões fotográficas de paisagens. As composições que não vão além
de uma hábil imitação de maneiras conhecidas malogram justamente na re-
presentação do resto de natureza ainda possível, em certa medida, à técnica
mais avançada. Os pintores modernos compuseram seus quadros a partir de
fragmentos fotográficos para sublinhar a justaposição de fenômenos reificados,
dispersos nas relações espaciais. Esta intenção artística se contrapõe à da foto-
grafia artística. Ela não procura elaborar um objeto subordinado devido a téc-
nica fotográfica, mas revestir, servindo-se do estilo, o fato meramente técnico.
O fotógrafo artístico é um artista diletante que imita uma maneira artística,
furtando-lhe seu conteúdo, em vez de apoderar-se do que não tem conteúdo.
Do mesmo modo a ginástica rítmica pretende abranger a alma, da qual não
sabe nada. Esta, como a fotografia, tende a confiscar a vida nas suas instâncias
elevadas, para extrair um procedimento que é meramente elevado quando en-
contra o objeto para sua técnica. Os fotógrafos artísticos agem no sentido da-
quelas forças sociais que se interessam pela aparência do espírito, pois temem
sua verdadeira essência; esta poderia explodir a base que lhe fundamenta, cuja
aparência serve como transfiguração. Vale, portanto, o esforço em descobrir as
estreitas relações existentes entre ordem social e fotografia artística.

A fotografia não fixa os traços transparentes de um objeto, mas os retém do


ponto de vista de sua escolha como um contínuo espacial. A última imagem da

10 Ludwig von Zumbusch (1861-1927) foi pintor alemão de telas “primitivas” (naïve), retratos
70 e paisagens em pastel.
memória sobrevive à ausência de memória por causa do tempo. A fotografia
que não visa esta imagem da memória deve ser colocada em relação, por sua
natureza, ao momento contingente de seu nascimento, “a essência do cinema é
em certa medida a essência do tempo”,11 observa E. A. Dupont, em seu livro so-
bre o cinema comercial, que tem como tema o ambiente cotidiano fotografável
(citado segundo Rudolf Harms: Philosophie des Films). Mas, a fotografia é uma
função do tempo fluente, sua significação objetiva, no entanto, se transforma ao
pertencer ao âmbito do presente ou a alguma fase do passado.
A fotografia atual que reproduz um fenômeno familiar à consciência con-
temporânea oferece, em limitada proporção, uma passagem à vida do original.
Ela revela cada vez uma exterioridade que, conforme a duração de seu domí-
nio, é um meio de expressão tão universalmente conhecido como a língua. O
contemporâneo acredita ver na fotografia a própria diva do cinema, não ape-
nas pelo seu corte de cabelo à la garçonne ou pela pose de sua cabeça. Ele não
a mediria bem, sem dúvida, a partir da fotografia isolada. Mas, felizmente, a
diva está entre os vivos, e a página título da revista ilustrada cumpre a tarefa de
recordar sua realidade corpórea. O que significa que a fotografia atual cumpre
o papel de mediadora, é um signo ótico da diva que se trata de reconhecer. Se
sua característica decisiva é ser sobrenatural, deve-se duvidar ao final. O sobre-
natural nela mesma é, de qualquer modo, menos uma mensagem da fotografia
que a impressão do espectador de cinema que viu o original na tela. Reconhe-
cem-na como representação do sobrenatural, apenas isto. Não por causa de sua
semelhança, mas apesar de sua semelhança, denuncia a imagem do sobrenatu-
ral. Entretanto, ela pertence à imagem ainda oscilante da memória da diva, a
qual a semelhança fotográfica não se refere. A imagem de memória produzida
pela contemplação de nossa querida diva penetra dentro da parede da seme-
lhança na fotografia e lhe empresta então alguma transparência.

11 Ewald André Dupont, Wie ein Film geschrieben wird und wie man ihn verwertet. Berlim:
Reinhold Kühn, 1919; citado em Rudolf Harms, Philosophie des Films. Leipzig: Felix Meiner,
1926. Kracauer chegou a escrever uma resenha sobre o livro em 10 de julho de 1927, no Frank-
furter Zeitung. Ver a parte Bücher vom Film em Siegfried Kracauer, seção Kleine Schriften
zum Film. Schriften 6.1. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2004, pp. 370-74. 71
Quando a fotografia envelhece, a relação imediata com o original não é
mais possível. O corpo de um falecido parece menor do que sua figura viva. A
velha foto dá também a impressão de apequenamento do presente. A vida lhe
foi retirada, cuja manifestação espacial encobre a mera configuração do espaço.
De forma invertida se relacionam imagens da memória com a fotografia, que
engrandecem o monograma da vida recordada. A fotografia é o sedimento de-
positado pelo monograma e ano após ano diminui seu valor de signo. O teor
de verdade do original se retém na sua história; a fotografia retém o resíduo
do qual a história se despediu.
Quando a avó da fotografia não é mais encontrável, a imagem tomada do
álbum de família se desfaz necessariamente em seus detalhes. Do penteado
à la garçonne da diva, o olhar pode se dirigir ao seu caráter sobrenatural; do
nada da avó, o olhar se volta ao coque, fixando-se nos detalhes da moda. À
ligação temporal da fotografia corresponde aquela da moda. Já que não pos-
sui outro sentido que não seja o daquele invólucro humano atual, a moda
moderna é translúcida, a antiga obsoleta. O corte de cintura justa do vestido
sai da fotografia e entra no nosso tempo, comparável a um edifício senhorial
de outros tempos evacuado para demolição, pois o centro foi transposto para
outra região da cidade. Nestes edifícios se instalam geralmente os membros
das classes inferiores. Apenas os trajes muito antigos alcançam a beleza das
ruínas, já que perderam toda ligação com o presente. Trajes usados há pouco
tempo adquirem um efeito cômico. Os netos se divertiam com a crinolina de
1864 usada pela avó, chegam até mesmo a pensar que as pernas das moças
modernas desapareceriam debaixo dela. O passado recente que se pretende
ainda vivo está mais morto que o mais remoto cujo significado mudou com
o tempo. O cômico da crinolina explica-se pela impotência de sua pretensão.
Sobre a foto, o traje da avó é reconhecido como um resquício rejeitado que
pretende continuar a se afirmar. É reduzido na soma de seus detalhes a um
cadáver com ar de grandeza, como se ainda houvesse vida nele. Mesmo a pai-
sagem e qualquer objeto na fotografia é como um traje. Pois o que é conservado
na imagem não são os traços que a consciência quer dizer. A representação
apodera-se das conexões das quais esta consciência se originou, englobando-a,
72 portanto, sem querer admitir os elementos que são atrofiados. Quanto mais a
consciência se priva das ligações naturais mais se reduz a natureza. Ao fundo
das velhas gravuras que possuem a fidelidade das fotografias, mostram-se as
colinas renanas como montanhas. Com o desenvolvimento técnico, elas foram
reduzidas a diminutas colinas, e a mania de grandeza daquelas antigas vistas
mostra-se um pouco ridícula.
O fantasma é cômico e terrível ao mesmo tempo. O riso não é a única res-
posta às velhas fotografias. Representa simplesmente o passado, mas o detrito
foi presente uma vez. A avó foi um ser humano, ao qual pertenciam o coque,
o espartilho e a alta cadeira estilo renascença com colunas contorcidas. Um
peso morto que não foi jogado fora, mas que se leva sem problemas. Hoje a
imagem vagueia pelo presente como o fantasma de uma castelã. Os fantas-
mas perambulam somente por onde se cometeu uma má ação. A fotografia
torna-se um fantasma porque a boneca vestida com os trajes de época foi viva
uma vez. Através da imagem sabemos que todos estes elementos estranhos e
enganadores foram incluídos na vida como acessórios evidentes. Estes elemen-
tos, cuja falta de transparência se comprova nas velhas fotografias, estavam
antes indissoluvelmente ligados aos traços de transparência. Esta associação
terrível que persiste na fotografia provoca calafrio. Um calafrio similar é sus-
citado drasticamente pelas cenas dos filmes do pré-guerra que são projetados
em Paris no cinema de vanguarda Studio des Ursulines, que mostram como
os traços acumulados nas imagens da memória estão impregnados de uma
realidade que desapareceu há muito tempo. A repetição de velhas modinhas,
ou a leitura de cartas que foram escritas no passado evocam, como a imagem
fotográfica, uma unidade que se desintegrou. Esta realidade fantasmal é irre-
dimível. É constituída de partes no espaço, cuja composição é muito pouco
necessária, as quais poderiam ser imaginadas em qualquer outra disposição.
Estas coisas foram coladas em nós como nossa própria pele, como está colado
em nós ainda hoje o que nos possui. Nada disto nos contém, e a fotografia
reú­ne fragmentos em um nada. Quando a avó estava diante da objetiva, estava
por um segundo no contínuo espacial que se apresentava à objetiva. No lugar
da avó, é aquele instante que foi eternizado. Quem observa velhas fotografias
é tomado por calafrios, já que estas não tornam evidentes o conhecimento do
original, mas a configuração espacial de um instante; não é o ser humano que 73
emerge de sua fotografia, mas a soma do que se pode extrair dele. Soma que
o aniquila enquanto o reproduz: o ser humano não existiria se coincidisse com
a fotografia. Um jornal ilustrado publicou recentemente fotografias da juven-
tude e da velhice de personalidades conhecidas, sob o título: “O rosto do ho-
mem célebre. Assim eram antes, assim são hoje!”. Marx quando jovem e Marx
como dirigente político, Hindenburg como tenente e nosso Hindenburg. As
fotografias são justapostas como quadros estatísticos e não se pode supor a
imagem mais antiga da mais recente nem reconstituir a mais recente da mais
antiga. Deve-se aceitar, de boa-fé e lealmente, o fato que o quadro de inven-
tário ótico está intrarelacionado. Os traços do ser humano são conservados
apenas na sua “história”.

6

Os jornais diários ilustram cada vez mais os seus textos e o que seria uma revista
sem material iconográfico? A prova cabal da enorme importância da fotografia
nos dias atuais está no crescimento das revistas ilustradas. Elas reúnem, jun-
tamente com a diva do cinema, todos aqueles fenômenos que são acessíveis à
câmera fotográfica e ao público. Os bebês são do interesse das mães, os rapazes
são atraídos pelo par de belas pernas femininas. E as jovens adoram contemplar
as celebridades do esporte e do palco no convés de um transatlântico em dire-
ção a países longínquos. Em países longínquos ocorrem lutas de interesses. Mas
o interesse não está voltado para elas e sim para as cidades, para as catástrofes
naturais, os heróis do espírito e os políticos. Em Genebra reúne-se o Congresso
da Sociedade das Nações. O que serve para mostrar os senhores Stresemann
e Briand12 em entrevista diante da entrada do hotel. As novas modas devem
ser também divulgadas, senão, no verão, as garotas não saberão quem são. As
beldades da moda participam dos acontecimentos mundanos com os jovens
senhores; nos países longínquos há tremores de terra, sr. Stresemann está sen-
tado sob as palmeiras de um terraço, para as mães há nossos pequenos.

12 Aristide Briand (1862-1932), ministro das relações exteriores da França (1925-32), e Gustav
74 Stresemann (1878-1929), ministro das relações exteriores da Alemanha (1923-29).
A intenção das revistas ilustradas é reproduzir completamente o mundo
acessível ao aparelho fotográfico; registram espacialmente o clichê das pes-
soas, situações e acontecimentos em todas as perspectivas possíveis. A seu
procedimento corresponde o cinejornal da semana; uma soma de fotografias,
enquanto que para o cinema autêntico, a fotografia é utilizada apenas como
meio. Nunca houve uma época tão bem informada sobre si mesma, se ser bem
informado significa possuir uma imagem das coisas iguais a elas no sentido
fotográfico. A maior parte das revistas ilustradas se refere a objetos que exis-
tem no original, enquanto fotografias da atualidade. As cópias são, portanto,
fundamentalmente, signos que se referem a um original que poderia ser re-
conhecido. A diva sobrenatural. Mas, na realidade, a referência ao original
não é de modo algum a finalidade desta razão fotográfico-jornalística. Se a
fotografia se oferece à memória como suporte, é a memória que deve deter-
minar a escolha. Mas esta torrente de fotografias varre todos os seus diques. O
assalto de coleções de imagens é de tal modo violento que talvez ameace des-
truir os traços decisivos à consciência. O mesmo destino afeta as obras de arte
por meio de sua reprodução. Para a multiplicação do original vale a sentença:
companheiro de prisão, companheiro de forca; no lugar de aparecer atrás das
reproduções, a obra tende a desaparecer na sua multiplicidade e a continuar
sua vida enquanto fotografia artística. Nas revistas ilustradas o público vê o
mundo que as revistas impedem realmente de perceber. O contínuo espacial
segundo a perspectiva da câmera fotográfica recobre o fenômeno espacial do
objeto conhecido, e sua semelhança desfigura os contornos de sua “história”.
Nunca uma época foi tão pouco informada sobre si mesma. Nas mãos da
sociedade dominante a invenção das revistas ilustradas é um dos mais pode-
rosos instrumentos de greve contra o conhecimento. Para o sucesso de uma
tal greve se usa em primeiro lugar o arranjo pitoresco das imagens. A sua
justaposição exclui sistematicamente a conexão que se oferece à consciência.
A “ideia-imagem” cancela a ideia, a nevasca de fotografias trai a indiferença
em relação ao que as coisas querem dizer. Não deveria ser assim; mas para as
revistas ilustradas americanas em todo caso, imitadas de todos os modos nos
outros países, o mundo identifica-se com a quintessência das fotografias. Esta
identificação não ocorre por acaso. Pois o próprio mundo adquiriu um “rosto 75
fotográfico”, pode ser fotografado, pois este se funde no contínuo espacial que
se forma com os instantâneos. Pode depender apenas de uma fração de se-
gundo, o que é suficiente para a exposição do objeto, para que um desportista
se torne célebre, segundo os fotógrafos sob o comando das revistas ilustradas.
As figuras de belas garotas e de jovens rapazes são também assunto para a câ-
mera fotográfica. Que ela devora o mundo é um sinal do medo da morte. A
recordação da morte, que está presente em pensamento em toda imagem da
memória, as fotografias gostariam de banir pela sua própria acumulação. Nas
revistas ilustradas, o mundo torna o presente fotografável e o presente foto-
grafado torna-se inteiramente eternizado. Parece ter extirpado a morte, mas
na realidade a fotografia a abandonou.

A série de representações imagéticas, na qual a fotografia é a última etapa


histórica, começa com o símbolo. Remonta à “comunidade natural”, na qual a
consciência do ser humano é ainda prisioneira da natureza. “Como a história
das palavras isoladas começa sempre com sua significação sensorial natural e
progride somente no curso da evolução em direção a seus usos derivados, figu-
rados, na religião, na evolução do indivíduo isolado como na da humanidade
inteira, se observa a mesma progressão da substância e da matéria em relação
à psique e ao espiritual; do mesmo modo, os símbolos nos quais a humanidade
está habituada a depositar suas concepções da natureza do mundo circun-
dante possuem uma significação fundamental puramente psíquica, material.
A natureza traz em seu seio, como a linguagem, o simbolismo.”13 – A frase é
originada de um tratado de Bachofen sobre o Ócnos, o trançador de cordas,
em que demonstra que a fiação e o tecer figurados originalmente na imagem
são interpretados como atividade das forças naturais criadoras de forma. Na

13 Johann Jacob Bachofen (1815-1887). “Oknos der Seilflechter”, em Versuch über die Gräbersym-
bolik der Alten, Gesammelte Werke, volume 4. Basel: Benno Schwabe, 1954, p. 359. Conhecido
por sua penitência no Hades, o mítico Ócnos foi condenado a enrolar uma corda de palha
76 que era constantemente devorada por um burro.
medida em que a consciência começa se interiorizar e com isto desaparece
aquela “identidade entre homem e natureza” (Marx, A ideologia alemã), a ima-
gem assume, passo a passo, uma significação derivada, imaterial. Mas mesmo
se esta significação progredisse, segundo a expressão de Bachofen, para uma
definição do “psíquico e do espiritual”, está de tal modo ligada à imagem que
não seria possível se separar dela. Por longos períodos da história representa-
ções figurativas conservaram-se como símbolos. Tanto que o homem necessita
deles, ele se encontra em um estado de dependência prática das condições na-
turais, dependência que condiciona a expressão visível e tangível da consciên-
cia. Apenas com o crescente domínio sobre a natureza a imagem perde a sua
força simbólica. A consciência, destacando-se da natureza e contrapondo-se a
ela, não é mais ingenuamente forjada no invólucro mitológico: a consciência
pensa por conceitos que, certamente, podem ser utilizados com uma intenção
totalmente mitológica. Em determinadas épocas a imagem conserva ainda sua
força: a representação simbólica torna-se assim uma alegoria. “A alegoria re-
presenta simplesmente um conceito geral ou uma ideia que é diferente dela; a
representação simbólica, ao contrário, é a ideia mesma encarnada e tornada
tangível aos sentidos”,14 afirma Creuzer em sua definição da diferença entre os
dois tipos de imagem; sobre o plano simbólico, o pensamento está contido na
imagem, no plano alegórico, o pensamento conserva e utiliza a imagem, como
se a consciência vacilasse em rejeitar este invólucro. O esquematismo é tosco.
Mas é suficiente para tornar visível a mudança nas representações, a saída da
consciência do seu estado de sujeição à natureza. Quanto mais decididamente,
no curso do processo histórico, a consciência se liberta de tal sujeição, tanto
mais puro se lhe apresenta o seu fundamento natural. Pois o que se quer dizer
não se apresenta mais em imagens, mas o que se quer dizer emana da natu-
reza e a perpassa. A pintura europeia dos últimos séculos reproduziu, cres-
centemente, uma natureza despojada de significados simbólicos e alegóricos.
Não por isso, certamente, os traços humanos refigurados são desprovidos de
significado. Ainda na época dos velhos daguerreótipos a consciência está de

14 Georg Friedrich Creuzer (1771-1858). Symbolik und Mythologie der alten Völker, besonders
der Griechen, volume 4. Leipzig: Carl Wilhelm Leske, 1836-43, p. 540. 77
tal modo integrada à natureza que os rostos representam conteúdos insepa-
ráveis da vida natural. Já que a natureza se transforma em perfeita sincronia
com o estado de consciência daquele momento, o fundamento natural vazio
de significado faz sua aparição no mesmo tempo que a fotografia moderna.
Também a fotografia, não diversamente dos outros modos de representação
anteriores, está subordinada a um grau determinado de desenvolvimento da
vida prático-material. É o processo de produção capitalista que a engendra.
A mera natureza que aparece na fotografia vive sua vida inteiramente na rea­
lidade da sociedade engendrada por este processo. Pode-se imaginar uma
sociedade presa de uma natureza muda, não possuindo nenhum significado
por mais abstrato que seja seu silêncio. Os contornos de uma tal sociedade
aparecem nas revistas ilustradas. Se esta tivesse alguma consistência, a eman-
cipação da consciência teria como consequência seu próprio extermínio; a
natureza não apreendida pela consciência senta-se à mesa que esta abando-
nou. Mas esta sociedade não possui nenhuma consistência, oferecendo assim
à consciência emancipada uma chance incomparável. Não imiscuível às con-
dições naturais, como nunca ocorreu antes, a consciência pode experimentar
sobre elas seu próprio poder. A guinada em relação à fotografia representa o
jogo de azar da história.

Enquanto a avó desapareceu, a crinolina, no entanto, permaneceu. A totalidade


de todas as fotografias deve ser entendida como o inventário geral da natureza
que não se deixa reduzir ulteriormente, como o catálogo completo de todos
os fenômenos que se manifestam no espaço, na medida em que estes não são
construídos sobre a base do monograma do objeto, mas se oferecem de uma
perspectiva natural que o monograma não abarca. Ao inventário espacial cor-
responde o inventário temporal do historismo. No lugar de conservar a “histó-
ria” que a consciência abstrai da sucessão temporal dos eventos, o historismo
registra apenas uma sucessão que não inclui a transparência da história. A fria
autodenúncia dos elementos espaço-temporais pertence a uma ordenação so-
78 cial regulada segundo leis econômicas naturais.
A consciência prisioneira da natureza não é capaz de perceber o seu fun-
damento. A tarefa da fotografia é mostrar o fundamento natural ainda não
examinado. Pela primeira vez na história a fotografia lança luz em todo o
envoltório natural e torna presente, por meio dela, o mundo dos mortos em
sua independência em relação aos homens. A fotografia mostra cidades em
perspectiva aérea, faz descer as volutas e figuras das catedrais góticas, todas as
configurações espaciais são incorporadas no arquivo principal com interseções
incomuns que se distanciam da medida humana. Se o traje da avó perdeu sua
relação com o presente, não mais se torna, no entanto, cômico, mas curioso
como um pólipo submarino. Um dia o sobrenatural da diva desaparecerá e
seu penteado à la garçonne permanecerá junto do coque. Assim é como os
elementos se desagregam na medida em que não há mais coesão entre eles.
O arquivo fotográfico reúne, sob a forma de cópias, os últimos elementos da
natureza alienados da intenção.
Por meio de sua estocagem é intensificada a confrontação entre consciên­
cia e natureza. Como a consciência se encontra diante da rude mecânica pro-
duzida pela sociedade industrializada, do mesmo modo – graças à técnica
fotográfica – o reflexo da realidade se dissocia dela. Originar a confrontação
decisiva em todos os âmbitos: eis precisamente o jogo de azar do processo his-
tórico. As imagens do conjunto natural, decomposto em seus elementos, são
responsáveis pela livre disposição da consciência. A sua disposição original de-
sapareceu, não se encontra mais na conexão espacial que se ligava a um origi-
nal que a imagem da memória selecionou. Mas se os resíduos naturais não têm
como meta formar imagens da memória, a sua disposição presente na memó-
ria é, necessariamente, provisória. Caberia, portanto, à consciência demons-
trar a provisoriedade de todas as configurações dadas, senão até mesmo de
despertar o pressentimento de ordem justa do existente natural. Nas obras de
Franz Kafka, a consciência emancipada assume esta obrigação; ela destroça
a realidade natural e contrapõe os fragmentos um ao outro, mudando-lhes a
ordem. Nada pode tornar mais evidente a desordem dos resíduos refletidos
na fotografia que suprimir toda relação habitual entre os elementos naturais.
Agitar estes elementos é uma das possibilidades do cinema. Este a realiza lá
onde associa partes e planos e dá vida a configurações estranhas. Se a mistura 79
das imagens das revistas ilustradas é confusão, este jogo com a natureza redu-
zida a pedaços faz lembrar o sonho, em que são embaralhados os fragmentos
da vida diurna. O jogo mostra que não se conhece um princípio organizador
válido, segundo o qual se deveria dispor um dia o que resta hoje da avó e da
diva do cinema reunidos no inventário geral da fotografia.

80
A viagem e a dança

Mas viajantes de fato apenas são aqueles


Que partem por partir; de coração flutuante
baudelaire 1

Hoje a chamada sociedade burguesa se dá o prazer de viajar e de dançar com


uma tal paixão como nenhuma época anterior foi capaz de se entregar a ativida-
des tão profanas. Seria muito simples relacionar essas paixões espaciotemporais
ao desenvolvimento das comunicações ou de compreendê-las como desdobra-
mento psicológico do pós-guerra. Por mais que essas indicações sejam perti-
nentes, elas não esclarecem nem a forma particular, e tampouco a significação
própria de que se revestiram no presente ambas as manifestações de vida.

A Viagem à Itália de Goethe era dedicada ao país que Goethe procurava com
a alma,2 a alma hoje – ou o que se chama hoje de alma – está à procura da
mudança espacial que a viagem lhe oferece. O escopo da viagem moderna

1 “Mais les vrais voyageurs sont ceux-là seuls qui partent/ Pour partir; coeurs légers, semblables aux
ballons”. Do poema “A viagem” [Le Voyage], em As flores do mal [Les Fleurs du Mal] (1861). [ed.
bras.: Poesia e prosa, tradução de Ivan Junqueira, Rio de Janeiro: Nova Aguiar, 1995, p. 213]
2 Johann Wolfgang Goethe, Italienische Reise. Gedenkausgabe der Werke, Briefe und Gespräche
ed. Ernst Beutler, volume 11. Zürich: Artemis, 1950, pp. 7-613 [ed. bras.: Viagem à Itália, 1786-
1788. Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Companhia das Letras, 1999]. 81
não corresponde ao escopo da alma, mas à busca pura e simples de um novo
lugar, não de uma paisagem específica, mas muito mais da estranheza de seu
rosto. Daí a preferência pelo exótico, pela compulsão em descobrir algo que
seja inteiramente diferente, não porque este tenha sido anteriormente imagi-
nado como sonho. Quanto mais o mundo, graças ao automóvel, ao cinema,
ao avião, se encolhe, tanto mais também o conceito de exótico torna-se rela-
tivo; no lugar de se ater, como ainda hoje talvez, às pirâmides e ao Chifre de
ouro, caracteriza então qualquer lugar apreciado do mundo, na medida em
que parece incomum a outro lugar apreciado do mundo. Esta relativização do
exótico segue pari passu seu banimento da realidade – de tal modo que cedo
ou tarde as inclinações românticas terão que se agitar para erigir cercas nas
reservas naturais, nos locais pitorescos isolados, onde se pode esperar por vi-
vências que hoje nem mesmo Calcutá pode mais oferecer. O que logo será o
caso. Graças às vantagens da civilização, são praticamente ínfimas as partes da
superfície terrestre que se podem chamar ainda de terra incógnita, os homens
se sentem em casa por toda parte, em seu país ou em qualquer lugar – ou não se
sentem em casa em lugar nenhum. Eis o porquê, em sentido estrito, da viagem
estar tão à la mode atualmente, não serve mais para as pessoas fruírem a sen-
sação de espaços estranhos – um hotel é igual ao outro e a natureza ao fundo
é conhecida do leitor de revistas ilustradas – mas é empreendida para o seu
próprio bem. A ênfase cai sobre o desligamento enquanto tal que a viagem
oferece e não sobre o interesse que se procura neste ou noutro lugar; sua sig-
nificação repousa no fato de permitir o consumo do five o’ clock-tea num lugar
casualmente menos habitual do que no espaço dos negócios cotidianos. Cada
vez mais a viagem torna-se a ocasião incomparável para se estar em qualquer
lugar, ou mesmo lá onde se está habitualmente; cumpre sua função decidida-
mente como transformação espacial, como troca transitória de estadia.

Se a viagem reduziu-se a uma pura vivência do espaço, a dança transformou-se


em um escandir do tempo. O sonho de valsa acabou,3 passou a vivacidade mi-

3 Referência a Ein Walzertraum, opereta em três atos de Felix Doermann e Jacobson, com
82 música de Oskar Straus (1870-1954).
nuciosamente regrada da Française; e terminou também tudo o que conota
aquela cerimoniosidade dançante: o flerte amável, o gracioso encontro nesse
meio sensual – a velha geração é a única ainda a conjurá-la. A dança da socie-
dade moderna, alienada da trama de convenções que rege as camadas médias,
tende a representar pura e simplesmente o ritmo; a dança não mais exprime os
conteúdos determinados no tempo, o tempo tornou-se o verdadeiro conteúdo
da dança. Se, nos seus inícios, a dança era um ato de culto, hoje é um culto do
movimento; se anteriormente o ritmo era uma declaração psicoerótica, hoje o
ritmo satisfaz a si mesmo, cancelando em si todo significado. Um tempo que
não almeja nada a não ser a si mesmo: eis a intenção secreta do jazz, sua ori-
gem é vizinha da escultura negra. Esforça-se em levar a melodia à extinção e
de tornar pouco a pouco as cadências mais longas, assinalando o declínio do
sentido, porque nela se desvela e aperfeiçoa a mecanização já presente na me-
lodia. Aqui se consuma a passagem da significação designada pelo movimento
em movimento que se limita a se autodesignar, é o que comprova igualmente o
uso de figuras devidamente recortadas pelos professores de dança parisienses.
Seus resultados não são determinados por uma lei objetiva de conteúdo, a qual
a música também se adequaria, mas nascem livremente dos diferentes impul-
sos de movimento que orientam a música. Uma individuação, se assim se quer,
que não visa de modo algum ao individual. Com efeito, o jazz, não impor-
tando quão vital seja seu comportamento, abandona ele mesmo o vital, pura
e simplesmente; os tipos de andamento inaugurados por ela, e que tendem
visivelmente não ser mais que desprovidos de significação, não são mais que
simples representações rítmicas das vivências temporais, para as quais o sin-
copado é a última felicidade. Certamente, a música, enquanto acontecimento
temporal, não pode prescindir do ritmo; são, portanto, duas coisas distintas
para ela: aprender o essencial pelo ritmo ou encontrar no ritmo o inessencial.
Seu estilo desportista hoje testemunha o fato de que tem como meta, além do
movimento disciplinado, nada de essencialmente significativo.
A viagem e a dança possuem, portanto, uma inquietante tendência a se
formalizar, não são mais acontecimentos que se desenvolvem igualmente no
espaço e no tempo, mas estampam a metamorfose do espaço e do tempo em
acontecimento. Se fosse diferente, seus conteúdos não se deixariam determi- 83
nar em medida crescente pela moda. Esta extermina o valor próprio das coisas,
sobre as quais estende seu domínio, ao submeter a forma dos fenômenos às
transformações periódicas que não são fundadas nas relações entre as pró-
prias coisas. Sua imposição caprichosa deforma o mundo; teria um caráter
simplesmente destruidor se não fosse, ao mesmo tempo, a confirmação, em
um domínio por si mesmo ordinário, da íntima ligação humana aos objetos
eles mesmos transformados em signos. Que a criação e a escolha das estações
balneárias atualmente revelam em boa parte o arbitrário da moda, esta não faz
mais que trazer uma prova suplementar da crescente indiferença em relação
ao fim mesmo da viagem. Deste modo, a tirania arbitrária da moda permite
também a conclusão, em relação à dança de salão, que os movimentos favori-
tos da estação não são necessariamente ricos de conteúdo.
Certamente, enquanto instituições formalizadas, a viagem e a dança estão,
já faz um tempo, enormemente comprometidas. A qual lugar, a qual passe de
dança se dá preferência, estas questões estão ligadas sem dúvida, como aquela
do penteado, às instruções deste estranho e dessacralizado anônimo, na socie-
dade que dá o tom sobre a cegueira dos caprichos e consome com indulgência
o espaço e o tempo. Essa parece ser a exigência. A aventura do movimento
enquanto tal, eis o que provoca entusiasmo; o escorregar de um lado para ou-
tro dos espaços e tempos normais em direção ao que não foi ainda mesurado
excita a paixão; a vagabundagem através das dimensões vale como ideal. Esta
vida dupla espaciotemporal mal poderia ser desejada com tamanha intensi-
dade se não fosse a desfiguração da vida real.

O homem real, que não renunciou a se tornar uma simples figura de um fun-
cionamento mecanizado, se opõe à dissolução no espaço e no tempo. Está lá
presente, sem dúvida, neste espaço, mas sem se identificar ou sem se abismar
nele, se expande além das latitudes e longitudes até uma infinitude supraespa-
cial que não sofre nenhuma confusão com a infinitude do espaço astronômico.
E o tempo, muito menos, lhe abarca como percurso vivido ou que é medido
pelo relógio; mais do que isso, está apto à eternidade que é diferente do tempo
infinitamente prolongado. Vive também no mais aquém, que nele aparece e
84 em que ele está – ele vive no mais aquém não isoladamente, sabendo do cará-
ter condicional e inacabado de quem já experimentou a morte. De qual outra
maneira tudo o que transcorre no tempo e no espaço poderia atingir um tal
nível de realidade, senão através das relações do homem com o incondicionado,
mais além do espaço e acima do tempo? Enquanto existente, este homem real
é um cidadão de dois mundos propriamente dito ou mais precisamente: existe
em ambos os mundos – envolvido na vida espaciotemporal não sendo subsu-
mido a esta, se orienta em direção ao mais além, no qual todo o “aqui” encon-
traria sua significação e sua conclusão. A necessidade do “aqui” obter uma tal
complementação se manifesta na obra de arte. Na medida em que a arte con-
figura o fenomênico, a arte lhe dispõe de uma forma que lhe permite dotar de
uma significação exterior a ele, relacionando-se a um sentido que transcende
espaciotemporalmente e eleva o efêmero à criação. O homem real se comporta
de maneira concreta frente a frente a este sentido, que na obra de arte se une
ao existente em uma unidade estética. Preso ao aqui e carente de mais-além,
ele se conduz, literalmente, a uma dupla-existência que não se deixa cindir em
duas posições a ocupar sucessivamente, mas ao contrário, refuta toda laceração
na medida em que participa de ambos os reinos em virtude de uma tensão in-
terior. Sofre a tragédia porque aspira a realizar aqui o incondicional, conhece
a reconciliação porque a imagem da perfeição se reflete nele. Está constante-
mente ao mesmo tempo no espaço e no limiar do infinito supraespacial, no
fluxo do tempo e no reflexo da eternidade, e esta dualidade de sua existência
forma uma unidade, pois seu ser é justamente a tensão entre aqui e acolá. Quer
viaje, quer dance, jamais viagem e dança são para ele acontecimentos que lhe
conferem sentido. Recebe o seu conteúdo e a sua forma, como toda atividade
daquele outro reino ao qual se dirige.
As potências que conduzem à mecanização não transcendem nem o espaço
nem o tempo. Vivem da graça de um intelecto que não conhece a graça. Na
medida em que crê poder experimentar o mundo com base em pressupostos
mecanicistas, se libera em relação ao mais além e leva a realidade a um es-
tado de desvanecimento pelo homem que se situa mais além do espaço e do
tempo. Este intelecto tornado autônomo engendra a técnica e conduz a uma
racionalização da vida e submete a vida à técnica. Na medida em que pode
realizar um tal nivelamento radical do elemento vital apenas a preço de re- 85
nunciar a determinação espiritual do homem, e no momento em que está tão
liso e brilhante como um automóvel, deve remover as camadas intermediárias
da psique, não se pode atribuir nenhum senso real a esta atividade mecânica
sob esta figura mecânica que criou. A técnica torna-se fim em si mesma que
dá origem a um mundo que, dito de modo vulgar, não deseja mais do que a
tecnicização de todos os acontecimentos. Por quê? Não se sabe. O mundo sabe
apenas que, graças ao intelecto, o espaço e o tempo podem ser conquistados e
se orgulha desta dominação mecânica. Rádio, telefotografia e outras invenções
do gênero da fantasia racional servem todos com ausência de fins a um único
fim: a pervertida onipresença em todas as dimensões calculáveis. A expansão
do tráfego pela terra, ar e mar representa um evento extremo, os recordes de
velocidade constituem um fato excepcional. Certamente, pois não resta nada
mais a desejar para um homem, apenas portador do intelecto, feliz superação
das barreiras espaciotemporais que confirma sua soberania racional. Quanto
mais tenta, no entanto, lidar com as coisas com auxílio da matemática, mais
se torna ele mesmo um dado matemático no espaço e no tempo. A sua exis-
tência se decompõe em uma série de atividades impostas pela organização, e
nada corresponde mais à mecanização porque ele, por assim dizer, se reduz a
um ponto, a um membro do aparato intelectual. A coação para se degenerar
nesta direção já pesa gravemente sobre os homens. Encontram-se possuídos
de forças num cotidiano que os manobra a serviço dos excessos técnicos e,
apesar ou talvez em decorrência da justificação humanitária do taylorismo,
tornam-se, em vez de senhores das máquinas, maquinizados.
Nesta situação dominada pelas categorias mecanicistas, de onde vem à
superfície os rostos das figuras de Georg Grosz, tornou-se mais difícil aos
homens conduzir uma dupla existência que seja verdadeiramente tal. Se estes
aspiram estabelecer uma relação com a realidade, entretanto, em vez disso, co-
lidem contra o muro daquelas categorias e são atirados na arena espaciotem-
poral. Gostariam de experimentar o infinito e são pontos no espaço, gostariam
de se relacionar com o eterno e são engolidos pelo tempo que flui. O acesso às
esferas almejadas está bloqueado, sua exigência de realidade pode se exprimir
apenas de modo impróprio.
86
Os homens civilizados, por assim dizer, encontram hoje na viagem e na dança
um substituto para aquela esfera que os nega. Como são prisioneiros do sis-
tema de coordenadas espaciotemporais e não podem se colocar além das for-
mas de contemplação da contemplação das formas, o mais-além torna-se em
parte para eles apenas uma mudança de sua posição no espaço e no tempo.
Para assegurar o seu direito de cidadania nos dois mundos eles, reduzidos a
pontos no espaço e no tempo, devem encontrar-se alternativamente neste e
naquele lugar e mover-se ora com esta ora com aquela velocidade. A viagem e
a dança adquiriram um significado teológico para as figuras presas nas garras
da mecanização, são possibilidades essenciais de viver, mesmo que de maneira
imprópria, aquela dupla existência constitutiva da realidade. Como viajantes
distanciam-se do lugar habitual; e chegam a um outro lugar desconhecido, é o
meio que lhes resta para mostrar a si mesmos que transcendem as regiões do
mais-aquém às quais pertencem. Realizam a experiência da infinitude supra-
espacial, através da viagem em um espaço geográfico indefinido, que não visa
a nenhuma região particular, mas que logo esgota o seu significado no simples
fato de mudar de lugar. Como já foi dito, o entrecho da realidade se decompõe
em uma sucessão, em uma sequência. Enquanto se dirigem para o incondi-
cionado não se encontram apenas no espaço, mas vivem no espaço; as figuras
da atividade mecanizada, ao contrário, encontram-se ou em seus lugares ha-
bituais ou alhures, o estar aqui ou acolá não são nunca simultâneos, a indis-
solúvel duplicidade cinde-se em dois acontecimentos separados. O mesmo se
sucede com a vivência do tempo. A dança é para os homens violentados pelo
intelecto a possibilidade de abarcar o eterno; a dupla existência torna-se para
eles um duplo comportamento no próprio tempo; é somente no efêmero que
apreendem o não-efêmero. Pois igualmente decisivo, no interior de um meio
temporal, é esta transformação formal, este sair fora do tempo da atividade
profana para passar para um outro tempo; é o ritmo em si e não aquele indi-
cado pela dança. E também neste meio as figuras reduzidas a pontos podem
de um só fôlego, por assim dizer, se dar conta da dupla existência, como fazem
os homens realmente existentes. Extirpa-se a tensão que o eterno assume no
temporal, não só ao mesmo tempo aqui e acolá, mas aqui e sucessivamente
alhures – aqui de um modo qualquer. A imagem deformada da eternidade lhes 87
resulta apenas como sucessão de uma reunião do conselho de administração
e de uma exibição na dança.
A maneira como são realizadas hoje as superviagens espaciotemporais con-
firma à saciedade esta verdade: seu usufruto é de fato uma desfiguração da
existência real, reclusa nela mesma. O que se espera e o que se retém da viagem
e da dança: a liberação da gravidade terrestre, a possibilidade de uma relação
estética em relação à fadiga organizada – o que corresponde a uma elevação
além do efêmero e limitado da qual o homem real pode experimentar em re-
lação ao eterno e ao incondicionado. Só que as figuras não percebem o mais
aquém em sua limitação, mas se livram de todo condicionamento cotidiano
no interior mesmo da limitação do aqui. O mais aquém equivale para eles à
atividade corrente do escritório, compreende apenas o achatamento cotidiano
no espaço e no tempo, mas não o humano puro e simplesmente (logo, a viagem
e a dança). E quando nos intervalos refutam sua fixidez espaciotemporal, lhes
parece que o mais aquém já lhes conduz ao mais-além, pois lhes falta a palavra
para isso. Quando viajam, não importando qual a destinação, as amarras se
rompem, imaginam que a infinitude se estende diante deles; já no trem, eles se
transportam para outro lugar e o mundo, onde desembarcam, é para eles um
novo mundo. Do mesmo modo, aquele que dança também possui o ritmo da
eternidade; o contraste entre o tempo, no qual ele paira e o tempo que lhe ex-
termina, é sua própria felicidade em um âmbito impróprio, e a dança mesma
pode se reduzir a um só passo, pois o essencial é apenas a dança.

Vladimir Soloviev4 diz em Justificação do bem: “[…] se é necessário que, numa


época determinada, os homens inventem e construam máquinas de todo tipo,
cavem o canal de Suez, descubram terras desconhecidas etc. – para a satisfa-
ção dessas tarefas é necessário também que todos os homens não sejam místi-
cos, já que nenhum deles seriamente crê”. Esta afirmação incerta, hesitante do

4 Vladimir Soloviev (1853-1900), escritor e filósofo russo. Defensor de um “realismo místico”


inspirado na filosofia neoplatônica, contrário à pena de morte, foi perseguido e proibido de
ensinar. Serviu de modelo para Dostoiévski criar a personagem Aliocha de Os irmãos Kara-
88 mázov. Sua obra Justificação do bem [Opravdanie dobra] é de 1895.
elemento civilizatório, é mais real do que o culto radical do progresso, tenha
esta uma origem racional ou que se inspire em uma utopia; mais verdadeira do
que a maldição daqueles que fogem romanticamente das situações em que são
obrigados a viver. Aferram-se firmemente a promessas, sem se privar da pala-
vra; diante dos fenômenos emancipados em relação a seus fundamentos não
só como deformações e como reflexo distorcido, mas reconhecendo mesmo
assim suas possibilidades positivas.
Mesmo o deslocar-se apaixonado nas dimensões espaciotemporais exige
a salvação, se é pensando em sua negatividade até o fim. Talvez a busca fer-
vorosa de uma simples mudança de lugar e de tempo seja determinada pela
exigência de dominar, em todos os sentidos, os âmbitos espaciotemporais
abertos pela técnica – decerto não apenas por ela. Nossas representações deste
baixo mundo ampliaram-se de modo tão abrupto que será necessário um bom
tempo antes de se passar para a empiria. Somos como as crianças quando via-
jamos, nos alegramos e brincamos com a nova velocidade, desta livre errância,
da visão conjunta de complexos geográficos inimagináveis anteriormente. A
faculdade de dispor dos espaços nos seduz, somos iguais aos conquistadores
que não encontraram tempo suficiente para se questionar sobre o sentido de
suas empreitadas. Da mesma maneira, na dança, escandimos um tempo até
então inexistente, um tempo que nos foi preparado por mil invenções, cujos
conteúdos, talvez por isso, não medimos, porque suas proporções inabituais
constituem por enquanto o conteúdo mesmo. A técnica nos surpreendeu, as
regiões que abriu estão ainda vazias…
A viagem e a dança nas suas formas atuais seriam, então, por sua vez, os
excessos de natureza teológica e de fenômenos provisórios de caráter profano,
de deformações do ser real e de conquistas em meios irreais de espaço e de
tempo. Estes poderiam ganhar sentido se os homens fossem além dos âmbitos
recentemente conquistados no mais aquém, em direção ao infinito, ao eterno
que não poderia ser alcançado por nenhum mais aquém.

89
O ornamento da massa

As linhas da vida são diversas


São como caminhos e como os limites dos montes
Aquilo que aqui somos, poderá um Deus ali completar
Com harmonias e prêmio eterno e paz.

hölderlin 1

O lugar que uma época ocupa no processo histórico pode ser determinado
de modo muito mais pertinente a partir da análise de suas discretas mani-
festações de superfície do que dos juízos da época sobre si mesma. Estes, en-
quanto expressão de tendências do tempo, não representam um testemunho
conclusivo para a constituição conjunta da época. Aquelas, em razão de sua
natureza inconsciente, garantem um acesso imediato ao conteúdo fundamen-
tal do existente. Inversamente, ao seu conhecimento está ligada sua interpre-
tação. O conteúdo fundamental de uma época e os seus impulsos desprezados
se iluminam reciprocamente.

1 “Die Linien des Lebens sind verschieden,/ Wie Wege sind, und wie der Berge Grenzen./ Was
hier wir sind, kann dort ein Gott ergänzen/ Mit Harmonien und ewigen Lohn und Frieden.”
“Para Zimmer” [An Zimmern]. Friedrich Hölderlin, Sämtliche Werke, Berlim, 1923. 91
2

No domínio da cultura do corpo, que também invadiu as revistas ilustradas,


ocorreu silenciosamente uma mudança de gosto. O processo começou com as
Tillergirls.2 Este produto das fábricas americanas de distração [Zerstreuung] já
não é mais constituído por garotas individuais, mas complexos indissolúveis
de garotas, cujos movimentos são demonstrações matemáticas. Enquanto elas
se condensam em figuras nos teatros de revistas, espetáculos da mesma preci-
são geométrica acontecem no mesmo estádio sempre lotado na Austrália e na
Índia, para não falar na América. A menor das localidades, na qual esse espe-
táculo ainda não foi divulgado, será informada por meio do cinejornal da se-
mana. Basta um olhar na tela para entender que os ornamentos consistem em
milhares de corpos, assexuados, em roupas de banho. A regularidade de seus
desenhos é aplaudida pela massa, disposta ordenadamente nas tribunas.
Estes espetáculos, que não são realizados somente por girls e frequentado-
res de estádios, há tempos assumiram forma fixa e alcançaram reconhecimento
internacional. Eles se tornaram foco de interesse estético.
O elemento portador do ornamento é a massa. Não o povo [Volk], pois,
sempre que este forma figuras, elas não estão soltas no ar, mas surgem do seio
da comunidade. Uma corrente de vida orgânica emana dos grupos ligados
fatalmente aos seus ornamentos, que surgem como uma criação mágica e são
assim providos de significado, de tal modo que não se deixam diluir em es-
truturas lineares presas. Também aqueles que, excluídos da comunidade, se
consideram possuidores de uma personalidade individual própria, falham na
criação de novos modelos. Se chegassem a fazer parte do espetáculo, o orna-
mento não os transcenderia. Resultaria em uma composição colorida, não
completamente calculável, já que, tal qual os dentes de um ancinho, os seus
vértices se enterrariam nos estratos intermediários da alma, dos quais ainda
resta um resíduo. Os modelos dos estádios e dos cabarés não revelam nada de
semelhante origem. São compostos com elementos que são meras pedras de

2 Tillergirls: companhia de revista americana, que veio em turnê à Europa pela primeira vez
92 em 1929 e se apresentou em Berlim.
construção e nada além disso. A construção do edifício depende do formato
e do número das pedras. É a massa que é empregada aqui. Tão-somente en-
quanto parte da massa – não enquanto indivíduos, que creem serem formados
a partir do seu interior – é que os homens são fragmentos de uma figura.
O ornamento é fim em si mesmo. Também o ballet de épocas passadas
usava ornamentos que se movimentavam tal qual um caleidoscópio. Mas, can-
celado o seu significado ritual, eles permaneciam como a figuração plástica
da vida erótica, que esta vida erótica produzia a partir de si e determinava os
seus traços. Os movimentos de massa das girls, em compensação, situam-se
no vazio; é um sistema de linhas que perdeu todo o seu significado erótico,
mas, todavia, indica o local no qual o erótico se manifesta. Assim também as
constelações vivas nos estádios não possuem o significado das evoluções mi-
litares. Não importa a regularidade com que estas sempre surjam, sua regu-
laridade era considerada como meio para um fim; assim a marcha de parada
nascia dos sentimentos patrióticos que, por sua vez, eram despertados nos
soldados e nos súditos. As constelações não têm nenhum significado além de
si mesmas, e a massa, sobre a qual elas são visíveis, não é uma unidade ética
como uma companhia de soldados. Além disso, não se pode também des-
crever essas figuras como acessório decorativo da disciplina de ginástica. As
unidades de girls treinam muito mais para produzir um número imenso de
linhas paralelas e, para obter um desenho de proporções impensadas, seria
desejável treinar massas humanas cada vez mais amplas. O resultado final é o
ornamento, para cuja clausura [Verschlossenheit] os elementos portadores de
substância se esvaziam.
O ornamento não é pensado pelas massas que o realizam. É absolutamente
linear: nenhuma linha emergindo das partículas da massa prevalece sobre a fi-
gura inteira. Nisto assemelha-se às fotografias aéreas de paisagens e de cidades,
nas quais não emerge do interior dos elementos dados, mas aparece sobre estes.
Os atores também não calculam o quadro cênico em sua totalidade, embora
participem conscientemente da sua construção e, no caso dos bailarinos do
ballet, a figura ainda está sujeita à influência dos seus atores. Quanto mais a
sua relação é meramente linear, tanto mais a figuração se subtrai à imanência
consciente daqueles que a constituem. Com isso, a figura não é atingida por 93
um olhar que poderia ser mais decisivo, mas ninguém a veria, se diante do
ornamento não se sentasse uma massa de espectadores que se comportasse
esteticamente em relação a ele e não representasse ninguém.
O ornamento, separado de seus portadores, deve ser compreendido racio-
nalmente. Ele se compõe de ângulos e círculos, tal como aparecem nos ma­nuais
de geometria euclidiana; incorpora também componentes elementares da fí-
sica, tais como ondas e espirais. Mas as excrescências de formas orgânicas e as
emanações permanecem excluídas da vida psíquica. As tillergirls não podem
mais ser recompostas em criaturas humanas e jamais os exercícios livres da
massa são assumidos pelos corpos totalmente conservados, cujas contorções
se negam à compreensão racional. Os braços, as coxas e as outras partes do
corpo são os menores elementos constitutivos da composição.
A estrutura do ornamento da massa reflete aquela estrutura de toda a situa­
ção contemporânea. Visto que o princípio do processo de produção capitalista
não se originou puramente da natureza, deve destruir os organismos naturais
que representam um instrumento ou uma resistência. Comunidade popular
e personalidade se dissolvem quando o que se exige é a calculabilidade; tão-
somente como partícula da massa é que o indivíduo pode, sem atrito, esca-
lar tabelas e servir máquinas. Indiferente à diversidade da forma, o sistema a
partir de si leva ao cancelamento de todas as particularidades nacionais e à
fabricação de massa operária que, em todos os pontos da terra, possa ser em-
pregada de modo uniforme. O processo de produção capitalista é fim em si
mesmo tal como o ornamento da massa. As mercadorias que produz não são,
na verdade, produtos para serem possuídos, mas somente para ampliarem o
lucro, que se quer ilimitado. O seu crescimento está ligado àquele da empresa.
O produtor não trabalha para um ganho pessoal, do qual pode usufruir só
em escala mínima – na América o lucro excedente é destinado a instituições
culturais como bibliotecas, universidades etc. onde se cultivam intelectuais
que, com sua atividade futura, restituirão o capital antecipado com juros sobre
juros [Zinseszinsen] – o produtor trabalha para engrandecer a empresa. Que
produza valores não ocorre em razão do valor. Se antes, até certo ponto, o tra-
balho servia para produzir e consumir esses valores, eles passaram a ter efeitos
94 secundários a serviço do processo produtivo. As atividades que nele refluem
alienaram-se dos seus conteúdos substanciais. O processo de produção segue
publicamente o seu curso secreto. Cada qual executa a sua pequena ação na
esteira de montagem, exercita uma função parcial, sem conhecer o todo. Simi-
larmente ao desenho do estádio, a organização situa-se acima da massa, uma
figura monstruosa, cujo criador a subtrai do campo de visão daqueles que a
realizam e que mal a têm como observadores. – Ela é planejada segundo prin-
cípios racionais, dos quais o sistema taylorista extrai somente a última conse-
quência. Na fábrica, as pernas das tillergirls correspondem às mãos. Para além
das capacidades manuais busca-se calcular também as disposições psíquicas
por meio de testes de aptidões psicotécnicas. O ornamento da massa é o reflexo
estético da racionalidade aspirada pelo sistema econômico dominante.
As pessoas cultas – o que nem todas chegam a ser – julgaram negativamente
o ingresso das tillergirls e das imagens nos estádios. Aquilo que entretém a
multidão é considerado como pura distração da multidão. Contrariamente à
sua opinião, o prazer estético nos movimentos ornamentais da massa é legítimo.
Na verdade, eles pertencem às raras criações da época que dão forma a um
material já existente. A massa organizada nesses movimentos vem das fábricas
e dos escritórios; o princípio formal, segundo o qual é moldada, determina-a
também na realidade. Se do horizonte do nosso mundo são subtraídos conteú­
dos significativos da realidade, a arte deve necessariamente trabalhar com os
que restaram, pois uma representação estética é de fato tanto mais real quanto
menos renuncia àquela realidade que se situa fora da esfera estética. A despeito
do escasso valor que sempre se atribui ao ornamento da massa, segundo o seu
grau de realidade, ele se situa acima das produções artísticas, que cultivam os
sentimentos nobres obsoletos em formas passadas; também não quer ter em
si nenhum significado ulterior.

O processo da história é dirimido pela razão débil e remota contra as forças


da natureza que nos mitos dominavam o céu e a terra. Após o crepúsculo dos
deuses, os deuses não abdicaram, a velha natureza ainda continua a se afirmar
no homem e fora dele. Ela engendrou as grandes culturas dos povos, as quais, 95
como toda criação da natureza, devem necessariamente morrer; é dela que
nascem as superestruturas do pensamento mitológico, que confirma a natu-
reza em toda a sua onipotência. Em toda a diversidade de sua estrutura, que se
transforma com as épocas, submete-se sempre aos limites estabelecidos pela
natureza. Este pensamento mitológico reconhece o organismo como modelo
originário, quebra-se sobre a forma inerente ao existente, curva-se diante do
domínio do destino; em todas as esferas reflete novamente as premissas de
natureza sem se rebelar contra a sua permanência. A teoria orgânica da so-
ciedade que erige o organismo natural como modelo da divisão social não é
menos mitológica que o nacionalismo, que ignora uma unidade mais elevada
que aquela, fatídica, da nação.
A razão não opera no círculo da vida natural. Para ela trata-se da instau-
ração da verdade no mundo. O seu reino é pré-figurado nos contos de fadas
[Märchen] autênticos, que não são histórias milagrosas, mas anunciam o ad-
vento milagroso da justiça. Há um profundo significado histórico no fato de
que a obra As mil e uma noites encontrou o seu caminho precisamente na
França do Iluminismo [Aufklärung] e que a razão [Vernunft] do século XVIII
reconheceu a razão dos contos de fadas como a sua própria. Desde os tempos
primitivos da história, a mera natureza está superada no conto de fadas para
o triunfo da verdade. O poder natural sucumbe diante da impotência do bem,
a fidelidade triunfa sobre as artes mágicas.
Para servir à irrupção da verdade, o processo histórico torna-se processo da
desmitologização, operando a destruição radical das posições continuamente
ocupadas pelo elemento natural. O Iluminismo francês é um importante exem-
plo deste conflito entre a razão e as ilusões [Blendwerken] mitológicas, que in-
vadiram o âmbito político e o religioso. Este conflito prossegue e no decorrer
do desenvolvimento histórico é possível que a natureza, cada vez mais despida
da sua magia, se torne cada vez mais transparente em relação à razão.

A época capitalista é uma etapa no processo de desencantamento. O tipo de


96 pensamento ligado ao sistema econômico atual tornou possível a dominação
e o uso da natureza, fechada em si mesma, como em nenhuma outra época
precedente. No entanto, o que é decisivo aqui não é o fato de que este pensa-
mento se torne apto para a exploração da natureza – fossem os homens apenas
exploradores da natureza, então a natureza teria somente triunfado sobre a
natureza. Mas o que é decisivo é que este pensamento se torna cada vez mais
independente das condições naturais, criando deste modo um espaço para a
intervenção da razão. É a racionalidade deste pensamento que em parte emana
da razão (dos contos de fadas) que responde – embora não exclusivamente –
pelas revoluções burguesas dos últimos 150 anos, que ajustaram contas com os
poderes naturais da igreja (ela própria emaranhada nos acontecimentos da sua
época), da monarquia e do sistema feudal. A decomposição inevitável destas
e de outras ligações de natureza mitológica é a chance da razão, uma vez que
o conto de fadas se realiza apenas onde a natureza se dissolve.
Claro que a ratio do sistema econômico capitalista não é a própria razão,
mas sim uma razão turva. A partir de um determinado ponto, ela abandona a
verdade, da qual ela participa. A “ratio” não inclui o homem. Nem a operação
do processo de produção é regulada de acordo com as suas necessidades, nem
serve como fundamento para as estruturas da organização social e econômica,
como tampouco em nenhum momento o fundamento do sistema constitui o
fundamento do homem. O fundamento do homem: isto não significa que o
pensamento capitalista deveria cultivar o ser humano como uma formação
historicamente produzida e que deveria necessariamente deixá-lo incontes-
tado enquanto personalidade, satisfazendo as aspirações impostas pela sua
natureza. Os defensores desta tese acusam o capitalismo de que o seu racio-
nalismo viola o homem, e almejam o ressurgimento de uma comunidade, que
seja capaz de preservar melhor que a sociedade capitalista o elemento supos-
tamente humano. Abstraindo o efeito retardatário, elas não alcançam aquilo
que constitui o núcleo de debilidade do capitalismo: ele não racionaliza muito,
mas muito pouco. O pensamento do qual é portador se opõe à realização da
razão, que fala a partir do fundamento do homem.
Aquilo que marca o lugar onde se situa o pensamento capitalista é a sua
abstratividade [Abstraktheit]. A sua predominância hoje instaura um espaço
cultural que abarca todas as suas manifestações. A objeção que se levanta 97
contra este modo abstrato de pensamento – isto é, que ele é incapaz de captar
o verdadeiro conteúdo da vida e por isso deveria dar lugar a uma consideração
concreta dos fenômenos – indica certamente o limite da abstração; no entanto,
é uma objeção prematura quando beneficia aquela falsa concretude mitológica,
que vê sua finalidade no organismo e na forma. Um retorno a esta concretude
significaria abandonar a capacidade de abstração já conquistada, sem superar,
contudo, a abstratividade enquanto tal. Esta última é a expressão de uma ra-
cionalidade enrijecida. As determinações de conteúdo de sentido que operam
em uma generalidade abstrata – por exemplo, as determinações no campo
moral, político, social, econômico – não dão à razão àquilo que a ela pertence.
A empiria permanece irrefletida através dela, e dessas abstrações desprovidas
de conteúdo pode-se extrair qualquer aplicação utilitária. É somente atrás da
barreira destas abstrações isoladas que se encontram os conhecimentos sin-
gulares da razão, correspondentes à particularidade de cada situação almejada.
Não obstante a substancialidade que se deve exigir deles, tais conhecimentos
são concretos apenas em um sentido derivado; em todo caso não-concretos
no sentido vulgar, que emprega o termo concreto para designar as concepções
prisioneiras da vida natural. – A abstratividade do pensamento atual tem, por-
tanto, um duplo sentido. Do ponto de vista das doutrinas mitológicas, nas quais
a natureza se afirma de modo ingênuo, o processo de abstração, tal como é pra-
ticado pelas ciências naturais, representa um ganho de racionalidade, que pre-
judica o esplendor das coisas da natureza. Da perspectiva da razão, o mesmo
processo de abstração parece ser determinado pela natureza; ele se perde em
um formalismo vazio que serve para dar livre curso ao natural, visto que ele
não deixa passar os conhecimentos racionais, que seriam capazes de encontrar
o natural. A abstratividade predominante mostra que o processo de desmito-
logização ainda não se completou. O pensamento atual encontra-se diante do
dilema de se abrir à razão ou continuar à deriva sem abertura para ela. Não
pode ultrapassar os limites que ele mesmo se impôs, sem alterar na essência o
sistema econômico que é a sua infraestrutura; a continuidade desta significa a
continuidade deste pensamento enquanto tal. Em outras palavras, o desenvol-
vimento ininterrupto do sistema capitalista implica, portanto, o crescimento
98 ininterrupto do pensamento abstrato (o que obriga o pensamento a naufragar
na falsa concretude). Mas, quanto mais a abstratividade se consolida, menos
o homem se encontra subjugado pela razão. Ele se torna de novo submisso ao
domínio das forças da natureza, se o seu pensamento, ao permanecer a meio
do caminho desviado para o abstrato, se negar à emergência do verdadeiro
conteúdo do conhecimento. Ao invés de subjugar tais forças, este pensamento
equivocado provoca a sua própria rebelião, negligenciando a razão, que sozi-
nha poderia enfrentá-las e torná-las submissas. É uma simples consequência
da expansão do poder desenfreado do sistema econômico capitalista, que as
forças obscuras da natureza se rebelem de modo sempre mais ameaçador e
impeçam o acesso do homem à razão.

Tão ambíguo quanto a abstratividade é o ornamento da massa. De um lado, a


sua racionalidade representa uma redução do natural, que não atrofia o ho-
mem, ao contrário, se fosse totalmente realizada faria emergir de modo puro
o que há nele de essencial. Exatamente porque o portador do ornamento não
figura como personalidade total, como uma unidade harmoniosa de natureza
e “espírito”, na qual aquela é muito enfatizada e este muito pouco, torna-se
transparente ao homem determinado pela razão. A figura humana inserida
no ornamento da massa começou o êxodo [Auszug] do esplendor orgânico
exuberante e da constituição da configuração [Gestalthaftigkeit] individual
em direção àquela anonimidade, da qual se aliena, quando está sob o signo
da verdade, e os conhecimentos, que irradiam da verdadeira essência do ho-
mem, dissolvem os contornos da figura natural visível. O fato de que no or-
namento da massa a natureza é dessubstanciada indica exatamente um estado
no qual os elementos da natureza capazes de sobreviver são somente aqueles
que não resistem à iluminação por meio da razão. Assim, nas velhas pinturas
de paisagem chinesas, as árvores, os lagos, as montanhas não são mais que
modestos signos ornamentais desenhados a nanquim. O centro orgânico foi
removido e aquilo que resta é composto não segundo as leis da natureza, mas
segundo as leis fornecidas por um saber condicionado pela época e concer-
nente à verdade. Similarmente, somente restos do complexo humano entram 99
no ornamento da massa. A sua seleção e combinação no meio estético se dão
segundo um princípio que representa a razão que infringe a forma de modo
mais puro do que aqueles outros princípios que preservam o homem como
uma unidade orgânica.
Observado da perspectiva da razão, o ornamento da massa se revela então
como culto mitológico, que se oculta sob uma indumentária abstrata. Con-
frontada com a imediatidade concreta de outra representação corporal, a con-
formidade do ornamento com a razão é, portanto, uma ilusão. Na verdade, o
ornamento é a manifestação crassa da natureza inferior. Esta última é tanto
mais livre quanto mais decisivamente a ratio capitalista está separada da razão e,
ignorando o humano, se volatiza no vazio do abstrato. Apesar da racionalidade
do modelo da massa, estes modelos simultaneamente originam o elemento
natural em sua impenetrabilidade. Decerto, o homem enquanto um ser orgâ-
nico desapareceu desses ornamentos, mas isto não é suficiente para revelar o
fundamento humano; ao contrário, a pequena partícula de massa restante se
fecha contra ele tal qual um conceito formal geral qualquer. Sem dúvida, são
as pernas das tillergirls que balançam em perfeitas paralelas, mas não os corpos
em sua unidade natural, e certamente também milhares de pessoas no estádio
formam uma única estrela; mas esta não brilha e as pernas das tillergirls são
uma designação abstrata dos seus corpos. Lá onde a razão destrói a unidade
orgânica e a superfície natural como sempre cultivada se desfaz, lá ela fala, lá
fragmenta a figura humana para que a verdade não corrompida possa dar ao
homem uma nova forma. Mas no ornamento da massa a razão não penetrou,
seus modelos estão mudos. A ratio, que o produz, é suficientemente forte para
convocar a massa e eliminar toda a vida das figuras. Por outro lado, ela é muito
fraca para encontrar o ser humano na massa e tornar as figuras no ornamento
transparentes para o conhecimento. Uma vez que, em face da razão, a ratio se
refugia no abstrato, a natureza incontrolada prolifera violenta sob o manto da
expressão racional e utiliza os signos abstratos para representar a si mesma. Ela
não pode mais, tal como entre os povos primitivos e na época dos cultos reli-
giosos, converter-se em figurações dotadas de um poder simbólico. Tal força da
linguagem dos símbolos desapareceu do ornamento da massa sob a influência
100 da mesma racionalidade, que impede o rompimento do seu silêncio. Assim a
pura natureza se manifesta no ornamento da massa – a natureza que, ao mesmo
tempo, se recusa à expressão e à apreensão do seu próprio significado. É a mera
forma racional vazia do culto, destituída de qualquer sentido explícito, que se
apresenta no ornamento da massa. Ela prova ser um retrocesso na mitologia,
de tal ordem que dificilmente se poderia imaginar um maior e que, por sua vez,
denuncia novamente o isolamento da ratio capitalista contra a razão.
O papel que o ornamento da massa desempenha na vida social confirma
que é um produto do meramente natural. Os intelectualmente privilegia-
dos que, sem que o queiram de fato reconhecer, são um apêndice do sistema
econômico dominante, ainda não perceberam o ornamento da massa como
signo deste sistema. Eles negam este fenômeno para continuar a edificar-se
nas exposições de arte que permaneceram intocadas pela realidade que está
presente no modelo do estádio. A massa que adota espontaneamente este mo-
delo é superior àqueles que o desprezam, quando ela reconhece de modo claro
os fatos em estado bruto. A mesma racionalidade que controla os portadores
dos modelos na vida real governa sua submersão corporal e eterniza assim a
realidade do momento. Canções de louvor sobre a cultura do corpo não são
cantadas nos dias de hoje somente por um Walter Stolzing.3 É fácil perceber o
seu caráter ideológico mesmo que o conceito “cultura do corpo” alie, de ma-
neira inteiramente legítima, duas palavras que se pertencem em virtude dos
seus respectivos sentidos. A importância ilimitada que é atribuída ao corporal
não pode ser derivada do valor limitado que ele tem direito. Tal importância se
explica unicamente com a aliança, em parte inconsciente, que liga ao sistema
vigente as instituições que dirigem a educação do corpo. A educação física con-
fisca as forças, ao passo que a produção e o consumo impensado das figuras
ornamentais desviam da transformação da ordem vigente. O acesso à razão é
dificultado quando as massas, nas quais ela deveria penetrar, entregam-se às
sensações concedidas pelo culto mitológico pagão. O significado social deste
último é equivalente àquele dos jogos circenses, instituídos pelos detentores
do poder na antiga Roma.

3 Walter von Stolzing, personagem de Richard Wagner em Os mestres cantores de Nuremberg


[Die Meistersinger von Nürnberg] (1867). 101
6

Dentre as inúmeras tentativas de atingir uma esfera superior, muitas estão


propensas a abandonar mais uma vez a racionalidade e o nível de realidade
alcançado pelo ornamento da massa. Assim, por exemplo, os esforços físicos
no campo da ginástica rítmica, para além daqueles da higiene privada, seriam
a expressão de conteúdos psíquicos refinados, aos quais frequentemente ins-
trutores da cultura corporal muitas vezes acrescentam novas concepções de
mundo [Weltanschauungen]. Estas manifestações de ginástica rítmica, cuja
impossibilidade estética pode ser totalmente ignorada, aspiram exatamente
àquilo que o ornamento da massa deixou, alegremente, atrás de si: a ligação
orgânica da natureza com algo que os temperamentos mais modestos consi-
deram ser alma ou espírito – quer dizer, a exaltação do corpo atribuindo-lhe
significações, que dele emanam e que podem, sem dúvida, ser de ordem espiri-
tual, mas que em si não contêm nenhum vestígio de razão. E assim, enquanto o
ornamento da massa representa a natureza muda sem qualquer superestrutura,
a ginástica rítmica apreende também no seu aspecto as esferas mitológicas
superiores, consolidando desta maneira a natureza no seu domínio. Ela é um
exemplo dentre muitos outros esforços, igualmente sem esperança, de alcançar,
a partir destas massas, uma vida superior. Muitos destes esforços dependem
de uma maneira verdadeiramente romântica de formas e de conteúdos, que
há muito sucumbiram à crítica, em parte legítima, da ratio capitalista. Ao de-
sejarem mais uma vez unir o homem à natureza mais solidamente do que se
encontra hoje, descobrem o acesso à esfera superior, não apelando à razão
ainda não realizada neste mundo, mas retornando às estruturas mitológicas
de sentido. O seu destino é a irrealidade; pois deve desaparecer mesmo quando
em algum ponto do mundo transparece também a entidade mais sublime,
que tenta proteger-se da irrealidade. Empreendimentos que ignoram nosso
contexto histórico e aspiram reconstruir uma forma de Estado, uma comuni-
dade, um modo de expressão artística, que dependem de um tipo de homem
impregnado pelo pensamento contemporâneo, um tipo de homem que, na
realidade, não existe mais – tais empreendimentos não transcendem o orna-
102 mento da massa em sua trivialidade [Niedrigkeit]. Apelar para eles não significa
elevar-se sobre a sua platitude vazia e exterior, mas sim uma fuga diante da sua
realidade. O processo da história consiste em atravessar o ornamento da massa
e não consente voltar para trás. Ele só pode se mover para adiante quando o
pensamento circunscreve a natureza e constrói o homem, tal como ele é cons-
tituído, a partir da razão. Então a sociedade se transformará. E assim também
o ornamento da massa desaparecerá e a vida humana assumirá por si só os
traços do ornamento tal como este se exprime nos contos de fadas, em face
da verdade.

103
Sobre livros de sucesso e seu público

A série de artigos, que apareceu na seção de literatura do Frankfurter Zeitung


sob o título “Como se explicam os grandes sucessos de livros?”, suscitou grande
interesse nos círculos de leitores e editores. Nela foram incluídos até agora
ensaios que tratam das obras de sucesso de Richard Voss, Stefan Zweig, Erich
Maria Remarque e Frank Thiess; a estes acrescentou-se ainda Jack London,
embora não pertença exatamente à série.1 A lista poderia prosseguir e eu, por
exemplo, imaginar que em seu âmbito se discutiria a popularidade das obras
biográficas2 ou se perguntaria sobre as razões pelas quais um bom número de
romances, publicados nos jornais ilustrados, tiveram aceitação entusiasmada.
Em todo caso, penso que esses estudos acima mencionados são suficientes para
esclarecer a intenção ligada a essa série. O ponto de vista que perpassa todos
esses artigos foi, contudo, mal entendido. Assim pareceu-nos apropriado desta-

1 Friedrich Burschell escreveu sobre Stefan Zweig; Efrain Frisch sobre Remarque; Erich Fran-
zen sobre Jack London; Siegfried Kracauer sobre Frank Thiess e a obra Dois homens [Zwei
Menschen] de Richard Voss.
2 Cf. o ensaio de Kracauer “A biografia como forma de arte da nova burguesia”, neste volume. 105
cá-lo do material e examiná-lo separadamente. Para a apresentação deste ponto
de vista serão utilizados os resultados obtidos pelas análises publicadas.

A seleção encontrada para os best-sellers já aponta para o objetivo da série. Uma


quantidade desses livros já foi de antemão excluída. Logo de início, não foram
tratados exemplares de literatura barata e de gosto duvidoso [Kolportage]: seja
aquela óbvia, seja a dissimulada. A Kolportage indiscutivelmente sempre des-
frutou de uma grande circulação, mas, com certeza, por razões que permane-
cem as mesmas e não servem exatamente para esclarecer a presente situação.
Ela reúne conteúdos significativos sob uma forma alterada e responde a ten-
dências que evoluem tão pouco quanto o seu esquema de composição. Se o
sucesso desses romances está ligado à satisfação de instintos de longa duração
e de expectativas profundas, o sucesso dos outros best-sellers depende da sua
relação com acontecimentos sensacionais que, naquele momento, cativam a
consciência geral. Aqueles hits literários, cuja relevância é puramente momen-
tânea, também foram excluídos da série. Do mesmo modo, também foram
pouco consideradas aquelas publicações voltadas desde o início para determi-
nados círculos de interesse – isto é, obras marcadas por tal ou qual tendência
política, e livros que devem sua divulgação pelo fato de atenderem ao mundo
das representações católicas ou aos modos de pensamento do proletariado. De
onde vêm essas tiragens massivas? A resposta é fácil. Em princípio, o sucesso
de livros que não pertencem a nenhum dos gêneros acima mencionados po-
deria ser atribuído fundamentalmente à abundância de conteúdos em geral
verdadeiros e universalmente convincentes. Se assim fosse, uma análise só
teria de tornar estes conteúdos visíveis para explicar o sucesso das obras em
questão. No entanto, o fato é que os conteúdos lembram as estrelas: a luz que
delas emana só nos alcança muitas décadas depois. Houve épocas na história
da humanidade durante as quais muitas dessas estrelas pareciam ter sido des-
cobertas definitivamente e, assim, não era necessário procurá-las. Mas hoje o
céu está obscurecido e, quem sabe, não seria possível localizá-las através de
106 um telescópio gigante. Das obras de Franz Kafka muitas ainda não alcançaram
mil exemplares. A popularidade de certos produtos literários precisa, portanto,
ser buscada em outros fatores que aqueles dos conteúdos encapsulados. Ao
contrário: quanto mais pepitas de ouro eles ocultam em seu interior, mais são
em geral desprezados pela massa, que não possui varinha mágica, mas apenas
desejos.3 Uma vez que o processo de desintegração fez o seu trabalho, os con-
teúdos que emergiram nesse meio tempo podem facilmente ser acessados ou
então citados por qualquer pessoa.
Se o sucesso das obras aqui tratadas na verdade não pode ser deduzido dos
significados que elas transmitem, então de quais fontes ele nasce? A questão
de saber quais são estas fontes justifica-se mais ainda, já que ela também causa
embaraços àqueles diretamente interessados em sua resposta. Apesar – ou tal-
vez em razão – da sua rotina, os leitores e os editores experientes se abstêm
de fazer profecias sobre o destino dos livros. Eles habitualmente dizem que
o sucesso de público é imprevisível e se eles se arriscam a fazer uma previsão,
ela não é menos problemática do que uma estimativa meteorológica sobre o
tempo. Até que ponto é grande a perplexidade dos especialistas em relação às
variações climáticas na esfera literária, é o que mostra de maneira particular-
mente notável o caso Remarque. O manuscrito do seu romance sofreu as mais
indignas rejeições por parte de excelentes editoras – para as quais teria, sem
dúvida, sido bem-vindo um sucesso de vendas para o saneamento de suas fi-
nanças. Quando enfim, após uma longa viagem, o seu romance atracou com
sucesso no porto Ullstein4, os seus inspetores portuários também não reco-
nheceram o valor quantitativo correto de sua tiragem. Às vezes os áugures5 se

3 Kracauer faz aqui um jogo de palavras entre Wünschelrute [varinha mágica] e Wünsche
[desejos] [N.T.]
4 Referência à Editora Ullstein, que publicou o romance de Remarque Im Westen nichts Neues
[Nada de novo no front]. A obra foi publicada em inglês no mesmo ano e, em 1930, foi filmada
por Lewis Milestone [ed. bras.: Nada de novo no front. Trad. Helen Rumjanek. Porto Alegre:
LP&M, s.d.]. Ver a resenha de Kracauer “Im Westen nichts Neues: Zum Remarque-Tonfilm”
[Nada de novo no front: Do filme sonoro sobre Remarque]. Schriften, volume 2, pp. 456-59.
5 Áugures eram sacerdotes da antiga Roma que, diante de ações militares e políticas impor-
tantes do Estado, indagavam a vontade dos deuses. Para tanto, eles observavam, dentre outros,
o voo dos pássaros ou o comportamento das galinhas ao se alimentarem no cerco sagrado. 107
encorajam e eles mesmos tentam produzir bom tempo. Eu conheço um livro
cujo sucesso subsequente se deveu ao empurrão que recebeu na largada. O seu
lançamento estava previsto para logo após as eleições de setembro, antes das
quais ele já estava pronto para ser distribuído. Mas, diante dos resultados da
eleição, o livro foi retido e algumas partes, que aparentemente poderiam ofen-
der o sentimento das massas – claramente influenciadas pelo nacionalismo –,
foram rapidamente modificadas. Estes fatos não só confirmam mais uma vez
que o número de edições não é um critério de valor, como também indicam
os verdadeiros motivos que fazem de um livro um grande sucesso. Ele é o si-
nal de um experimento sociológico bem-sucedido, a prova de que, mais uma vez,
uma mistura de elementos obteve êxito ao corresponder ao gosto da massa
de leitores anônimos. O sucesso de um livro particular pode ser explicado so-
mente pela necessidade desses leitores, que, de modo voraz, devoram certos
componentes ao mesmo tempo que recusam decididamente outros, mas não
pelas qualidades da própria obra – ou melhor, só na medida em que satisfazem
aquelas necessidades. E caso essas qualidades ainda contivessem traços reais
de substância, não é na qualidade de conteúdos que estaria assegurada a fama
do livro, mas muito mais na capacidade de respostas a tendências difundidas
no espaço social. O sucesso de um livro como mercadoria depende em última
instância da sua habilidade de satisfazer a demanda de amplas camadas sociais
de consumidores. Uma demanda é muito geral e muito constante para se dei-
xar influenciar em sua direção por preferências privadas ou por mera sugestão.
Ela deve repousar sobre as condições sociais dos consumidores.
Qual é a posição social do público que suporta o sucesso das edições? De
maneira alguma o sucesso está fundado em uma clientela dentro do prole-
tariado. O consumidor proletário lê principalmente aquilo cujo conteúdo já
recebeu um carimbo de aprovação ou então lê o que a burguesia já leu. Nos
dias de hoje ainda é a burguesia que concede celebridade e riqueza indiscutí-
vel para alguns autores. Mas ela não é mais, como antes, uma classe relativa-
mente fechada em si mesma, mas compreende uma pluralidade de camadas
sociais que se estendem da alta burguesia ao proletariado. Estas camadas se
formaram nos últimos cinquenta anos e ainda se encontram no meio de um
108 processo de transformação radical. O que se sabe delas? O fato de que não
sabemos nada ou quase nada sobre elas explica facilmente porque é impossí-
vel verificar as chances de sucesso de um livro já de antemão. Nós possuímos
uma espécie de instinto de classe, mas este também é falho. Como resultado,
toda criação literária que alcança a aceitação do mercado assemelha-se a um
bilhete premiado de loteria.

As transformações nas estruturas econômicas que ocorrem no presente afetam,


sobretudo, a antiga classe média, incluindo a pequena burguesia. Esta classe,
outrora portadora da cultura burguesa e braço principal do público leitor, se
encontra em um estado próximo da dissolução. Dentre os acontecimentos que
desencadearam essa situação se poderia citar a inflação e, por conseguinte, a
pauperização dos pequenos acionistas, a concentração do capital e a racionali-
zação crescente, para não se mencionar a crise, que conduz a novas destruições
substanciais. Como resultado de todos esses fatores, àqueles que atualmente
ocupam a posição de classe média faltam certos pressupostos – tais como
a autonomia limitada, a pensão modesta etc. – que caracterizavam a antiga
classe média. A nova classe média se tornou dependente e desceu ao nível de
existência “proletaroide”. A demonstração de sua proletarização foi objeto do
meu livro Die Angestellten [Os empregados]6, uma tentativa de demarcar todo
o espaço ocupado pelos filhos e os filhos dos filhos da parte mais modesta
da classe média no período anterior à guerra. Do ponto de vista econômico,
entre eles e os operários não há mais que a distância de um passo. De fato, a
transformação das condições de produção exerce sem dúvida influência sobre
a alta burguesia. Parte desta classe consiste agora em empregados e funcioná-
rios públicos e encontra-se no meio de uma reorganização cujos efeitos são
difíceis de avaliar.

