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SOLIDÃO COMO CONDIÇÃO PARA A ÉTICA E LINGUAGEM NA

FILOSOFIA DE JEAN-JACQUES ROUSSEAU

Resumo:
O tema da solidão nas obras de Jean-Jacques Rousseau é mais recorrente em seus textos
autobiográficos. Cabe no presente artigo fornecer pressupostos seguros para relacionarmos
conceitos do arcabouço filosófico do autor e a condição solitária experienciada por ele no
âmbito da sua vida. É, portanto, entender a solidão como um conceito filosófico que dialoga
com problemáticas do campo da moral e da linguagem.
Palavras-Chave: Linguagem. Moral. Sociedade. Solidão.

1. Introdução

A trajetória da literatura crítica que se traçou desde o século das Luzes acerca da obra
de Jean-Jacques Rousseau se articulou entre diversas interpretações. No percorrer da
Revolução Francesa, revolucionários e contrarrevolucionários tomavam sua obra e defendiam
posicionamentos sobre ela que, pela contraditoriedade, nem parecia se tratar do mesmo autor.
Não se via uma coligação entre um escrito que tomava como perspectiva discursiva o âmbito
individual, caso do Discurso Sobre a Origem da Desigualdade, e seu texto Do Contrato
Social que se posicionava a favor da obrigatoriedade participação de todos para a decisão da
vida coletiva. A dificuldade interpretativa não se esgotou apenas ao debate político, mas
abrangeu os demais escritos de Rousseau 1: seus romances, peças teatrais, romances, textos
acerca da música, botânica e, sobretudo, dos escritos conhecidos como autobiográficos.

Inserido neste cenário, o pensador pós-kantiano Ernst Cassirer em 1932 apresenta um


ensaio para a Societé Française de Philosophie chamado A questão Jean-Jacques Rousseau.
Se mantendo na tradição pela qual se desenvolveu no campo da filosofia, tomou as
interpretações kantianas2 sobre obra de Rousseau e defendeu a existência da unidade
conceitual presente na totalidade dos escritos do autor genebrino. A partir de então, uma
tradição toma como seguro avaliar textos que antes pareciam contraditórios e se torna a

1
Para um comentário aprofundado sobre as diversas interpretações da obra de Jean-Jacques Rousseau, ver GAY,
PETER. Introdução. Trad. Jézio Gutierre. In: CASSIRER, Ernst. A Questão Jean-Jacques Rousseau. São Paulo:
Editora UNESP, 1999.
2
Rousseau em registros autobiográficos defendia a concordância entre suas diversas obras, Immanuel Kant, por
sua vez, concordava com o genebrino. Para uma constatação geral da influência de Rousseau para a obra
kantiana, ver: KLEIN, J. T. A questão da Teologia Kant leitor de Rousseau. Cadernos de filosofia alemã, São
Paulo v. 22, n.1, p. 51-70, 2013, e BENCKENKAMP, J. Algo sobre a influência de Rousseau na formação da
Moral Kantiana. Revista ética e filosofia política, Juiz de Fora, n. 21, v. 1, p. 22-34, 2018.
possível investigar seus escritos autobiográficos correlacionados com seu arcabouço
filosófico. É da seguinte maneira que Jean Starobinski esclarece tal condição interpretativa:

Com ou sem razão, Rousseau não consentiu em separar seu pensamento e


sua individualidade, suas teorias e seu destino pessoal. É preciso considerá-
lo tal como se apresenta, nessa fusão e nessa confusão da existência e das
ideias. Assim, somos levados a analisar a criação literária de Jean-Jacques
como se ela representasse uma ação imaginária, e seu comportamento, como
se ele constituísse uma ficção vivida. (STAROBINSKI, 2011, p. 9)
Desse modo, estabelecemos terreno seguro para traçarmos a investigação acerca do
tema solidão, o qual aparece com maior predominância em textos que pertencem ao conjunto
conhecido como autobiográfico de sua obra. Dentre eles, poderíamos ter direcionado nossa
atenção aos Devaneios de um Caminhante Solitário (2017), mas o contexto da escrita dessas
reflexões não nos favorece para compreender a deliberação do autor para uma vida solitária
pois, a partir da publicação do Emílio ou Da Educação em 1762, suas obras foram queimadas
em praça pública e em 18 de junho foi expedido um mandado de prisão, que o fez viver
fugitivo até o fim de sua vida. Em sua Carta a Christophe de Beaumont, Arcebispo de Paris,
Rousseau demonstra sua insatisfação e seu sentimento frente ao acontecido: “O cidadão de
Genebra nada deve a magistrados injustos e incompetentes que, com base em uma acusação
caluniosa, não o convocam, mas decretam sua prisão. [...] Ele [Rousseau] abandona,
suspirando, sua amada solidão” (ROUSSEAU, 2005, p. 43).

Em janeiro do mesmo ano, Rousseau escreve as Quatro Cartas ao Senhor Presidente


de Malesherbes (2005) cujo subtítulo explicita os objetivos presente nessas cartas: “contendo
o verdadeiro quadro de meu caráter e os verdadeiros motivos de toda minha conduta”
(ibidem, p. 19). De seus contemporâneos, sejam críticos ou amigos, todos se assustaram e não
puderam entender o motivo de Jean-Jacques Rousseau ter se afastado da vida palaciana, do
grupo dos enciclopedistas, dos grandes espetáculos teatrais, dentre outras atividades comuns à
aristocracia francesa do Século XVIII para viver aos arredores de Paris, em um casebre
simples, pequeno, longe do luxo e das riquezas que bem poderia aproveitar. O acusaram de
ser um misantropo, além de alegar que um homem como ele, voltado ao mundo das letras e da
música, nada agregaria à vida campestre e nela não seria nada mais que um inútil para a
sociedade. De todo caso, concluíam que a vida de Rousseau na região de Montmorency se
resumia em infelicidade e melancolia. Seu posicionamento nas Quatro Cartas, se dirigindo ao
seu amigo Chrétien-Guillaume Lamoignon de Malesherbes, se direciona em defesa dessas
acusações e do elogio à vida solitária.
Logo em sua primeira carta suas motivações são expostas: “nasci com um amor
natural pela solidão que só fez aumentar conforme conhecia melhor os homens”
(ROUSSEAU, 2005, p. 20). Acrescenta ainda que existe dentro de si uma paixão que fomenta
a vontade da vida solitária desde sempre no âmbito de sua individualidade e, conforme tomou
contato com as injustiças da vida cotidiana e demais maldades, o seu desejo de reclusão se
intensificou. Verificamos uma causa primeira que acentua essa paixão: o contato recorrente da
injustiça e dos vícios vividos e observados empiricamente nas ocasiões da vida social. Em
defesa da sua condição solitária, Rousseau apresenta ao seu interlocutor de maneira resumida
as principais consequências positivas que seu modo de vida tem em relação à vida em
sociedade:

Foi-me demonstrado pela experiência que o estado em que me encontro é o


único que o homem pode ser bom e feliz, pois é o mais independente de
todos e o único em que jamais nos encontramos na necessidade de prejudicar
os outros para nossa própria vantagem (ROUSSEAU, 2005, p. 25-6)
Cabe no trabalho aqui proposto investigar as relações entre seus conceitos filosóficos e
os pontos apresentados pelo autor na citação acima. Não obstante, pretendemos identificar o
sentimento da solidão como um conceito filosófico condizente com seu sistema de
pensamento.

