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Universidade Federal de São Carlos – UFSCar

Estudos Linguísticos: Discurso


Profª. Drª. Vanice Maria Oliveira Sargentini

Trabalho Final:
Os padrões culturais de gênero em Me Chame Pelo Seu Nome, de
André Aciman

Graduando:

São Carlos
2019
I. Justificativa.

Me Chame Pelo Seu Nome é um romance de 2007 do escritor norte-americano André


Aciman que centra-se numa florescente relação romântica entre um garoto judeu
americano-italiano de 17 anos, intelectualmente precoce e curioso, chamado Elio
Perlman, e um visitante americano judeu de 24 anos estudioso chamado Oliver, na
década de 1980 na Itália. Na obra, há um trecho específico, na página 105, em que Elio
denomina a si mesmo e a Oliver como “Homem-Mulher”. Através desse trecho,
busca-se analisar os padrões culturais de gênero intrínsecos na sociedade que
influenciam tal discurso na obra.
Pode-se dizer, então, que as motivações deste trabalho centram-se nos seguintes
questionamentos: O que classifica um “homem-mulher”? Qual é o papel do homem e
da mulher, na obra e na sociedade, para que haja sentido nesta expressão? O que isso
pode refletir na cultura LGBTQIA+?

II. Introdução

A análise aqui proposta dá-se através da Análise do Discurso de linha francesa (AD),
fundada por Pêcheux anos anos 60, e postulada no Brasil por Eni Orlandi nos anos 80.
A língua é vista como uma mediação entre o homem e a realidade natural e social, e é
trabalhada na observação do sujeito falando, consequentemente sua visão de mundo e
sua ideologia.
A Análise de Discurso não trabalha com a língua enquanto um sistema
abstrato, mas com a língua no mundo, com maneiras de significar, com
homens falando, considerando a produção de sentidos enquanto parte
de suas vidas, seja enquanto sujeitos seja enquanto membros de uma
determinada forma de sociedade. (ORLANDI, 2009, p. 15-16)

Orlandi acrescenta que a Análise do Discurso reflete sobre a materialização da


linguagem na ideologia, e a manifestação da ideologia na língua, e citando Pêcheux
(1975), diz que não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia, ou seja, há
a intrinsecabilidade entre o sujeito, a língua e a ideologia, e cabe a essa área observar
essa relação e compreender seus sentidos em relação aos sujeitos.
Portanto, partindo desta perspectiva de análise discursiva, apropria-se aqui de algumas
concepções teóricas, como: formações discursivas, formações Ideológicas, memória
discursiva e, enfim, a posição-sujeito, para discutir e explicitar a visão do papel dos
gêneros binários na obra Me Chame Pelo Seu Nome, de André Aciman
Lauretis (1994) diz que gênero deriva de diferentes veiculações, como cinema,
discursos, epistemologias e práticas críticas institucionalizadas, tanto quanto práticas
da vida cotidiana. (LAURETIS,1994, p.208), porém, no presente trabalho, será seguido a
linha de Joan Scott (1986), que põe gênero como categoria de análise em seu artigo
“Gênero: uma categoria útil de análise”, na American Historical Review. E como
categoria, ela propõe a perspectiva de gênero para análise, inclusive, das estruturas e
dos discursos políticos:

O gênero é uma das referências recorrentes pelas quais o poder político


tem sido concebido, legitimado e criticado. Ele não apenas faz referência
ao significado da oposição homem/mulher; ele também o estabelece.
Para proteger o poder político, a referência deve parecer certa e fixa,
fora de toda construção humana, parte da ordem natural ou divina.
Desta maneira, a oposição binária e o processo social das relações de
gênero tornam-se parte do próprio significado de poder; pôr em questão
ou alterar qualquer de seus aspectos ameaça o sistema inteiro (SCOTT,
1990, p.92).

Estudar Gênero significa estabelecer um recorte sobre aspectos da realidade social


existente – no presente e/ou no passado – que têm como peça fundamental a
organização de papéis sociais baseada numa imagem socialmente construída acerca
do que foi consolidado como sendo masculino ou feminino por exemplo.
Portanto, procura compreender como a ideia de uma masculinidade hegemônica
influencia nas relações, tanto na vida real, quanto na literatura.