6 Siegfried Kracauer, Die Angestellten: Aus dem neuesten Deutschland [Os empregados: da
mais nova Alemanha], foi publicado primeiramente em partes no Frankfurter Zeitungen, em
1929, e posteriormente como livro (idem, ibidem, Frankfurt: Frankfurter Societäts-Druckerei,
1930). Republicado em Schriften, volume 1, pp. 205-304. 109
As transformações estruturais acima sugeridas, diga-se de passagem, deram
origem a tendências que por enquanto ainda precisam permanecer dissimu-
ladas, pois contradizem os conceitos tradicionais. Trata-se aqui daquelas ten-
dências que correspondem à nossa situação efetiva, e que em toda parte são
difíceis de ser realizadas, mas que não coincidem exatamente com os princí-
pios fundamentais da empresa privada. Assim, por exemplo, o direito público
invade cada vez mais a esfera individual e conquista novas competências; a
ideia de obrigação social adquiriu na verdade contornos tão sólidos, que não
pode mais ser suprimida; urbanismo e planejamento do território transcen-
dem o egoísmo individual; a coletivização da vida está aumentando. No en-
tanto, até o momento, essas correntes – que levam em conta a realidade social
e as necessidades materiais – estão longe de determinar o sistema no qual se
desenvolvem. Elas, em certa medida, se ocultam sob um incógnito e, mesmo
que se materializem de fato, não se afirmam por aquilo que são, pois a cons-
ciência dominante está habituada a outros esquemas.
Haveria lugar disponível para essas tendências, pois muitos dos conteúdos
de consciência da burguesia foram tão desmantelados quanto os seus portado-
res. Privados de seus fundamentos econômicos e sociais, eles não podem se
manter por muito mais tempo. Penso no desaparecimento gradual da cons-
ciência de classe nos inúmeros círculos de funcionários e de empregados; no
abandono de atitudes individualistas, perceptível com frequência na prática;
mas, sobretudo, na falta de ilusão dos homens que dirigem a economia. Um
grande desencantamento se instalou precisamente nos cargos mais altos e as
ideias, que uma vez serviram para impulsionar a economia, são agora apenas
ornamentos retóricos para discursos em dias de festa. A renúncia aos conteú-
dos, agora destronados pelas circunstâncias atuais, é um indício de que aque-
les ameaçados de empobrecimento espiritual têm certo sentido de realismo.
Contudo, somente poucos olham para além do seu próprio umbigo. A maioria
reverencia na arte, na ciência, na política etc. os ideais que há muito percebe-
ram no seu próprio domínio.
O desmascaramento de algumas ideologias (ainda não claramente ad-
mitidas) é um indício do enfraquecimento da consciência burguesa? O mu-
110 tismo que se instalou nas camadas mais altas contribui, em todo caso, para a
radicalização da geração mais nova. Não se pode viver só de pão, muito menos
quando não se tem nenhum. Mesmo os radicais de direita se emanciparam
em parte do modo de pensar burguês, pois acreditam que ele não lhes serve
mais. Mas esta é uma emancipação em nome de forças irracionais, capazes de
estabelecer a todo momento um compromisso com os poderes burgueses. A
maioria da classe média e dos intelectuais, no entanto, não participa desse le-
vante mítico, que com razão lhe parece uma regressão. Ao invés de se deixar
coibir pelo vazio espiritual – que domina nas esferas mais altas – para fugir do
espaço fechado da consciência burguesa, ela busca ao contrário conservar esta
consciência por todos os meios. Menos por crença positiva do que por medo –
medo de se afogar no proletariado, de ser desclassificada espiritualmente e de
perder o contato com os verdadeiros conteúdos culturais. Contudo, onde en-
contrar reforço para a superestrutura ameaçada? Ela dispensa diferentes apoios
materiais e as novas camadas – que se consideram parte da burguesia – não
são os seus suportes naturais. Elas nem mesmo têm uma ideia do lugar a que
pertencem, e apenas defendem privilégios, talvez tradições. Surge a pergunta
importante: como é que se fortalecem em sua posição? Uma vez que nas cir-
cunstâncias atuais não podem simplesmente adotar o inventário da consciên­
cia burguesa como tal, precisam recorrer a toda espécie de alternativas para
assegurar a sua antiga posição de poder espiritual/intelectual.

“As análises de livros muito lidos”, escrevi em meu ensaio sobre Frank Thiess,
“são um artifício para a investigação de camadas sociais, cuja estrutura não
pode ser determinada pela abordagem direta.”7 De fato, em nossas investiga-
ções anteriores, obtivemos informações decisivas sobre o comportamento das

7 Siegfried Kracauer, “Bemerkungen zu Frank Thiess” [Anotações sobre Frank Thiess], em


Schriften, volume 5, parte 2, p. 312. Exatamente um ano mais tarde ele resenhou o volume
de ensaios e leituras de Thiess intitulado Die Zeit ist reif [A época está pronta]. Berlim: Paul
Zsolnay, 1932. Ver “Zwischen Blut und Geist” [Entre sangue e espírito], Schriften, volume 5,
parte 3, pp. 93-96. 111
classes burguesas que entraram em efervescência e, em particular, sobre as
medidas (predominantemente inconscientes) que elas tomaram para sua auto-
proteção. Por isso, pode-se presumir que aqueles livros que fazem um grande
sucesso são precisamente os que representam ou sustentam essas medidas.
Um individualismo sólido garante boas chances. Em relação aos heróis
do romance de Voss se diz o seguinte: “Eles são dois indivíduos adultos que,
como tais, dão suporte moral para o protesto contra as tendências de coleti-
vização que, no presente, se manifestam de maneira cada vez mais clara. Eles
se opõem a grande parte do povo alemão […]; contudo, a popularidade do
romance indica que “personalidades” do formato de Judith ou do padre Pau-
lus têm no mínimo a mesma força de atração que os porträts de homens da
massa”.8 Thiess e Zweig também colocam o indivíduo no centro. Onde o indi-
víduo aparece, a tragédia é inevitável. Esta última enterra a existência burguesa
profundamente na metafísica e exerce, assim, uma forte atração sobre o pú-
blico mesmo em sua forma distorcida, ou exatamente em razão dessa forma.
“O homem acomodado, amedrontado de nossa época”, diz-se a propósito das
novelas de Zweig, “e em particular aquele das camadas mais altas que, na luta
frequentemente vã para manter o seu standard de vida, quase sempre neces-
sita encobrir os seus sentimentos, busca […] avidamente estas histórias, pois
nelas as paixões se acalmam, sem dúvida de maneira inverossímil, mas por
isso mesmo de modo mais magnífico e livre. Nestas histórias o destino privado
triunfa mesmo na catástrofe.”9 Visto que as classes médias percebem a sua posi-
ção intermediária como uma calamidade, mas querem mantê-la sob quaisquer
circunstâncias, tendem naturalmente a elevar todas as calamidades ao nível
de acontecimentos trágicos. O indivíduo que – confirmando a ideia – morre
tragicamente é também parte constitutiva dessa concepção idealista do mundo,
e assim é compreensível que os textos favoritos assumam certo idealismo. Não
o autêntico, aquele que já passou, mas certamente as suas imitações confusas.

8 Siegfried Kracauer, “Richard Voss Zwei Menschen”. Frankfurter Zeitung, 1 mar. 1931. Publi-
cado em Schriften, volume 5, parte 2, pp. 287-94.
9 Friedrich Burschell, “Stefan Zweigs Novellen” [As novelas de Stefan Zweig]. Frankfurter Zei-
112 tung, 15 mar. 1931.
Em relação à prosa de Stefan Zweig também se constata que algumas de suas
frases exercem “um efeito irresistível sobre muitos escritores contemporâneos,
que querem manter um idealismo empalidecido a qualquer preço…” 10 Espe-
cialmente nas camadas mais altas, que exigem estilo e distância. O tom faz a
música e Zweig – tal como podemos ver em suas novelas – encontra o tom
exato, que ressoa nos círculos mais cultivados, preocupados com o bom gosto,
a cultura e a educação. A classe média e especialmente as massas empobrecidas
exigem, não a distância, pela qual se paga caro, mas o coração, que é gratuito.
O sentimento é tudo quando todo o resto falta. Ele humaniza a tragédia sem
extingui-la e obscurece a crítica, que poderia se tornar perigosa para a con-
servação de conteúdos envelhecidos. Para a ausência de tensão Voss trata de
encontrar uma compensação em um modo de representação que, em grande
parte, é o responsável pela ressonância do livro. Ele está repleto daquela es-
pécie de sentimentalidade (destituída de qualquer forma literária) que atrai
as massas anônimas. Remarque alcança, portanto, os seus efeitos porque sabe
como comover. “Esta qualidade comovente” explica o ensaio consagrado ao
seu romance, “aponta […] sociologicamente para aquelas classes sobre as quais
exerce um efeito mais forte e que determinam o sucesso do livro. É a expressão
de uma posição intermediária entre aceitação e rebelião – uma posição que
corresponde à atitude da classe média”.11
Com frequência, os conteúdos que precisam ser estabilizados não são ex-
plicitamente invocados, mas procura-se preservá-los de modo indireto fu-
gindo para um lugar distante qualquer para evitar entrar em conflito com eles.
Se não são tocados, eles não se esfacelam com facilidade. Eles são colocados
sob um sino de vidro e seus patrões saem para um passeio de carro. Um dos
destinos mais tentadores desses passeios foi e permanece sendo o erotismo. A
propósito de Thiess, que o procura com frequência, há a seguinte observação:
“Eu creio que muitos leitores são atraídos pela atmosfera sensual que ele uti-
liza em abundância e contra a qual não se pode fazer a menor objeção, uma

10 Idem, ibidem
11 Ephraim Frisch, “Erich Maria Remarque: Im Westen nichts Neues” [Erich Maria Remarque:
Nada de novo no front]. Frankfurter Zeitung, 5 abr. 1931. 113
vez que para a representação da atitude fundamental ela é completamente
apropriada ao que se destina”.12 Do mesmo modo, as aventuras geográficas
são populares, pois em parte elas desviam a atenção do espiritual/intelectual.
Dentre os autores que entregam estas aventuras a domicílio está Jack London.
A análise de sua obra mostra, contudo, que no seu caso aquilo que é decisivo
é a íntima ligação com a natureza. Ela é, como provam os livros de sucesso, o
grande refúgio pelo qual aspiram as massas de leitores. Se eles confiassem na
razão [ratio], que não coincide com a natureza, então as construções de suas
consciências poderiam estar ameaçadas; no retorno para a natureza, por sua
vez, todos os conteúdos problemáticos permanecem intocados. Seja a natureza
trágica ou demoníaca – não importa: em ambos os casos ela é um doce retiro
para todos aqueles que não desejam ser despertados. “Os heróis das novelas
de Zweig são Amok.13 Eles são loucos, enfeitiçados ou encantados, não res-
ponsáveis por seus atos, mas através destes desejam com certeza demonstrar
alguma coisa, algo indeterminado, misterioso…”14 A natureza nas obras de
Jack London é até mesmo muito bem-intencionada em relação ao homem, é
uma natureza ideal, a qual ele pode ouvir despreocupado. Ele já sobreviveu a
todos os perigos possíveis – “mas não há nenhum demônio que o persegue e,
tal como os vagabundos de Hamsun, o conduz à beira do abismo; ele segue
apenas a sua ‘natureza’.” 15 Insondável, a natureza é finalmente o limite de toda
justificação, é muda. Uma vantagem que justamente garante o sucesso. Pois
os atuais detentores de grandes sucessos de livros, guiados pelos seus instin-
tos de autopreservação, não desejam nada mais intensamente que o precipitar
de questões embaraçosas no abismo do silêncio. Uma vez que – com ou sem
razão – temem a resposta, insistem para que sejam levantadas barreiras para
bloquear o avanço do conhecimento. A sua exigência chama-se: indiferença. É

12 Siegfried Kracauer, “Bemerkungen zu Frank Thiess” [Anotações sobre Frank Thiess], op. cit.,
p. 317.
13 No original, amokläufer, do verbo Amoklaufen, que significa perder o controle, perder as
estribeiras. Jogo de palavras com o título do romance Amok, de Zweig. Leipzig: Insel Verlag,
1922.
14 Burschell, “Stefan Zweig Novellen”, loc. cit.
114 15 Erich Franzen, “Jack London”. Frankfurter Zeitung, 12 abr. 1931.
ela que sem dúvida alguma constitui a base do sucesso de Remarque dentre a
pequena burguesia internacional. Na análise do romance se diz: “A única dis-
cussão sobre a guerra em seu livro evidencia aquela […] indiferença que se
limita a constatar que ‘O melhor mesmo é não ter guerra alguma’. Quando aqui
ou ali se manifesta indignação, ela se volta contra a autoridade subalterna, e o
ódio é dirigido contra aqueles patriotas à paisana automotivados – por exem-
plo, contra um professor que é censurado de modo violento por encorajar os
menos dotados a se alistarem voluntariamente”.16
As nossas análises fornecem, portanto, um quadro bastante abrangente
dessas estruturas da consciência nas novas estratos da burguesia. Estas últimas
estão engajadas em tentar amparar certos conteúdos que, hoje em dia, não têm
mais suporte suficiente. Usando de todos os meios possíveis, elas querem evi-
tar a confrontação de ideais absolutos com a realidade social contemporânea,
e se esquivam desta acareação fugindo em todas as direções e para todos os
esconderijos. Elas preferem residir no seio da natureza, onde podem renun-
ciar à linguagem e se defender contra a razão [ratio], que visa à destruição das
instituições, e formas sobreviventes de consciência, mitológicas.

Aquele que deseja modificar alguma coisa precisa estar informado sobre aquilo
que deve ser modificado. O valor dos artigos publicados em nossa série reside
exatamente em sua habilidade de facilitar a intervenção na realidade social.17

16 Idem, ibidem
17 Este parágrafo final do artigo, que Kracauer omite na sua edição de 1963 da obra Das Orna-
ment der Masse, foi subsequentemente reinserido por Karsten Witte na reedição póstuma
do livro, em 1977. 115
A biografia como forma de arte da nova burguesia

Se antes da Primeira Guerra Mundial a biografia era a obra rara da erudição,


hoje é um produto literário muito difundido. Para os literatos, para os mestres
da prosa, ela se tornou uma forma de expressão. Na França, na Inglaterra e
na Alemanha, estes escritores retratam a vida daquelas poucas personalida-
des públicas que ainda não foram abordadas por Emil Ludwig,1 e, em pouco
tempo, não haverá mais nenhum grande político, nem general ou diplomata,
para o qual não seja erigido um monumento mais ou menos efêmero. Poetas,
no entanto, é possível que se encontrem ainda alguns disponíveis para tais
comemorações, pois estão longe de gozar dos mesmos favores que aqueles
nomes que desempenharam um papel importante no curso da história. Esta
é uma mudança radical em comparação ao que ocorreu no passado: enquanto
outrora as biografias de artistas eram as que alcançavam êxito dentre os cultos,

1 Emil Ludwig (1881-1948) autor alemão conhecido sobretudo pelas suas numerosas biografias,
dentre elas Napoleon. Berlim: Rowohlt, 1926 [ed. bras.: Napoleão. Trad. Mário de Sá. Porto
Alegre: Globo, 1938, 4.a ed.]; Lincoln. Berlim: Rowohlt, 1930 [ed. bras.: Lincoln. Porto Alegre:
Globo, 1953]; Goethe. Stuttgart: Cotta, 1920 [ed. bras.: Goethe, 2 vols. Trad. Gilberto Miranda
(Erico Veríssimo). Porto Alegre: Globo, 1940]. 117
os heróis atuais, em grande parte, provêm da história, e suas biografias são
publicadas pelas editoras de literatura, em massa, para a massa.
Na Europa ocidental já se instalou há certo tempo a tendência de conside-
rar a descrição biográfica, sem mais nem menos, como uma moda passageira.
Ela não é uma moda, assim como tampouco o eram os romances de guerra.
As suas motivações independem da moda e devem muito mais ser buscadas
nos acontecimentos da história mundial dos últimos quinze anos. Emprego a
expressão “história mundial” com grande relutância, pois ela facilmente induz
a um estado de excitação que só seria apropriado no momento em que a his-
tória do mundo se tornasse realmente uma história do mundo todo. No rádio,
por exemplo, no qual se ouve o anúncio repetido com frequência “Aqui, Paris”
ou “Aqui, Londres”, a mera menção destas cidades cosmopolitas tem o mesmo
efeito de uma cachaça ordinária. Não se pode negar, no entanto, que a guerra
mundial, juntamente com as transformações políticas e sociais que se lhe se-
guiram, e que, por fim, as novas invenções tecnológicas realmente abalaram
e revolucionaram o cotidiano dos assim denominados povos civilizados. No
domínio aqui tratado esse desenvolvimento teve o mesmo efeito que a teoria
da relatividade na física. Se, com Einstein, o nosso sistema espaciotemporal se
tornou um conceito limite, também o sujeito soberano se torna um conceito-
limite graças ao ensino tangível da história. No passado mais recente todo
homem foi forçado a experienciar a sua própria insignificância – assim como
a dos outros – de modo muito eficaz, para ainda crer no poder soberano de
qualquer indivíduo. É precisamente este poder soberano, contudo, que cons-
titui a premissa da literatura burguesa produzida nos anos que antecederam
a guerra. A estrutura fechada da forma do romance tradicional reflete aquela
unidade, suposta, da personalidade, e a sua problemática é sempre individual.
Atualmente o artista criativo perdeu de uma vez por todas a confiança no sig-
nificado objetivo de qualquer sistema individual de referência. Com o desa-
parecimento dessa rede de coordenadas fixas, todas as curvas aí graficamente
representadas também perderam a sua forma representativa. O escritor não
só não pode mais apelar para o seu eu, como tampouco o mundo lhe oferece
ainda um suporte, pois estas duas estruturas determinam uma a outra. O seu
118 eu é relativizado, e o mundo, com os seus conteúdos e as suas figuras, gira se-
gundo uma órbita impenetrável. Não por acaso fala-se da “crise” do romance.
Esta reside no fato de que o modelo de composição do romance tradicional
tornou-se inválido com a abolição dos contornos do indivíduo e seus anta-
gonistas. (Com isso não se afirma, contudo, que o romance, enquanto gênero
artístico, se tornou histórico. Poderia se imaginar que ele ressurge em uma
nova forma, adaptada a esse mundo confuso, e que esta própria confusão ad-
quire forma épica.)
Em um mundo incompreensível, privado de contornos, a marcha da His-
tória torna-se elemento constitutivo. A mesma história que ocasionou isso
emerge como uma terra firme no mar dos amorfos e dos que não são passí-
veis de receber forma. Para o escritor contemporâneo que não pode e não quer
representá-la de modo direto como o faz o historiador, a História se condensa
na vida dos seus heróis visíveis. Estes não se tornam sujeitos de biografias gra-
ças ao culto dos heróis, mas pela necessidade de uma forma literária legítima.
De fato, o curso de uma vida historicamente significativa parece conter todos
os elementos constitutivos que, nas circunstâncias atuais, tornam possível a
criação de uma obra em prosa. A existência que ela capta é a cristalização da
obra da história, cuja inviolabilidade é incontestável. E não está a objetividade
da representação garantida pelo significado histórico do modelo original? Nele
os biógrafos literários creem finalmente ter encontrado o suporte que em vão
procuraram em outros lugares, o sistema de relações válido, que os desobriga
do arbítrio subjetivo. O seu caráter obrigatório é claramente uma consequên-
cia de sua natureza factual. A personagem principal da referida biografia viveu
realmente e todos os aspectos desta existência são documentados. O núcleo da
obra em prosa, proposto primeiramente pela ficção narrativa, é novamente re-
cuperado por um destino historicamente reconhecido. Este destino também é,
ao mesmo tempo, a garantia da composição. Toda figura histórica já contém a
sua própria forma: ela começa em um momento específico, envolve-se em um
conflito com o mundo, adquire contornos e substância, recolhe-se na velhice e
desaparece. Deste modo, o autor não é obrigado a vir à baila com um esquema
formal individual, mas já recebe um pronto em suas mãos, que lhe é tão obri-
gatório quanto para um outro qualquer. Isto o atrai não tanto pela comodidade
quanto pelo fato de aliviar a sua consciência; pressupondo-se que não se trata 119
daquelas biografias produzidas em série por razões econômicas. Pois se a bio-
grafia pode concorrer hoje com o romance é somente porque – diferentemente
deste, que carece de toda e qualquer referência – utiliza conteúdos que deter-
minam a sua forma. A moral da biografia é que, no caos das práticas artísticas
atuais, ela representa a única forma de prosa aparentemente necessária.
Uma forma de prosa da burguesia estabelecida, que obviamente é coa-
gida a rejeitar todos os conhecimentos e problemas formais que colocam sua
existência em perigo. A burguesia sente na carne o poder da História e, sem
dúvida, percebe que o indivíduo se tornou anônimo. Contudo, deste discer-
nimento, que se impõe a ela com a força das experiências fisionômicas, não
tira nenhuma conclusão capaz de esclarecer a situação atual. No interesse da
autopreservação, a burguesia evita confrontar-se com essa situação. A elite
literária da nova burguesia não se empenha seriamente em penetrar a dialé-
tica materialista, nem se expõe abertamente ao embate das massas inferiores,
nem ousa dar um passo para além do limite por ela alcançado, para além da
própria classe. E, no entanto, ela só poderia tocar o fundo do problema se,
sem qualquer proteção ideológica, se colocasse no ponto de ruptura da nossa
estrutura social, confrontando-se, nesta posição avançada, com as forças so-
ciais, nas quais se encarna hoje a realidade. Somente aqui e em nenhum outro
lugar devem ser buscados aqueles conhecimentos que, talvez, garantam uma
verdadeira forma de arte. De fato, a validade que esta forma de arte requer é
própria apenas da expressão mais progressiva da consciência, que pode se de-
senvolver aqui, e somente aqui. A forma literária pode nascer desta consciência
mais avançada, que oferece um ponto de apoio; no entanto, ela também pode
não nascer dessa consciência e, então, nesse caso, a criação artística nos seria
vedada no presente. (Se acima se disse que a própria confusão poderia alcançar
uma forma épica, é preciso acrescentar agora que isto só ocorre sobre o fun-
damento de uma consciência verdadeiramente emancipada, que percebe esta
confusão). Como forma da literatura da nova burguesia, a biografia é um sinal
de fuga ou, mais precisamente, de evasão.2 Para não se traírem pelos conhe-
cimentos que questionam a verdadeira existência da burguesia, os biógrafos

120 2 Kracauer faz aqui um jogo de palavras entre Flucht (fuga) e Ausflucht (evasão). [N.T.]
permanecem na soleira – para a qual foram empurrados pelos acontecimentos
mundiais – como se eles estivessem diante de um muro. Ao invés de ultrapassar
esta soleira, eles se refugiam, outra vez, no interior do mundo burguês, fato
que pode ser demonstrado pela análise das biografias standard. Embora estas
obras biográficas contemplem a ação da História, elas se perdem de tal modo
na sua contemplação, que não mais encontram o caminho de retorno ao pre-
sente. A sua escolha de sujeitos dentre as grandes figuras da história é pouco
exigente e, em todo caso, não está condicionada ao reconhecimento da situa-
ção atual. Elas desejam se livrar da psicologia, que determinou a prosa anterior
à guerra, mas, apesar da objetividade aparente da sua matéria, trabalham em
parte com as mesmas velhas categorias psicológicas. Elas lançaram o indivi-
dualismo suspeito pela porta do fundo e, pela entrada principal, reconduzem
ao interior da casa burguesa os indivíduos oficialmente endossados. Com isto
alcançariam ao mesmo tempo um segundo objetivo: a rejeição inarticulada de
uma autoridade que emerge das profundezas da massa. A biografia literária
é um fenômeno-limite, que permanece atrás da fronteira.
Ela é, portanto, muito mais que uma simples fuga. Certamente a burguesia
se encontra hoje em um período de transição e é também verdade que há um
duplo significado em todas as suas realizações. A sua intenção é defender a sua
existência e, com isto, demonstra involuntariamente que esta transição já se
realizou. Assim como os emigrantes reúnem todos os seus pertences pessoais,
assim também a literatura burguesa reúne o mobiliário, pois em breve terá
de desocupar o lugar atual. O motivo da fuga, ao qual a grande maioria das
biografias deve a sua existência, é ofuscado por aquele da salvação. Se existe
uma confirmação para o fim do individualismo, ela deve ser vista no museu
das grandes personalidades, que a literatura contemporânea orgulhosamente
eleva. E a maneira indiscriminada com a qual esta literatura se apodera de
todo e qualquer político e estadista evidencia não só a incapacidade de rea-
lizar uma seleção correta no período específico, mas igualmente a pressa do
salvador. Trata-se de organizar retratos para uma sala de exibição, na qual um
tipo de memória, para a qual cada retrato tem o mesmo valor, pode deleitar-se
consigo mesmo. Por mais questionável que possa ser uma ou outra biografia,
o brilho da despedida repousa na sua reunião. 121
Acredito que exista somente uma única obra biográfica que difere funda-
mentalmente de todas as outras. É a biografia de Trotsky.3 Ela viola as con-
dições impostas à biografia literária. Aqui a descrição da vida do indivíduo
histórico não é um meio para se esquivar da compreensão de nossa própria
situação; ao contrário, ela serve apenas para revelá-la. É por isso que nesta
autorrepresentação se delineia um indivíduo diverso daquele visado pela li-
teratura burguesa. É um tipo de indivíduo que já se superou, na medida em
que somente se torna real pela sua transparência em face da realidade, e não
pela afirmação da sua própria realidade. Este novo tipo de indivíduo situa-se
fora da nebulosidade das ideologias: ele existe somente na medida em que se
anula no interesse das necessidades atuais, reconhecidas.

3 Leon Trotsky, Moia Zhizn: Opyt Autobiofrafii. Berlim: Izdvo Granit, 1930 [ed. bras.: Minha
122 vida. Trad. Lívio Xavier. São Paulo: Paz e Terra, 1990].
Rebelião dos estratos médios
Uma discussão com o Círculo Tat

O jornal Die Tat1 tem hoje em dia um número significativo de leitores, parti-
cularmente dentre os intelectuais da classe média. Isto se explica não só pelo
fato de que o Círculo Tat defende conscientemente os interesses práticos e
ideo­lógicos dessas classes, como também pela sua própria forma de luta. O
seu formato é do tipo que a inteligência alemã não está acostumada.

1 Periódico mensal, religioso e filosófico, fundado em 1902 e publicado desde 1912 pela Editora
Eugen Diederich. Sob a direção de Hans Zehrer, que assumiu o cargo de editor em 1929, a
publicação tornou-se órgão do Círculo Tat, um grupo de escritores que, como discípulos
dos trabalhos escritos de Carl Schmitt, defendia uma doutrina de Estado antiparlamentarista.
Em seus argumentos a favor de uma síntese autoritária de nacionalismo e socialismo, Die
Tat foi central para a revolução conservadora e pavimentou um caminho ideológico para o
nacional-socialismo nascente. Alcançou o apogeu como publicação política em 1931-32, com
circulação de aproximadamente 30 mil exemplares. De 1933 a 1939, sob a direção de G. Wirs-
ing, adotou abertamente uma postura fascista radical e continuou de 1939 a 1944 sob o título
Das zwanzigste Jahrhundert [O século XX]. Ver Hans Hecker, Die Tat und ihr Östeuropa-Bild,
1909-1933 [Die Tat e sua imagem da Europa oriental, de 1909-1933]. Köln: Wissenschaft und
Politik, 1974. 123
“Ouça a juventude que hoje em dia segue os nacional-socialistas ou os co-
munistas. É o melhor material humano que a Alemanha já teve.”2 Uma decla-
ração como esta demonstra que os artigos publicados em Die Tat se baseiam
em uma ampla e autêntica experiência: a da solidariedade do necessitado povo
alemão. Nesse sentido, eles se diferenciam de numerosas outras análises da
situação contemporânea, que ora são dominadas por imperativos partidários
e preferências de grupos de interesse, ora por construções teóricas que não
levam em consideração vínculos existenciais particulares. Partindo de suas
experiências fundamentais, os colaboradores de Die Tat se esforçam para com-
preender concretamente a situação concreta. E por mais questionáveis que
sempre sejam as interpretações de Fried sobre a economia3, elas são uma co-
mida caseira saudável (embora não contenham o mínimo valor nutricional)
quando comparadas com a ostentação idealista, que ainda é constantemente
servida à geração nova em livros e auditórios. O desejo de renunciar ao idea-
lismo e se envolver propriamente com as coisas dá origem, em última análise,
às tentativas de soluções que estão fora do alcance do mero tratamento de
problemas táticos, mas que, baseadas em uma posição geral, procuram com-
preender a situação mais ou menos estrategicamente. Ainda se poderá verificar
se estas soluções são realmente soluções. No entanto, o certo é que um grande
número de pessoas, que vê o declínio material e de ideias ocorrendo diante de
seus olhos, acredita poder se animar com as reflexões atuais de Die Tat.
Em razão da seriedade e relevância de Die Tat, um exame deste jornal é
duplamente importante: no interesse de seus leitores assim como no interesse
do círculo de seus colaboradores. De antemão, no entanto, quero me abster
de dar importância central às posições econômicas de Fried e ao programa
especial que, como se sabe, exige que a Alemanha adote, entre outras coisas,

2 Não-assinado [Hans Zeher], “Wohin treiben wir?” [Para onde vamos?], Die Tat 23, número
5, ago. 1931, p. 354.
3 Pseudônimo de Ferdinand Friedrich Zimmermann (1898-1967), jornalista alemão e profes-
sor de economia. De 1923 a 1932 foi editor de economia do Vossische Zeitung e do Berliner
Morgenpost; de 1931 a 1933 foi assistente de Die Tat e era membro do Círculo Tat. Em 1933
sucedeu Hans Zehrer como editor-chefe do Tägliche Rundschau, em 1934 tornou-se membro
124 da SS e, em 1953, assumiu o posto de editor de economia do jornal Die Welt.
uma forma particular de economia dirigida [Planwirtschaft], a autarquia, a
orientação para o sudoeste europeu e o apoio da Rússia soviética. Muito mais
decisiva é uma análise da postura que dá origem aos vários pensamentos e
propostas, pois coerência [Stimmigkeit] dos resultados está ligada à coerên-
cia desta postura mesma. Em um de seus ensaios, Zehrer4 escreve: “Nunca
houve um novo movimento que, em sua fase inicial, não tivesse sido levado
ad absurdum pela racionalidade aparente de uma velha linguagem, a serviço
dos interesses de poderes conservadores e tradicionais!”.5 Esta observação é
inteiramente apropriada se ela pretende rejeitar objeções que acreditam atin-
gir o cerne de um movimento criticando as suas expressões conceituais. Ela
não poderá ser usada, no entanto, para isentar a linguagem de Die Tat, cujas
formulações fluentes são qualquer coisa diferente do balbucio desamparado
que, de acordo com Zehrer, é supostamente uma característica de todo novo
movimento. Por bem ou por mal nós temos de atribuir a esta linguagem certa
importância… Infelizmente, é do mesmo modo impossível evitar trazer os
pontos de vista defendidos pelo jornal para uma confrontação com a razão,
para a qual o Círculo Tat, como se sabe, não é um bom interlocutor. Eu creio,
contudo, que é possível se expor sem medo ao perigo que envolve o emprego
da razão. De um lado, porque a argumentação só é possível se os direitos da
razão são reconhecidos; de outro, porque, não importa se, intencionalmente
ou não, Die Tat também tem com muita frequência recorrido e mesmo ape-
lado expressamente à tão menosprezada razão.
Antecipemos algumas das principais conclusões da análise a seguir, que está
baseada nos cadernos do jornal publicados no último ano. As ideias – guias
do Círculo Tat são o reflexo preciso da situação difícil da classe média. Elas
apontam para uma postura que é essencialmente irreal e cheia de contradições.

4 Hans Zehrer (1889-1966): jornalista alemão, escritor e editor do Vossische Zeitung de 1923 a
1931. Editor clandestino de Die Tat em 1929, tornou-se o seu editor oficial em 1931 e foi editor-
chefe do Tägliche Rundschau de 1932 até 1933, quando foi forçado pelos nazistas a renunciar
aos dois últimos cargos.
5 Idem, “Rechst oder links? Die Verwirrung der Begriffe” [Direita ou esquerda? A confusão
dos conceitos]. Die Tat 23, número 7, out. 1931, p. 507. 125
Dada a sua confusão improdutiva, essas ideias não apresentam nenhum tipo
de solução.

A experiência fornece a Die Tat o conceito de povo [Volk], que ele postula como
um conceito fundamental irredutível. Em um momento fala-se do “pensa-
mento étnico [völkisch] de totalidade”, e logo a seguir as instituições públicas
são inspecionadas para determinar a sua “proximidade ao povo”. De acordo
com este conceito empregado romanticamente, povo refere-se a alguma coisa
que cresceu organicamente e se opõe tanto a todas as teorias que são liberais
no seu sentido mais amplo – aquelas que adotam o individual como a base da
comunidade – quanto ao conceito moderno de massa. “Nós não pensamos em
termos de massa, mas em termos de pessoas e povos [Völker].”6 Exatamente
aquilo que tem a ver com as pessoas é o que será explorado mais tarde.
À luz desta orientação inicial, não causa surpresa o papel importante que
o conceito de espaço [Raum] desempenha. Um povo se apresenta fisicamente
no espaço. Isto explica a satisfação mal dissimulada com a qual se observa que
“hoje o mundo se desintegra em espaços nacionais, individuais, fechados”;7 daí
a convocação programática de autarquia. A noção de espaço domina Die Tat
de tal modo, que Zehrer ainda fragmenta o espaço total do povo em subdivi-
sões, às quais ele – assim como Nadler8 – atribui um poder formativo. Como
Zehrer explica: “Nós afirmamos a paisagem como um espaço fechado em si
mesmo, que tem um tipo de existência muito particular e está ligado ao sangue,

6 Horst Grüneberg, “Mittelstandspolitik, Staatspolitik” [Política de classe média, política de


Estado]. Die Tat 23, número 3, jun. 1931, p. 211.
7 Referência não localizada.
8 Josef Nadler (1884-1963), historiador da literatura austríaca, lecionou nas universidades de
Freiburg, Königsberg e Viena durante a República de Weimar. A sua obra inclui um estudo
em quatro volumes intitulado Literaturgeschichte der deutschen Stämme und Landschaften
[História da literatura das raças e paisagens alemãs], Regensburg: J. Habbel, 1912-1928 – am-
plamente utilizado pelos nazistas – que relata as características e o significado vasto dos
126 produtos literários para a raça e as paisagens que os originam.
à terra e ao destino”.9 A menor célula geográfica é, sem dúvida, a casa familiar.
Em todo caso, também o conceito de espaço expressa um desejo para o orgâ-
nico que se opõe diretamente às tendências de atomização do liberalismo e
seu tipo de internacionalismo.
Em termos temporais, o povo se declara como um Estado. Ele se manifesta,
como em Hegel, como “Estado total” – um conceito adotado por Carl Sch-
mitt, que perceptivelmente extrai o seu pathos da rejeição do “Estado-guarda
noturno”.10 O povo e suas organizações, de acordo com a citação de Die Tat,
devem ser “integrados” dentro desse Estado total. Na formulação de Fried,
trata-se da “troca da primazia da economia pela primazia do Estado”.11 Em
um outro ponto há a seguinte observação sobre a profissão: “Para nós a pro-
fissão é uma tarefa de vida, que propriamente abarca em um espaço visível…
a imbricação do indivíduo no Estado”.12 Similarmente, o princípio federalista
se realiza somente “quando a estatalidade [Staatlichkeit] individual é um meio
verdadeiro de integração do todo…” 13 Todas estas determinações posicionam
o Estado ideal não como uma unidade construtiva, racional, mas como uma
unidade viva, irracional, cujos elementos se juntam para constituí-lo, por as-
sim dizer, por si mesmos. Esta é uma concepção romântica de Estado, que dá
grande ênfase ao elemento orgânico.
Aquilo a que se aspira, portanto, é uma ordem das coisas praticamente
oposta àquela exigida na Aufklärung [Esclarecimento]. Ao menos ela é extre-
mamente antiliberal. Aquele que, tal como o Círculo Tat, considera “calami-
toso” ter uma só “gota de liberalismo no sangue”,14 naturalmente precisa odiar
o intelecto, o qual, antes de tudo, e dependendo das necessidades, também é

9 Hans Zehrer, “Rechts oder links?” [Direita ou esquerda], op. cit., p. 558
10 Referência não localizada.
11 Ferdinand Fried, “Der Weg der Reichsfinanzen” [O caminho das finanças do Reich]. Die Tat
23, número 3, jun. 1931, p. 179.
12 Referência não localizada.
13 Horst Grüneberg, “Die Föderalistische Kulisse” [O bastidor federalista]. Die Tat 23, número
4, jul. 1931, p. 293.
14 Idem, “Mittelstandspolitik, Staatspolitik” [Política de classe média, política de Estado], op.
cit., p. 209. 127
identificado com a razão. O intelecto é considerado a principal arma do li-
beralismo e, uma vez que Die Tat teme – com razão – não conseguir barrar
o liberalismo combatendo-o com suas próprias armas, prefere usar outras,
muito mais violentas. “A esta razão”, escreve Zehrer, “antes de mais nada, só
se pode opor uma nova crença, e uma crença jamais pode discutir com o seu
oponente dialeticamente, pois se ela o persegue em seu terreno, sempre será a
mais fraca”.15 Mas como se institui uma crença no mundo real, se ela se recusa
a uma explicação? A resposta primitiva de Zehrer é: “O único argumento que
não se ajusta na estrutura do sistema liberalista16 da razão e da discussão é a
espada. A espada e o punho!”. Em resumo, os agentes [Täter] de Die Tat se blin-
dam contra a razão, abaixam as suas viseiras para não observarem nenhum de
seus argumentos e buscam a salvação na barbárie. Em seu ódio cego, eles con-
seguem responsabilizar a razão por acontecimentos nos quais ela é realmente
inocente. “Razão!”, brada Zehrer, “Em nome desta razão milhões de pessoas
morreram.” Uma investigação mais precisa revelaria certamente que foram as
forças da irracionalidade [Unvernunft], invocadas por Zehrer, exatamente as
responsáveis pelo desencadeamento da Guerra Mundial.
Assim, se Die Tat não luta sob o signo da razão, persegue então uma outra
estrela-guia. Zehrer dá a seguinte definição: “Uma nova crença, um novo mito
substituirão o sistema liberal.” O conceito de mito, que nas publicações do
Círculo Die Tat é tão fortemente enfatizado quanto a ideia de uma economia
dirigida, emerge das águas da Lebensphilosophie e é desenvolvido com base em
Sorel.17 Ele atribui o grande significado do conceito de mito evidentemente ao
fato de que, ao não confiarem mais nos efeitos reprimidos do conhecimento
racional, as pessoas se sentem compelidas a substituí-lo por imagens resplan-

15 Hans Zehrer, “Rechts oder links?” [Direita ou esquerda?], op. cit., pp. 510-11.
16 Adjetivo que tem sentido específico, diferente do termo “liberal”, referindo-se a uma deter-
minada corrente de pensamento político-econômica alemã, como fica claro ao longo do
texto.
17 Como exemplos da recepção da obra de Georges Sorel no Die Tat, cf. Zehrer, “Rechts oder
links?” [Direita ou esquerda?], op. cit., pp. 527-28, e E. W. Eschmann, “Moderne Soziologen
II: Georges Sorel” [Sociólogos modernos II: Georges Sorel], Die Tat 22, número 5, ago. 1930,
128 pp. 367-77.
decentes, em relação às quais as forças irracionais se comprimem de uma ma-
neira secreta. Além disso, ao invés de revelar uma ou outra dessas imagens,
Zehrer infortunadamente se limita a intimá-las. E, na verdade, a única coisa
que é certa é que Zehrer simplesmente vê as classes médias como portadoras
abalizadas do mito por ele proclamado. “Essas classes não podem experimen-
tar a sua solidariedade com a grande comunidade, com o povo e a nação, por
meio de uma união, um clube, uma classe ou qualquer outro tipo de organiza-
ção. Elas só podem experimentar essa solidariedade através do ideal, quer dizer,
no mito.” Quando muito se poderia ainda acrescentar que este mito teria de
ser nacional. A esse imperativo, Zehrer, em uma referência sem ambiguidade,
explica que a tarefa do futuro é “criar uma nova Volk-comunidade sob a égide
do mito de uma nova nação”.18
Povo, Estado, mito – estes conceitos fortemente interrelacionados se refe-
rem a uma realidade substancial. Em virtude da sua orientação estar voltada
para essa realidade, Die Tat está portanto qualificado para realizar uma crítica
substantiva das condições dominantes. Na verdade, ele só se desvia do estado
de coisas existentes pelo fato de que este é essencialmente insuportável. Para
mim, sem sombra de dúvidas, a influência que o Círculo Tat conquistou re-
pousa na sua crítica sobre esta época. Como não poderia deixar de ser na pos-
tura aqui caracterizada, ela atinge, sobretudo, a pobreza material [Substanzar-
mut], que se expande no regime atual. Deixo em aberto se, para a apresentação
dessa pobreza, se deveria necessariamente partir do denominador comum dos
conceitos acima mencionados, ou se não seria igualmente interessante partir
de outros conceitos, como por exemplo aqueles de classe. No momento, o que
importa é somente que com a ajuda das próprias categorias, Die Tat foi capaz
de diagnosticar deficiências significativas. E na verdade estou pensando não
só em Fried, que força de uma maneira certamente muito violenta as distor-
ções contemporâneas do management capitalista nas suas pinturas em afresco,
mas também em declarações de menores dimensões, que atingem o cerne
das condições atuais. Elas retificam, por exemplo, a noção de profissão vulgar,
excessivamente otimista, desmascaram os poderes que florescem sob a pro-

18 Hans Zehrer, “Rechts oder links?” [Direita ou esquerda?], op. cit., pp. 532, 559. 129
teção da fachada federalista, e analisam cuidadosamente a situação de alguns
partidos. Provavelmente a crítica mais contundente de Die Tat, no entanto, é
o seu protesto permanente contra o pensamento livre. Contudo, ele prejudica
a sua própria posição porque com frequência se desvia e trava uma batalha
sob uma falsa bandeira. Quão irresponsável é a sua afirmação de que a inteli-
gência judaica carece de talento construtivo; quão maliciosa, e não mais que
maliciosa, é a seguinte frase: “Einstein, o gênio da propaganda da modéstia,
anda constantemente ao redor do mundo, usando a arma da teoria da relati-
vidade para defender a não-prestação do serviço militar e o sionismo”.19 Atrás
desses lapsos – indignos de um jornal sério – há, portanto, a constante con-
fusão daquele pensamento com a “razão liberalista” ou simplesmente com a
própria razão, com a qual ele já não tem nada mais em comum. A linguagem
de Die Tat – que Zehrer defende de antemão como um produto de circuns-
tâncias atenuantes – não é desajustada, mas imprecisa, e só obscuramente o
objeto atual dos seus ataques cintila através da neblina por ele mesmo produ-
zida. Este objeto é a ratio, que nega a sua origem e não mais reconhece limites,
em oposição à razão [Vernunft] em geral e à “razão liberalista” em particular,
que, antes de tudo, se baseia na fé na humanidade. Esta ratio desatada, que de
modo algum pode simplesmente ser designada como intelecto, é apequenada
como razão e muito mais, tal como um demônio da natureza [Naturdämon],
domina o razoável. E é precisamente esta falta de poder da razão que permite
à ratio vigorar hoje em dia tão sem restrições. Ela, a ratio cega, é quem inspira
àquele ávido por lucro realizar suas transações; quem produz a irresponsa-
bilidade de certo tipo de jornalismo de segunda categoria; quem é a culpada
pela precipitação do processo de racionalização e por todos aqueles cálculos
de uma economia degenerada, que levam em conta inúmeros fatores, exceto
os homens. Assim como criou inconscientemente um aparato técnico, diante
do qual nos encontramos como aprendizes de feiticeiro, inábeis para exorcizar
os elementos evocados, a ratio também corroeu os laços que até então man-
tinham formalmente a coesão da sociedade. As consequências terríveis desta

19 H. [pseudônimo jornalístico não identificado], “Der Fall Charlie Chaplin” [O caso Charlie
130 Chaplin], Die Tat 23, número 2, mai. 1931, p. 158.
desintegração induzida pela ratio – sobretudo para os estratos médios – pro-
curei apresentar em meu livro Die Angestellten [Os empregados].20 Ao serem
dessubstancializadas, estes estratos agora não dependem de nada mais a não
ser da neutralidade obrigatória do pensamento sem conteúdos. É na mudez
deste pensamento que se refugia o sistema social e econômico, severamente
abalado, ao qual nós atualmente estamos submetidos.

Die Tat dá as costas para as condições criticadas. A crítica não o alcança?


Pode ele fazer justiça à realidade substancial, almejada pelos seus conceitos
fundamentais?
A resposta para todas estas questões é não. A maneira pela qual os cola-
boradores de Die Tat se referem constantemente ao povo, ao Estado, ao mito
etc. comprova claramente que aqui não se trata de conteúdos adquiridos pela
experiência, mas daqueles almejados. Como demonstrado pelo uso desses
conteúdos, eles não são pressupostos, mas reivindicados; eles não são o ponto
de partida mas, ao contrário, o objetivo a ser alcançado. Em outras palavras: a
realidade que tem tanto significado para Die Tat não existe, exceto talvez como
fim. Falar então de conteúdos substantivos só tem sentido se eles podem ser
revelados como existentes. Proclamá-los como um tipo de plano qualquer, a
ser realizado pelo mero esforço da vontade, significa fazer uma exigência que,
de antemão, é impossível de ser atendida. Uma substancialidade ou existe ou
não existe. Aquele que emprega o conceito de tal substancialidade sem tê-lo
atualmente em mãos, não o conquista por meio do conceito, mas revela algo
totalmente diferente: ou seja, que o conceito é uma pura reação. Todos os
conceitos carregados positivamente e empregados por Die Tat são pouco mais
do que reações ao sistema avaliado negativamente, e que Die Tat reúne sob
o termo geral “liberalismo”. Estritamente falando, esses conceitos são irreais,

20 Publicado primeiramente como uma série de artigos no Frankfurter Zeitung, esse estudo
sobre a classe de empregados surge na forma de livro pela Frankfurt Societäts-Drückerei,
em 1930. 131
vale dizer, eles não correspondem à realidade – que já deveria existir – para
se poder apelar à sua legitimidade. E o significado desses conceitos se exaure
completamente no fato de ser sintoma de um contramovimento que, sem dú-
vida, se pode descrever como romântico.
O fato de o Círculo Tat não contar com o surgimento de um líder [Führer]
mas, por conseguinte, contar com a capacidade criativa de uma elite espi-
ritual que ele crê realmente existir, revela uma certa reflexão. É realmente
provável que, acima de tudo, ele se considere parte da genuína elite por ele
mesmo desejada, e de fato o Círculo Tat realmente é a nata da juventude
alemã. Ainda assim ele não se abstém de glorificar agora mesmo o eventual
líder. Zehrer sonha com aquele que é esperado: “O anseio por este indivíduo
está latente no povo há mais de uma década. Nós não queremos nos iludir: no
momento em que a primeira palavra de comando severa, mas justa, de uma
vontade realmente pessoal atingir o povo alemão, as pessoas entrarão em for-
mação e cerrarão fileiras […] e este respirará aliviado, pois saberá novamente
para onde está indo”.21 O povo alemão certamente não fará nenhuma destas
coisas porque – e enquanto – a própria boa vontade política se dispersa na
ânsia de um líder. A vinda e a permanência deste líder depende única e exclu-
sivamente de uma compreensão correta e construtiva da situação, e ele desa-
parece novamente quando, apoiando-se somente em seu status de líder, não
compreende a situação (Clemenceau, Lloyd Georg etc.).22 Ao invés de criar –
na medida em que isto é possível – as condições necessárias em que um líder
enfim pode aparecer, Zehrer glorifica o líder como tal logo de início. Esta é
uma estratégia muito difundida, que provém obviamente de uma aversão ao

21 Hans Zehrer, “Rechts oder links?” [Direita ou esquerda?], op. cit., p. 556.
22 Georges Clemenceau (1841-1929), político francês e jornalista, consolidou o seu poder político
como primeiro-ministro pró-militarista fiel à França e foi ministro durante a Primeira Guerra
Mundial. A violenta imposição de sua vontade política, evidenciada claramente no modo
pelo qual excluiu a Assembléia Nacional Francesa das negociações de paz de Versailles, sig-
nificou o fim de sua carreira política. O político britânico David Lloyd George (1863-1945)
teve uma carreira prematura como secretário militarista do Estado de Guerra antes de se
tornar primeiro-ministro (1916-22) durante a Primeira Guerra Mundial. A sua desconfiança
132 em relação a outros comandantes e burocratas levou ao seu isolamento crescente.
parlamentarismo da democracia liberal, mas que não tem nenhuma conse-
quência. Ao contrário! Pelo fato de gastar todo o tempo entoando hinos ao
líder, antes que ele tenha chegado, negligencia-se precisamente preparar-lhe o
caminho e, na pior das hipóteses, torna-se presa de charlatões. A antecipação
de um líder não apressa o seu advento, muito mais retarda a sua aproximação.
A única coisa que possivelmente facilitaria esta chegada é o questionamento
constante sobre o que seria necessário fazer para que isto aconteça. E é so-
mente o líder já manifesto – e não o antecipado – que pode aspirar a entrar na
consciência do povo como uma imagem. A imagem de Lenin circundada por
uma auréola é o fim e não o início de uma carreira de um líder, é o produto
de ações baseadas em conhecimento.
Mesmo o conceito de mito, sob cujo signo o novo Estado-Volk deve se
constituir, é um contraconceito sem poder. Nascido da rebelião contra o li-
beralismo desnaturado, ele deseja estabelecer uma força mais efetiva no lugar
da razão, que supostamente falhou. Mas o mito não pode ser estabelecido.
Ele é, segundo Bachofen, “nada além do que a representação das experiên-
cias do povo à luz da fé religiosa”.23 Ou, como Carl Albrecht Bernoulli aponta
nos esclarecimentos de sua edição de Bachofen: “O mito é válido ou inválido,
dependendo de sua eficácia ou não-eficácia para nós. Em todo caso, se ele ‘é’
ou ‘não é’ depende do nosso mundo emocional […]”.24 Isto só aparentemente
contradiz o discurso de Mussolini antes da marcha para Roma, no qual ele
credita ao fascismo ter criado o mito da “nação”. De fato, mesmo Carl Schmitt
– não sem simpatia – em seu livro Die geistesgeschichtliche Lage des heutigen
Parlamentarismus [A situação histórico-espiritual do parlamentarismo atual]
cita essa passagem do discurso, denomina os acontecimentos a ele ligados “um
exemplo do poder irracional do mito nacional.”25 Antes, deveria ser examinado

23 Johann Jakob Bachofen, Urreligion und antike Symbole: Systematisch angeordnete Auswahl
aus seinen Werken in drei Bänden [Religião primitiva e símbolos da Antiguidade. Seleção de
suas obras em três volumes organizada de modo sistemático]. Organizada por Carl Albrecht
Bernouilli, volume 1. Leipzig: Reclam, 1926, p. 182.
24 Idem, p. 47.
25 Carl Schmitt, Die geistesgeschichtliche Lage des heutigen Parlamentarismus [A situação histórico-
espiritual do parlamentarismo hoje]. München: Duncker & Humbolt, 1923, p. 472. 133
até que ponto o assim denominado mito fascista não é simplesmente a supe-
restrutura ideológica de relações materiais e sociais específicas e se ele poderia
sobreviver somente na base de sua própria força irracional. O próprio Zehrer
revela em certo ponto involuntariamente quão fraco é o fundamento sobre o
qual repousa o programa de mito do Círculo Tat. Em relação ao comunismo,
ele escreve: “Não se pode, no entanto, subestimar a sua posição. Ele tem um
mito – o alegado modelo da Rússia – que é […] independente do conteúdo
teórico do comunismo, e a sua função é exclusivamente reunir a massa e tomar
o poder”.26 Ignorando completamente a frivolidade com que a relação entre
teo­ria e subsequentemente prática, entre o slogan e sua realização, é trivializada
aqui por esse venerador do irracional, a questão que se deve colocar é: quais
fatores são responsáveis por engendrar o mito do comunismo? A resposta: exa-
tamente a teoria que Zehrer tanto desprezou. E somente graças ao poder desses
discernimentos teóricos é que o comunismo russo foi capaz de tornar a Rússia
aquilo que o Círculo de Die Tat – mas não o comunismo mesmo – considera
ser um mito. E mesmo que, tal como Carl Schmitt (de acordo com Sorel) ex-
põe em seu livro já anteriormente citado, as energias nacionais tenham sido as
responsáveis pela vitória da Revolução Russa, não foi o que invocamos; mas
aquilo a que nos referimos é o socialismo. Disto resulta que talvez até mesmo
nos dias de hoje um mito pode se originar da realização de conhecimentos,
embora a exigência direta do mito seja infundada. Pode-se assim caracterizar
o apelo ao mito de Die Tat como uma reação sem conteúdo.
O mesmo vale para o conceito de espaço. Por exemplo, ao reivindicar que
a elite espiritual se reúna necessariamente dentro do país, Zehrer eleva um
fator casual a fator determinante. Sem dúvida é certo que uma nova doutrina
– que é a única a definir uma elite – se propaga facilmente entre vizinhos, mas
a relação entre vizinhos está longe de ser a pré-condição para a criação dessa
elite. É com uma lógica similar que Die Tat trata quase sempre o espaço como
uma grandeza em si, quando, na verdade, ele adquire significado somente pe-
las substancialidades realizadas dentro dele e as quais esse espaço deve, sem
dúvida, preservar, transformar e exalar. Este é um culto do espaço que se volta

134 26 Hans Zehrer, “Rechts oder links?” [Dieita ou esquerda?], op. cit., p. 544.
diretamente contra um tipo de pensamento – não incomum nos círculos li-
berais – que tende para o internacionalismo, sem contudo estabelecer traços
espaciais inteiramente característicos. No entanto, uma vez que que essa con-
tramedida transforma esse espaço em um absoluto, ela ultrapassa excessiva-
mente os limites e cria um conceito inflado, oco, que torna o espaço um es-
pantalho. Não posso resistir a dar um exemplo de arte-espaço [Raumkunst] de
Fried, retirado de um ensaio publicado no caderno de maio, n° 31, e intitulado
“Der Umbau der Welt” [A reestruturação do mundo]: “O ocidente capitalista
[…] irá provavelmente ainda perder a sua influência sobre a América do Sul
e a Austrália, onde o movimento nacionalista trabalha cada vez mais no sen-
tido do isolamento, da desvinculação da economia mundial e da autonomia.
Parece possível que também a África do Sul caia fora. Na América do Norte,
o conflito amadurecido entre os fazendeiros superendividados do oeste e o
poder financeiro-industrial do leste conduzirá finalmente para uma simbiose
econômica similar àquela entre a Europa central e Rússia. Como resultado,
toda a América do Norte, incluindo-se o Canadá, se tornará completamente
autossuficiente e se isolará do resto do mundo. Com isto restam etc. […]”.27
A irrealidade desta arquitetura publicitária é, sem dúvida, óbvia. Ela qualifica
a economia que se manifesta no espaço simplesmente como uma variável
deste espaço e adultera a necessidade de limites aduaneiros como sendo uma
virtude da autarquia.
Mais assustadora ainda é a reação de Die Tat em relação ao sentido que o li-
beralismo – e não só o liberalismo – confere aos acontecimentos. Tanto quanto
compreendo a tendência de se desviar de uma situação que parece ter perdido
todo o sentido, o caminho que Fried toma em direção ao nada do barbarismo
– completamente consciente do que está fazendo – parece-me inaceitável. Ele
afirma também estar procurando um sentido – contudo, não o sentido do que
deveria ser, mas do que é –, mas esta explanação não o impede de citar e apro-
var o seguinte trecho de Spengler: “A história do mundo é o tribunal do mundo
[…] ela sempre sacrificou a verdade e a justiça ao poder e à raça, e condenou

27 Ferdinand Fried. “Der Umbau der Welt” [A re-estruturação do mundo], Die Tat 23, número
2, mai. 1931, p. 126. 135
à morte homens e povos, para os quais a verdade era mais importante do que
atos e a justiça mais essencial do que poder”.28 Seria muito fácil refutar a decla-
ração de Spengler com exemplos – eu penso no caso Dreyfuss – que provam
exatamente o contrário. Aquilo que aqui interessa, no entanto, é somente o
fato de que Fried, ao adotar esta tese, revela a mesma pobreza de sentido de
realidade que Die Tat manifesta exatamente ali onde postula a nova realidade.
Pois a frase que ele coloca como realidade – isto é, que a verdade e a justiça no
processo histórico do mundo sempre foram vítimas do poder e da raça – não
se origina de fato da relação atual com a realidade, mas é muito mais fruto de
uma perspectiva puramente histórica. Esta é a mesma perspectiva que Die Tat
aplica em um outro trecho nos seguintes termos realmente justificados: “Ba-
sicamente, do ponto de vista ético, se poderia perguntar se no fundo a pers-
pectiva histórica não é a-histórica, na medida em que ela se recusa a entrar
na dialética da história e, assim, tornar-se realmente ‘histórica’”.29 Se Fried se
metesse com a dialética da história, ele teria de reconhecer que poder e raça
triunfam regularmente apenas quando estão a serviço daquelas doutrinas que
corporificam verdade e justiça; teria, portanto, de reconhecer que poder e raça
só estão condenados ao fracasso se ambos procuram exercer o poder como tal.
Fried se esquiva dessa dialética. Como resultado desta postura não-realista, ele
toma uma contemplação histórica duvidosa como uma máxima para a ação, e
exagera a pressuposição natural da postura substantiva em direção à substân-
cia por si mesma. A sua posição não é nada mais do que oposição a qualquer
espécie de sentido e ela mesma é tão destituída de conteú­do como somente
pode ser a natureza sem luz.
Die Tat, portanto, não constrói uma realidade diferente, mais substancial,
oposta à liberal; reivindica sobretudo uma realidade que não se deixa reivin-
dicar. Se alguém quisesse ser malicioso poderia ter levado um dos ídolos do

28 Oswald Spengler, Der Untergang des Abendlandes [O declínio do Ocidente], volume 2, Mün-
chen, C. H. Beck, 1918-1922, p. 1194 [ed. bras.: A decadência do ocidente. Trad. Herbert Caro.
Brasília: Editora da UnB, 1982]. Apud Ferdinand Fried, “Die Auflösung” [A desintegração].
Die Tat 23, número 2, mai. 1931, p. 141.
29 E.W. Eschmann, “Moderne Soziologen III” [Sociólogos modernos III], Die Tat 23, número
136 2, maio 1931, p. 141.
Círculo Tat a uma luta contra ele: refiro-me a Spengler. Ele disse uma vez que
a alma nórdica já esgotara as suas capacidades interiores a tal ponto que só
lhe restariam “o impulso, a paixão criativa, uma forma de existência espiri-
tual sem substância”, e que ao menos ela deveria simular que suas atividades
tivessem um conteúdo. “Ibsen chamou isto a mentira da vida” continua Spen-
gler “e há um elemento dela em toda a atividade espiritual da civilização da
Europa ocidental, na medida em que ela se orienta para um futuro religioso,
artístico e filosófico, um objetivo imaterial, um terceiro Reich, ao passo que o
tempo todo no mais profundo íntimo há um pressentimento sombrio que
insiste em não se calar, um pressentimento de que toda esta atividade é uma
ilusão, é a autodecepção desesperada de uma alma histórica […] Bayreuth, no
seu desejo de ser algo, está baseada nessa mentira de vida em contraposição
a Pergamon, que realmente foi algo.”30 Estas observações feitas recentemente
por Spengler – cujo conteúdo de cognição não pode ser examinado aqui –
referem-se ao socialismo, mas descrevem muito mais o âmbito conceitual do
Die Tat. Este também deseja alguma coisa que uma vez realmente foi algo. E
posso acrescentar que não se conquista realmente nada enquanto for objetivo
de um ato da vontade.

Se os conceitos do Círculo Tat fossem apenas irreais – mas eles também so-
frem a miséria da contradição. Não aquela espécie de contradição indispen-
sável que se coloca ali, no limite de todo sistema fechado, onde se encontram
os seus pressupostos, mas uma contradição do tipo que dissolve o sistema a
partir do seu interior. Há bons motivos para que os colaboradores de Die Tat,
tal qual exorcistas seguindo os rastros das bruxas, farejem por toda parte li-
beralismo, contando o número de gotas desditosas que dele as pessoas têm
em seu sangue. Para eles, o conservadorismo e o socialismo estão completa-
mente contaminados. E o que é o bolchevismo russo? “É um liberalismo com

30 Oswald Spengler, op. cit., pp. 466-67. 137


vestes marxistas!”31 O fascismo é igualmente acusado de barganhar como esse
demônio e precisa suportar a reputação de estar infestado com um grande nú-
mero de ideias liberais. Em resumo, Die Tat quer ser mais católico que o papa,
pressupondo-se que se pode fazer menção a ele no contexto do fascismo. A
necessidade maníaca de perseguir e acossar o liberalismo até os mais remotos
rincões, nos permite indiscutivelmente concluir que, em termos psicanalíti-
cos, ele é algo como um sintoma de repressão. Persegue-se o liberalismo com
tanto ódio exatamente porque é algo que se descobre em si mesmo. E de fato,
inconscientemente, Die Tat possui tanto dele em si mesmo, que ele emana por
todos os lados. Ele não se deixa ocultar: o liberalismo expulso pela porta da
frente é sempre graciosamente convidado a entrar novamente pela porta dos
fundos. E se ele não se infiltra na casa com o seu próprio nome, não é razão
para se equivocar. A sua presença no meio do mundo das ideias hostis a ele é,
no entanto, mais uma evidência de sua fragilidade.
Em pontos decisivos aparece o conceito de indivíduo em formulações que
estão em desacordo com as posições conscientes do Círculo Tat. Assim, por
exemplo, no combate ao americanismo e ao capitalismo não se aspira apenas
à renovação da ideia de profissão, mas também à construção de uma “nova
cultura da personalidade”. No ensaio “Wohin treiben wir?” [Para onde vamos?]
– o mesmo texto que contém o programa de Die Tat – encontra-se o seguinte
trecho em itálico: “O que aqui está em jogo é o homem. E a decisão para onde
vamos e quanto tempo isso vai durar será tomada por cada um individual-
mente e em nenhum outro lugar!”.32 De que esferas vêm estas determinações e
como chegaram até aqui? Elas se originam de um individualismo do tipo idea­
lista, conceitos burgueses se assim se deseja, que de modo algum podem ser
ligados à exigência de um “nacionalismo integral” e um “Estado total”. Pois a
realização deste último está no mínimo ligada com a unidade da vontade geral
e subjetiva. Mas como colocado explicitamente, se a decisão depende unica-
mente do indivíduo e de nada mais, então a vontade do Estado está de ante-
mão excluída – também quando se toma como base uma concepção orgânica

31 Hans Zehrer, “Rechts oder links?” [Direita ou esquerda?], op. cit., p. 542.
138 32 Idem, ibidem, p. 542.
de Estado. Este indivíduo autônomo está muito mais apto a ser o detentor do
velho sistema liberal do que de uma autarquia. A habilidade do liberalismo de
conquistar o lugar de honra em uma concepção completamente antiliberal só
comprova o poder das ideias liberais herdadas. Como ensina o exemplo drás-
tico provindo da Rússia, precisamente a suspensão da autonomia do indivíduo
é necessária para as pessoas serem “integradas dentro” do Estado soberano. E
embora as pessoas ligadas a Die Tat acusem a União Soviética de liberalismo,
os soviéticos sabem muito melhor do que elas que a construção de uma eco-
nomia de Estado nacional não pode tolerar uma “cultura da personalidade”.
Desejar abertamente uma tal cultura da personalidade e, simultaneamente,
construir o conceito de Estado total é, em todo caso, um contrassenso.
Die Tat não se limita a transferir o foco de decisão para o indivíduo, mas
delineia também um quadro bem definido da sua existência futura. “Ele terá
muito menos para fazer do que atualmente, pois não poderá mais trabalhar
oito horas por dia. Por conseguinte, terá mais tempo do que tem hoje. Ele po-
derá se deitar no sol e ao ar livre. Terá mais sossego, mais segurança. E – ele
talvez sentirá novamente prazer em se ocupar de valores espirituais sérios,
para os quais atualmente não tem nem tempo, nem paz e nem tranquilidade.”33
Quem é esta pessoa, atrás da qual cintila a distância uma casa de final de se-
mana? É o pequeno burguês individualista que cresceu no liberalismo, o qual
o Estado permite ser um bom homem e que certamente é o menos indicado
para criar a nova ordem que Die Tat deseja. O próprio Zehrer fala claramente
que a esse indivíduo falta élan. Em relação aos russos, em certo momento ele
declara elegiacamente: “a força motriz deste novo estado econômico é, em
sua essência, o grande élan revolucionário que não podemos mais copiar dos
russos, pois nós estamos no fim desse ardor liberalista. Cremos ainda na tec-
nologia? Cremos ainda na máquina? Cremos ainda no êxtase da grande li-
berdade que atinge uma pessoa livre de todas as ligações e que é lançada no
presente? Não, nós não cremos mais nisto. Nós nos cansamos disto!”.34 Admito
que, depois de tudo isso, não posso mais imaginar o nascimento de um novo

33 Idem, ibidem, p. 194.


34 Idem, ibidem, p. 544. 139
mito. Já é um disparate atribuir ao indivíduo, por assim dizer, um significado
metafísico e, de um só fôlego, exaltar o mito, que não concede espaço para o
indivíduo. Se este indivíduo, além disso, ainda é definido como um pequeno
burguês cansado, ao qual falta não só impulso liberalista, mas também, apa-
rentemente, força motriz, então o mito que este indivíduo quer supostamente
concretizar é com toda razão impensável. Spengler também fala da fadiga do
homem ocidental. Mas ele é incomparavelmente muito mais lógico que Die
Tat: ele atribui esta fadiga à forma de dominação do cesarismo, cujos pressu-
postos não incluem nem o povo de Estado, nem o mito.35 Ao invocar o mito e
não obstante manter o conceito de indivíduo, Die Tat é culpado de uma con-
tradição que não poderia ser mais completa.
O indivíduo – a peça central do autêntico liberalismo – é o veículo pelo
qual a razão entra na concepção de mundo de Die Tat. Apesar das suas inten-
ções de rechaçá-la com a espada, em certas ocasiões eles não só empregam
a razão com sucesso nos ensaios dedicados à crítica, mas exigem, por assim
dizer, que ela prove a sua eficácia. Após afirmar – no caderno de novembro
de Die Tat – que o terreno estaria livre “para uma nova reconstrução e um
rompimento dos grilhões”, Zehrer continua: “E nós temos uma oposição que
neste momento ainda não está preparada, que se esforça muito para manter
os seus próprios grupos, mas carece de preparação teórica”.36 A preparação
teórica: qual o melhor caminho para promovê-la senão pelo uso da razão?
Sem dúvida, a razão é tanto mais essencial quanto mais o programa prevê
uma economia planificada controlada pelo Estado. Aqui a contradição pe-
netra até o cerne, pois o conceito de planificar está totalmente em desacordo
com aquele do crescimento. Assim, se de um lado Die Tat propaga um Estado
que alcança êxito pelo crescimento orgânico mas, por outro, quer concretizar
uma espécie de socialismo por meio da economia dirigida, ele tem algo em
vista que é simplesmente impossível. Ele lança a razão para fora do templo do
Estado-Volk e, ao mesmo tempo, traz esta mesma razão para dentro dos es-

35 Sobre o Cesarismo, cf. Spengler, op. cit., pp. 1101-07.


36 Hans Zehrer, “Glossen zur Zeit” [Comentários de época]. Die Tat 23, número 8, nov. 1931,
140 pp. 674-75.
critórios da economia de Estado. Este não é um, mas são dois movimentos, e
eles caminham em direções opostas. O primeiro, o movimento principal, é a
reação contra o liberalismo; o segundo, que aspira a uma economia dirigida
que pode ser realizada somente com a ajuda de uma organização racional,
marca o surgimento do princípio da razão que, de modo redutor, é designado
“liberalista”. Em certa ocasião já apontei que Die Tat confunde o pensamento
independente do presente – que realmente não pode ser chamado de liberal –
com a própria razão. Uma consequência desta confusão é que, dentre outras,
se acredita poder liquidar o regime soviético como liberal. A base desta confu-
são, no entanto, é que na verdade não se protesta apenas contra o liberalismo,
como também se quer repudiar o logos. No final, o que se observa em Die Tat
é que a natureza se rebela contra o espírito. E somente graças à indecisão dos
rebeldes é que entram em contradição e, apesar do seu recuo em direção ao
natural, repetidamente dão acesso ao indivíduo e à razão.

É a classe média destituída que se rebela. “A posição-chave da classe média”


[Mittelstand in Schlüsselstellung] é o título da primeira parte de um ensaio de
Horst Grüneberg, que se inicia com a seguinte explanação: “Não se pode ig-
norar esse fato decisivo: não se governa sem a velha e a nova classe média”.37
E Die Tat adota os conceitos desta classe média de modo tão completo, que
orienta todos os seus principais conceitos aos dela. Como já mencionado, ele
deriva a reivindicação do mito dos mesmos imperativos da classe média e an-
cora neles o seu modelo de Estado ideal. Como formulado no ensaio há pouco
citado, “A política positiva da classe média só pode significar um desejo para
a nova ordem, um desejo para o Estado”.38 Quero acrescentar ainda, de passa-
gem, que pelo fato de o Círculo Tat ter claro discernimento sobre a filiação de

37 Horst Grüneberg, “Mittelstandspolitik, Staatspolitik” [Política de classe média, política de


Estado], op. cit., p. 191
38 Idem, p. 194. 141
certos programas com certos estratos sociais, ele deveria também ser capaz de
reconhecer facilmente a legitimidade do conceito de classe.
Em termos econômicos, a classe média está hoje em grande parte proleta-
rizada; em termos conceituais, desamparada. Esta proletarização exacerbou,
durante a crise corrente, o seu ressentimento com o capitalismo, e Grüneberg
constata inclusive explicitamente que “[…] sem uma atitude basicamente anti-
capitalista, jamais seremos capazes de despertar as forças positivas da classe
média”.39 Mas esta disposição anticapitalista no campo econômico de modo
algum leva a um compromisso com o socialismo proletário. Ao contrário:
em razão de assegurar a sua própria sobrevivência, a classe média insiste em
se diferenciar claramente do proletariado. As experiências relatadas em meu
livro Die Angestellten [Os empregados] já confirmam o fato de que mesmo o
empregado mais mal pago não quer, de modo algum, ser um assalariado. No
caderno de setembro de Die Tat, Ernst Wilhelm Eschmann toca essencial-
mente no mesmo ponto: “A conscientização crescente da classe média não
só torna impossível a construção de um socialismo proletário na Alemanha,
mas também torna esta classe média um fator essencial da economia nacional
nascente”.40 Portanto, uma vez que a classe média se recusa, no interesse vi-
tal de sua própria sobrevivência, a declarar sua solidariedade ao proletariado,
levanta-se a questão de saber o que lhe resta fazer para escapar do seu desam-
paro de ideais – desamparo que tem sua origem no fato de que ela se considera
incapaz de encontrar refúgio no sistema liberal tão abalado pela crise econô-
mica, mas reluta portanto em se abrigar no marxismo.
Ela se encontra no vazio e não lhe resta senão a tentativa de desenvolver
uma nova consciência, que garanta a sua sobrevivência social do ponto de
vista dos seus ideais. Isto explica a batalha desesperada por parte dos extratos
intermediários representados por Die Tat – uma batalha contra o liberalismo,

39 Idem, ibidem
40 Ernst Wilhellm Eschmann, “Übergang zur Gesamtwirtschaft” [Transição para a economia
global], Die Tat 23, número 6, set. 1931, p. 456. Eschmann, jornalista e posteriormente editor
de Die Tat, resenhou o estudo Die Angestellten [Os empregados] para este jornal. Cf. “Die
Angestellten: Ergänzung zu S. Kracauer” [Os empregados: complemento a S. Kracauer], Die
142 Tat 22, número 2, 1930, pp. 460-63.
do qual provém – assim como a sua glorificação de Estado, espaço e mito.
Mostrou-se claramente que estes conceitos não fazem referência a nenhum
país, mas são uma miragem no deserto. A classe média não tem consciência
de quão irreais esses conceitos são, mas esta irrealidade é um fato, e sem dú-
vida ela possui uma vaga ideia dela. Em todo caso, o seu abandono de ideais é
o único a explicar a sua contínua vacilação entre dois extremos. Um extremo
é o apelo à violência bruta, que surge do sentimento de que só poderia se
manter viva através dela. A batalha espiritual a que se é conduzido por Die
Tat ameaça portanto degenerar sempre em uma revolta não-espiritual. Ele
denomina a espada um argumento, deixa o sangue triunfar sobre o dinheiro
e inequivocamente tende a colocar o poder ctônico heroicizado contra toda
vida formada conscientemente. Em todos os conceitos que fornece à classe
média, é a natureza bruta como tal que se move. O outro extremo é a posição
liberal, que foi abandonada. Pois, se a classe média – que rejeitou o marxismo
– deseja assegurar a sua própria consciência – na ausência de uma consciência
não-burguesa e não-proletária – precisa no final sempre retornar para a tra-
dição burguesa obsoleta e sua propriedade intelectual herdada. O escoamento
de sua consciência está obstruído: ou ela se esgota ou se acumula e é forçada
a correr novamente para o seu ponto de origem. Isto e nada mais pode expli-
car o aparecimento repentino do conceito de indivíduo e da razão em Die Tat,
que está em desacordo com as tendências atuais do jornal.
As publicações do Círculo Tat consequentemente refletem esta desintegra-
ção da classe média destituída (causada pela situação material e idealista), que
se refugia no romantismo e é jogada de um lado ao outro entre violência e
razão. Isso, no entanto, também significa que essas publicações são incapazes
de oferecer qualquer alternativa e apenas expõem a situação corrente. Se Die
Tat não pode ir além desta exposição, então a revolta precisa sucumbir por
causa de sua confusão ideológica ou ser encampada por forças que possuam
uma constituição mais forte. Se eu não estou completamente enganado, há
três perigos em relação aos quais o Círculo Tat é particularmente vulnerável.
O primeiro é que, contra a sua vontade, o capital explora-o como um grupo
de ataque avançado na batalha contra o socialismo marxista, somente para
mais tarde, se necessário for, jogá-lo ao mar como um peso morto, depois 143
de ter servido aos seus propósitos. Não seria a primeira vez a acontecer algo
parecido, e nesse processo o socialismo da classe média estaria liquidado. O
segundo perigo é que o Círculo Tat, em razão do seu esforço vão de impor
um programa tão contraditório e não-realista, tende cada vez mais para um
barbarismo, que já manifesta de forma latente, vibrando a espada com a sua
mão direita. Enquanto guardiã das tradições culturais, a classe média é que
sofreria a maior parte das consequências. O terceiro perigo é que às pessoas de
Die Tat poderia suceder o mesmo que aos românticos alemães: no final, eles
irão buscar refúgio na religião. A partir do momento em que, através da prá-
tica, reconhecerem que os seus conceitos não correspondem a nenhuma rea-
lidade, eles ainda poderão se lançar de cabeça na realidade da crença religiosa.
Já se percebe agora que eles têm certa tendência para o protestantismo radical.
Esta se revela, por exemplo, na afirmação de que “hoje se trata em primeira
instância de uma grande transformação espiritual, que está em processo e que
tem como foco novamente o homem em sua totalidade […]”.41 Se a fé estivesse
disponível, a palavra “totalidade” – também usada frequentemente em outros
contextos – assumiria o peso aqui imaginado. Mas a atividade política de Die
Tat encontraria com isso o seu fim.

A preocupação pelo destino das forças insubstituíveis, presentes na classe mé-


dia, levaram-me a essa investigação. O seu único propósito é revelar a situação
na qual se encontra Die Tat. Esta investigação também é oferecida em favor
do interesse dos assuntos apresentados em Die Tat, no qual todo assunto é
de interesse.
Tanto quanto vejo, o interesse de Die Tat está baseado em uma profunda
experiência da unidade do povo, já discutida acima. É precisamente a classe
média que, em razão de sua posição intermediária, está apta a conquistar esta
unidade. No entanto, eu não saberia como se poderia expressá-la melhor do
que com o seguinte trecho de Zehrer: “O conservador – que segundo a sua

144 41 [Zehrer], “Wohin treiben wir?” [Para onde vamos?], p. 346.


natureza, sua tradição, seu sangue e seu caráter jamais poderia reconhecer o
sistema de hoje – e a pessoa contemporânea à esquerda – que foi derrotada e
expulsa pelo sistema atual – têm mais em comum do que realizam, estão muito
mais próximos do que imaginam. O caminho do futuro é unir essa pessoa da
direita com a pessoa da esquerda, e vice-versa […]”.42 A isto é necessário acres-
centar a experiência dos danos do sistema atual, uma experiência que conduz
para a revolta legítima contra a ratio liberta. Também ela está ligada a pontos
de vista que foram sugeridos especialmente à classe média durante a crise.
A tarefa de tornar frutíferas essas experiências substantivas da classe mé-
dia não é, de modo algum, sinônimo de política mesquinha da classe média.
Pois embora essas experiências descendam da classe média, elas não visam
simplesmente perpetuar esta classe em sua posição social intermediária. Se
o Círculo Tat se contentasse com uma missão assim, então estaria definitiva-
mente em um beco sem saída, naufragaria completamente nos seus conceitos
irrealistas e nas suas contradições internas e mal poderia escapar dos perigos
acima assinalados. Mas, na verdade, Die Tat não se propôs esta tarefa, mas
uma outra, que vai além do mero interesse da classe média. O aspecto prático
da sua solução não pode ser discutido aqui. Aquilo que deve ser constatado
é simplesmente que esse empreendimento pressupõe uma revisão da posição
do Círculo Tat em dois importantes aspectos.
Em primeiro lugar, acredito que o Círculo Tat não escapará de uma corre-
ção dos seus conceitos principais e dos de Estado – para resgatar muito deles
de seu significado reacionário. Em um ensaio no caderno de setembro, Ernst
Wilhelm Eschmann escreve: “Nos opomos aqui ao marxismo não por razões
ideológicas […] mas porque ele condena à improdutividade uma quantidade
enorme de energia, fixando-as a um dogma, e, por conseguinte, impedindo
as próprias decisões”.43 Mas na produção de quimeras conceituais que fazem
sobressair a classe média, sem contudo ser capaz de alicerçá-la, Die Tat fixa
uma quantidade de energia, que poderia ser implementada com produtividade

42 Idem, p. 559.
43 Ernst Willhelm Eschmann, “Übergang zur Gesamtwirtschaft” [Passagem para a economia
global], Die Tat 23, número 6, set. 1931, p. 457. 145
incomparavelmente maior. Ele quer reunir pessoas da direita com pessoas da
esquerda, mas a sua verdadeira função não difere daquela dos “Jornais de célu-
las operárias vermelhas” [Rote Betriebszellenzeitungen]. Estes são descritos por
Christian Reil no caderno de abril como jornais que exercem uma influência
bem limitada, que não vai além do círculo dos membros do seu próprio par-
tido, pois eles “em grande parte consistem em artigos que criticam os sindi-
catos livres e a linguagem apropriada, que deve ser especificamente colocada
ao nível dos funcionários para ser efetiva, parece faltar completamente aos
comunistas, ao menos nas circunstâncias atuais […]”.44 É exatamente desta
maneira que o Círculo Tat falha em relação às classes trabalhadoras. Ao in-
vés de penetrar a realidade que lhe diz respeito, Die Tat se perde na pseudo-
realidade das imagens de Estado e de mito, que retrata como uma alternativa
para o arquidemônio do marxismo e do liberalismo pintados na parede. Seus
conceitos opositivos realizam-se, porque neles a esquerda é um mero conceito.
No entanto, a fim de realizar a experiência do povo, Die Tat teria de ir até o
proletariado e incluí-lo também.
Um esforço semelhante pressuporia, no entanto, que Die Tat se deixasse
conduzir não por reações emocionais, mas por conhecimentos. E isto me con-
duz ao segundo aspecto da posição do Círculo Tat que precisa ser revisado.
Creio que, a serviço de sua própria tarefa, Die Tat irá restaurar a dignidade
da razão. A rebelião que instigou contra a razão pode ser talvez entendida
como um ato desesperado por parte da classe média ameaçada, e não é de
modo algum o meio apropriado para impedir a devastação da ratio incontro-
lada. Ao contrário! Este último tipo de pensamento não-refreado, separado de
todo o humano [Kreatürlichen], e que foi capaz de – no pós-guerra – ignorar
com impunidade todos os limites nos campos da economia e da política, tem
muito mais afinidade com o barbarismo do que com a razão; incluindo-se a

44 Kracauer aqui atribui erroneamente esta citação a Christian Reil, cujo artigo “Die Wahrheit
über Frankreich” [A verdade sobre a França], inicia-se na mesma página do trecho citado. V.
Die Tat 23, número 1, abr. 1931, pp. 59-62. Este, no entanto, é um artigo de Montanus intitu-
lado “Werkzeitungen als ‘weiße Salbe’ des kapitalistischen Systems” [Jornais técnicos como
146 ‘unguento’ do sistema capitalista], Die Tat 23, número 1, abr. 1931, p. 59.
razão liberal. Essa ratio é, repetindo um ponto já abordado anteriormente, o
expoente de forças cegas da natureza, e nada seria mais absurdo e mais inútil
do que querer combatê-la com a ajuda dessa mesma simples natureza, que
se manifesta nessa ratio. Só a razão pode restringir esta ratio desmesurada; a
razão cujas características incluem o estar ciente de suas próprias limitações.
Certa vez, em um trecho de Die Tat lia-se: “Nós admiramos os franceses como
inimigos durante a guerra. Em viagens pela França, muitos de nós, mais tarde,
conhecemos o estilo de vida do pequeno-burguês francês e dos camponeses
e compreendemos a sua mentalidade estática, conservadora”.45 Pois bem, esta
mentalidade certamente admirável pertence a um povo que confere à razão
honra divina e reconhece sinceramente o seu papel. O Círculo Tat também
não deveria se entregar por mais tempo ao infrutífero rancor contra a razão,
que também o desvia de seus verdadeiros objetivos. No caderno de novem-
bro Erwin Ritter explica que “nós torcemos […] pelo retorno do intelectual
à modéstia”.46 O intelectual modesto: este, afinal, é a razão – razão que nessa
situação na qual hoje em dia nasce a urgência de decisões é mais necessária
do que nunca. Pois sem o pleno esforço da razão, sem a clara e decisiva rejei-
ção das forças obscuras do antiespírito/anti-intelecto [Wiedergeist], o círculo
de pessoas reunidas em torno de Die Tat não terá jamais aquilo que lhes é tão
caro: a nova economia, que só pode ser uma obra do conhecimento, e o novo
povo, composto pela esquerda e pela direita, cujos contornos idealiza.