Para tal finalidade, será preciso estabelecer o conceito de bondade apresentado na


Profissão de Fé do Vigário de Sabóia, presente no Livro IV do Emílio, e sua correlação com a
hipótese histórica contida no Discurso Sobre a Desigualdade. De maneira complementar, a
condição do solitário se relaciona e se articula conjuntamente com uma linguagem própria que
conceituaremos a partir do Ensaio Sobre a Origem das Línguas.

2. Ordem e Desordem: o conceito de bondade

Jean-Jacques Rousseau e os demais filósofos iluministas foram diretamente


influenciados pelos pensadores do século anterior, responsáveis pelo advento da filosofia
moderna. Passados os séculos da idade medieval e de seu pensamento filosófico vinculado
com as questões teológicas, a Idade Moderna se dedicou em separar o campo da razão do
campo da fé. O Século das Luzes pôde observar a ruptura entre uma cosmovisão organicista e
teleológica para uma visão mecanicista, com a possibilidade de investigar possíveis leis gerais
à natureza.
Uma imagem assimilada pelos pensadores e que demonstra essa cosmovisão é a de
que o universo é organizado por leis tal qual um relógio possui suas engrenagens, molas,
parafusos, e Deus é concebido como o relojoeiro responsável pela perfeita harmonia entre as
peças.

Para os debates do domínio epistemológico e da ciência tais concepções abriram um


caminho fértil a ser cultivado. Todavia, como se pensar a condição do homem uma vez que
ele está imerso neste universo regido por leis? O problema da liberdade do homem se
apresenta junto do problema existencial – uma vez que não temos mais um fim pré-
determinado pela visão organicista – e, desse modo, surge a necessidade de investigar quais as
relações entre o domínio das leis físicas e naturais e o da moral, visando identificar sob qual
estatuto podemos firmar a ação boa e a má.

2.1 Os três artigos de fé da Profissão de Fé do Vigário de Sabóia

Nesta conhecida passagem do Emílio, o Vigário, responsável por direcionar a criança


em seu processo de desenvolvimento desde a primeira infância, se defronta com a dificuldade
de apresentar as verdades e pautas religiosas. Evitando demonstrar dogmas estabelecidos
pelas diversas religiões, Rousseau através da voz do Vigário se prontifica a estabelecer
verdades fundamentais para o entendimento do universo, da moral e da religião de maneira
independente, influenciado pela dúvida metódica cartesiana, suspendendo o juízo acerca de
toda verdade anterior à fim de ter tais verdades asseguradas por seu processo reflexivo, e não
por uma tradição.

Apesar da influência, Rousseau se serve dos argumentos e métodos cartesianos à sua


maneira, a começar pela inversão do cogito: “Existo e tenho sentidos pelos quais sou afetado”
e, mais à frente, reforça seu posicionamento muito mais voltado ao empirismo que ao
racionalismo: “concebo claramente, portanto, que minha sensação, que sou eu, e sua causa
ou seu objeto, que está fora de mim, não são a mesma coisa” (ROUSSEAU, 2017, p. 315).
Como ressalta o comentador Bento Prado Jr, a inversão do cogito demonstra desde o início a
distinção entre o campo que o genebrino visa desbravar em sua reflexão que se difere do de
Descartes, isto é, de que René Descartes se voltava ao campo do Saber e, por outro lado, Jean-
Jacques Rousseau se volta para o campo do Poder visando refletir acerca da liberdade, do bem
e do mal (cf. JUNIOR, 2015, p. 52).
O Vigário, para estabelecer tais verdades fundamentais, toma como contraponto
argumentativo o materialismo francês do século XVIII, representados principalmente pela
filosofia de Denis Diderot, La Mettrie e o Barão d’Holbach. Uma concepção comum a estes
autores estava na defesa da matéria como única substância e, em respeito ao movimento dos
corpos, de que a matéria possui em si a capacidade de se movimentar de forma autônoma.
Através da observação dos corpos, o Vigário percebe que sua condição natural é permanecer
em repouso, não conseguindo pensar como objetos tais como pedras, galhos, dentre outros
corpos pudessem sair desta condição por si próprios e, assim, desconsidera o argumento
materialista. Mas não é possível negar que o movimento exista, estabelece que existem:
movimentos espontâneos e movimentos comunicados. Os primeiros acontecem por meio de
corpos que possuem em si princípios ativos e sua ação decorre de uma vontade; para o
segundo, os corpos são inativos e só se movem por consequência a ação dos corpos com
princípio ativo. A partir da existência de corpos que possuem princípios ativos, logo possuem
vontade, Rousseau interpreta que para isso é preciso existir uma vontade superior que anima
os corpos ativos. Este é tido como o primeiro artigo que fé:

Em suma, todo movimento que não é produzido por outro somente pode vir
de um ato espontâneo, voluntário; os corpos inanimados agem apenas pelo
movimento, e não há verdadeira ação sem vontade. Eis meu primeiro
princípio. Acredito, portanto, que uma vontade move o universo e anima a
natureza. Eis meu primeiro dogma, ou meu primeiro artigo de fé.
(ROUSSEAU, 2017, p. 319)
Um segundo argumento defendido pelos materialistas se refere ao movimento ser
necessário à matéria. Entretanto, todo movimento precisa de uma direção ao qual se dirige
para se transportar no espaço e o Vigário questiona: “em que sentido, portanto, a matéria se
movimenta necessariamente? Toda a matéria em corpo possui um movimento uniforme ou
cada átomo tem seu próprio movimento?” (ibidem, p. 320). Se o primeiro caso for verdade, o
mundo deve formar uma unidade indivisível, sólida, com uma única direção; se tomássemos a
segunda ideia como verdade, deveríamos assumir a fluidez, sendo impossível de verificar se o
átomo se movimenta para esquerda ou direita, para baixo ou para cima e, independente de
cada caso for o correto – ou todos os casos serem válidos – , teríamos infinitos problemas se
tentássemos defender tal posicionamento3.