III. Corpus

A casa onde Elio passa os verões é um verdadeiro paraíso na costa italiana, parada
certa de amigos, vizinhos, artistas e intelectuais de todos os lugares. Filho de um
importante professor universitário, o jovem está bastante acostumado à rotina de, a
cada verão, hospedar por seis semanas na villa da família um novo escritor que, em
troca da boa acolhida, ajuda seu pai com correspondências e papeladas. Uma
cobiçada residência literária que já atraiu muitos nomes, mas nenhum deles como
Oliver.
Elio imediatamente, e sem perceber, se encanta pelo americano de vinte e quatro anos,
espontâneo e atraente, que aproveita a temporada para trabalhar em seu manuscrito
sobre Heráclito e, sobretudo, desfrutar do verão mediterrâneo. Da antipatia impaciente
que parece atravessar o convívio inicial dos dois surge uma paixão que só aumenta à
medida que o instável e desconhecido terreno que os separa vai sendo vencido. Uma
experiência inesquecível, que os marcará para o resto da vida.
O livro inspirou o filme dirigido por Luca Guadagnino, aclamado nos festivais de Berlim,
Toronto, do Rio, no Sundance, e foi um dos principais candidatos ao Oscar de 2018.

[disponível em: http://tiny.cc/ozyg8y. Acesso: 18/06/2019]


O termo que proponho analisar se encontra dentro da seguinte passagem:

Os campos ondulados do vale que levava às colinas pareciam sentar


sobre uma névoa crescente verde-oliva: girassóis, videiras, as lavandas
esparsas e as oliveiras rasteiras e humildes, curvadas como espantalhos
velhos e enrugados, olhando pasmas pela nossa janela quando
estávamos nus na cama, o cheiro do seu suor, que era o cheiro do meu
suor, ao lado do meu homem-mulher, e eu seu homem-mulher, e à
nossa volta o aroma do sabão de camomila da Mafalda, que era o
aroma do mundo vespertino da nossa casa. (ACIAMAN, p. 214)

IV. Análise

Como princípio da análise, proponho-me a revelar as formações ideológicas e


discursivas evidentes no enunciados recortado do livro. Desse contexto, vale-me
advertir, inicialmente, que o sentido não existe em si, mas é determinado pelas
posições ideológicas dispostas no processo sócio-histórico em que as palavras são
produzidas (ORLANDI, E.). É nesse contexto, portanto, que assumimos posições
ideológicas a partir do lugar onde falamos e de onde estamos inseridos.
Pode-se afirmar que a obra se inscreve em uma formação discursiva (FD) sexista –
não necessariamente machista –, que tem como base formações imaginárias distintas
para cada um dos gêneros. Mussalim (2003, p.125) que explica que, na Análise do
Discurso desenvolvida por Pêcheux, as Formações Discursivas, regidas pelas
formações ideológicas, constituem o lugar em que ideologia e discurso se encontram.
Em suas palavras:

Como uma FD é um dos componentes de uma formação ideológica


específica, o fechamento, o limite que define uma formação discursiva é
instável, pois ela se inscreve em um espaço de embates, de lutas
ideológicas. Assim, uma FD não consiste em um limite traçado de
maneira definitiva; uma FD se inscreve entre diversas formações
discursivas, e a fronteira entre elas se desloca em função dos embates
da luta ideológica, sendo esses embates recuperáveis no interior mesmo
de cada uma das FDs em relação. (MUSSALIM, 2003, p. 125)

Assume-se que o narrador descreve a si mesmo e seu amante como


“homens-mulheres” devido ao fato de, no ato sexual, haver funções “ativo” e “passivo”,
e ambos não terem esses papéis fixos entre si, contendo passagens em que fica
evidente que há revezamento de papéis.
É muito comum casal homossexual ouvir a pergunta “quem é a mulher da relação”, e
geralmente tem-se a intenção de saber quem cumpre certos papéis claros em um
sistema heteronormativo perpetuado ao longo de toda a história da sociedade, cabível
dentro da definição de Orlandi (2009) para Formação Discursiva (FD), em que a autora
diz que este conceito se define como aquilo que numa formação ideológica pré
estabelecida, seja por uma conjuntura sócio histórica, no caso, determina o que é dito;
juntamente com Pêcheux (1993), que define FD como um conjunto complexo de
atitudes e representações que não são nem individuais, nem universais, mas se
relacionam mais ou menos diretamente a posições de classes em conflito umas com as
outras. Agrega-se tudo com o conceito de Formação Ideológica:

É porque as formações ideológicas têm um caráter regional que elas se


referem às mesmas “coisas” de modo diferente (Liberdade, Deus, a
Justiça, etc.), e é porque as formações ideológicas têm um caráter de
classe que elas se referem simultaneamente às mesmas “coisas”.
(Pêcheux, 1990, p.259)