45 C. [pseudônimo não-identificado], “Ein Wort an Frankreich” [Uma palavra para a França],


Die Tat 23, número 7, out. 1931, p. 584.
46 Erwin Ritter [pseudônimo de Hans Zehrer], “Die grosse Stadt” [A grande cidade], Die Tat
23, número 8, nov. 1931, p. 633. 147
Aqueles que esperam

Existe atualmente um grande número de pessoas que, sem que saibam umas
das outras, estão ligadas por um fato comum. Ao escaparem da profissão de
uma fé particular, conquistaram sua parte dos bens culturais e educacionais,
hoje em geral acessíveis, e tendem a viver com um sentido alerta do seu tempo.
Esses eruditos, homens de negócios, médicos, advogados, estudantes e intelec-
tuais de todo tipo gastam grande parte dos seus dias na solidão das grandes
cidades. E uma vez que estão sentados em escritórios, recebendo clientes, diri-
gindo negociações, dando palestras, no alarido das atividades eles certamente
esquecem com frequência o seu próprio ser interior, e acreditam estar livres
do peso que secretamente carregam. Mas, quando se recolhem da superfície
para o centro do seu ser, são acometidos por uma profunda melancolia, que
se origina do reconhecimento do seu confinamento [Eingebanntsein] em uma
situação espiritual/intelectual particular, uma melancolia que, no final, sufoca
todas as camadas do seu ser. É o sofrimento metafísico pela falta de um sentido
mais elevado no mundo, um sofrimento que se deve a uma existência em um
espaço vazio e que torna estas pessoas companheiras de infortúnio.

A fim de responder a questão de saber como é que se chegou ao esvaziamento


do espaço espiritual/intelectual que cerca as pessoas, seria necessário perseguir 149
o processo secular, durante o qual o eu se libertou de sua ligação com Deus e
o mundo teológico, e escapou à coação de uma comunidade estabelecida pela
autoridade clerical, pela tradição, estatuto e dogma. Seria necessário investigar
em detalhes como este eu se desenvolveu no seu esforço para alcançar a auto-
nomia; como, após a sua queda da temporalidade – incluindo a eternidade –
na rápida sucessão de épocas históricas, esse eu se concentrou no eu-racional
[Vernunft-Ich] atemporal do Iluminismo [Aufklärung]; como ele então se es-
praia em uma personalidade altamente expressiva e única no Romantismo e,
posteriormente, na época do materialismo e do capitalismo, como em parte
se atomiza cada vez mais e em parte se degenera em um constructo casual
arbitrário. Além disso, seria ainda necessário mostrar que, correspondendo a
essas transformações do eu, há transformações do mundo objetal, da realidade,
que é gradualmente roubada de sua substância e comprimida a um ponto cuja
estrutura depende do eu. Portanto, seria necessário considerar o desenvolvi-
mento social e centenas de outras séries de desenvolvimento que, em última
instância, conduzem ao caos presente e, no final, não se teria realmente res-
pondido a questão (quer dizer, no seu sentido metafísico), mas, em vez disso,
se teria dado uma derivação histórica proveniente de todas as inadequações
peculiares a tais derivações.
Neste contexto, no entanto, muito mais importante que o desenrolar de
problemas históricos é desdobrar a situação anímica [seelische], na qual se en-
contram as pessoas. No fundo elas sofrem do seu exílio da esfera religiosa, quer
dizer, sofrem da enorme alienação que prevalece entre o seu espírito [Geist] e
o absoluto. Elas perderam a sua fé – perderam quase a sua capacidade de fé – e
as verdades religiosas transformaram-se em pensamentos sem coloração, que
agora só são ainda capazes de pensar. Com isto, já se desprenderam, em grande
parte, da exclusividade de uma visão de mundo determinada puramente pe-
las ciências naturais. Elas reconhecem com muita clareza, por exemplo, que
algumas das contradições intelectuais que emanam da mentalidade racional
só podem ser resolvidas passando pela posição religiosa da mente, ou que a
alma não ancorada no absoluto está desamparada. Em resumo, após um longo
caminho de sofrimento elas avançaram até aproximadamente o ponto onde,
150 antes de tudo, o âmbito religioso começa a ser acessível. Mas a porta através
da qual desejam entrar não se abre para elas, e no reino intermediário situado
à sua frente são torturadas pela sua inabilidade de crer.
Acrescenta-se a isso que essas pessoas são atingidas pela maldição do iso-
lamento e da individuação. A tradição perdeu o seu poder sobre elas. Desde o
princípio, a comunidade não é uma realidade para elas, mas meramente um
conceito; elas se encontram à parte da forma e da lei, impondo-se de algum
modo como pequenas partículas estilhaçadas na corrente do tempo que vai
se escoando. Constrangidas por um excesso de relações econômicas, vivem
desvinculadas e isoladas em um mundo espiritual/intelectual dominado pelo
princípio do laissez-aller, um mundo no qual toda grande união do tipo supra-
individual já foi há muito rompida e na qual, como resultado, o eu pode encon-
trar a ponte para o tu graças somente a uma decisão pessoal revogável.
Tanto a alienação para o absoluto quanto o isolamento e a individuação
deixam sua marca em um relativismo levado ao extremo. Uma vez que estas
pessoas carecem de vínculos e base firme [Haft und Grund], os seus espíritos
andam à deriva, e o seu lar está em todo e nenhum lugar. Elas atravessam a
infinita variedade de fenômenos espirituais/intelectuais – o mundo da histó-
ria, dos eventos anímicos, da vida religiosa – como indivíduos isolados e não
se detêm mais diante de nada, ou estão igualmente próximas e igualmente
distantes de todas as circunstâncias. Igualmente próximas, pois submergem
com facilidade em toda essencialidade [Wesenheit], porque não há mais ne-
nhuma fé que prenda o seu espírito [Geist], impedindo-o de algum modo de
ser consumido por um fenômeno qualquer. Igualmente distantes, pois elas
nunca consideram qualquer discernimento como sendo o último – quer di-
zer, jamais penetraram em uma essencialidade tão profundamente de modo
que possam entrar em sua profundeza permanentemente e, ao mesmo tempo,
não mais sair dela. O seu peregrinar inconstante é somente um indício de que
vivem na maior distância do absoluto e que se quebrou o encanto que envolve
o eu e torna a essência das coisas inequívoca.
Típica para esta situação espiritual/intelectual é a filosofia de Georg Sim-
mel que, no final, acreditou ter subjugado o relativismo (e, ao menos, também
compreendeu claramente a sua problemática) ao estabelecer a “vida” como
o último absoluto – a vida, que do seu regaço liberta ideias e formas, que a 151
subjugam por um tempo para serem então novamente devoradas por ela. Mas
essa doutrina reconheceu normas que transcendem a vida e valores, por assim
dizer, somente a prazo, e destruiu o absoluto exatamente pelo fato de elevar o
fluxo e o refluxo indiferentes ao valor – em outras palavras, o processo da vida –
até o absoluto. Ela foi um ato de desespero do relativismo que, na busca de um
fundamento sólido, chegou por fim à vida desprovido de raízes e fundamentos
e, com isto, chegou novamente a si mesmo – ou mesmo não chegou…
Horror vacui – o medo diante do vazio governa essas pessoas. E compreen-
de-se com facilidade em que direções se expandem os seus anseios. Tudo nelas
e ao redor delas impele para um ser renovado na esfera religiosa e, simultanea­
mente, para a redenção da permissividade irrestrita, ambos na intenção de se-
rem conquistadas pela entrada na comunidade ligada a normas. Consciente
ou inconscientemente elas aspiram reconstruir o mundo destruído a partir da
perspectiva de um sentido de credo mais elevado, da superação de sua indivi-
dualidade perversa e do despertar para uma ordem superior na qual possam
encontrar o seu lugar. De resto, o seu desejo de reconquistar o reino da vida
religiosa não é sempre compatível com o outro desejo – a saber, aquele que tem
como objetivo a formação dos conteúdos religiosos e a comunidade, cercada
a partir de cima pelas formas religiosas. A grande variedade dos caminhos se-
guidos hoje em dia evidencia a desintegração das demandas da alma.

É importante, ainda assim, tornar visíveis alguns caminhos, que devem con-
duzir a uma nova pátria da alma. Ignorar a doutrina antroposófica não é de
todo possível,1 visto que a necessidade honesta e a aspiração de numerosos
adeptos dependem dela. O grande número de adeptos de Steiner pode ser
explicado em grande parte pelo reconhecimento – baseado no ponto de vista

1 O movimento espiritual conhecido como antroposofia foi fundado, em 1912, pelo cientista e
editor Rudolf Steiner (1861-1925), na convicção de um mundo espiritual no âmbito do pen-
samento puro (quer dizer, independente do sentido) – um mundo que pode, no entanto, ser
compreendido pela capacidade intelectual altamente desenvolvida. De acordo com Steiner
o envolvimento original do homem com o mundo espiritual em um estado semelhante
ao sonho foi empobrecido pelo materialismo da cultura contemporânea, com sua ênfase
152 sobre o empírico.
da insustentabilidade da nossa situação espiritual/intelectual – de um método
cientificamente verificável, capaz de auxiliar as pessoas a perceber realidades
suprassensoriais e a averiguarem o destino humano, o que desperta a falsa
impressão de que o seu método estabelece conexões seguras com o absoluto.
Na verdade, não é tentador pisar nessa ponte ilusória, estendida entre ciência
e religião e sem sacrificium intellectus poder crer em, quer dizer, reconhecer
coisas miraculosas? O crescimento do movimento se deve certamente ao fato
de que, sociologicamente, aspectos cruciais da comunidade de Steiner repre-
sentam o modelo de igreja que abraça caridosamente o indivíduo isolado e lhe
dá a sensação de proteção e tranquilidade. É compreensível porque muitas pes-
soas são vítimas de tais tentações que, sem dúvida, por uma série de motivos
muito pertinentes, não constituem uma tentação para uma pessoa reflexiva,
mas uma imagem distorcida de uma autêntica participação no absoluto.
Há outros caminhos que, ao menos, não podem ser descritos como cami-
nhos enganosos. Aí surgem, por exemplo, as tendências comunistas à maneira
de um Sturm und Drang messiânico, que habitam um mundo de noções apo-
calípticas e aguardam a chegada do messias que proclamará o reino de Deus
na terra. Eles opõem a perfídia da mera existência sem sentido com visões
resplandecentes de realização plena e de subjugação de nossa frágil mudança.
A época impiedosa produz esses sonhadores quiliásticos, que irrompem do vá-
cuo em tempo furioso a fim de tomar certas posições religiosas de assalto. Em
sua fixação na comunidade utópica desejada, no entanto, atropelam comple-
tamente qualquer coisa considerada como forma ou lei, pois consideram-nas
como preliminares de ordem inferior. – Este novo tipo de messianismo está
remotamente relacionado com a ideia de comunidade, que frequentemente
germinou do solo protestante e tem, portanto, caráter religioso. Tal como o
primeiro, mas por diferentes razões, a ideia de comunidade afirma ser capaz
de prescindir da forma no âmbito humano. De acordo com esta noção, a co-
munidade, em um sentido estrito, não está baseada nem em uma ideia de-
finível, em uma doutrina recebida, nem mesmo no sentimento das pessoas
de se pertencerem juntas, mas na “experiência de comunidade”. Isto significa
que a continuidade de sua existência depende da inclinação positiva daque-
les que a desejam livremente e, portanto, para sua sobrevivência ela necessita 153
do contínuo e renovado esforço espiritual de seus membros. Se em um mo-
mento a experiência afirmativa – comunitária – do indivíduo – e aqui “indiví-
duo” é entendido em seu sentido contemporâneo, imperfeito – torna-se o fun-
damento primário da comunidade, então a consequência inteiramente lógica
é, em princípio, condenar formas supraindividuais saturadas de sentido como
produtos petrificados da experiência pura e como intervenções desnecessárias
entre o eu e o tu. – Em oposição a isto, os que creem na forma [Formgläubige]
– como são encontrados, por exemplo, no Círculo George2 – reverenciam a lei
divina como o princípio de comunidade que mantém todos unidos. Não só
porque remove o elemento do acaso de todas as relações com Deus e com as
outras pessoas, dá suporte aos necessitados e reflete uma realidade superior no
temporal, mas também porque cria aquela ordem hierárquica, aquela estrati-
ficação de círculos necessária diante da diferença profunda entre as pessoas.
De acordo com o julgamento daqueles que creem na forma, a integração em
uma associação firmemente estabelecida e a devoção à figura que incorpora o
absoluto – um absoluto que, aliás, é perceptível somente através desta figura
– libertam as pessoas da ausência de laços e estabelecem limites à tendência
imperfeita de infinitude.
Estas possibilidades e realizações – que não serão mais apreciadas aqui –
diferem em sua orientação (embora não necessariamente em sua essência)
das tentativas que objetivam o ressuscitar das velhas doutrinas humanistas,
esperando talvez eliminar o vácuo pela entrada nas religiões positivas, cujo
conteú­do de verdade precisa vir novamente à tona. Qualquer um que se apro-

2 Fundado pelo poeta lírico Stefan George (1868-1933), o Círculo George reuniu um número
expressivo de escritores alemães no período – dentre eles Hugo von Hofmannsthal, Frie-
drich Gundolf e Max Dauthendey – cujas contribuições foram em grande parte publicadas
no jornal Blätter für die Kunst [Folhas para a Arte] de 1892 a 1919. Stefan George recusou o
naturalismo desde o início e procurou combater a degradação da linguagem literária elimi-
nando rimas impuras e irregularidades métricas e insistindo em vogais e consoantes cui-
dadosamente escolhidas para produzir uma construção poética harmoniosa. A concepção
um tanto nietzscheana de George sobre a aristocracia espiritual do poeta e o seu apelo – em
Das neue Reich (1928) [O novo Reich] – ao renascimento da Alemanha como uma espécie
154 de nova Grécia foram mal interpretados pelos nazistas como presságio do novo Reich.
xime delas, vindo da zona de contingência relativista, depara com declarações
de crença e comunidade cultural, com a força do absoluto que elimina o iso-
lamento e a individuação, e com o conhecimento devoto que liberta da diva-
gação descrente. Aqueles que nos dias de hoje observam o edifício das várias
religiões do lado de fora e com novos olhos, com olhos da nostalgia, têm uma
experiência similar à do peregrino que, após inúmeras odisseias, acredita ter
avistado a casa protetora. Estas formações vivas e admiráveis, que cresceram
despreocupadamente através do tempo e a ele resistiram, abarcam um mundo
e uma realidade diferentes daqueles em que eventos físicos e processos econô-
micos se desenrolam em uma caótica diversidade. Elas garantem ao crente a
unificação do eu com Deus e com o tu e, graças também à tradição na qual se
incorporam e por meio da qual perduram, elas transportam-no para fora da
esfera de mudança sem sentido para o interior da esfera de uma eternidade
saturada de sentido. De tais decisões e encontros são atualmente tiradas conse-
quências por toda parte. Assim como uma nova vida é lançada ao catolicismo
há, portanto, forças religiosas se movendo vigorosamente no interior da co-
munidade protestante, forças que inclusive já estão em parte dirigidas direta-
mente contra a variante secular do protestantismo; e o judaísmo – sobretudo
o judaísmo sionista – não fica na retaguarda. O fato de que riachos secundá-
rios da religião também comecem a correr é evidenciado pelo voltar-se para o
misticismo e o estabelecimento de várias seitas. A extensão da correria para a
qual se dirige a necessidade religiosa em busca de preenchimento corresponde
ao tamanho do autêntico (e talvez por vezes também imaginado) desespero.
E assim não é de surpreender que essa necessidade religiosa finalmente che-
gue às doutrinas do leste. Em geral, de acordo com sua necessidade particular,
as pessoas ora desejam autoridade incondicional e desenvolvimento rígido
das formas, ora envolvimento individual e mais livre no âmbito das religiões: a
aceitação da existência da fé já formulada se alterna com o esforço para relaxar
com o fato dado. Há de se desculpar aquele que procura a supervalorização,
muitas vezes encontrada, da segurança que torna possível o repouso na fé.

Retornando agora àquelas pessoas que, conscientes de sua situação, permane-


cem no vazio: como vão responder quando confrontadas com as várias vias 155
que se lhes abrem? Duas possibilidades precisam ser eliminadas logo de início:
primeiro, aquelas que se encontram diante da decisão querem se voltar para o
narcótico evadindo-se em uma existência, irreal, de sombras e de distrações;
segundo, a fim de se esquivarem a qualquer custo de ter de tomar uma decisão,
elas querem encontrar a verdadeira fé sem conflitos, atingindo por meio disso
um plano mais elevado da realidade sem se extraviarem. Se excluirmos essas
duas, restam grosso modo três formas possíveis de comportamento.
A primeira é aquela do cético por princípio, que talvez tenha em Max Weber
o seu melhor exemplo. Esse tipo de pessoa compreende claramente a inquie-
tante seriedade da situação, mas, ao mesmo tempo, está convencido de que
ele e seus iguais são incapazes de se livrar dessa situação. A sua consciência
intelectual se rebela contra a entrada em qualquer um dos caminhos para a
suposta redenção que se lhe oferece ao redor, como muitos desvios e recuos
ilícitos na esfera da limitação arbitrária. Assim, em razão da veracidade inte-
rior, ele decide dar as costas ao absoluto: o seu não-poder-crer transforma-se
em não-querer-crer. O ódio contra os trapaceiros da fé – um ódio no qual uma
nostalgia talvez já esquecida e em algum momento reprimida ainda continue
a surtir efeito – impulsiona-o a lutar pelo “desencantamento do mundo”, e a
sua existência segue o seu curso na infinitude perversa do espaço vazio. Esta
existência solitária, no entanto, não é de modo algum naïf; muito mais, ela
nasce de um heroísmo inigualável e, em sua desgraça autoimposta, está mais
próxima da salvação do que a existência mimada daqueles que são meramente
justos. Espíritos desse tipo gostam de cultivar um ceticismo que não pode
mais ser facilmente superado e se exaurem demonstrando todas as determi-
nações e relações imagináveis, sem jamais tocar profeticamente no sentido e,
de modo mais esporádico, apenas abandonar a esfera da observação objetiva.
Os discernimentos conquistados por eles no âmbito das ciências humanas e da
antropologia – que são duvidosos e até superficiais em certos aspectos, precisa-
mente porque querem ser puro conhecimento – estão enraizados na renúncia,
e, talvez, somente a sugestão de sacrifício ecoe entre eles, lhes dê significado
último e conceda o brilho do abismo.
A segunda atitude – que se encontra cada vez com mais frequência e, por
156 razões compreensíveis, especialmente em nossos dias – é aquela dos homens
curto-circuito [Kurzschlussmenschen]. Sejam eles descobertos nesse ou naquele
campo – e pode-se encontrá-los em toda parte onde parece se apresentar uma
solução em assuntos de fé – o que todos têm em comum é a tendência de fu-
gir precipitadamente da monotonia e do mundo exterior para rapidamente
escaparem para dentro de um casulo protetor. Uma vez vistos a distância – e
não apenas exteriormente – eles se parecem com verdadeiros crentes e suas
ações são em parte governadas por convicções subjetivamente honestas, a
dubiedade de sua atitude psicológica e objetiva não é facilmente reconhecida.
Bem entendido, aquilo de que se trata aqui não é a verificação de mudanças
individuais de fé (quem se atreveria a iluminar em outros a profundeza espi-
ritual, que mal pode ser investigada em si mesmo?), mas a demonstração de
uma transformação típica que – se isto basta – não é precisamente a espécie
de transformação e mudança do que realmente interessa.
Consideradas como um tipo, as pessoas curto-circuito talvez penetrem real­
mente a esfera religiosa com uma parte do seu ser, mas a sua fé não é usada pela
amplitude total do eu [vom Selbst] e, por isso, não invoca totalmente a verdade
religiosa. É muito mais uma vontade para a fé do que um deter-se na fé, muito
mais uma interpretação precipitada do que um fato consumado. Movidas pelo
desespero real sobre o vácuo dentro e em torno delas, essas pessoas vacilam
de um campo religioso a outro, felizes por serem liberadas de suas divagações
tediosas e iludidas de que a sua peregrinação estaria terminada com esse re-
gresso à casa de modo quase tão feliz como em um romance que termina com
um noivado. Assim como no romance também a sua peregrinação só encon-
trou um final aparente; pois, não se levando em conta o fato de que agora a
vida mais uma vez começa do início, elas fugiram de suas dúvidas com muita
rapidez para chegarem tão cedo ao primeiro objetivo. Mas o que exatamente
constitui o curto-circuito que elas produzem e do qual se tornam vítimas? Ele
consiste no fato de que, reconhecendo a necessidade da fé e consumidas por
uma nostalgia impaciente, elas invadem uma área da fé na qual – visto que lhes
faltam as condições extensivas, necessárias para a sua verdadeira conquista – só
podem manter o seu fundamento artificialmente e graças à autodecepção in-
voluntária. Em suma, o curto-circuito neste caso consiste em colher uma fruta
que não amadureceu para elas e para a qual não estão amadurecidas. Supondo 157
que uma vez tiveram algo vagamente parecido com uma experiência religiosa,
erigiram sobre ela sem dificuldades (isto é, sobre um fundamento muito du-
vidoso) um edifício inteiro destinado a protegê-las contra as tribulações que
sofrem no espaço vazio. Mas, ao pretenderem forçar a sua vida repleta em uma
posição que não lhe é totalmente adequada – mais por covardia metafísica do
que por uma convicção total que conquistaram realmente –, deformam não
somente o seu próprio ser, mas também o mundo de fé revelado a partir desta
posição. A fim de permanecerem donas da situação, que não é natural e, por
isso mesmo, desperta nelas uma desconfiança secreta em relação a si mesmas,
elas precisam se manter em um estado contínuo de ruptura. Tudo o que fazem
se torna forçado, e assim chegam ao fim enfatizando exageradamente sua fé –
um fato que em si é um indício suficientemente claro da fragilidade desta fé. A
necessidade de vencer vozes espirituais opostas força-as a um fanatismo que
falsifica os fatos; a insegurança leva-as a acentuar a sua segurança e compele-as
a investir grande energia defendendo as doutrinas que aceitaram – muito mais
energia, por exemplo, do que a empregada pelos verdadeiros crentes, que não
têm necessidade de uma contínua instância defensiva dirigida igualmente para
o interior e o exterior. Além disso, apesar (ou talvez exatamente em razão) de
sua mais profunda certeza, estes verdadeiros crentes gostam de ser atormen-
tados pelas dúvidas. Medo da catástrofe, isto é, medo do colapso do edifício
erigido com muita precipitação – cuja construção atualmente bloqueia o seu
acesso – leva as pessoas curto-circuito a exagerar mais e mais as suas decla-
rações de fidelidade, até que os seus sons causem distúrbios a ouvidos mais
sensíveis. Por fim, ao menos no que diz respeito à sinceridade, o desesperado
[Desperado] intelectual é muito superior a esses refugiados do vácuo, nos quais
autenticidade e inautenticidade se combinam em uma via muito complicada.
Decerto, ao desesperado intelectual não pode ser permitido ter a última
palavra, caso contrário o mundo estaria completamente entregue ao absurdo.
Mas então como escapar ao terrível ou-ou de ambas as posições: aquela do
cético-por-princípio e a das pessoas curto-circuito? Talvez a única atitude que
ainda reste é a da espera. Aquele que se decide por esta atitude, nem obstrui
o caminho da fé – tal como o faz aquele que afirma obstinadamente o va-
158 zio – nem tampouco oprime esta fé – tal como o nostálgico, que torna a sua
nostalgia livre de quaisquer restrições. Ele espera, e a sua espera é um estar-
aberto hesitante, contudo, em um sentido difícil de ser explicado. Pode ocorrer
facilmente que alguém que espera desta maneira encontre a realização em um
ou outro caminho. Todavia, nesse contexto, pensa-se particularmente naquelas
pessoas que esperaram e ainda hoje esperam com nostalgia diante de portas
fechadas e que, portanto, ao tomarem para si o esperar, são pessoas que estão
esperando aqui e agora. Ao se assumir que, baseadas no direito inalienável do
seu ser natural e do seu senso de realidade, elas rejeitam a paixão e o fervor
de entusiastas messiânicos tanto quanto sua integração em círculos esotéri-
cos; que reconhecem certas fraquezas na ideia moderna de comunidade, e
que, finalmente, na tentativa de se familiarizarem com a tradição das religiões
positivas, encontram dificuldades intransponíveis, em parte decorrentes do
estranhamento definitivo entre elas e as formas de religião fabricadas. Qual é
pois o sentido do seu esperar?
Do ponto de vista negativo, a pessoa que espera e o desesperado intelec-
tual têm em comum sobretudo a valentia, que se manifesta na habilidade de
perseverar. É praticamente desnecessário enfatizar que o ceticismo da pessoa
que espera não se degenera em ceticismo por princípio, mas que, de antemão,
todo o seu ser está direcionado para estabelecer uma relação com o absoluto.
O sentido metafísico efetivo de sua atitude repousa sobre o fato de que a irrup-
ção do absoluto pode ocorrer somente quando um indivíduo se empenha pela
totalidade do seu ser nesta relação. Aqueles que esperam tanto quanto possível
dificultarão isso para si mesmos, para não serem tomados pelas necessidades
religiosas. Eles desejam muito mais perder a salvação de suas almas a sucumbir
à embriaguez do instante e se precipitar nas aventuras do êxtase e das visões.
Mantendo a maior distância possível, eles quase transformam a sua ambição
em pedantismo e em certa pieguice, uma espécie de proteção contra brasas
espalhadas pelo vento. Tal qual o desesperado, não tentam transformar a sua
necessidade em uma virtude ou se tornar difamadores de sua nostalgia, eles
levianamente confiam no fluir da sua nostalgia que poderia carregá-los quem
sabe para que realizações ilusórias.
Do ponto de vista positivo, esse esperar significa um estar-aberto, que cer-
tamente não pode de modo algum ser confundido com um relaxamento das 159
forças da alma, agindo sobre as coisas últimas; antes, exatamente o contrário,
ele consiste em atividade tensa e autopreservação engajada. É um longo cami-
nho – ou melhor, um salto que requer um longo preparo – que conduz para a
vida na esfera religiosa, para a palavra religiosa e para a união entre os homens,
baseada em uma comunhão de fé. Para aquele que permanece tão separado
do absoluto, como a pessoa no espaço vazio, é infinitamente difícil realizar a
mudança de rumo que ele mesmo reivindica. O que pode exatamente fazer
aquele que espera para que a fé, por não ser atraída magicamente, também
não seja excluída? Ela não pode ser transmitida na forma de conhecimento,
pois precisa ser vivida e, além disso, de qualquer maneira o conhecimento do
observador antecipa a vida e suas lições. O que se pode eventualmente dizer é
que, para o tipo de pessoas aqui em discussão, trata-se da tentativa de trans-
ferir o foco do eu teórico para o eu do ser humano inteiro, e de sair do mundo
irreal atomizado dos poderes disformes e das figuras desprovidas de sentido
para entrar no mundo da realidade e nas esferas que ele abrange. O exagero
do pensamento teórico nos levou, em uma medida assustadora, a um distan-
ciamento da realidade – uma realidade que encarna coisas e pessoas que, por
conseguinte, exigem ser vistas concretamente. Aquele que procura se lançar
nessa realidade e estabelecer laços com ela não quer, decerto, alcançar auto-
maticamente o sentido que constitui essa realidade ou uma existência na fé.
Contudo, ele pode talvez descobrir uma ou outra ligação com essa realidade;
fica-lhe claro, por exemplo, que a vida com o seu próximo e, em geral, que o
mundo real em toda a sua amplidão, está sujeito a inúmeras determinações,
que não são nem mensuráveis teórico-conceptualmente, nem constituem so-
mente o fruto da arbitrariedade subjetiva. Isto o leva a alterar a sua posição
gradualmente e a começar a tatear, acima em campos antes inacessíveis a ele.
Contudo, aqui toda indicação é certamente qualquer coisa diferente de uma
sinalização para o caminho. Seria necessário ainda se acrescentar que a auto-
preparação é apenas a preparação daquilo que não pode ser obtido à força,
a preparação da transformação e da abnegação? Exatamente em que ponto essa
transformação ocorrerá – e se ela irá ou não ocorrer – não é o que se discute
aqui e de modo algum deve afligir aqueles que se esforçam.
160
Construções
O grupo como portador de ideias

O mundo social, em todas as épocas, é prenhe de inúmeras forças ou seres


espirituais [Wesenheiten] que podem ser chamados simplesmente de ideias.
Movimentos políticos, sociais, artísticos, que incorporam qualquer conteúdo
determinado, nascem um dia e seguem o seu curso. O que estas ideias têm em
comum é que todas querem penetrar no existente, que elas próprias tentam
tornar realidade; aparecem no interior da sociedade humana como um dever-
ser [sollen] concreto e material e possuem a intenção inata de sua realização.
Somente quando, em vez de ser simples quimera sem influência na realidade,
começam a ter efeito sobre o mundo social, levando este mundo a um estado
de ebulição, passam a ter importância sociológica. Todas as ideias que per-
meiam o mundo social, dissolvendo sua rigidez, engendram certos processos
que podem ser representados historicamente e ao mesmo tempo caracteriza-
dos sob a forma sociológica. Como uma pedra atirada n’água produz ondas
em círculo cujos modo e grandeza estão em função não do tipo da pedra em
particular, mas da intensidade e direção do arremesso; de modo similar, toda
ideia suscita, ao provocar impacto na existência social, uma agitação, cujo per-
curso é determinado por fatores gerais. Para apreender estes fatores em sua
necessidade, é preciso derivá-los por meio de um exame fenomenológico da
estrutura do espírito. Uma vez que todas as particularidades foram “colocadas 163
entre parênteses”, chega-se à fórmula geral do curso das ideias do dever-ser ao
ser, isto é, percebem-se as regularidades mais gerais que já constituem a base
de toda a investigação sociológica particular, sem serem jamais explicitamente
articuladas por elas.
Se é verdade que uma ideia social efetiva é lançada no mundo por per-
sonalidades singulares, sua própria corporeidade é produzida pelo grupo. O
indivíduo certamente produz e proclama a ideia, mas o grupo porta-a e se
ocupa de sua realização. Os partidos políticos defendem a consecução de cer-
tas finalidades, e associações são formadas por vários propósitos. Há grupos
de várias modalidades. Um grande número de pessoas unidas em um grupo
transforma a essência e a qualidade do grupo, como demonstrou Simmel de
modo convincente; o sentido e a possível eficácia de um grupo composto
por duas pessoas não pode ser simplesmente transferido a uma unidade de
grupo composta de uma multidão indeterminada de pessoas.1 É justamente
aqui que se trata de elaborar as leis que governam o movimento das ideias, é
menos importante ordenar os grupos de acordo com o seu tamanho do que
se mostrar apto a segregar a vida e o destino das comunidades daqueles gru-
pos propriamente portadores de ideias. A designação de “vida e destino das
comunidades” refere-se a todos os grupos cujos membros vivem juntos numa
união indissolúvel em vez de aglutinados por meio de ideias ou princípios
preferidos. A família ou a nação, por exemplo, pertencem a formações desse
tipo. Elas envolvem as pessoas congenitamente como são, do nascimento à
morte e mesmo depois da sua morte, e são basicamente da mesma duração
ilimitada que a vida, desde o útero em que nascem. Supondo que suas origens
são tão irracionais como seus objetivos, não se pode fixá-los a partir de deter-
minados fins; entretanto, professam no curso de sua existência uma ilimitada
multiplicidade de fins, sem encontrar, no entanto, seu sentido definitivo em
nenhum deles. Em contrapartida, grupos cuja base aglutinadora forma uma

1 Ver, por exemplo, o trabalho de 1908 de Georg Simmel sobre o grupo em Soziologie: Unter-
suchungen über die Formen der Vergesellschaftung [Sociologia: Investigações sobre as formas
da socialização], reimpresso no volume 11 da Gesamtausgabe [Obra completa]. Frankfurt am
164 Main: Suhrkamp, 1992.
ideia surgem e desaparecem também com esta; sua unidade não é parte ima-
nente da vida orgânica, crescente, mas é criada a partir de um determinado
conceito que quer vir à vida por meio desta unidade. Fica evidente de quais
grupos se trata propriamente nesta conexão: sobretudo aqueles grupos que
devem se constituir a fim de realizar uma ideia, quando esta ideia se move
do estágio da proclamação à realização. Como o desenvolvimento da própria
ideia, o desenvolvimento de todas as individualidades de grupo deste tipo, que
passam a existir apenas em razão de uma ideia, está sujeito a regularidades
gerais. Os grupos e as ideias pertencem estreitamente um ao outro, um vem
após o outro e não se pode interpretar o curso de uma ideia sem determinar
a essência da individualidade de grupo que lhe cria.
Na caracterização da essência de um grupo portador de uma ideia, há
dois procedimentos diametralmente contrapostos. De acordo com uma visão,
que poderia talvez ser chamada de autoritativa, a ideia, que estabelece a uni-
dade do grupo, é localizada definitivamente acima dos membros individuais
e completamente acima das vontades subjetivas. A ideia absolutamente sobe-
rana se desdobra numa esfera impenetrável a quaisquer impulsos subjetivos,
a vontade individual (como vontade de um indivíduo existente para-si) de
modo algum entra aqui em consideração. Para os defensores desta doutrina,
o indivíduo singular é uma figura puramente acidental sem núcleo essencial;
para eles, somente a ideia possui sentido e conteúdo essencial, uma ideia que
demanda a submissão de cada um. Os indivíduos são efêmeros, enquanto a
ideia é eterna, permanecendo intocável pelo tempo. Segundo esta teoria, o
Estado, por exemplo, é uma essencialidade autônoma e supraindividual, a
qual não pode ser comparada às pessoas que o incorporam, mas em última
instância não possui nada em comum com elas; estas pessoas são igualmente
apenas a matéria na qual o Estado se realiza, uma matéria passiva que se deixa
moldar e que não possui nenhuma influência na forma da ideia enquanto tal.
Os mandamentos do Estado estão de acordo com isso, imunes a toda crítica
individual, por mais justificada que seja. O direito vigente é uma constituição
que, uma vez instaurada, é uma fonte que se situa além de toda deliberação
empírica, e por isso, apesar de estar em falta momentaneamente com a cons-
ciência jurídica, não pode ser em princípio suspensa. Pois, de acordo com a 165
doutrina autoritativa, todos os grupos que portam ideias ou que se formaram
a partir delas são unidades inseparáveis, seus conteúdos ideais pairam como
autofinalidades no absoluto, que não podem ser nem criados ou eliminados,
não há nenhuma ponte que una o âmbito de existência eterna das ideias com
a vida do grupo em constante mutação.
De acordo com outra interpretação, que podemos denominar de individua­
lista, toda ideia que possui controle sobre um grupo emana do espírito de todos
os indivíduos que constituem o grupo. Em geral existem apenas indivíduos
singulares, e assim não há razão para assumir a individualidade de grupo que
sente e pensa como unidade e que é dotada de sua própria essência. O espírito
do grupo: a harmonia dos espíritos de todos os membros do grupo, o grupo
não é mais do que a soma de seus membros. Os defensores desta posição
atomizadora negam a unidade qualitativa e a peculiaridade do grupo como
um todo, em vez disso, transferem a realidade e a força de gravidade aos indi-
víduos em vez de ao conjunto, às opiniões da multidão condicionadas tempo-
ralmente em vez das ideias dominantes supratemporais. Sua doutrina termina
com as seguintes teses prático-políticas: “o Estado (o direito etc.) existe para as
pessoas e não as pessoas para o Estado (o direito etc.)”. Deste modo, as ideias,
as quais o grupo professa, perdem a sua substância, tornam-se expressão de
uma flutuante e leve vontade de uma multiplicidade de indivíduos, e possuem
seu direito à existência na medida em que estes indivíduos estão de acordo
com elas. Quando se assume a primeira interpretação, o indivíduo desaparece
no mundo social e sua significação se expia no interior de um grupo. As ideias
se destacam dele e, como estrelas, descrevem órbitas sobre sua cabeça. Ao se
concordar com a segunda interpretação, o indivíduo é a única realidade no
mundo social, enquanto a individualidade de grupo torna-se um fantasma,
as ideias são relegadas ao espírito dos indivíduos singulares, não possuindo
nenhuma vida à parte, independente.
Nenhuma destas duas interpretações, cujas fontes de visão de mundo são
evidentes, correspondem exatamente de modo fenomenológico aos fatos de-
monstráveis. Antes de tudo, no que concerne à doutrina autoritativa, esta traça
uma profunda linha de separação entre, de um lado, as ideias e os grupos que
166 as incorporam e, de outro, as pessoas que constituem estes grupos. Partindo
de uma correta observação, segundo a qual os movimentos dos grupos e o
destino das ideias levadas a cabo pelos grupos assim se realizam de facto como
se tratassem de movimentos e destinos de essências autônomas, indo longe
demais, as ideias que emanam do grupo (que se constituem nele em primeiro
lugar) tornam-se construções soberanas que não possuem mais a mínima re-
lação com a existência dos indivíduos singulares. Da perspectiva da visão au-
toritativa, a gênese histórica das ideias é tão inexplicável como o seu declínio.
Quando e onde as ideias emergem é deixado em aberto; basta que elas este-
jam lá, cristalizadas como essencialidades fora do tempo em meio ao funcio-
namento do mundo social. De acordo com esta visão, o ser coletivo do grupo
está aferrado à ideia, enquanto os indivíduos eles próprios sucumbem no reino
das sombras, sem criar a ideia e sem ser nem mesmo afetado por ela.
A outra, a doutrina individualista faz jus à realidade na medida em que es-
tabelece uma relação direta entre as efetivas entidades sociais e os indivíduos
singulares. Aqui, as ideias não estão tão inacessivelmente distantes de modo a
impossibilitar a sua criação e a sua destruição por meio dos indivíduos, nem os
grupos são entendidos como unidades indissolúveis que resistem com sucesso
à decomposição e à desintegração de suas partes. Apesar de tudo isso, a dou-
trina individualista equivoca-se ao reconhecer que as ideias, as quais os grupos
incorporam, não são mais do que simples expoentes de almas individuais. Não
está nem em condições de apreender o desenvolvimento das ideias no mundo
social (cuja experiência ensina com frequência independentemente da von-
tade individual), nem em condições de explicar a potente autoafirmação da
individualidade de grupo em relação a seus membros singulares. O segundo
procedimento ata as ideias demasiadamente próximas do indivíduo singular,
enquanto o primeiro procedimento desloca-as exclusivamente para regiões su-
praindividuais. Com a intenção de localizar todo o poder e grandeza na alma
individual, que é concebida como fim em si mesma, o individualismo exacer-
bado cai no erro (que poderia ser caracterizado como erro lógico) de depreciar
os maiores produtos da alma individual – sobretudo, as ideias – roubando-lhes
o significado e a soberania que deveriam estar garantidos para eles pela sua
herança. Igualmente inconsistente no procedimento individualista é o juízo
que deprecia as entidades de grupo de toda autonomia e egoidade [Ichheit], já 167
que, do mesmo modo, emanam dos indivíduos, e todo aquele que atribui um
sentido último a estes indivíduos não pode, decerto, sacrificar a consistência
e autossuficiência do que é o próprio fazer deles. Quando se concebe todas
estas criações (ideias, grupos etc.) como destituídas de qualquer essência, en-
tão quem perde também ao final sua essência é o criador (o eu singular); ele
é transformado em um demolidor eterno do mundo e poderia deste modo
apenas afirmar que seu eu é projetado nas obras efetivas. O individualismo
que temos aqui é um autêntico produto do esclarecimento [Aufklärung], que
não dá atenção às diferenças de visão de mundo entre os homens, que aceita
simplesmente a completa concordância de todo ser racional e pode, portanto,
facilmente não perceber o grupo como uma formação à parte, decorrente da
transição entre a ideia e o indivíduo singular. Com o desenvolvimento da dife-
renciação de indivíduos com a mesma orientação em múltiplas personalidades
cosmológicas, aflora em seguida o movimento característico das ideias e das
entidades de grupo em horizontes de consciência que podem ser reduzidos
em nada menos do que efeitos espirituais de uma multiplicidade infinita de
espíritos individuais heterogêneos.
Portanto o grupo é o mediador entre os indivíduos e as ideias que preen-
chem o mundo social. Sempre quando uma ideia irrompe da obscuridade e
experimenta uma formulação, se produz uma disposição similar na alma dos
indivíduos que lhes vão de encontro, e começa ser realizada se estas pessoas se
unem para formar um grupo que quer lutar para transformar a ideia em reali-
dade. A ideia não transcende os indivíduos, como é proclamado pela doutrina
autoritativa, mas influi constantemente por si e por meio deles neste processo,
no entanto, estes indivíduos são transformados em portadores de ideias e, em
seguida, deixam de ser independentes, além do eu singular que se movimenta
livremente, mas ligados à ideia e formados por ela, com pensamento e senti-
mento unitariamente circunscritos. Porque a ideia forma seu interior, desta-
cam-se da massa de indivíduos independentes da ideia; seguem um caminho
particular cuja direção é já assinalada pela ideia. Por ora, é suficiente dizer que
o grupo é apenas aquela união de pessoas com a mesma constituição espiritual
necessária para a realização de ideias; não é uma associação arbitrária de indi-
168 víduos espiritualmente indeterminados. É uma entidade coletiva na medida
em que as expressões de consciência de todos os seus membros emergem da
mesma base, no caso, do fundamento da ideia, e deste modo desembocam a
priori em ações unitárias. O grupo, e a ideia que incorpora, segue uma exis-
tência à parte, além dos indivíduos, somente quando comparado com a mul-
tiplicidade de ações arbitrárias individuais que foram assumidas de antemão,
mas não quando comparado com as almas individuais de formação similar.
Apenas quando os membros de um grupo se desprendem da ideia que pesa
sobre eles como uma obrigação externa; somente então, a adesão à ideia lhes
parece uma essencialidade independente que lhes oprime.
Os membros do grupo, ao compreender a si mesmos, nas suas qualida-
des particulares, como portadores de ideias, colocam em seguida a questão
de como tal ideia, que estratifica seus interiores, é assumida e reformulada.
Toda ideia que amalgama um grupo se cristaliza numa forma de contornos
bem demarcados. Torna-se um programa político, com palavras de ordem e
dogmas característicos; resumidamente, apresenta-se como um dever-ser de
conteúdos delimitados e que exige realização. Mas este dever-ser especificado
de modo preciso aponta sempre além de si mesmo; sua formulação dada pelo
grupo torna-se meramente uma faceta visível de um vasto itinerário espiri-
tual que o grupo percorre do início ao fim. Não há absolutamente nenhuma
expressão espiritual que possa existir por si mesma, sem estar entrelaçada a
uma ampla conexão de significado. Brota sempre de alguma convicção úl-
tima e dirige sempre a outras expressões, cuja combinação forma um todo
de significado unitário. Como resultado, a ideia socialmente efetiva contém
sempre em si a direção na qual pretende ser ampliada, é a expressão abreviada
de algum aspecto conjunto, o qual é sempre enfatizado, aspecto este que se
apresenta como necessário a uma época particular e em circunstâncias sociais
específicas. Os membros dos grupos, que se colocam a favor de um conteúdo
ideal, vivenciam e querem mais do que este dever-ser que se formula e que já
foi formulado; tomam um caminho que os leva através do mundo inteiro, e
o conteúdo que prescrevem a si é apenas uma onda que se lança na contra-
corrente de suas consciências; ou melhor: este conteúdo demarca o lugar no
qual a corrente de seu pensamento deve ir de encontro com uma dada situa­
ção. É totalmente sem importância ou no máximo de interesse psicológico 169
se a direção da consciência, na qual aflora a ideia, é já dada ou se o conteúdo
inicialmente dado do dever-ser começa a formar um grande percurso. Em
todo caso, os membros do grupo extraem todas as possibilidades depositadas
de forma embrionária na ideia, e a desdobram até a totalidade que nela já está
implícita. Os programas dos partidos políticos possuem seus fundamentos
de visão de mundo, e todas as exigências ideais reguladoras para a formação
de grupos são produtos de convicções básicas, que influenciam tudo ao redor
deles e assim estabelecem conexões dotadas de sentido entre estas exigências
e outras pretensões espirituais e valorativas.
Há uma enorme diferença entre pessoas constituídas como indivíduos e
aquelas constituídas por ideias como membros de grupos, conforme foi ca-
racterizado acima, e a consideração desta diferença leva antes de tudo à visão
da natureza específica da individualidade de grupo. Para começar, apenas al-
gumas ideias determinadas penetram no espírito do indivíduo singular. Vão
certamente ampliar e permitir a formação de um caminho que se estende de
um lado a outro do mundo. Mas o indivíduo que existe para-si é (ao menos
como possibilidade) um microcosmo no qual pulsam desejos e forças espiri-
tuais diversas; por isso, a conexão de sentido criada por meio da ideia apenas
em raríssimos casos ocupa o conjunto da consciência. Pensamentos e intui-
ções que se originam de outras regiões da alma interferem nesta conexão, dis-
persando-a e a intercruzando. Supondo que a ideia chegasse a se desenvolver
inteiramente no indivíduo, então poderia conquistar uma supremacia pura e
claramente sobre o espírito individual apenas se se tratasse de um princípio
sublime a comover o eu como um todo. Certamente, o indivíduo vivencia
ideias, dando-lhes forma e dedicando-se a elas, mas sempre mais do que um
mero portador de uma ideia; não é tão fácil para o sujeito romper as cadeias
de seu destino único para que a ideia possa agir no espaço vazio e não-preen-
chido de sua alma. Diferentemente, quando o indivíduo sai de seu isolamento
e torna-se membro de um grupo. No grupo, o indivíduo vale na medida em
que é pura incorporação da ideia. Suas relações com outros membros servem
exclusiva e inteiramente para a construção e realização do conteúdo do dever-
ser criado pelo grupo; tudo mais que nele todavia vive e quer saber deve fazer
170 valer fora do grupo. Com isso, ao tornar-se membro de um grupo, uma parte
do ser individual – parte formada pela ideia –, separa-se do plano conjunto
de seu ser, plano este que, potencialmente, é capaz de realizar, e coloca-se em
ação independentemente. Assim como o diapasão é afinado em um único tom,
do mesmo modo o grupo está de acordo apenas em relação à ideia defendida
por ele; no momento em que o grupo se constitui, tudo o que não diz respeito
à ideia é automaticamente excluído; as pessoas unidas em grupo não são mais
indivíduos inteiros, mas apenas fragmentos de indivíduos cujo direito de exis-
tência deve-se exclusivamente em função das finalidades do grupo. O sujeito
como eu único em relação a outros eus únicos: um ser cuja habilidade deve
ser concebida sem fim e que, incapaz de ser completamente dominado pela
ideia, continua a viver na região localizada fora da esfera de influência da ideia.
O sujeito como membro de grupo: um eu-parcial que foi separado de seu ser
conjunto que não pode sair dos trilhos prescritos pela ideia.
Atingindo agora este ponto da análise, pode-se finalmente compreender
por que há algo como um ser coletivo, uma individualidade de grupo que não
pode ser dissolvida numa multiplicidade de indivíduos, mas, certamente, que
se move sobre suas cabeças de acordo com suas próprias leis, com frequência
e aparentemente com independência das expectativas e (momentâneas) ne-
cessidades de seus participantes. O grupo abarca, assim, em vez de indivíduos
inteiramente formados, apenas eus reduzidos, abstrações de pessoas em si, o
grupo é um puro instrumento da ideia e nada mais. Mas não é surpreendente
que pessoas que não possuem mais pleno controle de si mesmas ajam diferen-
temente daquelas que têm plena posse de si próprias? Há uma poderosa ne-
cessidade no curso das ideias em meio ao mundo social. O indivíduo singular
que se contempla deve se unir a outros para transformar o dever-ser em ser.
No momento então em que o grupo torna-se ser, ocorre, portanto, a redução
dos eus, e, no lugar de muitos indivíduos, que se empenham na realização da
ideia, há agora muitas criaturas dependentes da ideia e vivendo de sua graça.
Estas criaturas são complementadas pela ideia enquanto tal – e apenas por
meio desta ideia – e devem afundar na falta de substância se sentissem que se
desgarraram dela. A ideia não aparece nelas, mas as cria, não são elas que
realizam a ideia, mas, ao contrário esta as realiza e sopra-lhes vida. Faz sen-
tido falar da individualidade de grupo como um ser independente. Pois estes 171
eus-parciais, estas criaturas pela metade ou um quarto de criaturas nasceram
apenas no processo de preparação para ações comuns (isto é, para encontros
do grupo), têm o seu lugar não nos indivíduos isolados, mas emergem antes
de tudo da união dos indivíduos em entidades espirituais que se separam deles
e que só podem existir em grupo.
O fato de que o indivíduo pleno desaparece no grupo possui uma influência
decisiva no caráter que representam e orientam as individualidades de grupo
no mundo social. Na medida em que a pessoa se comporta como entidade in-
dividual, nela crescem mil emoções, desejos, ideias e sentimentos tenros que se
entrelaçam um no outro; e mesmo o traço da alma mais silencioso e sutil pode
ser colocado também em conexão espiritual. Mas se este sujeito se une a uma
multiplicidade indiscriminada de pessoas para formar um grupo (determinado
por uma ideia), então o eu-parcial que separa a si mesmo desta subjetividade
não expõe mais a infinita multiplicidade de traços próprios a ele como indiví-
duo singular. E isto por razões essenciais à sua natureza. Pois quando um nú-
mero de pessoas se aglutina num grupo, então é pura e simplesmente impossível
para elas se relacionarem com a plena extensão de suas almas. A via espiritual,
na qual se move o pensamento do grupo deve ser construída de tal modo que
todos os membros do grupo possam se movimentar. A totalidade individual
do sujeito é então banida do novo eu-de-grupo resultante, e apenas os traços
comuns a todos os vários sujeitos que pertencem ao grupo podem contribuir
à construção da individualidade de grupo. Em outras palavras: o pulsante, in-
consciente e organicamente distendido reino vital do eu individual é estranho
à individualidade de grupo. É pobre em comparação com aquele em traços e
aspirações, falta-lhe o fundamento anímico fértil e criativo que emite a multi-
plicidade racional inapreensível de conteúdos. Investiga-se em vão na busca de
transições escorregadias, de sentimentos anônimos e de camadas de vivências
alojadas de um extremo ao outro que se encontram (pelo menos potencial-
mente) no indivíduo; incapaz de estender-se em várias dimensões, move-se
numa única direção, não se afastando nem à esquerda nem à direita sem desin-
tegrar-se. A linearidade do desdobramento constitui um traço fundamental da
essência da individualidade de grupo. A esta característica da unidimensiona-
172 lidade está ligada necessariamente uma certa rigidez e ao modo tosco em que
se apoia o eu-de-grupo, como questão de princípio, jamais pode sustentar em si
a intrincada massa de vivências homogêneas do eu individual. Como resultado,
perde-se algo de flexibilidade e de delicadeza, e muitas regiões de oportunidade
e de vivências disponíveis ao indivíduo permanecem-lhe inacessíveis.
A característica de toda ideia que engendra o grupo deve corresponder na-
turalmente ao caráter da individualidade de grupo que é reconhecida como
essencial à sua natureza. Ao indivíduo singular, em contrapartida, a ideia pode
se dar de infinitas maneiras, desde que possa inseri-la tanto de modo grosseiro
como sutil em diferentes conexões de pensamentos. Quando incorpora uma
ideia, tece a partir dela inumeráveis fios que o envolvem com outros conteúdos
de sua consciência, produzindo um tecido de relações no qual a ideia está de
tal modo entrelaçada que não pode ser dissociada deste como uma construção
autônoma. O grupo, ao contrário, pode apenas se constituir a si próprio gra-
ças a tais conteúdos ideais, carecendo assim de qualquer centelha intangível.
E nisto reside sua particularidade, ao renunciar à plenitude que corresponde ao
eu individual e que ainda retém do amplo espectro de vivências apenas algu-
mas cores primárias. No entanto, um ser deste tipo pode digerir apenas deter-
minados ideais de relativa rigidez; conteúdos para os quais não possui órgão
adequado são simplesmente repelidos. Toda vez que uma ideia cultivada por
uma personalidade significativa é incorporada num grupo, a inconfundível in-
dividualidade ligada a esta personalidade se dissolve na transição, rompendo as
conexões entre a ideia e todos os múltiplos âmbitos de vivência, nas quais está
ancorada, enquanto se mantém sob o controle do eu-individual. Nada pode
indicar de modo mais evidente a mudança que realiza a ideia em tal situação,
por exemplo, a aversão de Wagner aos wagnerianos, ou a afirmação de Marx
de que não é marxista. Para imaginar por outros motivos uma atitude deste
tipo, se explica porque o criador de ideias não reconhece mais suas próprias
ideias, chegando mesmo a repudiá-las, quando estas em seu curso pelo mundo
social produzem um grupo e passam a se desenvolver em uma outra esfera
seguindo suas próprias leis.
É inerente às ideias deste tipo, no entanto, uma incontrolável necessidade
de se desenvolver além de seus limites, uma necessidade de se tornar eterna.
Na medida em que o eu-individual se coloca inteiramente pela sua realização 173
e na medida em que estas ideias são circunscritas por um feixe de irradiações
direcionado ao infinito, conservam mesmo assim uma certa labilidade, encai-
xando-se cá e lá e deixando-se modular de múltiplas maneiras. Quando passam,
entretanto, a ser defendidas por grupos, perdem sua elasticidade individual,
metamorfoseando-se numa construção fortemente enrijecida, descrita ante-
riormente, que avança como se fosse movida por uma implacável compulsão.
Pode-se colocar em dúvida até que ponto um indivíduo singular, inteiramente
dominado por uma ideia, se mantém de um modo ou de outro, pois jamais as
muitas fontes de seu ser podem ser retiradas inteiramente de seu ocultamento.
A individualidade de grupo, ao contrário, não possui nenhuma outra fonte do
que aquela constituída pela ideia, e que penetra na realidade com implacável
consequência. É como se fosse simplesmente a força de propulsão inerente
à ideia que a impelisse adiante na direção que tomou, como se seu caminho
fosse o produto do desenvolvimento de possibilidades imanentes à ideia e das
resistências que emergem caso a caso. Já que a individualidade de grupo não
se apropria de conteúdos que preenchem o mundo social, suas ações são puras
expressões de que a ideia pode possivelmente estar de acordo com qualquer
situação dada; basicamente, a individualidade de grupo põe em movimento
apenas aquelas ações que seriam também apropriadas à ideia se fossem para
penetrar na multiplicidade em estado incorpóreo e impulsionado meramente
pela sua força originária inata. No entanto, deve-se atentar que as ideias que se
desdobram deste modo logicamente são já sempre formações em boa medida
esquemáticas e toscas; pois este embrutecimento [Vergröberung] de seu ser é
evidentemente o preço que se deve pagar para ser capaz de percorrer o longo ca-
minho do dever-ser ao ser e não desaparecer no processo sem deixar traços.
A individualidade de grupo é válida unicamente na medida em que contri-
bui para a realização da ideia à qual está subordinada. Assim como o Golem
é aniquilado se é retirada de sua boca a folha de papel na qual está escrita a
fórmula que lhe dá vida, assim também com o grupo, que desaparece se é se-
parado da ideia que lhe dá existência.2 Já que o eu-de-grupo, que é separado

2 Na mística e no folclore judaico, um certo sábio da lenda talmúdica foi capaz de dar vida a
174 uma enorme efígie feita de barro por meio do encanto de frases que soletravam palavras →
do eu singular pleno, existe apenas por meio da ideia, deve igualmente ruir
de imediato se lhe retira o fundamento no qual está construído (ou, o que
ocorre frequentemente, torna-se uma entidade de grupo inteiramente nova
e constituída de modo diverso). Nesse sentido, o eu-de-grupo se diferencia
profundamente do indivíduo singular. Este último é capaz de sobreviver a
toda ideia a qual se dedicou uma vez, permanecendo decerto o mesmo eu. Tal
conteúdo é também assimilado no curso do tempo: a conexão de sua vida é
sempre reconstituída novamente, não importando quais direções venham a
tomar, retornando finalmente à inesgotável fonte de sua vida. O que separa o
eu-individual do eu-de-grupo é antes de tudo a vivência do retorno [Umkehr].
Uma personalidade devota de uma ideia particular pode abandoná-la e passar
a dedicar-se ao que foi anteriormente denunciado. No entanto, a essência subs-
tancial do indivíduo se mantém também mesmo após sua mudança, a antiga
pessoa continua presente na nova pessoa convertida, mas como alguém que
se transformou, a imbricação de vivências não tolera nenhuma ruptura com
o que existiu uma vez; resumindo: o ser individual não é exterminado, mas
simplesmente transportado para uma outra forma de existência. Esta mu-
dança radical é impossível para a rígida individualidade de grupo. Pode mu-
dar (como será ainda demonstrado), mas não pode se colocar contra a ideia,
cujo encargo foi criado em primeiro lugar. Já que não é de modo algum mais
do que o portador vivo e representante do percurso espiritual estabelecido
pela ideia, teria que aniquilar a si próprio se desejasse eliminar este percurso.
É considerável que as mesmas pessoas que renunciaram materialmente a um
grupo determinado possam reaparecer num novo grupo cuja orientação é o
contrário da do anterior; mas trata-se antes da formação de uma outra indivi­

→ sagradas ou um dos nomes de Deus. Esta efígie era o Golem. Segundo a versão da lenda
encontrada no Sefr Yezirah (Livro da criação), quando estas frases eram escritas numa folha
de papel e colocadas na boca do Golem ou fixadas em sua cabeça, este ganhava magicamente
vida e morria subitamente ao ser-lhe retirada a folha de papel. Recontada por Grimm em
1808, a fábula foi retomada pelos românticos alemães (Ludwig Achim von Armin e por E. T. A.
Hoffmann) e posteriormente por Gustav Meyrink no romance Golem, de 1915, e ganhou três
versões cinematográficas dirigidas por Paul Wegener, com magníficos cenários expressionis­
tas desenhados pelo arquiteto Hanz Pölzig. 175
dualidade de grupo que é essencialmente estranha à anterior e que nada mais
contém desta.
A estreita conexão de grupos e ideias é, ademais, de alguma significação
para o surgimento de classes e de camadas do povo que se consideram como
unidade e, consequentemente, se isolando uma das outras. Há certamente al-
guma verdade na visão segundo a qual a tosca diferença de classes no Estado
moderno advém de uma antiga usurpação da terra por meio de um conquis-
tador estrangeiro que se torna subsequentemente classe superior; no entanto,
não é suficiente como explicação, pois, como resultado histórico e não de uma
perspectiva sociológica, ofusca a importante circunstância para o surgimento
de classes e camadas sociais – supondo que haja uma grande comunidade
sem qualquer estratificação entre seus membros e que estes partilham mais
ou menos dos mesmos níveis culturais e puramente humanos. Pode-se de-
monstrar, no entanto, com uma certeza quase matemática, que esta situação
não pode perdurar por muito tempo, pois contradiz certas qualidades básicas
da essência humana. Segundo a constituição do homem que conhecemos e
desde tempos imemoriais, é simplesmente impossível estabelecer uma extensa
divisão de trabalho em qualquer grande comunidade se devem ser satisfeitas
todas as necessidades de civilização e cultura de um povo maduro. A recusa
consciente à diferenciação leva necessariamente ao estágio primitivo. Órgãos
administrativos se constituem, as várias profissões intelectuais e do comércio
surgem acima da condição camponesa e assim por diante. Na medida em que
a vida permanece em fluxo, uma infinidade de ideias que criam a ocasião para
a formação de grupos continuará a brotar. Os membros de todas as profissões
desenvolvem invariavelmente entre si um percurso espiritual apropriado à sua
situação social; isto significa que transformam a si próprios em individuali-
dades socialmente típicas. O mesmo modo de pensar e as múltiplas relações
fraternas entre eles os levam normalmente a partilhar juntos efetivamente de
grupos unificados (corporações, associações profissionais de todos os tipos),
ou pelo menos a sentir como se fossem seus próprios grupos. De qualquer
maneira, a comunidade pressuposta aqui dá origem a uma série de grupos
que constitui em parte o resultado de ideias circulantes no mundo social (se
176 não houvesse tais ideias, então o dever-ser transformar-se-ia diretamente em
ser, o que seria o fim dos tempos) e em parte a incorporação de perspectivas
conjuntas correspondentes aos diferentes setores da sociedade.
Mas a individualidade de grupo é sempre um ser unitário e de certo modo
primitivo que, como foi visto, se desenvolve a partir de suas próprias leis e que
de modo algum é sinônimo da soma dos indivíduos singulares que formam o
grupo. As individualidades surgem na comunidade e não podem ser determi-
nadas, de modo algum, completamente a partir de indivíduos isolados, pois
esta se movimenta como se estivesse acima de suas cabeças. Mas, estes espíritos
de camadas, classes e grupos desenvolvem-se necessariamente em diferentes
direções, pois são determinados por constantes dadas pelos diferentes luga-
res sociais (caso não fosse assim, não haveria nenhuma divisão de trabalho, o
que contradiz nossos pressupostos); seus representantes, os eus-parciais que
foram diferenciados dos considerados indivíduos plenos, são, enquanto tais,
rígidos, intransigentes e incapazes de qualquer mudança radical, podendo
até ser destruídos. O frequentemente observado egoísmo de grupo pode ser
explicado pelo fato de que as individualidades de grupo, constituídas por al-
guma ideia, não são nada mais do que a incorporação daquelas essencialidades
que querem ser eternas; são impelidas a qualquer preço à autoafirmação, ou
perdem sua existência; melhor dizendo: devem permanecer fiéis para sem-
pre à conexão de sentido que representam, já que existem apenas em razão
desta, e seriam suplantadas quando tentassem ir além desta conexão de sen-
tido. Na nossa comunidade ideal brotam assim características de grupo e de
camadas sociais, que se sentem enquanto unidade e, caso tivessem em torno
de si apenas espaço vazio, certamente iriam ter a necessidade de se expandir
sem limites. Um grupo significa para outro grupo uma forma de resistência
com a qual se empenha e vai além pela afirmação de sua própria existência,
procurando se distinguir a si próprio incisivamente de outras individualida-
des coletivas que ocupam o mesmo espaço social. Tudo isto demonstra que a
formação de diferentes classes, camadas etc. que se colocam à parte uma das
outras é o resultado inevitável do progressivo processo de diferenciação, exceto
talvez numa comunidade utópica constituída exclusivamente por pessoas da
mais elevada intensidade. Mas isto não implica que nem as classes (especial-
mente as econômicas) permaneçam existindo na forma que alcançaram até 177
agora, nem que devam lutar entre si mais brutalmente do que já fazem hoje.
Deve ser observado de passagem que uma diminuição do egoísmo de grupo
e do antagonismo entre os espíritos de grupo, uma erradicação das desigual-
dades econômicas e assim por diante são coisas alcançáveis, ao contrário de
uma eliminação completa da estruturação hierárquica das camadas sociais e
de todas as diferenças de nível entre os grupos. Provavelmente as observações
mais profundas que já foram feitas sobre este tema encontram-se na filosofia
social tomista. Os idealistas utópicos podem continuar a imaginar que, talvez
por meio da educação, pode-se criar uma comunidade de “livres e iguais”, uma
comunidade cujos membros individuais e grupos encontram-se sem atrito em
uma perfeita, por assim dizer, harmonia pré-estabelecida. Tais coisas podem
ser belamente imaginadas e prestam um serviço indispensável como princípio
normativo; a realidade, no entanto, não corresponde simplesmente às exigên-
cias da razão e é tarefa da ontologia desvendar o terrível em-si desta realidade.
O maior obstáculo para a realização destes ideais da razão encontra-se no fato
de que quando as pessoas se esforçam inteiramente numa direção (isto é, de-
senvolvem-se com grande intensidade) podem ser receptivos a outra direção
somente quando se encontram numa situação de relaxamento. Uma vez na
“esfera de relaxamento” [Entspannung], no entanto, agem não com o conjunto
da força de seus espíritos, mas recaem no entorpecimento deixando-se domi-
nar pelo nebuloso e pesado poder da matéria. Em outras palavras: a realidade,
o meramente existente, é, em qualquer tempo e lugar, sempre intransponível,
e mesmo a essência da individualidade de grupo permanece, portanto, insu-
perável, imprimindo sempre na comunidade suas marcas características.
A duração de vida de um grupo é determinada, sobretudo, se não inteira-
mente, pelas metas que constituem o grupo enquanto tal; é independente sim-
plesmente da vida e morte dos indivíduos que compõem o grupo. No percurso
pelo tempo a individualidade de grupo extrai as possibilidades imanentes da
ideia, ou mais precisamente: procura afirmar a ideia, enquanto preenche a vida
o tempo nela se esvai. O indivíduo enquanto indivíduo pode pensar e sentir
como e o que quiser; na medida em que se torna membro de grupo deve se
subordinar à ideia; transforma-se então numa individualidade de grupo ex-
178 tratemporal, seu eu-à-parte, que está enraizado na inteira amplitude de sua
existência temporal, dá lugar assim apenas à ideia a qual seu eu se subordina.
O núncio apostólico Enéas Sílvio foi um livre-pensador inclinado favoravel-
mente a um plano de reformas; no instante, entretanto, em que se tornou papa,
considerou-se a si mesmo apenas como lutador da igreja e de suas tradições,
o espírito da igreja apoderou-se de seu outro eu anterior.3
Os conhecimentos desenvolvidos até aqui, que pertencem ao domínio da
sociologia puramente formal, possuem uma semelhança significativa com a
lei da inércia na mecânica. Isto vale apenas num espaço galileano, num espaço
vazio sem a presença de nenhuma massa. É um caso limite, um princípio que
expressa o movimento de um corpo independentemente da realidade circun-
dante. No momento em que se incluem massas o movimento não se processa
do mesmo modo, como prescreve o princípio; contudo, o princípio conserva
o seu valor, pois, ao incluir meramente na equação todas as forças atuantes no
corpo, pode-se derivar deste a fórmula para o movimento real posterior. No
“espaço galileano” a ideia forma o seu corpo de grupo e emerge um eu-de-grupo
que, numa versão pura, independente da vida particular do indivíduo singu-
lar, desenvolve as forças e conteúdos residentes na ideia. Quando se considera
agora o mesmo cenário, mas com a plenitude conjunta da realidade, torna-se
claro que as determinações formais da essência do grupo não são necessaria-
mente válidas na esfera sociológica material ou pelo menos não podem ser
unilateralmente aplicadas nesta. As forças gravitacionais do existente desviam
o eu-de-grupo de seu percurso estrito que, de acordo com sua essência geral,
deveriam seguir. Estas mesmas forças frequentemente interrompem as rela-
ções mais estreitas – o que as revela à pura intuição fenomenológica – entre o
eu-de-grupo e a ideia de que este é portador. Não é nossa tarefa aqui perscrutar
os múltiplos destinos empíricos dos quais as ideias e os grupos que as incor-
poram são objeto no mundo real. Qualquer um que tente dar cabo desta ta-
refa – em princípio insolúvel – perder-se-ia na má infinitude e descobrir-se-ia
eventualmente fazendo, entre outras coisas, observações psicológicas; pois, ao
perseguir seu objetivo, teria que se aproximar cada vez mais dos casos particu-
lares ulteriores, terminando em considerações condicionadas subjetivamente

3 Enéas Sílvio Piccolomini (1405-64), que se tornou o papa Pio II (1458-64). 179
do existente concreto sem poder extrair suas regularidades. Certos processos
típicos manifestos por ideias ou grupos podem muito bem se tornar eviden-
tes. Estes processos, que caracterizei de outro modo como o esquema típico
das categorias sociológicas mais elevadas,4 representam igualmente a primeira
estação do caminho da sociologia formal à sociologia material, e quando se
referem também a eventos individuais, conservam decerto ainda a validade
universal das intuições da essência extraídas do “espaço galileano”, intuições
que podem ser deduzidas como experimento de pensamento.
O fenômeno da cisão [Spaltung] é particularmente típico para o grupo por-
tador de ideias. No percurso de sua passagem pelo mundo social, a questão
tática que sempre se coloca é como melhor proceder numa ou noutra situação
para que a ideia pela qual o grupo se empenha possa ser realizada. Supondo
que na ocasião de fundação do grupo os membros estabeleceram um programa
fixo contendo todas as exigências para a realização da ideia gerativa do grupo
de acordo com a situação momentânea da realidade. Enquanto a individua-
lidade de grupo intervém na realidade, segundo as medidas deste programa,
modifica-se a própria realidade (em parte como resultado da ação do grupo),
criando uma nova situação que faz necessária uma outra relação do grupo.
Pressupondo que a ideia continua sendo ainda viável, seu programa tem de
ser modificado de modo a dar conta da mudança da realidade. (Que se pense,
por exemplo, nas posições dos partidos políticos antes e depois da revolução,
ou nas relações mutantes da Igreja com os poderes políticos.) As modifica-
ções de pontos de vista do grupo devem ocorrer sempre gradual e paulatina-
mente, sobretudo quando o seu meio se modifica sucessivamente. Na medida
em que são estabelecidas certas linhas diretivas para a ação do eu-de-grupo,
os partidários posteriores aderem a estas com uma fidelidade imperturbável
para que nada lhes permita sair do caminho. Toda mudança de orientação re-
quer sempre antes de tudo uma nova resolução. Como indivíduos, as pessoas
pertencentes ao grupo podem pensar o que quiserem sobre o movimento do