3
O Vigário atesta a impossibilidade desse processo: “Dar à matéria o movimento por abstração é pronunciar
palavras que não significam nada, e dar-lhe um movimento determinado é supor uma causa que o determine.
Quanto mais multiplico as forças particulares, mais causas novas tenho para explicar, sem nunca encontrar
nenhum agente em comum. Longe de poder imaginar alguma ordem no concurso fortuito dos elementos, sequer
posso imaginá-los em combate, e o caos do universo me é mais inconcebível que sua harmonia” (ROUSSEAU,
2017, p. 320)
O Vigário não se convence pelos argumentos materialistas e não pode negar a
constatação que sua observação do mundo lhe fornece: que o movimento procede
inteligentemente, ou melhor, constantemente, sendo possível extrair da natureza as leis pelos
quais determinados fenômenos são regidos. Assim, o segundo artigo de fé atesta a ordem da
natureza e, consequentemente, a existência daquele que a ordena:

Se a matéria movida me mostra uma vontade, a matéria movida segundo


certas leis me mostra uma inteligência – é meu segundo artigo de fé. Agir,
comparar e escolher são operações de um ser ativo e pensante. Logo, esse ser
existe. (ROUSSEAU, 2017, p. 320-1)
Seguindo a cosmovisão mecanicista de mundo, fundamentou tal ordenação sem
recorrer aos princípios materialistas e deixando de conceber uma única substância, Rousseau
nos mostra que sua influencia cartesiana não se esgota no uso da dúvida para formulação de
seu arcabouço de verdades e na sua física, cuja tese fundamental está na ocorrência do
movimento comunicado, mas precisamente na acepção do dualismo – mesmo que o autor
genebrino não se coloque à disposição de resolver o problema da ligação entre alma e corpo.

Os dois primeiros artigos de fé do Vigário constatam a existência de universo


ordenado e a existência de um Ser inteligente que forneceu a harmonia do movimento dos
corpos ativos do mundo, que ao nosso olhar, quando compreendidas, nomeamos de leis da
natureza. Não apenas, esse Ser “não se contentou em estabelecer a ordem; tomou medidas
certas para que nada pudesse perturbá-la”, pois suas leis garantem a manutenção saudável do
relógio uma vez que suas peças estão perfeitamente posicionadas, impedindo a imprecisão de
sua operação. Melhor dizendo, na voz do Vigário, “[...] não vejo nada que não seja ordenado
no mesmo sistema e não concorra para o mesmo fim – a saber, a conservação do todo na
ordem estabelecida.” (ROUSSEAU, 2017, p. 322-3). A esse Ser, damos o nome de Deus.

O olhar do Vigário para a formulação dos dois artigos de fé esteve inscrito dentro do
campo objetivo da física, estacionado em debates de ordem ontológica se posicionando frente
ao materialismo francês de seu século. O terceiro e último artigo de fé se dá na volta ao olhar
subjetivo, de maneira semelhante àquela do início da Profissão de Fé cujo foco foi estabelecer
seus pressupostos e método.

Apesar de estar convencido de que suas verdades são inquestionáveis, o Vigário


parece perceber que existe dois domínios em que a vida acontece. No domínio da natureza, a
ordem é inquestionável e nos é apresentada evidentemente, sendo possível fazer verificações
de diversas regularidades de fenômenos e movimento de corpos. Entretanto, no mundo dos
homens, no domínio da vida social, não nos parece tão verdadeiro que isso se siga
necessariamente das mesmas condições que a natureza dispõe. “Onde está a ordem que eu
observara?”, indaga o Vigário e, não somente, explicita o contraste entre os dois domínios:
“o quadro da natureza me oferecia apenas harmonia e proporções, o do gênero humano me
oferece apenas confusão e desordem! [...] Os animais são felizes, apenas o seu rei é
miserável!” (ROUSSEAU, 2017, p. 324).

Frente a esse cenário aparentemente contraditório, Rousseau na voz do Vigário de


Sabóia nos apresenta sua concepção de sujeito, que se percebe ora capaz de seguir sua
vontade e decidir entre o querer e o não querer, ora direcionado pelo impulso das paixões,
dizendo ser ao mesmo tempo escravo e livre 4. No âmbito corpóreo, as impressões que
recebemos e como agem conosco é independente de nossa vontade e, neste aspecto, nosso
somos passivos, entretanto, as ideias provenientes de impressões sensíveis e todo o processo
de comparação e divisão de ideias, e consequentemente nossa decisão de ação no mundo,
provém da atividade de nossa razão. Somos, ao mesmo tempo, passivos e ativos, e essa é a
concepção de sujeito tida por Rousseau. Podemos conter ou ceder ao fluxo das paixões,
recusar, resistir, consentir, impor limites às tentações, em poucas palavras, “tenho sempre o
poder de querer, não a força de executar” (ROUSSEAU, p. 326).

Em nosso processo ativo do juízo, temos o entendimento e sempre escolhemos aquilo


que entendemos como o bom ou melhor para nossa conservação. O autor não vê como
possível que tenhamos a liberdade de escolher o pior para nós e, caso fizéssemos escolhas que
nos prejudicassem, sua causa estaria no juízo equivocado. A constatação do terceiro artigo de
fé visa estabelecer que o homem tem o único principio ativo livre, diferentemente do caso de
animais que agem institivamente, a liberdade do homem “consiste nisto mesmo: que eu
somente possa querer aquilo que me é conveniente ou que eu considere como tal, sem que
nada que me seja estranho me determine” (ROUSSEAU, p. 327). Aqui nos deparamos com
um paradoxo que envolve a existência histórica do ser humano, a saber, de que somos livres
em nossa decisão, principalmente para agir contra nossa própria natureza, uma vez que,
imaginando nos ser bom, tenhamos escolhido aquilo que nos fosse danoso. Mas a
Providência, defende o Vigário, não permite que a desordem no mundo dos homens afete o
domínio da natureza e, desse modo, temos de forma precisa a ordem física, boa porque se
4
A formulação do sujeito passivo, no âmbito do corpo, no momento de receber impressões do mundo, e ativo no
processo de julgar as ideias simples recebidas sensivelmente nos é fornecido preliminarmente no momento que
Rousseau faz a inversão do cogito cartesiano, no primeiro momento da Profissão de Fé. Entretanto, vemos a
importância argumentativa dessa premissa no momento que o autor irá sustentar o terceiro artigo de fé. Para uma
apresentação da concepção de sujeito em Rousseau, ver JUNIOR, P. F. Une philosophie pour moi: Rousseau
leitor de Descartes contra o materialismo. Contemplação, Marília, n. 15, v. 1, p. 199-220, 2017.
mantém ordenada, e a ordem moral, no espectro humano, que se dirige na contramão da
natureza e por isso desordenada.

