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Eduardo de Faria Carniel

O caos elegante de Huxley


Dialética temporal e narrativa em Contraponto

Teoria Literária I
Prof. Jorge de Almeida

São Paulo
2014
Em uma carta enviada ao seu pai em 1926, Aldous Huxley relata que já ensaiava a
estrutura formal, bem como a proposta literária, na qual seria construído o seu romance
Contraponto:

I am very busy preparing for and doing bits of an ambitious novel, the sum of
which will be to show a piece of life, not only from a good many individual
points of view, but also under its various aspects such as scientific, emotional,
political aesthetic, etc. The same person is simultaneously a mass of atoms, a
physiology, a mind, an object with a large shape that can be painted, a cog in the
economic machine, a voter, a lover, etc. etc. I shall try to imply at any rate the
existence of the other categories of existence behind the ordinary categories
employed in judging everyday emotional life. It will be difficult, but interesting. 1

Sua síntese do romance se provou ser bem acertada. A primeira constatação do


leitor de Contraponto é justamente que está penetrando em uma narrativa que prima
pela simultaneidade, em todos os aspectos. Não só pessoas diferentes têm a voz em cada
momento, como também diferentes ideias e visões de mundo, e, talvez o mais
importante, diferentes perspectivas para a narração.
Contraponto foi escrito em um período particular de transição, matizado
principalmente pela visão de um mundo em mudança. Por décadas, a representação
artística, especialmente no romance, foi muito determinada pela hegemonia de sistemas
de pensamento bastante fechados: no campo intelectual, o racionalismo científico e
positivista; no campo espiritual, o cristianismo organizado; e no campo socioeconômico,
o capitalismo industrial. A nitidez que perdurou por muito tempo na definição desses
sistemas, especialmente no período de relativa paz entre 1815 e 1914, trouxe ao romance
a forma clássica de narração, que acompanha um personagem central ao longo de uma
jornada de vida com uma causalidade lógica entre os eventos, frequentemente contados
com uma onisciência que serve à análise do personagem em questão, e sempre havendo
uma distância clara entre narrador e personagem no discurso.
É esse sistema que cai por terra significativamente depois da I Grande Guerra,
quando as pessoas, frente ao horror da experiência, se viram obrigadas a questionar
quanto dos valores que eram aceitos com muita clareza e boa vontade não eram

1 HUXLEY, Aldous. Letters of. London: Chatto & Windus, 1969, pp. 274-275
responsáveis por terem criado a situação tenebrosa que estava posta - e se continuar a
seguí-los não significaria avançar para uma destruição completa da sociedade. E se a
representação artística se apoiava nos três sistemas que vinham sendo apontados como
críticos para a criação do cenário de guerra - racionalismo, cristianismo e capitalismo -
para se constituir, é natural que ela também tenha tido a necessidade de se reconstituir.
Contraponto se insere nessa situação em específico. No romance, é comum ver
como os personagens, membros da elite burguesa da Inglaterra do começo do século
XX, observam uma decadência de seus valores aliada à decadência de seu estilo de vida.
O conflito de todos os personagens vem de um descompasso entre o que é ditado pelas
normas do seu ambiente social e reafirmado pela sua inteligência racional, e o que
gritam seus instintos corporais e físicos. A busca pela reafirmação de valores para com
os quais balizar a vida leva, na maioria dos casos, ao rebaixamento total para a busca de
valores supérfluos e fúteis (a busca de John Bidlake pela fama e prestígio ou a
importância dada por Dennis Burlap à riqueza material, mesmo que secretamente) ou à
negação completa desses valores em busca de um estilo de vida hedonista (Lucy
Tantamount, a “flor consumada da civilização”) ou decadentista (Maurice Spandrell,
que nega a vida em qualquer sentido). É sintomático também que os personagens jovens
são os mais desiludidos com a perspectiva de encontrar sentido para as suas ações, já
que recebem dos pais um conjunto completo de valores que já não tem aplicação
nenhuma no ambiente à sua volta. Mark Rampion é claramente a voz central do enredo,
pois apresenta a necessidade encarada por todos os personagens de encontrar um
equilíbrio entre o “corpo” e a “mente”, abandonando a hipocrisia e vivendo a
potencialidade humana.
Na forma narrativa do romance, porém, é que Huxley realmente explicita a sua
visão de realidade pós-guerra. A contemplação de um mundo fragmentado despertou
diferentes posturas nos romancistas, cada um visando dar conta de uma realidade não-
linear e complexa à sua maneira. Junto com a contestação do racionalismo científico,
veio a certeza de que a percepção empírica da realidade, do espaço e do tempo pelo
humano é delimitada pela sua própria experiência, que é por natureza subjetiva. Frente
a isso, a postura do narrador - antes objetiva, com causalidade e distanciada - acaba, na
maioria dos casos, tomando dois rumos: priorizar a introdução total na psicologia de um
personagem, e o tempo se torna exclusivamente o da memória; ou se afastar
completamente dessa e narrar o mundo sem intermediários psicológicos, através do
tempo da ação:

Vemos, portanto, que a perspectiva tanto se desfaz nos romances em que o


narrador submerge, por inteiro, na vida psíquica da sua personagem, como
naqueles em que se lança ao rodopiar do mundo. Quer o mundo se dissolva na
consciência, quer a consciência no mundo, tragada pela vaga da realidade
coletiva, em ambos os casos o narrador se confessa incapaz ou desautorizado a
manter-se na posição distanciada e superior do narrador "realista" (...) no
primeiro, o indivíduo desfaz o mundo e deixa de ser pessoa íntegra, pois esta só
se define no mundo, destacando-se dele; no segundo caso, o mundo desfaz o
indivíduo que, também nessa enfocação, deixa de ser pessoa íntegra.2

Contudo, o que Huxley ousa em Contraponto não se qualifica como nenhuma das duas
abordagens. Ou melhor, chega a uma síntese das duas.
A técnica particular de contraponto narrativo usada pelo autor na obra imita o
contraponto musical muito presente no classicismo erudito. Através dessa técnica, o
compositor mantém uma relação interdependente e harmônica entre diversas linhas
melódicas independentes, com alguma frequência em tonalidades dissonantes. A
postura narrativa de Huxley se expressa muito ligada a isso, já que se caracteriza pela
descrição minuciosa dos pensamentos, memórias e sensações de uma multidão de
personagens que, apesar de representarem oposição, se complementam e se afetam
mutuamente. Na marcante cena de Spandrell e Illidge logo após terem assassinado
Everard Webley, o leitor acompanha o tempo da memória dos dois personagens quando
Illidge rememora a humilhante situação social a que foram sujeitos ele e sua família pra
tentar justificar sua ação assassina e Spandrell deixa o cadáver de Webley o levar em
uma reflexão sobre a vacuidade da vida, e também da morte. Mas esse deslocamento
também é acompanhado por um foco nas ações dos dois criminosos de limpar a casa e
esconder o cadáver, que acontecem no tempo concreto da ação, porque elas também são
determinantes para o desenrolar das histórias dos diferentes personagens. A tensão
narrativa existe na dialética desses dois planos, por compreender justamente a
articulação deles na realidade contemporânea.
2 ROSENFELD, Anatol. “Reflexões sobre o romance moderno”. In: ROSENFELD, Anatol.
Texto/Contexto I. São Paulo: Perspectiva, 1993. p. 96
Ao se fazer a escolha de construir a narrativa pelo ponto de vista múltiplo ao
invés do singular, Huxley busca dar conta da representação da vida de uma nova
maneira. Philip Quarles, o alter ego romancista de Huxley em Contraponto, explicita
esse método, ecoando a carta enviada ao pai do autor anos antes:

A novelist modulates by reduplicating situations and characters. He shows


several people falling in love, or dying, or praying in different ways—dissimilars
solving the same problem. Or, vice versa, similar people confronted with
dissimilar problems. In this way you can modulate through all the aspects of
your theme, you can write variations in any number of different moods.3

Muito da sua perspectiva contrapontística vem do mosaico criado pela


justaposição complementar de todas essas diferentes histórias e visões de mundo. Mas
não existiria um contraponto verdadeiro sem a constatação de que, dada toda essa
multiplicidade de pontos de vista, cada um trabalhado profundamente com uma
narração psicológica elaborada, existe um grande quadro formado por todas as histórias
que mostra, por diferentes ângulos, as dificuldades do indivíduo de conseguir dar vazão
ao que realmente busca e descobrir como viver em um mundo em desconstrução. E esse
grande quadro só é formado graças às ações de cada uma das pessoas, que reverbera
pelo espaço social e vai afetar uma outra pessoa, e assim por diante em um sistema
nervoso de acontecimentos. O acidente de carro sofrido por Quarles invalida sua perna,
que o impede de ir para a guerra, que o torna uma pessoa fechada na sua própria
intelectualidade, que frustra Elinor, que se apaixona por Webley (em conflito com si
mesma), que faz com que eles marquem um encontro na casa dela, onde será morto por
Spandrell e Illidge, martirizado e dará mais força para o crescimento de sua organização
fascista. Nem o mundo se dissolve na consciência, nem a consciência no mundo, mas
dialeticamente se reforçam em uma harmonia dissonante que afirma a existência dos
dois enquanto motores dos acontecimentos. A busca de Mark Rampion por equilíbrio
entre o sentimento e a intelectualidade, entre o corpo e a mente, já se anuncia com a
narração do próprio Huxley e seu contraponto entre a ação e a memória.

3 HUXLEY, Aldous. Point Counter Point. New York City: Avon Publications. p. 301
Bibliografia:

HUXLEY, Aldous. Point Counter Point. New York City: Avon Publications.

HUXLEY, Aldous. Letters of. London: Chatto & Windus, 1969,

ROSENFELD, Anatol. “Reflexões sobre o romance moderno”. In: ROSENFELD, Anatol.


Texto/Contexto I. São Paulo: Perspectiva, 1993.

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