4 Ver o estudo epistemológico de Kracauer Soziologie als Wissenschaft: Eine erkenntnistheoretische


Untersuchung [Sociologia como ciência: uma investigação de teoria do conhecimento] de
180 1922, republicado nos Schriften 1. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1971.
grupo, e podem considerá-lo já inapropriado, como resultado, por assim dizer,
das novas circunstâncias que emergiram no meio-tempo. No entanto, conti-
nuam a seguir adiante no mesmo caminho iniciado até que um novo impulso
lhes conduza a um outro trajeto, que percorrem sem mudanças de direção
até o advento de um novo impulso. É indiferente como este impulso provém:
se graças à iniciativa de um dirigente [Führer] ou se do desejo dos próprios
membros do grupo, em todo caso o grupo necessita de tal impulso para ma-
nobrar de um trilho a outro. O itinerário do grupo, além disso, é dificilmente
uma curva contínua, mas antes uma linha reta com múltiplas inflexões; ou em
outras palavras: que se pense a realidade como representada por uma curva,
então pode se visualizar o movimento do grupo como um polígono tangencial
a circunscrever o caminho do grupo. Os pontos de inflexão, no entanto, são
aqueles nos quais o grupo se encontra novamente para um novo começo. Os
membros devem manter o passo com o mundo exterior e tomar decisões cor-
respondentes tendo em vista a ação do grupo; a atitude do grupo diante de uma
situação específica deve ser determinada a partir do espírito da ideia. Diante
de tal ponto de inflexão, entretanto, há habitualmente mais de um caminho
a ser seguido. Mesmo se os membros do grupo sejam moldados pela mesma
ideia, considerações táticas podem certamente levar alguns a tomar uma di-
reção e outros membros uma outra. O grupo cinde-se no momento em que
sua individualidade se dissolve, para se congregarem imediatamente a seguir
em grupos com nova direção e nova unidade. Mas a cisão ocorre não porque
uma parte da nova autoconsciência de seus membros tornou-se infiel à ideia,
mas porque várias opiniões se desenvolveram secretamente, tendo em vista a
influência prática do grupo na realidade, enquanto o velho grupo continuava
todavia existindo. A unidade do grupo se rompe por causa de questões táticas,
mas os membros aderem-se incondicionalmente à própria ideia.
Há um tipo de cisão de grupo que ocorre regularmente e requer por isso
uma consideração particular. Supondo que um grupo se encontre inicialmente
em posição de luta contra o conjunto da realidade social. Ele toma a inicia-
tiva de conquistar a realidade, na ideia da qual foi criado, e os passos dados
para isso são acompanhados de um certo sucesso. Inicialmente reprimido, al-
cança pouco a pouco uma posição elevada, amplia-se e ganha influência na 181
comunidade. Incrementando o círculo de pessoas envolvidas na ideia de que
o grupo é portador, e pela ideia, chega assim a uma extensão limitada, indo da
região do dever-ser à do ser. Há um instante na vida do grupo no qual muitos
de seus participantes começam a sentir que a meta do grupo foi alcançada na
medida do possível; em todo caso não concebem que, na sua contraposição
com a realidade, tenha sido dominada exclusivamente pela ideia. Em outras
palavras, mais um grupo penetra e ao mesmo tempo se enraíza na realidade,
quanto mais experimenta também o poder dessa realidade. Certamente, trans-
formou o existente; mas o existente continua sempre lá, sem ser inteiramente
dominado ou superado. O peso, a rudeza e a impenetrabilidade da realidade
revelam-se mais e mais claramente àqueles que se aproximam dela partindo
do ponto de vista da ideia. Inicialmente esta aparece envolvida numa névoa
e é fácil de se fisgar. Somente quando se inicia a luta com ela é que se tornam
visíveis suas crateras e tudo o que meramente é, mas que, sobretudo, também
é e por isso não se permite que seja colocado de lado, emerge com horrível
clareza. E a questão do destino, a questão tentadora começa a se espalhar no
grupo: há em algum lugar um ponto no qual a luta com a realidade se rompe
e se estabelece uma reconciliação, um compromisso com ela? Um ponto que
significa: até aqui e não mais adiante? Todo grupo que aspira realizar uma ideia
deparará com a necessidade de responder esta questão em algum momento
no percurso de seu desenvolvimento. Na medida em que as pessoas que se
dedicam a uma ideia se dão conta que além da lógica da ideia existe também
algo como uma lógica da realidade, então a individualidade unitária de grupo
eventualmente se dissolverá e a relação com a realidade tornar-se-á o objeto de
discussão decisivo para a nova formação da essência de grupo. E, a partir deste
ponto de inflexão, bifurca-se, então, o grupo, habitualmente, em duas indivi-
dualidades que seguem diferentes caminhos através do mundo social baseado
em suas respectivas formas de compreensão da relação entre ideia e realidade.
Na verdade, segundo esse ponto de vista uma parte do grupo busca uma espé-
cie de acordo de paz com o meramente existente. Não é que não se colocasse
como tarefa continuar também a defender a ideia; mas, por um lado, parece
que todo o desenvolvimento anterior lhe conduzira já ao essencial, por outro,
182 está profundamente convencido de que o existente se colocará sempre contra a
ideia e de que se deve considerar, com isso, a necessidade de se estabelecer um
compromisso com este. São os “moderados”, os “reformistas”, os “revisionistas”
e assim por diante que defendem esta visão. Eles constituem um grupo cuja
fonte não se situa mais propriamente na ideia, mas em alguma síntese entre
ideia e realidade. O percurso (em ziguezague) escolhido por eles é o resultado
de dois componentes: da vontade propriamente de alcançar a meta original
do grupo e da vontade de reconhecimento das realidades existentes. A outra
parte do grupo, em contrapartida, se obriga a si própria com mais compro-
metimento ainda à ideia inicial em toda sua pureza. Acredita que quando se
fez apenas algo, não se fez ainda nada. Toda medida de precaução em relação
à realidade indiferente vale como uma espécie de deserção, e a incorporação
desta realidade no horizonte da essência do grupo significa curvar-se ao jugo
caldeu. Esta individualidade de grupo “radical” não tolera nenhum pacto com
o existente, pretende realizar a utopia de tal modo como esta foi concebida.
O fato de que todo grupo se cinda provavelmente desta maneira ou que tenda
a uma tal cisão é, em última instância, expressão do fato metafísico de que a
alma é mediação entre ideia e realidade e que esta não pode nem se abaixar
inteiramente diante daquela nem ir além. Como portador do movimento entre
dever-ser e ser, a essência de grupo deve vivenciar o conflito, seja assimilando
em si a realidade e com isto transcendendo a ideia, seja levando a ideia às úl-
timas consequências e com isto saltar por sobre a realidade. O problema se
resolve com a cisão. O desdobramento da ideia, daqui em diante, leva a dois
caminhos cuja bifurcação nada mais é do que fruto da situação metafísica
paradoxal do homem.
Via de regra, as individualidades de grupo originadas de uma divisão, ini-
cialmente combatem entre si de modo violento. Justamente, porque são o re-
sultado de uma única e mesma ideia, um grupo deve tentar destruir o outro
(ou o que significa a mesma coisa, tentar repetidamente persuadir o outro),
já que cada um pensa que é a única e verdadeira representação da ideia e se
sente, por isso, aniquilado no íntimo de sua essência pela existência do grupo
irmão. Não há nenhum ódio pior e mais perturbador do que o ódio contra
uma essência espiritual que nos é semelhante, que possui o mesmo funda-
mento original que o nosso e que um dia se separa de nós para seguir o seu 183
próprio caminho da salvação; ou mais ainda: não se trata de modo algum do
ódio isoladamente existente entre ambas as essências de grupo, mas do medo
diante do seu isolamento terrificante que ambas procuram alcançar constan-
temente uma da outra, e o amor que une uma à outra, o amor propriamente
de duas criaturas geradas de uma mesma mãe e que, apesar de todo o estra-
nhamento, jamais perdem o sentimento de que perderam sua afinidade con-
sanguínea. Cada ideia vai de encontro à outra, a qual se encontra de algum
modo em oposição à primeira. As individualidades de grupo, no entanto, que
incorporam tais poderes espirituais em conflito, jamais entram em confronto
umas com as outras com a mesma intensidade e paixão ardente como grupos
que originariamente eram unidos. Em cada caso, um antagonismo objetivo
é dirimido. Nesse sentido, trata-se de uma contraposição da ideia consigo
mesma, seja na punição aos heréticos ou na redenção de um pecador arrepen-
dido. De qualquer modo, é sempre mais do que uma disputa entre partidos
antagônicos. O comportamento de grupos fraternos diferencia-se, aliás, de
modo típico. O grupo radical desaprova qualquer compromisso com a reali-
dade, considera a si próprio como o único portador da ideia não adulterada
e estigmatiza o grupo moderado como o membro desleal da individualidade
de grupo originária. Assim, na medida em que recusa a conciliação com o
existente pode, de fato, seguir adiante, diretamente como uma flecha, o cami-
nho traçado pela ideia e, consciente de sua pureza, pode com a aparência de
justiça condenar como traidores aqueles que abertamente se desviaram desse
percurso. Por outro lado, o grupo (moderado), imbuído do poder da realidade,
possui um aspecto mais difícil ao defender seu ponto de vista contra os radi-
cais. Cai facilmente numa posição defensiva e tem de apelar ao bom senso, à
visão, enquanto o outro grupo precisa apenas apelar à fé para se colocar acima
da realidade. Vê neste outro, o grupo radical, algo como seu melhor eu, mas
desorientado e quer convencê-lo e conduzi-lo de volta das fantasias utópicas
à consecução do que é possível. Sua força e boa consciência se fundamentam
no conhecimento que se coloca na obtenção do que é alcançável e que crava a
cunha da ideia na realidade; torna a ideia finita, de tal modo a deixá-la atro-
fiada, enquanto o grupo utópico quer realizar a ideia em sua inteira infinitude
184 e assim em todo caso logra a realidade em seu direito à ideia inteira. Uma vez
que a divisão do grupo-mãe se consumou, ambos os grupos irmãos são, num
sentido mais profundo, indispensáveis para o processo no qual o meramente
existente torna-se uma ideia; apenas juntos, e como resultado de sua fricção
bilateral, auxiliam a figuração possível da ideia.
Típico do destino de um grupo é em geral o seu lento afastar-se da ideia,
sua progressiva imersão na realidade. Na medida em que o grupo vê sua exis-
tência ameaçada, este vive naturalmente de modo puro apegado à ideia que lhe
sopra vida. Seria pulverizado da comunidade, se abandonasse a ideia que uni-
camente lhe dá coesão. Depois de várias e tantas cisões, uma individualidade
de grupo que incorpora a ideia pode finalmente chegar ao poder e adquirir
então uma posição que ninguém mais pode ameaçar. Ao atingir este ponto de
seu desenvolvimento, no entanto, a essência de grupo começa pouco a pouco
a perder suas energias, e consequentemente, passa a sucumbir aos poderes do
meramente existente. Qual é neste caso a causa deste tipo de degeneração, que
se pode observar em todas as formações de grupo que “fizeram a si mesmos”?
O grupo é criado pela ideia que quer se tornar realidade, é uma criatura que
não está ancorada em nenhuma parte do mundo do existente. Para o grupo,
o desenvolvimento da ideia é sinônimo da continuação da sua existência; as-
sim desconectado da realidade, como vive por enquanto, livremente suspenso
sobre tudo o que tem existência e peso, deriva toda sua existência da ideia que
o propulsiona pelo mundo. Expande-se na comunidade e se entrelaça sempre
cada vez mais em sua vida, até que ao final não se pode imaginar a realidade
sem ela. As organizações, que esta forma assume, adquirem importantes fun-
ções sociais, e as instituições que inspira tornam-se estáveis e adquirem lega-
lidade. De modo puramente teórico, há agora duas possibilidades. Ou o grupo
se dissolve como unidade autônoma, pois sua meta foi alcançada inteiramente,
ou continua a existir, pois incorpora uma dessas sublimes ideias religiosas que
requer representação contínua. De facto vale igualmente o mesmo para o
grupo sobre qual de ambas possibilidades é dada; em todo caso a individua-
lidade de grupo aspirará a uma autoafirmação sem limites e se defenderá de
toda tentativa de seu desmembramento. É como um corpo que se movimenta
no “espaço galileano”, um corpo que apenas por meio de outro, de força a ele
contraposta, pode ser levado ao estado de repouso. Esta inércia pode ser es- 185
clarecida adequadamente, entretanto, pela sua origem e essência. O individuo
singular pode mudar sua direção (em princípio) com tanta frequência que
quiser; é capaz da autonegação e da inteira inversão. O eu-de-grupo, em con-
trapartida, não possui consciência que vá além de si mesmo, é um eu separado
das almas singulares, que sempre pode tão-somente se afirmar, mas não pode
se limitar ou destruir a si próprio. Mesmo quando sua existência tornou-se já
sem sentido e superficial, jamais se dissolverá a partir de si mesmo, mas, ao
contrário, continuará persistindo, igualmente vazio, até que alguma influência
externa ponha fim nele. O que leva a individualidade de grupo de algum modo
a desistir da ideia da qual é portador, uma vez que tomou o poder e que está
inteiramente enraizado na realidade? A razão é que a existência deste tipo de
ser coletivo depende não apenas de si isoladamente em sua dedicação exclu-
siva em servir à ideia, já que está muito mais seguro e firmemente ancorado
na realidade de vida conjunta da comunidade enquanto tal. Em outras pala-
vras, o grupo tem que lançar raízes na região do ser e pode assim dissolver os
laços no domínio do dever-ser sem ter que temer pelo seu declínio. Quando
já está ancorado no existente e não se lhe oferece nenhuma resistência, pois
quase se mantém junto por si mesmo, graças à direção que tomou e pela vir-
tude de ser do grupo. Porque não tem necessidade tão urgentemente de de-
senvolver a ideia para poder continuar a existir, o grupo se desanuvia imedia-
tamente e aspira apenas a afirmar-se em termos de poder. Durante os períodos
de luta, como em geral em seu status nascendi, era o grupo que requisitava sua
inteira força e glória da ideia, enquanto agora, no período de poder já adqui-
rido, é a ideia que deve ser agradecida ao grupo por tudo o que este fez por ela.
O grupo é cuidadoso, entretanto, em não renunciar à ideia oficialmente, por
assim dizer, mesmo que tenha cessado de estar ativamente empenhado em
promover seu desenvolvimento. Em vez disto, constitui uma livre aliança (uma
aliança feita entre dois poderes independentes) para sua própria segurança,
utilizando a ideia como uma capa protetora sob a qual pode continuar a exis-
tir impunemente. Em geral sempre se busca encontrar a responsabilidade para
tal fenômeno sociológico no fato fundamental de que o espírito, se não é cons-
tantemente ativado, tende a recair de volta na matéria. É sempre em épocas de
186 alta intensidade que a alma vai além do meramente existente, além da legali-
dade e da necessidade, e se torna parte do âmbito da liberdade. Mas suas asas
não a mantêm suspensa por muito tempo e logo, exaurida, sucumbe na reali-
dade como presa do diabo, que está eternamente à espreita, para sequestrá-la
de Deus. Como foi dito anteriormente, o grupo que alcançou o poder certa-
mente não abandona de modo algum a ideia, mesmo que tenha de fato deser-
tado dela e que esta, todavia, apenas flutue sobre a realidade (que se pense, por
exemplo, na Igreja durante a Renascença). Um instinto infalível lhe ensina que
a ideia é um excelente aliado, ao qual se pode sempre apelar, quando o seu
direito de existência é colocado em questão. Com uma ousada dialética de
saltimbancos deduz da ideia tudo o que empreende na realidade, de tal modo
que uma criatura ingênua possa acreditar que o grupo agisse como seu exe-
cutor. Mas suas relações com seus conteúdos de dever-ser que outrora lhe
constituíram são agora, na verdade, um modo exterior, a ideia tornou-se uma
decoração, uma fachada pomposa de um interior parcialmente deteriorado
que representa, juntamente com esta fachada, uma unidade que zomba do
espírito. Entretanto, o espírito não permite ser motivo de troça, e a ideia em-
preende uma sublime desforra contra o grupo no poder que se separou de seu
domínio. Com isso, já que o grupo a relegou a um meio a mais de autopreser-
vação, a um submisso instrumento que se pode manipular conforme quiser,
esta não perde, entretanto, seu significado como um dever-ser transcendental.
Foi tragada pela realidade, violentada, abusada, em vez de transformá-la nos
seus termos. Em última instância: foi realmente a ideia que foi destruída no
processo? Uma vez arremessada no mundo, a ideia jamais será perdida para
o espírito, e quando um grupo pretende penetrar no existente utilizando-a e
segue pelo caminho de todos os corpos, é meramente este grupo e não a ideia
enquanto tal que fracassa em seu percurso através da realidade social. Imóvel,
a ideia permanece no horizonte, e o mundo humano que não mais a almejasse
repetidamente teria de ser um mundo inteiramente abandonado por Deus;
este não seria nosso mundo. Portanto, se uma essencialidade de grupo não se
deixa conduzir para viver de modo duradouro sob o signo de uma ideia, o
atraiçoado começa então mais uma vez a ter efeito sob o espírito, cuja exigên-
cia vai além do meramente existente, colocando em prova sua força de atração;
aquele que tenta realizá-la não alcança um grau satisfatório, outras tentativas 187
lhe sucederam. O modo pelo qual a ideia doravante continua a operar criati-
vamente no domínio material (por meio da fundação de novos grupos e assim
por diante) é, entretanto, determinado por inúmeros fatores para continuar a
ser considerada típica. Via de regra, faz uso de astúcia inominável e sutil: toma
o corpo do grupo do qual foi expulsa e desgastada, apenas para nele renascer
novamente. Os membros do grupo que sofreram a fundo o horror da descida
ao inferno e se colocaram no campo de batalha contra o antiespírito que do-
mina o grupo despertam-no de seu torpor e novamente reascende com a ideia;
neste processo, frequentemente formam – voluntariamente ou não –, uma
essencialidade coletiva que é útil à ideia que doravante se separou do grupo-mãe
e que segue seu próprio caminho (criadores de seitas, reformadores). Do
mesmo turbilhão do existente, do qual a ideia foi arrastada, brota novamente
também a nostalgia e esta se exaure até as cinzas, para emergir eternamente
de novo como o pássaro fênix.
Entre as ideias formadoras de grupo, há um tipo particular de unidade
coletiva, cuja ideia é utilizada de antemão apenas como pretexto para alcan-
çar, na verdade, fins inteiramente diversos. Como autênticos bucaneiros, estes
grupos comandam uma ideia que melhor se ajusta a seus fins, como se fossem
rédeas do veículo que dirigem. Grupos de interesse capitalistas, por exemplo,
defensores da cultura da personalidade, instituições estatais nas quais o apetite
colonial pretende ser os patrões da “civilização”, partidos políticos que ambicio-
nam poder e influência casualmente confiscam de algum modo a circulação de
ideal corrente que, por meio deste ato de confisco, se transforma de imediato
em ideologia. Em todos estes casos, as verdadeiras aspirações situam-se no
fim do percurso, aspirações que se vestem com a manta da ideia apenas por
vergonha diante da nudez de sua realidade. O que mantém o grupo unido e
direciona todos os seus movimentos não é sua ideia, ou melhor, sua ideologia,
mas antes a finalidade específica que se oculta por trás desta. Na medida em
que a individualidade de grupo está, ao final, engenhosamente empenhada
em realizar seu bem almejado e insatisfeita com seu dever-ser, que é dissimu-
lado, poder-se-ia esperar teoricamente que mudasse sua roupagem de acordo
com as circunstâncias e com as mudanças históricas, em outras palavras, que
188 poderia simplesmente rechaçar por inteiro uma ideologia gasta por uma ou-
tra que melhor se adequasse ao momento. No entanto, a ideia requerida para
usufruto não pode ser, de fato, descartada abruptamente. No grupo que tomou
de assalto a ideia, a ideia mesma se funde gradualmente com o verdadeiro
propósito unificador do grupo, criando uma unidade dificilmente solúvel, de
tal modo que ao final o eu-de-grupo vê ambas como equivalente essencial,
não sendo mesmo capaz de distingui-las. Mesmo a dirigentes formadores de
grupo falta a clara consciência de como exatamente a ideia está alojada ne-
les, se como ímpeto original ou como expoente de algum outro conteúdo. Se
inicialmente a ideia é aplicada conscientemente pelos líderes de grupo como
estímulo, agem deste modo após todos os esforços para atrair o maior número
de pessoas possível, no intuito de prover o grupo da necessária força efetiva.
Todas as pessoas que dirigem o grupo confessam lealdade imediata à ideia sem
ter clareza de seu real significado. Mas, na verdade, a maioria dos membros
do grupo presta juramento à ideia e o que desvia o eu-de-grupo de sua real
aspiração, obrigando-o ao desdobramento de conteúdos de dever-ser que os
levam a falsas pretensões. Dos ímpetos desta individualidade de grupo, cujo
maior itinerário espiritual é formado essencialmente na fonte originária da
ideia, não se podem esquivar nem mesmo os dirigentes sensatos. Basicamente
necessitam fazer justiça à crença da qual partilham, o que não pode ser facil-
mente mudado como se fossem peças de vestuário. “Os espíritos que evoquei,
não posso mais facilmente deles me livrar”, lamenta o aprendiz de feiticeiro
cujo destino frequentemente é compartilhado pelo dirigente. Domina nestes
grupos um equilíbrio delicado entre a ideia e a finalidade prática, e se emerge
uma divergência entre ambas (com frequência intimamente interligadas uma
à outra) essencialidades, é frequentemente bem questionável qual delas vai se
impor sobre a outra.
Os movimentos da individualidade de grupo ocorrem numa esfera cuja
constituição e cuja relação à esfera de ação do indivíduo singular podem tal-
vez ser claramente articuladas apenas neste ponto. O percurso de todo grupo
é simbolizado por uma multiplicidade de linhas rompidas, e a ideia, o espírito
do grupo, deve se valer de uma forma simples e tosca que corresponda ao cará-
ter primitivo e à rigidez do eu-de-grupo. Quando então os múltiplos espíritos
de grupo que perambulam pelo mundo encontram-se cordialmente um com 189
outro ou colidem brutalmente um contra o outro, é sempre uma questão de
aliança e de ruptura que está, em certo sentido, por trás da influência indivi-
dual. Todos estes solavancos dos espíritos de grupo estão concentrados num
domínio que o sujeito enquanto sujeito não mais alcança, e as irrupções são,
portanto, catástrofes de horror incomparável. Quando um eu autônomo (so-
litário) se desliga de seus vínculos com diferentes grupos e segue consciente-
mente enquanto indivíduo seus próprios movimentos, percebe mil soluções
e possibilidades que jamais poderiam ser satisfeitas pelo próprio grupo. No
indivíduo, as ideias se expandem em várias dimensões, mas no mundo social
governado por grupos estas se desenvolvem apenas unilateralmente e perdem
sua flexibilidade; enquanto no indivíduo e no tráfego entre indivíduos a ideia
se encontra em sua plena expansão (em toda sua superfície, por assim dizer),
no mundo social topam uma com as outras apenas por um de seus lados e,
além disto, tendo poucos contatos uma com outra. Entre os espíritos de grupo
estreitos, esquemáticos e informes há muitos espaços vazios; um conteúdo de
ideia é confrontado imediatamente com outro. A tentativa do indivíduo singu-
lar de preencher o espaço vazio com substância e de criar continuamente tran-
sições deve fracassar na constituição mesma das individualidades de grupo;
estas são em comparação com o eu individual gigantes informes, contra os
quais a frágil delicadeza dos membros individuais não tem parceria. O que
não contradiz o fato de que as personalidades dirigentes sempre tentam inter-
ferir no curso dos movimentos dos grupos ou tentam fundar um novo grupo
sob a inspiração de uma nova ideia. Nestas circunstâncias não há espaço para
individualidades plenas e múltiplas, mas, ao contrário, seu ser já passou por
uma redução e um estreitamento que unicamente lhe tornaram capaz de uma
ação criativa na esfera da individualidade de grupo.

190
O saguão de hotel

A comunidade de esferas elevadas voltadas a Deus possui o conhecimento se-


guro, que a organiza tanto no tempo como na eternidade, de que vive na lei
e além da lei, ocupando o meio temporalmente insustentável entre o natural
e o sobrenatural; ela não apenas se encontra nesta situação paradoxal como
também a experimenta e a designa enquanto tal. Nas esferas de realidade infe-
rior, a consciência da existência e das condições autênticas desaparece no fluxo
existencial, e o sentido turvado perde-se no labirinto de eventos desfigurados,
cuja desfiguração não mais se percebe.
A figuração [Formung] estética pode restituir à vida destituída de realidade,
à vida que perdeu o seu poder de auto-observação, um modo de linguagem;
mesmo que o artista não seja forçado a expressar o que se tornou mudo e ilu-
sório, ele o faz, ao expressar a si próprio, dando forma a esta vida. Quanto mais
a vida submerge, maior se torna a necessidade de que obras de arte saiam de
sua reclusão e ordenem seus elementos dispersos um ao lado do outro, tor-
nando-os plenos de sentido. A unidade da construção estética, o modo como
distribui os pesos e liga os eventos, dá voz ao que no mundo não tem voz,
empresta sentido aos referidos temas; mas justamente o que estes temas sig-
nificam, entretanto, deve ser trazido à tona pela tradução e depende em larga
medida do nível de realidade do seu criador. Enquanto nas esferas mais eleva- 191
das o artista confirma a realidade que se percebe a si mesma, nas regiões infe-
riores seu trabalho torna-se como o de um arauto da multiplicidade carente
de palavras reveladoras. Suas tarefas aumentam na medida em que a perda de
realidade do mundo e do espírito enclausurado o impele, no final, ao papel
de educador, do observador que não apenas vê, mas antevê profeticamente e
estabelece conexões. Embora esta sobrecarga do estético possa indicar ao ar-
tista um falso lugar, é compreensível, porque a vida que permanece intocada
pelas coisas autênticas reconhece que foi apreendida no espelho da constru-
ção artística, de tal modo que ganha em consciência, sempre negativa, de sua
distância da realidade e de seu status ilusório. Por mais insignificante que seja
o poder existencial que faz emergir a figuração artística, ele sempre infunde
intenções no material confuso que ajudam a tornar transparente.
Sem ser uma obra de arte, o romance policial [Detektiv-Roman] decerto
mostra à sociedade civilizada seu próprio rosto de modo mais puro do que
ela usualmente está acostumada a se ver. No romance policial, seus portadores
sociais e suas funções prestam contas de si mesmos e revelam seu significado
oculto. Mas o romance policial pode coagir o mundo dissimulado a revelar a
si próprio dessa maneira, pois é criado por uma consciência que não é circuns-
crita a este mundo. Alimentado por esta consciência, o romance policial real-
mente pensa até as últimas consequências a sociedade dominada pela razão
(ratio) autônoma, a sociedade que existe apenas enquanto conceito, pois de-
senvolve de tal modo os momentos iniciais que a ideia é plenamente realizada
em ações e figuras. Uma vez que a estilização da irrealidade unidimensional
se completou, o romance policial integra os elementos individuais, agora ade-
quados aos pressupostos constitutivos, numa conexão de sentido coesa, numa
integração que se efetua por meio do poder de sua existência que posterior-
mente se transforma não segundo críticas e exigências, mas segundo princípios
da composição estética. É apenas este entrelaçamento que alcança a unidade
mesma que possibilita a interpretação das descobertas representadas. Tal como
o sistema filosófico, o organismo estético visa à totalidade que permanece ve-
lada aos portadores da sociedade civilizada – uma totalidade que desfigura o
conjunto da realidade experimentada – e assim possibilita vê-la abertamente;
192 somente deste modo, o verdadeiro significado destas descobertas pode ser
encontrado por meio de suas combinações na totalidade estética. Esta é a
realização mínima da existência estética: para formar um todo a partir dos
elementos cegos dispersos de um mundo desintegrado, um todo que, mesmo
que pareça ser apenas o reflexo deste mundo, ela o capta, decerto, em sua to-
talidade e assim permite a projeção de seus elementos nas condições reais. A
estrutura típica da vida apresentada no romance policial significa que a cons-
ciência nela produzida não é casual, individual; ao mesmo tempo mostra que
o que foi destacado são traços de características metafísicas. Como o detetive
descobre segredos velados das pessoas, o romance policial desvela no meio es-
tético o segredo da sociedade carente de realidade e o de suas marionetes sem
substância. A composição do romance policial transforma a vida inapreen­sível
em contra-imagem traduzível da verdadeira realidade.

Na igreja [Gotteshaus], que pressupõe a comunidade [Gemeinschaft] já exis-


tente, a congregação dos fiéis [Gemeinde] realiza a obra dos vínculos. Uma vez
que o membro da congregação de fiéis abandonou a relação com o lugar onde
esta foi fundada, a Igreja continua a ter significado apenas decorativo. Mesmo
se submerge no nada, uma sociedade civilizada no auge de seu desenvolvi-
mento continua a manter estratos privilegiados, que testemunham igualmente
para seus próprios membros não-existentes, assim como a Igreja testemunha
a existência da comunidade unida na realidade. Admitindo que a sociedade
não tem consciência disto, então não pode ver além da sua própria esfera;
apenas a construção estética, cuja figuração engendra a multiplicidade como
projeção, torna possível demonstrar esta correspondência. As características
típicas do saguão de hotel, que aparece repetidamente nos romances policiais,
mostram como imagem nuclear o que este teria em comum com a Igreja. É a
igreja [Kirche] negativa, que pode se transformar de fato numa igreja, quando
se observam as condições que governam as diferentes esferas.
Em ambos os lugares, as pessoas aparecem como hóspedes. Mas enquanto
a igreja se dedica a servir aqueles que lá vão para encontros, o saguão de hotel
acomoda aqueles que lá vão para não encontrar ninguém. É o cenário para
aquele que não procura e nem encontra o outro que está sempre sendo procu-
rado, ambos sendo, portanto, hóspedes no mesmo espaço, um espaço que os 193
rodeia e não possui outra função a não ser rodeá-los. Aqui o nada impessoal
representado pelo gerente de hotel ocupa a posição do desconhecido, cujo
nome reúne a congregação dos fiéis. Enquanto a congregação dos fiéis invoca
o nome e se dedica ao serviço de modo a preencher a relação, as pessoas que
se encontram dispersas, no saguão, aceitam sem problemas sua condição de
anfitrião incógnito. As pessoas estão simplesmente sem relação entre si, go-
tejam no vácuo com a mesma necessidade que impele aquelas aspirações em
direção à realidade e para fora dela, elevando-as de lugar nenhum em direção
às suas destinações.
A congregação dos fiéis, que se encontra na Igreja para orações e cerimô-
nias, se emancipou da imperfeição da vida comum não para superá-la, mas
para tê-la em mente e para recolocá-la sempre novamente em estado de ten-
são. Sua assembléia é a reunião e a unificação daquelas vidas orientadas da co-
munidade e pertencem a dois espaços: o espaço protegido pela lei e o espaço
além da lei. No lugar da Igreja – decerto não apenas nele – estes caminhos
separados encontram-se; a lei aqui se rompe, sem ser rompida, e a separação
paradoxal experimenta sua própria legitimação pela suspensão esporádica de
sua continuidade inerte. Por meio da edificação da congregação de fiéis, a co-
munidade está sempre se reconstruindo a si mesma, e esta elevação acima da
vida cotidiana protege a própria vida cotidiana do naufrágio. O fato de que
este retorno da comunidade a seu ponto de origem deve estar subordinado
às limitações do espaço e do tempo, o que a conduz para fora da comunidade
mundana e que se realiza por meio das celebrações especiais, é apenas um
sinal da questionável posição humana entre o alto e o baixo, que a impele
constantemente a estabelecer por si mesma o que é dado e o que é impelido
ao estado de tensão.
Já que a região inferior é determinada pela característica da ausência de
tensão, o estar-junto no saguão de hotel não tem sentido. Certamente, aqui
também ocorre um desligamento do cotidiano, mas este desligamento não
leva a comunidade a uma garantia de sua existência como congregação de fi-
éis, mas somente transfere as figuras da irrealidade da engrenagem cotidiana
a um lugar no qual aparecem no vazio apenas como se fossem mais do que
194 meros pontos de referência. O saguão, no qual as pessoas encontram-se a
si mesmas vis-à-vis de rien, é uma mera lacuna que não serve nem mesmo
às finalidades ditadas pela ratio, como a sala de conferências de uma empresa,
finalidades que, em última instância, podem mascarar a direção almejada na
relação. Mas a permanência no hotel não oferece nem perspectiva nem saída
do cotidiano, pois provê uma distância que pode no máximo ser explorada
esteticamente – o estético sendo entendido aqui como categoria de um tipo
de pessoa não-existente, como resíduo daquela positividade estética que torna
possível colocar este não-existente habitável no romance policial. A pessoa
sentada ao redor idilicamente é tomada de uma satisfação desinteressada na
contemplação de um mundo criado por si mesmo e que carece de utilidade,
pois não está associado à representação de um fim. A definição kantiana do
belo encontra aqui sua realização levada a sério, com seu isolamento do esté-
tico e sua falta de conteúdo; pois por meio dos indivíduos esvaziados do ro-
mance policial, que podem ser comparados ao sujeito transcendental como
complexos racionalmente construídos, a capacidade estética é de fato separada
do fluxo existencial da pessoa como um todo e reduzida a uma relação irreal,
puramente formal, que manifesta a mesma indiferença em relação a si própria
como em relação ao material. O próprio Kant não estava em condições de ter
presente esta horrível reta final do sujeito transcendental, na medida em que
ainda acreditava que se tratava de uma transição direta do transcendental ao
mundo do sujeito-objeto pré-formado. O fato de ela não abrir mão comple-
tamente da pessoa como um todo, mesmo no estético, é confirmado pela sua
definição do sublime, em que relaciona o ético ao cálculo e, desse modo, tenta
reunir as partes remanescentes do todo fragmentado. No saguão de hotel, na
verdade, o estético, que não possui nada de sublime, é representado sem olhar
para as intenções acima referidas, e a fórmula da finalidade sem fim exaure,
ao mesmo tempo, seu conteúdo. Assim como o saguão é o espaço que não re-
mete além de si mesmo, a condição estética a ele correspondente constitui o
seu próprio limite. Ele é interditado de ir além desse limite na medida em que
a tensão que impele à ruptura é recalcada e as marionetes da ratio – que não
são seres humanos – os isola de suas próprias ocupações. O estético, entretanto,
que possui fim em si mesmo, se desenraiza; ofusca o nível superior, ao qual
deveria se referir, e significa apenas a sua própria vacuidade que, de acordo 195
com o seu sentido literal da definição kantiana, é uma mera relação de forças.
A harmonia formal que nada diz eleva-se apenas quando está a serviço de algo,
quando em vez de alcançar a autonomia, insere a si própria em uma tensão que
não se refere ao particular. Se os indivíduos orientam-se além da forma, então
deve brotar o belo que é um belo pleno, porque é a consequência e não o fim –
permanece apenas como forma vazia, quando a forma escolhida é fim do qual
nada resulta. O saguão de hotel e a Igreja respondem ao sentido estético que
articula suas exigências de legitimidade; decerto o belo possui aqui uma lin-
guagem que também testemunha contra si própria, de modo que é envolvida
em sua própria mudez, incapaz de encontrar o outro. Na poltrona elegante,
a civilização orientada à racionalização chega ao fim, enquanto a decoração
dos bancos de igreja nasce da tensão que lhe empresta um significado revela-
dor. Como resultado, os corais que são expressão do serviço divino tornam-se
pot-pourris cuja força estimula mera trivialidade, e a devoção se solidifica em
desejos eróticos que vagueiam sem objeto.
A igualdade da pessoa que reza é também refletida de modo desfigurado no
saguão de hotel. Quando uma congregação de fiéis se constitui desaparecem as
diferenças entre as pessoas, pois estas criaturas possuem uma única e mesma
destinação. Diante do espírito que determina esta destinação, algo que não é
determinado por ele simplesmente deixa de existir – sobretudo, o limite da
necessidade, colocado pelos homens, e a separação que é o trabalho da natu-
reza. O caráter provisório da vida comunitária é experimentado enquanto tal
na Igreja, e o pecador chega a “nós” do mesmo modo como o justo tem aqui
sua segurança rompida. É isto – o fato de que todo humano se orienta pela sua
própria condição – o que engendra a igualdade do condicionado; o grande se
aproxima do pequeno, e o bem e o mal permanecem suspensos, quando a con-
gregação de fiéis relaciona a si mesma ao que não pode medir. Tal relativização
das qualidades não leva à sua confusão, mas as eleva à realidade, desde que a
relação das últimas coisas ordene que a comoção das penúltimas coisas não seja
destruída. Esta igualdade é positiva e essencial, não é redução e primeiro plano,
é o preenchimento do que foi diferenciado, que deve renunciar a independên-
cia de sua existência singular para, com isto, salvar o que é mais singular. Esta
196 singularidade é esperada e almejada na Igreja; relegada às sombras na medida
em que são impostos limites meramente humanos, lança suas próprias sombras
sobre as distinções quando o indivíduo se aproxima do limite absoluto.
No saguão de hotel a igualdade se baseia não em relação a Deus, mas em
relação ao nada. Aqui, no espaço da falta de relações, a mudança de ambiente
não deixa para trás a atividade funcional, mas a coloca entre parênteses em prol
da liberdade de poder referir-se apenas a si mesma e assim submergir em rela-
xamento e indiferença. Na Igreja, as diferenças humanas diminuem diante de
seu caráter provisório, desmascarado pela seriedade que dissipa toda certeza
sobre tudo que é definitivo; em contrapartida, uma ociosidade desnorteada,
para a qual não há nenhuma chamada, conduz a um mero jogo que eleva a
não-seriedade do cotidiano ao nível da seriedade. A definição de Simmel da
sociedade, como “a forma de jogo da socialização”, é inteiramente legítima, só
que, no entanto, não vai além da descrição. O que se apresenta no saguão de
hotel é a concordância formal das figuras, uma igualdade, que não significa
preenchimento, mas esvaziamento. Destacadas da atribulação, obtém-se certa
distância das particularizações da vida “autêntica”, sem serem subordinadas a
uma nova determinação que estaria circunscrita pelo alto à esfera de validade
daquelas determinações; e é por este caminho que alguém pode ser eclipsado
em um vazio indeterminado, sem forças, reduzido a “membro da sociedade en-
quanto tal”, permanecendo superfluamente fora, e quando está jogando, anes-
tesia-se a si próprio. Este colocar-se sem forças do estar-junto, em si mesmo
irreal, não conduz em direção à realidade, mas se evade para baixo em uma
confusão duplamente irreal de átomos indiferenciados de que se constitui o
mundo da aparência. Enquanto ao entrar na Igreja a criatura se vê como por-
tadora da comunidade, no saguão de hotel o que emerge é o fundamento sem
essência como base da socialização racional. Aproxima-se do nada e está em
analogia com os conceitos universais, abstratos e formais, cujo pensamento, que
escapou da tensão, pretende abarcar o mundo. Estas abstrações são imagens
invertidas dos conceitos universais acolhidos na relação: roubam o dado ina-
preensível de seu conteúdo possível, em vez de elevá-los do nível de realidade,
relacionando-os às determinações mais elevadas; são irrelevantes ao indivíduo
orientado e total que, levando o mundo nas mãos, o encontra no meio do ca-
minho; entretanto são colocados pelo sujeito transcendental que lhes permite 197
tomar parte da impotência na qual degenera o sujeito transcendental como
resultado da pretensão de ser o criador do mundo. Mesmo se a ratio livremente
flutuante – obscuramente consciente de seus limites – toma conhecimento de
conceitos de Deus, liberdade e imortalidade, o que descobre não é o seu ho-
mônimo conceito existencial. E o imperativo categórico certamente não é o
substituto para decisões que partem de uma resolução ética. Mesmo assim, a
composição destes conceitos em um sistema confirma que as pessoas não que-
rem abandonar a realidade que se perdeu; certamente não se quer apoderar-se
mais dela justamente porque se tenta, por meio do pensamento, romper com
a realidade. A desolação da ratio é completa quando se remove sua máscara
e ela lança a si mesma no vazio de uma abstração qualquer, que não é mais
mimetismo de nenhuma determinação superior; quando ela renuncia à con-
sonância sedutora e deseja a si própria como conceito. Permanecendo apenas
como indeterminado, o nada é agora abertamente reconhecido, apoiando-se
de cima a baixo, tenta fundar a realidade a que não tem mais acesso. Justa-
mente como Deus torna-se, para a pessoa sob estado de tensão, o princípio e o
fim de toda criação, assim atua o intelecto que se tornou totalmente absorvido,
criando a aparência de figura plena do zero. Pensa que pode arrancar o mundo
desta generalidade sem significação que está situada o mais próximo do zero
e se distingue deste apenas por extrema necessidade para deduzir algo. Mas o
mundo é mundo apenas quando é interpretado pela universalidade realmente
experimentada. O intelecto reduz as relações que permeiam a multiplicidade
ao denominador comum do conceito de energia que se separa do zero apenas
por um triz. Ou rouba do acontecimento histórico sua natureza paradoxal,
apoderando-se do nivelado como progresso num tempo unidimensional. Ou,
aparentemente traindo a si próprio, eleva a “vida” irracional à dignidade da
entidade de modo a compensar a si mesmo, na sua delimitação, dos resíduos
liberados da totalidade do ser-conjunto e para atravessar as esferas em sua
amplitude. Se alguém toma como base esta extrema redução do real, pode
obter (e a filosofia da vida de Simmel confirma isto) uma imagem distorcida
das descobertas realizadas nas esferas superiores – uma imagem não menos
compreensiva do que aquelas provenientes das palavras “Deus” ou “espírito”.
198 Mas mesmo de modo menos ambíguo do que pelo emprego abusivo de cate-
gorias que se tornaram incompreensíveis é a distribuição de abstrações vazias
que anuncia a posição atual do pensamento que se evadiu das tensões. O vi-
sitante no saguão de hotel, onde desaparece o individual atrás da igualdade
periférica das máscaras sociais, corresponde aos termos exaustivos que forjam
as diferenças da uniformidade do zero. Aqui, o visitante suspende o ser à parte
indeterminado – que, na Igreja, dá lugar à igualdade invisível de estar diante
de Deus (fora do que em ambos os casos renova e determina a si próprio)–
transformando-se num fraque. E a trivialidade de suas conversas que almejam
objetos insignificantes e sem propósitos, de tal modo que pode encontrar a si
próprio em sua exterioridade, é apenas o reverso da oração, dirigindo-se para
baixo, por meio de suas conversas, o que os rodeiam idilicamente.
A observância de silêncio, não menos obrigatório no saguão de hotel do que
na Igreja, indica que em ambos os lugares as pessoas consideram a si próprias
essencialmente como iguais. Em A morte em Veneza, Thomas Mann formula
esta situação da seguinte maneira: “No espaço reinava um silêncio solene que
constitui o orgulho dos grandes hotéis. Os camareiros em serviço andavam
de lá para cá a passos silenciosos. O tilintar das bandejas de chá, o balbuciar
de meias palavras era tudo o que se podia ouvir”. A solenidade sem conteúdo
deste silêncio, convencionalmente imposto, não corresponde a uma mútua
cortesia, como a que se encontra em qualquer lugar, mas serve antes para eli-
minar diferenças; é um silêncio que abstrai as palavras elucidativas e que com-
pele a que se rebaixe a uma igualdade diante do nada, uma igualdade que o
barulho da voz ressoando pelo espaço perturbaria. Na Igreja, ao contrário, o
silêncio significa o retorno firme de si mesmo, e a palavra dirigida aos homens
é pronunciada apenas para dar lugar à outra, o dito e o não-dito, colocada em
julgamento sobre os homens.
O que conta aqui não é o diálogo dos que falam, pois os membros da con-
gregação de fiéis são anônimos. Amadurecem seus nomes, porque o ser real­
mente empírico que estes nomes designam desaparece na oração; pois não
conhecem o outro como ser particular cuja múltipla existência determinada
se entrelaça com eles no mundo. Se o nome próprio revela seu portador, se-
para também este daqueles cujos nomes foram chamados, revela e obscurece
ao mesmo tempo, e é por boa razão que os amantes querem destruí-lo, como 199
se fosse a barreira final a separá-los. Apenas a renúncia ao nome – abolindo a
solidariedade pela metade entre as esferas intermediárias – permite a solida-
riedade extensiva que vai de encontro ao lusco-fusco do contato recíproco e à
noite e à luz do mistério superior. Agora que não conhecem quem é a pessoa
mais próxima deles, seu vizinho torna-se o mais próximo, pois de sua apa-
rência em desintegração eleva-se a criatura cujos traços são também deles. É
verdade que apenas aqueles que se colocam diante de Deus, que decerto são
suficientemente estranhos um ao outro, para se descobrir como irmãos; ape-
nas revelam-se de tal modo que podem amar um ao outro sem se conhecer e
sem usar nomes. No limite do humano libertam-se eles próprios de seus no-
mes, com isto a palavra torna-se parte deles – palavra que vai de encontro a
eles mais diretamente do que qualquer lei humana, e no ocultamento que leva
a uma maneira de relativização do figurado, questionando sua figura. Tendo
sido iniciados nos mistérios de que provém o nome, e tendo se tornado trans-
parente ao outro em suas relações com Deus, chegam a “nós”, significando
uma comunidade de criaturas que supera e que dá base a todas as distinções
e associações, aderindo ao próprio nome.
Este “nós” delimitado dos que se apropriam de si mesmos, que por causa
da condicionalidade humana é realizado de modo vicarial na Igreja, é transfor-
mado no saguão de hotel no isolamento de átomos anônimos. Aqui a profissão
é separada da figura e o nome se perde no espaço, já que apenas a multidão
ainda sem nome pode fazer uso da ratio como ponto de ataque. A multidão é
reduzida a nada, de que gostaria de produzir o mundo, mesmo aqueles pseu-
doindivíduos que foram privados de individualidade, desde que seu incóg-
nito já não busca nenhum fim além do movimento sem sentido nas trilhas
da convenção. Mas se o sentido deste anonimato torna-se nada mais do que
a representação da insignificância deste começo, a representação de regula-
ridades formais, não engendra pois a solidariedade dos libertos da estreiteza
do nome; em vez disto, retira de todos os que se encontram a possibilidade
de associação que o nome poderia lhes oferecer. Rudimentos de indivíduos
escapam para o Nirvana do relaxamento, faces se perdem atrás do jornal, e a
luz artificial contínua ilumina nada mais do que manequins. Um ir-e-vir de
200 desconhecidos que se tornaram formas vazias porque perderam suas senhas
de identificação e perambulam como inapreensíveis fantasmas. Se possuíssem
um interior, este não possuiria nenhuma janela, pereceriam na consciência do
abandono sem fim, em vez de conhecer sua pátria como faz a congregação dos
fiéis. Mas como mera exterioridade, escapam de si mesmos e expressam o seu
não-ser através da falsa afirmação estética do estranhamento que se instalou
entre eles. A apresentação da superfície é uma atração para eles, o hálito do
exótico lhes dá um arrepio agradável. Decerto, para reforçar a distância cujo
caráter definitivo os atrai, permitem-se a si próprios jactar-se numa proximi-
dade que eles próprios provocaram: suas fantasias monológicas alinham os
designos de máscaras, de que se utilizam como brinquedo, e a troca de olha-
res flutuantes, que cria a possibilidade de intercâmbio, é admitida apenas por-
que a miragem da possibilidade confirma a realidade da distância. Como na
Igreja, aqui também se desvela o caráter sem nome do sentido dos contatos;
mas enquanto na Igreja é uma espera sob tensão que revela a transitoriedade
das denominações, no saguão de hotel é o recuo na inquestionável falta de
fundamento que o intelecto transforma em lugar originário dos nomes. Mas
onde a chamada que reúne o “nós” não é ouvida, estes que fugiram da figura
estão irrevogavelmente isolados um do outro.
Na congregação dos fiéis está presente toda a comunidade, pois a relação
imediata com o mistério supralegal inaugura o paradoxo da lei que pode ser
suspensa na atualidade da relação com Deus. A lei é o penúltimo termo que
se retira quando ocorre a conexão que humilha os assegurados e protege os
ameaçados. Mas as figuras tranquilas no saguão de hotel representam tam-
bém a sociedade como um todo; não porque a transcendência os eleva a seu
nível, mas porque o serviço da imanência ainda oculta. Em vez de guiar as
pessoas além delas mesmas, o mistério é introduzido entre as máscaras; em vez
de penetrar na casca do humano, é o véu que envolve tudo o que é humano;
em vez de confrontar o homem com o provisório, paralisa o questionamento
que dá acesso ao provisório. Em seu romance policial inteiramente reflexivo,
Der Tod kehrt im Hotel ein [A morte entra no hotel], Sven Elvestad escreve:
“Mais uma vez se confirma que um grande hotel é um mundo para si e que
este mundo é igual ao resto do grande mundo. Aqui os hóspedes vagueiam
levemente em sua existência de verão, sem preocupações, sem fazer ideia de 201
que um estranho mistério circula entre eles”. Estranho mistério: a palavra é
ironicamente ambígua. Por um lado, refere-se de modo inteiramente geral ao
ocultamento do existente vivido enquanto tal; por outro, refere-se ao grande
mistério desfigurado que encontra expressão na atividade ilegal que ameaça a
segurança. O caráter clandestino de toda atividade legal e ilegal, ao qual a ex-
pressão se refere no início e diretamente, é um indício disto, de que no saguão
de hotel a pseudovida, que se desdobra na pura imanência, é voltada para trás
em direção a seu começo indiferenciado. Se fosse retirada a casca do misté-
rio, a mera possibilidade desapareceria no seguinte fato: algo apareceria pela
separação entre o ilegal e o nada. Em seguida, o gerente do hotel silencia-se
cautelosamente aos hóspedes quanto ao realmente ocorrido, que poderia co-
locar um fim à situação esteticamente falsa que encobre aquele nada. Como
o grande mistério não mais experimentado força o retorno a ele, passando
sobre o ponto médio, cujo limite é definido pela lei, assim é proscrito o mis-
tério, que é distorcido da base superior e com isto a abstração mais elevada
do perigo rompe a vida imanente, que induz a uma neutralidade rebaixada do
início sem sentido do qual emerge o pseudo-ponto-médio. Oculta a ruptura
das diferenciações a serviço da ratio emancipada, que se fortalece com a vi-
tória sobre algo, no saguão de hotel, auxiliando as convenções ao domínio da
situação. São procedimentos tão batidos que a atividade que toma lugar em
seu nome é ao mesmo tempo uma atividade de simulação – uma atividade que
serve como proteção tanto à vida legal quanto à vida ilegal, pois como forma
vazia de toda sociedade possível não está orientada a nenhuma coisa particu-
lar, mas se satisfaz a si própria em sua insignificância.

202
Perspectivas
A Bíblia em alemão

Sobre a tradução de Martin Buber e Franz Rosenzweig

Das Buch im Anfang [O livro no início] recentemente publicado, compreende


a primeira parte de uma tradução do Velho Testamento,1 que se calcula che-
gará a vinte volumes. Martin Buber e Franz Rosenzweig realizaram a tradução
para o alemão. O projeto marca um estágio de seu desenvolvimento, que não
é somente deles.
Em sua principal obra filosófica Der Stern der Erlösung [A estrela da
redenção],2 Franz Rosenzweig – cujo discernimento intelectual é mais pro-
fundo que o de Buber e, por conseguinte, mais difícil de ser penetrado – pre-
tendeu ratificar em seus fundamentos a renúncia à filosofia idealista em declí-
nio. Enquanto expressão exemplar de um período que se precipita em direção
à sua conclusão, o livro, um estudo sistemático rico em interpretações válidas,
é um documento histórico de primeira ordem. De acordo com esta renúncia

1 Die Schrift [A Escritura] tradução para o alemão realizada por Martin Buber juntamente
com Rosenzweig. Berlim, 1925.
2 Franz Rosenzweig, Der Stern der Erlösung [A estrela da redenção]. Frankfurt: J. Kauffmann,
1921. 205
é inteiramente consequente que Rosenzweig tenha sido cativado pela reali-
dade da vida judaica religiosamente engajada. A fundação do Freies jüdisches
Lehrhaus (Instituto livre de ensino judaico), em Frankfurt,3 e a sua tradução
do volume de poemas e hinos de Yehuda Halevi4 são uma prova exterior da
sua guinada da teoria à prática. – Buber, dirigente de uma parte da geração
judaica mais nova (particularmente aquela de orientação sionista), acompanha
Rosenzweig nessa mudança. Buber é conhecido nas esferas do público alemão
menos pelas suas traduções da literatura do leste5 que pelos seus esforços, ao
longo de décadas, de tornar o chassidismo acessível. O resultado deste esforço
é a edição de uma série de coleções de legendas chassídicas que contribuíram
para o aumento significativo do patrimônio cultural do leste europeu.6
A atitude em relação à vida e ao conhecimento, manifestada por Buber
e Rosenzweig, pode ser hoje chamada “religiosa” somente com restrições.

3 Uma instituição fundada por Rosenzweig após a Primeira Guerra Mundial, onde estudan-
tes e professores – incluindo-se personalidades judaicas como Martin Buber, Ernst Simon,
Gershom Scholem, Erich Fromm e Nahum Glatzer – estudaram as origens do hebraico
clássico e debateram sua relevância contemporânea. Relatos históricos sobre o Lehrhaus
podem ser encontrados em Wolfgang Schivelbusch, “Auf der Suche nach dem verlorenen
Judentum: Das Freie Jüdische Lehrhaus” [Em busca do judaísmo perdido: o Instituto livre de
ensinamento judaico], em Intellektuellendämmerung [O crepúsculo intelectual]. Frankfurt:
Suhrkamp Verlag, 1985, pp. 33-51.
4 Rosenzweig traduziu e comentou um volume de hinos e poemas, do poeta e filósofo Yehuda
Halevi hispânico-judaico do século XX: Sechzig Hymnen und Gedichte des Yehuda Halevi
[Sessenta hinos e poemas de Yehuda Halevi]. Konstanz: Oskar Wöhrle, 1924.
5 Embora Buber não falasse chinês, editou uma coleção de textos chineses. Ver por exemplo
Reden und Gleichnisse des Tschuang-Tse: Deutsche Auswahl von Martin Buber [Sermões e
parábolas de Tschuang-Tse. Seleção alemã de Martin Buber]. Leipzig: Insel, 1910, e Chinesis-
che Geister-und-Liebesgeschichten [Histórias chinesas de espíritos e amor]. Frankfurt: Rütten
und Loening, 1911.
6 Die Geschichten des Rabbi Nachman: Nacherzählt von Martin Buber [As histórias do rabino
Nachman. Adaptadas por Martin Buber]. Frankfurt: Rütten und Loening, 1906; Die Legende
des Baalschem [A lenda de Baal]. Frankfurt: Rütten und Loening, 1908; Der große Maggid
und seine Nachfolge [O grande Maggid e seus sucessores]. Frankfurt: Rütten und Loening,
1922. Em 1927 esses três volumes foram reunidos em Die chassidischen Bücher [Os livros
206 chassídicos]. Berlim: Schocken, 1927.
O termo apenas pode ser empregado se não demarca, como é comum, um do-
mínio especial próprio – neste caso, o religioso, mas serve como designação
de uma forma de existência que intenta situar a pessoa inteira na realidade.
“Religioso” significa aqui uma prática de vida que floresce na base de uma re-
lação real com conteúdos de verdades essenciais – neste caso, aqueles inter-
mediados pelos testemunhos escritos do judaísmo – e não uma orientação da
consciência teórica ou empreendimento puramente religioso tal como aquela
do movimento litúrgico.
A nova tradução alemã da Bíblia surgiu do desejo de fortalecer esse tipo
de vida. Essa tradução não deve ser entendida como um produto literário
autônomo, mas antes como testemunho e resultado de um círculo religioso
– independentemente de ele existir de fato ou ser somente inquirido. A expec-
tativa de resposta determina a forma da tradução. A sua apresentação sem co-
mentários só pode ter sido o resultado da intenção de se dirigir diretamente
a todas as pessoas ou à comunidade inteira. A eliminação do aparato textual
crítico pressupõe também a convicção de que a palavra da Escritura retém o
seu poder permanente. Os autores aspiram à tradução literal e à fidelidade rít-
mica segundo os princípios que Rosenzweig desenvolveu na sua tradução da
obra de Yehuda Halevi.7 A língua hebraica não deve ser germanizada; antes, o
alemão deve se expandir dentro do hebraico de modo a captar aqueles que a
ele se dirigem com a força de um retrato fiel.
O primeiro volume propõe uma tarefa filológica essencial: a comparação
do texto com o original, o exame do ritmo, a discussão dos desvios da versão
massorética (isto é, da versão abalizada tradição judaica).8 Assim, por mais es-

7 Cf. o “Posfácio” de Rosenzweig na sua edição dos Sechzig Hymnen und Gedichte [Sessenta
hinos e poemas] de Halevi, pp.107-119.
8 Quando o hebraico deixou de ser uma língua viva, os transmissores da tradição bíblica, co-
nhecidos como massoretas, realizaram anotações escritas por mais de cinco séculos, com o
intuito de preservar a ênfase correta e as expressões para a leitura da Bíblia hebraica. Toda
edição impressa da Bíblia hebraica – cujo modelo é a segunda “Grande Bíblia rabínica” pu-
blicada por Daniel Bomberg (1524-25), em Veneza, e editada por Ya´aqov ben Hayyim ibn
Adoniyyah – constitui uma tradição textual única e é apresentada como o texto massorético
(“recebido”). 207
sencial que essa tarefa filológica possa ser, ela não é a mais urgente. Muito mais
urgente é a obrigação de examinar a – em si fechada – forma da língua alemã
na própria tradução, uma limitação de foco que pode ser tomada sem hesitação,
pois os autores de fato procederam de modo competente e consciente. A ati-
tude à qual a obra pertence é delineada pela análise da língua; a sua expressão
linguística torna indiretamente transparente o próprio sentido dessa atitude.
Ela é a postura do círculo religioso que pode ser alcançado de imediato por
essa tradução em alemão. Sob o signo da “renovação religiosa”9 formaram-se
também grupos no interior das esferas de influência católica e protestante,
que formalmente estão de acordo com aqueles que se agruparam em torno de
Buber e de Rosenzweig em sua pretensão comum de restabelecer as relações
das pessoas com as verdades reveladas na religião. Aquilo que se pode dizer
sobre o círculo de leitores ideais dessa versão da Bíblia também pode ser re-
levante para eles. A língua assemelha-se à mancha entre as omoplatas de Sie-
gfried, sobre a qual caiu a folha da tília: é o único lugar no corpo da realidade
poderosa que não está protegido pela mágica do sangue do dragão.10

Para a tradução da Bíblia os critérios estéticos não constituem a norma pre-


dominante, como ocorre com a tradução de outros textos. Em oposição às
obras que existem no tempo e se modificam juntamente com ele, a Bíblia
requer status de verdade em todos os tempos. A insistência de que a Bíblia
tenha relevância no presente (uma insistência legitimada pela pretensão da
Bíblia à verdade), subordina aquilo que é oferecido de modo puramente es-
tético às obrigações de conhecimento do tradutor: antes de qualquer coisa o
tradutor precisa descobrir o ponto onde a verdade, capturada pela palavra,
poderia penetrar no tempo, sobre o qual ela, enquanto verdade, precisa referir.

9 Referência ao subtítulo do estudo de Max Scheler, de 1921. Vom Ewigen im Menschen [Do
eterno no homem]. Bern: Franke, 1954-68.
10 No épico medieval Nibelungenlied [Canção dos Nibelungos], o jovem Siegfried se banha no
sangue do dragão que acabara de matar, para se tornar invulnerável. Sem que tivesse co-
nhecimento, uma folha de tília caiu em suas costas durante esse banho, deixando um lugar
intocado pelo sangue mágico. Este é o único lugar onde ele pode ser – e, em última análise,
208 é – mortalmente ferido.
O conteúdo deste conhecimento determina a viabilidade da tradução e sua
forma; ele pode impedir uma atitude em relação ao original que, de uma
perspectiva estética imanente, seria apropriada em outros textos. A tradução
de Borchardt da Divina Comédia para o alemão da época de Dante11 – um
empreendimento legítimo no âmbito meramente estético – está baseada em
um princípio que é inapropriado para o texto da Bíblia, simplesmente porque
lhe daria uma distância estética que roubaria a sua verdade do seu significado.
Trazer esta verdade para o presente não é, contudo, sinônimo de assimilá-la
facilmente para este presente. Em um período alienado da palavra da Bí-
blia, o seu conteúdo não está bem servido com uma tradução que conseguiu
acesso na linguagem vulgar somente ao sacrificar aquilo que originalmente
se queria dizer. A atualização correta da Escritura, aqui solicitada, se opõe
ao compromisso que destrói a verdadeira palavra, a qual crê intermediar.
De acordo com a sua natureza, essa atualização precisa ser inspirada pelo
espírito revolucionário, pois a verdade não se revela no existente. O texto
original retorna para o seu retiro intraduzível quando a linguagem revolu-
cionária de uma época histórica – a linguagem que agora (não importa quão
transformada e incompleta possa ser) por si só atinge a verdade – se dissociou
da formulação desse texto primordial.
Nesse sentido a Bíblia de Lutero é atual. Graças à constelação histórica no
momento de sua redação, o protesto revolucionário contra os abusos da Igreja
(que são simultaneamente abusos socioeconômicos) encontra a sua expressão
precisa no retorno à palavra da Escritura. A sua tradução foi um meio de luta

11 O poeta, dramaturgo e ensaísta Rudolf Borchardt (1877-1945) não só traduziu A Divina Co-
média de Dante (München: Verlag der Bremer Presse, 1922), mas também a sua Vita Nova,
Berlim: Rowohlt, 1922. A primeira encontra-se disponível sob o título Dantes Comedia:
Deutsch [A Comédia de Dante: alemão], editada por Marie Luise Borchardt, Stuttgart: Ernst
Klett, 1967. Sobre Borchardt como tradutor de Dante, cf. George Steiner, After Babel: Aspects
of Language and Translation. Londres: Oxford University Press, 1975, pp. 338-41 [ed. bras.:
Depois de Babel. Questões de linguagem e tradição. Trad. Carlos Alberto Franco. Curitiba:
Editora da ufpr, 2006]; Hans-Georg Dewitz, Dante Deutsch: Studien zu Rudolf Borchardts
Übertragung der Divina Commedia [Dante em alemão: estudo sobre a tradução de A Divina
Comédia por Rudolf Borchardt]. Göppingen: Kümmerle, 1971. 209
que deveria impedir o emprego “papista” da Vulgata. Aqui a verdade da Bíblia
se confirma pela sua atualização, o religioso se estende (assim como, mais tarde,
na tradução do Pentateuco12 por Moses Mendelssohn) ao político, que, por sua
vez, não pode se furtar caso a inverdade no mundo ainda deva perecer à sua
frente. Mas a adequação do texto de Lutero como um instrumento revolucio-
nário se deve enfim ao fato de que, no seu momento de origem, o pensamento
secular mal tinha começado a se emancipar do teológico. Somente a íntima
relação entre ambos é que torna possível a expansão da língua alemã “ordinária”
em direção à linguagem da Bíblia, habilitando esta última a invadir a primeira:
uma expropriação da posse – cuidadosamente guardada – dos poderes conser-
vadores da Igreja que, a serviço da neopreparação de uma verdadeira ordem
das coisas, é disseminada entre as classes mais baixas do povo. De maneira
exemplar (embora não possa mais ser imitada), Lutero busca a Escritura das
esferas inacessíveis e insere-a na vida do povo, puxa-a para baixo até o lugar
mais insignificante, para o qual a verdade é atraída porque este é precisamente
o lugar falho na construção da ordem humana interior. “Nada de palavras de
castelos e de cortes” escreve ele para Spalatin. “Este livro deseja ser explicado
tão-somente de modo simples e trivial.”13

O profano há muito excedeu as categorias teológicas que, (mais ou menos) na


época da Reforma, ainda eram capazes de contê-lo ou, no mínimo, funcio-
navam como a sua superestrutura correspondente. Do invólucro destas cate-
gorias teológicas emergiram interesses que têm somente caráter profano: as
comunidades das religiões positivas são confrontadas com uma sociedade que

12 Die fünf Bücher Mose, zum Gebrauch der jüdischdeutschen Nation, nach der Übersetzung
des Herrn Moses Mendelssohn [Os cinco livros de Moisés, para uso da nação judaico-alemã,
segundo a tradução do sr. Moses Mendelssohn]. Berlim, 1780. Esta tradução, que foi ini-
cialmente publicada em caracteres hebraicos (posteriormente na ortografia germânica) vem
acompanhada por um comentário, o Bi´ur, que combina exegese tradicional com estética
literária moderna.
13 Carta de 30 de março de 1522 para Georg Spalatin (1484-1545), teólogo e defensor de Lutero
na corte do príncipe eleitor saxão Friedrich III; in Kurt Aland (ed.), Luther Deutsch [O ale-
210 mão de Lutero]. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1991, p. 120.
alcançou a si mesma como uma entidade com conceitos e objetivos próprios.
Nessa sociedade, e não nas religiões positivas, é que reside a atualidade do
presente. Esta atualidade localiza-se de maneira exata ali onde está decidida-
mente ameaçada a vida comum das pessoas no sentido da verdade. Observa-se,
no entanto, que as relações de poder sociais e econômicas, que determinam
a estrutura espiritual [geistige] da sociedade de hoje em todas as suas rami-
ficações, constituem o impedimento efetivo da própria existência. No curso
do processo histórico, estas relações de poder vieram à luz de modo cada vez
mais claro; as culturas mais autoconfiantes foram condenadas ao declínio por-
que estavam baseadas nos frágeis fundamentos dessas relações de poder. Por
amor à verdade – que se anuncia no processo histórico como uma compulsão
lógica – ocorre que o âmbito profano dos fatos econômicos ganhou atualidade
decisiva. Pois se a autoridade autodeterminada dos fatores materiais arruinou
os produtos culturais a eles acoplados, uma nova ordem não pode ser buscada
senão pela mudança destes fatores. Isto, por sua vez, não pode ocorrer até que
esses fatores emerjam despidos de todos os invólucros que os protegem e ocul-
tam. Assim, no presente, o lugar da verdade em si é no meio da vida pública
“comum” – não porque os aspectos econômicos e sociais sejam significantes em
e por si sós, mas porque são os fatores determinantes. Certamente eles não po-
dem responder na íntegra pelo campo das experiências religiosas e espirituais
[geistige]. Por um lado, os conteúdos dessas experiências carecem de uma base
real, porque as relações sociais estão arruinadas. Por outro, a permanência
nesse âmbito religioso e espiritual [geistige] desvia as pessoas da incumbência
de uma reorganização da ordem social. Grande parte dos produtos literários de
hoje, que de modo naïf se mantêm em esferas puramente espirituais [geistige]
– a que corresponde um indivíduo privado que não existe mais – é uma tenta-
tiva involuntária ou intencional de estabilização da situação social vigente. O
seu status como manifestações de repressão tira-lhes o peso. Nessas esferas, a
verdade não pode mais ser encontrada diretamente.
Juntamente com a verdade, se afastou também a linguagem. Lutero con-
fiou em sua habilidade de fundir a linguagem da Bíblia com aquela do povo;
o classicismo, o romantismo e o idealismo foram capazes de usar uma lin-
guagem que só pôde ser determinada legitimamente pelo espírito [Geist] e 211
carregada [getragen] pelo eu, vacilando entre a subjetividade transcendental
e a personalidade, porque a dependência parcial de suas ideias e convicções
da estrutura externa da sociedade profana ainda estava oculta. Uma vez que
o papel decisivo das forças materiais se torna aparente, esses constructos lin-
guísticos perdem o seu poder preciso. Eles não desapareceram completamente.
Eles estão preservados nas convicções historicistas e, marcados pela tristeza,
residem agora no espaço estético. A extensão de suas sentenças [Satzperiode]
e as suas configurações ainda falam de uma harmonia incontestável com um
mundo objetal que há muito tempo já se tornou volátil. Não é nestas formas
linguísticas que a realidade pode ser encontrada, embora a beleza se demore
no seu meio. Segundo o curso tomado pela verdade, a realidade buscou refúgio
em uma linguagem, cuja forma e material categorial expressam a consciência
de que os eventos essenciais têm lugar hoje no terreno profano. Por mais reti-
cente e negativa que essa linguagem possa ser, ela é a única a ter ao seu lado a
necessidade, pois só ela se forma no ponto no qual o sofrimento pode ser rever-
tido. Em contrapartida, é inteiramente consequente que constructos linguísti-
cos, demonstrando sua negligência para a situação corrente pela apropriação
despreocupada dos significados positivos e agora dúbios, percam o seu poder
ontológico pretendido e sejam entregues à arbitrariedade subjetiva. A vulga-
rização de conceitos, tomados do domínio da existência interior e exaltada, é
um evento tão inalterável e não-acidental como a perda rápida de substância
em toda linguagem, que atualmente pretende ser sagrada e esotérica (como,
por exemplo, a prosa do círculo de George). Entrar nessas esferas linguísticas
abandonadas significa renunciar à realidade.

A tradução de Buber e Rosenzweig tem a pretensão de renovar a realidade


da Escritura em sua pureza. De fato, sente-se o desejo – e este desejo precisa
ser reconhecido e respeitado – de restituir ao texto o poder que a verdade lhe
proporcionou. Em neologismos como aquele descrevendo a morte de Abraão
“em uma boa velha idade” [in gutem Greisentum] ouve-se a tentativa de ressus-
citar o ritmo do hebraico no idioma estrangeiro. A confiança na palavra alemã
é aqui ilimitada de um modo somente encontrado em Lutero. Os tradutores
212 conseguem transferi-la para a Escritura?
Pressionados por sua obra – pressão que tomaram espontaneamente para
si – eles chegaram a uma forma de linguagem que certamente não é a dos dias
atuais. Mas estes sons também não ressoam da era bíblica, embora seja o local
para o qual os autores desejam transferir a cena. Exatamente onde esta cena está
construída, entre o presente e a antiguidade, pode ser determinado a partir de
alguns exemplos. A formulação definitiva de Lutero “e o espírito de Deus pairava
sobre a água” [und der Geist Gottes schwebte auf dem Wasser], que na edição da
Escritura pela Editora Zunz assume forma fluida, mas real e clara,14 “e o espírito
de Deus pairando sobre a superfície das águas” [und der Geist Gottes schwebend
über die Fläche der Wasser] transforma-se em nossos tradutores na formula-
ção ressoante: “O bramido de Deus meditando em toda parte sobre as águas”
[Braus Gottes brütend allüber den Wassern]. A questão de saber qual “Zeitgeist”
o bramido chocou15 torna-se clara pelo fato de que eles elevam dádivas elevadas,
tornam nuvens nubladas e abatem reses de abate, ao passo que Lutero deixa
Noah sacrificar vítimas de incêndio, conduz nuvens pela terra e, de modo bem
simples, diz “abate”. Isto se torna evidente quando eles tomam o texto de Lutero
“E o senhor cheirou o cheiro amado” [Und der herr roch den lieblichen Geruch]
e elevam-no para a formulação alemã requintada: “Então ele cheirou o cheiro
da satisfação” [Da roch er den Ruch der Befriedigung]. O mau cheiro destas ali-
terações não emerge da Bíblia, mas antes das runas, tal como concebidas por
Richard Wagner. As mais altas pretensões germanistas do Anel dos Nibelungos
também estariam satisfeitas pela pergunta rítmica a seguir: “Gostarias de ser rei,
tu um rei entre nós,/ Ou ser administrador, tu um administrador acima de nós?”
[König wärst wohl gern, bei uns du König?/ der Walter du, über uns Walter?].

14 Die 24 Bücher der Heiligen Schrift, nach dem masoretischen Texte [Os 24 livros da Escritura
Sagrada, segundo os textos massoréticos], editado por Leopold Zunz, tradução de H. Ar-
nheim et al. Berlim: Veit, 1838. Leopold Zunz (1794-1886), professor alemão, editor e diretor
do Jüdische Lehrseminar (Instituto judaico) de Berlim, foi um dos fundadores do importante
Verein für Kultur und Wissenschaft der Juden [Associação para a cultura e a ciência dos ju-
deus] (1819-24), que registrou um método histórico para o estudo acadêmico do judaísmo.
15 Os tradutores Buber e Rosenzweig utilizam o verbo preposicionado “brütend allüber” que
significa “meditar, refletir”. Sem a preposição, o verbo “brüten” significa “chocar”, acepção
que Kracauer utiliza para ironizar a tradução. [N.T.] 213
De modo similar, o uso de expressões restauradoras como “amante popular”
[Weihbuhle] (em oposição ao termo “meretriz” [Hure] de Lutero e “concu-
bina” policialesca de Zunz [Beischläferin]) e “local de marca” [Malstatt] (para
o qual Lutero simplesmente escreve “marca” [Mal]) corresponde ao modo
pelo qual os deuses e os heróis se expressam nos dramas musicais. Isto vale
igualmente para a exortação: “Ocupe o teu sêmen o portal dos seus inimigos”
[Besetze dein Same das Hochtor seiner Hasser!] (comparado ao “e o teu sêmen
ocupe os portões dos seus inimigos” de Lutero). Dos elevados campos heroicos
de Wagner uma estrada muito trilhada conduz às planícies vizinhas de Felix
Dahn e Gustav-Freytag,16 para as quais se é rapidamente trasladado por pala-
vras como “sem medida” [ohnemaß] e “certamente” [fürwahr] ou a saudação
muito antiquada e excitantemente pontuada: “Com sua licença, meu Senhor!”
[Mit Verlaub, mein Herr!].
Já basta: a linguagem é arcaizante em grandes trechos. Como resultado de
considerações que falharam em determinar os seus efeitos, a tradução utiliza
precisamente aquelas palavras agora totalmente ilegítimas de “castelo e de
corte”, que Lutero deliberadamente rejeitou. A sua origem é obvia: elas pro-
vêm do movimento mitológico e do antiquado neoromantismo do já passado
século XIX, que foram mantidos pela classe média culta, necessitada de reta-
guarda espiritual [geistige] que, naquela época, em razão de sua adequação
à situação social, pretendia reivindicar certa realidade. Que essa linguagem
nesse meio-tempo tenha caído em ruínas fica claro pela comparação com o
alemão de Lutero, que sobreviveu.

16 Felix Dahn (1834-1912), escritor alemão, historiador e professor de direito na Universidade


de Würzburg, Königsberg e Breslau, baseou seus romances nas antigas sagas e na época das
grandes migrações. Gustav Freytag (1816-95), escritor alemão e filólogo, publicou textos em
Die Grenzboten [Os mensageiros de fronteira] que descrevem as aspirações da classe mé-
dia, refletindo a convicção do autor de que a burguesia seria a base do novo Estado. A obra
sensata e pedagogicamente orientada de Freytag, coberta por uma crença no progresso, foi
muito popular. O seu romance realista em três volumes Soll und Haben [Débito e crédito]
(1855) descreve classes sociais da época, por assim dizer, de Dickens a Scott. O romance his-
tórico Die Ahnen [Os antepassados] (1873-81), em vários volumes, trata do desenvolvimento
214 do Volk alemão do início da época dos germanos ao fim do século XIX.
O pano de fundo [Hinterland] linguístico que essas palavras esquecidas
demarcam é bravamente cultivado pelos tradutores – uma prática que, acima
de tudo, é comprometedora, pois ambos desejam tratar a linguagem com res-
peito, e Wilhelm Michael pode anunciar que Buber está “dentre as principais
vozes do alemão contemporâneo”.17 A sua crença no poder ontológico atem-
poral do alemão por eles criado atrai ambos para fora do âmbito domesticado
da palavra “altar” [Altar] para o selvagem “lugar de matança” [Schlachtstatt];
inspira-os a substituir o vulgar “todo o mundo” [alle Welt] ou “todos os países”
[alle Lande] de Lutero pela expressão “povo da terra” [Erdvolk], que cheira a
um solo pseudonativo. Mas, ao invés destas expressões do alemão antigo pre-
sentificarem a distância fixa da Escritura, elas empurram-na para o alemão de
apenas algumas décadas atrás. É um ato de vingança da linguagem contra a
impertinência de apresentá-la como uma realidade que há muito tempo não
corresponde mais. A consistência dessa linguagem (particularmente naque-
las esferas que apontam para o mundano), assim como a sua inabilidade em
nomear muitas essencialidades (que podem ser explicadas a partir da funcio-
nalização do mundo objetivo), foram negligenciadas a tal ponto que delibe-
radamente são dados novos matizes para conceitos transmitidos há séculos.
(O positivo, enfim, é que aquilo que é colocado de modo ontológico às ve-
zes se revela involuntariamente como uma funcionalização plana – assim a
transformação de “linhagem” [Geschlecht] de Lutero em “procriações” [Zeu-
gungen]. Tal como anuncia o prospecto da Editora, os livros de Crônicas se
tornarão os livros de “Acontecimentos” [Begebenheiten] e os Profetas passarão
a ser os “Anunciadores” [Künder] – uma cunhagem que parece muito menos
ser tomada do Velho Testamento do que da obra Stern des Bundes [A estrela
do Testamento], de Stefan George.18 Como tal é um idioma cuja popularização
mal ocorre, pois já pertence ao passado, embora um passado burguês. Em uma
época de orientação essencialmente histórica é improvável que a “tendência
de alcançar a realidade”, que Wilhelm Michel atribui a Buber, se realize através

17 Wilhelm Michel, Martin Buber: sein Gang in die Wirklichkeit [Martin Buber: seu percurso
em direção à realidade]. Frankfurt: Rütten und Loening, 1926, p. 12.
18 Stefan George, Der Stern des Bundes [A estrela do Testamento]. Berlim: Georg Bondi, 1914. 215
desta ou de outras germanizações que ignoram a sua própria posição histó-
rica. Se assim fosse, a realidade alcançada se revelaria perigosamente aparen-
tada daquela planejada pelo romantismo nacional [völkische Romantik]. Mas
isto também não contradiz necessariamente o fato de que, ao contrário da
tendência ultraluterana de germanizar todas as coisas, os nomes próprios são
inseridos em hebraico: Eszaw [Esaú], Ribka [Rebeca] e Jirmejahu [Jeremias] o
anunciador. Os interesses nacionais talvez reivindiquem aqui os seus direitos
de povo-da-terra [erdvölkisch].
Se a realidade destes nomes não é o que se intenta, então aquilo que se pode
ainda supor é que um interesse estético induziu o transplante da vegetação exó-
tica da nomenclatura hebraica para o meio ambiente puramente germânico.
Esse interesse estético seria certamente oposto àquele favorável à rea­lidade.
Porém, seja a obra motivada ou não por esses interesses estéticos, sua disposi-
ção e linguagem parecem, em última instância, ser determinadas por eles. Tão
questionável quanto possa ser o efeito estético da tradução, ele confirma indire-
tamente que a sua realidade é somente estética. Mas exatamente ali onde deseja
de modo decisivo ter um efeito real, ela recai na impotência do estético. A de-
cisão de não incluir um comentário – supostamente para apresentar a verdade
da Escritura sem qualquer intervenção – dá a impressão de ter sido feito em
nome da pureza artística. As procriações linguísticas, criadas com a intenção
de ressuscitar a substância da Escritura, não aparecem como muito essenciais
no ritmo recriado empaticamente – (Borchardt faria melhor que isto) – mas
são de certo modo coagidas a entrar nele com grande esforço e enfatizam deli-
beradamente a sua beleza, por mais descorada que ela seja. Aqui a arte não se
baseia na realidade; muito mais, é a realidade que desaparece no artístico.
Esta germanização da Escritura não abala o presente. Em oposição à versão
de Lutero, que invadiu a sua época como uma realização revolucionária, esta
tradução não tem relevância na atualidade. O distanciamento da linguagem
denuncia aquele do conteúdo; a verdade não é transmitida nas palavras gastas
pelo uso de uma época só recentemente passada, cuja estrutura sociológica
dificilmente teria sido compreendida. Os tradutores precisariam ter detec-
tado quais domínios deveriam ser hoje explodidos pela verdade. Enquanto
216 a Bíblia de Lutero atacou com precisão o ponto decisivo, a germanização de
Buber e Rosenzweig se desvia da esfera pública de nossa existência social e se
volta para o privado. Em sua tradução, o texto da Bíblia, que está destinado a
escancarar o cotidiano, é removido do campo do cotidiano e se torna a base
de uma peça de teatro imaginária de consagração. E é somente como tal que
esse alemão teve alguma vez validade limitada; mas ele jamais foi expressão
de uma opressão real ou um meio de conhecimento.
O anacronismo desta tradução dá ao procedimento, do qual nasce, um
significado reacionário. Ao evitar a linguagem profana, ela reprime o pro-
fano; ao alçar voo do âmbito da esfera pública ordinária, abandona as neces-
sidades com as quais mantém a verdade do seu lado. Sem dúvida, este âmbito
é o da exterioridade, mas a elevação do seu interior está ligada à transformação
do exterior. O vocabulário da versão da Escritura para o alemão prova que ela
deve falar em termos obrigatórios para indivíduos, cujas relações sociais não
foram levadas em conta. Ela desvia o foco de significado da exterioridade e,
assim, se torna um instrumento que se volta contra a sobrevivência da verdade.
O eu-privado por ela solicitado, em razão da falsa elevação do seu eu, necessita
obstruir o seu próprio acesso na esfera pública. A sua irrealidade é desvendada
pelo gesto romântico da tradução, cujo efeito estético marca-a como sintoma
de fuga, bem como o âmbito do privado como refúgio. As consequências po-
tenciais (incluindo-se as políticas) de tal retirada emergem da entonação na-
cionalista de algumas das manifestações neobíblicas.
É necessária uma crítica dos princípios da tradução porque sustentada por
um firme conceito de realidade. Buber desenvolve-o em seu livro publicado
alguns poucos anos atrás, que trata de filosofia da religião, intitulado Ich und
Du [Eu e tu].19 Aqui ele diferencia o “Du-Welt” (o mundo no qual o eu e o tu,
enquanto indivíduos completos, se encontram em uma relação não-objetal
um com o outro) do “Es-Welt”20 (no qual as pessoas se objetivam perante ele e,
assim, entram em uma relação abstrata com esses objetos, dos quais se sepa-
raram). Enquanto naquele todos os seres alcançam a realidade pela sua união

19 Martin Buber, Ich und Du. Berlim: Schocken, 1922 [ed. bras.: Eu e tu. Trad. Newton Aquiles
von Zuben. São Paulo: Cortez Moraes, 1974].
20 Na língua alemã, “es” é pronome neutro, que não tem correspondente em português. [n.t.] 217
interior, neste último todas as coisas que poderiam testemunhar sobre a vida
real petrificam suas declarações de uma forma inautêntica. É destino do ho-
mem se afundar nesse “Es-Welt” e o retorno de lá nos é negado. Assim, para
Buber, a verdade só pode se manifestar ali onde o homem a alcança com todo
o seu ser, mas resiste a qualquer contemplação teórica, que presume possuí-la
em forma abstrata como um objeto. Esta interpretação, que joga o real contra
o irreal e o concreto contra o não-concreto, tornou-se para uma parte da lide-
rança espiritual [geistige], uma ideologia muitíssimo bem-vinda, uma vez que
em termos formais ela é inteiramente correta. À luz das condições sociais, as
classes instruídas dependem precisamente dessas atitudes (que em si são ino-
fensivas) como uma espécie de salva-vidas para sua consciência. O conceito
de realidade de Buber assume imediatamente um caráter ideológico quando,
porventura, a realidade não mais existente do ponto de vista do seu conteúdo
deseja defender a superioridade de uma teoria, que, não obstante (ou, melhor,
em virtude de) sua abstração é hoje o lugar da atualidade. A germanização
da Escritura realizada por Buber e Rosenzweig é a evidência convincente de
tal prática; o caráter de sua realidade é denunciado pela sua linguagem, cuja
tendência poetizante é muito mais estranha à realidade do que muita prosa
dos dias atuais. Buber se esquece – e muitos também se esquecem com ele –
que a própria verdade perambula de ponto a ponto, de esfera a esfera, e que,
em um determinado momento, ela pode muito bem ser compelida a atacar
nos campos profanos, nos quais a crítica social (como sempre abstrata) se en-
contra muito mais em casa que uma mera contemplação da realidade, que a
omite. Hoje, esses campos profanos constituem os espaços essenciais da rup-
tura. Buber sacrifica-os quando se retira para o seu “Du-Welt”, onde – para
usar a sua própria terminologia – só pode esperar encontrar um “Es”.
Mas se a realidade pode ser recuperada somente por meio de um caminho
que conduz através da “irrealidade” do profano, então hoje a Escritura não
pode mais ser traduzida. A própria intenção de sua germanização já se dis-
tancia da verdade, na medida em que ela presume proporcionar diretamente
a palavra com toda a sua força original. A situação de Lutero não é a nossa; já
se foi o tempo em que a língua alemã – ou qualquer outra língua – foi capaz
218 de ocultar legitimamente a verdade da Escritura. Para nós esta verdade precisa
permanecer preservada na tradução de Lutero, ou então ela não existe mais.
Foi através da versão de Lutero, e somente através dela, que a Escritura en-
trou na realidade em um momento específico de nossa história. E é nela que
também se baseia a tradição que ainda quer ser capaz de manter a Escritura
nessa realidade, depois que o profano se separou das esferas teológicas. A única
coisa que corresponderia a esse mundo profano seria uma edição textual crítica
que talvez pudesse trazer Kautzsch21 para o estado atual da moderna pesquisa
judaica da Escritura e, como se costuma dizer, satisfazer todas as pretensões
legítimas da ciência. Entre a exegese filológica e a tradução de Lutero não há
espaço para um terceiro empreendimento. Não há a menor dúvida de que
uma edição comentada, nascida do caminho do pensamento historista dos
dias atuais, e cujo objetivo seria apenas esclarecer e preservar o Urtext [texto
original], no decurso do tempo, transmitiria o espírito da Escritura – que en-
quanto obra foi deliberadamente silenciada por ele – de modo mais fiel que a
tentativa romântica e arbitrária de Buber e Rosenzweig, que desejam forçá-lo
a falar extemporaneamente.

O problema da tradução é aquele da renovação religiosa em geral. Fascinados


pela palavra desta renovação, movimentos, círculos e grupos se animaram e, a
partir de um contato mais ou menos estreito com os fatos positivos, se esfor-
çaram em proclamar uma mudança no ser. A versão da Escritura para o ale-
mão, que não pode ser separada do estado corrente de sua renovação religiosa,
contém uma indicação dos perigos aos quais estes movimentos estão sujeitos.
Poderia ocorrer que, em seu “movimento para a realidade”,22 estes grupos des-
cuidassem de fato daquilo que é real no mundo exterior visível. Poderia ocor-
rer que eles acreditassem entrar nesta realidade com suas existências, quando

21 Emil Kautzsch (1841-1910), teólogo protestante alemão, ocupou o cargo de professor em Basel,
Tübingen e Halle. Como seguidor de Wellhausen, editou a Hebräische Grammatik [Gramá-
tica hebraica] através da Friedrich Gesenius (revisada de acordo com a 28° edição de 1909);
traduziu e editou Die Apokryphen und Pseudoepigraphen des Alte Testaments [Os apócrifos
e pseudoepígrafes do Velho Testamento]. Tübingen; Mohr, 1900.
22 Uma referência ao subtítulo do estudo de Wilhelm Michel, já citado anteriormente: Martin
Buber: Sein Gang in die Wirklichkeit [Martin Buber: seu percurso em direção à realidade]. 219
de fato estão abandonando a realidade pública para cuidarem de si mesmos e
salvarem sua existência privada. Poderia ocorrer que acreditassem estar ser-
vindo à verdade e, de fato, não tivessem ideia de onde encontrá-la em toda sua
atualidade. Pois atualmente o acesso para a verdade está no profano.