2.2 O mal como invenção humana

A frase que inicia o Livro I do Emílio “Tudo é bom ao sair das mãos do Autor das
coisas; tudo degenera entre as mãos do homem” (ROUSSEAU, 2017, p. 41) se faz mais clara
depois que observamos o desenvolvimento dos três artigos de fé. O mal, portanto, só existe no
âmbito da moralidade, reflete apenas no homem e sua causa está nele mesmo. Rousseau nos
havia demonstrado anos antes em seu Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da
Desigualdade entre os Homens (1756), ao expor o processo imaginário da saída do homem
em seu estado de natureza à condição social que a origem da desigualdade e,
consequentemente, a maldade tem como único responsável o homem.

A concepção de homem natural que Rousseau defende se articula com os preceitos


expostos em sua Profissão de Fé. Nesta condição o homem está inserido no sistema ordenado
da natureza e se segue como uma peça pertencente ao conjunto harmônico. Seu corpo é a
única ferramenta que utiliza para superar os obstáculos da natureza e poucas são as
finalidades de sua ação: ele busca se alimentar, repousar e reproduzir; foge das experiências
que lhe causaram dor, foge da dor e da fome. De todo caso, nesse momento todos os seus
apetites são atendidos imediatamente visando sua conservação e vive isolado, pois contém em
si todos os recursos para atingir esse fim: seus braços e suas pernas são apropriadas para a
vida na natureza, consegue escalar lugares, caçar sua presa e escapar de algum predador se for
preciso.

Esse homem imerso na natureza em igual condição frente aos seus semelhantes tinha
como condutor de sua ação conduzida a vontade que era atendida imediatamente em resposta
aos apetites. O sujeito natural possui uma unidade entre seu ser e sua ação, ou melhor, seu ser
se apresenta transparente, atendendo o pedido de sua natureza em todas ocasiões da vida. A
concepção do homem naturalmente bom se dá na conformidade entre a natureza e sua
atividade no mundo, no domínio da bondade e ordem física, uma vez que não há norma
estabelecida para interpretarmos seus gestos moralmente.

Duas são as virtudes naturais que o homem natural tem como guia para a conduta
imediata: o amor de si e a piedade. O primeiro faz com que o homem satisfaça seus apetites
naturais sem ultrapassá-los como, por exemplo, comer ou repousar para além daquilo que o
corpo pede, estes excessos só se encontram nas sociedades. O amor de si segue, portanto, a
máxima da bondade natural: “Alcança teu bem com o menor mal possível” (ROUSSEAU,
2000, p. 79). Dito isso, a piedade é paixão que se direciona para o exterior e visualiza a
condição que outros estão, estendendo o amor de si para todos os seres levando a
“conservação mútua de toda a espécie” (ROUSSEAU, 2000, p. 78-9), esta paixão faz com
que o homem ao se deparar com alguma situação de dor e sofrimento de outro ser vivo sentirá
uma empatia e que o impulsiona a socorrê-lo. Tal paixão esclarece o significado da máxima
anterior, entendendo que em condições naturais não há excessos, come na medida que sua
fome o provoca, evitando casos de satisfação pela dor de outros ou, um exemplo mais
corriqueiro, que aconteça caça esportiva dado o cenário da vida natural. Vejamos, então, o
percurso resumido que o autor nos fornece acerca da condição natural do homem:

Concluamos que, errando pelas florestas, sem indústrias, sem palavra, sem
domicílio, sem guerra e sem ligação, sem nenhuma necessidade de seus
semelhantes, bem como sem nenhum desejo de prejudica-los, talvez, sem
sequer reconhecer alguns deles individualmente, o homem selvagem, sujeito
a poucas paixões e bastando-se a si mesmo, não possuía senão os
sentimentos e as luzes próprias desse estado, no qual só sentia suas
verdadeiras necessidades, só olhava aquilo que acreditava ter interesse de
ver, não fazendo sua inteligência maiores progressos do que a vaidade. [...]
Então não havia nem educação, nem progresso; as gerações se
multiplicavam inutilmente e, partindo cada uma sempre do mesmo ponto,
desenrolavam-se os séculos com toda a grosseria das primeiras épocas; a
espécie já era velha e o homem continuava sempre criança (ROUSSEAU,
2000, p. 82).
O ser humano para deixar o isolamento e passar a viver em conjunto e da dependência
mútua de outros precisou alguma ocorrência natural, como inundações, terremotos ou
escassez de recursos, que fez com que todos esses seres independentes se forçassem a habitar
um espaço comum e, consequentemente, com o contato mais recorrente foi-se formando
algumas relações. Num primeiro momento, apenas caçavam em conjunto visando atingir mais
facilmente o seu objetivo, conforme muitos séculos e a aproximação mais frequente, surge a
estrutura da família. E, como sempre se segue progressivamente, a junção de algumas famílias
originou as tribos e a partir desse momento surgem alguns costumes que regem o modo de
vida de cada tribo em particular e, principalmente, constitui-se as primeiras línguas comuns.
Na perspectiva de Rousseau, a humanidade só prosseguiu desta maneira porque foram
forçados a viverem juntos.

Jean-Jacques Rousseau, imaginando como seria essa vida, percebe que a desigualdade
que encontramos em sociedade não tem sua causa na natureza do homem. A desigualdade
física – altura, peso, cor de cabelo, olhos, entre outros – não legitima a desigualdade social
uma vez que em um ambiente com recursos para todos, cabe ao mais forte vencer uma disputa
e o perdedor segue em uma outra direção, isto é, a variedade em questão física não pode servir
de justificativa. No âmbito moral e psicológico, o homem se encontrava na mesma condição
e, desse modo, não também não é valido qualquer argumento que utilize esses dois campos
para legitimar a desigualdade acontecida em sociedade. Qual seria, então, sua causa?

O argumento para o surgimento da desigualdade e, também, para o surgimento da


sociedade é de que a partir da fixação em determinado território, o aumento populacional
ocasionaria a escassez de alimentos. Deste empecilho a perfectibilidade humana forneceria
duas invenções revolucionárias, a saber, a metalurgia e a agricultura. Esse é o passo
fundamental para determinar espaços e funções que exigiram um trabalho árduo e sedentário,
assim, Rousseau segue a tradição de John Locke e entende que é através do trabalho que se
institui a propriedade. Todavia, há uma distinção precisa entre propriedade e propriedade
privada pois, um fruto retirado de uma árvore ou uma água tomada de um rio para sanar suas
necessidades fisiológicas ao tomar para si o homem as faz como sua propriedade, por outro
lado tomar um espaço só para si e remover da utilização comum própria da vivência do estado
de natureza implicará em uma invenção fundamental que demos o nome de sociedade civil:
“o verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno,
lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acredita-lo”
(ROUSSEAU, 2000, p. 87).