A historicidade de tal formação discursiva se faz presente na obra, implicitamente


denominando o papel do homem e da mulher no quesito gênero e sexualidade. Judith
Butler publica “Gender Trouble“, que no Brasil foi lançado em 2003 com o título
“Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade“, mostrando o caráter
performativo do gênero. Nele, ela questionou a ideia de que o gênero fosse uma
espécie de “interpretação cultural do sexo” - no caso o último sendo biológico. Para
Judith Butler, a ideia de performatividade de gênero compreende a noção de que sexo
e gênero são discursivamente criados e que, ao se desnaturalizar o sexo, deve-se
também desnaturalizar o gênero. Portanto, não se trata de negar a existência de sexo
ou de gênero, mas de historicizar tais diferenças, procurando analisar as estratégias
discursivas que as consolidaram, e ainda propôs a reflexão sobre as armadilhas na
naturalização do gênero.
Outro trecho que evidencia a visão do feminino na relação homossexual é o seguinte:

Se nada disso funcionasse, eu avançaria sobre ele, que resistiria,


lutaríamos, e eu faria de tudo para excitá-lo quando ele me prendesse,
envolveria seu corpo com minhas pernas como uma mulher, (...)
(ACIMAN, 2007, p. 105)

A associação do gênero feminino ao papel passivo na relação sexual entre dois


homens mostra essa formação discursiva presente na fala da personagem, um reflexo
da sociedade, seja dos anos 80, época em que se passa a história, ou do Séc. XXI,
quando a obra foi escrita.
V. Considerações Finais

A formação discursiva apresentada no termo “homem-mulher” reflete e perpetua


interdiscursos pejorativos na comunidade LGBTQIA+, propagando a binaridade de
gêneros, o que apaga algumas identidades, como por exemplo transsexuais e
gênero-flúido. Também equipara o conceito de passivo e/à mulher, anulando a
identidade de gênero do homem cisgênero gay, assimilando-o com um gênero que não
o seu, e diminuindo sua identificação. O homem gay, seja ele ativo ou passivo, nunca
será uma mulher. A identidade de gênero está desassociada da orientação sexual e
suas práticas.
Porém, é necessário explicitar que a AD é de natureza especulativa e interpretativa, ou
seja, não se assume aqui uma verdade concreta, mas sim uma possibilidade da
mesma. A análise análise é a perspectiva do analista sobre seu objeto de estudo. A
análise de discurso não é uma área fácil para se trabalhar, pois sempre nos coloca
defronte a uma sensação de incompletude, devido a esse caráter aberto.
Aqui, tive como objetivo, a partir dos conceitos teóricos citados, evidenciar
como a homossexualidade e o gênero é abordado através dos discursos selecionados,
onde, em sua grande parte, se pautam numa posição ideológica sexista
heteronormativa para proferir inverdades prejudiciais à uma condição natural humana
que até hoje luta para combater esses estigmas. Considero, portanto, um tema
bastante pertinente, visto que atualmente cresce estigmas sobre estudos de gênero,
que apenas buscam a maior compreensão e aceitação da multifacetada identidade do
ser humano.

VI. Referências

ACIMAN, André. Me chame pelo seu nome / André Aciman ; tradução Alessandra
Esteche. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Intrínseca, 2007.

BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. 8ª


edição. São Paulo: Civilização Brasileira, 2015.
GUIMARÃES, E. M.; DA SILVA, S. D. Cromossomos X e Y: o social e o biológico no
discurso sobre gênero na superinteressante. Revista Científica Ciência em Curso – R.
cient. ci. em curso, Palhoça, SC, v. 4, n. 2, p. 85-96, jul./dez. 2015.

LAURETIS, Teresa. A tecnologia do gênero. Tradução de Suzana Funck. In:


HOLANDA, Heloisa Buarque de.(org) Tendências e Impasses: o feminismo como
crítica da cultura. Rio de janeiro: Rocco,1994.

MUSSALIM, Fernanda. Análise do discurso. In: MUSSALIM, Fernanda; BENTES,


Ana Cristina (Org.).
Introdução à linguística: domínios e fronteiras, vol. II. São Paulo: Cortez, 2003.

ORLANDI, E. Análise do Discurso – Princípios e Procedimentos. Editora Pontes,


Campinas, 2009;

PÊCHEUX, Michel. Análise Automática do Discurso. In: F. Gadet e T. Hak (orgs). Por
uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux.
Campinas: Unicamp, 1993.

________________. Delimitações inversões, deslocamentos. In: Cadernos de


Estudos lingüísticos, 19. Campinas, IEL, Unicamp, 1990.

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Revista Educação e
Realidade. v.lS, n.2, jul./dez. 1990.

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