220
Catolicismo e relativismo

Sobre a obra Vom Ewigen im Menschen, de Max Scheler

O primeiro volume da obra do filósofo Max Scheler1 – da cidade de Colônia


– intitulada Vom Ewigen im Menschen [Do eterno no homem] e publicado re-
centemente, contém uma série de ensaios anteriormente já publicados ou apre-
sentados em palestras durante o período da guerra. A coleção – que, como já
indica o subtítulo,2 se dispõe a promover a renovação religiosa – contém ape-
nas um texto escrito recentemente: o extenso estudo intitulado Probleme der
Religion [Problemas da religião]. Uma vez que se trata de uma antologia, uma
forma que permite a justaposição de traços de pensamento diferentemente
orientados, é um tanto difícil avançar até o fundamento espiritual [geistige]

1 Max Scheler, Vom Ewigen im Menschen [Do eterno no homem], volume I: Religiöse
Erneuerung [Renovação religiosa]. Leipzig: Der neue Geist, 1921; republicada em Scheler,
Gesammelte Werke [Obras reunidas], volume V. Bern: Francke, 1954-1968.
2 O subtítulo “Religiöse Erneuerung” [Renovação religiosa], que constitui o título da parte
introdutória do ensaio “Probleme der Religion” [Problemas da religião], designava original-
mente o primeiro volume da obra planejada para três volumes. Uma vez que Scheler nunca
escreveu os volumes restantes, o subtítulo foi retirado das últimas edições do livro. 221
comum entre as observações puramente filosóficas de um lado, e os estudos
mais político-culturais de outro. Para um autor do status de Scheler, no entanto,
só um exame de princípios fundamentais produz frutos. E assim é menos im-
portante examinar o conteúdo dos ensaios bastante divergentes entre si do que
extrair o cerne conceitual, que produz os resultados essenciais do livro.
No prefácio, Scheler caracteriza a tarefa a que se propôs realizar na parte
central do livro sobre a filosofia da religião. Ele quer expor “os fundamentos
básicos da construção sistemática de uma teologia natural” e, ao mesmo tempo,
estabelecer, pela sua apresentação, uma plataforma, na qual os adeptos de di-
ferentes religiões possam se encontrar e, transcendendo as incompatibilidades
específicas, se reconciliar. O conhecimento natural de Deus, prossegue Scheler,
somente cumprirá esta tarefa “quando libertar o cerne do agostinismo de seu
invólucro histórico e empregar os recursos conceituais da filosofia fenomeno-
lógica para provê-lo com um fundamento novo e profundamente enraizado”.
Fica claro que o autor se colocou dois objetivos: um filosófico, outro pedagó-
gico. Se, para ir diretamente ao ponto principal, sua tentativa de extrair os atos
“naturais” e os conteúdos da fé não foi bem-sucedida, esta crítica é certamente
justificada e temos de admitir a grandeza dessa tentativa e reconhecer o poder
intuitivo com que Scheler imerge no mundo dos fenômenos religiosos. Os seus
equívocos são produto de uma indagação geral que, por sua vez, tem origem
em certa necessidade da nossa situação espiritual [geistige] corrente.
Em primeiro lugar, algumas definições conceituais são essenciais para a
exposição que segue. Scheler distingue religião positiva e religião “natural”, e
entende esta última como o conhecimento naïf de Deus, que qualquer pessoa
dotada de razão pode obter a todo e qualquer momento por meio do ato reli-
gioso. A religião natural ganha a posse de seus objetos de fé através da revelação
natural que, em oposição ao conhecimento espontâneo, é a autorrevelação de
fatos essenciais que o indivíduo pode experimentar no ato religioso natural.
Como tal não se prende ao ser e à doutrina de pessoas específicas, como na
revelação das religiões positivas.
As ambiguidades fatídicas que permeiam todo o livro já são evidentes na
discussão do conceito de religião natural. De um lado, tem-se a impressão de
222 que Scheler pressupõe uma religião natural comum a todas as pessoas, ao passo
que, de outro, ele explica que a “religião natural em todas as religiões” depende
de uma forma históriconatural específica de conceber o mundo, isto é, que a
religião natural, em última instância, tem um caráter diferente no interior de
esferas culturais diferentes. Parece evidente que, no segundo caso, não se pode
mais falar de uma religião natural válida universalmente.
Ainda que por ora se ignore essa vacilação desconcertante, deve-se, no en-
tanto, questionar em que relação o conhecimento natural de Deus se encontra
com o discernimento conquistado pela via metafísica. Em suas investigações
sistemáticas – em si extremamente meritórias – Scheler critica as várias deci-
sões sobre as relações entre a filosofia e a religião encontradas no curso da his-
tória do pensamento ocidental. No processo, ele mesmo chega a uma distinção
nítida entre conhecimento racional metafísico e conhecimento religioso que
pode ser conquistado pelas ações da religião natural (uma distinção que tam-
bém parece muito duvidosa, embora por razões que não podem ser aqui arti-
culadas). De acordo com Scheler, filosofia e religião representam dois campos
de ação completamente independentes e igualmente válidos e que, de modo
algum, podem ser derivados um do outro. A tarefa de entretecer em uma uni-
dade superior o conhecimento que flui dessas duas esferas distintas é destinada
para a “teologia natural” que, desta maneira, entra finalmente em ação.
Com o auxílio da “filosofia fenomenológica”, Scheler deseja, dentre outras
coisas, realçar objetivamente a essência específica do ato religioso natural, bem
como a essência da esfera objetal a ele atribuída e, ao mesmo tempo, desen-
volver leis para aquilo que é correto e falso no domínio religioso. Se a feno-
menologia deve cumprir tudo o que Scheler dela requer, então ela precisa ter
verdadeiros poderes miraculosos e se estará ansioso para saber o que possui de
tão especial. Para dizê-lo de modo conciso, como requer o presente contexto, a
fenomenologia visa à observação de “essências” espirituais e, por conseguinte,
nada tem a ver com a apresentação e explanação da realidade existente. Ela
está muito mais interessada em revelar o incomparável “o quê” [Washeit] –
quer dizer, a essência – de todas as coisas dadas possíveis. Segundo Scheler, a
compreensão de tais essências requer que o filósofo cultive o amor pelo valor
absoluto e pelo ser, rebaixe o seu ego natural e pratique a autodisciplina. Sche-
ler, contudo, não revela se a satisfação de todos estes pré-requisitos (que são 223
de ordem psicológica, embora assegure o contrário) seria de fato uma garan-
tia suficiente de que aquele que os satisfizer chegará realmente à essência das
coisas. A execução do “voo moral” que Scheler reivindica, em todo caso, ainda
não constitui em si um critério suficiente para a verdade do conhecimento que
se conquistou desse modo.
O esforço de destacar uma religião natural (ou seja, uma teologia natural)
pode seguramente ser descrito como bem-sucedido somente se os resultados
produzidos pela “intuição de essências”, que Scheler realiza no domínio da
religião natural e da metafísica, forem absolutamente irrepreensíveis. Mas, tal
como alguns poucos testes já mostraram, esses resultados contradizem em
parte uns aos outros e, em geral, são bastante duvidosos como um todo. Se
em um ponto Scheler expõe, por exemplo, que os grupos das intuições essen-
ciais que surgem entre sujeitos diversos (povos, raças etc.) diferem em caráter
e tem a opinião absolutamente relativista de que todos esses discernimentos
diferentes e ideias sobre o espírito de Deus poderiam ser verdade, um pouco
mais tarde, no entanto, diz que a doutrina da criação do mundo pela vontade
de Deus (resultante do contexto de essências) refuta definitivamente outras
famosas doutrinas metafísicas sobre Deus e o mundo e fala novamente sobre
os “enganos terríveis” de Calvino. De onde surgiram essas escalas de valor e
esses critérios de verdade?
Pergunta-se em vão – ou melhor – é até mesmo possível já se antecipar a
resposta. Antes de apresentá-la, no entanto, recomenda-se examinar de modo
mais preciso algumas intuições de essência no que diz respeito à religião natural,
assim como a relação das pessoas para com a religião em geral. Do conteúdo
destas intuições será possível revelar então sua verdadeira origem com a clareza
desejável e será possível julgar sua suposta evidência e sua objetividade. Se-
gundo Scheler, por exemplo, uma metafísica de valor apropriada precisa adotar
firmemente a doutrina de que todo o infortúnio no mundo está fundado em um
poder concentrado do mal e que, além disso, o “mal” só pode ser um atributo
da essência de uma pessoa, está fundado no poder de uma pessoa má. Assim,
Scheler considera um fato essencial (digno de consideração) que o Teís­mo
traga consigo a crença no pecado original, que a aparição do herético e do sin-
224 gularismo religioso é absurda (!) etc. Com o auxílio da feno­menologia, Scheler
consegue demonstrar com grande facilidade que, para nós contemporâneos,
uma nova religião (quer dizer, na verdade, uma religião diferente da católica)
seria impossível. Dentre outras coisas isto significa, por exemplo, que a meta de
todos os grandes “homines religiosi” é a restauração da religião originária (no
processo da qual, certamente, uma espécie de nova religião possa talvez afinal
surgir); que o santo é a “forma concebível mais elevada do ser”, cuja própria
ideia já o torna necessariamente o “único” (uma conclusão que em si mesma
seguramente não exclui o advento de novos santos); que a humanidade en-
quanto espécie está envelhecendo e que, por conseguinte, a humanidade mais
velha tem nos dias atuais a obrigação de manter a crença naquilo que uma vez
foi experimentado como realidade transcendente pela humanidade mais nova
etc. Entrem para uma igreja (este é mais ou menos o tom desses argumentos),
pois qualquer outra ação é “essencialmente impossível”, ou então “absurda”.
Basta de exemplos – o segredo da fenomenologia de Scheler está claro como
o dia. Ele consiste, em poucas palavras, no fato de que, em um primeiro mo-
mento, renunciando à própria avaliação, Scheler visa capturar a essência de
uma coisa particular mais ou menos no espaço vazio; no outro momento, no
entanto, passa a descrever as coisas como são percebidas por um espectador
de um ponto de vista muito específico que naturalmente impõe uma apreciação
particular. Dependendo da sua necessidade, ele é ora relativista, ora – católico.
Se ao menos admitisse abertamente seu catolicismo por toda parte! Mas isto
é justamente o que ele não faz. Em geral é precisamente no momento em que
ele abandona o relativismo – quando afirma, por exemplo, que a ausência de
uma “autoridade eclesiástica” infalível em matéria de salvação é absurda em
um mundo criado e guiado por um Deus todo-benevolente e todo-verdadeiro
– que mantém um ponto de vista católico pré-concebido, e passa seus discer-
nimentos conquistados através de suas perspectivas como necessidades essen-
ciais, usando-as então como base para o catolicismo.
Um Münchhausen que puxa a si mesmo pelos cabelos para fora d’água!3
Como relativista malgré lui, ele concorda que todos os povos tenham um ca-

3 Karl Friedrich Hieronymus Freiherr von Münchhausen (1720-97), um raconteur alemão


conhecido como o “barão mentiroso“ pelas histórias sobre suas façanhas como soldado, → 225
minho próprio de reconhecimento de Deus, presta homenagem ao pluralismo
e assim por diante. Como católico, ele não aceita uma outra forma de reconhe-
cimento de Deus exceto o catolicismo – que certamente não pode ser chamado
pelo seu nome próprio, mas é uma necessidade essencial pura. É de admirar a
destreza com a qual esse piloto, tão familiarizado com todos os canais da feno-
menologia, evita inúmeros obstáculos perigosos. No entanto, esta admiração
não é capaz de dissipar o mal-estar do qual infalivelmente se é acometido ao
longo desse itinerário errático do espírito crítico – um curso em ziguezague
que, a propósito, já se manifesta no seu próprio estilo.
Não é necessário, por assim dizer, gastar muitas palavras com a arbitrarie-
dade de um grande número das assim denominadas “intuições de essências”.
Secretamente Scheler transforma opiniões subjetivamente determinadas em
verdades objetivas que, supostamente, estão fundadas no ser das próprias coi-
sas dadas. Pouco importa se o seu discernimento neste ponto é mais profundo
e naquele mais superficial do que o de outros escritores, pois, em todo caso, é a
essência das coisas que importa. Além disso, essa arbitrariedade muitas vezes
se degenera em uma escolástica vazia, quando Scheler ocasionalmente designa
axiomas que não são necessariamente válidos nem verificáveis em sua gene-
ralidade (assim, por exemplo, o axioma de que o conhecimento está sempre
fundado no amor, ou de que todo espírito finito crê em um Deus ou em um
ídolo) como “axiomas essenciais” e, a seguir, os utiliza para derivar outros, que
se pode ou não aceitar, dependendo da disposição de cada um.
E como isso se comporta afinal com a fenomenologia da religião natural?
Se Scheler, o relativista, tem a palavra, então há uma multiplicidade de religiões
naturais. Mas se a palavra está com Scheler, o católico, então a religião natural
não é senão um catolicismo acanhado, isto é, um teísmo que, em qualquer mo-
mento, pode facilmente emergir como catolicismo. Ao criar este hermafrodita

→ caçador e esportista em países estrangeiros. Uma seleção dessas histórias, a ele atribuídas e
publicadas entre 1781-83 sob o título Vademecum für lustige Leute [Vademecum para gente
alegre], formou a base para o volume anônimo, posteriormente publicado em Londres, em
1785. Esta coleção, bem como as outras edições, resultou a edição britânica canônica de 1793
226 intitulada The Adventures of Baron Münchhausen.
da religião natural, Scheler realmente sentou-se entre duas cadeiras. Por um
lado, ele ofende os católicos, porque através dela relativiza concepções cató-
licas e fundamenta em uma espécie de base fenomenológica as verdades de
salvação concretas da igreja, que de fato destroem seu significado dogmático.4
Sem dúvida, a religião natural é doutrina eclesiástica, mas, precisamente por
sê-lo, os seus conteúdos não podem ser percebidos livres de pressuposições
no espaço vazio. Por outro lado, Scheler ofende os não-católicos porque eles
muito rapidamente detectam o católico dissimulado atrás das intuições de
essência e tornam-se desconfiados dos conhecimentos, cuja fonte é delibe-
radamente mantida tão oculta. Teria sido melhor se Scheler tivesse revelado
claramente o seu ponto de vista ou então cumprido realmente o seu projeto
imparcial. Contudo, aquele que, como ele, deseja satisfazer a todos, no final
não satisfaz a ninguém.
Enquanto a tarefa filosófica permanecer não-resolvida, a intenção pedagó-
gica também não poderá ser alcançada. Em relação com o que se disse acima,
dificilmente se pode esperar que devotos de diferentes confissões de fé se en-
contrem – ou até se reconciliem – sobre a ponte de uma religião natural cons-
truída por Scheler. Parece igualmente questionável (e os próprios católicos
serão os primeiros a contestar) – se é possível chegar ao catolicismo pela porta
da fenomenologia – quer dizer, se a intuição de essência pode de fato ter um
efeito missionário. A fenomenologia é – como demonstra de modo não me-
nos importante o exemplo de Scheler – simultaneamente um “pau para toda
obra”, que pode ser usada tanto pelos budistas quanto pelos protestantes ou
católicos. Ao empregar – e certamente também fazer mau uso – da fenome-
nologia como uma apresentação para a concepção de mundo católica, Scheler
prova ser um eclético real, pois somente um eclético em assuntos religiosos
iria querer recrutar o auxílio da observação fenomenológica para forçar nesta

4 Um artigo do dr. Otto Gründler intitulado “Die Bedeutung der Phänomenologie für das Geis-
tesleben” [O significado da fenomenologia para a vida espiritual], que apareceu no caderno de
outubro de 1921 do jornal Hochland, demonstra que, em alguns círculos católicos, ainda não
se está ciente do significado limitado da filosofia fenomenológica ou do seu sentido atual. 227
direção ao mesmo tempo os discernimentos metafísicos e as verdades reli-
giosas de salvação.
Esta é uma prática na qual se perde a confiança naïf, bem como a impar-
cialidade filosófica, restando apenas um produto artificial que, na melhor das
hipóteses, satisfaz apenas o retardatário educado. Quem dentre nós não o co-
nhece – aquele intelectual contemporâneo que, incapaz de permanecer por
mais tempo no vácuo da falta de crença, busca refúgio em qualquer lugar ba-
seado em um ato romântico do desejo? Para esse tipo de pessoa, talvez, Scheler
aplaine o caminho ao catolicismo. Mas pessoas desse tipo que utilizam tais
caminhos sinuosos da fraqueza (embora seja uma fraqueza muito compreen-
sível), certamente não são as melhores, uma vez que ambicionam a satisfação
prematura de sua longa nostalgia ofegante ao invés de perseverar bravamente
no vácuo e… esperar. De resto, deve-se avaliar como extremamente positivo
o fato de que em seu mais recente livro Scheler procura, por sua vez, fortalecer
e propagar aquela atitude espiritual/intelectual contemplativa própria da es-
sência do catolicismo. Esta atitude funciona como um contrapeso imperativo
contra o vácuo industrial e contra um ativismo, que considera o movimento
como um fim em si.
A insustentabilidade da posição filosófica básica de Scheler não contradiz
de modo algum o significado das suas produções filosóficas nos outros do-
mínios do pensamento por ele investigados. Este intelecto, dotado do mais
brilhante talento, enquanto psicólogo revela uma perspicácia que, nos dias de
hoje, é sem dúvida rara entre os pensadores. O seu ensaio “Reue und Wie-
dergeburt” [Arrependimento e renascimento], por exemplo – incluído em
seu novo livro – não se levando em conta algumas passagens contestáveis, é
uma obra-prima da análise psicológica em grande medida de essencialidades
espirituais [geistige] – um tipo de análise que é uma das mais belas flores que
desabrocharam no ethos cristão. Ao desdobrar as especificidades de certas
construções espirituais [geistige] a partir de uma perspectiva católica, Sche-
ler esclarece muitas questões e, diga-se de passagem, fornece provavelmente
à vida católica muito mais energia do que pelas suas construções no domí-
nio das religiões naturais. Além disso, a sua habilidade de abarcar e dissecar
228 variedades espirituais [geistige] torna-o altamente qualificado para descobrir
conexões sociológicas ocultas. E assim não é de surpreender que, dentre os
resultados mais valiosos do livro, encontram-se as numerosas declarações
sobre as relações recíprocas sociologicamente necessárias, de um lado, entre
as denominações religiosas consideradas como uma série de sistemas histó-
rico-filosóficos e, de outro, as condições sociais. Em geral, as manifestações
críticas de Scheler contra os sistemas do idealismo formal e contra a filosofia
da religião de Schleiermacher5 (que se origina do esforço de Scheler de com-
preender o ser material das coisas), poderiam ser aprovadas se, em razão da
fragilidade de sua concepção nuclear, estiverem fundidas com consistência e
suficientemente baseadas.
A figura de Scheler iluminada nesta obra com todos os seus fracassos e mé-
ritos é, de certo modo, característica do nosso tempo. No presente, a descon-
fiança sobre a alienação de Deus se casa com um empobrecimento religioso
que é muitas vezes maior do que em qualquer outra época. As pessoas atual-
mente são impelidas a encontrar uma abertura para a crença religiosa, mas, em
geral, estão aptas a alcançar este objetivo somente através de um pensamento
que manifesta muito mais um desejo de crer do que a crença em si. Desenraiza-
dos como ainda somos, dificilmente podemos escapar do relativismo e, assim,
perambulamos incansavelmente de uma manifestação a outra, de uma cultura
a outra, submergindo – na falta de um ser próprio – no ser de um fenômeno
qualquer. Scheler é também um desses errantes. Ele é animado por uma incli-
nação ilimitada para a essência de todo o ser, e se é incapaz de alcançar o ser
em si desta essência não é uma falha exclusiva dele; antes está vinculada com
a responsabilidade de uma época carente de sentido absoluto. Isto também faz
com que procure além da fé positiva uma religião natural que, para aquele que
se aproxime dela a partir da posição do puro conhecimento, só exista como
uma ideia irrealizável no âmbito do material. Em resumo, a fenomenologia de
Scheler ainda permanece uma emanação de espiritualidade [Geistigkeit] rela-
tivista, um método que lhe dá a possibilidade de escapar constantemente do
princípio católico de modo imperceptível e escorregar para distâncias infini-
tas, só para desta amplitude assustadora buscar outra vez refúgio e, de modo

5 Vom Ewigen im Menschen, op. cit., pp. 279-85. 229


novamente imperceptível, na segurança do catolicismo. Em outras palavras: a
falta de princípios de Scheler se deve, em última instância, à condição espiritual
de uma época que só agora está começando a pressentir tudo o que lhe falta
e que – atualmente mais no fim do que no começo – cintila nas milhares de
cores refratárias da transição.

230
A crise da ciência
Sobre os escritos fundamentais de Max Weber e Ernst Troeltsch

A crise das ciências – que hoje já se tornou um tópico de discussão trivial – é


mais visível nas ciências empíricas que, tais como a história e a sociologia, se
dedicam à investigação dos contextos espirituais [geistige] e à explanação da
ação humana plena de sentido.1 Ao longo do último século, no decorrer do seu
desenvolvimento cada vez mais amplo, mostrou-se que a realização da preten-
são de validade universal (que, como ciências, tais disciplinas necessitam de-
fender para suas descobertas) aparentemente oferece dificuldades invencíveis.

1 A versão original deste ensaio no Frankfurter Zeitung, de 8 e 22 de março de 1923, iniciava


com a seguinte observação editorial, retirada por ocasião da republicação do texto: “O en-
saio abaixo já estava concluído, quando chegou a dolorosa notícia do falecimento de Ernst
Troeltsch. A perda de Troeltsch priva a ciência alemã de um estudioso armado de todos
os conhecimentos teológicos, filosóficos e históricos desta época. Ele foi um homem que,
graças à afortunada combinação de pesquisa e talento criativo, tinha a rara habilidade de
compreender o amplo contexto da história intelectual da Europa sem se perder no excesso
do material. Ele se vai sem saber que a descoberta científica do seu intelecto compreensivo
– um espírito que permaneceu vivo e estimulante até o derradeiro fim – de modo algum se
reduziu pela crítica acerca do seu ponto de vista, apresentada a seguir”. 231
Se, por exemplo, elas tentam manter a sua objetividade limitando-se exclusi-
vamente à aquisição de conhecimentos sem valor, caem ou em um formalismo
conceitual desprovido de conteúdo ou na ilimitada infinidade de afirmações
intermináveis de fatos e, por fim, se enredam em valorações. Mas, se de iní-
cio abordam o seu material em termos valorativos, elas sucumbem logo no
começo a uma maneira de observar as coisas que as ciências contemporâneas
denominam “subjetiva”, uma vez que estes mesmos valores não podem ser
fundados científica e objetivamente. As consequências deste dilema são pal-
páveis: aglomeração de material absurda, de um lado, e relativismo inevitável,
de outro. Estas são suficientes para explicar a “aversão à ciência” pela melhor
parte da juventude acadêmica dos dias de hoje, que exige conceitos que sejam
realistas, uma grande síntese das imagens espirituais [geistige], mas, sobretudo,
uma resposta para a questão “para quê”, livre de todo e qualquer ceticismo.
Esses membros das novas gerações estão desapontados com o fato de que
exatamente as ciências que tratam do ser e das atividades espirituais [geistige]
são incapazes de satisfazer a sua demanda. Como resultado, a revolta contra a
especialização que lhes é imposta e contra a coação do pensamento relativista
se eleva muitas vezes até o protesto passional contra essas mesmas ciências.
Neste processo, no entanto, esses jovens se esquecem com muita frequência de
que a ciência não é capaz de satisfazer as suas exigências e que, além disso, as
próprias ciências são somente a expressão parcial da situação espiritual [geis-
tige] total, na qual nos encontramos nos dias de hoje.

Max Weber e Ernst Troeltsch, ambos afetados pela angústia moral da geração
mais nova, ocuparam-se intensamente desta crise ameaçadora, levantando
de novo a questão sobre as tarefas e a raison d’être de sua ciência, que se en-
contra na posição de acusada. No primeiro volume de sua – recentemente
publicada – nova obra Der Historismus und seine Probleme [O historismo
e seus problemas],2 que corresponde ao terceiro volume das Gesammelte
Schriften [Obras reunidas], Troeltsch, que será o foco da primeira parte de

2 Ernst Troeltsch, Der Historismus und seine Probleme [O historismo e seus problemas], in
232 Gesammelte Schriften [Obras reunidas], volume 3. Tübingen: Mohr, 1922.
nossa discussão, assume uma espécie de redenção da honra do pensamento
histórico e da filosofia da história. Isto é, ele trata de eliminar o caráter dúbio
da concepção de mundo do historismo (de acordo com a qual todas as ins-
tituições e os valores são deduzidos de um desenvolvimento histórico – este,
todavia, pode ser concebido) e de proteger este mesmo ponto de vista historista
da suspeita de uma geração jovem que se tornou a-histórica. Para este fim, ele
desenvolve a sua própria teoria do sentido e da essência da filosofia da história
que, aos seus olhos, parece imune a qualquer tipo de ataque. Para elucidar a
sua posição, Troeltsch liga à sua teoria uma apresentação ampla dos sistemas
da filosofia da história de Hegel e Ranke até Croce e Bergson. Este primeiro
panorama crítico da história do próprio historismo é marcado por um forte
senso de direção e testemunha a habilidade magistral – muitas vezes compro-
vada – de Troeltsch de organizar grandes quantidades de material e, portanto,
confirma a sua arte de distinguir aquilo que é essencial (o seu tratado sobre
a dialética marxista é um exemplo). O livro, que apresenta uma forma muito
extensa, foi concebido como preparação e fundação para uma filosofia material
da história, que Troeltsch esperava completar em poucos anos.
Embora fosse muito importante fazer uma apreciação de toda a obra de
Troeltsch – particularmente a sua análise histórica, que não pode ser facil-
mente sobrestimada – temos de limitar a nossa discussão aqui à tentativa de
solucionar o problema fundamental do pensamento histórico e, com isso, a
sua tomada de posição principal em relação à crise da ciência. Um exame de-
talhado das categorias fundamentais do objeto histórico e do desenvolvimento
histórico – categorias constitutivas de toda observação histórica – conduz
Troeltsch a fazer a afirmação (que ele apresenta de uma maneira totalmente
irrepreensível) de que a vida histórica desafia a assimilação através das cate-
gorias das ciências naturais. Ele continua então a desarmar os argumentos que
insistem na imbricação necessária do historismo e do relativismo. É necessário
reconhecer que Troeltsch realmente leva o problema adiante até um ponto de-
cisivo. Ele demonstra acertadamente que o processo histórico universal – cuja
compreensão possibilita primeiramente a interpretação do evento histórico
individual – não pode ser percebido em seu estado absoluto de modo pura-
mente contemplativo. Assim, a compreensão deste processo – tal como de 233
todo contexto de sentido em geral – está em princípio baseada em convicções
de valores que, por sua vez, dependem da posição particular do observador.
Uma vez que o processo histórico universal se estende até o presente e, para
além dele, até o futuro, a sua construção pressupõe sempre decisões de valo-
res da pessoa localizada no presente e orientada para o futuro. A composição
deste processo está – para utilizar a expressão de Troeltsch – necessariamente
ligada à “síntese cultural contemporânea”.3 Mas de onde extrair esses critérios
de valor que constituem essa “síntese cultural”? Troeltsch, que simplesmente
não é capaz de conceber esses critérios como absolutos atemporais, se volta
duramente contra o “misticismo fantástico” de uma geração mais jovem, que
não quer senão escapar da história, buscando abrigo em “dogmas absolutos”
e “autoridades religiosas”. Troeltsch se vê forçado à conclusão circular de que
a “síntese cultural” da observação deveria brotar do mesmo processo histórico,
cuja explanação ela supostamente deve auxiliar. No entanto, apenas com uma
“autorreflexão historicocientífica” não se chega longe. Para se descobrir real-
mente os critérios buscados deve haver, portanto, uma “intuição” sustentada
por essa autorreflexão – uma intuição que irrompe das profundezas de uma
pessoa que está preparada para tomar decisões e que a habilita a estabelecer,
em primeiro lugar, objetivos contemporâneos. A criação da “síntese cultural”
requer pois o “risco” da intuição, um risco que Troeltsch repetidamente pre-
tende justificar recorrendo a Kierkegaard. A doutrina do “salto” de Kierkegaard,
segundo Troeltsch, significa precisamente que qualquer coisa depende de um
salto decisivo “pelo qual nos movemos do passado ao futuro por nossa própria
decisão e responsabilidade”.4 Ele não se abstém de acrescentar, contudo, que
o produto da intuição somente possui “necessidade objetiva interior” quando
a pessoa que salta se lança da plataforma do conhecimento histórico seguro.
Segundo Troeltsch, onde quer que isto ocorra, os critérios de valor ganham
no processo adotado – apesar de sua determinação temporal – um significado
metafísico que os liberta do cerco do pensamento relativista. “A criação de
tais critérios é dissociada de um mero subjetivismo […] pela viva e profunda

3 Idem, ibidem, pp. 164ss.


234 4 Idem, ibidem, p. 178.
empatia com a totalidade histórica, da qual estes critérios saem, e pela certeza
de que desta empatia pode-se alcançar um traço característico interior de seu
desenvolvimento, um movimento na vida interior do universo ou de Deus.”5
Para fundamentar esta teoria, Troeltsch (recorrendo a Leibniz e Malebranche)
assume que, enquanto mônada, o espírito finito participa do infinito e, assim,
é capaz de descobrir a cada momento um sentido da história universal, que
oportunamente precisaria ser compreendido como uma expressão da razão
do mundo. Assim, em resumo, Troeltsch procura resolver o nosso problema
renunciando à validade geral da “síntese cultural contemporânea”, não obs-
tante acredite poder conceder-lhe, com a ajuda da interpretação metafísica, um
status elevado acima do meramente relativo. – Deve-se mencionar ainda que,
prosseguindo as suas investigações, Troeltsch chega também a uma delimita-
ção do material histórico que se depreende de suas convicções básicas. Uma
vez que, segundo ele, a história só pode ser considerada na medida em que ela
manifesta sentidos coerentes que têm significado para o presente, o tema da
história universal é quase automaticamente limitado ao desenvolvimento da
cultura da Europa mediterrânea. Além disso, com a finalidade de se desem-
baraçar de qualquer outro lastro de material, Troeltsch defende, sobretudo, o
cultivo de uma história daqueles poderes espirituais [geistige] fundamentais,
que continuam a ser ativos no presente, uma vez que para compreender as
condições políticas, econômicas e legais da situação presente não é necessário
derivá-las do passado.
Essas poucas observações já deixam entrever que Troeltsch viu uma série
de erros, dos quais a lógica formal da história e a filosofia da história frequen­
temente foram vítimas. Eles, portanto, testemunham adequadamente o co-
nhecimento seguro de Troeltsch sobre as antinomias do pensamento histó-
rico. Aqui se trata apenas de saber se a superação do relativismo alegada por
Troeltsch pode atualmente resistir de fato à verificação. Se isto se confirma,
então a crise da ciência estaria solucionada e o “rancor da ciência” da gera-
ção mais nova se tornaria infundado. Troeltsch nos ensina que o caminho
para escapar do relativismo é se apoderar no salto da intuição, dos critérios

5 Idem, ibidem, p. 168. 235


necessários para a construção do processo histórico; este salto desloca aquele
que o realiza para o coração da “vitalidade criativa da vontade divina”.6 Este
ponto de vista certamente confere um brilho metafísico para algumas das de-
cisões próprias de valor. Mas, do ponto de vista puramente científico e objetivo,
como é apropriado aqui, ele de modo algum exclui a existência simultânea de
outros conteúdos de valor que também foram conquistados intuitivamente
pela experiência histórica e por isso podem todos juntos igualmente reivindi-
car um mesmo significado suprarrelativo. Pode-se observar que o relativismo
que necessariamente acompanha a história não sofreu nenhuma alteração,
embora Troeltsch tente eliminá-lo através de sua interpretação. Muito mais,
tudo permanece exatamente como já era antes.
E por quê? Porque Troeltsch – e este é o ponto crucial – na verdade ja-
mais dá o salto. Kierkegaard, a sua testemunha principal, dá realmente o salto;
mas não como Troeltsch, querendo assegurar a “necessidade objetiva inte-
rior” de sua intuição através da “autorreflexão historicocientífica”. Ao contrário,
Kierkegaard decide (precisamente porque é absurdo) aceitar o paradoxo de
que o eterno em algum ponto entrou no tempo e, assim, atualmente salta para
dentro do absoluto. Ao fazer isso, no entanto, ele encontrou o ponto arquime-
diano fora do processo histórico, e nada mais poderia levá-lo a fazer aquilo que
Troeltsch faz – isto é, reintroduzir novamente na história o absoluto alcançado
para, deste modo, relativizá-lo de novo. Quão equivocadamente Troeltsch en-
tende Kierkegaard a esse respeito! “Se Kierkegaard […] ao dar este salto”, diz
ele com certo ar de superioridade, “se afunda em um cristianismo ascético,
então, ao lado de todo o resto, existe claramente aqui uma necessidade instin-
tiva de autoridades absolutas.”7 Uma necessidade instintiva! Como se Kierke-
gaard tivesse arriscado o salto por necessidade instintiva e não por desespero,
como se aquilo que tivesse de fazer fosse só dar um pequeno salto a fim de
retomar – com a ajuda dos critérios de valor ditosamente alcançados – aquela
mesma especulação historicofilosófica, da qual ele queria escapar por meio do
seu salto. Mas Troeltsch deseja ambas as coisas: saltar para fora do relativismo

6 Idem, ibidem, p. 184.


236 7 Idem, ibidem, pp. 178-79.
e, ao mesmo tempo, como um cientista, permanecer no contingente e fazer
história. Ele não vê que, ao entrar em relação com o absoluto, o historicismo
torna-se de imediato impossível; e isto, inversamente, onde reina o historicismo,
o acesso ao absoluto é inevitavelmente cortado. Extremamente aflito pelas acu-
sações da geração mais nova contra a ciência para admitir sem hesitações que
o pensamento histórico, a partir de si, não pode jamais forçar o absoluto em
sua esfera de influência, Troeltsch, todavia, tenta conciliar o inconciliável. No
processo, ele se enreda de tal modo em seu círculo ilusório, cuja dissolução ilu-
sória, como era de supor, deve conduzi-lo para um compromisso desagradável.
É, pois, um compromisso tomar conteúdos de valor e sínteses culturais que
foram removidos da história e incrustados na história e tocá-los a seguir com
a maquiagem de um significado absoluto, somente com a finalidade de uma
aparência mais digna. As interpretações metafísicas de Troeltsch demonstram
tão-somente que o observador da história como tal não pode fugir do relati-
vismo e precisa ter muita cautela para não confundir o salto da intuição com
o salto no absoluto. A consequência natural do relativismo da síntese cultural
de Troeltsch é também o relativismo da sua escolha de matéria.

Max Weber – que segundo a caracterização perfeita de Troeltsch é “uma das


mais poderosas figuras alemãs e um dos intelectuais mais completos e, ao
mesmo tempo, metodologicamente mais rigorosos do período”,8 se recu-
sou bruscamente a firmar compromissos do tipo que Troeltsch assumiu. Os
seus ensaios sobre a teoria da ciência foram agora finalmente reunidos em
uma coleção intitulada Gesammelte Aufsätze zur Wissenschaftslehre [Ensaios
reunidos sobre a teoria da ciência],9 que inclui a conferência de Munique

8 Idem, ibidem, p. 565. Cf. Igualmente o ensaio de Troeltsch, “Max Weber” (1920), na coleção
de seus ensaios e conferências editado por Hans Baron. Deutscher Geist und Westeuropa
[Espírito alemão e Europa ocidental]. Tübingen: Mohr, 1925, pp. 247-52.
9 Max Weber, Gesammelte Aufsätze zur Wissenschaftslehre [Ensaios reunidos para a teoria
científica]. Editado por Johannes Winckelmann. Tübingen: Mohr, 1922. 237
“Wissenschaft als Beruf ” [Ciência como vocação],10 que desencadeou a assim
chamada “disputa da ciência”. Esses textos expõem a atitude religiosa negativa
de Weber em todo o seu caráter demoníaco. Weber experienciou tão intensa-
mente quanto qualquer um o sofrimento da geração mais nova pelo “desencan-
tamento do mundo” provocado pela ciência, mas ele também sabe que o anseio
da geração mais nova pelo absoluto não pode ser satisfeito pela ciência mesma.
De acordo com o julgamento de Weber – que nesse sentido é mais profundo
que aquele de Troeltsch, porque é mais radical – o salto para o absoluto é um
salto sobre o abismo em direção ao campo da fé e, portanto, conduz definitiva-
mente para fora do campo da ciência. Weber – um Kierkegaard com premissas
completamente invertidas – expõe sem rodeios que “a tensão entre a esfera de
valor da ‘ciência’ e aquela da salvação religiosa é inconciliável”.11 Se, no entanto,
da perspectiva da ciência, todas as decisões de valor e todos os objetivos de
nossas ações são necessariamente relativos, então, de acordo com Weber, se a
ciência deseja corresponder ao seu ideal de objetividade, precisa eliminar toda
valoração e se limitar estritamente a demonstrar as conexões entre estados de
coisas e fatos, revelar as relações estruturais internas dos bens culturais e as-
sim por diante. Para ele isto é uma questão ligada à “probidade intelectual” e
compele-o a rejeitar toda “profecia pedante” cientificamente adornada, que
pretende entregar aos auditórios aquilo que “somente um profeta ou um sal-
vador” é capaz de proclamar.
O procedimento que Weber busca para alcançar uma compreensão obje-
tiva e não-valorativa do evento significativo só pode ser aqui esboçado em li-
nhas gerais e as suas dificuldades apenas tocadas levemente. De antemão, ele
assume que a concatenação causal da sequência infinita de eventos no interior
do mundo espiritual [geistige] – uma concatenação, aliás, de cuja evidência
Troeltsch duvida por boas razões – jamais poderá ser inteiramente elucidada.

10 Max Weber, “Wissenschaft als Beruf ” [Ciência como vocação] (1919), em Gesammelte Aufsätze
zur Wissenschaftslehre [Ensaios reunidos para a teoria científica], pp. 582-613. [ed. bras.: Max
Weber, “A ciência como vocação”, Ciência e política – duas vocações. Tradução de Leonidas
Hegenberg e Octany Silveira da Mota. São Paulo: Cultrix, s.d., 4ª edição, pp. 17-52.
238 11 Idem, p. 611.
Por isso o alcance da compreensão deve se limitar somente a certas partes se-
letas do inesgotável contexto de experiência. Para este fim, Weber simplifica
e esquematiza o contexto intrincado que está examinando (por exemplo, o
“cristianismo” ou o “capitalismo”) até o ponto em que, pela ênfase unilateral
de um ponto de vista qualquer, ele é capaz de obter uma espécie de imagem
conceitual irreal em si não-contraditória – o assim denominado tipo ideal
(como, por exemplo, o “tipo ideal” do “capitalismo”). Este tipo ideal, graças
à sua não-ambiguidade e completa inteligibilidade, pode servir como ponto
de partida para uma compreensão da realidade. O número dos constructos
típico-ideais é tão ilimitado quanto o número de valores, em relação aos quais
a realidade a ser examinada pode ser considerada. Em geral, estes constructos
típico-ideais assumem uma forma que é “racional-fim” [Zweckrational], quer
dizer, eles expressam como uma ação ocorreria se ela perseguisse um propósito
específico (por exemplo, uma vantagem econômica) livre de influência afetiva,
puramente racional. Mas também ali onde este não é o caso, os constructos
típico-ideais repousam sempre sobre um tal “se”, uma vez que para apresentar
qualquer estado de coisas típico-ideal eles precisam necessariamente impor
primeiro certas condições à variedade de experiências. Como se procede pois
a explicação da própria realidade com o auxílio desses constructos ideais? De
acordo com Weber, chega-se à sua compreensão objetiva comparando o con-
texto particular de experiência com o constructo típico-ideal por ele abstraído
e determinando até que ponto os dois correspondem ou diferem entre si. E
assim, pelo uso constante dos conceitos típico-ideais inequívocos, desvenda-se
cada vez mais o contexto particular – que, certamente, não é nada mais do
que uma aproximação. Uma consequência direta da posição básica de Weber
é que o seu tratamento do material tende a ser primariamente sociológico,
o qual, tal como Troeltsch observa, “carece do modelo de uma filosofia da
história e de uma interpretação do sentido desse processo”.12 Esta renúncia
eticamente fundamentada de grandes sínteses históricas, que têm origem no
discernimento de Weber em relação à sua relatividade de valor, naturalmente
não o impede de construir certos desenvolvimentos históricos como tipos

12 Troeltsch, Der Historismus und seine Probleme [O historismo e seus problemas], p. 567. 239
ideais (conferir o seu estudo “Die protestantische Ethik und der Geist des
Kapitalismus” [A ética protestante e o espírito do capitalismo], de 1901.13 Con-
tudo, Weber jamais deixou de chamar a atenção para a confusão desses tipos
ideais com a realidade. Finalmente, no que diz respeito ao sentido da ciência,
Weber lhe atribui um papel inteiramente servil. Ela deve facilitar o domínio
tecnológico da vida, identificar as melhores estratégias para a perseguição de
variadas metas e, sobretudo, reconduzir toda decisão de valor pessoal para a
posição ideológica da qual surge, para assim forçar a pessoa engajada nesta
valoração a prestar contas de suas ações. É possível reconhecer facilmente que
este posicionamento da ciência na totalidade da vida resulta simultaneamente
em certa delimitação da infinitude material.
Assim tal como em relação a Troeltsch, deve-se também perguntar se Weber
consegue tornar o relativismo dominante e preencher a pretensão de objetivi-
dade da ciência. Certamente se pode admitir que, de acordo com suas inten-
ções, ele se abstém de partir de julgamentos de valor pessoais e seleciona tanto
o material de experiência quanto os tipos ideais somente em relação a valores.
E, no entanto, se ele emprega os tipos ideais, que são propriamente construc-
tos muito questionáveis em razão de seu caráter em grande medida empírico,
na maneira acima descrita para investigar os contextos de experiência, então
mais cedo ou mais tarde mostra-se que Weber de fato é incapaz de realizar a
objetividade buscada. Uma vez que a essência de todas as interconexões que
constituem uma realidade dada é simplesmente inesgotável, Weber teria de
adicionar com determinação construtiva uma após a outra, infinitamente, para
alcançar de modo objetivo o caso típico-ideal que torna acessível a compreen-
são da realidade. É claro que a realização plena deste processo de determinação
é em princípio impossível, pois em algum ponto se romperá inevitavelmente.
O ponto no qual ele chega a uma paralisação (quer dizer, onde o ponto espec-
tral “se” dos constructos típico-ideais colide com o “é” de uma expressão de

13 O ensaio foi publicado primeiramente em Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpolitik 20


[Arquivo para ciência social e política social], número 1, 1904, pp. 1-54. [ed. bras.: Max Weber,
A ética protestante e o espírito do capitalismo. Tradução de José Marcos Mariani de Macedo.
240 São Paulo: Companhia das Letras, 2004].
realidade), depende inteiramente de como o contexto experimental examinado
é compreendido e julgado. Em outras palavras, apesar de todas as precauções,
as valorações perpetuamente adiadas ao final se insinuam novamente de modo
furtivo; é impossível resvalar continuamente por elas e, ao mesmo tempo, por
pontos de vista subjetivamente determinados. Assim, o método de Weber se
assemelha a uma caçada inconclusa no reino das trevas da empiria, na qual
ele é tanto o perseguido quanto o perseguidor; pelas costas ele é atacado pelas
apreciações, as quais nega quando olha para elas cara a cara, ao passo que a
objetividade, da qual pretende se apoderar, foge para o infinito diante dos seus
olhos; e precisa fugir, pois, se ele a capturasse, ganharia – ainda que somente
em sua imagem refletida, por assim dizer, em sua forma vazia – o próprio ab-
soluto. Essas incursões, empreendidas com arrebatamento sem igual, são um
drama duplamente trágico – não só porque em sua fuga inútil e busca inútil
conduzem ao infinito, mas também porque ao renunciarem a dar sentido ao
evento, seu próprio sentido torna-se, em última instância, igualmente pro-
blemático. Weber, sem dúvida, coloca as ciências explicitamente a serviço da
pessoa deliberativa [Sich-Entscheidende] que, com sua ajuda, deverá ser capaz
de compreender a origem e as consequências de suas ações. A questão, no en-
tanto, é se esse tal desejo ilimitado de compreensão (que finalmente também
torna a delimitação do material uma questão arbitrária) impede a possibili-
dade de tomar uma decisão. Esta seria exclusivamente a vingança secreta das
apreciações por terem sido heroicamente sacrificadas em favor da ilusão de
uma objetividade, que, afinal, não pode ser alcançada.

Em oposição a Weber, Troeltsch está correto quando liga a construção de


contextos de significado a valorações. Contrariamente ao que ele acredita, no
entanto, no âmbito das descobertas científicas tais valorações não podem ad-
mitir cruzar a linha do relativo ao absoluto. Weber afirma com razão (contra-
riamente a Troeltsch) a relatividade de todas as decisões de valor da perspectiva
da ciência; e se engana somente em sua crença de que poderia dispensar tais
decisões. O resultado é que, as ciências, pelo fato de que aspiram compreender
o mundo de experiência espiritual [geistige], necessariamente sucumbem ao
relativismo. As dificuldades intransponíveis com as quais o projeto científico 241
se depara (para tocar rapidamente também neste aspecto) podem ser explica-
das pela inadequação das categorias científicas específicas ao material do ser
espiritual [geistige] e da atividade. Mas enquanto as ciências que se dedicam a
este material se constituem como ciências puras, elas não podem ser diferentes
do que são e seria um esforço inteiramente inútil querer limitá-las a partir do
interior. A “crise da ciência”, provocada pelo despertar da consciência da ge-
ração mais nova, não pode ser resolvida pela própria ciência ou com o auxílio
da especulação filosófica. A superação desta crise requer muito mais o afasta-
mento real de toda a situação espiritual [geistige] na qual as ciências, tais como
as aqui discutidas, são possíveis em tal magnitude. Eliminação do pensamento
relativista, bloqueio da perspectiva contra os infinitos ilimitados – tudo isto
está ligado a uma transformação real de toda a essência, e talvez nem mesmo
a ela somente. Após a entrada no absoluto causado talvez por semelhante
transformação, como então a atividade espiritual [geistige] será representada
e quais limites as “ciências” dedicadas a esta compreensão experimentarão, são
questões que ultrapassam as intenções e possibilidades deste ensaio.

242
Georg Simmel

Simmel já foi frequentemente caracterizado como filósofo da cultura. Poder-


se-ia também denominá-lo de filósofo da alma, filósofo do individualismo ou
da sociedade. Todas estas definições são, no entanto, imprecisas e unilaterais e
absolutamente insuficientes para delimitar mesmo que aproximadamente seu
campo de reflexão. Qual é então propriamente a matéria de seu pensamento?
Uma série de tarefas e de problemas básicos deve ser excluída, de antemão,
do âmbito das considerações de Simmel, sobre as quais o filósofo jamais se
preo­cupou em refletir. Com exceção de seus esforços intelectuais dos últimos
anos, sempre foi estranho a seu pensamento a exigência de compreender o
mundo partindo de uma ideia metafísica elevada, à maneira de Espinoza, dos
idealistas alemães ou de Schopenhauer. Nunca descobriu uma palavra mágica
capaz de evocar o macrocosmos, uma palavra que subsumisse todas as con-
figurações do existente, um conceito onicompreensivo do mundo. Falta a ele
também uma concepção da história em grande estilo; a interpretação dos acon-
tecimentos históricos lhe é estranha, a situação histórica na qual os homens de
qualquer modo se encontram não se coloca essencialmente para ele. Com as
ciências naturais lhe falta qualquer relação. Seus pensamentos não nascem nem
da confrontação crítica com problemas biológicos, como é o caso de Bergson,
tampouco jamais faz uso de métodos de pesquisa da psicologia experimental. 243
O âmbito dos fenômenos puramente espirituais nunca foi ponderado pelo fi-
lósofo em sua amplitude. Recusa-se a dar atenção às características estruturais
genéricas da consciência, por exemplo, aos processos do pensamento, aos sen-
timentos, aos atos das representações, do amor e do ódio e assim por diante.
Mesmo que nos seus escritos estes fenômenos aflorem frequentemente e haja
uma série de discussões referidas a eles, não constituem jamais um objeto de
investigação teórica específica. Uma tal refutação da fenomenologia em sen-
tido estrito, no entanto, de modo algum leva Simmel ao campo de qualquer
tipo de psicologia empírica, que, segundo o modelo dos grandes ensaístas
franceses (como La Rochefoucauld, Chamfort etc.), tem o prazer em descrever
caracteres típicos, lançar luz sobre traços singulares da psique e decompor as
qualidades morais. Todas as descrições e análises deste tipo que se encontram
na obra de Simmel, por mais indispensáveis para a coesão de seu pensamento,
possuem valor interno próprio. O caminho do filósofo não termina nestas
análises, mas passando por elas conduz a outras metas.
Antes de tudo pretendo esboçar em grandes linhas o mundo em que
Simmel se move. A matéria-prima de seu pensamento é constituída de uma
multiplicidade de lugares espirituais, eventos anímicos e modos de ser que são
relevantes tanto na vida da comunidade como na vida estritamente pessoal do
indivíduo. E, precisamente em muitos casos, os fatos que constituem o objeto
de reflexão do filósofo derivam do âmbito de experiências e de vivências do
indivíduo fortemente diferenciado. No centro do horizonte de Simmel está
sempre o homem como portador da cultura e como ser espiritual maduro que
age e julga em plena posse de suas energias psíquicas, ligado a seus semelhan-
tes pelo comum agir e sentir. Este mundo é delimitado por cima e por baixo.
Pelo alto limita com o reino do cósmico do qual é recortado, tornando-se as-
sim circundado por ele; em outras palavras, é a contraimagem de uma filosofia
terrestre e de modo algum uma filosofia astronômica. Por baixo limita com o
reino da vida elementar, do acontecer não-espiritual, do humano no âmbito
das pulsões; tudo o que é natureza, e não irradiação de uma alma superior, é
excluído deste mundo.
Um olhar mais atento distingue subitamente os diversos níveis de interesse
244 nos quais Simmel se move. O que mais chama a sua atenção parece ser, pelo
menos em uma primeira leitura de seus escritos, as situações e formações so-
ciais como relação dos homens entre si. Quase toda sua vida foi dedicada à
investigação sociológica, e apenas na velhice dirigiu mais e mais atenção para
novos objetos. Já no primeiro escrito do filósofo sobre a diferenciação social
[Soziale Differenzierung]1 analisa certas leis da vida da comunidade. Nas suas
duas obras maiores, Philosophie des Geldes [Filosofia do dinheiro]2 e, sobre-
tudo, em sua Soziologie [Sociologia], dá continuidade a suas investigações
juntamente com o esforço de mostrar com toda clareza o tecido das relações
sociais. Simmel estuda a fundo a estrutura de todas as possíveis relações hu-
manas, representa o caráter específico seja das formações maiores bem como
daquelas menores no interior da sociedade, mostra a influência de um grupo
sobre o outro, e a necessária conexão que subsiste entre os mais diversos pro-
cessos sociais. Uma série de ensaios é dedicada ao conhecimento de determi-
nados fenômenos sociais; Simmel descreve, por exemplo, a essência da moda,
da coquetterie, da sociabilidade etc.3 Um estudo particular é dedicado ao pro-
cesso da divisão de trabalho que tanta importância reveste para o mundo atual.
Simmel busca suas implicações para a comunidade em todos os estratos da
vida social e mostra, entre outras coisas, como este processo, que na época do
capitalismo regula o comportamento exterior dos indivíduos entre si, também
influencia e confere sua marca característica à sua vida interior.4
O segundo nível de interesse, ao qual Simmel dirige sua atenção, inclui
tudo o que se refere ao homem enquanto indivíduo singular. Como pensador,

1 Über soziale Differenzierung: Sociologische und psychologische Untersuchungen [Sobre a


diferen­ciação social: investigações sociológicas e psicológicas]. Leipzig: Duncker & Hum-
blot, 1890.
2 Philosophie des Geldes [Filosofia do dinheiro]. Leipzig: Duncker & Humblot, 1900.
3 Philosophie der Mode [Filosofia da moda]. Berlim: Pan-Verlag, 1905. Versão revista: Die
Mode [A moda] em Philosophische Kultur [Cultura filosófica][versão em portugês em Iara:
revista de moda, cultura e arte. http://www.iararevista.sp.senac.br/edl/edl/pt/contcomp/07.
html]. Leipzig: Klinkhardt, 1910, pp. 31-64.
4 Ver, por exemplo, Philosophie des Geldes, capítulo 6, parte 2, Die Arbeitstellung als Ursache
für das Auseinandertreten der subjektiven und der objektiven Kultur [A divisão do trabalho
como causa para a separação da cultura subjetiva e da objetiva], pp. 645-54. 245
o fascina sobremaneira o anímico em todas as suas formas, seus escritos cons-
tituem para o psicólogo uma verdadeira mina. Dotado de uma refinadíssima
capacidade de observação e de uma sensibilidade extraordinária, Simmel se
adentra no fundo da natureza humana, lançando luz sobre o que ocorre em
nosso interior e frequentemente sob a superfície de nossa consciência. Aven-
tura-se, por assim dizer, com dedo sensível nos ângulos mais remotos de nossa
psique, revelando aquilo que anteriormente era oculto; de tal modo que as
pulsões mais secretas são desvendadas, e é destrinchada a ordem confusa de
nossos sentimentos, das nossas aspirações, dos nossos desejos. As conclusões
de Simmel a este respeito se referem seja ao homem em geral, seja aos indi-
víduos singulares bem determinados. No primeiro caso, interessa ao filósofo
esclarecer os conteúdos psíquicos que são típicos na sua generalidade; conteú­
dos psíquicos que se realizam na psique de cada homem, na medida em que
estão presentes as premissas necessárias às suas manifestações. Decompõe, por
exemplo, a essência da feminilidade ou descreve a estrutura interior de certos
tipos, como do avarento ou do aventureiro.5 No segundo caso estuda o mundo
espiritual de algumas grandes personalidades, e a sua tentativa de iluminar o
ser e a sua obra, por motivos que discutiremos em seguida, é de grande im-
portância para a sua própria evolução. O que lhe importa é investigar como
as manifestações psicológicas, seja do homem em geral, seja do indivíduo
singular, se desenvolvem segundo sua própria lei; a sua atenção se dirige tam-
bém a colher nossas energias interiores na sua concatenação necessária; não
considera nunca como sua tarefa registrar a co-presença casual de singulares
características essenciais como faz o mero empirista.
O terceiro âmbito de interesse do pensamento de Simmel, enfim um âm-
bito que não pode ser diferenciado claramente do que analisamos até agora,
abarca a esfera dos valores objetivos e as criações dos homens no âmbito desta
esfera. Quase todas as obras do filósofo são ricas de investigações sobre teoria
do conhecimento, mas é, sobretudo, nos escritos sobre Kant e seus Probleme

5 Weibliche Kultur [Cultura feminina] (1902) em Philosophische Kultur [Cultura filosófica], pp.
268-311; Das Abendteuer [A aventura] (1910), in Philosophische Kultur [Cultura filosófica],
246 pp. 13-30.
der Geschichtsphilosophie [Problemas da filosofia da história]6 que aborda
este tipo de análise. Diferenciação social e Sociologia são introduzidas com
uma justificação teórica do seu método de investigação sociológica. Carac-
teristicamente, Simmel dirige sempre a atenção dos conteúdos de seu pensa-
mento ao processo mesmo do pensamento; é propriamente a compreensão
de tal processo que ilumina os diversos conteúdos do pensamento. A relação
entre sujeito e objeto do conhecimento constitui, sobretudo, um dos proble-
mas fundamentais do filósofo, e é extremamente significativo observar como,
no curso de seu desenvolvimento, suas observações sobre este tema sofrem
abundantes retificações, uma modificando parcialmente a outra. Luta sempre
para encontrar um conteúdo de verdade que possa servir de fundamento para
seu relativismo. As preocupações com estas questões se desdobram frequente-
mente por meio de análises provisórias; de um modo que lhe é característico:
interrompendo sua permanência na superfície do existente, dando as costas
ao fenômeno singular que havia lhe interessado e aprofundando-se na consi-
deração teórica das condições do conhecimento. Simmel se interessou desde
muito cedo pela esfera da ética, que depois nunca abandonou. Na obra de ju-
ventude Einleitung in die Moralwissenschaft [Introdução à ciência da moral],7
decompõe os conteúdos fundamentais da ética; num dos últimos ensaios, Das
individuelle Gesetz [A lei individual],8 tenta demonstrar que a exigência mo-
ral, a qual o indivíduo sempre se subsume, é fruto do processo individual da
sua vida. Estes dois escritos enquadram, por assim dizer, a obra do pensador
e assinalam o início e o fim do caminho por ele percorrido. Simmel, podemos
afirmar aqui de modo provisório, nunca revelou diretamente o seu ethos. Lan-

6 Kant: Sechzehn Vorlesungen, gehalten an der Berliner Universität [Kant: dezesseis aulas, pro-
feridas na Universidade de Berlim]. Leipzig: Duncker & Humblot, 1904; Die Probleme der
Geschichtsphilosophie. Eine erkenntnistheoretische Studie [O problema da filosofia da história:
um estudo de teoria do conhecimento]. Leipzig: Duncker & Humblot, 1892.
7 Einleitung in die Moralwissenschaft: Eine Kritik der ethischen Grundbegriffe [Iniciação à ciên-
cia da moral: uma crítica dos fundamentos éticos], 2 volumes. Berlim: Hertz, 1892-93.
8 Das individuelle Gesetz: Ein Versuch über das Prinzip der Ethik [A lei individual: Um ensaio
sobre o princípio da ética] (1913) em Lebensanschauung: Vier metaphysische Kapitel [Con-
templação da vida: quatro capítulos metafísicos]. Munique: Duncker & Humblot, 1918. 247
çou luz, no entanto, nas convicções éticas de diversas grandes personalidades,
como Kant, Schopenhauer, Nietzsche e Goethe9 sem deixar de aprofundar o
significado ético das condições anímicas e das múltiplas correntes espirituais
por ele descritas. Como um espelho, reflete sobre nós de maneira inconfundí-
vel a sua concepção ética inata. Apenas na segunda parte de sua obra, a con-
frontação com problemas estéticos assume uma maior amplitude, sem chegar
a se condensar em uma teoria da arte. Diferentemente das suas investigações
críticas da teoria do conhecimento, a Simmel não interessa tanto analisar as
condições que tornam possível o sentir estético e a criação artística, mas muito
mais reproduzir as vivências das quais nascem algumas obras de arte típicas
e individuais. Expõe o fundamento espiritual no qual se enraízam as criações
de Michelangelo, Rodin e Rembrandt, revelando assim, sobretudo, a essên-
cia e o sentido da arte de cada um destes mestres.10 Sempre foi sua aspiração
desvelar o núcleo em torno do qual se desenvolve a obra dos artistas ou uma
época como um todo, por exemplo, Renascimento. Em certas ocasiões, atribui
a determinadas formas artísticas admiradas por nós (por exemplo, a asa de um
vaso ou uma ruína arquitetônica)11 um significado simbólico mais profundo
que de modo imprevisto esclarece como estes objetos agem sobre nossos afetos.
Com extrema elasticidade se imiscui nos fenômenos artísticos e se aproxima
de uma fórmula que possa exprimir o conteúdo peculiar dos fenômenos con-
siderados. Simmel se ocupou pouco das questões e vivências religiosas, e isto
se deve, certamente, à sua natureza estranha, desde a origem, aos instintos e
necessidades religiosas.12 Mesmo assim, por mais que se aproxime do objeto de
maneira exterior, o pensador conserva, mesmo neste caso, uma incomparável

9 Kant: Sechzehn Vorlesungen [Kant: dezesseis aulas]; Schopenhauer und Nietzsche: Ein Vortrag-
szyklus [Schopenhauer e Nietzsche: um ciclo de conferências]. Leipzig: Duncker & Humbolt,
1907.
10 Michelangelo em Philosophische Kultur [Cultura filosófica], pp. 152-78; Rodin, em idem,
179-97; Rembrandt: Ein kunstphilosophischer Versuch [Rembrandt: um ensaio de filosofia da
arte]. Leipzig: Kurt Wollf, 1916.
11 Der Henkel [A asa] em Philosophische Kultur [Cultura filosófica], pp. 126-34; Die Ruine [A
ruína] em idem, pp. 135-43
248 12 Die Religion [A religião]. Frankfurt am Main: Rütten & Loening, 1906.
força de empatia. Repetidamente analisa o papel que o sentimento religioso
desempenha, mostrando, por exemplo, quais formas de socialização estão por
trás do ímpeto de evadir-se no âmbito religioso. Em Rembrandt, Simmel lança
luz sobre a natureza da pura fé que não tem mais necessidade de ostentar um
dogma ou uma religião positiva, pois está profundamente enraizada na alma.
Em algumas figuras de Rembrandt vê esta pietas que não tem necessidade de
nenhuma atitude, que é uma qualidade de nosso ser.
Depois de ter considerado os diversos aspectos do mundo sobre os quais
o filósofo experimenta produtivamente as suas capacidades, parece-me opor-
tuno conhecer de que modo ele estrutura seu material. Como elabora a ma-
téria-prima que tem diante de si, qual percurso segue, passando de um fenô-
meno a outro, em quais unidades condensa a pluralidade das manifestações
fenomênicas? De duas diferentes maneiras podem ser apreendidas a obra de
um homem em seu conteúdo substancial. Ou se tenta compreender de que
modo estas realizações se diferenciam entre si e, esclarecendo as mudanças e
deslocamentos de pontos de vista, tenta-se apreender o desenvolvimento espi-
ritual de seu criador; ou se lança luz sobre o elemento comum, esforçando-se
em descobrir a teia de relações que lhe perpassa como um todo. A aplicação
do último procedimento é preferível toda vez que se quer penetrar no mundo
espiritual de um pensador, para se ter uma ideia provisória da sua estrutura
peculiar. Pressupõe-se que toda alma forma uma unidade viva com caracte-
rísticas constantes, não obstante esta seja o resultado de sucessivas e violentas
transformações; as manifestações da alma, apesar das múltiplas contradições
entre si, devem ser consideradas em seu conjunto por meio de um fio condutor,
de modo que sua unidade possa se expressar objetivamente. A essência de um
homem se objetiva numa ideia, que como um fio vermelho perpassa sua obra,
ou se reflete em outra peculiaridade que é constantemente cristalizada de novo
nas criações pessoais. No entanto, pode resultar difícil descobrir qual o traço
que, como irradiação de uma única personalidade, caracteriza as ações e as
opiniões de certos indivíduos. Alguns artistas, por exemplo, sofrem uma tal
metamorfose que as obras tardias parecem ser fruto de uma alma completa-
mente diversa daquela da juventude. Mesmo naturezas assim, pouco egocên-
tricas, não podem escapar delas mesmas, a sua própria tendência a mudar e 249
a renegar a si mesma revela o seu ser mais verdadeiro, e toda realização sua é
contrastada, portanto, por um caráter unitário. O filósofo, como tipo humano,
é exatamente o oposto desta natureza artística; aspira a penetrar no valor defi-
nitivo das coisas, e, para alcançar tal meta, deve lançar raízes sólidas no centro
do seu ser; e, justamente por isso, adquire certeza da verdade apenas na me-
dida em que possui certeza de si mesmo, está sujeito em grau menor do que
qualquer outro tipo humano às metamorfoses psicológicas. Qualquer tipo de
verdade que eventualmente obtenha deve ser eternamente una e a mesma, ao
mesmo tempo esta verdade é também a contrapartida de seu ser espiritual,
que nele mais do que em outros tipos humanos se realiza conscientemente
sob a forma de princípios, de máximas etc. Quem aspira ao absoluto revela
os próprios conteúdos de seu interior, que em meio a todas as transforma-
ções permanecem duráveis e constantes. Quem for minimamente familiari-
zado com o mundo das ideias de Simmel se sentirá fascinado pela atmosfera
espiritual peculiar que o envolve com uma presença quase física. A unidade
substancial de todas as obras do pensador se impõe subitamente à atenção, e
percebemos como os mais diversos problemas são abordados com o mesmo
método. É como quem, viajando por países estrangeiros, entra em contato
com tipos humanos desconhecidos: num primeiro momento o seu olhar não
percebe as diferenças individuais dos habitantes, mas apenas as características
comuns, que no seu complexo constituem para ele algo de absolutamente novo,
desviam para si sua atenção. Um campo espiritual inexplorado pode ser con-
quistado apenas se primeiramente é abarcado como um todo. Apenas depois
de ter apalpado os contornos é possível distinguir claramente as partes que o
constituem e colher particularmente as relações entrelaçadas que o unem. A
essência da filosofia de Simmel se funda naquele caráter unitário de suas cria-
ções que marca profundamente nossa mente e que só posteriormente chega
ao esclarecimento. No entanto, não é de modo algum necessário que a fonte
desta unidade deva ser, em princípio, expressa por meio de conceitos claros.
Quanto mais assistemático é um espírito – e Simmel pertence diretamente ao
grupo de pensadores assistemáticos – menos as suas obras possuem raízes em
convicções que toleram a luz plena da clareza conceitual; a unidade viva de sua
250 obra pode ser certamente revivida como empatia, mas não se pode derivá-la de
um conceito fundante enrijecido e estranho à vida. Mesmo assim, no caso de
Simmel é também possível, em se tratando de um filósofo, portanto, avançar
até uma ideia nuclear, à qual estão ancoradas quase todas as suas obras, de
modo que é possível traçar um corte transversal em sua filosofia, o qual por
certo não corte as muitas partes das conexões de seu pensamento. Em perfeita
analogia com o que foi dito, é somente em casos muito raros que o corte trans-
versal de um edifício revela a estrutura da construção inteira e a disposição de
todos os ambientes internos. Alguns elementos do construído permanecem
normalmente invisíveis; para poder vê-los é necessário recorrer ao corte longi-
tudinal e a outro corte transversal. Um destes cortes prevalece sempre, todavia,
sobre os outros. Este fornece-nos uma representação sensível da estrutura da
massa principal do edifício. O princípio nuclear do pensamento de Simmel,
que apresentarei nas páginas seguintes em todos os seus desenvolvimentos,
reveste a função de um tal corte transversal. Este abre caminho em direção
à essência da sua filosofia, sem que, por outro lado, constitua o fundamento.
Todas as manifestações da vida espiritual – assim se poderia definir o princípio
desta filosofia – possuem incontáveis relações umas com as outras, nenhuma
pode ser isolada das conexões que as ligam entre si. Esta visão representa uma
vivência fundamental de Simmel, a sua compreensão do mundo se baseia em
tal intuição; é como um guia que permite que se oriente através do labirinto
de pensamentos do filósofo com suas múltiplas ramificações de longo alcance,
sem contar todos os percursos e passagens laterais (por exemplo, os estudos de
teoria do conhecimento sobre a relação sujeito e objeto) nos quais, no entanto,
não podemos nos adentrar.13
Há dois modos de relações entre as coisas que são permanentemente
re-elaborados por Simmel. Em primeiro lugar, as relações que chamo de con-
gruência essencial, que subsiste nos fenômenos mais diversos. Do todo da vida
espiritual não se pode extrair nenhum modo de ser singular e nenhum evento
singular que possa ser observado e compreendido apenas isoladamente, por si
mesmo. Mesmo assim, se as partes, uma vez isoladas das múltiplas conexões

13 Vom Subjekt und Objekt [De sujeito e objeto], em Hauptprobleme der Philosophie [Problemas
fundamentais da filosofia]. Leipzig: Göschen, 1910, pp. 86-112. 251
nas quais estão inseridas, são consideradas como entidades de contornos bem
definidos, isto é decorrente de exigências de ordem prática facilmente com-
preensíveis; por outro lado, esta operação é legitimada pela relativa autossu-
ficiência de muitas destas partes ou de conjuntos de partes (por exemplo, de
uma época histórica ou de características psicológicas). Na maioria das vezes,
no entanto, não se tem em mente as relações intrínsecas recíprocas entre os
elementos extraídos da totalidade da vida. Estes elementos, considerados in-
dependentemente, se consolidam muitas vezes em unidades enrijecidas, cuja
significação está ligada de modo incindível a características tomadas de modo
mais ou menos arbitrário de sua totalidade de significados, em vez de ser
preen­chida por meio de uma visão de sua própria totalidade. De tal modo que
os sentimentos ou, por exemplo, os traços distintivos dos caracteres tornam-se
formas com contornos rígidos, coisas muito isoladas entre si, segmentadas e
abordadas de tal modo que o seu conceito não mostra mais aquela multiplici-
dade do ser. A exigência fundamental de Simmel é de liberar todo fenômeno
espiritual do seu falso ser para si e de mostrar como este se insere nas amplas
conexões da vida. Assim exercita a sua atividade de reflexão conectando e ao
mesmo tempo desconectando relações. Na medida em que Simmel revela em
todos os lugares relações entre o que é aparentemente separado, torna cons-
ciente para nós também a complexidade de múltiplos objetos e problemas.
São muitos os exemplos de que o filósofo mostra em seus escritos sociológi-
cos em conexões necessárias entre os inumeráveis fenômenos sociais. Simmel
demonstra, por exemplo, como uma economia marcadamente baseada no
dinheiro como meio de troca determina também as relações não-econômi-
cas dos indivíduos e o estilo de vida de uma época inteira.14 Examina como
a ocorrência de um evento social particular traz consequências que afetam
a multiplicidade conjunta do social. Em outros ensaios, como aquele sobre
a sociabilidade [Geselligkeit], a coqueteria [Koketerie] e outros, ele retira do
isolamento uma série de fenômenos, mostrando o significado que os enlaça e
a causa de suas manifestações, graças à qual é finalmente possível explicar o

14 Philosophie des Geldes [Filosofia do dinheiro], capítulo 6, “Der Stil des Lebens” [O estilo da
252 vida], pp. 591-716
seu ser peculiar. Deste modo, liga o que está separado, une o que está disperso
em grandes fechos; dissipa o véu comparável ao mar de névoas nas regiões
montanhosas, que envolve tão densamente a cadeia das coisas e faz emergir
aqui e ali, isoladamente, apenas os picos mais elevados. Mesmo as relações
puramente psicológicas recebem uma atenção constante. Quando se coloca
a questão, por exemplo, de que modo virtude e felicidade se condicionam
reciprocamente – questão que só pode ser respondida de modo negativo –,15
Simmel, como em muitos outros casos, quer lançar luz definitiva sobre a re-
lação entre os sentimentos e os outros atos da vontade e do juízo do homem.
Às vezes, ele descreve um organismo psíquico cuja constituição particular é
resultado do concurso de determinados traços essenciais. E assim esboça uma
descrição do avarento, do esnobe e de outros tipos humanos.16
As relações de congruência essencial se contrapõem àquelas de analogia. O
trivial entendimento cotidiano esquece todas as transições entre os fenômenos
e esgarça o tecido de suas manifestações, cujas partes cada vez mais isoladas,
cada uma por si, reunidas em um único conceito, estreitam nossa consciência
da multiplicidade do mundo mesmo em outras dimensões. Dos recortes da
realidade baseados em vários conceitos, deixa ver apenas o que é estritamente
essencial; tal razão mune o conceito de uma etiqueta sobre a qual é indicado
apenas o que é digno de atenção pelas necessidades práticas normais. As coi-
sas em seu rígido invólucro conceitual tornam-se unilaterais; apenas um lado
delas está voltado para nós: as compreendemos apenas em relação à sua utili-
dade para nós. Não é nenhum milagre que se coloquem irreconciliáveis uma
ao lado da outra! Não havendo possibilidade de compará-las uma com outra,
dos seus muitos significados resta apenas o que indica o uso a que são desti-
nadas, tornando-se estreitas e definhadas. Quanto mais a realidade se fecha ao
homem, tanto mais estranho torna-se o mundo mediano com seus conceitos
fossilizados similares a uma careta. O homem compreende que todo fenômeno
na sua riqueza possui uma infinita variedade de elementos característicos, já
que todo fenômeno está sujeito às leis mais diversas. Na medida em que o

15 Einleitung in die Moralwissenschaft [Introdução à ciência da moral].


16 Philosophie des Geldes [Filosofia do dinheiro], capítulo 3, pp. 318-21 e pp. 334-37. 253
homem percebe, no entanto, a multiplicidade das coisas, cresce nele a possi-
bilidade de estabelecer relações entre elas. Das múltiplas características que
se revelam de um fenômeno, cada uma remete também a outros fenômenos.
A cada um que lhes dirige o seu olhar, as afinidades entre os fenômenos se im-
põem. Simmel possui uma capacidade inesgotável de demonstrar a existência
de analogias. Não deixa nunca de mostrar que algumas propriedades formais
e estruturais de um objeto se manifestam não apenas no objeto em que se re-
alizam, mas também em todo o conjunto de outros objetos. Simmel coloca
em evidência, por exemplo, a semelhança das condições estruturais da obra
de arte com aquelas de algumas organizações sociais, ou faz ver como certos
processos da vida social e da vida interior da psique se desenvolvem segundo
as mesmas leis. A ordem econômica é comparada à ordem jurídica, tornam-se
visíveis analogias entre a arte e o jogo, entre a aventura e o amor. Frequen-
temente, Simmel teve, antes de tudo, de desintegrar a confiável imagem me-
diana do objeto examinado naquele momento, para fazer emergir o aspecto
que lhe comunica com outros fenômenos. Trata-se sempre de liberar o objeto
de seu isolamento, examinando-o de todos os lados, até que não reconheça-
mos nele o aferrar-se a uma lei que está presente também lá, para inseri-lo,
de tal modo, em uma vasta rede de relações. A sensibilidade tão sutil para a
uniformidade dos fenômenos está necessariamente unida a uma sensibilidade,
no entanto, infalível para a diferença. E, deste modo, Simmel se encarrega de
discernir as semelhanças aparentes que de alguma maneira subsistem entre
as coisas, demonstrando a falsidade de algumas doutrinas baseadas em seu
reconhecimento tácito.
Vale a pena aqui tratar em poucas palavras da diferença entre analogia e
metáfora (Gleichnis). A metáfora aproxima dois fenômenos, que conforme um
ponto de vista, revelam o mesmo comportamento. A semelhança quer, por
meio de uma imagem, exprimir de modo evidente o significado que um certo
fenômeno possui para nós. Há uma analogia, por exemplo, quando compara-
mos as formas de vida da antiguidade e a civilização da Europa Ocidental, ou
quando se estabelece um paralelo entre a reflexão da luz e aquela do som. Em
ambos os casos, são colocados em relação fenômenos que apresentam um de-
254 curso idêntico. Na metáfora, ao contrário (como aquela da frase de Goethe: “As
poesias são vidraças pintadas…”),17 a essência da poesia lírica é ilustrada, mas
não diretamente ou por meio de palavras secas, mas por via indireta, através
de um fenômeno que, de modo mais ou menos velado, faz transpirar o signi-
ficado que se atribui à poesia. Se dois objetos A e B se comportam de modo
análogo, isto significa que tanto A como B seguem a mesma regra geral, obede-
cem à mesma lei geral. A analogia nunca se refere apenas à singularidade que
experimentamos de uma coisa, juntamente com o seu valor, à sua qualidade
intrínseca. A analogia toma em consideração uma coisa apenas enquanto ex-
plica uma função, encarna um tipo e se adapta a uma forma. Resumidamente,
a analogia considera a coisa como caso particular de um conceito geral, cujo
conhecimento constitui um pressuposto para formar a analogia. O valor da
analogia se funda exclusivamente em sua validade objetiva, na medida em que
esta coloca em relação apenas aqueles processos que se desenvolvem segundo
um mesmo esquema idêntico. Quando há de fato uma analogia, deve existir
efetivamente o paralelismo entre os eventos postulados por ela; a sua própria
direção está livre de todo arbítrio subjetivo, é descoberta e não provocada. So-
bre a base de analogias, em pleno acordo com o que foi dito, podemos extrair
conclusões em escala reduzida sobre o comportamento de um fenômeno, já
que este faz parte da relação apenas como realização de um princípio geral
regulador das suas manifestações. Enquanto a analogia se limita a aproximar
certos processos segundo o seu próprio percurso, a metáfora fornece a expli-
cação de um fenômeno. Em outras palavras, circunscreve a impressão que
o fenômeno produz em nós, a nossa interpretação, e reproduz na imagem o
significado, o conteúdo substancial do fenômeno. Processos análogos podem
ser aproximados; mas os termos da semelhança, ao contrário, possuem valor
absolutamente diverso, no sentido de que um termo representa concretamente
a essência do outro. Na metáfora deve adquirir forma própria a unicidade do
objeto, a sua estrutura interna. Quanto mais profunda é a nossa vivência das

17 Primeiro verso de um poema tardio de Goethe, sem título: Gedichte sind gemalte Fenster-
scheibe [Poesias são vidraças pintadas] em Gedenkausgabe der Werke, Briefe und Gespräche
[Seleção de pensamentos das obras, cartas e diálogos], editados por Ernst Beutler, volume 1.
Zurique: Ártemis, 1949, p. 569. 255
coisas, menos está subsumida completamente aos conceitos abstratos; inicial-
mente revestida das imagens, brilha claramente diante de nós; a ocultamos
para possuí-la nua. Aquilo que é mais secreto necessita do véu da metáfora
para poder se manifestar inteiramente. A analogia é justa ou falsa, a metáfora é
bela ou tosca. Em outras palavras, enquanto a analogia pode ser surpreendente
ou arguta, a sua existência depende do fato que objetivamente se demonstra
verdadeiro. Nós a reconhecemos, pois corresponde a um comportamento pró-
prio dos fenômenos. A metáfora, ao contrário, é uma criação da fantasia, da
capacidade imaginativa do sentimento; é julgada esteticamente e pretende ser,
além disso, convincente e elucidativa, tornando o que é absolutamente evidente,
sem alterá-lo, o que projetamos com o nosso pensamento e com o nosso sen-
timento de um objeto. Não é um processo cognitivo como a analogia, mas um
receptáculo para nossos pensamentos sobre as coisas, uma expressão do nosso
mundo interior, um reflexo do eu no mundo dos fenômenos. A analogia: uma
relação entre objetos; a metáfora: a representação das relações entre sujeito e
objeto. Na metáfora encontram-se milagrosamente em equilíbrio o fenômeno-
base e o fenômeno que deve ilustrar o sentido. Mesmo este último é rico de
significados, mas, justamente porque é posto em relação com outro fenômeno,
resplandece no significado para iluminar a obscuridade do fenômeno de base.
Dos dois fenômenos estreitamente ligados na metáfora até formar uma uni-
dade de significado, um lança luz sobre o outro, e apenas a este outro. Ambos
tendem a se fundir na semelhança; enquanto um espera que sua obscuridade
receba luz, o outro deseja tornar-se portador de luz. Toda coisa pode ser uma
tocha, toda coisa possui sua própria tocha. Toda língua é um guia confiável
para aquele que penetra nas essencialidades, colocando-o em uma boa pista,
mesmo quando se trata de distinguir entre analogia e metáfora. A pequena pa-
lavra “como”, que na metáfora pode estar ausente, torna-se indispensável para
a união de processos análogos. Pode-se dizer: as poesias são vidraças pintadas,
porque as imagens aqui estão, portanto, no lugar do predicado. O “como” na
analogia, ao contrário, serve para indicar um comportamento do mesmo tipo,
e por isso não pode ser suprimido. Toda metáfora pode transformar-se (pelo
menos formalmente) em uma analogia. Isto se explica porque estes dois tipos
256 de relação são confundidos. Basta apenas mudar a intenção e o que antes era
metáfora se transforma em analogia. A frase: “A vida é como um rio” possui
o significado de uma metáfora, apenas se a palavra “rio” possui a função de
uma imagem. A mesma frase torna-se analogia, se “vida” e “rio” são entendi-
dos como fenômenos paralelos, como processos que se desenvolvem segundo
a regra geral.
Mesmo através da mais estreita porta lateral se pode chegar ao centro
da essência humana. Após toda esta consideração é possível extrair sérias
consequên­cias sobre a essência de pensadores que se encontram ou preferen-
cialmente na analogia ou exclusivamente na metáfora. Pressupondo que o fi-
lósofo possui, para fazer uso das analogias, o olhar descobridor, bem como a
fantasia e o talento de criação necessários para visualizar metáforas, ele recorre
à analogia se pretende analisar apenas as relações entre as coisas, e se serve
da metáfora se pretende, ao contrário, representar o núcleo revelado das coi-
sas. O homem da analogia não oferece nunca uma explicação [Erklärung] do
mundo, pois lhe falta a força da ideia genética; ele se limita a conhecer as leis
que regulam o curso dos eventos e, dirigindo o olhar para a riqueza do mundo
fenomênico, agrega tudo o que é uniforme, reservando sempre para si o pró-
prio eu. O homem da metáfora, bem menos objetivo, permite que o mundo
atue sobre ele; o mundo lhe significa algo, e este significado ele quer represen-
tar, sua alma está prenhe de absoluto, o seu eu deseja evadir-se. A quantidade
relativamente grande de analogias em relação ao número exíguo de metáforas
presentes na obra de Simmel – antecipando aqui este dado de fato – demonstra
que o pensador não se permite uma interpretação do mundo, que seu eu não
possui aquela profundidade metafísica que lhe permitiria formular um juízo
em relação aos fenômenos que tem diante de si. Como Schopenhauer é dife-
rente! Ele é dos pés à cabeça “um homem das metáforas”, pois está munido da
palavra-chave que lhe ajuda a desvendar o significado do mundo fenomênico,
para depois transmitir a nós na forma de imagens.
Pôr a nu os fios que envolvem os fenômenos como um todo constitui uma
das tarefas (infinitas) que Simmel colocou para si, uma necessária consequên-
cia das suas convicções. Outra tarefa é aquela de apreender o múltiplo como
totalidade, tornando-se senhor desta totalidade para experienciar e exprimir
sua essência. Partindo do princípio de que tudo está em relação com tudo, 257
obtém-se necessariamente a unidade do mundo. Toda conexão singular re-
sulta desta unidade, é apenas um fragmento daquele grande todo que é o
mundo, de um mundo, todavia, que é preciso antes de tudo compreender e
abarcar em toda sua extensão, se não se quer lançar luz apenas sobre comple-
xos fragmentários e incompletos. Justamente a concatenação dos fenômenos,
afirmada por Simmel, impõe a visão de sua totalidade. Se não considerarmos
sua concatenação, teremos no máximo o conhecimento das entidades parciais,
que remete sempre além de si mesmo, isto é, que resultará inadequado ao im-
pulso verdadeiramente filosófico, voltado ao domínio da totalidade. Simmel
esforça-se, portanto, continuamente para liberar cada objeto singular, para
abarcar o mundo em sua inteireza; para alcançar o seu fim percorre duas vias:
a via da teoria do conhecimento e aquela da metafísica. A primeira leva ao
relativismo negador do absoluto, à renúncia de uma compreensão própria da
totalidade e à representação [Darbietung] das múltiplas imagens típicas do
mundo. A outra conduz a uma metafísica da vida, em uma tentativa gran-
diosa de analisar o mundo dos fenômenos a partir de um princípio absoluto.
Uma breve olhada preliminar na filosofia da vida, remanescente do último
período da obra do filósofo, permite compreender de que modo o mundo se
apresenta à consciência como unidade. Todas as criações objetivas, todas as
ideias e as potências espirituais, todas as formas definidas do ser emergem ori-
ginariamente da corrente da vida que flui incessantemente à eternidade. Esta
“vida” que, inebriante, atravessa também os indivíduos, constitui o substrato do
mundo ou, e isto não pode ser esquecido, do mundo próprio de Simmel. Ou
seja, o conjunto, em suma, de todas aquelas condições e processos que pos-
suem uma relação direta com o homem enquanto ser espiritual. A totalidade
se cinde na contraposição polar entre os princípios de leis objetivas e as rígidas
formas que estão dominadas, por um lado, e a incessante infração das formas
enrijecidas e a constante mudança da nossa condição cultural e anímica, por
outro. O mundo é compreendido quando se pode demonstrar que a vida com
o seu movimento torna-se mediadora entre os dois polos da totalidade, que
o próprio processo vital produz aquele contraste que cria abismos nos múlti-
plos contrastes, que, portanto, não podem descer aos níveis mais profundos do
258 mundo. Como é possível, então, que surja da vida não apenas o que transcorre,
mas também o que perdura? Tudo o que é vertido da vida, segundo Simmel,
tende a consolidar-se, a tornar-se uma criação autossuficiente que subjuga a
si, após impor sua própria forma, justamente aquela vida da qual inicialmente
era seu fruto. A vida é sempre algo mais do que a vida, se retirada de sua pró-
pria cadeia e se fixada a si mesma como uma forma de contornos rígidos. É o
rio e, ao mesmo tempo, a terra firme; ela coloca-se diante das criações vindas
de seu seio para afirmar-se novamente como senhora. Simmel concebe um
conceito tão amplo da vida que faz entrar aí também a verdade e as ideias que
regulam o curso da vida; nada mais está submetido à influência deste conceito;
a totalidade é reconduzida, pelo seu meio, a um único princípio originário.
Na medida em que a forma do mundo, à qual o filósofo chega, testemunha
o desejo de abarcar o mundo na multiplicidade das suas relações, a busca da
unidade não encontra nela nenhum contentamento que se satisfaça. Decerto,
ninguém sentiu mais profundamente do que Simmel que apenas o homem
munido de certezas e de valores absolutos está em condições de delimitar a
multiplicidade do real e de fixar a totalidade. Mas a sua própria incursão no
reino do absoluto não alcançou o sucesso final, nem poderia ser diversamente,
dada a natureza do seu ser.
Dado que não lhe é possível abarcar o mundo em sua totalidade, Simmel
tenta conquistá-lo por meio de uma digressão [Ausschweifen] que parte de
um simples fenômeno em todas as direções. O próprio princípio que está
na base de seu pensamento lhe impõe o domínio da totalidade. Há apenas
dois procedimentos para apreendê-la: ou se concebe um conceito de tota-
lidade na sua inteireza, o qual engloba tudo o que é particular; ou se parte
do particular, avançando nas esferas sempre mais remotas do múltiplo, de
modo a reter, pouco a pouco, a totalidade no campo visual. Quais são, por-
tanto, as unidades de que Simmel parte para irradiar-se no mundo, de que
pontos traça os seus círculos? Quando se vaga pelo mundo dos fenômenos
deparamos com uma infinidade de manifestações, cada uma com seu caráter
específico e estreitamente ligado a outros fenômenos. O plano material de
sua reflexão engloba, como já foi dito, o amplo círculo dos fenômenos so-
ciológicos, a vivência dos valores humanos, os inúmeros aspectos singulares
da psique e assim por diante. Do centro destes fenômenos destacam-se os 259
indivíduos que se diferenciam nitidamente da massa de outras essencialida-
des, formando unidades orgânicas, totalidades de caracteres bem definidos.
Dependendo do ponto de vista a partir do qual se observa o múltiplo, estes
indivíduos ou pertencem ao mundo, como seus membros, ou se contrapõem
a ele (como mundos em si mesmos): são partes ou são totalidades. Toda vez
que analisa formas individuais, Simmel as separa do macrocosmo, as libera
de seu vínculo com os fenômenos. Tornam-se para ele unidade autônoma:
Simmel se recusa a inserir o microcosmo individual na totalidade sem fim.
Quando pretendemos descrever o vaguear de Simmel pelo mundo, não deve-
mos, portanto, levar em conta os seus juízos sobre grandes figuras da história
do espírito. O homem não é para ele um dos conteúdos do mundo, mas uma
criação soberana, conclusa em si, que pode ser compreendida a partir de si
mesma. O que será definido nas páginas seguintes como “mundo” ou “tota-
lidade” representa a multiplicidade do real tal como conhecida pelo sujeito,
exceto as individualidades.
Como base para as suas incursões no mundo, o filósofo escolhe certos
conceitos gerais que lhe possibilitam descobrir a conexão reguladora dos fe-
nômenos. Para mostrar esta conexão, não se pode vivenciar o evento singular
concreto em sua incomparabilidade única, mas se deve interpretá-lo como
manifestação da essencialidade geral, situada nos vastos espaços dos mun-
dos, essencialidade que, justamente por seu caráter universal, pode ancorar as
leis. Simmel tenta resolver primeiramente a tarefa ligada a seu fim cognitivo,
ascendendo até conceitos de fenômenos existentes na realidade, sem, no en-
tanto, expressar o conteúdo puramente individual. Alguns temas abordados
em suas pesquisas sociológicas são, por exemplo, Der Arme [o pobre], Der
Fremde [o estrangeiro], Das Geheimnis und die geheime Gesellschaft [o se-
gredo e a sociedade secreta].18 Ainda com mais frequência, o filósofo escolhe

18 Der Arme [O pobre], em Soziologie [Sociologia], pp. 512-55; Exkurs über den Fremden [Ex-
curso sobre os estrangeiros] em op. cit., pp. 764-71 [versão em português em Georg Simmel
– Sociologia. Org. Evaristo de Moraes Fo. Trad Carlos Alberto Pavanelli, Coleção Grandes
Cientistas Sociais. São Paulo: Ática, 1983]; Das Geheimnis und die geheime Gesellschaft em
260 op. cit., pp. 383-455.
um momento abstrato destes conceitos gerais como ponto de partida para
suas considerações. Aquilo que havíamos reconhecido em um objeto como
um fragmento determinado e não-autônomo de sua essência é separado do
objeto e elevado do domínio abstrato à dignidade de uma categoria que en-
fileira uma multiplicidade de objetos. Podem ser considerados, por exemplo,
como momentos abstratos da obra de arte a dependência recíproca das partes,
a sua unidade, a perfeição plena de si mesma; naturalmente a obra de arte,
além disso, é também expressão anímica, espelho do tempo etc. Tais abstra-
ções constituem, em Simmel, centros de agregação, de pesquisa como Über
Kolletivverantwortlichkeit [Sobre a responsabilidade coletiva], Die Erweiterung
der Gruppe und die Ausbildung der Individualität [A ampliação do grupo
e a formação da individualidade], Das soziale Niveau [O nível social], Die
Kreuzung sozialer Kreise [A entrecruzamento de grupos], Quantitative Bes-
timmtheit der Gruppe [Determinação quantitativa do grupo], Über und Un-
terordnung [Superioridade e subordinação].19 Todo fenômeno é uma encar-
nação de uma multiplicidade de conceitos; é determinado mais precisamente
por uma série infinita de momentos abstratos. O fato de o eu cognoscente
dirigir a atenção a determinadas entidades universais depende, além da sua
constituição natural, também da meta em relação à qual seu pensamento
está orientado. Simmel se aventura em uma esfera de entidades universais
colocada mais ou menos no meio caminho entre as máximas abstrações e os
puros conceitos individuais; isto significa que priva as coisas do seu conteúdo
específico próprio quando se limita a descobrir quais conexões reguladas por
lei as ligam entre si. Já que a sua exigência principal é a de valorizar os fenô-
menos na sua individualidade, não lhe basta, naturalmente, reinscrevê-los
em formas mais amplas, nas quais se perde a qualidade peculiar dos objetos.