A propriedade privada é a motivação para que seja preciso firmar o contrato social. Se
antes havia um modo de vida em que estaria presente um grande compartilhamento de
alimentos, terra, dentre outras coisas, ao se retirar algo do uso de todos certamente causaria
problemas para a convivência e, assim, a humanidade teria tido um período de guerra de todos
contra todos pela disputa daquilo que foi retirado do uso comum. Neste conflito a única
garantia do usurpador seria a sua força para manter a propriedade privada e, para cessar os
conflitos e garantir a manutenção dela, o contrato social é instaurado e com ele a força física
que era empregada para proteger a propriedade privada é formalizada e assegurada pela força
da lei. Dessa forma, a passagem do estado de natureza para o estado civil tem como
fundamentação a legalidade da propriedade privada e, por consequência, toda convivência
social é fundamentada pela desigualdade instituída:

Se seguirmos o processo da desigualdade nessas diferentes revoluções,


verificaremos ter constituído seu primeiro termo o estabelecimento da lei e
do direito de propriedade; a instituição da magistratura, o segundo; sendo o
terceiro e último a transformação do poder legítimo em poder arbitrário.
Assim, o estado de rico e de pobre foi autorizado pela época; o de poderoso
e de fraco pela segunda; e, pela terceira, o de senhor e de escravo, que é o
último grau da desigualdade e o termo em que todos os outros se resolvem,
até que novas revoluções dissolvam completamente o Governo ou o
aproximem da instituição legítima (ROUSSEAU, 2000, p. 110)
Por meio da invenção da propriedade privada o homem sofre uma alteração em sua
relação consigo e com o mundo: não age mais em conformidade seu ser, não há mais unidade
entre o que somos e o que fazemos, pois o amor de si deixa de ser condutor da ação imediata e
é trocado pelo amor-próprio, guia mediato entre os meios para obtenção de fins pessoais e,
com ele, todos os vícios humanos surgem, ou melhor, “ser e parecer tornaram-se duas coisas
totalmente diferentes” (ROUSSEAU, 2000, p. 97). A condição de igualdade se perde e com
ela a possibilidade de agir segundo a natureza, o espaço em que haveria uma correspondência
entre natureza e vida humana se torna um espaço artificial que torna possível o luxo, o
excesso e os demais vícios que observamos na sociedade. O homem em sociedade, por sua
vez, estará em conflito ao sentir o amor de si e a piedade convocando sua ação e não podendo
executar por inúmeras questões sociais, estas virtudes inatas serão sufocadas e o homem é
obrigado a conviver num mundo cujas condições de relação são estabelecidas pela injustiça e
desigualdade.

2.3. A corrupção da natureza como produto social

Explicitado o argumento de Rousseau, verificamos que existe um sujeito primeiro que,


ao sair das mãos da natureza, possui virtudes inatas que servem de norte para que sua vontade
livre escolha o melhor para si, que é transformado ao inventar a sociedade, alterando sua
transparência pela artificialidade e aparência, negando o amor de si e afirmando o amor-
próprio. O mesmo movimento acontece em cada ser humano nascido em sociedade: se
observarmos a educação tida na infância, a maldade e corrupção ontológica é ensinada uma
vez é necessária para a conservação da vida em sociedade.

Vemos isso no próprio relato de Jean-Jacques nas Confissões, em que recorda como
foi sua primeira infância no início da obra. Com poucos anos de idade teve que morar com
seu tio, Ministro Lambercier, e era uma criança como qualquer outra: era inocente, fazia suas
travessuras, mas nunca com a intenção ou entendimento de que seu gesto provocaria afetaria
alguém negativamente. Se pergunta o autor: “e como me tornaria mau, se só tinha sob a vista
exemplos de doçura, e ao redor de mim as melhores criaturas do mundo?” (ROUSSEAU,
2008, p. 34). Sua condição de existência se altera a partir da incidência de uma injustiça
sofrida: conhecido como o caso do pente. A senhora Lambercier encontra seu pente quebrado
e atribui a culpa ao pequeno Rousseau que tentava se defender da acusação, mas de nada
adiantou: “o senhor e a senhorita Lambercier reuniram-se, exortaram-me, apertaram-me,
ameaçaram-me” (ROUSSEAU, 2008, p. 40). Acontece, nesse momento, uma ruptura
semelhante à da invenção da propriedade privada, em que “o malefício da aparência, a
ruptura entre as consciências põe fim à unidade feliz do mundo infantil” (STAROBINSKI,
2011, p. 20). Foi neste momento que Rousseau toma contato com a primeira maldade e é
apresentado à lógica presente nas relações da vida social. Tal injustiça provoca na criança
uma reação que o faz repetir a maldade:

O afeto, o respeito, a intimidade, a confiança não mais ligavam os alunos aos


mestres; não os olhávamos mais como a deuses que nos liam o coração;
envergonhávamo-nos menos de proceder mal e tínhamos mais medo de ser
acusados. Começamos a nos esconder, a birrar, a mentir. Todos os vícios da
idade nos corrompiam a inocência e nos afeavam os brinquedos
(ROUSSEAU, 2008, p. 42)
Desse modo, a maldade, corrupção do homem é perpetuada por meio da educação
visando a conformidade do sujeito ao modo de vida que se articula a partir da aparência, da
disputa e dos vícios.

3. Modo de vida solitário: condições de possibilidade para a linguagem e a ética.

Ao retomar as Cartas ao Senhor Presidente de Malesherbes encontramos os


apontamentos dessas duas formas de ser demonstradas no Discurso sobre a Desigualdade e
nas Confissões no momento em que o autor salienta a infelicidade sentido ao estar em Paris,
da preguiça de realizar as formalidades da vida aristocrática e sua exigência até mesmo nas
relações entre amigos. Ao passo que as regras de conduta e o sentimento de censura que o
reprime passa a ser mais recorrente, seu desejo de solidão aumentava. Quando a encontra,
atesta que a data de sua saída da vida parisiense é o momento inicial de sua vida: “ só comecei
a viver em 9 de abril de 1756” (ROUSSEAU, 2005, p. 27). A partir desta afirmação
metafórica entendemos que desfrutar do sentimento de solidão, isolado do meio social, serve
como tentativa de reconciliação com sua essência.