19 Über Kollektivverantwortlichkeit (1890) em Über sociale Differenzierung [Sobre a diferencia-


ção social], pp. 139-68; Die Erweiterung der Gruppe und die Ausbildung der Individualität
em Soziologie [Sociologia], pp. 791-863; Das soziale Niveau (1890), em Über sociale Differen-
zierung [Sobre a diferenciação social], pp. 237-57; Die quantitative Bestimmtheit der Gruppe
em Soziologie [Sociologia], pp. 63-159; Über und Unterordnung em op. cit., pp. 160-283 [versão
em português em Georg Simmel – Sociologia. Org. Evaristo de Moraes Fo. Trad Carlos Alberto
Pavanelli, Coleção Grandes Cientistas Sociais. São Paulo: Ática, 1983]. 261
Nisto se diferencia daqueles pensadores que têm raízes no idealismo trans-
cendental e que, com a ajuda de poucos conceitos onicompreensivos, tentam
apreender a multiplicidade material do mundo; mas este procedimento des-
via-se da plena consistência dos fenômenos, perdendo-se através das amplas
malhas das redes conceituais. Simmel se enlaça estreitamente a seus objetos,
mas também paga o preço desta sua aderência à vida com a recusa de princí-
pios onicompreensivos; penetra na multiplicidade das formas do real, renun-
ciando à unidade que a tudo envolve. Partindo de conceitos gerais, que lhe
servem como pontos firmes, Simmel subordina a seus próprios fins o material
do mundo. O seu procedimento se apresenta mais ou menos nos seguintes
termos: nos coloca diante dos olhos todas as condições e tipos de compor-
tamentos possíveis e imagináveis nos quais possui um papel determinante o
conceito-base que analisa naquele momento. O que lhe permite descobrir a
lei interna dos fenômenos revelada neste conceito. Assim como faz o químico
ao combinar uma substância que lhe é desconhecida com outras substâncias,
para que possa obter deste modo, por meio de suas reações à soma das ou-
tras substâncias químicas, uma imagem da essência e das características do
corpo examinado, Simmel faz experimentos com o conceito, colocando-o nas
situações mais diversas, para em seguida levantar-lhe questões. Em todo lu-
gar, em todo estrato da totalidade, em que o conceito adquire sempre algum
significado, seu procedimento é colocá-lo à prova, considerá-lo dos mais di-
versos ângulos. No breve ensaio Das soziale und individuelle Niveau [O nível
social e individual],20 que pode ser mencionado aqui no âmbito desta expo-
sição, Simmel caracteriza, por exemplo, antes de tudo o caráter primitivo das
finalidades da massa, mostrando as consequências que derivam do fato de a
sua vontade ser determinada pelos instintos primários mais comuns. Estuda,
portanto, o que, da essência plena do indivíduo, permanece operante na re-
alidade, na medida em que este se transformou em um elemento da massa.
Os instintos elementares são projetados no espírito coletivo, as qualidades

20 Das soziale und das individuelle Niveau (Beispiel der Allgemeinen Soziologie) [O social e o
nível individual] em Grundfrage der Soziologie, pp. 32-48 [ed. bras.: Questões fundamentais
262 da sociologia. Trad. Pedro Caldas. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2008].
psíquicas mais puras do indivíduo singular devem ser abandonadas neste seu
rebaixamento de nível social. Como é valorizado o elemento primitivo, que é
o bem comum, e o que é diferenciado e faz parte do eu privado? A valorização
é elevada em ambos os casos. O primeiro é considerado digno de ser vene-
rado, é admirado pela sua antiguidade, disseminado e irrefutável. O segundo
é colocado em observação, pois manifesta uma espiritualidade superior e, o
que é raro, incita nossa atividade etc. A este ponto cabe acrescentar uma des-
crição mais precisa das mudanças que sofrem a essência do indivíduo que se
tornou membro da massa. O seu intelecto é limitado, que aumenta a sua ca-
pacidade de sentir, a sua receptibilidade e a sua passionalidade. A massa não
mente, mas lhe falta a consciência da própria responsabilidade; ela se deixa
levar, sem discernir, pelas impressões do momento; são eliminadas todas as
inibições morais. O status do nível social, em relação àquele do nível indi-
vidual, resulta da seguinte fórmula: “O que é comum a todos pode ser apro-
priado apenas por aqueles que menos possuem”.21 O seu limite se encontra
intelectual­mente sempre abaixo do nível médio, mas não se rebaixa jamais ao
nível do membro da comunidade situado em uma escala inferior. Finalmente,
Simmel dirige a atenção para uma exceção nesta fórmula, que não é comum.
Alguns indivíduos rejeitam o espírito coletivo, não partilham do rebaixamento,
como os outros, porque vivem sob a influência constante de suas melhores
energias, são personalidades pouco aptas a sacrificar a melhor parte de seu ser
em favor de uma escala inferior. Simmel recorre, assim, ao conceito de nível
social para averiguar no interior da multiplicidade real um grande número
de características peculiares; toda vez que o conceito se realiza na totalidade,
Simmel tenta reconstruir como se realizou, difundindo-se, por assim dizer,
a partir de um ponto, no mundo inteiro. Enquanto submete seu objeto – em
nosso exemplo, “o nível social” – a condições sempre diversas, ele lança luz
sobre novas características, as quais, depois de as revelar, antes de tudo, de
modo absolutamente geral, pode, em seguida, confirmar na experiência. Deste
modo chega a descobrir leis e formas dos processos que, superficialmente,
não possuem nada em comum entre si. A fundamentação das característi-

21 Idem, p. 44 263
cas estruturais do nível social leva Simmel a mostrar um grande número de
relações típicas a uma estrutura baseada nas afinidades substanciais dos fe-
nômenos. Simmel demonstra, por exemplo, que os indivíduos, reunidos em
uma massa, tornam-se privados das suas qualidades espirituais mais elevadas,
ou mostra como grupos de organismos antes reunidos se cindem em seguida,
por uma necessidade de diferenciação, em organismos singulares. Cada uma
destas características substanciais do nível social se encarna em uma série de
fenômenos, os mais díspares, que estão em relação de analogia entre si, pois
estão sujeitos a uma mesma lei, forma e estrutura.
Mas Simmel, em geral, não se limita a investigar as diversas realizações
de um conceito geral no interior do mundo dos fenômenos; tenta, antes de
tudo, descobrir por que as coisas estão entrelaçadas entre si. Não quer ape-
nas estabelecer que entre os fenômenos existe uma relação, mas explicar
também este dado de fato, reconduzindo os condicionamentos recíprocos
dos fenômenos, por assim dizer, a uma fórmula geral, graças à qual se pode
compreender então todas as leis que foram desveladas. Para alcançar tal meta,
Simmel coloca na base de uma multiplicidade de processos e de situações um
sentido unitário, e o transforma em ponto de partida para o seu irradiar-se
na totalidade. A não ser que o pensador renuncie a tal entrelaçamento de
sentido, pode difundir-se no mundo, partindo de qualquer conceito geral e
de qualquer momento abstrato, para mostrar simplesmente todos os fatos
aos quais o relativo conceito base de qualquer modo ainda se refere. Não é
tarefa sua ir além disto, e, sobretudo, isto lhe é proibido quando a unidade
do conceito, que reúne em si todos os fatos já descobertos, não se identifica
com a unidade do significado. Em muitas das suas investigações sociológi-
cas, Simmel se limita a vaguear no lado exterior dos fenômenos. O conceito
que, volta e meia, lhe serve como fio condutor se mostra insuficiente para
uma interpretação mais profunda, pois mesmo os fenômenos que podem ser
explicados por meio do conceito carecem de um fundo comum dos signifi-
cados. Esta situação modifica-se imediatamente se o conceito, em vez de ser
uma criação artificial, uma abstração arbitrária, indica realidades que são
em si e para si essencialidades mesmas. Compare-se, por exemplo, um tema
264 como Die Kreuzung sozialer Gruppe [O entrecruzamento dos grupos sociais]
com um outro como Das Abenteuer [A aventura].22 No primeiro caso, o fi-
lósofo emprega um conceito fundamental que emerge de seu puro interesse
cognitivo, enquanto a atenção se volta a uma multiplicidade que não consti-
tui uma unidade natural. O conceito base do segundo caso, ao contrário, se
refere a uma realidade experienciável na sua unidade; apenas a uma tal re-
alidade pode ser atribuído um significado, apenas ela pode ser alentada por
uma concepção que lhe confira sentido. Em um estudo sobre Gesellschaft
[Sociedade], por exemplo, Simmel a entende como uma forma de jogo da
socialização,23 chegando a explicar a essência de todos os fenômenos da vida
social. Ou o significado da “asa de um vaso” é para ele aquele que significa a
correspondência entre o mundo da obra de arte e o mundo da vida prática.24
Em todos estes exemplos o filósofo se esforça por exprimir, em conceitos, a
unidade de significados de um grupo de fenômenos a qual ele vivenciou dire-
tamente. Quer fixar esta unidade em uma fórmula que na esfera do conceito
reflete, sem resíduos, a sua vivência. A pluralidade, por exemplo, das rela-
ções inter-humanas e processos espiri­tuais contida na palavra “sociabilidade”
representa para Simmel, assim como o indivíduo, uma compacta totalidade
de significados.25 Como não pode dar a toda plenitude do mundo um único
denominador comum, dirige seu olhar a uma variedade de complexos em
todos os lugares no mundo que pode vivenciar. Extrai o núcleo essencial de
tal conjunto com grande clareza, transformando o conceito no princípio ex-
plicativo dos fenômenos que são reintroduzidos no seu complexo de origem.

22 Über die Kreuzung sozialer Kreise [O entrecruzamento dos grupos sociais] em Über sociale
Differenzierung [Sobre a diferenciação social], pp. 237-57; Das Abenteuer [A aventura] em
Philosophische Kultur [Cultura filosófica], pp. 13-30.
23 Ensaio de Simmel, Gesellschaft [Sociedade] é, na verdade, Exkurs über das Problem: wie ist
Gesellschaft möglich? [Excurso sobre o problema: como a sociedade é possível?] em Soziologie
[Sociologia], pp. 42-61. A passagem citada por Kracauer está em Soziologie der Geselligkeit
[Sociologia da vida social] em Grundfrage der Soziologie, p. 53 [ed. bras.: Questões funda-
mentais da sociologia. Trad. Pedro Caldas. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2008].
24 Der Henkel [A asa] em Philosophische Kultur [Cultura filosófica], pp. 126-34.
25 Soziologie der Geselligkeit [Sociologia da vida social] em Grundfrage der Soziologie, pp. 48-68
[ed. bras.: Questões fundamentais da sociologia. Trad. Pedro Caldas. Rio de Janeiro: Editora
Jorge Zahar, 2008]. 265
Na medida em que no interior da totalidade não existem grupos separados
nitidamente entre si, mas cada fenômeno está em relação com outro, o filó-
sofo pode finalmente irradiar-se mais e mais na totalidade, partindo de cada
princípio que no início constituía apenas o centro de significado de um li-
mitado grupo de fenômenos.
Pretendo ilustrar esta maneira de proceder recorrendo a um exemplo par-
ticular. A essência da moda, para Simmel, está no fato que satisfaz seja a neces-
sidade de imitar seja aquela de se diferenciar dos outros. A moda representa
a forma de expressão unitária destes dois impulsos sociais fundamentais, que
graças a ela se encontram unidos em uma única manifestação. Justamente
em referência a esta característica essencial, torna-se subitamente clara uma
analogia entre a moda e a honra social: os dois fenômenos são semelhantes,
pois constituem o produto de uma separação segundo classes, e porque ser-
vem “para constituir um círculo de pessoas e de isolá-lo dos outros”.26 Partin-
do-se dessa fórmula que capta a essência da moda, resulta sem mais que as
suas criações não decorrem de necessidades objetivas, mas são um produto
de necessidades sociais e psicológicas. Na base deste conceito torna-se possí-
vel traçar um paralelo entre a moda e o dever; ambos os fenômenos estão de
acordo em relação a seu “ser estranho à realidade”, na sua indiferença em re-
lação ao “o quê”, à matéria, na qual se realizam. Aqui o procedimento de Sim-
mel torna-se claramente reconhecível. Mostra como toda nova característica
estrutural e todo novo tipo de comportamento do seu objeto se manifestam
concretamente também em outros objetos. Deste modo, Simmel pode esten-
der no mundo uma rede de analogias. Pode-se compreender facilmente que
âmbitos como o da religião e o da ciência, que representam escolhas basea-
das apenas em critérios objetivos, estejam livres do domínio da moda ou pelo
menos seu domínio no interior destes âmbitos não possuem nenhuma razão
de ser. A moda é uma prerrogativa dos estratos sociais superiores, nos quais
a necessidade de se distinguir é desenvolvida ao máximo grau. O fato de que

26 Die Mode [A moda] em Philosophische Kultur [Cultura filosófica], p. 34 [versão em portu-


guês em Iara: revista de moda, cultura e arte. http://www.iararevista.sp.senac.br/edl/edl/pt/
266 contcomp/07.html].
a moda deva ser concebida como resultado dos dois instintos principais, já
indicados por mim, é confirmado na imutabilidade dos trajes de luto, conce-
bidos para mostrar o estado de ânimo de quem está de luto, e assim é definido
por Simmel como “fenômeno que nega a moda”.27 Uma vez que uma moda
se impõe, logo é imitada por todos e o mundo inteiro tenta apoderar-se dela.
No momento em que, entretanto, a moda é apropriada pelas massas, deixa de
ser moda, não corresponde mais a uma forma adequada à necessidade de se
distinguir dos estratos sociais superiores, à forma que torna possível sua mani-
festação. “A moda pertence, portanto, àquele tipo de fenômeno que visa a uma
difusão sempre mais vasta e a uma realização sempre mais perfeita, mas que,
uma vez alcançada esta meta absoluta, entra em contradição consigo mesmo
e se aniquila.”28 Um comportamento análogo encontra-se, por exemplo, nas
tentativas da moral e no trabalho (econômico). Uma visão clara da essência
da moda ajuda a compreender a sua predominância na época da “civilização”,
em uma época, portanto, que para Simmel significa ainda o presente. Faltam,
assim defende o filósofo, aquelas convicções profundamente enraizadas em
razão das quais nossa vida inteira pode encontrar um fundamento metafísico.
Na medida em que não somos determinados pelo interior, a moda pode impor
seu próprio domínio em quase todas as esferas do ser, dirigir várias atividades
e expressões de acordo com seus próprios desejos. Além disso, tornamo-nos
nervosos, amamos a mudança e talvez por isso mesmo queira fugir do esva-
ziamento da alma; estas características e tendências favorecem o surgimento
da moda, e que pode depender não em pouca medida da nossa capacidade
de mudar, do nosso desejo por tudo o que é novo. O grupo que no interior da
sociedade determina a moda são principalmente as camadas médias. As cama-
das inferiores são de fato imobilizadas, oprimidas como são pelas necessidades
econômicas; as camadas superiores em virtude da sua postura conservadora.
O desejo de se distinguir cresce quanto mais os homens vivem amontoados
uns ao lado dos outros, por isto a moda é um fenômeno da metrópole. Simmel
passa a considerar em seguida os diversos comportamentos típicos do indiví-

27 Idem, p. 40.
28 Idem, p. 41. 267
duo em relação à moda. Aquele que segue a moda se distingue dos outros, mas
não como indivíduo singular, mas como membro de um grupo determinado.
Isto explica o julgamento que se faz dele: “Aquele que segue a moda é inve-
jado como indivíduo, é aceito como representante da espécie”.29 Após lançar
luz sobre os traços psicológicos característicos dos heróis da moda, Simmel
chama atenção para o fato de que os adversários conscientes de tudo o que é
moderno aplaudem a moda do mesmo modo como aquele que se confessa seu
seguidor. Mesmo as ações deste tipo humano correspondem à necessidade de
diferenciar-se e de integrar-se com os outros, trata-se de um herói da moda
com sinal trocado. Do mesmo modo, o ateísmo é, não raramente, o produto
de um impulso religioso; instintos primários [Grundtriebe] se realizam mesmo
que por meio de conteúdos contrários. O fato de que as mulheres se curvam à
moda mais do que os homens se explica pela falta de objetividade própria do
sexo feminino e pela sua dependência ao meio social. A mulher emancipada,
que quer partilhar das aspirações do homem, deve rebelar-se logicamente tam-
bém contra a pretensão de domínio da moda. Pois a moda envolve apenas a
superfície da personalidade, em muitos casos serve de máscara aos homens
de índole profunda. Utilizam-na para se esconder, sujeitar-se a ela significa
um “triunfo da alma sobre os fatos da existência”.30 Por mais que uma moda
possa ser sem pudor não ofenderá nunca o senso de pudor que, segundo a
definição certamente insuficiente de Simmel, possui raízes no desejo de distin-
guir-se que é próprio ao indivíduo singular. Os vestidos de baile bem talhados
dão uma impressão penosa, se são vestidos em ocasiões não solenes, para as
quais não foram concebidos. A moda, como o direito, faz parte da forma de
vida em comum que regula o comportamento exterior do homem. Quanto
mais se reconhecem espontaneamente nesta forma, tanto maior será a liber-
dade interior alcançada. Certamente, mesmo o indivíduo singular cria para
si uma “moda pessoal” para satisfazer seja a necessidade de unificação dos
motivos anímicos, seja a necessidade de chamar atenção sobre algum traço
essencial que no momento lhe parece significativo e por isso mesmo gostaria

29 Idem, p. 43.
268 30 Idem, p. 52.
de desenvolvê-lo até o fim. Adota um certo estilo, em certos momentos pre-
fere empregar no discurso um tipo de ênfase, evidenciando particularmente
uma ou outra das suas características. Toda moda se comporta como se lhe
fosse dada vida eterna, não obstante ser destinada inevitavelmente a perecer.
Isto se explica, segundo Simmel, pelo fato de que a moda como conceito uni-
versal é certamente imortal, pois permite aos instintos primários uma forma
de encarná-los. As modas mudam, mas a moda permanece, e este elevar-se
sobre o tempo atinge sempre os seus conteúdos fugazes, manifestamente, a
exigência de durar no eterno…
Nem sempre Simmel elabora tipos de unidade como os acima citados, isto
é, unidade de conceito e de significado em pontos de partida para penetrar na
totalidade. Com isso ele decompõe também unidades inautênticas, que abar-
cam uma multiplicidade de elementos de fato privados de nexo. A maioria
dos conceitos da vida cotidiana não nasce da visão imediata da realidade fac-
tual; a matéria que constitui o seu fundamento é elevada à consciência apenas
de modo totalmente vago e indistinto. Não se trata de uma vivência, mas de
moe­da corrente. Na sua obra de juventude Einleitung in die Moralwissenschaft
[Introdução à ciência da moral], ele se esforça em dissipar a névoa das repre-
sentações indistintas que se agregam em torno dos conceitos fundamentais
(por exemplo, em torno do conceito de egoísmo ou de altruísmo), revelando
a multiplicidade dos fatos morais e que estão na base destes conceitos. Em
vez de aceitar passivamente os conceitos em questão e de torná-los o coração
de uma doutrina ética qualquer, sem tê-los examinados previamente, Simmel
desce até os seus fundamentos para destruí-los, enquanto ilumina a mesma
realidade, a longa série de teorias que têm origem no turvo reino dos concei-
tos, que se impõe entre o sujeito cognoscente e a realidade. Mesmo agora o
seu procedimento se assemelha àquele descrito anteriormente, mas aqui lhe
interessa mais destruir um mundo construído sobre conceitos aparentes do
que iluminar os contextos existentes no seu interior.
A Filosofia do dinheiro representa um exemplo extraordinário da conquista
da realidade por parte de Simmel, conforme estamos discutindo. Pode-se ler
no prefácio: “Logo, o dinheiro aqui é apenas meio, material ou exemplo para
a representação dos nexos existentes entre os mais exteriores, os mais realis- 269
tas, as manifestações fenomênicas mais casuais e as potências mais ideais da
existência, entre as correntes mais profundas da vida individual e aquela da
história”.31 Todos os âmbitos disponíveis de questionamento são percorridos
aqui pelo pensador, que evidencia também as infinitas ligações intrincadas, no
interior destes âmbitos, entre fenômenos igualmente infinitos. Simmel oferece
diversos cortes transversais da vida social e individual na época de uma eco-
nomia do dinheiro desenvolvida. As suas considerações não são o resultado
nem de uma concepção histórica, nem de um ponto de vista típico da econo-
mia política; resultam apenas da intenção filosófica de tornar transparente à
consciência, em todas as suas partes, o entrelaçamento da multiplicidade real.
Em nenhuma outra de suas obras o pensador traça um quadro tão amplo do
entrelaçamento e entrecruzamento dos fenômenos. Lança luz sobre a sua es-
sência e, em seguida, depois de fazer com que esta seja novamente reabsorvida
em uma grande quantidade de relações, mostra como tais relações se condi-
cionam reciprocamente revelando os numerosos casos comuns. Todos fazem
parte destes fenômenos de modo aproximado: a troca, a propriedade, a avareza,
o esbanjamento, o cinismo, a liberdade individual, o estilo de vida, a cultura,
o valor da personalidade e assim por diante. Partindo do conceito de dinheiro
propriamente dito, Simmel se irradia em todas as possíveis direções do múlti-
plo; isto é, reconhece a natureza do dinheiro, as suas relações com os objetos,
o tipo de função que desenvolve, o seu lugar na cadeia dos fins. Por outro lado,
ao contrário, parte de fenômenos para ele essenciais – transformando-os em
novos núcleos –, dirige seu olhar ao dinheiro, quando, por exemplo, descobre
o significado da economia política para o desenvolvimento da personalidade e
para a formação da vida interior e exterior. A quantidade inexaurível de analo-
gias entrelaçadas chama continuamente a atenção sobre o pensamento unitá-
rio que está na base da obra inteira, um pensamento que pode ser formulado
brevemente nestes termos: de qualquer ponto da totalidade se pode chegar a
outro ponto, todo fenômeno traz e sustenta outro fenômeno, não há nada de
absoluto que exista deslocado dos outros fenômenos e que possua valor em
si. Este relativismo, que Simmel exercitou na Filosofia do dinheiro não apenas

270 31 Philosophie des Geldes [Filosofia do dinheiro], p. 12.


do ponto de vista prático, mas teoricamente, será objeto, em seguida, de uma
análise mais aprofundada.
No que se refere, em geral, ao modo como Simmel penetra no mundo, é
elucidativo que o desdobramento da totalidade assume uma forma um tanto
mais compacta quanto mais os fenômenos, cujo entrelaçamento deve ser toda
vez ilustrado, parecem se encontrar distantes entre si. Nas suas reflexões so-
bre o mundo, o pensador se esforça continuamente em aproximar as coisas
mais distantes; percebe-se claramente que pretende nos revelar uma ideia so-
bre a ligação unitária existente no interior do múltiplo; Simmel, pelo menos
de modo aproximativo, pretende mostrar a multiplicidade no seu conjunto,
mesmo que esta não seja completamente revelada. Prefere investigar a ligação
entre os objetos que, vistos da superfície, são absolutamente estranhos entre
si, pois penetram nos mais diversos âmbitos de reflexão. De qualquer nível
do ser, escolhido ao acaso, salta à esfera da vivência da personalidade inte-
rior. No voo sobre os abismos, de um polo a outro, lhe acompanha uma sutil
emoção puramente individual ligada a uma manifestação da vida social, para
em seguida lançar as pontes que levam até os motivos fundamentais de uma
Weltanschauung. Ágil e seguro, o seu espírito se move através de todas estas
esferas e, por toda parte, ao brilho de afinidades e semelhanças.
Se estas são as questões de seu pensamento (como se pode deduzir quase
a priori da natureza da sua produção intelectual), para o filósofo deve ser rela-
tivamente indiferente a escolha dos problemas a analisar, supondo que façam
parte de um âmbito de investigação acessível. Todo fenômeno singular pode
ser ponto de partida para a investigação filosófica, já que a partir deste objeto
– ou de qualquer outro – é possível sondar as conexões existentes no interior
da totalidade da vida que tudo abarca. O ponto de partida momentâneo do
pensamento, que Simmel rebaixa propriamente ao lugar de simples exemplo,
torna-se objeto de reflexão apenas quando forma um grupo mais ou menos
coeso de relações, que por um lado remete além de si mesmo à pluralidade de
relações no mundo no seu todo. Compreende-se assim porque, não obstante
a diversidade dos argumentos utilizados por Simmel – quase nenhum outro
pensador traçou um raio tão amplo de fatos reais aos quais direciona a própria
reflexão –, todas as suas obras sem exceção apresentam um caráter unitário tão 271
marcado. É a consequência do fato de que os fenômenos na sua singularidade
se apresentam, em boa medida, como um conjunto de ligações. Mesmo estes
fenômenos não são outra coisa que simples pontos de conjunção e de trânsito
para poder penetrar na estrutura global da multiplicidade do real, da qual o
entrecho é removido para ser subsequentemente reposto.
O procedimento que Simmel utiliza para poder expandir-se na totalidade
produz resultados estranhamente inapreensíveis. Esta passagem de um ponto
ao outro, o entrecruzamento e o transversal, este esparramar-se tanto perto
como distante, não confere nenhum ponto firme ao espírito que gostaria de
abarcar o todo, e se perde no infinito. Já que a única função é tornar visíveis
as conexões ocultas, os fios entrelaçados entre os fenômenos que se ligam de
modo irregular e arbitrariamente, o não-sistemático torna-se aqui sistema, não
importa onde se chega, a não ser que, lançando fora e juntando estes fios, se
possa chegar a qualquer conclusão. Este tecido não é feito segundo um plano,
como uma ordenação bem estruturada de pensamentos; o seu único fim é,
sobretudo, o de estar lá e o de demonstrar com a sua existência o entrelaça-
mento das coisas. Ágil e delicado se estende em amplitude e em profundidade,
evocando a ideia de um mundo de rara vibração; como uma paisagem solar
onde os rígidos contornos das coisas se dissolvem, ficando apenas um único
mar de luz trêmula a envolvê-las coisas. Esta vibração é produto das contínuas
interrupções que Simmel impõe ao processo de seu pensamento, para poder
descobrir, nas mais diversas esferas, analogias com um tipo de comportamento
colocado em evidência. Como resultado destas incursões se começa a perce-
ber, no seu entrelaçamento, os elementos que compõem a multiplicidade do
real. Sentimos que todo fenômeno reflete um outro fenômeno, constitui uma
variação de uma melodia fundamental que ainda ressoa em muitos lugares.
Embora que Simmel, como tentei demonstrar, conecte os fenômenos entre
si de modo sempre diverso, em quase todos os percursos que traça, entre os
infinitos pontos do múltiplo está presente um sentido de direção bem deter-
minado. A tarefa essencial da filosofia, defende o pensador no prefácio a seu
Rembrandt, consiste “em sondar o estrato último dos significados espirituais,
partindo do elemento singular na sua imediaticidade e do simples dado de
272
fato”.32 Dever-se-ia esperar que Simmel, durante suas incursões na totalidade,
ou se detivesse na esfera das coisas singulares, atento às suas relações recípro-
cas, ou se poderia também imaginar que ele se detivesse na esfera das ideias,
sem dar atenção aos objetos a ela relacionados. No primeiro caso depararíamos
com o filósofo empírico, que se limita a descobrir a concatenação dos fatos,
mas se recusa atribuir-lhes um significado. No segundo caso, com o filósofo
metafísico puro, que está em condições de extrair um significado absoluto do
mundo, mas nesta direção não chega a encontrar o caminho que conduz à
plenitude da realidade, que talvez pode experienciar pensamentos capazes de
abarcar o mundo na sua própria totalidade, porque recusa a vivência direta
dos fenômenos singulares. Simmel, ao contrário, é, por sua própria natureza,
um mediador entre o fenômeno e a ideia. Partindo da superfície das coisas,
com a ajuda de uma rede de relações analógicas e de afinidades substantivas,
penetra nos seus fundamentos espirituais; evidencia assim em toda superfície o
caráter simbólico, como manifestação e efeito destas forças espirituais e dessas
essencialidades. O evento mais insignificante indica o caminho em direção às
profundezas da alma; a todo evento, considerado de um certo ponto de vista,
pode ser atribuído um significado relevante. Em Simmel, uma luz que parte do
interior faz resplandecer os fenômenos, como o tecido e o adereço em certos
quadros de Rembrandt. Toda opacidade e miséria são retiradas da fachada do
mundo; é como se este se tornasse subitamente transparente como cristal que
se pode olhar por dentro e por trás, nos estratos do ser normalmente ocultos
dos quais o mundo é a um só tempo revelação e invólucro.
A unidade de sentido, que Simmel nega ao mundo, ele atribui, em contra-
partida, aos indivíduos. Ao extraí-los das conexões das multiplicidades e lhes
contrapor estas como totalidades fechadas em si, que se transformam e apa-
recem segundo suas próprias leis. Nas análises do microcosmo representadas
pelo indivíduo singular, Simmel emprega o procedimento exatamente oposto
àquele seguido para conquistar o macrocosmo: este é apreendido como um
movimento que parte do centro para o exterior, o microcosmo ao contrá-
rio por meio de uma fórmula que engloba a essência. Ao lado disto, o modo

32 Rembrandt, p. VII. 273


pelo qual o filósofo compreende a individualidade corresponde exatamente
ao modo pelo qual revela as conexões intrínsecas que sustentam os grupos de
fenômenos que, na sua multiplicidade constitutiva, formam uma unidade
de significado. Assim, por exemplo, Simmel tenta explicar a causa comum a
tantas manifestações e comportamentos que estão sob o conceito de moda;
tanto o fenômeno sociológico como o homem enquanto totalidade espiritual
são para ele individualidades de que se deve captar a essência, para compre-
ender o significado unitário que pertence em igual medida a todas as suas
manifestações. A diferença é que Simmel, enquanto remove completamente
do mundo no seu conjunto a individualidade humana, leva, entretanto, em
consideração qualquer outro complexo individual justamente por seu íntimo
entrelaçamento com o todo. Que tudo esteja em relação com o todo, este prin-
cípio fundamental do pensador é também empregado à figura humana singu-
lar. As ações, os sentimentos, os pensamentos de um homem estão fundidos
inseparavelmente e, para entender o porquê deste entrelaçamento, trata-se de
lançar luz sobre a essência da qual são expressão. Como já mencionamos, nu-
merosas obras de Simmel têm como objeto grandes personalidades como Kant,
Schopenhauer, Nietzsche, Goethe e Rembrandt. Certamente não se trata nem
de uma biografia destes homens, nem de uma análise crítica e objetiva das suas
obras. O filósofo tem de expor, antes de tudo, das figuras que lhe interessam,
a vivência intuitiva do sentido espiritual e de mostrar em seguida como este
espírito se incorpora e deve ser incorporado nas diversas manifestações daque-
las personalidades. É uma tentativa de desvelar o mais íntimo do modo de ser
do indivíduo, de lançar luz sobre o núcleo essencial que o indivíduo mesmo
(e não podemos discutir aqui os motivos) não pode perceber.
Depende da natureza do homem, e do ângulo visual do qual se lhe observa,
até que ponto as suas manifestações podem ser condensadas numa imagem e
são vivenciadas como unidade. Pode-se prestar atenção, sobretudo, em suas
obras, ou extrair o verdadeiro significado da sua concepção de mundo [Wel-
tanschauung], ou mesmo sondar o significado de uma vida vivida na sua
inteireza. O que vale em um homem como típico da sua personalidade de-
pende em primeiro lugar dele mesmo. Existem dois tipos de personalidade
274 criativa que se comportam de maneira diversa no que se refere à realização
da sua natureza espiritual. Em alguns tal natureza se desprende totalmente de
suas obras. Não seria necessário conhecer nada da sua vida real e se poderia
deduzir o sentido de sua existência daquilo que produziram que, separado
da real existência do seu autor, continua a viver como criatura autônoma. O
que é significativo do ponto de vista espiritual se objetiva nestes casos quase
sem resíduos, destacando-se da pessoa para se transferir a sua criação, onde
se conserva como um cristal. Na personalidade do outro tipo, ao contrário,
o genius não se exprime apenas na obra, mas se manifesta em todo processo
de desenvolvimento da sua personalidade, toma corpo na totalidade da exis-
tência concreta. O que foi produzido não exaure certamente o sentido de tais
existências; para apreendê-lo e para compreendê-lo é necessário um olhar
que abarque todas as manifestações da sua vida. Não menos importante para
definir quais são os traços essenciais de uma personalidade e as resultantes
que sempre se fundem numa unidade, depende decerto do posicionamento
espiritual daquele que se propõe a conhecê-los. Serão as suas vivências fun-
damentais a dirigir a atenção seja para um ou para outro aspecto da multipli-
cidade do indivíduo no centro das análises; alguns aspectos aparecerão agora
em primeiro plano, os outros se mostram, por assim dizer, apenas de forma
abreviada, podendo entrecruzar-se e em seguida desaparecer. Justamente em
uma época em que o sentido tornou-se alienado [Sinnentfremdung], todo fe-
nômeno, coisa ou qualquer indivíduo, é suscetível de significados infinitos,
e a imagem que se lhe extrai é o resultante de sua própria essência e da de
seu observador.
Quase todas as figuras as quais, no desenvolvimento do seu pensamento,
Simmel se aproximou, foram concebidas como individualidades manifestas
em suas obras. Trata-se de Kant, de Schopenhauer, de Nietzsche ou de Rem-
brandt, ou de um dos pensadores que menciona no livro Hauptprobleme der
Philosophie [Os principais problemas da filosofia], destas personalidades con-
sidera exclusivamente as obras, sem se deter em nenhum dos casos no con-
junto da vida. Na medida em que a sua intenção é descobrir as relações de
homogeneidade intrínseca entre as criações singulares destas personalidades,
deve, antes de tudo, encontrar o núcleo unificador das ideias expostas nas
obras, ou o que lhe parece ser o núcleo, para poder provar em seguida como 275
toda obra depende, até mesmo em suas ramificações extremas, da essência do
núcleo, e o quanto ela está radicada justamente neste e em nenhum outro fun-
damento de ideias. Guiado por tal esforço, Simmel escolhe a trama intrincada
da obra para em seguida reconstruí-la, traçando do centro ideal, em direção
à superfície visível, linhas puramente estruturais.33 As ligações que engendra
não correspondem de modo algum às conexões visíveis na obra e nas quais
o autor lançou voluntariamente luz. São percebidas, antes de tudo, olhando
por meio da obra, e como raios vão dos diversos elementos ao ponto central,
precisamente à ideia fundamental que é possível alcançar de modo intuitivo.
Todas as ligações transversais entre os elementos da obra como um todo são
reunidas, passando pelo centro. A finalidade da representação não é nunca
a de copiar simplesmente o conteúdo objetivo. Para destacar qualquer parti-
cularidade que seja em relação à variedade dos outros componentes, apenas
quando justamente neste particular conflui o caminho percorrido a partir do
ponto central, quando o importante é descrever as relações do particular nas
relações com a ideia que ilumina toda a obra. De resto, o método que Simmel
adota nas suas investigações sobre a individualidade é semelhante ao proce-
dimento já ilustrado com o exemplo da moda, neste caso Simmel está menos
interessado na busca de analogias que lhe auxiliam a medir a amplitude inteira
do mundo, no momento em que entende a figura espiritual como uma multi-
plicidade de relações com um único significado, uma multiplicidade limitada
em relação à totalidade, baseada exclusivamente em si mesma. A essência da
arte de Rembrandt, por exemplo, é caracterizada na sua capacidade de domi-
nar a vida. Para Simmel, Rembrandt abrange a absoluta continuidade da vida;
nele parece “que o momento representado contém o impulso vital conjunto,
que narra a história desta corrente de vida”.34 Da essência da arte de Rembrandt,
Simmel passa, portanto, às diversas manifestações artísticas do mestre, à série
dos autorretratos, às obras religiosas, aos desenhos. Todas elas, na sua pecu-

33 Nas lições sobre Kant, Simmel escreve: “A forma da sua [de Kant] exposição deve ser comple-
tamente quebrada…” a fim que possa tornar claro o seu conteúdo superindividual.
276 34 Rembrandt, p. 2.
liaridade e nas suas conexões, são apreendidas partindo da compenetração de
ideia criativa e existência do artista, das quais são símbolo e expressão.
Apenas uma única vez, e precisamente no seu Goethe, Simmel tenta al-
cançar a raiz de uma individualidade que encontra na vida mesma a sua ma-
nifestação. O segredo da figura de Goethe está oculto, segundo ele, no fato de
que o poeta, “obedecendo completamente à própria lei, corresponde justa-
mente de tal modo à lei da coisa”;35 no fato que toda a sua vivência, também
em relação a tudo aquilo que se aproxima do exterior, se adequa à corrente da
sua personalidade de maneira maravilhosa, como se fosse guiada pelo destino,
e fundindo-se nela encontra expressão criativa. A própria realidade existencial
irrepetível é um fenômeno originário [Urphänomen] que possui um sentido
que pode ser vivido, que pode ser incluído em uma fórmula. O desprender-se
da alma, a relação com a natureza e com os homens circundantes, a qualidade
dos sentimentos, à medida que abandona ou se preserva, pode ser interpretado,
partindo do espírito do qual é pleno.
Para completar este corte transversal na filosofia de Simmel, pretendo en-
fim considerar brevemente o modo pelo qual ele se apropria da matéria das
suas reflexões. Simmel a contempla em uma relação de percepção interna e
descreve, pois, o que é contemplado. Recusa-se a derivar, de forma rigida-
mente sistemática, os dados singulares de conceitos gerais. Os pensamentos
se adaptam no seu desenvolvimento ao que é imediatamente experienciável da
realidade vital, mas certamente não acessível a todos, mesmo a mais abstrata
exposição não possui outra fonte senão aquela contemplação que a exaure ple-
namente. O ato de pensamento em Simmel se apoia sempre em uma vivência
de percepção de algum tipo, que pode ser realizado a não ser pelos próprios
meios. Desenha o que viu, todo o seu pensamento é fundamentalmente um
apropriar-se dos objetos por meio do olhar dirigido a eles.
Quem compreendeu o princípio fundamental do pensamento de Simmel
descobre também com isto os fundamentos profundos da forma de mani-
festação desta filosofia. Frequentemente se reprova o pensador pela afetação
de seu estilo, a sutileza muitas vezes excessiva. Como se tudo fosse apenas

35 Goethe, p. 10. 277


um acessório casual que poderia ser deixado de lado sem provocar mudan-
ças no núcleo conceitual. Se muitas vezes fatos aparentemente banais são
descritos de modo complicado, isto se deve ao esforço do filósofo de enten-
der mesmo o mais simples dos fenômenos como símbolo, como algo que se
refere a outras situações e acontecimentos. Faz refluir no fenômeno toda a
plenitude do mundo, antes de compreendê-lo na sua evidente peculiaridade,
justamente o que verdadeiramente lhe interessa. As analogias longínquas
que se encontram em toda a obra de Simmel como se transitassem de uma
esfera a outra não constituem, portanto, neste sentido, uma arbitrariedade
barroca, um claro desvio do objetivo da investigação, mas antes o próprio
objetivo da reflexão.36

36 Este ensaio foi publicado originalmente em 1920, na revista Logos, e constitui o capítulo
introdutório de um livro nunca publicado sobre Simmel [N.A]. Este estudo foi publicado
na íntegra em Siegfried Kracauer, Frühe Schriften aus dem Nachlass [Primeiros escritos das
obras póstumas]. Organização de Ingrid Belke e Sabine Biebl. Frankfurt am Main: Suhrkamp,
278 2004, pp. 139-280.
Sobre os escritos de Walter Benjamin

Recentemente foram publicadas duas obras de Walter Benjamin: Ursprung des


deutschen Trauerspiels [Origem do drama barroco alemão] e Einbahnstrasse
[Rua de mão única].1 A primeira contém a apresentação e interpretação daque-
les elementos essenciais, corporificados na realidade do drama barroco (que
ainda abrange muito mais). A outra é uma coleção de aforismos que, em uma
rede de vias pouco conhecidas, se ramificam ou confluem nos fenômenos da
vida contemporânea.
Apesar da diferença temática, ambas as obras são conjuntamente a expres-
são de um tipo de pensamento estranho ao desta época e que, em sua origem,
é semelhante aos escritos talmúdicos e aos tratados da Idade Média. Tal como
nestes, a sua forma de exposição é a interpretação. Os propósitos desse pensa-
mento são de ordem teológica.

1 Walter Benjamin, Ursprung des deutschen Trauerspiels. Berlim: Rowohlt, 1928 [ed. bras.: Ori-
gem do drama barroco alemão. Tradução de Sérgio Paulo Roaunet. São Paulo: Brasiliense,
1984]; Einbahnstrasse. Berlim: Rowohlt, 1928 [ed. bras.: em Obras escolhidas, volume 2.
Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Brasiliense, 1987, pp. 9-69]. 279
O próprio Benjamin denomina o seu procedimento monadológico. Ele é a
antítese do sistema filosófico que quer garantir o seu alcance no mundo por
meio de conceitos universais e, sobretudo, a antítese da generalização abs-
trata. Enquanto a abstração une os fenômenos entre si para inserí-los em
um contexto mais ou menos sistemático de conceitos formais, Benjamin –
reportando-se aqui à teoria platônica das ideias e à escolástica – afirma a
multiplicidade descontínua não tanto dos fenômenos, mas das ideias. Estas
se manifestam nos meios obscuros da história. O drama trágico, por exem-
plo, é uma ideia.
Decisivo para este pensamento é que as ideias não se revelam pelo contato
direto com os fenômenos vivos. O observador, que mantém uma relação di-
reta com os fenômenos, pode apreender a sua forma ou pode eventualmente
interpretá-los como a realização de quaisquer abstrações. É indiferente como
ele os percebe, pois, segundo Benjamin, o modo pelo qual um fenômeno se
apresenta em uma relação direta é o menos adequado para revelar alguma
coisa sobre as essências que contém. A sua forma viva é transitória e os con-
ceitos dela derivados são insignificantes. Em resumo: o mundo mostra àquele
que se volta diretamente para ele uma figura, que precisa destruir para alcan-
çar as essências.
Em seu estudo sobre o drama, Benjamin analisa em detalhes e de modo
exemplar o complexo “drama barroco” em seus elementos significativos, uma
dissecação necessária para a exposição da ideia. Um desses elementos é a ale-
goria. A partir das fontes, Benjamin remonta à origem intencional da alegoria,
quer dizer, até o ponto de sua história no qual desvenda o seu verdadeiro sig-
nificado. Uma rara capacidade intuitiva torna-o capaz de penetrar o mundo
ancestral das essências e descobrir aquilo que são desde os primórdios. A sua
interpretação da alegoria é digna de ser admirada. Utilizando o texto original,
a interpretação é a primeira a demonstrar como a natureza (que não resistiu à
morte) – e para o barroco, a história como história do sofrimento do mundo
é a natureza – se torna alegoria sob o olhar do melancólico. E depois de todos
os elementos estarem completamente saturados com o extremo de seu signi-
ficado, Benjamin apresenta o movimento dialético, no qual eles se enovelam
280 no interior da estrutura formal do drama barroco. Em absoluta coerência com
seu pensamento, não se trata mais para Benjamin de identificar as essências
por meio de um conceito geral abstrato, pois o que lhe interessa é só a sua sín-
tese dialética, que lhe assegura a plena concretude. Se as significações se unem
em torno de uma ideia, elas saltam de uma a outra como fagulhas elétricas,
ao invés de se “anularem” em um conceito formal. No curso da história, elas
eventualmente se submetem a uma separação dialética e cada qual adquire
uma história subsequente de si mesma, sobre si mesma.
A diferença entre o pensamento abstrato tradicional e o de Benjamin seria,
portanto, a seguinte: enquanto o primeiro dilui a plenitude concreta dos obje-
tos, o último escava na densa matéria para expor a dialética das essências. Ele
não aceita nenhuma espécie de generalidade e persegue o desenvolvimento
de determinadas ideias ao longo da história. Uma vez que para Benjamin toda
ideia é uma mônada, o mundo parece-lhe revelar-se na representação de cada
uma delas. “O ser que nela [mônada] penetra com sua pré e pós-história traz
em si, oculta, a figura do restante do mundo das ideias […]”.2
O historiador, o historiador da literatura e das artes – para não mencionar
os filósofos –, encontrarão material de interesse sobre o drama barroco na
obra de Benjamin. Ele combina um conhecimento extraordinário dos signifi-
cados e das ideias com a profunda erudição de um pesquisador que, pela sua
convicção filosófica, é impelido necessariamente a remontar àquelas fontes
desconhecidas e dificilmente acessíveis. O livro propõe uma nova teoria da
tragédia antiga e, independentemente de sua interpretação da alegoria, revela
importantes essências como o destino, a honra, a melancolia nos conteúdos
materiais [Sachgehalte] da cena barroca. A obra elucida o significado dos fi-
gurantes envolvidos no drama e de todos os seus elementos e inclui também
a clássica tragédia do destino e seus descendentes românticos. Jamais alguém
havia demonstrado de modo tão convincente que as essências têm início com
a história, sem dela derivarem. Depois da obra de Benjamin, o barroco – e não
somente o barroco – será visto com outros olhos.

2 Walter Benjamin, Ursprung des deutschen Trauerspiels. Frankfurt am Main, 1963, p. 30. [ed.
bras. Idem, pp. 69-70] 281
No que se refere ao método, aqui é especialmente importante o fato de
que a obra sobre o drama barroco não contém apenas a história dos diferen-
tes significados de uma ideia encarnada no elemento material, mas também
uma visão da ordem atemporal do mundo das ideias. A mesma capacidade
intuitiva que conduz Benjamin para a origem das essencialidades, proporcio-
na-lhe o conhecimento do lugar próprio das mesmas, um conhecimento que
com todo o direito se pode chamar teológico. Para ele o mundo está obscu-
recido e obstruído, como sempre esteve de uma perspectiva teológica. Este é
precisamente o motivo pelo qual ele acredita que não é necessário respeitar a
imediaticidade [Unmittelbarkeit], demolir as fachadas, fragmentar a forma. De
modo muito coerente, Benjamin mal se aproxima de imagens e fenômenos no
momento do seu florescimento, preferindo muito mais buscá-los no passado.
Para ele, as imagens e os fenômenos vivos perturbam-no como um sonho, mas
se iluminam no estágio da desintegração. Nas obras e nas situações agora sem
vida e desviadas de toda e qualquer relação com o presente, ele recolhe os seus
frutos. Pois, privados da vida mais urgente, tornaram-se transparentes contra
a ordem das essências.
Em razão da sua capacidade de penetrar nesta ordem, Benjamin deseja
implementar o ato da redenção apropriada para a contemplação teológica.
Ele sempre tem um cuidado especial em demonstrar que as questões gran-
des são pequenas, e as pequenas, grandes. A varinha mágica de sua intuição
atinge o campo do imperceptível, do que em geral é depreciado, do que foi
preterido pela história e é precisamente aqui que ele descobre os maiores
significados. Por isso Benjamin se move no deserto do drama barroco e
confere à alegoria uma importância que, em comparação com o símbolo,
ela não possui na concepção tradicional. Sintomaticamente, na apresenta-
ção de Benjamin, a alegoria resgata os antigos deuses que, graças a ela, po-
dem continuar vivendo no mundo hostil do cristianismo medieval. O outro
motivo de sua contemplação é a descoberta daqueles momentos ocultos e
dos pontos nodais no decorrer da história, nos quais a salvação é vista dire-
tamente ou se mostra em uma imagem. “Sim, quando o Altíssimo fizer sua
colheita nos cemitérios,/ Eu que sou hoje uma caveira terei um rosto de anjo”
282 – estas palavras, proferidas por uma caveira falante na obra Hyacinthen, de
Lohenstein,3 servem como epígrafe do último capítulo do livro sobre o drama
barroco, que trata do súbito deslocamento da melancolia no mundo de Deus
e que interpreta a imagem da apoteo­se como um signo da salvação. Talvez
a intenção especulativa de Benjamin seja, na verdade, perseguir aqui e ali
o processo que, entre o céu e o inferno, se desenvolve às escondidas e que,
às vezes, rompe visivelmente no mundo de nossos sonhos. De modo seme-
lhante, Benjamin pode se denominar um agente secreto, no mesmo sentido
em que Kierkegaard se definia como um “agente secreto da Cristandade”.
Que Benjamin deseje despertar o mundo do seu sonho, é comprovado por
alguns aforismos radicais em Rua de mão única, dos quais publicamos alguns
em nossa seção.4 O pequeno livro, cuja apresentação é bastante tímida, con-
cilia pensamentos dos mais diversos âmbitos da vida pessoal e pública. Para
citar alguns exemplos ao acaso: relatos curiosos de sonhos; cenas de infância e
inúmeros medalhões dedicados a lugares exemplares de improvisação (como
mercados, portos etc.), cujos contornos delicados lembram baixos-relevos;
declarações sobre o amor, a arte, livros e política, muitas das quais registram
às vezes descobertas surpreendentes da meditação. As observações não têm
aliás o mesmo valor. Ao lado de notícias, que talvez ainda aguardem uma ela-
boração, encontram-se expressões do simples esprit, e aqui e ali – por exem-
plo, no capítulo “Panorama imperial”, onde Benjamin procura caracterizar a

3 Daniel Caspers von Lohenstein, “Redender Todtenkopf Herrn Matthäus Machners” de Hya-
cinthen. Em Blumen I, Breslau, 1708, p. 50; citado em Benjamin, Ursprung des deutschen
Trauerspiels, p. 228. [ed. bras.: Origem do drama barroco alemão, p. 239]
4 Benjamin, que já em 1924 previu uma reunião de seus aforismos, enviou uma seleção para Kra-
cauer para publicação no Frankfurter Zeitung. Kracauer dividiu-os em dois grupos: “Kleine
Illuminationen”[Pequenas iluminações], Frankfurter Zeitung 70, número 273, 14 abr. 1926,
e “Häfen und Jahrmarkte” [Portos e feiras], Frankfurter Zeitung 70, número 502, 9 jul.
1926 – todos republicados em fac-símile em Walter Benjamin, Briefe an Siegfried Kracauer,
ed. pelo Theodor W. Adorno Archiv, Marbach: Deutsche Schillergesellschaft, 1987, pp. 93-100.
Em uma carta dirigida a Kracauer, datada de 20 de abril de 1926, Benjamin expressa a sua
satisfação com a publicação de “Kleine Illuminationen” e agradece-o efusivamente por terem
vindo a lume com um título tão ajustado. 283
inflação na Alemanha5 – impressões privadas são monumentalizadas de modo
arbitrário. É como se em seu livro Benjamin tivesse intencionalmente publi-
cado as inúmeras perspectivas acessíveis a ele, com a finalidade de corrobo-
rar, também deste lado, a estrutura descontínua do mundo. Quanto à postura
geral de Rua de mão única, a soma dos aforismos anuncia conscientemente o
fim da era individualista, no seu estágio ingênuo-burguês. O método de dis-
sociar diretamente das unidades vividas – que ele aplica em seu livro sobre
o barroco – assume necessariamente – se aplicado ao mundo de hoje – um
significado explosivo, se não revolucionário. Na verdade, a coleção é rica em
detonações. Contudo, o que emerge desse monte de entulhos não são tanto
as essências puras, mas, muito mais, pequenas partículas materiais, que apon-
tam para essências (por exemplo, quando Benjamin examina o significado
do estado de sobriedade matutina, ou das abluções etc.). De resto, o livro se
diferencia dos trabalhos anteriores pelo seu materialismo particular. Destruir
e em seguida iluminar lá para onde de costume não se volta a nossa atenção,
corresponde propriamente ao método de Benjamin. Já no primeiro aforismo
ele afirma: “As opiniões, para o aparelho gigante da vida social, são o que é
o óleo para as máquinas; ninguém se porta diante de uma turbina e a irriga
com óleo de máquina. Borrifa-se um pouco em rebites e juntas ocultos, que
é preciso conhecer”.6
Decerto a vida em si, aquela que deve ser visada, mal é calculada. Não é
certamente uma coincidência que as interpretações em Rua de mão única con-
quistadas no presente não tenham absolutamente a força combativa daquelas
obtidas do material do drama barroco. Isto se explica pela sua convicção de
que o existente – que para ele se apresenta confuso – é na sua imediaticidade
privado de conteúdo. Benjamin é tão alheio a toda forma imediata, que nem
mesmo pensa em se confrontar com ela. Ele nem registra a impressão de qual-
quer forma dessa imeaditicidade, nem se abandona ao pensamento abstrato

5 Walter Benjamin, “Kaiserpanorama” [Panorama imperial], em Einbahnstrasse, Gesammelte


Schriften 4, pp. 94-101 [ed. bras.: Obras escolhidas, volume 2, pp. 20-26.
6 Idem, “Tankstelle” [Posto de gasolina], em Gesammelte Schriften 4, p. 85. [ed. bras., Obras
284 escolhidas, volume 2, p. 11]
dominante. O seu material próprio é o que passou: para ele, o conhecimento
nasce das ruínas. Aqui, portanto, não se prepara para salvar o mundo vivente;
muito mais, aquele que medita salva fragmentos do passado. Não é sem razão
que, da perspectiva do mundo em sua imediaticidade, a dialética das essên-
cias – que se cumprem às costas deste mundo de imediaticidade e precisam
ser demonstradas nas obras em desintegração – assume uma aparência es-
tética. Benjamin abriria caminho para a realidade total somente quando ele
esclarecesse a dialética real entre os elementos das coisas e suas figuras, en-
tre as concreções e o abstrato, entre o sentido da forma e a própria forma.7 O
tipo de pensamento que Benjamin hoje corporifica, unilateral e como sempre
extremo, caiu no esquecimento desde o advento do idealismo. Ele conscien-
temente recupera-o dentro dos limites da esfera de influência de nossa filo-
sofia; graças à confluência da mesma capacidade que ele atribui a Karl Kraus:
perceber o “murmúrio saído de uma profundeza tectônica da língua”8 em
combinação com a capacidade que lhe permite saborear as essências. Não é
sem razão que ele traduz trechos da obra de Proust, um autor com o qual tem
afinidades.9 Com Benjamin a filosofia reconquista uma precisão de conteúdo,
o filósofo passa a ocupar “aquele posto nobre entre o pesquisador e o artista”.10
Se ele também não deseja se demorar no “reino dos vivos”,11 retira dos celeiros
da vida vivida os significados ali depositados e que agora esperam aquele que
saiba acolhê-los.

7 Na republicação de 1963, o parágrafo a seguir foi omitido; nas edições posteriores voltou a
ser inserido.
8 Walter Benjamin, “Kriegerdenkmal” [Monumento a um guerreiro], em Gesammelte Schriften
4, p. 121. [ed. bras.: Obras escolhidas, volume 2, p. 45]
9 Marcel Proust, Im Schatten der jungen Mädchen [À sombra das raparigas em flor], trad. Walter
Benjamin e Franz Hessel. Berlim: Die Schmiede, 1927; Die Herzogen von Guermantes [O
caminho de Guermantes], trad. Walter Benjamin e Franz Hessel. München: Piper, 1930.
10 Walter Benjamin, Ursprung des deutschen Trauerspiels, em Gesammelte Schriften 1, p. 212. [ed.
bras., Origem do drama barroco alemão, p. 45]
11 Idem, “Kriegerdenkmal”, op. cit., p. 121. [ed. bras.: op. cit., p. 45] 285
Franz Kafka

Sob o título Durante a construção da muralha da China [Beim Bau der chine-
sischen Mauer]1 publicou-se um volume de prosa, que reúne textos inéditos
da obra póstuma de Franz Kafka. Max Brod, amigo do falecido e depositário
de sua herança literária, organizou esta obra juntamente com Hans Joachim
Schoeps. Do posfácio de ambos os organizadores, cujas tentativas de interpre-
tação não são inteiramente adequadas, deduz-se que muitos dos fragmentos
de contos e aforismos apresentados pertencem à obra tardia do escritor, morto
em 1924. Eles foram escritos nos anos da Guerra, da Revolução e da inflação.
Embora nenhuma única palavra em toda a obra estabeleça uma relação direta
com esses acontecimentos, eles estão sem dúvida dentre os seus pressupostos.
É provável que a irrupção desses eventos tenha tornado Kafka capaz de avaliar
e de elaborar o caos no mundo. “Pode existir um saber do demoníaco”, diz um

1 Franz Kafka. Beim Bau der chinesischen Mauer: Ungedruckte Erzählungen und Prosa aus dem
Nachlass, [Durante a construção da muralha da China. Contos e prosa inéditos da obra pós-
tuma]. Editado por Max Brod e Hans Joachim Schoeps. Berlim: Gustav Riepenheuer Verlag,
1931. 287
aforismo, “mas não uma crença nele, pois não existe nada mais demoníaco
do que o que aí está.”2

Com frequência o escritor retoma nos seus escritos a imagem da construção


e a sua principal intenção é caracterizar as aspirações do homem confuso e
perdido. “Vejo os fundamentos de nossa vida,” reflete o narrador nas “Investi-
gações de um cão” [Forschungen eines Hundes], um animal excepcionalmente
dotado de dons filosóficos e com o qual Kafka se identifica em longos trechos,
“pressinto sua profundidade, vejo os trabalhadores da construção no seu traba-
lho sombrio e continuo esperando que, diante de minhas perguntas, tudo isto
termine, venha abaixo, seja abandonado?”3 Na verdade, sinistra é a construção
que se edifica de uma geração a outra. Mais sinistra ainda pelo fato de que ela
deve garantir uma segurança que não está acessível aos homens. Quanto mais
ela é construída de modo sistemático, tanto mais se torna irrespirável; quanto
mais se esforçam em erigi-la sem lacunas, tanto mais ela se transforma fatal-
mente em um cárcere. A construção assume proporções de um pesadelo no
conto “A construção” [Der Bau].
Nela, um animal não nomeado – uma toupeira ou talvez uma marmota
– relata a construção que realizou de uma toca por medo de uma invasão de
todas as forças concebíveis. Uma vez que o medo também deseja eliminar to-
das aquelas incertezas inerentes à própria existência da criatura, a construção
não é senão uma obra da autodecepção do fanatismo. Não é acidental que as
suas galerias e os seus caminhos labirínticos se desenvolvam na noite subter-
rânea. Em sua descrição, cuja clareza é aquela da vigília, Kafka dedica especial
atenção em mostrar a correlação entre o medo desesperançado e as nuances
sofisticadas do sistema arquitetônico. Uma vez que este último é um produto
do temor, que se esforça por conquistar uma autoafirmação repreensível, ele

2 Franz Kafka, Nachgelassene Schriften und Fragmente [Escritos e fragmentos póstumos], vo-
lume 2, editado por Jost Schillemeit. Frankfurt: Fisher Verlag, 1992, p. 136.
3 Idem, “Investigações de um cão”, em Narrativas do espólio, tradução de Modesto Carone. São
Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 164. Salvo quando indicado, todas as traduções das
288 citações de Kafka são de Modesto Carone.
produz novamente temor – um entrelaçamento ameaçador que, pouco a pouco,
anula a liberdade de ação do animal. Milhares de medidas de segurança preci-
sam ser tomadas antes que o animal ouse sair da toca, e o retorno do passeio
cotidiano se transforma num empreendimento incomum. Além disso, a inu-
tilidade da construção torna-se aparente no final, pois, por mais que se proteja
das pequenas coisas que revolvem a terra, ele não pode resistir ao verdadeiro
inimigo; na verdade, este até mesmo o atrai. As medidas tomadas por medo
existencial colocam a própria existência em perigo.
Uma construção que decerto não nasce exatamente do medo, mas antes
da confusão, é como Kafka concebe indiscutivelmente a ciência; ao menos, na
medida em que ela supera determinados limites. No texto em prosa “A toupeira
gigante” [Der Riesenmaulwurf] o escritor confronta o imenso, obscuro edifício
da ciência com a inútil descoberta de um professor de uma escola de aldeia.
Enquanto a descoberta sob todas as circunstâncias conserva um conteúdo por-
que está e enquanto estiver intimamente ligada ao seu descobridor, a ciência
se eleva vertiginosamente, abandonando os homens. “Toda descoberta”, lemos
no conto da toupeira gigante, “é logo remetida ao conjunto das ciências e com
isso deixa, até certo ponto, de ser descoberta: dissolve-se no todo e desaparece,
é preciso ter um olho cientificamente escolado para depois reconhecê-la. Ela
será em breve vinculada a teses de cuja existência não ouvimos em absoluto fa-
lar e na discussão científica será arrebatada até as nuvens junto com elas. Como
iremos compreender essas coisas?” E, de modo semelhante, nas “Investigações
de um cão” diz-se da ciência da alimentação que “no seu alcance gigantesco
[ela] não só ultrapassa a capacidade de compreensão individual, mas também
a de cada um de todos os peritos tomados em seu conjunto”.4 Assim como o
medo animal encontra o próprio fim no labirinto autoconstruído, assim tam-
bém o espírito se perde nas divagações da ciência.

4 Idem, “Investigações de um cão” e “O mestre-escola da aldeia”, em Narrativas do espólio,


respectivamente p. 158 e p. 27. “A toupeira gigante” foi o título então atribuído ao texto por
Max Brod. Em edições posteriores da obra de Kafka, adotou-se a forma como ele se referiu
à narrativa em seus diários: “Der Dorfschullerlehrer”, que corresponde ao título em portu-
guês na edição citada. 289
Os trabalhadores na construção: Kafka os vê por toda parte. Eles martelam
e batem, e a sua muralha é tão compacta que nenhum ruído nos alcança mais.
Absurda é a esperança de poder ainda escapar! As portas não têm chaves, e
os buracos, que vez ou outra surgem, são imediatamente fechados. “Leopar-
dos invadem o Templo e esvaziam os vasos sagrados… O fato não cessa de
reproduzir-se; até que se chega a prever o momento exato e isso entra a fazer
parte do ritual.”5
O cão filósofo confessa por sua vez que, também ele, dificilmente passa-
ria pelo mais elementar exame científico que uma autoridade no assunto lhe
fizesse. Não em razão de uma debilidade de sua capacidade intelectual, mas
sim, por um instinto, cuja direção é determinada da seguinte maneira: “Talvez
tenha sido o instinto que, por amor à ciência, porém de outra ciência muito di-
versa da que se pratica hoje – de uma ciência que seja verdadeiramente a última
–, me fez valorizar a liberdade mais que tudo o mais”.6 Esta explicação amplia o
sentido das precedentes, contudo ela expressa que há uma ciência última que
possivelmente se adquire em liberdade. O nosso mundo é, portanto, um lugar
da não-liberdade e nós nos esforçamos por construir um edifício que nos obs-
trui a visão. Poder-se-ia pensar que Kafka, na descrição da toca da toupeira,
tivesse em mente aquelas organizações humanas cujos triunfos são trincheiras,
cercas de arame e projetos financeiros muito ramificados. A consciência de que
se encontra aprisionado aprofunda-se por meio de pressentimentos do estado
de liberdade, no qual os ensinamentos da ciência última podem manifestar-se.
Quase o oposto de alguém que crê no progresso, ele transfere esse estado de
liberdade para o passado ou extravia a possibilidade de participar. Gerações
anteriores, aponta o narrador nas “Investigações de um cão”, eram mais no-
vas, “sua memória ainda não estava tão sobrecarregada quanto a atual; naquela
época era mais fácil fazê-las falar e, se ninguém teve êxito, a possibilidade era
maior; […] a palavra verdadeira podia ainda intervir, definir a construção,

5 Idem, “Betrachtungen… [aforismo 20]”, op. cit., “Da Justiça, etc. …” em Parábolas e frag-
mentos e Cartas a Milena. Tradução de Geir Campos. São Paulo: Editora Tecnoprint, 1987.
p. 51.
290 6 Idem, “Investigações de um cão”, op. cit., p. 200.
mudar o tom, alterar segundo qualquer desejo, virá-la em sentido contrário;
e aquela palavra existia, pelo menos estava perto, pairava na ponta da língua,
todos podiam apreendê-la”.7 Toda obra de Kafka gira em torno do seguinte
reconhecimento: o homem está apartado da verdadeira palavra, a qual Kafka
também não percebe. É ela que também justifica suficientemente a imagem
da construção sinistra. Como se explica que as suas paredes antes tão finas se
tornaram tão impenetráveis? A resposta comprova que o olhar retrospectivo
de Kafka não é romântico. “Não; o que também objeto à minha época” afirma
o cão investigador “é que as gerações anteriores não foram melhores que as
mais novas, num certo sentido foram muito piores e mais fracas.”8 A atitude
manifestada nesta declaração esclarece a lenda subsequente – e o passo em
falso dos nossos ancestrais – da aparência de nostalgia pelo passado. “Quando
nossos antepassados se desviavam, certamente mal pensavam que esse erro
poderia ser infinito, viam, literalmente, ainda uma encruzilhada, era sempre
fácil regressar e quando hesitavam em fazê-lo era só porque ainda queriam
desfrutar, por um tempo breve, da vida canina.”9 A censura da indolência aqui
levantada – ela representa para Kafka um pecado capital – é igualmente diri-
gida no pequeno conto “O brasão da cidade” [Das Stadtwappen]10 aos constru-
tores da torre de Babel que, confiando no progresso das gerações futuras, não
se esforçaram até o limite de suas forças. Todavia – isto é muito importante –
Kafka coloca menos peso na alusão à presença de uma negligência passada do
que na lembrança da perda da palavra verdadeira. Esta última é um leitmotiv
recorrente: assim na lenda do imperador em seu leito de morte, que enviou “a
você, o só, o súdito lastimável, a minúscula sombra refugiada nas mais remota
distância diante do sol imperial”;11 no tratado “Sobre a questão das leis” [Zur
Frage der Gesetze] no qual se diz que elas, pela sua natureza, precisariam per-

7 Idem, ibidem, p. 176.


8 Idem, ibidem
9 Idem, p. 177
10 Cf. “O brasão da cidade”, em Narrativas do espírito. São Paulo: Companhia das Letras, 2002,
p. 108.
11 Idem, “Uma mensagem imperial”, Um médico rural. São Paulo: Companhia das Letras, 2007,
pp. 41. 291
manecer um enigma; na imagem do grupo monumental, do qual ele, Kafka,
fizera uma vez parte.12 Na medida em que evoca aquilo que perdeu, o poeta
empurra-o simultaneamente para uma distância irreal, que mesmo o sonho
mal encontra nele um refúgio. O mensageiro do imperador faz esforços vãos
para deixar as câmaras internas do palácio, e o povo não sabe se as leis, que
são mantidas em segredo, e que procura adivinhar, existem realmente. E no
estranho texto “A batida no portão da propriedade” [Der Schlag ans Hoftor],
a batida – que provavelmente jamais foi dada – é causada pelo portão do pátio
que se abre completamente, mas ninguém surge, exceto um grupo de cavalei-
ros que somente entra a galope para sair logo em seguida.

A característica do cão filósofo é o seu perguntar incessante sobre o inques-


tionável. A resposta dos outros cães é – o silêncio. Este mutismo obstinado
sobre as “coisas decisivas” que constantemente se ergue diante dele como um
dique é uma das amargas experiências fundamentais que se impõem sempre
ao pequeno grupo de autênticos questionadores. E é como se o cão falasse em
nome de todos eles quando se queixa: “Nós somos aqueles aos quais o silên-
cio oprime, que literalmente querem rompê-lo por fome de ar”.13 Se o ques-
tionador é condenado à solidão, então os outros são aliados silenciosos que
encontram a sua felicidade no “caloroso estar juntos”: pressupondo-se que eles
voluntariamente não se isolem como o animal da toca, que ama o silêncio. No
entanto, o silêncio que reina ou deveria reinar no interior de sua construção
desprovida de luz é realmente a única cura drástica para palavra verdadeira.
Uma vez que é impossível para um grupo inteiro de criaturas cair simultanea-
mente no silêncio, o mutismo dos cães apresenta outras formas. Às vezes eles
evitam responder à pergunta colocada, em outras ocasiões, tal qual os cães
aéreos, eles tratam de distrair a atenção à sua forma especial de viver por meio
de uma loquacidade insuportável. Como se explica o comportamento da co-
munidade canina? Para isto há sem dúvida uma explicação. O cão pesquisador

12 Idem, Tagebücher [Diários]. Editado por Hans-Gerd Koch, Michael Müller, Malcolm Pasley.
Frankfurt: Fischer Verlag, 1990, p. 856.
292 13 Idem, “Investigações de um cão”, op. cit., p. 172.
conjectura “que os que silenciam são os justos mantenedores da vida”.14 É por
isso que ele não quer desanimar, mas importunar incansavelmente os compa-
nheiros a abrir conjuntamente com ele “o teto desta vida pedestre”15 para alçar
a liberdade. Mas no mesmo instante em que crê ter levantado e removido o
empecilho maior, aparece um novo obstáculo, insuperável. Uma música soa e
obriga-o a renunciar. Ela é para Kafka a forma suprema do silêncio. Por duas
vezes ela paralisa o cão. Primeiramente, durante o seu encontro com os sete
cães músicos, que produzem um ruído extraordinário. O questionador ainda
jovem quer saber deles o que é que os impele a fazer isto. “Mas eles – incom-
preensível! incompreensível! –, eles não responderam, agiram como se eu não
estivesse lá.”16 Posteriormente, a música perturba uma experiência de fome que
o cão, neste meio-tempo envelhecido, realiza em função de suas audaciosas
investigações. Por se tratar de um experimento que coloca a existência em pe-
rigo, a sua relação com as conquistas menos significativas da ciência é similar
à descoberta do professor da aldeia na “Toupeira gigante” [Riesenmaulwurf].
Mal se inicia o experimento – que tem o objetivo de ser explosivo – um cão
forasteiro se aproxima do jejuador e, após frustradas tentativas de persuadi-lo
a desistir, afasta-o do lugar do jejum por meio de um canto mágico. Esclare-
cedor é o diálogo que antecede a interrupção forçada. No seu curso, o cão que
se preparou para o jejum e que não quer se deixar envolver, percebe que o cão
forasteiro entra em contradições. Este, no entanto, para as suas correções e ape-
nas pergunta: “Não entende o que é óbvio?”.17 O evidente é o último pretexto
daqueles que desejam manter esta vida ordinária, o baluarte mais extremo,
atrás do qual se entrincheiram os guardiões do silêncio.

O tratamento que o povo canino silencioso reserva ao pesquisador, força-o


a formular a seguinte questão, suspeita: “Será que queriam com isso me aca-
lentar, tirar-me de um caminho errado sem violência, quase com amor – de

14 Idem., p. 164.
15 Idem., p. 163.
16 Idem, p. 153.
17 Idem, p. 196. 293
um caminho cuja falsidade de fato não estava acima de qualquer dúvida, de
tal forma que houvesse autorizado o emprego da violência?”.18 Tal como o cão
que constantemente é distraído – assim é como Kafka se sente. Ele olha para o
mundo como alguém que nele sempre foi empurrado para trás, como alguém
que precisa retornar da busca daqueles lugares onde mora o imperador e dos
quais são oriundas as leis desconhecidas. Não como se, desse modo, já tivesse
na verdade encontrado o seu caminho até elas; mas, a sua experiência é muito
mais aquela de alguém que se encontra em um estado semidesperto, cuja ca-
pacidade de reflexão se ocupa primeiramente com o sonho fugidio e no qual
esteve presente a solução de todos os enigmas. Exatamente quando ele ainda
crê que pode agarrar, quer dizer, saborear a palavra-chave, a imagem perfeita
e límpida, na qual o mundo se congelou sob o signo do mistério revelado, co-
meça a se dissolver. Atormentado, ele tenta apanhar as partes desintegradas
que, por sua vez, começam a se reunir novamente em um arranjo fundamen-
tal e errôneo. Quanto menos ele consegue reconstruir a maravilhosa imagem
desaparecida, mais desesperadamente ele corre de um lado ao outro entre os
fragmentos dispersos com a intenção de preservá-los e, se possível, ordená-
los. Essa caça determina o processo artístico de Kafka. Já nos primeiros anos,
relata ele em um aforismo, tinha o desejo de “alcançar uma visão da vida […],
na qual a vida conservaria o seu movimento natural de ascensão e queda, mas
ao mesmo tempo seria reconhecida não menos claramente como um nada, um
sonho, um estar suspenso”.19 E algumas linhas adiante: “Mas ele sequer pode-
ria desejar isto, pois o seu desejo não era um desejo, mas apenas uma defesa,
uma versão burguesa do nada, um sopro de alegria, que ele desejava conceder
ao nada […]”.20 De fato, Kafka dificilmente volta a ceder ao antigo desejo, mas
por sua vez se dá conta de que o mundo caótico que percorre de um lado ao
outro é um nada. Com o intuito de revelar a arrogante presunção do mundo
de ser alguma coisa, ele mostra que a relação entre as coisas e as pessoas é com-
pletamente divergente. A anedota “Uma confusão cotidiana” [Eine alltägliche

18 Idem, pp. 161-62.


19 Franz Kafka. Tagebücher [Diários], p. 855.
294 20 Idem, p. 855.
Verwirrung] trata da história de A, que tem um negócio importante para fe-
char com B, proveniente de H. Eles planejam se encontrar mas, apesar da boa
vontade de ambos, não conseguem levar a termo o combinado. Poder-se-ia
classificar as descrições de Kafka como romances de aventuras ao inverso, pois,
ao invés do herói conquistar o mundo, é este que se modifica fundamental-
mente ao longo de suas viagens errantes. Don Quixote, segundo Kafka, era na
verdade o demônio de Sancho Pança que, no entanto, sabia como torná-lo ino-
fensivo afastando-o de si. Assim, o demônio realizava incessantemente as mais
loucas experiências e Sancho Pança, que o seguia por certo senso de respon-
sabilidade, “retirando um grande e proveitoso divertimento até o fim de seus
dias”.21 De modo semelhante, o próprio Kafka afasta de si toda racionalidade
que, a despeito de sua força lógica, é impotente, e acompanha-a pelo matagal
das condições humanas. Graças à intervenção contínua da racionalidade, a
deformidade do mundo é definitivamente exposta. Se reinasse a estupidez no
mundo, a expectativa de que a inteligência seria capaz de mudar as coisas ainda
seria sempre justificada. Mas exatamente essa expectativa é desapontada pela
atual inutilidade prática de intervenção das reflexões da razão.
Inúmeros juízos racionais e realistas, dúvidas e reservas percorrem a obra
poética de Kafka com o único propósito de, em última análise, se esvanecer
no vazio. Com que cuidado, por exemplo, o animal da toca ao retornar ao lar
pondera se para aumentar a sua segurança não deveria afinal deixar uma pes-
soa de confiança na superfície da terra num posto de observação. Mas: “Será
que posso acreditar, naquele em quem confio olho a olho, igualmente quando
não o vejo e a cobertura de musgo nos separa? É relativamente fácil confiar
em alguém que ao mesmo tempo se vigia ou pelo menos se pode vigiar; talvez
seja até possível confiar em alguém à distância, mas do interior da constru-
ção, ou seja, a partir de um outro mundo, confiar plenamente em alguém de
fora, eu julgo impossível. Essas dúvidas, porém, nem são necessárias, basta a
reflexão de que, durante ou depois de minha descida à construção, os incon-

21 Idem, “Die Wahrheit über Sancho Pansa” [A verdade sobre Sancho Pança] em Sämtliche
Erzählungen [Narrativas reunidas]. Editado por Paul Raabe. Frankfurt: Fischer Verlag, 1970,
pp. 429-30 [ed. bras.: Narrativas do espólio, p. 103]. 295
táveis acasos da vida podem impedir a pessoa em quem acredito de cumprir
o seu dever…”.22 Se, em geral, a loucura possui método, então aqui as refle-
xões metodológicas – altamente realistas – que são o sinal característico da
loucura do mundo e, como elas não se resolvem, a sua irrealidade, em última
instância, é completamente desmascarada. Esta irrealidade não é um sonho;
ao contrário, ela é real. Ela não é um nada e, quanto mais ela se fecha em si
mesma, tanto mais é um nada. Nesta sua forma de existência ela liberta de si
seres que, sem dúvida, são invisíveis para o observador médio, mas se mani-
festam para aquele que retorna com o eco da palavra verdadeira ressoando em
seus ouvidos. Seres míticos subordinados ao murmúrio confuso da vida e seu
raisonnement. Destes seres fazem parte o animal inominado da toca, que se
recusa à contemplação, e o friorento “Cavaleiro do balde” [Kübelreiter]23 que,
a galope, em cima de sua cuba, tiritando de frio, chega ao depósito de carvão
sem que a mulher do carvoeiro se dê conta disto. Eles não são nem espíritos
nem fantasmas, mas figurações concretas das condições atuais do mundo, no
qual no lugar de reis agora só existem mensageiros. “A eles foi dada a escolha
de serem reis ou mensageiros. Seguindo uma tendência infantil todos quise-
ram ser mensageiros. É por isso que tantos mensageiros percorrem o mundo
e, uma vez que não há mais reis, eles anunciam uns aos outros as mensagens
que se tornaram sem sentido.”24 O mundo, no qual esses mensageiros correm
de um lado ao outro, assemelha-se a uma folha de moldes, sobre a qual estão
colocadas partes que não combinam entre si. Muitas vezes Kafka sente pra-
zer em escolher qualquer uma dessas linhas caóticas, persegui-la e, de certo
modo, mantê-la no jogo. O cão investigador, por exemplo, não satisfeito por
ter meditado sobre a insignificância dos resultados científicos, faz a seguinte
observação: “Nesse aspecto me basta a suma de toda ciência, a pequena regra
com que as mães separam os pequenos dos seios e os lançam à vida: ‘Molhe

22 Idem, “A construção” [Der Bau], Um artista da fome/A construção, tradução de Modesto


Carone, São Paulo: Companhia das Letras, 1998, pp. 80.
23 Idem, “Der Kübelreiter”. Sämtliche Erzählungen, pp. 195-96.
296 24 Idem, Nachgelassene Schriften und Fragmente, op. cit., p. 123.
tudo, o mais que puder’”.25 Este é o caráter obscuro das coisas que, de vez em
quando, reclama um sopro de alegria.
“Durante a construção da muralha da China”, um estudo que ele mesmo
chama histórico, Kafka descreve o mundo dos antepassados, aquele onde “a
conexão entre os membros da comunidade dos cães ainda era solta”. Na sua
descrição dessa estrutura, Kafka deseja menos elevar uma forma de vida pas-
sada ao nível de uma utopia realizada do que caracterizar a impenetrabilidade
da situação atual. Ao menos, aquilo que lhe importa em geral é contrapor à
estrutura compacta do presente aquela mais frouxa do passado. Toda a in-
vestigação é, se assim o queremos, um experimento extraordinário que deve
verificar qual o aspecto de um mundo que acolheu “as antigas, na verdade
ingênuas, histórias”. Neste sentido Kafka examina em detalhes o “sistema de
construção por partes”26 supostamente utilizado na construção da muralha da
China. Por ordem da direção – “onde [sala do comando] ela ficava e quem ali
tinha assento, ninguém a quem perguntei sabe ou sabia”27 – foram deixadas
brechas em todos os lugares. “Sucedeu assim que foram formados grupos de
aproximadamente vinte trabalhadores que precisavam erguer uma muralha
parcial de cerca de quinhentos metros de comprimento, enquanto um grupo
vizinho construía em sua direção outra muralha do mesmo comprimento. Mas
depois de completada a união não se prosseguiu mais a construção no final
desses mil metros; em vez disso os grupos de trabalhadores foram deslocados
para regiões totalmente diferentes visando a construção da muralha.”28 Com o
intuito de enfatizar ainda mais a importância fundamental de um tal método
de trabalho, o narrador prossegue: “Sem dúvida devem existir brechas que
não foram absolutamente cobertas – para muitos, bem maiores que as partes
construídas –, uma afirmação porém que faz parte das muitas lendas que sur-
giram em torno da construção”.29 Este sistema de construção parcial poderia

25 Idem, “Investigações de um cão”, op. cit., p. 159.


26 Idem, “Durante a construção da muralha da China”, op. cit., p. 80.
27 Idem, p. 80.
28 Idem, p. 73.
29 Idem, pp. 73-74. 297
ser criticado como não-funcional, uma vez que a muralha, segundo consta,
deveria servir de defesa contra os povos do Norte. Mas Kafka refuta a obje-
ção que ele mesmo colocara. Se a construção lacunar não é funcional, então
se deduz logicamente que a direção desejou algo não-funcional. E ele conclui
com a curiosa suposição de que a decisão da construção da muralha prova-
velmente existiu desde sempre e, portanto, não estava sendo levantada como
defesa contra os povos nórdicos. Estas informações completam a imagem de
vida passada, que a história da muralha da China procura fixar. Ela é uma in-
vocação em um duplo sentido. Por um lado, na medida em que ela invoca e
transfigura uma forma de existência desaparecida, na qual a criatura humana,
completamente integrada, em razão do medo vital e uma falsa necessidade de
proteção, ainda não fechou as lacunas – lacunas que aparentemente ainda lhe
permite ouvir o eco da palavra verdadeira. Por outro lado, na medida em que
esta invocação contém a recomendação de tomar consciência do nosso estado
de incerteza. A luz dos tempos passados irradia dela até os dias atuais: não
para nos reconduzir ao seu brilho, mas para iluminar a nossa total escuridão
de tal modo que possamos dar o próximo passo.

Somos na verdade capazes de dar tal passo? “Talvez nossa geração esteja per-
dida…” consta nas “Investigações de um cão”. Este tímido talvez deixe um fio
de esperança. Quando ele tenta definir de maneira mais precisa o sujeito desta
esperança, Kafka revela uma insegurança, que corresponde precisamente à
distância imensurável da verdadeira palavra, e que se contrapõe à segurança,
com a qual surgem e resvalam as reflexões da racionalidade diabólica. Assim
como ele não reconhece nem rejeita completamente o progresso, assim tam-
bém reúne o distante e o próximo. “O verdadeiro caminho segue por uma
corda esticada não nas alturas, mas um pouco acima do chão. Parece mais
destinado a fazer tropeçar do que a ser percorrido.”30 A concepção segundo
a qual a solução buscada é inacessível e, ao mesmo tempo acessível aqui e
agora, toca o aforismo, que considera o Último Julgamento como uma lei

298 30 Idem, “O verdadeiro caminho”, Parábolas e Fragmentos, p. 43.


marcial. Ele está inserido no Oktavheften31 do período entre 1917 a 1919, nos
quais também, penso eu, encontra-se uma referência de Kafka à Revolução
[de Outubro]: “O momento decisivo da evolução humana é permanente. Por
essa razão os movimentos revolucionários do espírito [Geist], que declararam
tudo aquilo que os precedeu como nulo e vazio, têm razão, pois ainda não
aconteceu nada”. Muito estranho ao mundo, este pensamento irrompe impe-
tuoso no mundo; muito próximo de sua linguagem para não ser confundido.
A determinação pela qual ele aprova a radicalidade dos movimentos espiritu-
ais [geistige], esgota o seu direito do pressentimento do verdadeiro caminho.
Talvez em razão da insegurança há pouco mencionada, Kafka evita atribuir a
revolução a esse verdadeiro caminho. No entanto, ele elucida esse pressenti-
mento em diversos trechos. Segundo ele, somente a comunidade possuiria a
força explosiva capaz de abrir o telhado da vida ordinária. O cão investigador
reconhece que ele tem em comum com os outros cães não só o sangue, mas
também o saber, e não só o saber, mas também a chave até ele. “Ossos de ferro,
contendo o tutano mais nobre, só se pode obter pelo ato conjunto do morder
de todos os dentes de todos os cães.”32 E o ensinamento que corresponde a este
no texto “Sobre a questão das leis” [Zur Frage der Gesetze] diz: “O sombrio
dessa perspectiva para o presente só é iluminado pela crença de que virá um
tempo no qual – de certo modo com um suspiro – a tradição e o seu estudo
chegarão ao ponto final, que tudo ficará claro, que a lei pertencerá ao povo e
que a nobreza desaparecerá”.33 Aqui e ali o indivíduo que se perdeu da comuni-
dade é advertido a se salvar com ela, sem contudo qualquer garantia de salva-
ção. Não há nenhuma certeza e, ao lado da crença em uma salvação vindoura,
há outra crença de que o caos do mundo é indestrutível no mundo – mas, na
verdade, ele não é propriamente caótico. Em um aforismo há uma formula-
ção que diz: “O indivíduo se desenvolve segundo a própria natureza somente
depois da morte, quando enfim está só. Estar morto é para o indivíduo como

31 Cadernos in-oitavo utilizados por Kafka a partir de 1916. Na bibliografia kafkiana o termo
se consolidou para toda referência a esses cadernos com fragmentos de texto.
32 Idem, “Investigações de um cão”, op. cit., p. 164.
33 Idem, “Sobre a questão das leis”, Narrativas do espólio, p. 125. 299
o sábado à noite para o varredor de chaminés, eles lavam as cinzas do corpo”.
Ou a passagem não se daria somente depois da morte? A lenda “O brasão da
cidade” [Das Stadtwappen] termina com as frases “Tudo o que nela surgiu de
lendas e canções está repleto de nostalgia pelo dia profetizado em que a ci-
dade será destroçada por um punho gigantesco com cinco golpes em rápida
sucessão. Por isso a cidade também tem um punho no seu brasão”.34 As sagas e
as canções que anunciam a destruição da construção são elas exatas? E qual a
perspectiva que nos é oferecida? “Neste lugar”, diz Kafka em certa ocasião “eu
nunca estive: respira-se de modo diferente e muito mais resplandecente que o
sol, brilha ao seu lado uma estrela.” Encerramos aqui com esta aspiração não
confirmada do lugar da liberdade.

300 34 Idem, “O brasão da cidade”. Narrativas do espólio, p. 109.


Cinema
O mundo de calicó 1

A cidade-cinema da UFA em Neubabelsberg

Em meio a Grunewald2 há uma área cercada onde só é permitida a entrada


depois de passar por vários vigilantes. É um deserto no oásis. As naturalidades
[Natürlichkeiten] do lado de fora – árvores de madeira, lagos com água, cida-
des que são habitáveis – perderam seu direito no interior de suas fronteiras.
O mundo certamente aí reaparece, sim, todo o macrocosmo surge reunido
nesta nova Arca de Noé: mas as coisas que aí se encontram não pertencem à
realidade. São cópias e bonecos que foram arrancados do tempo e estão con-
fusamente misturados. Permanecem estaticamente imóveis; pela frente cheios
de significação e, por trás, nulidades vazias. Um sonho ruim acerca de objetos
que foram extirpados do mundo material.

1 Calicó, tecido de algodão grosso originário da Índia muito utilizado na construção de ce­
nários de filmagem.
2 Floresta na parte sudoeste de Berlim. 303
Encontramo-nos na cidade-estúdio da UFA em Neubabelsberg.3 É formada
por uma superfície de 350.000 m², um mundo de papier mâché. Tudo é segu-
ramente antinatural e tudo exatamente como a natureza.

Para poder desfilar no filme, o mundo é decomposto em pedaços na cidade


do cinema. Suas correlações são suspensas, suas dimensões transformadas à
vontade, suas potências mitológicas tornam-se diversão [Spass]. Assemelha-se
a um brinquedo de criança que se monta numa caixa de papelão. A demoli-
ção dos conteúdos do mundo é radical e, mesmo que não seja mais do que
aparência, não é nada negligenciável. Os heróis da Antiguidade já fazem parte
dos livros de leitura escolares.
Ruínas do universo estão armazenadas no galpão de apetrechos, exempla-
res-testemunho de todas as épocas, povos e estilos. Perto da cerejeira japo-
nesa, que brilha através do escuro corredor dos bastidores, verga-se o dragão
monstruoso de Os Nibelungos sem o efeito de terror diluviano que aparece na
tela.4 Junto da maquete de um edifício comercial que basta ser tocado pela
câmera para sobrepujar qualquer arranha-céu, empilham-se caixões, que es-
tão eles mesmos mortos, pois não abrigam nenhum morto. Os móveis, estilo
império, surgem em meio a isto tudo em tamanho natural; ninguém acredita
na sua autenticidade. O velho e o novo, cópias e originais estão amontoados
numa massa confusa, como ossadas numa catacumba. Apenas o mestre dos
apetrechos sabe das regras.
Nas pradarias e colinas, os elementos do inventário se organizam como
figuras. As construções arquitetônicas erguem-se nas alturas como se fos-
sem para ser habitadas. Mas representam apenas o exterior de seus modelos,
como a língua conserva a fachada das palavras cujo sentido original se perdeu.
Uma igreja de vila da Frísia, que convida de longe a uma beatitude totalmente

3 Fundada em 1917, a Universum-Film AG (UFA) foi a maior companhia da indústria cine­


matográfica alemã até 1945, com grandes complexos de estúdio em Berlim-Tempelhof e
Berlim-Neubabelsberg. Foi adquirida em 1927 pelo Hugenbergrup Group, nacionalizada em
1936-37 pelo Reich alemão e desmantelada pelos aliados em 1945.
304 4 Primeira parte produzida em 1924 de Die Niebelungen, intitulada Siegfried.
simples, de perto se revela uma barraca sobre um declive pintado. Mesmo
a catedral, a umas centenas de metros de distância, não contém o coro de
igreja, seu teto decorado de gárgulas está ao lado para eventuais tomadas de
cena. Mais próximo da entrada situam-se um local de diversão e um clube
de milionários que pertencem ao filme Metrópolis, dirigido por Fritz Lang.
Entre imitações espirituais e mundanas, um grupo de figurantes passa vez por
outra à noite divertindo-se. A cidade subterrânea, com suas cavernas e galerias,
onde no enredo do filme moravam milhares de trabalhadores, já desapareceu:
dinamitada, tragada. A água não é tão profunda como aparece na imagem da
tela, mas os elevadores em chamas que explodiram são em tamanho natural.
As fendas cuidadosamente limadas nas chaminés são testemunhas desses even-
tos elementares. Na vizinhança desses entulhos de catástrofes estende-se uma
muralha: um castelo com fortificações, trincheiras e fossas. Aparecem para
adivinhação dos arqueólogos no conhecido filme Die Chronik von Grieshuus
[A crônica de Grieshuus].5 Como na Idade Média, recentemente, a cavalaria
montada ocupou estas fortificações e o diretor, para manter elevada a moral
da tropa, prescreveu sapos coaxantes, sapos da lagoa. Quando se quer ser en-
ganado, a alma e o coração apreciam a autenticidade. Neste meio-tempo, o
castelo veio abaixo fazendo aparecer o seu material de construção. Não se pode
deixar deteriorar em ruínas, as ruínas devem ser especialmente edificadas. To-
dos os objetos estão aqui apenas para o que devem representar no momento;
desconhecem um desenvolvimento no tempo.

Os senhores deste mundo testemunham uma carência gratificante de sentido


histórico, sua impiedade não conhece obstáculos. Edificam culturas e as des-
troem em seguida conforme a necessidade. Erigem um tribunal para cidades
inteiras, fazem chover sobre elas breu e enxofre quando o filme assim exige.
Nada os detém, a mais orgulhosa criação é erigida para a demolição.
A destruição atinge as coisas, mesmo se mal tiveram a chance de chegar à
luz do dia. Destrói-se uma tribuna de corrida diante da qual se desenrolam

5 Filme de 1925, dirigido por Carl Mayer com base em Theodor Storm, repleto da atmosfera
de uma saga medie­val maligna. 305
eventos desportivos sensacionais, importa-se o bosque vienense para o filme
Walzertraum [Sonho de valsa]6 para depois cortá-lo. Outras coisas transfor-
mam-se bizarramente. Em uma velha viela, são introduzidos vestígios de ca-
sas modernas, ninguém se choca com o anacronismo. Os interesses políticos
não acompanham as transformações sociais por mais violentas que sejam. Um
posto de vigília bolchevique transforma-se em uma pacífica estação de trem
sueca, que é posteriormente transformada num picadeiro e que hoje é utilizado
para armazenar lâmpadas. Não se pode prever o fim. As leis das metamorfoses
são impenetráveis. O que acontece com os objetos: depois de adquirir o brilho
do gesso, são jogados fora.

Este regime arbitrário não se limita ao mundo que existe. Este é uma das mui-
tas possibilidades, que podem ser deslocadas em todos os sentidos, e o jogo
permaneceria imperfeito se fosse usado como um produto acabado. Por isso
os objetos são alongados e encurtados, os objetos criados são espalhados no
meio das coisas existentes, as aparições maravilhosas se realizam sem hesitação.
Os atos tradicionais da magia tornaram-se um tímido prelúdio da trucagem.
Esta procede sumariamente como a natureza, o cosmos é para a trucagem
uma bolinha de bilboquê.
Perfeitamente, os objetos projetados na tela adquirem um aspecto cotidiano,
como se estivessem na rua. No entanto, sua aparição se acompanha de circuns-
tâncias monstruosas. Os postes de luz, cuja existência de cimento e metal, pa-
recem palpáveis, são feitos de madeira e quebrados no meio; para o enquadra-
mento da imagem, o fragmento é suficiente. Um respeitável arranha-céu está
longe de se prolongar de maneira tão vertiginosa como quando aparece em
cena. Apenas a parte inferior é construída, a superior é obtida a partir de uma
pequena maquete projetada por meio de um mecanismo de espelhos. Deste
modo, os colossos são refutados; seus pés são de argila, as partes superiores não
são mais do que aparência da aparência sem substância da qual são armados.

6 Filme de Ludwig Berger de 1925, baseado na opereta de Oskar Strauss que satiziriza a vida
cortesã em Viena, um dos poucos filmes alemães a obter sucesso no exterior, sobretudo nos
306 Estados Unidos.
As forças de evocação da trucagem se desenvolveram principalmente no
domínio do sobrenatural. O filme de dimensões incomuns, a ser lançado, Faust
[Fausto], dirigido por W. Murnau, utiliza largamente este procedimento. Num
átrio, que anteriormente foi utilizado por corsários para expor seus planos de
pirataria, o globo terrestre expande-se en miniature. Fausto atravessará o éter
de um cenário a outro. Uma pista de madeira lisa que desliza duma extremi-
dade a outra descreve seu percurso aéreo. O aparelho desliza sobre este tobogã
e, graças a sua condução minuciosa, projeta as vistas da viagem. Neblinas de
vapor d’água, produzidas por um locomóvil, envolvem os cumes de gigantes-
cas montanhas, habilmente modeladas, donde emerge Fausto. A maré ter-
rível de espuma das ondas é alimentada por uma garganta lateral que jorra
água. A pulsão selvagem diminui, sob o vento das hélices, espalhando cereais,
recobrindo pradarias e os campos, aos pés de vértices abruptos cobertos de
pinheiros. Nuvens e mais nuvens se sucedem em direção ao leste, uma massa
de vidro é posta compactamente em fileiras. Na aterrizagem do Fausto, as
cabanas rodeadas de verde vão provavelmente cintilar no vermelho do cre-
púsculo em meio a mil velas. No estúdio da UFA em Tempelhof,7 onde Karl
Grune dirige Die Brüder Schellenberg [Os irmãos Schellenberg], tudo é tam-
bém fáustico. Aqui os cavaleiros do apocalipse deslizam ao redor do estúdio de
vidro em cavalos suspensos por fios de arame à meia altura do teto. Embaixo,
a ameaça de um gigantesco par de asas negras na qual Jannings,8 o grande
diabo, projeta uma sombra sobre a cidade; o par de asas brancas é usado pelo
arcanjo São Miguel.

A natureza, de corpo e alma, é colocada de lado. Suas paisagens são substitu-


ídas pelo que é livremente inventado, com seus atrativos pitorescos que não
são dispensados ao acaso. Mesmo que os seus sóis deixem a desejar; não fun-
cionam de maneira fidedigna como os refletores, foram excluídos de todos os
novos estúdios americanos. Deixe que entrem em greve se quiserem.

7 Tempelhof, área industrial ao sul de Berlim e local do primeiro aeroporto (1923), tornou-se
uma das “cinema cities” a partir de 1913.
8 Emil Jannings como Mephisto em Faust: Eine deutsche Volkssage (1926) de Friedrich Murnau. 307
Mesmo assim, os restos dos elementos naturais são estocados como su-
plementos. Uma fauna do além-mar, um produto à parte das expedições ci-
nematográficas, prospera juntamente aos representantes do mundo animal
autóctone, numa extremidade retirada nos limites do setor. Uma parte destas
presas capturadas no Brasil foi transferida para o jardim zoológico, onde pode
ficar à mercê de si mesmo e enriquecer a ciência. A parte conservada funciona
como uma tropa especializada que viaja com seu empresário. Cada espécie de
animal possui o seu número no programa. Os faisões dourados e prateados vão
poder ilustrar o luxo dos milionários americanos num parque ornamental, a
garça de cabeça negra, pela sua raridade, provoca arrepios pelo seu exotismo,
gatos em grandes tomadas de cena vagam pelo salão. As pombas do filme As-
chenbrödel [Cinderela],9 de Berger, continuam ainda a voar. Entre as vedetes, o
javali selvagem que estrelará num filme de caça juntamente com um bando de
crocodilos vivos. Eles desempenham um importante papel no filme de Lothar
Mendes, Die drei Kuckucksuhren [Os três relógios cucos]. O jovem crocodilo é
uma atração especial que se pode carregar na mão; mas os adultos não são tão
perigosos como suas réplicas sem vida, as quais fazem medo aos macacos. As
estufas completam a coleção; sua vegetação serve de pano de fundo adequado
às cenas de ciúme nos trópicos.
Os habitantes do parque natural protegido são tratados com amor pelo
zoólogo da expedição. Chama-os pelo nome, cuida deles e desenvolve suas
capacidades artísticas. Apesar da imperfeição própria destas criaturas natu-
rais, são os objetos mais mimados da empresa. O fato de que saltam e voam,
sem serem colocados em movimento por um mecanismo, provoca encantos;
que se reproduzem sem haver necessidade de uma trucagem visível, parece
maravilhoso. Não se poderia supor que estas figuras primitivas são quase que
ilusões cinematográficas.

Os elementos do mundo estão em seu lugar num amplo laboratório. O


procedimento é rápido. Fabricam-se as peças isoladas e as instalam em seu
lugar, onde permanecem pacientemente até que são desmontadas, não são os

308 9 Referência ao filme de Ludwig Berger, Der verlone Schuh (1923).


organismos que se desenvolvem por si sós. Carpintarias, vidraçaria, ateliês de
escultura se ocupam do necessário. Os materiais: madeira, metal, vidro, argila,
sem falsidade. Poder-se-ia produzir também coisas verdadeiras, mas diante das
objetivas, o enganoso e o verdadeiro possuem o mesmo valor. São “objetivos”.
São necessárias certas medidas preparatórias para integrar as coisas e as
pessoas. Se elas persistem em suas disposições tradicionais, vão divergir como
peças raras de um museu e seus espectadores. É a iluminação que os funde;
sua fonte é a grande central elétrica que alimenta de energia a empresa como
um todo. Os atores são preparados no salão de cabeleireiro. Não é um espaço
de trabalho como os outros, mas um ateliê repleto de perícia artística. Com o
material bruto do rosto humano são criadas as suas fisionomias, que revelam
seus segredos apenas sob o feixe de luz dos refletores. Entre mesas de cosmé-
ticos cheias de lápis de todas as tonalidades reinam os mestres em suas espe-
cialidades. Uma tabela mostra os graus de claridade que as cores receberão na
fotografia; que são obrigadas a obedecer à escala de preto-e-branco, desapa-
recendo seu valor cromático. O prelúdio não poderia ser mais sedutor: a di-
versidade decadente das perucas nas vitrines. Na parede estão penduradas as
máscaras dos rostos que são como retratos de criações resistentes ao fogo; são
executadas a partir do modelo dos atores principais dos filmes em preparação
e permitem mostrar sua aparição física em certas cenas. Outros se transfor-
mam ao colocar suas máscaras. Os personagens disfarçados mantêm-se rígi-
dos, quando andam parecem mortos. Na sala de projeção contígua, pode-se
verificar o efeito produzido pela maquiagem.
Filmes e pessoas são inseridos nesta autarquia, obtidos e favorecidos por
todo tipo de refinamentos. Na sala de ensaios, são controlados e melhorados
os procedimentos técnicos de reprodução, por exemplo os filmes a cores, e
são feitos os grandes esforços ao mesmo tempo para formar um revezamento
capaz de utilizar diferentes métodos. Os verdadeiros bombeiros estão pron-
tos para apagar incêndios de verdade, médicos e enfermeiros estão sempre à
disposição. Felizmente, é muito raro ocorrer acidentes, de tão populares que
são. Nas filmagens de Metrópolis, centenas de crianças tiveram de ser salvas
d’água, uma visão terrível no filme; o desenrolar da filmagem foi tão anódino
que as enfermeiras foram deixadas nos bastidores sem nada que fazer. Um dos 309
principais pontos de reunião é a cantina. Entre empregados, trabalhadores,
choferes, encontram-se senhores com suas vestimentas que parecem relíquias
de um baile de carnaval. Esperam.

Esperam continuamente a sua entrada em cena. As cenas são muitas, parecem


as pedrinhas de um mosaico. Em vez de deixar o mundo neste estado quebra-
diço, são reintegradas no mundo. As coisas são retiradas de seu contexto e são
reintroduzidas, seu isolamento é suprimido, suas caretas aplainadas. Destes tú-
mulos que não são para se levar a sério, despertam para a aparência da vida.
A vida é fundada à maneira pontilhista. Uma multidão de grãos de imagens,
que origina-se de múltiplos lugares, permanece desunida. A sua sucessão não
se alinha de acordo com o evento representado: o destino não pode se resolver
antes de seu enlace, a reconciliação se apresenta antes da disputa que eclode
em razão desta. O sentido da ação torna-se soberano apenas com o filme ter-
minado; durante a gestação, é insondável.
A criação é feita de células e mais células. As peças do inventário se apro-
ximam cá e lá, um evento maquiado por luzes, na qual se desencadeia um
acontecimento humano. Os movimentos luminosos são acompanhados pe-
las bobinas a manivela. Estes acampam em todos os lugares onde os homens
se aninham: no solo, sobre os andaimes, nenhuma perspectiva lhes é segura.
Muitas vezes correm atrás de suas vítimas. Mesmo o menor dos detalhes só
nasce depois de dores terríveis. O ajudante e o ajudante de ajudante participam
juntos, se escapa em meio a grandes gestos.
Quem preside é o diretor. Possui a difícil tarefa de dar ao material de ima-
gens aquela unidade que está na bela desordem como a própria vida que a vida
deve à arte. Ele se fecha na sala de projeção privada com os rolos de filme e os
projeta repetidamente. Passam sob o crivo, são emendados um no outro, cor-
tados e legendados. Até que, finalmente, do enorme caos brota um pequeno
todo. Um drama social, um evento histórico, um destino de mulher. Em geral
o final é feliz: as nuvens de vidro formam-se e dissipam-se. Acredita-se nas
quatro paredes. Tudo é natureza garantida.

310
As pequenas balconistas vão ao cinema

Os filmes são o espelho da sociedade constituída. Eles são financiados por


corporações que, a todo custo, precisam identificar o gosto do público para
obter lucro. O público sem dúvida é composto basicamente por operários e
pessoas simples, que conjeturam sobre as condições nos estratos superiores
da sociedade, e o interesse comercial estimula o produtor a satisfazer as ne-
cessidades de crítica social de seus consumidores. O produtor, no entanto,
não se deixará jamais seduzir por espetáculos que, de algum modo, atacam
os fundamentos da sociedade; pois, caso contrário, ele destruiria a sua pró-
pria existência como empresário capitalista. De fato, os filmes feitos para as
classes mais baixas da população são sempre mais burgueses do que aque-
les para o público mais refinado, precisamente porque eles tocam em pontos
de vista subversivos sem explorá-los, no entanto, introduzem furtivamente
uma forma de pensamento respeitável. O fato de que os filmes em sua totali-
dade reafirmam o sistema dominante ficou claro no alvoroço suscitado pelo
filme Potemkin.1 Percebeu-se que o filme era diferente e ele foi esteticamente

1 O conteúdo dos debates em torno do filme O encouraçado Potemkin, de Eisenstein, encon-


tra-se na polêmica entre Oskar Schmitz, que denuncia o filme, e Walter Benjamin, que o
defende entusiasticamente. Ver Schmitz, “Potemkinfilm und Tendenzkunst” [Potemkim e as → 311
endossado, mas somente para se poder reprimir o seu significado. Em compa-
ração com este filme, as diferenças entre os vários tipos de filmes produzidos
na Alemanha ou nos Estados Unidos desapareceram, e ficou evidente que as
produções cinematográficas destes últimos países são a expressão homogênea
de uma e da mesma sociedade. As tentativas de alguns diretores e autores de
se distanciarem dessa homogeneidade estão de antemão condenadas. Ou es-
ses rebeldes são simplesmente instrumentos da sociedade, involuntariamente
manipulados acreditando o tempo todo ser vozes de protesto, ou são forçados
a assumir compromissos por instinto de sobrevivência. (Mesmo Chaplin no
filme Goldrausch [Em busca do ouro] termina como milionário sem encon-
trar um final plausível). A sociedade é muito poderosa para tolerar películas
diferentes daquelas que lhe convêm. O filme precisa espelhar essa sociedade,
quer queira, quer não.
Mas é realmente a sociedade que se manifesta nos filmes sensacionalistas
de sucesso. Essas reabilitações comoventes, essa generosidade impossível, es-
ses jovens polidos e almofadinhas, esses trapaceiros monstruosos, criminosos
e heróis, essas noites moralistas de amor e esses matrimônios imorais: eles
realmente existem? Sim, eles realmente existem: basta apenas ler os Genera-
lanzeiger.2 Não existe nenhum kitsch que se invente, que a própria vida não
supere. As empregadas domésticas não imitam os manuais profissionais de
cartas de amor, mas, ao contrário, são estes que são escritos copiando as cartas

→ tendências artísticas], em Walter Benjamin, Gesammelte Schriften [Obras reunidas], volume


2, Frankfurt: Suhrkamp Verlag, 1977, pp. 1486-89; e Benjamin “Erwiderung an Oskar A. H.
Schmez” [Resposta a Oskar A. H. Schmez], ibidem, pp. 751-55. Ver igualmente a resenha ex-
tremamente favorável de Kracauer, escrita em 1926, e intitulada “Die Jupiterlampen brennen
weiter: Zur Frankfurter Aufführung des Potemkin-Films” [As luzes de Júpiter continuam a
iluminar: sobre a apresentação do filme Potemkin em Frankfurt], republicada em Kracauer,
Kino: Essays, Studien, Glossen zum Film [Cinema: ensaios, escritos, anotações sobre filmes],
editado por Karsten Witte, Frankfurt: Suhrkamp Verlag, 1974, pp. 73-76.
2 Os Generalanzeiger, literalmente “anúncios gerais”, eram jornais que combinavam notícias
e informações (matrimônios “oficiais”, mortes e anúncios de acordos amigáveis) com uma
seção extensa de publicidade. Eram mais ou menos independentes do ponto de vista político
e floresceram na maioria das grandes cidades da Alemanha a partir da última década do
312 século XIX.
das empregadas. As donzelas ainda se suicidam quando desconfiam da fide-
lidade de seus noivos. Em geral, os filmes sensacionalistas de sucesso e a vida
correspondem entre si, pois as senhoritas datilógrafas moldam as suas vidas
segundo os exemplos que veem na tela de cinema. No entanto, pode ser que
os exemplos mais hipócritas sejam aqueles roubados da vida.
Não se pode negar, contudo, que na maioria dos filmes contemporâneos
as coisas são bastante irrealistas. Eles pintam de rosa as instituições mais ne-
gras e borram de graxa as vermelhas. Mas com isto os filmes não deixam de
refletir a sociedade. Ao contrário: quanto mais incorretamente apresentam a
superfície das coisas, tanto mais corretos eles se tornam e tanto mais clara-
mente refletem o mecanismo secreto da sociedade. Na realidade não ocorrerá
com frequência que uma faxineira se case com o proprietário de um Rolls
Royce; por outro lado, não é o sonho de todo proprietário de Rolls Royce que
as faxineiras sonhem em ascender até eles? As fantasias idiotas e irreais dos
filmes são os sonhos cotidianos da sociedade, nos quais se manifesta a sua ver-
dadeira realidade e tomam forma os seus desejos de outro modo represados.
(Não importa neste contexto o fato de que – seja nos best-sellers literários, seja
nos filmes sensacionalistas de sucesso – grandes conteúdos objetivos sejam
representados de maneira deformada.) Membros das classes mais altas e das
próximas a estas não se reconhecem nestes filmes, mas isto não significa que
não haja uma semelhança fotográfica. Eles têm bons motivos para não saber
como se parecem e quando descrevem algo como falso isto então será tanto
mais verdadeiro.
O mundo circundante atual também pode ser reconhecido naqueles filmes
que ainda vagueiam no passado. Ele não consegue se examinar o tempo todo,
pois não pode se examinar de todos os lados; as possibilidades de autorrepre-
sentação inofensiva são limitadas, enquanto o desejo de material é insaciável.
Os numerosos filmes históricos que ilustram meramente o passado (não como
no filme Potemkin que ilustra o presente sob uma veste histórica) são tentati-
vas que têm a finalidade de iludir o público. Ao transpor em imagens os acon-
tecimentos contemporâneos corre-se sempre o perigo de influenciar a massa
facilmente excitável contra instituições poderosas, que na realidade em geral
não são atraentes; assim prefere-se dirigir a câmera para a Idade Média, na qual 313
o público, sem ser lesado, pode se deixar edificar. Quanto mais distante a ação
se situa historicamente, tanto mais audaciosas tornam-se as pessoas ligadas ao
cinema. Eles ousam levar à vitória revoluções em costumes históricos, a fim
de induzir as pessoas a esquecer as modernas revoluções e se sentem felizes
em satisfazer o sentimento de justiça teórico, filmando batalhas pela liberdade
há muito desaparecidas. Douglas Fairbanks, o galante protetor dos oprimidos,
foi para o campo de batalha em um século passado contra um poder despó-
tico, cuja sobrevivência não tem qualquer consequência para um americano
nos dias de hoje.3 A coragem desses filmes diminui em proporção direta com
a sua aproximação ao presente. As cenas mais populares da Primeira Guerra
Mundial não são uma fuga para o outro lado da história, mas a manifestação
imediata do desejo da sociedade.
A razão pela qual esta expressão do desejo social se refletia mais direta-
mente nos filmes do que nas peças de teatro pode ser explicada simplesmente
pelo maior número de elementos entre o dramaturgo e o capital. Tanto para o
dramaturgo quanto para o diretor de teatro pode parecer que são independen-
tes do capital e, portanto, capazes de produzir obras de arte atemporais e des-
vinculadas de uma classe social. Certamente, isto é impossível, mas também
são produzidos espetáculos cujo determinante social é muito mais difícil de
ser percebido do que naqueles filmes controlados pelo diretor da corporação.
Isto é particularmente verdade para os determinantes sociais de dramas trá-
gicos, comédias, revistas de alto nível e produtos artísticos de direção produ-
zidos para a burguesia intelectual (de Berlim) – determinantes que somente
em parte encontram-se ainda inquebrantáveis no interior da sociedade. No
final, o público de tais obras lê uma revista radical e cultiva a sua profissão
burguesa com uma consciência pesada, para alcançar uma boa. As qualidades
artísticas de uma peça de teatro podem também deslocá-la da esfera social.
Na realidade, os poetas são em geral tolos e, se de um lado, rompem com a
sociedade tradicional, de outro, eles são aprisionados de uma maneira muito
mais radical. (No jornal Literarische Welt [Mundo literário], Bert Brecht cha-

314 3 Don Q., Son of Zorro [Don Q., filho de Zorro], de Donald Crisp, 1925.
mou de suspeita a lírica burguesa e receitou o esporte em seu lugar.4 O esporte
como fenômeno não-burguês – o biógrafo de Samson-Körner não deve ser in-
vejado por esta descoberta).5 Abstraindo-se de tais exceções, que se esquivam
conscientemente de parte dos condicionamentos, a maioria das obras teatrais
medíocres é, em geral, a resposta exata ao modo de sentir do público de teatro.
Este é condicionado à sociedade existente tanto quanto os filmes, dos quais se
diferencia apenas através do tédio maior.
Para pesquisar a sociedade atual, seria necessário ouvir aquilo que revelam
os produtos da grande indústria cinematográfica. Todos eles revelam um se-
gredo rude sem que na realidade o queiram. Na sequência infinita de filmes um
número limitado de temas típicos retorna sempre e eles revelam como a pró-
pria sociedade deseja ver a si mesma. A quintessência destes temas de filmes é,
ao mesmo tempo, a soma das ideologias da sociedade, despidas de seus encan-
tos através da interpretação dos motivos. A série “Die kleinen Ladenmädchen
gehen ins Kino” [As pequenas balconistas vão ao cinema] foi concebida como
um pequeno álbum de exemplos, no qual casos típicos estão sujeitos à casuís­
tica moralista.

Caminho livre

Um presidiário, que já conheceu dias melhores, após ser despedido do em-


prego entra em um ambiente cheio de taverneiros, de prostitutas, proletários

4 Como um dos juízes de um concurso de poesia organizado pelo jornal Literarische Welt, em
1924, Brecht deu o seu voto ao poema de autoria do ciclista Hannes Küpper, que nem mesmo
participava da competição. Ver Brecht, “Kurzer Bericht über 400 junge Lyriker” [Relato su-
cinto sobre quatrocentos líricos jovens] (1927), republicado em Brecht, Gesammelte Werke
in acht Bänden [Obras reunidas em oito volumes], volume 8, Frankfurt: Suhrkamp Verlag,
1967, pp. 54-56.
5 Paul Samson-Körner, pugilista da categoria dos pesos médios, amigo de Bertolt Brecht. Este
tinha a intenção de escrever uma biografia sobre Samson-Körner, mas no final somente
publi­cou um fragmento em 1926 no Scherls Magazine. Ver “Der Lebenslauf des Boxers
Samson-Körner” [O percurso do boxeador Samson-Körner], em Brecht, Gesammelte Werke,
volume 2, Frankfurt: Suhrkamp Verlag, 1967, pp. 121-44. 315
e jovens delinquentes, semelhante àqueles dos desenhos de Zille.6 Ele foi jul-
gado inocente. Em vão o infeliz busca um trabalho decente; somente uma
prostituta se compadece dele. Mas, um dia, no jardim zoológico, o ex-detento
salva uma senhora em uma carruagem, cujos cavalos dispararam. Ela é irmã
do proprietário de uma fábrica que, em agradecimento, emprega-o em sua
empresa. Agora o caminho está livre para o homem diligente. Os seus esforços
são reconhecidos e a sua inocência é considerada comprovada. No momento
oportuno a prostituta morre de tuberculose, e o protagonista, agora em traje
a rigor, fica noivo da moça que salvara. Uma situação típica na tela do cinema,
que atesta a mentalidade social do mundo de hoje. Filmando em estúdio com
fidelidade naturalista os interiores de casas dos fundos, o cinema descreve as
condições empobrecidas que dão origem a transgressões, que não são os cri-
mes sociais reais. Ele se move imparcial entre as camadas sociais menos favo-
recidas, que oferecem motivos atraentes para um filme. Os motivos são clara-
mente selecionados. Toda e qualquer menção às diferenças de classe é evitada,
pois a sociedade está excessivamente convencida do seu status de primeira
classe, para desejar tomar consciência das reais condições. Evitada é também
qualquer menção à classe operária, que por meios políticos tenta escapar da
miséria que os diretores apresentam de modo tão comovente. Nos filmes ba-
seados em situações da vida real, os trabalhadores são artesãos patriarcais
respeitáveis e genuínos funcionários subalternos da ferrovia; ou, caso devam
aparecer como insatisfeitos, sofreram então uma tragédia pessoal, de tal modo
que o infortúnio público possa ser esquecido muito mais rapidamente. Como
tema de comoção prefere-se o Lumpenproletariat, a gentalha politicamente
privada de qualquer apoio, que contém em si elementos dúbios que parecem
merecer o seu destino. A sociedade reveste de romantismo lugares de miséria
para perpetuá-los, e satisfaz com isso o seu sentimento de compaixão, pois
neste caso não custa um único centavo. Sim, a sociedade é muito piedosa e,
para tranquilizar a sua consciência, deseja privar-se do excesso de sentimento –
com a condição de que possa permanecer como é. Por compaixão, ela estende

6 Heinrich Zille (1858-1929), caricaturista e desenhista, cuja obra é marcada por uma nota
316 constante de sátira social.
a mão ora a um, ora a outro náufrago e o salva puxando-o até o seu nível, que
realmente considera ser a única altura. Isso é que lhe dá o suporte moral, mas
mantém, ao mesmo tempo, a classe inferior como inferior, e a sociedade como
sociedade. Ao contrário: a salvação de alguns indivíduos é uma via conve-
niente para coibir o salvamento de toda a classe; um proletário que foi promo-
vido a frequentar os salões da boa sociedade garante a perpetuação de tantas
tavernas. A irmã do proprietário da fábrica frequentará mais tarde a sua velha
taverna, com seu marido salvo da miséria, e talvez ambos salvem novamente
uma pessoa. Não é necessário temer que os proletários se extingam em razão
disso. As pequenas balconistas adquirem conhecimentos nunca suspeitados
sobre a miséria humana e a bondade que vem do alto.

Sexo e caráter 7

Uma jovem e bonita garota pôs na própria cabeça a ideia de conquistar o cora-
ção de seu primo, possuidor de uma propriedade adjacente.8 Ela passa a trajar
calças compridas, se deixa empregar como seu camareiro pessoal e, a partir
daí, ela aparece como uma figura ambígua nas situações mais inequívocas. Na
ambiguidade há muitas nuances. Para descobrir a verdadeira identidade do
rapaz, o patrão entra no quarto dos criados. A garota semivestida – por cima
o uniforme dos empregados, por baixo calças rendadas – se esconde sob a co-
berta e o patrão escrupuloso agarra-a pelos pés e, devagar e sistematicamente,
começa a puxá-la para fora da cama. Tudo por amor. Ao final, noivado. O
dono da propriedade rural é rico. Antes que os ombros do camareiro lhe pa-
recessem suspeitos, ele manteve uma relação com uma garota, que surgira em
um bar dançante. Estes locais, em número e importância, não ficam atrás das
igrejas nos séculos anteriores. Não há um filme sem um local dançante, como

7 Kracauer faz uma referência ao título de um importante estudo de Otto Weininger, em


1903, intitulado Geschlecht und Charakter: Eine prinzipielle Untersuchung [Sexo e caráter:
uma investigação de princípios]. Viena, Braunmüller. Republicado em München, Matthes
& Seitz, 1980.
8 Das Mädel auf der Schaukel [A moça do balanço], Felix Basch, 1926. 317
não há smoking sem dinheiro. Caso contrário, as mulheres não vestiriam nem
tirariam as suas calças. A empresa chama-se erotismo e a sua atividade cha-
ma-se vida. A vida é uma invenção dos abastados que os menos favorecidos
imitam da melhor maneira possível. Uma vez que é do interesse dos círculos
dominantes manter a sociedade como ela é, eles precisam proibir os outros
de refletir sobre esta sociedade. Com o auxílio do seu dinheiro são capazes de
esquecer durante o seu tempo livre aquela existência, pela qual trabalharam
durante todo o dia. Eles vivem. Eles compram um divertimento que permite
ao órgão do pensamento se evaporar, pois mantêm os outros órgãos comple-
tamente ocupados. Se a frequência a esses locais dançantes não fosse por si só
prazerosa, deveria ser subvencionada pelo Estado. Garotas que se vestem de
camareiros e os senhores, cujos objetivos últimos podem ser alcançados sob
cobertas, não têm pensamentos maldosos – que são bons pensamentos. Eles
poderiam chegar a tais pensamentos para sair do tédio. Para cessar o tédio, que
conduz ao divertimento e que, por sua vez, produz o tédio, ele é ainda suple-
mentado pelo amor. Por que a garota fez isso? Porque ela ama o proprietário
rural. Qualquer objeção ao amor é destruída pelo julgamento da sociedade,
que já não o conhece mais. Do mundo dos locais noturnos, o amor pois per-
mite florescer juramentos de fidelidade entre pessoas inexistentes, e do meio
das revistas surgem, como por encanto, noivados esplêndidos como apoteoses.
A luz que destas irradia é tão magnífica, que as pessoas nem mesmo desejam
que as outras luzes surjam para iluminar a sociedade. Em especial, quando o
amor está economicamente assegurado. Na sala escura do cinema, as peque-
nas e pobres balconistas buscam a mão dos seus acompanhantes e já pensam
no próximo domingo.

Nação armada

Durante a Guerra Mundial, em um mísero hotel da frente oriental que acabara


de ser ocupado pelos russos,9 uma camareira esconde um oficial austríaco, que
perdera o contato com a sua companhia. O general russo, que se alojara no

318 9 Hotel imperial, Mauritz Stiller, 1927.


hotel, importuna a criada patriótica com propostas lascivas. Ela resiste; por pa-
triotismo, naturalmente. Logo os austríacos voltam a ocupar o lugar e, ao som
da marcha de Radetzky, o oficial e a sua salvadora recebem as honras militares
diante de toda a companhia reunida. (Matrimônio de guerra à vista.) – Em
outra ocasião, uma corajosa prussiana do leste salva o seu filho (também um
oficial) durante a ocupação inimiga;10 ele recebe como mulher a sua corajosa
prima. As cenas de batalha são editadas de modo mais decente do que os atos
uniformizados de heroísmo. – Estes filmes militares e de guerra, que se asse-
melham uns aos outros, refutam até o último detalhe de modo concludente a
afirmação de que o mundo de hoje tem um caráter fundamentalmente mate-
rialista. Ao menos eles comprovam que certos círculos influentes estão muito
interessados em substituir o materialismo, que eles mesmos professam, pela
atitude heroica dos outros. De fato, aqueles círculos só podem alcançar os
seus objetivos – que talvez causem novas guerras – quando as massas, ainda
debilmente contaminadas pela revolução, empreenderem novamente um sa-
neamento do ponto de vista moral; quando o prazer provocado pela guerra na
forma de decoração e virgens substituir a memória dos seus horrores; quando,
mais uma vez, surgir uma nova geração que não estiver interessada em saber
por que está lutando e puder assim vencer ou perecer com todas as honras. A
intenção moral destes filmes é confirmada pelo fato de que eles também ad-
mitem a humanidade do inimigo. O general russo, que está atrás da garota pa-
triota, é um homem íntegro. O respeito ao adversário torna a guerra absurda.
Esta é exatamente a intenção dos seus produtores, pois, assim, a guerra deve ser
aceita como uma necessidade inexplicável. Somente quando o povo considera
a morte heroica como um fato insensato é que pode suportá-la eticamente. Os
filmes militares servem para educar o povo. Isto é particularmente verdadeiro
em relação aos filmes Fridericus-Rex,11 nos quais – por iniciativa dos sempre
mesmos círculos de influência – é novamente oferecido ao público um rei do

10 Volk in Not: Ein Heldenlied von Tannenberg [Povo em necessidade: um canto heróico de
Tannenberg], Wolfgang Neff, 1925.
11 Fridericus-Rex, filme de propaganda monarquista: Parte I: Sturm und Drang [Tempestade
e ímpeto]; Parte II: Vater und Sohn [Pai e filho], Arzen von Csepéry, 1920-22. 319
qual ele pode se entusiasmar muito mais do que em relação aos seus chefes
reais que, em contrapartida, lucram com esse entusiasmo. Quando o bom
Sombart chamou os alemães de “heróis” e os ingleses de “comerciantes” em
um panfleto de guerra, enganou-se de modo tão profundo quanto somente um
professor consegue fazê-lo.12 Os heróis cinematográficos de todos os países se
unem ao chefe da propaganda comercial de suas nações. Só com muito custo
as pequenas balconistas resistem ao fascínio dos desfiles e dos uniformes.

Os viajantes ao redor do mundo

A filha do proprietário de uma fábrica de motores de avião parte para uma


competição aérea ao redor do mundo, para demonstrar a qualidade dos mo-
tores fabricados pelo pai. Um concorrente, do qual ela previamente rejeitara
a oferta, procura em todos os lugares impedir a continuidade de sua viagem.13
Um jovem, de quem ela certamente não recusará a ajuda, auxilia-a durante
toda a viagem. Tendo como pano de fundo a Índia, a China, o Oceano Pací-
fico, a América, desenrola-se amor com velocidade e velocidade com amor. A
aviadora aparece sempre trajando as roupas típicas de cada um dos respecti-
vos países. No final, vitória e um casamento. – Em outros filmes o casamento
ocorre nos lagos do norte da Itália ou também na Espanha (a escolha dos países
depende da tendência da moda). Todo casamento está vinculado com o uso
contínuo de um carro próprio. – “Eu viajei ao redor do mundo para encon-
trar a mim mesmo”, afirma o conde Keyserling no seu Diário de viagem de um
filósofo.14 De modo semelhante, a sociedade nunca encontra a si mesma em
suas viagens, mas, diferentemente do conde, ela viaja precisamente para não
se encontrar. Se em casa ou em um meio de transporte moderno, as ações da
sociedade permanecem sempre as mesmas em todos os lugares, as mudanças

12 Werner Sombart (1863-1941), Händler und Helden: Patriotische Besinnungen [Comerciantes


e heróis: sentidos patrióticos]. München: Duncker & Humbolt, 1915.
13 Der Flug um den Erdball [O voo em redor do mundo], parte I: Indien-Europa [Índia-Europa],
dr. Willi Wolff, 1924.
14 Conde Hermann Alexander von Keyserling (1880-1946), Das Reisetagebuch eines Philosophen
320 [O diário de viagem de um filósofo], Darmstadt: Reichl, 1919.
das paisagens, no entanto, desviam a atenção da hipocrisia dos acontecimentos
sociais, cuja monotonia é esquecida nas aventuras de viagem. A aviadora, que
enfrenta tantos perigos na Índia, se mostra uma criatura simples e necessitada
de ajuda, e ninguém pensa mais na transação capitalista em Berlim, que a in-
duziu a realizar a viagem. Viajar é uma das melhores maneiras da sociedade
se manter em um estado permanente de ausência espiritual, que a protege de
uma reflexão consigo mesma. A viagem auxilia a fantasia nos caminhos fal-
sos, encobre as perspectivas com impressões, conduz às maravilhas do mundo
para que seus horrores não sejam vistos. (O aumento de conhecimento geo-
gráfico que traz serve para transfigurar o sistema existente, no qual surgiu.)
Algumas figuras sociais importantes, que podem se dar a esse luxo, sentem-se
verdadeiramente como seres humanos durante as férias em St. Moritz e só vão
para lá para sufocar o fato de que realmente não são seres humanos. As ca-
madas mais baixas da população, que precisam permanecer em casa, também
são mandadas para longe. As revistas ilustradas inundam-nas com imagens de
todas as partes do mundo. E para quem é que a aviadora voa, senão para elas?
Pois quanto mais viajam, tanto menos conhecem alguma coisa. Quando todos
os recantos do mundo estiverem fotografados, a sociedade estará completa-
mente cega. As pequenas balconistas gostariam tanto de se casar na Riviera.

O coração de ouro

Um jovem berlinense, importante industrial e organizador competente de uma


empresa de ponta, visita um vienense, sócio de seu pai, cuja firma vai à falência
em razão da péssima organização na Áustria.15 Horrorizado, o hóspede gostaria
de retornar, se a filha do sócio, uma doce garota vienense, não lhe esclarecesse
de que existem outras coisas além da organização: as ondas do rio Danúbio e
as vinícolas especializadas em vinho novo. Feliz, o jovem berlinense descobre
os seus sentimentos adormecidos. Ele saneia a firma, que logo será novamente
lucrativa, e conquista a garota para desfrutá-la como o anjo do lar. – Mesmo

15 Wien-Berlin: Ein Liebesspiel zwischen Spree und Donau [Viena-Berlim: um jogo amoroso
entre Spree e Donau]. Hans Steinhoff, 1926. 321
sem close-ups, o desenrolar dos acontecimentos seria crédulo. Seja na cidade
dos sonhos ao ritmo de valsas ou nas belas praias do Neckar – em qualquer
lugar, contanto que não seja no presente, os ricos se apaixonam e descobrem
durante o processo que têm coração. Não é verdade que eles não possuem co-
ração; os filmes refutam aquilo que a vida nos quer fazer crer. Fora da empresa
– que certamente não seria o lugar correto para o coração – seus corações estão
sempre no lugar errado. Eles transbordam sentimentos em situações nas quais
isto pouco importa, e frequentemente são incapazes de fazê-lo como gosta-
riam, pois gastam os seus sentimentos em questões privadas de maneira tão
antieconômica, que as suas reservas desaparecem continuamente. É necessário
ter visto a delicadeza e gentileza do jovem berlinense nas suas relações com
a garota vienense sob a torre de Santo Stefano, para entender de uma vez por
todas que o seu comportamento agressivo no telefone não indica uma falta de
sentimentos. A câmera cinematográfica revela isto. O que ele realmente ama
são as operetas, e o que ele realmente cobiça é um canto idílico no qual, sem
ser perturbado, possa abrir o seu coração que precisa manter oculto em todas
as outras situações. Se não existisse a bela vienense para impedir ao seu co-
ração interferir nos assuntos econômicos, ele também poderia se refugiar na
música de um gramofone. Nestes filmes é possível provar caso a caso que, com
o aumento da prosperidade, o número de parques nacionais de preservação da
natureza para fins sentimentais se multiplica. E assim, as pequenas balconistas
aprendem a entender que o seu chefe brilhante internamente é um homem de
ouro, e aguardam com ansiedade o dia em que elas mesmas possam com o seu
coraçãozinho bobo despertar um jovem berlinense.

O moderno Harun al Raschid 16

A filha de um milionário se faz passar por uma garota pobre, pois deseja ser
amada por aquilo que é como ser humano.17 O seu desejo é realizado por um

16 Harun al Raschid (763-809) foi o califa de Bagdá durante o período em que a maioria das
histórias das Mil e uma noites foi escrita.
322 17 Her Night of Romance [Sua noite de romance], Sidney A. Franklin, 1924.
jovem bem modesto que, na verdade, é um lorde empobrecido. Antes mesmo
que ele se confesse, vem a saber por acaso sobre os milhões que ela possui. Ele
retira o seu pedido de casamento para não se expor a malentendidos. No en-
tanto, mais do que depressa, ambos se entendem e, uma vez que dinheiro atrai
dinheiro, no final, o lorde herda uma fortuna imensa. – Em um outro filme, um
jovem bilionário perambula pelo mundo como um vagabundo porque deseja
ser amado apenas pelo que é e assim por diante.18 Incógnita revelada, excitação
da garota e viagem de núpcias em um iate de luxo. – Tal como nas Mil e uma
noites, o príncipe dos contos de fadas dos dias atuais escolhe a discrição, só que
o esplendor do final deriva dos seus milhões que ofuscam qualquer outro es-
plendor social. Uma fortuna extraordinária pode ser mantida em segredo por
razões úteis. A garota pobre que é rica e o vagabundo, que não é vagabundo:
ao manterem-se incógnitos não têm nenhum outro fim senão aquele de serem
amados pelo que são. Por que eles não jogam fora o seu dinheiro, se desejam
ser amados como seres humanos? Por que não demonstram ser qualquer coisa
que valha a pena amar, fazendo com o seu dinheiro alguma coisa mais decente?
Mas eles nem jogam fora o seu dinheiro, nem fazem alguma coisa decente com
ele. Simular uma pobreza tem muito mais o sentido de colocar claramente em
evidência a felicidade de possuir um patrimônio, e o desejo de ser amado de
modo desinteressado é um sentimentalismo que serve para obscurecer a falta
do verdadeiro amor. Pois o verdadeiro amor tem interesse, está interessado
no fato de que o seu objeto seja merecedor de algo. Para a filha do milionário
poderia ser incômodo o fato de que um enamorado a desejasse por interesse
real. Assim encobre os milhões a ela atribuídos e procura para si nos preços
muito baixos do mercado livre um marido cujo desinteresse está no fato de
que ele se encontra com uma garota sem milhões, que não é nada sem estes
milhões. Mas, dizem os moralistas dentre os ricos, aquilo que aqui importa
é a garota, não a fortuna. Segundo a conclusão destes filmes, o ser humano é
uma garota que dança bem charleston, e um jovem, que do mesmo modo
compreende muito pouco. O amor entre duas pessoas – quer dizer, entre duas
bagatelas privadas – não é por isso supérfluo, mas serve para justificar a posse

18 Le Prince charmant [O príncipe encantador], Victor Tourjansky, 1925. 323


da propriedade. Esta posse, por sua vez, não atua de modo tão excitante so-
bre os que não possuem nada, se aqueles que possuem propriedade podem
provar, através do assim denominado amor, que podem possuí-la como seres
humanos. Os contos de fadas permaneceram, mas o motivo da incógnita se
inverteu. O autêntico Harun al Raschid viajou anônimo entre as pessoas para
conhecê-las independentemente de suas posses, e no final se revelou como
seu juiz. O moderno Harun al Raschid se apresenta independentemente da
sua fortuna para, neste anonimato, ser reconhecido como uma coisa especial,
e no final revela aquilo que realmente é sua fortuna. Se hoje à noite as peque-
nas balconistas forem abordadas por um homem estranho, elas irão tomá-lo
por um dos milionários famosos das revistas ilustradas.

Tragédias silenciosas

Um banqueiro vai à falência e como resultado desta imensa incompetência ele


tenta o suicídio.19 Do patrimônio falido faz parte uma filha. Um tenente-coronel,
que a ama, infelizmente precisa abandonar o seu sonho de levá-la ao altar
diante da falta de recursos dela e em razão de sua carreira. A partir desse mo-
mento ela passa a ganhar a vida trabalhando como dançarina sob um nome
artístico. O tenente-coronel, que já se arrependera de sua perda, reencontra-a
depois de anos de buscas vãs, e quer finalmente se casar com ela. Para um final
feliz seria necessária apenas a apresentação da carta de demissão por ele plane-
jada. Mas a dançarina generosa se envenena para, através de sua morte, forçar
o amado a pensar somente em sua carreira. O oficial desolado, em vestes civis,
mantém-se ao lado do féretro. – O jovem não precisa ser um tenente-coronel;
também em outras profissões a carreira individual depende de um bom par-
tido. Disto nascem tragédias semelhantes a esta que, na verdade, não o são de
fato. Mas é do interesse da sociedade que elas apareçam como tragédias. Se
uma mulher se mata para que um homem alcance um posto mais alto, isto
garante irrevogabilidade às estruturas sociais. Estas são elevadas à categoria
de leis eternas, pois, por sua causa, as pessoas estão dispostas a sofrer uma

324 19 Das alte Ballhaus [O antigo salão de baile], Wolfgang Neff, 1925.
morte que lembra um drama trágico de cinco atos. Os trustes que financiam
a indústria cinematográfica sabem (ou não sabem) porque vendem tais casos
mórbidos. A morte que confirma o poder das instituições dominantes coíbe
a morte durante um combate contra essas instituições. Para que este último
não ocorra, glorifica-se o primeiro. Mas os produtores de filmes glorificam-no
na medida em que eles passam por tragédia, o que na realidade é uma falta
de conhecimento ou, no melhor dos casos, um infortúnio. A magnanimidade
que a bailarina quer provar através de sua morte voluntária é um desperdício
de sentimento, mas que é cultivado pelas camadas superiores, pois diminui a
força do sentimento de injustiça. Há muitas pessoas que se sacrificam nobre-
mente porque são muito preguiçosas para se rebelarem. Deste modo, muitas
lágrimas são derramadas porque chorar às vezes é mais fácil que refletir. As
tragédias dos dias atuais são os acontecimentos privados com um início ruim,
que a sociedade enfeitou metafisicamente para preservar o status quo. Quanto
mais forte é a posição de poder da sociedade, mais tragicamente vão se portar
a fraqueza e a estupidez, e certamente todo novo acordo da indústria pesada
internacional elevará o número das dançarinas suicidas. O público está tão to-
cado pelos sintomas de envenenamento – pelos quais estas dançarinas tomam
suas vidas – que não pensa mais em neutralizar o veneno. Assim somente o
esforço para desintoxicar a sociedade deste veneno pode ser chamado de trá-
gico. Furtivamente, as pequenas balconistas limpam os seus olhos e, às pressas,
passam pó-de-arroz em seus narizes antes que a sala se ilumine.

Quase no limite

Algumas vezes os filmes se tornam enlouquecidos. Eles apresentam facetas


assustadoras, imagens que expõem a verdadeira cara da sociedade. Por sorte
eles são sadios em seu cerne. As erupções esquizofrênicas duram somente
poucos instantes, a cortina é novamente abaixada e tudo retorna ao normal.
Uma garota de província, por exemplo, chega a Berlim com o seu admirador,
um jovem desajeitado.20 Visto que ela é uma verdadeira beldade, um diretor-

20 Das Mädchen mit der Protektion [A moça sob proteção], Max Mack, 1925. 325
geral transforma-a em uma estrela de revista e arranja um emprego para o ra-
paz. Ele seria um péssimo homem de negócios se não quisesse ter o seu lucro
com isso. A garota, no entanto, se recusa a ceder a ele, pega o seu admirador
e dá as costas ao protecionismo imundo. (O autor do filme é um escritor.)
Um mero desmascaramento das práticas sociais? O produtor do filme mere-
ceu ir à falência, pois nada tem um efeito mais desmoralizante para o público
que a revelação de atividades imorais, oficialmente sancionadas enquanto são
exercidas em segredo. O perigo é contornado no último minuto, quando o
diretor geral lamenta suas ações, corre atrás do parzinho inocente que, graças
ao pedido de desculpas, se deixa reconduzir por ele de volta. Para lustrar um
pouco a questão protecionista é necessário que também haja diretores gerais
como este. (O autor é um escritor.) – Muito mais drástico é o caso a seguir. O
rei de um país miserável do Sul levou para casa uma amante de Paris, que um
milionário americano queria possuir entre os seus bens.21 Para conquistá-la,
o milionário compra a massa popular insatisfeita e suborna o general do rei.
Rapidamente se encena um levante patriótico. As metralhadoras começam a
disparar e, nas ruas e praças, formam-se grupos de cadáveres pictoricamente
distribuídos. O general pode comunicar ao milionário que, com a captura do
rei, a garota está novamente livre e permanece diante do seu financiador com
a postura servil de um camareiro particular. É assim, portanto, que golpes de
Estado e banhos de sangue seriam organizados a pedido do grande capital?
O filme é insano. Ele mostra os acontecimentos como efetivamente ocorrem,
ao invés de conservar neles aquela dignidade que os torna possíveis. Graças
a Deus o filme recobra novamente o sorriso nas faces coradas. O americano
é, na verdade, um homem bom, digno de possuir os seus milhões. Depois de
ficar sabendo que a parisiense é fiel ao seu amado, livra o ex-rei da prisão e
envia o par feliz para uma viagem de lua-de-mel. O amor é mais forte que o
dinheiro, quando este deve angariar simpatias. As pequenas balconistas se
amedrontaram. Agora podem suspirar aliviadas.

326 21 Eine Dubarry von heute [Uma Dubarry de hoje em dia], Alexandre Korda, 1926.
Cinema, 1928

A produção de filmes estabilizou-se tanto quanto seu próprio público, e sua


produção mostra motivos e tendências típicos, sempre recorrentes, e mesmo
filmes que diferem da média já não oferecem tanta surpresa. Esta cristalização
se estende tanto ao enredo do filme como ao procedimento técnico. As exce-
ções, como Die freudlose Gasse [A rua sem alegria], Manege [Picadeiro], Die
Hose [O escândalo real], Thérese Raquin, podem ser contadas a dedo.
É o tempo certo para acertar contas com esta produção. É estúpida, falsa
e normalmente mal-intencionada. Não deve nem ser mencionada para ser
desenvolvida aqui.
Sua liquidação seria muito necessária agora, sobretudo quando a popula-
ridade do cinema cresceu dramaticamente nos últimos anos. Inumeráveis no-
vas salas de cinema foram criadas, denominadas “palácios”, e o círculo de seus
inimigos declarados se extinguiu. Dos trabalhadores nos cinemas da periferia
da cidade à alta burguesia nos cinepalácios, todos os segmentos da população
afluem ao cinema; destes segmentos, provavelmente o mais amplo seja com-
posto de pequenos empregados, cujo número não apenas aumentou em termos
absolutos, mas também em termos relativos desde a racionalização de nossa
economia. Ainda que o cinema tenha encontrado seu caminho para chegar
até as massas, seus produtores não podem ser, em todo caso, responsabiliza- 327
dos isoladamente pela sua mercadoria. Como medida de sobrevivência, estes
produtores devem tentar satisfazer as necessidades das massas, e até mesmo
Hugenberg1 pode controlar o mercado só até certo ponto. A crítica da produ-
ção atual não se orienta de modo algum definitivamente contra a indústria,
mas se volta tanto mais à esfera pública que permitiu o florescimento desta
indústria. Companheiro de prisão, companheiro de forca – pode ser dito aqui
em sentido estrito.
As queixas contra o cinema atual não devem e não podem servir para
justificar implicitamente o teatro do momento, na esperança desnecessária
de reafirmá-lo explicitamente. Nem deve ao fato de que indiretamente está
baseado na investigação das relações alemãs, subentendendo que a produção
de fora (isto é, não-russa) tem sido privilegiada em relação à nossa própria.
Sobretudo a produção americana, mais do que as outras, que tem chegado até
nós nos últimos anos, seria a melhor – com exceção de algumas poucas reali-
zações surpreendentes – não deixando nada sobrar. Mas a miséria alemã nos
toca de modo mais imediato do que a dos outros.

O repreensível nestes filmes não é o uso de clichês. Ao contrário: a variação de


determinados padrões é de fato preferível à experimentação indiscriminada e,
além disto, mesmo o maior dos estúdios não pode produzir modelos novos e
originais semana a semana. Repreensível nestes filmes é sua mentalidade. Em
todos os tipos, que se consolidaram, a nossa realidade social é volatilizada, pe-
trificada e desfigurada às vezes de modo idiota, às vezes de modo inócuo, perni-
cioso. Tudo o que deveria ser projetado na tela é removido, e a sua superfície é
preenchida com imagens que trapaceiam a imagem do existente para nós. É ne-
cessário citar exemplos? Basta dar uma olhada em nossa produção mediana.
Para evitar mostrar o presente a todo custo, os filmes de ficção são produ-
zidos efetivamente como tentativas de fuga das mais aventureiras. Em vez de

1 Alfred Hugenberg (1865-1951), político conservador e diretor das indústrias Krupp, inimigo
mortal da república de Weimar e posteriormente ministro das finanças do nazismo, assume o
controle da UFA em 1927. Desempenhou um papel crucial na consolidação do nazi-fascismo
328 com seu monopólio de jornais e da produção de filmes.
se posicionar em qualquer esquina, a câmera permanece no estúdio correndo
para tempos e espaços distantes que são completamente irrelevantes para nós.
Não é necessário ser o Lutero dos livros de escola, Otto Gebühr ou a juven-
tude da Rainha Luise,2 não é necessário que corresponda de modo algum aos
heróis da história, desviando a atenção do heroísmo mais essencial de pes-
soas sem nome – o passado mais recente já está tão distante de nós que pode
ser trazido de novo para perto. Matérias perdidas das comédias musicais de
passado recente são decerto adequadas para filmes modernos, desde que seu
humor tenha origem menos no Simplizissimus do que no Fliegenden Blättern.3
Mas se há algo que atrai os roteiristas entre todos os outros é o tema das cortes
feudais já abolidas há tempos. Segundo a opinião das companhias de cinema,
pode se encontrar nestas cortes o que o público republicano anseia por ver:
um círculo ilustre de princesas e barões, galanteria como forma de passar o
tempo, a pompa dos trajes e um assoalho recentemente bem encerado. Estas
peças reaparecem em inúmeros filmes, e se seu sucesso dependesse em nada
mais do que sorrir trajando um uniforme de cavalaria, Harry Liedtke4 já teria
conquistado a multidão há bastante tempo para apoiar o velho regime. É o ho-
mem dos sonhos de Marlitt5 e o herói de muitas operetas. Quanto mais estão
fora de moda as operetas, mais parecem estar adequadas para serem filmadas.
Der Bettelstudent [O estudante miserável], Der Orlow [Orlow], Die Geliebte
seiner Hoheit [Sua Alteza amada]– estes filmes inundam a plateia com seus

2 Kracauer se refere aqui aos filmes de Hans Kyser Luther: Ein Film der deutschen Reformation
[Lutero: um filme da Reforma alemã], de 1927; ao filme de Karl Grune, do mesmo ano, Die
Jugend der Königin Luise [A juventude da Princesa Luise]; ao ator alemão, Otto Gebühr (1877-
1954), que interpretou Frederico II, no seriado de quatro partes Fredericus Rex (1920-22), de
Arzen von Cserépy.
3 Simplicismus, semanário satírico (1896-1944; 1954-67), fundado pelos publicistas Albert Lan-
gen e Thomas T. Heine. Fligenden Blätter (1844-1944), revista ilustrada humorística que se
tornou célebre pelas suas caricaturas (Wilhelm Busch e outros) ironizando o comportamento
da burguesia alemã.
4 O ator alemão, Harry Liedtke (1888-1945), representou o papel de Armand de Foix no filme
de Ernst Lubitsch de 1919, Madame Dubarry.
5 Eugenie Marlitt, pseudônimo de Eugenie John (1825-87), popular escritor alemão, autor de
uma série de narrativas publicadas no semanário Die Gartenlaube. 329
príncipes frívolos, mas adoráveis, seus castelos de fada e seus casais insípidos.
Seus trastes, que parecem ter sido reduzidos a pó depois da revolução, adqui-
rem subitamente vitalidade. A apresentação destes trastes é normalmente uma
boa oportunidade para evocar Viena, uma cidade que os produtores cinema-
tográficos de Berlim têm no coração, pois se mostra como o mais eficaz dos
entorpecentes. A Viena do “K e K” que não conhece absolutamente nada de
7 de outubro.6 A Viena que sonha e é cheia de música, que desconhece qual-
quer carência habitacional, que tem cafés ao estilo Biedermeier, em que Strauss
ainda continua até hoje tocando, e para as garotas – So küsst nur eine fesche
Wienerin [Apenas vá e beije uma elegante vienense].7 Há também frequente-
mente muitos beijos nos filmes de guerra costumeiros como Opfer [A vítima]
e Leichte Kavallerie [A cavalaria ligeira], ambos novas versões aguadas de Ho-
tel Stadt Lemberg, nos quais as ocasionais cenas de trincheira devem exaltar o
desejo por casos de paixão privados.
Mas se o presente é finalmente representado, este desaparece de súbito do
campo visual. “Bem-aventurados os pobres de espírito, pois deles será o reino
do céu” – grande parte dos filmes que se ocupa do nosso tempo procede de
acordo com estas palavras do Sermão da montanha. Dão mais importância à
predestinação do que aos sindicatos; em todo caso escolhem entre trabalha-
dores e empregados, que são descritos como mentalmente desorganizados, al-
guns pobres casos isolados para que possam se tornar bem-aventurados. Eis o
esquema dos filmes à maneira Zille,8 que unem o útil ao agradável, descrevem
de modo horripilante um ambiente proletário e ao mesmo tempo salvam uma
pessoa deste inferno. Os caminhos destes senhores do cinema são misteriosos.
Mesmo as telefonistas, as balconistas do comércio e as secretárias particulares

6 Königlich und Kaiserlich [real e imperial], designação que se refere à dupla monarquia Austro-
Húngara (1867-1918). 7 outubro de 1928 se refere ao evento, quando um amplo e fortemente
armado continente da organização fascista Heimwehr marchou sobre Viena.
7 Filme de Arthur Bergen de 1927.
8 Gênero de filme moralizante, inspirado no caricaturista Heinrich Zille, que foca os proble-
mas sociais contemporâneos como a reintegração de ex-devotas (Die Verrufenende [Os de
má-fama] de Gerhard Lamprecht, 1925) ou o drama de um filho ilegítimo (Die Unehrlichen
330 [Os desonrados], Lamprecht, 1926).
podem ter esperança sem necessitar recorrer a seus sindicatos profissionais,
pois Lotte, uma simples manicure, não foi a única a ter seu dia de sorte9 em
Lotte hat ihr Glück gemacht [Lotte fez sua fortuna], mas outras colegas como
ela também que, quando pequenas, nunca tiveram ninguém para niná-las no
berço. Tem de ser bonita, com certeza. O reino do céu para onde estas pes-
soas escolhidas três vezes seguidas foram transportadas é a sociedade. Esta
sociedade resplandece de modo tão brilhante nos filmes dominantes como o
paraíso nas ilustrações medievais. Seus membros são choferes deles mesmos,
moram em Berlim, Paris ou na Riviera, vestem quase sempre trajes esportivos
ou opulentas toaletes noturnas e se encontram apenas em caso de necessidade
quando têm atrás de si um rico casamento. Dia após dia estão melhores e me-
lhores, e à noite vão a um bar dançar, sentam-se ao redor de uma mesa de jogo
ou até cometem adultério; isto é, chegam até mesmo a desnudar-se por pura
frivolidade, e eis que algo se sucede, desta vez por causa da moral, que deve ser
respeitada, pois senão a crença na sociedade começaria a titubear. Os filmes
cuidam do caráter inabalável da sociedade simplesmente para demonstrar que
a canção da última revista é a música que pertence a esta esfera. Certamente,
Lotte, que se casou nesta sociedade, teve seu dia de sorte.
Nem todos os filmes professam esta teologia. Há aqueles filmes mais escla-
recidos que gostariam de corresponder ao gosto de um público mais intelec-
tualizado. Estes filmes começam de modo mais ou menos radical, mas uma
radicalidade que fica no meio do caminho, e sempre se colocam contra apenas
aquelas figuras já depostas de ontem. Déspotas do passado são combatidos, as-
sim são os pré-capitalistas de Der Weber [O tecelão]. Um dos alvos preferidos
dos escárnios são os súditos do imperador (por exemplo, em Biberpelz [Pele de
castor]), cujos lugares hoje são ocupados pelos lacaios do poder monetário que
permanecem sem ser molestados. Ou se ri (como no filme Sechs Mädchen suchen
ein Nachtquartier [Seis moças procuram um quarto para dormir]) do atraso da
província com uma arrogância típica da capital imperial, que é ela própria pro-

9 Filme de Carmen Boni, de 1928 331


vinciana. Representativo para todo o gênero é o desalento do filme de Domela.10
Os membros da Saxo-Borussen11 que tomam um caminho que vai contra a linha
oficial e cuja sátira dá lugar a zombaria que afaga em vez de atacá-la.
Diferentemente da maioria dos filmes de ficção, os filmes documentários não
têm a ver com cenários artisticamente construídos, mas com a realidade que de-
vem supostamente compreender. Poderia se supor que eles têm a pretensão de
nos apresentar o mundo tal qual este é. Mas o que acontece é justamente o con-
trário. Isola-nos da vida, que unicamente nos diz respeito, acumulam o público
com uma tal quantidade de observações indiferentes, embotando o que é real­
mente importante. Um dia destes o público tornar-se-á completamente cego.
Os noticiários da semana [Wochenberichte], juntamente com várias firmas
bem conhecidas, mesclam tomadas de batismo de navio, incêndios destrutivos,
eventos esportivos, paradas, cenas idílicas de crianças e animais, contêm tam-
bém às vezes atualidades, mas decerto nenhum acontecimento que merecesse
ser visto umas cem vezes; para não falar das diferentes corridas de motocicleta
capazes de levar qualquer um ao desespero. A monotonia destas miscelâneas
é a justa vingança contra sua inconsequência, intensificada pelo modo vazio
de pensamentos com que são combinadas as sequências individuais de ima-
gens em um mosaico. Isto foi drasticamente desmascarado pela Volksverband
für Filmkunst [Liga popular para a arte cinematográfica] que reuniu recente-
mente alguns noticiários do material do arquivo de imagens,12 pontuando-os
polemicamente. Mesmo os habituais filmes culturais cuidam-se terrivelmente

10 Der Falsche Prinz: Eine Zeitkomödie in sieben Akten [O falso príncipe: uma comédia em sete
atos], Hanz Paul, 1927. Ver também o artigo de Kracauer de 1927, “Prinz Domela”, republi-
cado em Schriften 5-2, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1990, pp. 75-77.
11 Associação fraternal alemã, fundada em 1820 em Heidelberg, composta de estudantes de
origem aristocrática, assumiu um posicionamento antifascista que provocou sua proibição
em 1935 pelos nazistas.
12 Fundada em 1928 em resposta à mediocridade do filme comercial, buscando alternativas
para o chamado cinema sério. Uma de suas primeiras projeções foi uma re-edição de cine-
jornais, logo proibida pela censura. Ver o artigo de Kracauer, “Volksverband für Filmkunst”
[Liga popular para a arte cinematográfica] de 1928, in Schriften 6-2: Frankfurt am Main:
332 Suhrkamp, 2004, pp. 71-73.
em manter afastada de si nossa cultura, preferindo vagar pelo estranho: pelas
tribos africanas, pelos costumes e rituais dos esquimós, pelas cobras, besouros
e palmeiras. O fato de que alguns deles são bem-feitos é menos desnorteante do
que o fato de que, como se partindo de alguns preparativos prioritários, quase
todos eles se evadem do que seria o mais urgente em relação ao humano, ar-
rastando o exótico para o cotidiano em vez de investigar o exótico no dia-a-dia.
Além disso, a maioria é malfeita, um conjunto de produções sem importância
que, sem ter sido questionado se deveria agir assim, dá uma instrução de tipo
escolar que poderia ser melhor provida em qualquer enciclopédia. Da criação
de cavalos à tecelagem de tapetes, nenhum objeto está protegido das garras da
pedagogia popular dos filmes culturais. Os piores são aqueles que se insinuam
por meio de títulos poéticos inflacionados de adjetivos. A pseudopoesia celebra
o seu triunfo definitivo no filme cultural da UFA Natur und Liebe [Natureza e
amor], que não se limitando a palavras, exagera o seu potencial poético com
visões da criação e do progresso da humanidade. Não se satisfazendo em expli-
car a vida sexual, a UFA insiste em sonhar e pressagiar como uma sibila.
Entretanto, pode-se fazer a seguinte observação: boa parte da produção me-
diana consiste consciente ou inconsciente em manobras de evasão [Umgehungs-
manöver]. Parte se distancia simplesmente da nossa realidade arbitrariamente
para lugares longínquos, parte se orienta por ideologias do interesse da socie-
dade estabelecida, obstruindo a visão dos principais grupos dos espectadores
de cinema, sobretudo o dos pequenos empregados. Estas ideologias projetadas
nas telas do cinema são bem mais empoeiradas, fora de moda, do que aquelas
ideologias correntes, em três dimensões, em circulação no resto da Alemanha.
Nem uma simples balconista nem um próspero empresário podem lhes prestar
fé. Já seria o tempo, pelo menos, da UFA ter aprendido algo com a existência da
AFA.13 Mas justamente esta ignorância é característica da insuficiência geral dos
produtores cinematográficos em relação à realidade – insuficiência abrangente

13 Allgemeiner Freier Angestelltenbund [União geral de empregados livres], estabelecida em 1921


em consonância com a União dos Trabalhadores [Allgemeiner Deutscher Gewerkschaftsbund],
foi a voz dos empregados durante a República de Weimar, dissolvida pelos nazistas em abril
de 1933. 333
que não se esgota no atraso político. Esta insuficiência é manifesta não apenas
nas mercadorias já mencionadas anteriormente, mas também nos inumeráveis
filmes de compromisso que tentam atrair, a preço de sua plausibilidade, inimigos
e amigos da república, pacifistas e belicistas; isto também é evidente nos filmes
seriados comerciais que remodelam temas populares – o circo, a crise da pu-
berdade, o problema sexual – tendo em vista não alguma afirmação verdadeira
sobre eles mas em razão de fazer dinheiro. Todos eles não configuram a vida,
gostariam mesmo é de eliminá-la. O resultado é confusão. A maneira como ma-
nipulam estereótipos emocionais, o modo como buscam confundir – basta ter
em mente filmes como Charlott etwas verrückt ou Heut tanzt Mariett [Mariett
dança hoje]. Que são de mau gosto pode-se comprovar de várias maneiras. Por
exemplo, o que penso ser uma piada, quando jovens moças da rua são associadas
em grandes planos com bonecas de pano que são concebidas como contrapar-
tida de suas donas. Ou são representados sempre repetidamente os maus hábitos
à mesa das pessoas simples, o que as pessoas simples no público acham muito
engraçado, porque elas mesmas não comem daquele modo.