O entendimento de uma história como declínio desemboca em Paris como o ápice da


deturpação da humanidade até então, este processo, enquanto por um lado nos afastávamos da
natureza, o desenvolvimento cognitivo também progrediu. À primeira vista podemos entender
que Rousseau foi um crítico da razão na sua totalidade, mas não é o caso. A razão é criticada
pelo autor no momento que seu produto, o raciocínio, propaga e mantém as relações injustas.
Mas é somente ela, a “razão que conduz o homem ao conhecimento de seus deveres”
(ROUSSEAU, 2017, p. 448) e ela “é a faculdade de ordenar todas as faculdades de nossa
alma de forma adequada à natureza das coisas e a suas relações conosco” (ROUSSEAU,
2005, p. 149). Desse modo, a razão não deve se dedicar às questões que não pode resolver e
deve, por sua vez, se submeter à consciência: a atividade racional é aquela que pode decidir
entre as diversas possibilidades àquela que corresponde à nossa natureza quando ela nos
convoca:

Há, portanto, no fundo das almas um princípio inato de justiça e de virtude,


com base no qual, a despeito de nossas próprias máximas, julgamos nossas
ações e a de outrem como boas ou más, e é a esse princípio que dou o nome
de consciência (ROUSSEAU, 2017, p. 336)
Assim, a consciência torna-se o guia mais seguro para uma ação transparente do
sujeito na relação com os outros, é a maneira pela qual mais próximo se assemelha à
capacidade imediata da ação pela natureza e, logo, constitui a ação boa. Portanto, fazer a
consulta à nossa essência para encontrar os princípios universais da bondade nos fornece
parâmetros para o julgamento das más ações.

Encontramos duas problemáticas para a consciência em sociedade. A primeira é que,


mesmo no campo individual o autor consiga fazer o uso correto da racionalidade ele é
obrigado a assumir riscos ao realizar essa ação, uma vez que diverge da conduta comum da
lógica do amor-próprio Há, também, um segundo empecilho para a própria ação da
consciência em um sociedade uma vez que é mais comum se adequar à totalidade dos vícios
que ao agir por virtude ser condenado por seus contemporâneos. Rousseau, então, identifica a
causa de seu problema:

Depois de ter descoberto ou acreditado descobrir nas opiniões falsas dos


homens a fonte de suas misérias e de sua maldade, senti que somente essas
opiniões podiam tornar-me infeliz, e que meus males e meus vícios
provinham bem mais de minha situação do que de mim mesmo
(ROUSSEAU, 2005, p. 25)
A partir destas condições, percebemos que todas as relações que atravessam a vida
têm como mediação o uso da linguagem através da palavra ou do gesto. A fim de
complementar as problemáticas da vida em sociedade, vejamos como a própria linguagem
sofre a corrupção e inviabiliza que a natureza seja expressa pela voz.

3.1 Origem da Língua e suas conexões com a moral


Em sua obra publicada postumamente intitulada Ensaio sobre a origem das línguas o
autor traça, a partir do processo histórico imaginário que vimos anteriormente, os motivos
para o surgimento da língua, como a primeira convenção humana. Seu surgimento se deu a
partir da necessidade do homem em expressar seu sentimento e seu pensamento para outros
seres humanos através de sinais sensíveis. Esses sinais poderiam ser expressos pelo
movimento ou pela voz; cujo primeiro exigia menos artifícios em seu uso e diz mais por
menos tempo porque a visão toma a coisa diretamente e, assim, o imagético ou figurativo se
torna o meio de comunicação mais direito; por outro lado, o veículo da voz tem sua expressão
vinculada à expressão dos sentimentos do sujeito que emite o som, estes acentos penetram o
coração do ouvinte, o emocionando e inflando suas paixões.

O genebrino analisa as línguas da sua origem até seu ápice na construção de uma
gramática estruturante da fala e tal movimento deve ter demorado séculos. O grito, vogais e
grandes acentos, exclamações vivas e inarticuladas foi a primeira maneira de comunicação
que tivemos, em que não se distinguiria a fala do canto: “Cantar-se-ia em lugar de falar, a
maioria das palavras radicais seria feita de sons imitativos, de acentos das paixões ou de
efeitos dos objetos sensíveis: a onomatopeia far-se-ia sentir continuamente” (ROUSSEAU,
2015, p. 108).

Com o desenvolvimento das luzes os acentos vogais são trocados por novas
consoantes e as ideias assumem o lugar da expressão dos sentimentos, falando mais à razão
que ao coração, e isso se deve à invenção da escrita. O desenvolvimento da linguagem se
expressa em três diferentes maneiras de escrita: os selvagens, àqueles que pintavam objetos
em sua escrita deveriam ter uma língua apaixonada com vogais acentuadas e inarticuladas,
com suas necessidades e a sociedade formadas pela paixão; os povos bárbaros já deveriam ter
firmado um pacto social e viviam sob leis comuns, aqui “se pintam os sons e falam aos
olhos”, isto é, ainda há uma prioridade da voz à escrita; por último, os povos civilizados
decompõem a voz e criam palavras para ter caracteres comuns entre línguas diferentes, em
outras palavras, possuem alfabeto, a escrita que até hoje perdura se segue pela análise e
construção de palavras, sendo um processo estritamente racionalizado, entendido pelo autor
como uma articulação: “a escrita, que parece fixar a língua, é precisamente o que a altera;
ela não muda suas palavras mas seu gênio; ela substitui a exatidão à expressão”
(ROUSSEAU, 2015, p. 115-6).

Em paralelo o processo de transformação da linguagem por meio da racionalização


prosseguiu em conjunto de dois outros conceitos: a melodia e a harmonia, uma vez que
inicialmente a linguagem se associava ao canto: “Assim, a cadência e os sons nascem com as
sílabas: a paixão faz falar todos os órgãos e confere à voz todo o seu brilho; assim, os
versos, os cantos, a palavra, têm uma origem comum” (ROUSSEAU, 2015, p. 145).

O processo de imitação retira da beleza da natureza e cria sua representação a partir


dela, acrescentando a expressão apaixonada de quem o faz, tocando quem escuta ou vê. Tal
imitação confere “vida e alma” e vem “sensibilizar as nossas [almas]” (ROUSSEAU, 2015,
p. 149) emocionando o interlocutor. Esse processo recebe o nome de melodia e nele
conseguimos expressar imagens com movimento, sentimentos, pois, diferentemente da
imitação em desenho, o som consegue transgredir o limite do visível.