Correspondendo à inadequação do material, como não poderia deixar de ser,


está a inadequação estética. Paralelamente à consolidação dos vários gêneros
de narrativas se estabilizou uma técnica de confecção, da qual os autores dos
roteiros e mais ou menos os diretores e seus assistentes se servem sem o me-
nor escrúpulo. Tomados à distância, é obvio que estes trabalhos foram elabo-
rados sem critérios de medida. Além disto as demandas do negócio tendem
a impor uma certa sistematização, não justificam o baixo nível destes modos
de procedimento.
Sobre a construção fílmica, na maioria dos casos, não há nada a dizer. Os
assuntos são escolhidos, aparentemente de modo indiscriminado, não são con-
cebidos visualmente de forma alguma, Schnitzler, Zuckmayer e Sudermann
precisam acreditar nisto.14 Certamente, há motivos e materiais em muitos

14 Os trabalhos literários de Arthur Schnitzler (1862-1931), Carl Zuckmayer (1896-1977) e Her-


mann Sudermann (1857-1928) foram utilizados frequentemente como base para filmes na
334 República de Weimar.
romances e peças de teatro que poderiam servir de base para um autêntico
filme, mas os produtores não fazem o menor esforço em desmembrar seus
originais literários em elementos cinematográficos utilizáveis para construir
assim algo de novo, em vez disto, simplesmente traduzem o texto original cena
por cena, mudando apenas a linha da história, quando isto acontece, para agra-
dar o público. Isto é: o filme resultante é uma ilustração ininterrupta do texto
que lhe é estranho, enquanto o filme mesmo deveria ser um texto que se lê. A
história não se desenvolve de acordo com a lei determinada pela sequência
de imagens, ao contrário, as cenas do filme são organizadas na sequência di-
tada pela história que se desenvolve independentemente dele. Normalmente
os filmes históricos são também meras ilustrações. Retratam episódios, que
na maioria dos casos são mal contados – lições de história em imagens, em
vez de fazer emergir a história das próprias imagens. Em geral, quase todos os
filmes baseados em roteiros que foram escritos desde o início especialmente
para a tela partilham do mesmo destino dos filmes baseados em histórias pré-
existentes. São traduções romanceadas, mesmo se os romances não existem.
Tal procedimento rouba forçosamente muitos detalhes de seu significado,
que teriam de ser a estrutura-suporte de um filme, já que, se a progressão do
filme está atada a uma ação que lhe é exterior, os elementos visuais que apre-
sentam a ação tornam-se apenas acessórios. Para ater a unidade visual indi-
vidualmente à sua devida função, esta deve ser um componente essencial da
completude visual da ação concebida; como é o caso, por exemplo, no filme
Thérese Raquin, no qual o apartamento pequeno-burguês desempenha um pa-
pel com força própria. É verdade que a técnica estabelecida faz uso abundante
de carros, mostra o êmbolo de uma locomotiva de trem expresso toda vez que
o herói viaja, descreve pernas andando e rodas de carro em movimento e não
assusta mesmo diante de uma catástrofe. Mas todos estes fragmentos possuem
apenas um sentido ornamental, e deles se poderia prescindir sem que se per-
desse a inteligibilidade do filme. Muito diferente de um filme verdadeiro que
se torna imediatamente incompreensível ou que perde perceptivelmente em
perfeição quando se retira dele um simples átomo de imagem.
Se o detalhe que submergiu ao nível de mero adorno fosse tratado com al-
gum cuidado! Em regra geral permanece tão fora de domínio como a realidade 335
extracinematográfica. Um trabalho porco. Estradas são construídas de tal
modo que é perceptível que não vão a lugar algum. Os produtores se dão
por satisfeitos com a mais superficial correspondência entre um close-up ou
um plano geral de um objeto qualquer; por exemplo, um plano arquitetônico
pintado em toda sua extensão não corresponde de modo algum ao fragmento
construído no estúdio deste mesmo plano que deveria servir propriamente de
cenário à ação. Onde imagens de modelos arquitetônicos são seguidas de to-
madas de cena de casas verdadeiras, os dois são usualmente tão estranhos um
ao outro que o modelo pode ser reconhecido imediatamente como modelo.
Os planos de fundo e os meios são muito frequentemente imprecisos. Os pro-
dutores tornam-se particularmente fraudulentos quando se trata de descrever
os interiores de um hotel elegante; ou porque se supõe, com razão, que estes
ambientes sejam estranhos ao público, ou que este simplesmente não conheça
esses lugares. O descuido com que tratam dos detalhes das situações sociais
nem merece ser mencionado. Às vezes, nem mesmo os compartimentos de ter-
ceira classe, que qualquer um conhece bem, são reproduzidos corretamente. A
falta de fidedignidade nestas observações torna-se imediatamente perceptível
por causa do nível geralmente elevado da fotografia. Quase parece que, com a
crescente perfeição da técnica fotográfica, o objeto, que esta teria que apreen-
der, se volatiliza cada vez mais.
Se o material visual é ruim e, pior ainda, se a composição do filme tem de
seguir uma ação não-fílmica, a montagem pode ser no melhor dos casos mera
destreza. Os diretores aprenderam como manipular os aparatos, mudam com
razoável destreza as tomadas de grande plano, primeiro plano e total, matizam
as diferentes cenas e buscam ligá-las entre si por meio de transições visuais.
Esses artifícios, que deveriam expressar o sentido da fábula e que deveriam
mudar com a própria fábula, se petrificaram de fato em meros acessórios ex-
teriores. Algumas configurações da montagem tornaram-se, com o tempo,
independentes e são impostas em todos os filmes, sem discernimento se são
apropriadas ou não. Quando se trata de um bar dançante, misturam-se usual-
mente acordes de saxofone com o cambalear dos corpos dos músicos em meio
aos pares soltos – a fórmula visual estabelecida mais grosseira para representar
336 a pseudoembriaguez da diversão. Alguém fez uso deste procedimento uma vez
e agora todos fazem o mesmo. Mesmo os sonhos de um bêbado ou de um nos-
tálgico são inteiramente mecanizados. Recentemente um método determinado
de transição se naturalizou tanto que é repetido a cada oportunidade. Duas
cenas que se seguem, não havendo nenhuma ligação necessária entre si, são
fundidas. Por exemplo, na primeira deveria aparecer um cavalheiro elegante,
na segunda uma mulher maltrapilha. Como as cenas são acopladas? O olhar
é dirigido do conjunto da figura do cavalheiro a seus sapatos de cromo, que
se transformam imperceptivelmente numa bota suja, da qual surge a mulher.
Tais procedimentos podem possuir um bom significado em determinados
casos. No entanto, quando não expressam objetivamente nada, são trapaças
estéticas, simulam uma relação que efetivamente não existe. Trata-se aqui da
ligação de conteúdos no meio visual e não da ligação meramente formal, uma
combinação visual entre materiais desconectados. Já faz algum tempo que a
montagem de guerra assumiu uma forma definitiva que é supremamente ofen-
siva. Toda vez que a guerra aparece como o mais modesto pano de fundo de
um evento cinematográfico mais importante, são servidos, em pequenas doses,
colunas militares marchando, cercas de arame farpado e ataques de granada.
Os campos de batalha viram pílulas.

Não faltam filmes que se afirmam a si mesmos como acima da média. Colocam
conscientemente exigências artísticas e são frequentemente produzidos com
grandes orçamentos. Quando uma grande soma de dinheiro foi nele investida
e o seu retorno foi ainda maior, estes são chamados então de grandes filmes.
A maioria destas criações de elite é tão irremediavelmente engessada como
a produção cinematográfica geral da qual faz parte. Pode ser subordinada à
categoria de filmes de ficção de nível elevado. A deficiência fundamental que
têm em comum com os outros filmes de ficção é que não captam a realidade;
uma falha que é duplamente desconcertante nestes filmes de alto nível, pois
estão duplamente comprometidos com a realidade. Distinguem-se da média
dos filmes por numerosos delitos que provêm do fato de certos conteúdos es-
senciais aparecem neste nível mais elevado, precavendo-se de novos objetos
contra os quais se pode agora transgredir.
337
Em geral os produtores de filme acham que satisfazem as necessidades ar-
tísticas simplesmente elevando ao máximo o nível do romance de Kolportage.
Como se o Kolportage precisasse ser salvo como uma garota que caiu ao chão!
Mas é justamente esta a opinião das companhias de cinema quando empreen­
dem tais tentativas de aprimoramento, tentativas que, como é frequente, ape-
nas reduzem o valor do objeto supostamente aprimorado. O Kolportage é a
projeção de grandes objetos ao nível da trivialidade. A contraposição entre
bem e mal, o maravilhoso, a reconciliação – muitos temas significativos sem-
pre representados de modo desfigurado pelo Kolportage. Isto é o que justifica
o filme sensacional de Harry Peil,15 que possui alguns momentos excelente-
mente realizados, além disso não há nenhuma objeção a fazer contra boas
peças de vigarista como Casanovas Erbe [O herdeiro de Casanova]. Infeliz-
mente todos eles constituem uma raridade. No ímpeto de atingir níveis cada
vez mais elevados exagera-se na fábula deste tipo, ao ponto de torná-los filmes
pomposos que não suportam seus próprios limites enquanto gênero. O que
dá origem a criações elaboradas e terrificantes como o filme de Lang, Spione
[Espiões], ou Die Jacht der sieben Sünden [O iate dos sete pecados]. O que há
de sensacional nestes filmes é que não são construídos de modo apressado,
mas por meio de um refinamento inaceitável; tolos embasamentos psicológi-
cos insinuam-se entre os eventos que são justapostos sem atrito, um ao lado
do outro, e a ilusão da improvisação é reduzida à mera decoração, o que já
seria excessivamente pomposo e longo para uma ópera de gala. É caracterís-
tico dos produtores cinematográficos a falta de intuição na sua pretensão de
transformar em mercadoria de qualidade o material temático do Kolportage,
que é estranho por sua própria natureza a este tipo de exigência de qualidade.
Coisas que podem respirar na forma de um livro de brochura são sufocadas
quando editadas em capa de cetim. (Isto é literalmente verdade; na ocasião
da première um crítico trazia à mão uma obra que era um milagre da arte de
encadernação, mas que não continha mais do que o romance de Thea von

15 Harry Piel (1892-1963), ator, diretor e produtor, introduziu em meados dos anos 1920 um
338 gênero novo, conhecido por Sensationsfilm, para concorrer com os thrillers americanos.
Harbou.)16 O mesmo tipo de acordo de alta classe é imposto de modo vergo-
nhoso a materiais que nem mesmo são Kolportage, mas textos que original-
mente são mais do que Kolportage, e que são reduzidos a nada, com a intenção
de torná-los aceitáveis para o cinema (veja, por exemplo, o filme Die Liebe
der Jeanne Ney [O amor de Jeanne Ney]).
Já que a tragédia possui seu lar nas altas regiões da arte, o número de fil-
mes com final triste aumenta; os produtores de cinema acreditam piamente
que deste modo aproximam-se do trágico, quando se recusam ao costumeiro
happy end. De acordo com o jargão deles, o que é trágico? Uma desgraça qual-
quer. Ocupam-se disto e fazem negócio com arte. No filme de Henny Porten,
Zuflucht [Abrigo], há um rapaz que abandonou sua família durante a época da
revolução, até que finalmente retorna ao seu lar de origem apenas para morrer,
justamente no momento em que tudo parecia correr bem. Não há razão para
sua morte, depois de até mesmo sua pobre noiva ter sido aceita com clemência
pela família. Mas os produtores de cinema são irredutíveis: o público anseia
por arte e o personagem deve morrer. Já que se pode interpretar o Malheur
como uma espécie de punição para a convicção revolucionária do jovem, dois
coelhos são mortos com um só tiro. – Para atingir um nível mais elevado, os
produtores aproveitam até mesmo obras, cujo conteúdo está tão atado à língua,
que não permitem ser filmadas. Recentemente, um filme, Heimkehr [Regresso],
foi realizado a partir de uma novela de Leonhard Frank,17 em que na cena
principal os limites de seu meio expressivo se rompem. Um homem retorna
da guerra e recebe abrigo na casa da jovem esposa de seu amigo. Eles desejam
um ao outro, o amigo permanece ainda ausente. Mostra-se literalmente como
a mulher gira em seu leito e como em seu lugar, apenas separado por uma
parede, o homem está tão atormentado como ela. Ambos, por excitação, não
conseguem dormir. Nada acontece. O que, entretanto, acontece na linguagem

16 Thea von Harbou (1888-1954), autora e diretora de filmes, escreveu roteiros para Joe May,
F. W. Murnau, C. T. Dreyer e sobretudo Fritz Lang (Der mude Tod [A morte cansada], Dr.
Marbuse der Spieler [Dr. Mabuse, o jogador], Metropolis, Spione [Espiões]). Foi casada com
Lang até 1933, quando este a abandona em função de sua simpatia pelos nazistas.
17 Filme dirigido por Joe May de 1928, com roteiro de Fred Majo e dr. Fritz Wendhausen,
basea­do no romance Karl und Anna [Karl e Anna], de L. Frank. 339
silenciosa do filme é de um despudor sem igual. Somente as palavras podem
evocar cenas do tipo, pois podem expressar o que não é transmitido pela ter-
rível corporeidade da imagem. – Muitos filmes de padrão elevado sucumbem
nas artes e ofício. São preenchidos com belas decorações que não preenchem
o filme, mas dissimulam o que é não-fílmico. Em Doña Juana, de Czinner,
ouve-se o barulho das famosas fontes de Granada, tendo suas montanhas ao
fundo, e a heroína toma o caminho no qual Don Quixote possa seguí-la. Em
torno dela toda uma natureza e salões artísticos são construídos, sem que em
nenhuma cena o drapeado não seja mais que drapeado.
Raramente experimentos artísticos têm levado o cinema a explorar novos
territórios. Sobretudo o cinema abstrato, muito cultivado em Paris, é uma
linhagem à margem que aqui não entra em questão. Como única tentativa
importante, afastando-se da produção vulgar, é de mencionar o interessante
filme-sinfonia Berlin, de Ruttmann. Uma obra sem ação propriamente que
permite que a metrópole surja como resultado duma sequência de caminhos
microscópicos individuais. Comunica a realidade de Berlim? É cego para a rea­
lidade como todo filme de ficção. A causa disto é política. Em vez de penetrar
neste imenso objeto para obter uma compreensão autêntica de sua estrutura
social, econômica e política, em vez de observá-lo de modo humanamente
interessado ou mesmo de atracá-lo de um ponto de vista privilegiado para
participar dele com decisão, Ruttmann libera milhões de detalhes desconec-
tados que coexistem um ao lado do outro, inserindo no máximo transições
engenhosas que são vazias de conteúdo. Em todo caso, o filme tem por base
a ideia que Berlim seja a cidade da velocidade e do trabalho – uma ideia for-
mal, que, antes de tudo, não leva a nenhum conteúdo e talvez por isto intoxica
o pequeno-burguês alemão tanto na sociedade como na literatura. Não há
nada para ser visto nesta sinfonia, porque não mostra nem uma única cone-
xão dotada de sentido. Pudovkin em seu livro, Filmregie und Filmmanuskript
[Direção de cinema e originais de cinema], faz uma repreensão sobre a falta
de ordenação interna: “Há […] uma série de gente de cinema”, assim observa
com clara estocada contra Ruttmann, “que afirma que a montagem deve ser o
único centro organizador no filme. Acreditam que se pode tomar de qualquer
340 modo, e arbitrariamente em qualquer lugar, fragmentos, bastando apenas que
as imagens montadas sejam interessantes; e que por meio da colagem delas
juntas, segundo a forma e a espécie, pode-se produzir um filme”.

Nos seus detalhes essenciais, os filmes de arte não são melhores do que a média
das mercadorias. Nem são politicamente mais imparciais, nem chegam sequer
um milímetro mais próximo da realidade. Não transmitem nada da esfera que
pretendem abarcar. São sem conteúdo. A falta de substância é a característica
decisiva do conjunto da produção cinematográfica estabelecida.
A miséria é tão completa, que as forças de oposição são por ela mesma ab-
sorvidas. Há uma série de excelentes diretores como Lang, Grune, Murnau,
Reichmann, Boese entre outros – mas de que servem suas ideias que lhes fogem
entre os dedos da mão, se estas são dissipadas no material? O talento é des-
perdiçado e até mesmo enfraquecido pelo mau uso. Mesmo o uso de grandes
atores é em vão. Não importa quantas estrelas haja no céu que não vencem a es-
curidão egípcia desta produção. Ao contrário, esta pode apagá-las para sempre.
Wegener é em Alraune [Mandrágora]18 uma rançosa máscara demoníaca.
O declínio é tão evidente que não pode permanecer oculto. Na esfera pú-
blica alemã, só recentemente começaram a aparecer os primeiros indícios de
crítica. No entanto, a crítica em geral tende a censurar apenas certos filmes
individualmente e a indicar sintomas como a mentalidade de lucro e o sistema
do estrelato. Alguns críticos corajosos chegaram a dar um passo além e men-
cionaram, pelo menos, a relação, referida claramente acima, entre os interesses
da indústria cinematográfica e a ideologia de seus filmes. Não foi feita ainda
uma análise da situação atual na sua totalidade. Os produtores propriamente
tentam justificar seus atos, de modo pouco convincente, referindo-se ao gosto
de um público internacional.
Todos estes fundamentos e argumentos são simplesmente insuficientes; não
esclarecem de modo algum, categoricamente, o monstruoso fato de que nossa
produção supera, se isto for possível, a produção americana em matéria de falta
de substância. Isso se o vazio de nossos filmes e a maneira como estrangulam

18 Filme de Henrik Galeen de 1927, o mencionado ator Paul Wegener (1874-1948) representa o
papel de um professor. 341
toda tendência humana não é o resultado de um desaparecimento da substân-
cia, já que pode ser apenas resultado de teimosia; uma teimosia curiosa que
tem dominado na Alemanha desde o final da inflação e que tem determinado
também muitas expressões públicas. É como se durante o perío­do de suble-
vação social e racionalização dos serviços, a vida alemã tivesse se paralisado
sensivelmente. Pode-se falar até mesmo de enfermidade. A posição da produ-
ção cinematográfica – como foi observado no início – é decerto um sinal da
condição geral de um não-espírito estabelecido. Numa metrópole provinciana,
Thérese Raquin teve que ser retirado de cartaz em poucos dias, enquanto Die
Heilige und ihr Narr [Os santos e seus loucos] teve casa lotada por três semanas
seguidas. Algo não está em ordem, de qualquer modo, nem mesmo no pior
industrialismo, não se pode considerar plenamente a massa de confusão emo-
cional existente e a irrealidade. Até onde vai esta confusão, pode-se constatar
por meio daqueles filmes que pretendem fazer uso do sucesso dos documentá-
rios russos, cujo significado toca apenas a parte mais ínfima de suas intenções
propagandistas. Mais importante é que Eisenstein e Pudovkin, diferentemente
de um mero caricaturista como Georg Groz, sabem de antemão sobre as coi-
sas humanas; ambos os diretores e seus atores realmente experimentaram a
pobreza, a fome, a injustiça e a felicidade e estão em condições de assimilar
a extensão das consequências destas experiências. Por esta e apenas por esta
razão encontram recortes e perspectivas, cujas ruas, cortes, praças e colunas
arquitetônicas contêm o poder do discurso. Alguns diretores alemães, que
aprenderam com os russos, foram maus alunos. Apropriaram-se do empreen-
dimento sem atentar para seu sentido. No filme Zuflucht [Abrigo], mencionado
anteriormente, imagens dos bairros proletários de Berlim são incorporadas
à maneira russa, imagens primorosas, mas que carecem, no entanto, daquela
relação interna do enredo. A maneira como o cinema russo apresenta o am-
biente desvela o núcleo da história. Aqui, no cinema alemão, os ambientes não
passam de decorações artificiais de um enredo pequeno-burguês. Esta é a visão
limitada com a qual os teimosos estão conscientes do mundo.
Dever-se-ia indicar caminhos? Espera-se por receitas? Não há nenhuma
receita. Sinceridade, talento de observação, humanidade – estas coisas não se
342 aprendem. Basta que a situação seja apresentada abertamente.
Culto da distração

Sobre os cineteatros de Berlim

Os grandes cineteatros [Lichtspielhäuser] em Berlim são palácios da distração:


defini-los simplesmente como cinemas seria depreciativo. Os cinemas ainda
podem ser encontrados apenas na velha Berlim e nas cidades periféricas onde
atendem o pequeno público; seu número todavia decresce. O rosto de Berlim,
além disto, é caracterizado menos pela existência destes cinemas ou pelos tea­
tros comuns do que por aqueles locais de magia ótica. Os UFA-Paläste [Palá-
cios ufa] – sobretudo aquele junto ao zoológico – o Capitol –, construído por
Pölzig 1, o Marmorhaus, ou quaisquer que possam ser os seus nomes, todos
os dias têm lotação máxima. Que o desenvolvimento se propague na direção
assinalada por eles, comprova-o a construção recente do Gloria-Palast.
O cuidadoso esplendor da superfície é a característica destes teatros de
massa. Como os saguões dos hotéis, são locais de culto do prazer, o seu brilho
visa à edificação. E ainda que a arquitetura assalte os espectadores com um

1 Hans Pölzig (1869-1936), um dos fundadores do movimento moderno na arquitetura


alemã. Além disso, foi responsável pelo cenário expressionista do filme Golem (1920), de
Paul Wegener. 343
bombardeio de impressões, não recai jamais na pompa bárbara das igrejas
profanas do período guilhermino, como por exemplo, no Ouro do Reno, que
quer dar impressão de que oculta o tesouro wagneriano dos Nibelungos. Ao
contrário, a arquitetura aqui alcançou uma forma que evita excessos estilísticos.
O bom gosto soube dominar as dimensões e, juntamente com uma fantasia ar-
tesanal refinada, criou a preciosa decoração interior. O Gloria-Palast apresen-
ta-se como teatro barroco. A comunidade dos aficionados, que se contam aos
milhares, pode ficar satisfeita; seus locais de reunião são uma estância digna.
Também os espetáculos são de uma grandiosidade bem-acabada. Passou o
tempo em que se projetava um filme após outro com o correspondente acom-
panhamento musical. Pelo menos os principais teatros adotaram o princípio
americano dos espetáculos completos, nos quais o filme se insere como parte
de um todo maior. Assim como as folhas dos programas alcançaram agora a
dimensão de revistas ilustradas, da mesma forma os espetáculos tornaram-se
uma bem-articulada profusão de produções. Do cinema surgiu uma esplêndida
imagem do gênero revista: a obra de arte total [Gesamtkunstwerk] dos efeitos.
Esta obra de arte total dos efeitos se desencadeia com todos os meios diante
de todos os sentidos. Refletores irradiam suas luzes pelo ambiente, salpicando
os alegres penduricalhos ou chuviscando através de cachos de vidro colorido.
A orquestra se afirma como poder autônomo, sua música é apoiada pelos res-
ponsórios da iluminação. Toda sensação recebe a sua expressão sonora e o
seu correspondente valor cromático dentro do espectro. É um caleidoscópio
ótico e acústico, ao qual se une o jogo cênico dos corpos: pantomima, balé. Até
que, ao final, baixa a superfície branca da tela e os acontecimentos do palco
transformam-se inadvertidamente na ilusão bidimensional.
Espetáculos como estes são hoje, juntamente com as verdadeiras revistas,
a grande atração de Berlim. A distração alcança neles a sua cultura. Eles são
feitos para as massas.

Também na província, as massas se reúnem; mas elas são mantidas sob uma
tal pressão, que não podem se realizar espiritualmente na medida apropriada
à sua quantidade e à sua real significação social. Nos centros industriais, onde
344 aparecem compactas, essas massas, constituídas por operários, são solicitadas
em excesso e não podem realizar sua própria forma de vida. A elas são ofere-
cidos o lixo e as antiquadas diversões [Unterhaltungen] da classe superior que,
por mais que estejam interessadas em ressaltar a sua alta posição social, têm
modestas exigências culturais. Nas cidades provincianas maiores, não domina-
das de maneira predominante pela indústria, as relações tradicionais são muito
poderosas para que as massas estejam em condições de impor, sozinhas, uma
marca na sua estrutura intelectual. As camadas médias burguesas continuam
separadas delas e a se iludirem de que são guardiãs de uma cultura superior,
como se o preenchimento deste reservatório humano nada significasse. Sua
arrogância, que cria um oásis aparente para si própria, pressiona a massa para
baixo, estragando sua distração.
Não se deve esquecer que Berlim possui 4 milhões de habitantes. A sua ne-
cessidade de circulação, por si só, transforma a vida da rua em uma inescapável
rua da vida e produz figuras acessórias que penetram até mesmo no ambiente
doméstico. Mas, quanto mais os homens se sentem como uma massa, tanto
antes a massa atinge, também no campo intelectual, energias criativas que vale
a pena financiar. Ela não permanece mais abandonada a si mesma; não suporta
que lhe sejam servidos restos, mas quer ser servida em uma mesa coberta.
Pouco espaço há para as chamadas camadas cultas. Elas devem sentar-se à
mesa ou manter-se à parte em uma posição esnobe; em todo caso esta posição
provinciana acabou. Com a sua imersão na massa surge o homogêneo público
cosmopolita que – do diretor de banco aos auxiliares do comércio, da diva à
datilógrafa – sente do mesmo modo. Lamentos lacrimosos sobre esta guinada
para o gosto de massa vêm agora tarde demais. O patrimônio cultural, que
as massas recusam acolher, reduziu-se em parte à mera apropriação histórica,
porque se transformou a realidade econômico-social ligada a ele.

Reprova-se os berlinenses por serem viciados em distração; mas esta é uma


reprovação pequeno-burguesa. É certo que em Berlim o desejo de distração
é maior do que na província, porém maior e mais perceptível é também o es-
forço das massas trabalhadoras, um esforço essencialmente formal, que ocupa
a jornada sem preenchê-la de sentido. É necessário recuperar aquilo que se
perdeu, mas pode-se pretender recuperá-lo apenas na mesma esfera superficial 345
à qual se está submetido. A forma empresarial da ocupação do tempo livre é
a forma da empresa, do negócio [Betrieb].
Um justo instinto provê para que a necessidade seja por ele satisfeita. Os
aparatos dos grandes cineteatros têm um único fim: manter o público amar-
rado ao que é periférico para que não se precipite no vazio. Nestes espetá-
culos a excitação dos sentidos se sucede sem interrupção, de modo que não
haja espaço para a mínima reflexão. Como os salva-vidas, as luzes difundi-
das pelos refletores e os acompanhamentos musicais servem para se manter
à superfície. A tendência à distração, que exige uma resposta, encontra-se na
exibição da pura exterioridade. Daí, precisamente em Berlim, a incontestável
intenção de transformar em revista todos os espetáculos; daí, como fenômeno
paralelo, o acúmulo de material ilustrativo na imprensa diária e nas publica-
ções periódicas.
Estas exteriorizações têm a sinceridade como vantagem. Não é através dela
que a verdade é posta em perigo. Mas através da ingênua afirmação de valo-
res culturais que se tornaram irreais, através do duvidoso abuso de conceitos
como personalidade, interioridade, tragicidade etc., que certamente, por si
sós, indicam conteúdos objetivos de alto valor, mas que em razão das trans-
formações sociais perderam em grande parte a sustentação da qual se nutriam.
Valores, que na maioria dos casos, assumem hoje um sabor equívoco, uma vez
que desviam a atenção dos males objetivos da sociedade além do conveniente,
orientando-os para a pessoa privada. Nos âmbitos da literatura, da música, do
teatro, são bastante frequentes tais recalcamentos [Verdrängungserscheinun-
gen]. Apresentam-se como manifestações da arte superior e na realidade são
produtos ultrapassados que se evadem das necessidades atuais da época – um
fato que é indiretamente confirmado pela produção respectiva, que é também
intrinsecamente uma arte epigonal. O público berlinense comporta-se de uma
maneira adequada à verdade no seu sentido mais profundo, recusando cada
vez mais estes acontecimentos artísticos que, por motivos óbvios, não vão
além da mera pretensão, atribuindo a sua preferência ao brilho superficial das
stars, dos filmes, das revistas e das decorações. Aqui, na pura exterioridade, o
público encontra a si mesmo; a sequência fragmentada das esplêndidas im-
346 pressões sensoriais traz à luz a sua própria realidade. Se esta lhe fosse ocultada
o público não poderia atacá-la e transformá-la; a sua revelação na distração
possui um significado moral.
Entretanto, este é o caso apenas quando a distração não é fim em si mesma.
O fato de que os espetáculos que entram na esfera da distração sejam uma mis-
tura semelhante ao mundo da multidão das grandes cidades, o fato de que eles
possam prescindir de todo autêntico nexo objetivo, e mesmo do cimento da
sentimentalidade, o qual oculta a carência só para torná-la mais visível, o fato
enfim de que estes espetáculos pressagiem a milhares de olhos e de ouvidos,
de modo exato e claro, a desordem da sociedade, precisamente isto faz com
que eles provoquem e mantenham acordada aquela tensão que deve preceder
a necessária mudança. Frequentemente pelas ruas de Berlim se é surpreen-
dido pela ideia de que tudo venha um dia, improvisadamente, rachar no meio.
Também as distrações, para as quais o público é compelido, deveriam operar
do mesmo modo.

Geralmente elas não conseguem alcançar este efeito; as apresentações dos


grandes cineteatros comprovam-no exemplarmente. Ao mesmo tempo em
que chamam à distração, tornam repentinamente a roubá-la do seu significado,
agregando em uma unidade “artística” a multiplicidade dos efeitos – efeitos
que pela sua natureza requerem ser isolados um do outro – e comprimindo
na forma de um todo a sequência colorida de elementos exteriores. Já os âm-
bitos arquitetônicos tendem a enfatizar uma dignidade que seria própria das
instituições artísticas superiores. Favorecem o que é elevado e o que é sacro,
como se neles estivessem guardadas criações de duração eterna; mais um passo
adiante e vemos as incandescentes velas de uma cerimônia solene. O espetá-
culo também aspira alcançar o mesmo alto nível, ser um organismo bem acor-
dado, uma totalidade estética, como só a obra de arte pode ser. O filme teria
muito pouco para oferecer, não tanto porque gostaria de acumular ainda mais
distrações, mas para alcançar um acabamento artístico. O cinema conquistou
o seu reconhecimento independentemente do teatro: mas as direções dos mais
importantes cineteatros aspiram novamente o retorno ao teatro.
Tendências reacionárias são inerentes a estes objetivos que podem ser con-
siderados o sintoma da vida social berlinense. As leis e as formas daquela 347
cultura idealista, que sobrevive hoje apenas como espectro, perderam todo
seu direito, mas gostariam de preparar uma nova cultura, alegremente evo-
cada, dos elementos da exterioridade. A distração, que tem sentido apenas
como improvisação, como cópia da confusão incontrolada do nosso mundo,
é recoberta de véus e reconduzida forçosamente a uma unidade que já não
há mais. Ao contrário de confessar o declínio que lhe caberia representar, elas
colam os pedaços e os oferecem como uma criação adulta.
É um procedimento que se vinga no plano puramente artístico. O filme de
fato perde a sua possível eficácia se é inserido em um programa já completo.
Não possui nenhum valor em si, a não ser como coroamento de alguma coisa
semelhante à revista, na qual não são levadas em conta as suas condições de
existência. A sua bimensionalidade produz a aparência do mundo corpóreo,
que não tem nenhuma necessidade de complementação. Se, todavia, cenas de
real corporeidade forem associadas àquele jogo de luzes que é o cinema, este
retorna à superfície da tela e o engano é revelado. A proximidade de aconteci-
mentos que se desenvolvem em uma profundidade espacial destrói a espaciali-
dade daquilo que é mostrado na tela. O filme, pela sua própria natureza, requer
que o mundo nele refletido seja único; necessita subtraí-lo a todo ambiente
tridimensional, pois de outra forma apaga-se como ilusão. Também a pintura
perde a sua força quando aparece entre imagens vivas. Para não falar do fato
de as ambições artísticas que, através da incorporação do filme em uma apa-
rente totalidade, estão fora do lugar e por isso permanecem necessariamente
sem solução. Em todo caso aquilo que surge é artesanato.
Mas os cineteatros têm tarefas bem mais urgentes a cumprir do que se
preo­cupar com obras artesanais. Somente poderão realizar sua tarefa – que é
uma tarefa estética se e quando ela coincide com a tarefa social – se não mais
flertarem com o teatro e não procurarem mais reproduzir reverentemente uma
cultura ultrapassada, mas liberar os seus espetáculos de todos aqueles ingre-
dientes que privam o filme de seus direitos, colocando radicalmente como fim
uma distração que revele o declínio [Zerfall] ao contrário de escondê-lo. Tudo
isto seria possível em Berlim, onde vivem as massas que se deixam entorpecer
com tanta facilidade, apenas porque estão próximas da verdade.
348
Desfecho: como ponto de fuga

349
Tédio

Pessoas que possuem ainda tempo para o tédio e, no entanto, não se entediam
são, decerto, tão entediantes como as outras que não chegam a se entediar. Para
aqueles a quem o si próprio desapareceu, o si próprio cuja presença, particu-
larmente neste mundo tão administrado, estivesse necessariamente obrigada
a demorar um pouco1 sem objetivo, seja aqui ou ali.
A maioria das pessoas, certamente, não possui tempo para o ócio. Elas se
ocupam com o ganha-pão, exaurindo todas as energias, simplesmente para
suprir o estritamente necessário. Para tornar esta obrigação fatigante minima-
mente tolerável, inventaram a ética do trabalho para dissimular moralmente
sua ocupação e obter assim para si mesmos uma certa satisfação moral. Seria
um exagero afirmar que o orgulho em se considerar um ser ético dissiparia
todo tipo de tédio; mas o tédio vulgar que passa pela labuta diária não entra
em consideração já que esta nem é fatal e nem desperta para uma nova vida,

1 Kracauer faz um jogo de palavras de difícil tradução. O substantivo die Langeweile, que sig-
nifica em português, tédio, aborrecimento ou o verbo langweilen, aborrecer, entediar. Tanto
o substantivo como o verbo são compostos de duas palavras lang (longo, largo) e o verbo
weilen (demorar) ou verweilen, que podem ser separadas, por exemplo, nirgendwo lang zu
verweilen. Ele usa o substantivo, die Langeweile, o verbo langweilen, o adjetivo, langweilig e
depois separa o adjetivo lang do verbo zu verweilen. 351
mas simplesmente expressa uma insatisfação, que desapareceria num instante
caso fosse oferecida uma atividade agradável, sancionada moralmente. Apesar
disso, as pessoas, a quem o cumprimento do dever provoca bocejos, são me-
nos entediadas do que aquelas que executam suas ocupações por inclinação.
Recentemente, estes tipos infelizes são empurrados para o fundo, forçados
rudemente, até que não saibam mais onde está sua cabeça, e o tédio radical,
extraordinário, que poderia reuni-los novamente com suas cabeças, perma-
nece eternamente distante para eles.
Não há ninguém, no entanto, que não disponha de nenhum ócio. O escri-
tório não é um asilo permanente e os domingos são uma instituição. Em prin-
cípio, durante estas belas horas de tempo livre cada um teria a oportunidade
de se reanimar até um verdadeiro tédio. Mas ainda que alguém não quisesse
fazer nada, o fato é que as coisas são feitas para ele: o mundo se ocupa de que
alguém não chegue a si. E mesmo se não estiver interessado neste, o mundo
mesmo é muito interessado em que se encontre tranquilidade para verdadei-
ramente se entediar com o mundo, como este merece ao final.

Perambula-se à noite pelas ruas, repleto de uma insatisfação da qual a pleni-
tude pudesse germinar. Palavras iluminadas deslizam pelos tetos, e logo se é
banido de seu próprio vazio em um estranho anúncio. O corpo lança raízes
no asfalto, e, junto com as revelações iluminadoras, o espírito, que não é mais
o nosso espírito, vaga sem cessar na noite. Se apenas fosse permitido desapa-
recer! Mas como o Pégaso saltitando em um carrossel, este espírito deve girar
em círculo, não pode se cansar, louva-se para o alto céu a fama de um licor e
elogia o melhor cigarro de cinco centavos. Alguma mágica incita o espírito
com mil lâmpadas elétricas, das quais este se constitui e se reconstitui a si pró-
prio em frases resplandecentes.
Se este espírito retorna, por acaso, a algum ponto, logo se permite a si pró-
prio ser girado por uma manivela multiforme num cinema. Fica de cócoras
como um falso chinês, num falso bar de ópio, transforma-se em um cão ades-
trado que com performances espertas e ridículas muito agrada a uma diva do
cinema, junta-se a isto uma tempestade no cume das montanhas, e torna-se,
352 ao mesmo tempo, um artista de circo e um leão. Como poderia resistir a estas
metamorfoses? Os cartazes tomam de um golpe o espaço vazio que o espí-
rito propriamente não penetraria, o arrastam diante de uma tela que está tão
despida como um palácio vazio, e quando as imagens surgem uma depois da
outra não há mais nada no mundo além de suas evanescências. Esquece-se
de si mesmo em um processo de basbaqueamento, e o grande buraco escuro
é animado com a aparência de uma vida que não pertence a ninguém e que
exaure a todos.
Também o rádio vaporiza a essência, mesmo antes de eles terem intercep-
tado uma única emissão. Desde que as pessoas se viram compelidas pela ra-
diodifusão, se encontram em uma situação de recepção permanente sempre
prenhe com Londres, torre Eiffel e Berlim. Quem gostaria de resistir ao convite
destes carinhosos fones de ouvido? Brilham nos salões e se entrelaçam ao re-
dor das cabeças todos por si mesmos; e em vez de suscitar uma conversa cul-
tivada, que, certamente, pode ser um tédio, torna-se uma praça de jogos dos
barulhos do mundo, não obstante seu próprio potencial de tédio objetivo não
conceda nem um pouco do modesto direito ao tédio pessoal. Mudo e sem vida
sentam-se as pessoas uma ao lado da outra como se suas almas vagassem por
outro lugar distante; mas as almas não vagam de acordo com suas preferências,
são agitadas por um turbilhão de notícias, e logo ninguém mais sabe quem é a
caça e quem é o caçador. Mesmo num café, lá, onde se ronca junto como um
ouriço e que gostaria de tornar interna sua nulidade, um significativo autofa-
lante extermina qualquer vestígio da existência privada. Seus anúncios reinam
no espaço nas pausas do concerto e o garçom escutando rejeita indignado a
impertinência do pedido para livrar-se deste arremedo de gramofone.
Enquanto se padece de tal destino antenado, os cinco continentes tornam-se
sempre cada vez mais próximos. Na verdade não somos nós que nos expandi-
mos por eles, são muito mais suas culturas que tomam posse de nós no impe-
rialismo sem fronteiras. É como se tivesse um desses sonhos sonhados com es-
tômago vazio. Uma bola minúscula rola de bem longe até você, expandindo-se
em uma grande tomada e urrando sobre você; você não pode detê-la, escapar
dela também não, permanece aguilhoado como um bonequinho impotente
que é arrastado por um gigante colossal e expira em seu âmbito. Fugir é im-
possível. O imbroglio chinês deve ser discretamente desativado, se está seguro 353
de ser saqueado por um lutador de boxe americano adversário, e o ocidente
permanece onipresente, admitindo-se ou não. Todos os acontecimentos his-
tóricos neste planeta – não apenas os atuais mas também os acontecimentos
do passado, cujo amor pela vida não tem pudor – possuem apenas um desejo:
agendar um encontro onde estes supõem que estejamos presentes. Mas o se-
nhorio não se encontra em seus aposentos, viajou e não pode ser localizado,
cedendo já há algum tempo os quartos vazios para a surprise party que ocupa
os aposentos, pretendendo tornar-se o senhor.

Mas o que ocorre, no entanto, quando não se permite ser perseguido como
uma presa de caçador? Então o tédio torna-se a única ocupação adequada, na
medida em que provê uma espécie de garantia, por assim dizer, para que se
tenha ainda controle sobre sua própria existência. Se não se entediasse nunca,
provavelmente não estaria presente de modo algum e seria apenas meramente
mais um objeto de tédio, como foi dito no início, que esplandece sobre os te-
lhados ou numa bobina de filme. Mas se está presente, não teria outra chance a
não ser entediar-se pelo estrondo ubíquo que não permite que se possa existir,
e, ao mesmo tempo, para encontrar a si entediando-se por existir neste.
No melhor dos casos, em uma tarde ensolarada quando todos estão fora
de casa, se permaneceria no saguão de uma estação de trem, ou melhor ainda:
ficar-se-ia em casa, fecharia as cortinas e entregar-se-ia a seu tédio deitado no
sofá. Anuviado de tristeza, brincando assim com ideias que se tornam respei-
táveis no processo, considerando vários projetos, sem fundamento, suposta-
mente sérios. Eventualmente se contenta em nada fazer a não ser ficar consigo
e não saber de nada sobre o que se deveria fazer – de modo simpático, tocado
simplesmente por um gafanhoto de vidro sobre o tampo da mesa, que não
pode saltar, pois é feito de vidro, e por meio do absurdo de um cacto que nada
pensa sobre a sua própria extravagância. Frívolo como esta criatura decorativa,
abriga-se ainda apenas em uma inquietação interior sem propósito, uma ânsia
que é repelida e o fastio sobre o que é sem realmente ser.
Se, no entanto, tem paciência, aquela paciência que pertence ao tédio legí-
timo, experimenta bem-aventuranças que quase não são deste mundo. Aparece
354 uma paisagem na qual pavões coloridos passeiam pomposamente e imagens
de pessoas com alma enchem a visão – sua própria alma dilata-se igualmente
e você expressa extasiado o que sempre lhe faltou: uma grande paixão. Fosse
esta paixão – trêmula com um cometa – descendente, fosse esta a envolver
você, aos outros e ao mundo – ah, o tédio chegaria a um final e tudo o que
existe seria…
No entanto as pessoas permanecem como imagens distantes e no horizonte
se renuncia a grande paixão. E no tédio, que se recusa retroceder, se choca com
bagatelas, que são tão entediantes como esta.

355
Adeus à Passagem das Tílias

A passagem das Tílias [Linden] deixou de existir.1 Isto é, permanece ainda a


forma de uma passagem entre a Friedrichstrasse e a avenida das Tílias [Linden],
mas não é mais uma passagem em sentido estrito. Quando há pouco tempo
mais uma vez passeava prazerosamente por ela como com tanta frequencia
o fazia nos meus anos de estudante antes da Guerra, a obra de destruição já
estava quase completa. Frias placas de mármore, lisas, revestiam as pilastras
entre as lojas, e arqueando-se sobre a galeria um moderno teto de vidro, como

1 A passagem de Berlim que Kracauer chama de Lindenpassage, passagem das Tílias, chamava-se
de fato Kaisergalerie [Galeria do Imperador], que ligava a Avenida das Tílias números 22-23
à Behrenstrasse, números 50-52, na esquina da Friedrichstrasse, número 164. Inaugurada em
1873, foi a primeira edificação “moderna”, puramente comercial. Inicialmente repleta de lojas
elegantes, cafés, e local para concertos, era frequentada pela aristocracia urbana, durante a
época em que estava na moda, o que durou aproximadamente dez anos. Em 1888, já com muitas
lojas vazias, o famoso Passage-Optikon mudou-se para lá, mudando de imediato o caráter do
espaço com sua coleção de dioramas, panoramas, lojas de suvenires e uma mescla de atrações.
No correr do século seguinte, a Friedrichstrasse tornou-se um local de diversão com seus con-
comitantes turistas e prostitutas, contribuindo para seu lento declínio. Após a Primeira Guerra
Mundial inicia-se sua restauração, até que em 1928 se dá sua “modernização”, reduzindo o seu
interior de três andares, cobrindo o teto com vidro. Foi destruída pelos Aliados em 1944. Ver
J. F. Geist, Passagen. Ein Bautyp des 19. Jahrhunderts. Müchen: Prestel, 1969-1979, pp. 132-145. 357
existem hoje às dúzias. Apenas em alguns lugares se vê, felizmente, ainda a
velha arquitetura renascença, aquela imitação do estilo horrivelmente belo do
tempo de nossos pais e avós. Uma brecha na nova estrutura de vidro permite
ver os andares superiores com filas infinitas de consoles sob a cornija principal,
as janelas arredondadas duas a duas, as colunas, as balaustradas e medalhões –
em todas as repetições desbotadas que hoje nenhum pedestre admiraria mais.
E uma pilastra, que aparentemente deveria ter ficado na reserva até o último
momento, mostra ainda seu relevo em ladrilho, uma composição de delfins,
trepadeiras e uma máscara na moldura do meio. Hoje tudo isto desapareceu
num amontoado de frias sepulturas de mármore.
Lembro-me ainda o arrepio que a palavra passagem [Durchgang] me provo-
cava no tempo de garoto. Nos livros que devorava na época, a passagem escura
era habitualmente o local de assaltos mortíferos testemunhados por marcas
de sangue, ou pelo menos o meio ambiente adaptado a existências duvidosas
que se colocavam uma ao lado da outra para traçar seus planos sombrios. Se
as fantasias de garoto são um pouco exageradas – algo de significativo que se
possa atribuir às passagens coincide também com o que foi a Passagem das
Tílias. Não apenas a ela, mas a todas as autênticas passagens burguesas. Há
boas razões para o que se passa em Thérese Raquin tendo como pano de fundo
a Passagem do Panorama2 em Paris, que, no meio-tempo, foi destruída e subs-
tituída pelo peso de concreto armado das luxuosas novas edificações. A época
das passagens terminou.
Sua peculiaridade era justamente ser passagem, caminhos através da vida
burguesa que habitava em frente delas e sobre suas entradas. Tudo que era ex-
cluído dela, porque não era representativo ou estava em desacordo com a visão
de mundo oficial, fez o seu ninho nas passagens. Dava guarida a tudo o que
era rejeitado e que era reposto em seu interior, o conjunto de qualquer coisa
que nada valia para a decoração das fachadas. Aqui nas passagens, os objetos
transitórios encontravam o seu direito de permanência; como ciganos que não
eram autorizados a pernoitar na cidade, mas somente nas estradas. Passava-se
por elas entre uma rua e outra. A Passagem das Tílias está ainda cheia de lojas

358 2 Kracauer equivocou-se aqui, trata-se da Passage du Pont Neuf.


cujas vitrines no seu interior são a composição da vida burguesa. Satisfazem,
na verdade, todas as necessidades corporais, o desejo por imagens como apa-
recem num sonho desperto. Ambos, o inteiramente próximo e o inteiramente
distante – aludem à esfera pública burguesa que não lhes admite – apreciam se-
rem recebidos no lusco-fusco acolhedor das passagens, onde floresciam como
num pântano. Mesmo como passagem, a galeria é também o lugar, mais do
que qualquer outro, para a viagem entre o próximo e o distante, do corpo e da
imagem reunidos um com o outro.
Além das exposições dedicadas à corporeidade, o Museu de Anatomia
ocupa o lugar de honra na Passagem das Tílias. É o soberano da passagem
que estabeleceu seu reinado legítimo em meio a molduras, trepadeiras e delfins.
Desde que os objetos foram deslocados para trás das fachadas, todavia, devem
portar uma roupagem burguesa, os anúncios para encorajar a entrada das pes-
soas são hipócritas. Pode se ler em um deles: “A exposição ‘O homem’ é dedi-
cada ao incremento da saúde”. Quais tipos de revelações esperam os visitantes
no interior, é mostrado por um cartaz na vitrine, no qual um médico vestido de
fraque, na presença de numerosa audiência, vestida tão fora de moda como ele,
realiza uma operação de estômago em uma mulher nua. A pessoa foi outrora
uma dama. Decerto, o foco está dirigido aqui ao estômago, às vísceras, a tudo
que diz respeito diretamente ao corpo. No interior da exposição, tumores e
monstruosidades são examinados escrupulosamente e apenas para adultos, há
também uma sala extra mostrando todo o tipo possível de doenças venéreas. É
o resultado de uma sensualidade imprudente, cujas flamas são atiçadas numa
livraria ao lado. Durante a inflação, numa passagem de uma metrópole alemã,
uma livraria comunista, que perdurou apenas por pouco tempo, foi destruída;
mesmo que a Passagem pertença à modernidade do período anterior à guerra,
com suas cestas de ferro com girassóis que lembram mais a decoração de uma
passagem subterrânea. Sua tênue relação com uma passagem já era suficiente
para afastar a literatura de propaganda; pois a ilegalidade quer irromper à luz
do dia, enquanto a pornografia nela está em casa no lusco-fusco. A livraria
na Passagem das Tílias sabe o quanto deve a seu entorno. Obras em brochura,
cujos títulos despertam desejos que dificilmente se satisfazem, florescem em
meio a uma vegetação de livros intencionalmente inocentes e perfeitos, o que 359
é autorizado e o que não é autorizado, uma ligação tão curiosa como no livro
sobre perversões sexuais, cujo autor é um comissário de homicídios da polícia.
Junto aos instintos corporais florescem disparates, inúmeros pequenos objetos,
que levamos por todo lugar ou que nos rodeiam; parte porque precisamos de-
les, parte porque são totalmente inúteis. Formigam confusamente no bazar da
Passagem: alicates de unha, tesouras, frascos de pó-de-arroz, isqueiros, forros
de mesa húngaros bordados à mão. Como vermes, bugigangas aparecem em
hordas e nos chocam com a intenção de estar sempre junto de nós. Querem
nos devorar; germinam pelo edifício carcomido de cupins, onde vivemos, e se
um dia desses as vigas forem derrubadas o céu também escurecerá. As lojas
da rua, que suprem nossas melhores necessidades corporais, mudam-se para
dentro da passagem para prestar homenagem ao Museu de Anatomia. Cachim-
bos feitos de âmbar e magnesita cintilam, camisas ofuscam como uma festa
noturna, espingardas de caça dirigem sua mira para o alto, e ao final da pas-
sagem acena e perfuma um salão de cabeleireiro. Revela na semiescuridão sua
afinidade com o café que se situa na cúpula.3 Seus fregueses também vagueiam
mesmo que seja apenas através dos jornais ilustrados; desvanecem em meio
ao burburinho; seguem um trecho adiante no trem das imagens que ondula
por trás da fumaça dos cigarros. A palavra de ordem é: partir!
É um feliz acaso que duas agências de viagens franqueiem a entrada da pas-
sagem na avenida das Tílias. Mas as viagens para as quais se é atraído pelos seus
modelos de navio e cartazes não têm mais nada a ver com as jornadas [Fahr-
ten] que eram empreendidas na época das passagens, e mesmo a moderna loja
de malas pertence só de modo muito aproximado ao interior da Passagem.
Desde a evidente diminuição da terra a existência burguesa incorporou a via-
gem do mesmo modo que se apropriou do estilo de vida boêmio; mantém-se
a si mesma pela apropriação destes tipos de dissipações [Ausschweifungen]
para seus próprios fins, desvalorizando-os como meras distrações. Como o

3 Sob a cúpula octogonal, no centro da Passagem, estava o Wiener Café, a primeira confeitaria
vienense de Berlim. Decorada luxuosamente, com salas de bilhar e de leituras e café autenti-
camente vienense com seus confeitos, foi o ponto de encontro dos grandes empresários ao
360 lado de lojas elegantes durante seus primeiros anos.
país estrangeiro era mais distante e familiar na época dos artigos de suveni-
res! A loja da Passagem está abarrotada destes artigos. Lembranças de Berlim
vêm escritas em pratos e jarros, e os concertos de flauta de Sanssouci4 são fre-
quentemente oferecidos como brindes. Estes auxílios da memória, palpáveis,
são cópias fidedignas dos locais de origem, são corpos do corpo de Berlim e são,
sem dúvida, mais adequados a oferecer a seus compradores as forças da cida­de,
que estes devoram, do que as fotos que a loja de fotografias oferecem de modo
personalizado. As fotos dão a ilusão ao turista de poder levar o país visitado
para casa; enquanto o “panorama do mundo” reflete diante dos olhos aquilo
que cobiçamos e rapidamente faz esquecer o que nos é familiar.5 O “pano-
rama do mundo” é entronado na Passagem como o Museu de Anatomia; e do
corpo palpável à distância inatingível é de fato um pequeno salto. Toda vez
que, quando criança, visitava o “panorama do mundo” – que se ocultava en-
tão em uma passagem –, sentia-me, como na observação de livros ilustrados,
transportado para longe, o que era inteiramente irreal. E não podia ser dife-
rente: pois atrás do olho mágico, que é tão próximo como caixilho de janela,
passava por cidades e montanhas que com a luz artificial pareciam menos com
o destino de viagem do que faces: México e o Tirol, que no panorama mesmo
torna-se um outro México.
Estas paisagens são já quase imagens sem-teto, ilustrações de impulsos pas-
sageiros que brilham uma vez, cá e lá, através das fendas na cerca de madeira
que nos rodeia. São imagens como estas que se poderia ver com ajuda dos
óculos mágicos e é surpreendente porque a ótica da Passagem não oferece à
venda estes espetáculos. Suas folhagens de vidro que, duras e curvas, trepam
pelos lados da parede da vitrine, parecem apresentar corretamente as coisas
de acordo com os conceitos válidos na passagem. A desintegração de toda per-
manência ilusória, desintegração exigida pela Passagem, está aos cuidados da

4 Palácio situado nos arredores de Berlim, em Potsdam, construído durante o reinado de


Frederico o Grande, seguindo o modelo francês do Palácio de Versalhes.
5 O Panorama do Mundo, nome dado ao famoso Kaiserpanorama depois da Primeira Guerra
Mundial. Aberto em 1883, possuía uma programação que mudava duas vezes por semana,
funcionou até 1939. 361
loja de selos onde estão colados juntos com cifras e nomes, cabeças, arquitetu-
ras, animais heráldicos e lugares exóticos. Não por acaso, o meu amigo Walter
Benjamin, que há anos trabalha no tema das Pariser Passagen [passagens pa-
risienses], descobriu esta imagem do negócio de selos em seu livro, Einbahns-
trasse [Rua de mão única].6 O mundo aqui na Passagem é sacudido e agitado
até que possa servir às necessidades diárias dos passantes. Aquele que a atra-
vessa pode testar numa loteria se a sorte lhe acompanha, se lhe é favorável, ou
colocá-la à prova num jogo de cartas. E se deseja colocar-se em pessoa frente
a frente de seus sonhos de papel brilhante, pode ir à loja de cartões postais e
encontrá-los materializados numa variedade de versões coloridas. Arranjos
florais o saúdam numa linguagem engenhosa, cãezinhos correm até ele cheios
de confiança, a vida de estudante é resplandecente e embriagante, e a nudez de
um corpo róseo de mulher lhe enche de prazer. Na porta ao lado, ao redor do
pescoço e dos braços de belezas exuberantes se envolvem de colares-fantasia
e uma canção fora de moda emana de uma loja de música dando asas às ilu-
sões do visitante da Passagem.
O que unificava os objetos da passagem das Tílias e lhes dava a mesma fun-
ção era o seu estado de retaguarda na frente de batalha da burguesia. Desejos,
transgressões geográficas e muitas imagens que provocavam noites de insô-
nia não eram autorizados a ser vistas em lugares elevados como nas catedrais
e universidades, em discursos cerimoniais e nas paradas. Foram executadas
quando possível e, se não puderam destruídas inteiramente, foram repudia-
das e exiladas na Sibéria interior da Passagem. Mas aqui elas se vingaram do
idealismo burguês que lhes oprimia na medida de sua existência ofendida
contra a arrogante existência burguesa. Humilhadas como estavam, tinham
condições de mobilizar em meio à luz crepuscular da Passagem e de organi-
zar uma efetiva ação de protesto contra a cultura de fachada do lado de fora.
Colocavam a nu o idealismo e desmascaravam seus produtos como kitsch. Ja-
nelas arredondadas, cornijas com coroas e filas de balaustradas – o esplendor

6 Walter Benjamin, Einbahnstrasse (1928), em Gesammelte Schriften 4. Frankfurt am Main:


Suhrkamp, 1972, pp. 134-137 [ed. bras.: Rua de mão única. Tradução de Rubens Rodrigues
362 Torres Filho. Obras escolhidas II. São Paulo: Brasiliense, 1987, pp. 57-60].
renascentista, que se achava tão superior, foi testado e rejeitado na Passagem.
Ainda enquanto se a atravessava, e efetivamente no movimento que só a nós
se adequava, podíamos já perceber em meio a este esplendor e pretensão o
que era indisfarçável na luz da Passagem. A reputação das altas personalida-
des, cujos retratos com sua garantia de fidelidade estavam expostos e pendu-
rados atrás da vitrine do pintor da corte Fischer não sofrera menos. As damas
da corte imperial sorriam de modo tão gracioso, esta graça de gosto rançoso
como de suas pinturas a óleo. E a alardeada interioridade que pulsava seu ca-
ráter sem essência atrás das fachadas renascentistas foi penalizada por men-
tiras através de corpos iluminados que apareciam horripilantes por dentro na
forma de rosas vermelhas e amarelas. Assim a Passagem exercitava por meio
do mundo burguês a sua crítica a este, perceptível a qualquer passante. (Este
que perambulava como um vagabundo, que se encontrará algum dia com o
homem da sociedade transformada.)
Pela desautorização de uma forma de existência a qual continua a perten-
cer, a Passagem das Tílias adquiriu a potência de testemunhar o passado. Foi
obra de uma época que, ao criá-la, deu lugar, ao mesmo tempo e de modo pre-
cursor, a seu próprio fim. Na Passagem, justamente por ser uma passagem, as
coisas produzidas mais recentemente se separavam dos seres vivos mais cedo
do que em outros lugares e entravam quentes na morte (por isso o panótico
Castan7 se localizava na Passagem). O que nós herdamos e que denominamos
nosso próprio bem – na Passagem era como uma careta caduca em exposição.
Nós mesmos nos encontramos de novo nesta Passagem como mortos. Mas
extraímos dela também o que hoje nos pertence e que sempre pertenceu, o
que brilhava de modo desconhecido e deformado.
Agora, sob o novo teto de vidro e adornado em mármore, o que foi antes
uma passagem mais parece um vestíbulo de uma loja de departamentos. As
lojas continuam lá, mas seus cartões postais são artigos de conveniência pro-
duzidos em massa, seu panorama do mundo foi substituído pelo cinema e
desde há muito tempo seu Museu de Anatomia deixou de ser sensação. Todos

7 O panótipo Castan, inicialmente localizado no interior da Passagem, foi transferido para a


esquina da rua na entrada da Passagem em 1888. 363
os seus objetos foram tomados pelo mutismo. Apresentam-se timidamente em
conjunto atrás da arquitetura vazia que por um instante se mostra de modo
inteiramente neutro e posteriormente reproduzirá sabe Deus o quê – talvez o
fascismo ou simplesmente nada. O que importa ainda uma passagem numa
sociedade que é ela mesma apenas uma passagem?

364
Referências bibliográficas

O texto original de O ornamento da massa não possui notas bibliográficas ou de rodapé.


Todas as notas que contextualizam as referências do texto de Siegfried Kracauer foram
adaptadas pelos tradutores a partir das elaboradas por Thomas Y. Levin, tradutor e organi-
zador da edição anglo-americana (The Mass Ornament – Weimar Essays, Cambridge ma/
Londres: Harvard University Press, 1995). [n.e.]

Sobre os textos

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Tradução de Júlia Bussius, Nehle Franke e Milton Ohata.

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“A fotografia” [Die Photographie]
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Tradução de Carlos Eduardo Jordão Machado.

“A viagem e a dança” [Die Reise und der Tanz]


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“O ornamento da massa” [Das Ornament der Masse]


Frankfurter Zeitung, 9 jun. 1927. Publicado em Schriften, volume 5, ed. cit.
Tradução de Marlene Holzhausen e Carlos Eduardo Jordão Machado.

“Os livros de sucesso e seu público” [Über Erfolgsbücher und ihr Publikum]
Frankfurter Zeitung, 27 jun. 1931. Publicado em Schriften, volume 5, ed. cit.
Tradução de Marlene Holzhausen.

“A biografia como arte da nova burguesia” [Die Biographie als neubürgerliche Kunstform]
Frankfurter Zeitung, 29 jun. 1930. Publicado em Schriften, volume 5, ed. cit.
Tradução de Marlene Holzhausen.

“A revolta da classe média” [Aufruhr der Mittelschichten]


Frankfurter Zeitung, 10-11 dez. 1931. Publicado em Schriften, volume 5, ed. cit.
Tradução de Marlene Holzhausen.

“Aqueles que esperam” [Die Wartenden]


Frankfurter Zeitung, 12 mar. 1922. Publicado em Schriften, volume 5, ed. cit.
Tradução de Marlene Holzhausen.

“O grupo como portador de ideias” [Die Gruppe als Ideenträger]


Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpolitik, ago. 1922. Republicado em Schriften, vo-
lume 5, ed. cit.
Tradução de Carlos Eduardo Jordão Machado.

“Saguão de hotel” [Die Hotelhalle]


Capítulo de Der Detektiv-Roman. Ein philosophischer Traktat em Schriften, volume 1.
Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1971.
Tradução de Carlos Eduardo Jordão Machado.

“A Bíblia em alemão” [Die Bibel auf Deutsch]


Frankfurter Zeitung, 27 abr. 1926. Publicado em Schriften, volume 5, ed. cit.
Tradução de Marlene Holzhausen.

“Catolicismo e relativismo” [Katholizismus und Relativismus]


Frankfurter Zeitung, 19 nov. 1921. Publicado em Schriften, volume 5, ed. cit.
Tradução de Marlene Holzhausen.
366
“A crise da ciência” [Die Wissenschaftskrisis]
Frankfurter Zeitung, 8 mar. 1923. Publicado em Schriften, volume 5, ed. cit.
Tradução de Marlene Holzhausen.

“Georg Simmel” [Georg Simmel]


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Ingrid Belke (org). Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2005.
Tradução de Carlos Eduardo Jordão Machado.

“Sobre os escritos de Walter Benjamin” [Zu den Schriften Walter Benjamins]


Frankfurter Zeitung, 15 jul. 1928. Publicado em Schriften, volume 5, ed. cit.
Tradução de Marlene Holzhausen.

“Franz Kafka” [Zu Franz Kafka nachgelassenen Schriften]


Frankfurter Zeitung, 3 set. 1931. Publicado em Schriften, volume 5, ed. cit.
Tradução de Marlene Holzhausen

“O mundo de calicó” [Kalikowelt]


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volume 6. Inka Mülde-Bach (org). Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2004.
Tradução de Carlos Eduardo Jordão Machado.

“As pequenas balconistas vão ao cinema” [Die kleinen Ladenmädchen gehen ins Kino]
Frankfurter Zeitung, março de 1927, com o título Film und Gesellschaft. Publicado em
Schriften, volume 6, ed. cit.
Tradução de Marlene Holzhausen.

“Cinema, 1928” [Der heutige Film und sein Publikum]


Frankfurter Zeitung, 30 nov. e 1 dez. 1928. Publicado em Schriften, volume 6, ed. cit.
Tradução de Carlos Eduardo Jordão Machado.

“O culto da distração” [Kult der Zerstreuung]


Frankfurter Zeitung, 4 mar. 1926. Publicado em Schriften, volume 6, ed. cit.
Tradução de Carlos Eduardo Jordão Machado.

“O tédio” [Langeweile]
Frankfurter Zeitung, 16 nov. 1924. Publicado em Schriften, volume 5, ed. cit.
Tradução de Carlos Eduardo Jordão Machado.

“Adeus à Passagem das Tílias” [Abschied von der Lindenpassage]


Frankfurter Zeitung, 21 dez. 1930. Publicado em Strassen in Berlin und anderswo, ed. cit.
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Tradução de Carlos Eduardo Jordão Machado.
367
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376
Índice de nomes

Adorno, Theodor W., 10, 15-17, 25, 27, 29, 31, Bloom, Harold, 17
36, 38-39, 41, 44, 48, 54, 283 Boese, Carl, 341
Aland, Kurt, 210 Borchardt, Marie Luise, 209
Armin, Ludwig Achim von, 175 Borchardt, Rudolf, 209, 216
Arnheim, H., 213 Burschel, Friedrich, 105, 112, 114
Arnheim, Rudolf, 16 Brecht, Bertolt, 314-315
August, Karl, 65 Briand, Aristide, 74
Brod, Max, 287, 289
Bachofen, Johann Jacob, 76-77, 133 Brunkhorst, Hauke, 9
Balázs, Béla, 35 Buber, Martin, 15, 21, 205-06, 208, 212-13,
Baron, Hans, 237 215, 217-19
Baudelaire, Charles, 32, 36, 81
Baudrillard, Jean, 31 Cage, John, 34
Bazin, André, 19, 33 Chamfort, Sébastien, 244
Biebl, Sabine, 278 Chaplin, Charles, 130, 312
Belke, Ingrid, 15-16, 278 Charell, Eric, 64
Benjamin, Walter, 15-16, 21-22, 24-25, 28, Clemenceau, Georges, 132
31-36, 38, 43, 54, 279-85, 311-12, 362 Correl, Barbara, 14
Bergen, Arthur, 330 Courbet, Gustave, 69
Berger, Ludwig, 306, 308 Creuzer, Georg Friedrich, 77
Bergson, Henri, 32-33, 233, 243 Crisp, Donald, 314
Bernoulli, Carl Albrecht, 133 Croce, Benedetto, 233
Bloch, Ernst, 15-16 Cserépy, Arzen von, 329 377
Czinner, Paul, 340 George, Stephan, 13, 21, 154, 212, 215
Glatzer, Nahum, 206
Dahn, Felix, 214 Goethe, Johann Wolfgang, 65-66, 68, 81,
Dauthendey, Max, 154 117, 248, 254-55, 274, 276-77
Dewitz, Hans-Georg, 209 Grimm, Jacob e Wilhelm, 63, 175
Dickens, Charles, 214 Groz, Georg, 342
Dilthey, Wilhelm, 66 Gründler, Otto, 227
Doermann, Felix, 82 Grune, Karl, 9, 11-12, 23, 26, 39, 307, 329, 341
Dostoiévski, Fiódor, 88 Grüneberg, Horst, 126-27, 141-42
Douglas, Mary, 9 Gundolf, Friedrich, 154
Dreyfuss, Alfred, 136
Dreyer, Carl T., 339 Habermas, Jürgen, 36, 38
Dubiel, Helmut, 15 Haenlein, Leo, 28
Dupont, Ewald André, 71 Halevi, Yehuda, 206-07
Hansen, Miriam 9, 34, 36
Eckermann, Peter, 68 Harbou, Thea von, 339
Elvestad, Sven, 201 Harms, Rudolf, 71
Einstein, Albert, 118, 130 Hecker, Hans, 123
Eisenstein, Sergei, 25, 38, 314, 342 Hegel, Georg Friedrich Wilhelm, 127, 233
Elsaesser, Thomas, 30 Heine, Thomas T., 329
Eschmann, Ernest Wilhelm, 128, 136, 142, Helms, Hans G., 41
145 Hessel, Franz, 285
Espinoza, Baruch, 243 Hindenburg, Paul von, 74
Hoffmann, E.T.A., 175
Fairbanks, Douglas, 314 Hofmannsthal, Hugo von, 154
Feyder, Jacques, 34 Hölderlin, Friedrich, 91
Foster, Hal, 31 Horkheimer, Max, 25, 44
Franklin, Sidney A., 322 Hugenberg, Alfred, 304, 328
Franzen, Erich, 105, 114
Freud, Sigmund, 17, 20, 30, 36, 42 Ibsen, Henrik, 137
Freytag, Gustav, 214 Ihering, Herbert, 25
Fried, Ferdinand (Ferdinand Freidrich
Zimmermann) 124, 127, 129, 135-36 Jannings, Emil, 307
Frisch, Efrain, 105, 113 Jay, Martin, 10, 15, 39
Fromm, Erich, 206 Johnston, John, 31

Galeen, Henrik, 341 Kafka, Franz, 6, 17, 20-21, 37, 79, 106, 287-
Geist, Johann Friedrich, 357 300, 367
Gebühr, Otto, 329 Kant, Immanuel, 195-96, 246-48, 274-76
378 George, David Lloyd, 132 Kautzsch, Emil, 219
Kessler, Michael, 34 May, Joe, 339
Keyserling, Conde Hermann Alexander Mayer, Carl, 305
von, 320 Mendes, Lothar, 308
Kierkegaard, Sören, 234, 236, 238, 283 Meyrink, Gustav, 175
Klöpfer, Eugen, 9 Michael, Wilhelm, 215
Koch, Gertrude, 21 Michelangelo, 248
Koch, Hans-Gerd, 292 Milestone, Lewis, 107
Korda, Alexandre, 326 Monet, Claude, 70
Kracauer, Siegfried, 9-45, 54, 64, 66, Montanus, 146
71, 105, 107, 109, 111-12, 114-15, 120, Mülder-Bach, Inka, 10-11, 13-15, 28, 365
142, 146, 180, 213, 265, 278, 283, 312, Müller, Michael, 292
317, 329, 332, 351, 357, 358, 365 Murnau, Werner, 307, 339 341
Kraus, Karl, 285 Mussolini, Benito, 133
Küpper, Hannes, 315
Kyser, Hans, 329 Nadler, Josef, 126
Neff, Wolfgang, 319, 324
Lamprecht, Gerhard, 330 Nietzsche, Friedrich, 154, 248, 274-75
Lang, Fritz, 305, 338-39, 341 Nobel, Nehemiah, 15
Langen, Albert, 329
La Rochefoucauld, François de, 244 Ozep, Fedor, 42
Leibniz, Gottfried Wilhem von 235
Leskov, Nicolai 32 Pasley, Malcom, 292
Lethen, Helmut 34 Paul, Hanz, 332
Levin, Thomas Y. 10, 22, 34, 365 Peil, Harry, 338
Liedtke, Harry, 329 Piccolomini, Enéas Sílvio (Papa Pio iii), 179
Lohenstein, Daniel Caspers von, 283 Pölzig, Hans, 175, 343
London, Jack, 105, 114 Porten, Henny, 339
Löwenthal, Leo, 15 Proust, Marcel, 20, 32-33, 285
Ludwig, Emil, 117 Pudovkin, Vsevolod Ilarionovich, 340, 342
Lukács, Georg, 13, 17
Lutero, Martinho, 209-16, 218-19, 329 Raabe, Paul, 295
Rabinbach, Anson, 15, 24, 35
Mack, Max, 325 Ranke, Leopold von, 233
Majo, Fred, 339 Raschid, Harun al, 322, 324
Malebranche, Nicolas, 235 Reichmann, Max, 341
Mann, Thomas, 199 Reil, Christian, 146
Marlitt, Eugenie, 329 Remarque, Erich Maria, 105, 107, 113, 115
Märten, Lu, 25 Rembrandt, 248-49, 272-76
Marx, Karl, 15-16, 25, 74, 77, 138, 142-43, Renz, Irina, 15-16
145-46, 173, 233 Ritter, Erwin (pseudônimo de Hanz Zehrer) 147 379
Rodin, Auguste, 248 Storm, Theodor, 305
Rosen, Philip, 19 Strauss, Oskar, 306, 330
Rosenzweig, Franz, 15, 205-08, 212-13, 217-19 Streseman, Gustav, 74
Rouanet, Sérgio Paulo, 34 Sudermann, Hermann, 334
Rubens, Peter Paul, 68
Russolo, Luigi, 34 Thiess, Frank, 105, 111-14
Ruttmann, Walter, 340 Tiller, John, 64, 92, 94-95, 100
Tourjansky, Victor, 323
Samson-Körner, Paul, 315 Troeltsch, Ernst, 231-41
Satie, Erik, 34 Trotsky, Leon, 122
Scheler, Max, 43, 208, 221-30 Trübner, Wilhelm, 69
Schillemeit, Jost, 288
Schmitz, Oskar, 311 Voss, Richard, 105, 112-13, 124-25
Schnitzler, Arthur, 334
Schivelbusch, Wolfgang, 206 Wagner, Richard, 101, 173, 213-14, 344
Schleiermacher, Friedrich, 229 Weber, Max, 13, 17, 24, 156, 231-32, 237-41
Schlüpmann, Heide, 9, 21 Wegener, Paul, 175, 341, 343
Schmitt, Carl, 123, 127, 133-34 Weininger, Otto, 317
Schopenhauer, Arthur, 243, 248, 257, 274-75 Wellhausen, Julius, 219
Schoeps, Hans Joachim, 287 Wellmer, Albrecht, 9
Scholem, Gershom, 15, 17, 43, 206 Wendhausen, Fritz, 339
Schröter, Michael, 13, 17-18 Wilde, Oscar, 29
Scott, Walter, 214 Wirsing, Giselher, 123
Simmel, Georg, 6, 17, 43, 151, 164, 197-98, Witte, Karsten, 9, 12, 16, 25, 34, 38, 115, 312
243-54, 257-78, 367
Simon, Ernst, 206 Yerushalmi, Yosef Hayim, 32
Soloviev, Vladmir, 88
Sombart, Werner, 320 Zehrer, Hans, 123-30, 132, 134, 138-40, 144,
Sorel, Georges, 128, 134 147
Spalatin, Georg, 210 Zille, Heinrich, 316, 330
Spengler, Oswald, 135-37, 140 Zipes, Jack, 14
Steiner, George, 209 Zumbusch, Ludwig von, 70
Steiner, Rudolf, 152-53 Zunz, Leopold, 213-14
Stiller, Mauritz, 318 Zuckmayer, Carl, 334
Stoessel, Marleen, 35 Zweig, Stephan, 105, 112-14

380
Capa: Dames (1934). Direção: R. Enright e B. Berkeley – Warner Bros./Photofest

© Co­sac Naify, 2009


© Suhrkamp Velag, 1963

A publicação desta obra foi amparada por um auxílio do Goethe-Institut

Editor Milton Ohata


Projeto gráfico da coleção Elai­ne Ra­mos
Composição e capa Gustavo Marchetti
Preparação Alexandre Morales
Revisão Laura Rivas Gagliardi e Tereza Gouveia

Nesta edição, respeitou-se o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação [cip]


[Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil]

Kracauer, Siegfried [1889-1966 ]


O ornamento da massa: ensaios/Siegfried Kracauer
Título original: Das Ornament der Masse: essays
Tra­du­ção: Carlos Eduardo Jordão Machado, Marlene Holzhausen
São Pau­lo: Co­sac Naify, 2009
384 pp.

Bibliografia
isbn 978-85-7503-760-7

1. Ensaios alemães I. Título

09-00118   cdd-834.91

Índices para catálogo sistemático


1. Ensaios: Século 20: Literatura alemã  834.91
2. Século 20: Ensaios: Literatura alemã  834.91

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Co­le­ção Ci­ne­ma, tea­tro e mo­der­ni­da­de
Coordenação editorial Ismail Xavier

1. O cinema e a invenção da vida moderna


Leo Charney e Vanessa R. Schwartz (org.)

2. Teoria do drama moderno [1880-1950]


Peter Szondi

3. Eisenstein e o construtivismo russo


François Albera

4. Tragédia moderna
Raymond Williams

5. Shakespeare nosso contemporâneo


Jan Kott

6. O olho interminável [cinema e pintura]


Jacques Aumont

7. Cinema, vídeo, Godard


Philippe Dubois

8. Teoria do drama burguês


Peter Szondi

9. Discurso sobre a poesia dramática


Denis Diderot

10. Crítica da imagem eurocêntrica


Ella Shohat e Robert Stam

11. Teatro pós-dramático


Hans-Thies Lehmann
fontes Minion Pro e The Sans
papel Primapress 90 g/m2
im­pressão Geográfica
tiragem 3000

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