A racionalização da melodia, ou melhor, o acréscimo convencional àquilo que já é


perfeito recebe o nome de harmonia e ela se fez presente à musica distinguindo as linguagens,
sendo a ruptura fundamental entre o canto e a fala: teríamos, então, a linguagem melódica,
apaixonada, modificada pela glote e a linguagem harmônica, modificada pela língua e palato:

Uma língua que possui somente articulações e vogais possui portanto apenas
a metade de sua riqueza: ela exprime ideias, é verdade, porém para exprimir
sentimentos, imagens, precisa ainda ter ritmo e sons, isto é, melodia; eis o
que possuía a língua grega e o que falta à nossa (ROUSSEAU, 2015, p. 146)
Dado este quadro geral do entendimento do percurso de uma língua, que iniciaria
melódica e onomatopaica expressando paixões e necessidades até uma língua escrita
organizada por um alfabeto e harmônica, temos um desenvolvimento da discussão sobre a
linguagem não a partir de uma problemática epistemológica, mas moral, visto que se conclui
com o progresso da escrita e a subordinação da linguagem a ela que:

Todas as línguas escritas devem mudar de caráter e perder força ganhando


clareza; que, mais tentamos aperfeiçoar a gramática e a lógica, mais
aceleramos tal progresso e que, para tornar rapidamente uma língua fria e
monótona, basta estabelecer academias entre o povo que a fala
(ROUSSEAU, 2015, p. 121)
Visando enfatizar o conceito de força, importante à discussão aqui proposta, a
música:

Imita os acentos das línguas e as expressões ligadas em cada idioma, a certos


movimentos da alma. [...] Eis onde nasce a força das imitações musicais; eis
onde nasce o domínio do corpo sobre os corações sensíveis (ROUSSEAU,
2015, p. 155)
A linguagem se insere dentro do campo da discussão moral quando o conceito de
força passa a ser abordado, mais precisamente em seu texto Rousseau juiz de Jean-Jacques ou
Diálogos (1772). Ao início do texto, após Rousseau ter falado acerca de um indivíduo que o
tenha feito maldades, o francês – seu interlocutor do diálogo – menciona que esse indivíduo
falava com tanto fausto. Rousseau corrige o francês dizendo que sua fala não era faustosa, e
sim de força e, portanto, nos apresenta uma distinção entre essas duas linguagens: “[a
linguagem faustosa] não excita mais que uma admiração fria e estéril, e, certamente, jamais
me encantaria. Os escritos que elevam a alma e inflamam o coração merecem uma outra
palavra” (ROUSSEAU, 1969, p. 667).

Para esclarecer a questão, Rousseau expõe um mito em que supõe a existência de um


mundo ideal, com as mesmas qualidades do nosso, mas que os homens ali teriam uma
sensibilidade maior com a ordem da natureza:

Como aqui [em nosso mundo real], as paixões são, nele, o móvel de toda
ação, mas são ali mais vivas, mais ardentes, ou talvez apenas mais simples e
mais puras; e por isso mesmo assumem um caráter totalmente diferente.
Todos os primeiros movimentos da natureza são bons e corretos. Eles
tendem o mais diretamente possível à nossa conservação e nossa felicidade,
mas tão logo lhes falte força para prosseguir em sua direção original através
de tanta resistência, eles se deixam defletir por mil obstáculos que,
desviando-os do verdadeiro fim, fazem-nos tomar caminhos oblíquos em que
o homem esquece sua destinação original. O erro de julgamento, a força dos
preconceitos, ajudam muito a nos fazer tomar esse desvio, mas esse efeito
provém principalmente da fraqueza da alma que, seguindo frouxamente o
impulso da natureza, é desviada pelo choque com um obstáculo do mesmo
modo que uma bola toma a trajetória de ângulo de reflexão, ao passo que
aquele que segue mais vigorosamente seu rumo não se desvia, mas, como
uma bala de canhão, vence pela força o obstáculo, ou se amortece e tomba
ao ir de encontro a ele (ROUSSEAU, 1959, p. 668-9)
Aqui temos diferentes maneiras com que a paixão se encontra com os objetos do
mundo. De maneira reta, segue fielmente a natureza e a força o fará ultrapassar os obstáculos
atingindo seu fim de conservação e felicidade, ou irá tombar com o obstáculo e não seguirá
em frente. O caminho oblíquo será aquele em que a paixão irá se desviar do guia da natureza
ao se encontrar com os obstáculos e, com isso, se esquecerá de sua finalidade natural. Tanto o
fausto quanto a força pertencem à uma linguagem reta da natureza, seu dizer não escapa
moralmente daquilo que seria o guia bom e correto. Por outro lado, o movimento oblíquo da
linguagem escapa do guia que a natureza fornece ao sujeito e por isso lhe falta virtude.

Quando Rousseau estabelecia as características da primeira linguagem musical e a


comparava com a linguagem gramatical e estruturada, conferia à primeira que “em lugar de
argumentos teria sentenças; persuadiria sem convencer e pintaria sem raciocinar”
(ROUSSEAU, 2015, p. 109), em outra passagem o autor afirma que “ao cultivar a arte de
convencer, perdeu-se a de emocionar” (ROUSSEAU, 2015, p. 131). Daqui temos o
argumento que aquilo que é pintado na representação possuindo uma finalidade é direto e sua
finalidade é convencimento daquele que o escuta; já as sentenças expressas pelo sujeito são
isentas de uma finalidade que o motive a dizer, há, então, uma representação indireta que
persuade o receptor de maneira a encantá-lo.

De modo geral a música “não representará diretamente essas coisas, mas excitará
na alma os mesmos sentimentos que experimentamos ao vê-las” (ROUSSEAU, 2015, p. 164)
e para isso tem-se a importância da interpretação, como assinala Bento Prado Junior, que
tanto para o músico bem representar como o ouvinte ser tocado pela audição ambos devem ter
tido uma experiência daquilo que a representação imita.

Ao movimento oblíquo se relaciona a linguagem vinculada à harmonia, que


acrescenta artificialidades ao que é natural; o movimento reto, por sua vez, se relaciona com a
melodia. Vemos, portanto, três níveis pelo qual o sujeito emite a linguagem e sua
diferenciação é precisamente moral: o primeiro que possui a vontade de convencer que está
presente na vida social, ambiente que gera e transmite o vício da corrupção da natureza do
homem, principal obstáculo que desvia o indivíduo desde o seu processo educacional até ser
consolidado em cidadão e que, assim, rege a estrutura linguística comum; o segundo seria a da
linguagem faustosa, esta que ainda que não tenha uma vontade de convencimento, segue o
movimento reto da natureza mas o sujeito ainda não é capaz de mover a alma de seu ouvinte,
se caracteriza por ser uma “mera elevação de grau que pode provocar uma admiração fria e
estéril mas que é incapaz de encantar” (JUNIOR, 2018, p. 131); por fim, a linguagem que
possui força demonstra um indivíduo que detém a capacidade de encantar, isto é, “aquele que
é capaz de pintar os encantos e a beleza do Bem é necessariamente virtuoso [...] e a
diferença da linguagem é, imediatamente uma diferença moral” (JUNIOR, 2018, p. 131).

3.2 A incapacidade do uso da consciência em sociedade


Uma vez que a imitação depende de ter tido contato com a natureza para representá-
la, assim, a linguagem com força deve utilizar a consciência como guia pois por meio dela
pode se articular conforme o amor de si e a piedade. Entretanto, não são todos que conseguem
nortear suas ações segundo a consciência e, ao passo que ela é a cada momento deixada de
lado, conforme constata o Vigário de Sabóia, “ela finalmente se desencoraja, à força de ser
repelida” (ROUSSEAU, 2017, p. 339): tal é a circunstância que o homem se formula e se
corrompe à linguagem oblíqua. Assim, “não basta que esse guia exista, é preciso saber
reconhecê-lo e segui-lo” (ROUSSEAU, 2017, p. 339) e esta é a maior dificuldade para a força
da linguagem.

Rousseau em uma de suas passagens das Confissões afirma ter lido alguns de seus
livros em público, se expondo de maneira transparente aos seus semelhantes e que, ao
finalizar sua leitura, percebeu ter gerado engodo na plateia. Bento Prado Junior comenta esse
caso, reforçando a dificuldade do uso da consciência em um ambiente tomado pelo amor-
próprio:

É peculiar a passagem em que Rousseau conta sua experiência ao ler suas Confissões
em público e, ao fim, ter gerado engodo na plateia. Deste caso Bento Prado explicita a
ineficiência da transparência dentro do ambiente social cujas relações são estabelecidas pelo
amor-próprio:

Além da teoria, no espaço da experiência vivida da fala, alguma coisa torna


impotentes as palavras e as condena ao equívoco. Longe de ser o
maravilhoso espelho da Razão, o lugar da verdade, a linguagem seria sempre
o lugar do mal-entendido e do engodo, um biombo interposto entre os
homens (JUNIOR, 2018, p. 111)
Para que essa experiência fuja de tal dificuldade é preciso uma condição
aparentemente utópica da linguagem, do falante e do ouvinte se relacionarem de maneira
transparente, ambos em condição de virtude norteados pela natureza.

É para a resolução desta dificuldade que encontramos no Segundo Prefácio do


romance Júlia ou a Nova Heloísa (1761) a ideia de linguagem do solitário. Rousseau
contestado por seu interlocutor do diálogo acerca da expressão dos sentimentos dos
personagens, que desfrutam da solidão, diz que é daí que provém o poder da imaginação e a
capacidade de expressar a linguagem com força: “e como exprime todos os seus sentimentos
em imagens, sua linguagem é sempre figurada” (ROUSSEAU, 1994, p. 29) e rebatendo seu
editor, diz que “se a força do sentimento não nos choca, sua verdade nos toca, e é assim que
o coração sabe falar ao coração” (ROUSSEAU, 1994, p. 28). Dada a situação de dois
personagens solitários, vemos Rousseau expor a possibilidade da transparência da linguagem,
e, assim se segue o que diz ser a linguagem do solitário.

4. Considerações Finais
A atitude tomada por Jean-Jacques Rousseau de isolar-se da sociedade serve como
resposta no âmbito físico, em questão de referenciar um espaço que distingue sociedade e
àquele em que não se estrutura das mesmas diretrizes que esta, ou melhor dizendo, que o
ambiente doméstico e campestre habitado pelo autor tem como função limitar dentro do que é
possível individualmente a localidade segura não fundamentada na desigualdade. Assim como
a natureza habitada pelo homem em estado de natureza, condição de possibilidade para a
liberdade e, por consequência, da igualdade, sua casa serve a esse propósito. Na simplicidade
viva ele, sua esposa Thérèse, seu cão e sua criada e estabelecia-se a relação entre iguais,
conforme o genebrino nos relata em suas Quatro Cartas:

Ceava com muito apetite junto a minha pequena criadagem, nenhuma


imagem de servidão e de dependência perturbava a benevolência que a todos
nos unia. Meu próprio cachorro era meu amigo, não meu escravo; tínhamos
sempre as mesmas vontades, mas jamais ele me obedeceu (ROUSSEAU,
2005, p. 30)
Assim como a sociedade é uma invenção do homem, o espaço do solitário também o
é. Sua criação visa fornecer todas as condições que possibilitem a vida virtuosa sem o medo
de ser penalizado por isso e, dessa maneira, a condição de existência solitária não serve como
um projeto político com a finalidade de resolver os problemas da vida social, mas que se basta
na resolução das angústias individuais do autor e, para nós leitores, como discussão de como
construímos espaços em que seja possível relações saudáveis.

Por sua vez, o sentimento de solidão não é permanente e pode ser abalado a qualquer
contato com os homens que escapam às regras da transparência. A exemplo disto temos o
caso do hóspede presente na casa de Rousseau enquanto o autor escrevia sua terceira carta no
dia 26 de janeiro de 1762, dizendo que “um corpo que sofre tira ao espírito sua liberdade, de
agora em diante, não estou mais sozinho, tenho um hóspede que me importuna, preciso
livrar-me dele para pertencer a mim mesmo” (ROUSSEAU, 2005, p. 31). Este hóspede é o
suficiente para que toda ordenação do espaço entrasse em colapso, tirando o equilíbrio de
quem antes estava ali, pois uma vez que um corpo entra em contato novamente com a doença,
todas as relações são tornadas oblíquas.

A partir desses apontamentos encontramos na filosofia de Rousseau modos pelos


quais o sujeito tem uma mudança ontológica. A unidade entre ser e parecer presente na
condição de existência do homem natural é perdida a partir do surgimento do Estado e da
sociedade à medida em que o parecer prevalece sobre nossa essência. Do ponto de vista
moral, junto da aparência trocamos o amor de si pelo amor-próprio e todos os vícios se
camuflam de virtude na vida social e regulam nossas relações com os outros. Frente a isso, a
construção de outro espaço artificial contraposto à sociedade serve de possibilidade da
reconciliação ontológica e, consequentemente, a ética e a linguagem são viabilizadas entre os
sujeitos pertencentes a esse espaço.

Como nos assegura o Vigário de Sabóia: “Ó, sejamos primeiramente bons, e depois
seremos felizes” (ROUSSEAU, 2017, p. 329). A felicidade, para Jean-Jacques Rousseau, se
refere diretamente à moral e como todo ser humano, em sua trajetória pessoal lançou-se na
busca da felicidade na vida solitária.

Demonstramos, portanto, como a noção de solidão que se caracteriza por ser a


condição em que é possível ao homem ser bom e feliz que nos é apresentada em suas obras
autobiográficas é consistentemente articulada em conjunto com conceitos filosóficos que
abrangem diversos temas e, em especial, o campo da moral e sua articulação com a
linguagem.

Referências

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Marques (Org). Carta a Christophe de Beaumont e outros escritos sobre a Religião e a Moral.
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______. Júlia ou A Nova Heloísa. Trad. Fúlvia Moretto. Campinas: Hucitec, 1994
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STAROBINSKI, J. Jean-Jacques Rousseau: a transparência e o obstáculo. Trad. Maria
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