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ZOPPI FONTANA, M. & A.J. FERRARI Mulheres em Discurso: Gênero, linguagem e ideologia.

Campinas, Pontes, 2017, p.149-169

Movimento de sentidos e constituição de subjetividade em discursos


transfeministas1

Beatriz Pagliarini Bagagli

1. Breve Introdução

O movimento de pessoas transexuais, travestis e transgêneros busca visibilizar suas


narrativas identitárias a partir de um discurso ético e político2 que se pretende crítico à
cisnormatividade3. O discurso produzido por estes sujeitos dialoga fortemente com os
feminismos4, os saberes acadêmicos dos estudos de gênero e sexualidade, e tem seu modo de
circulação principalmente através de textos publicados em blogs e em redes sociais5.
Dito de outra forma, os debates sobre gênero e sexualidade, tanto na esfera acadêmica
como militante (com um forte componente de circulação online), estabelecem subsídios
teóricos que são apropriados pelos sujeitos trans. Acredito que esta apropriação se dê
criativamente6 e criticamente, de modo com que a formulação e circulação deste discurso
apontem para novas questões para a teoria e prática feminista - tidas até então como
impensadas, como a crítica à cisgeneridade enquanto norma social que estrutura as relações
de gênero.
Desta forma, podemos compreender que tais discursos constituem os sujeitos trans ao
mesmo tempo em que são apropriados por eles como forma de resistência. Ou também: o
discurso trans enseja neste processo novas formas de constituição de subjetividade, a partir
do momento em que narram (simbolizam) suas identidades para além da cisgeneridade como
norma impensada - ou um impensado da norma.

1
Agradeço à Aline Fernandes de Azevedo pelos seus comentários e revisão deste artigo.
2
Segundo Orlandi (2012a) o político está presente em todo discurso e diz respeito à divisão, tanto do sujeito
como do sentido. A ética, segundo Orlandi (ibid.), diz respeito ao fato da produção da interpretação se dar a
partir necessariamente de uma posição que implica a tomada de responsabilidade pelo sujeito (que não se limita
a uma conduta individual). Articulando a noção de discurso e de minoria social – pensando na constituição de
um “discurso de uma minoria”, em nosso caso, transgênera – consideramos pertinentes as colocações de Orlandi
(2014, p.32) sobre as minorias constituírem não um “sujeito coletivo coeso absolutamente idêntico a si mesmo e
numericamente definido”, mas um “lugar” capaz transformação e passagem, “como localização de um corpo,
espaço ocupado, lugar da ação humana”, ou, em outras palavras, um “dispositivo simbólico com um vetor
material ético-político dentro da luta contra-hegemônica”.
3
Ver Vergueiro (2016).
4
Tais diálogos resultam na constituição da corrente feminista denominada transfeminista (transfeminismo).
5
As novas tecnologias de escrita, segundo Orlandi (2012a), atravessam a relação do sujeito com a linguagem de
forma particular, sendo capazes de reorganizar o trabalho intelectual.
6
A criatividade, segundo Orlandi (2012b, p.26), instaura o diferente na linguagem na medida em que é capaz de
romper com o processo de produção dominante de sentidos e de, na tensão da relação com o contexto histórico-
social, criar novas formas, novos sentidos; pode realizar uma ruptura, um deslocamento em relação ao dizível.
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Campinas, Pontes, 2017, p.149-169

Buscamos neste artigo um diálogo com a análise de discurso a fim de


compreendermos os processos de constituição da subjetividade trans a partir da formulação e
circulação de sentidos sobre sexo, gênero, identidade e corpo. Para tanto, analisamos recortes
de alguns textos provenientes de blogs e redes sociais.
2. Apresentação do quadro teórico
A relação entre linguagem e mundo ou entre os sujeitos e o pensamento, afirma
Orlandi (2012c), não é direta (transparente), ela se dá através de mediações. A noção de
discurso como instância material dessa relação propicia a criação de subsídios teóricos
privilegiados para a compreensão dos processos de produção de sentido. O discursivo,
segundo a autora, materializa o contato entre o ideológico e o linguístico enquanto modo
social de produção da linguagem7. O discurso enquanto objeto teórico é também definido por
Orlandi (ibid.) como “efeito de sentido entre locutores”. Levamos em consideração que
sujeitos e sentidos se constituem simultaneamente, num mesmo processo.
Orlandi (2012a), a partir de considerações de Pêcheux, entende o interdiscurso8 como
princípio de funcionamento do discurso num processo em que a língua se desdobra
materialmente em um espaço contraditório - se contrapondo à possibilidade de entender o
interdiscurso como um “efeito integrador da discursividade” ou uma totalidade homogênea
passível de representação. A noção de interdiscurso propicia a compreensão dos processos de
importação dos “elementos da sequência textual” de uma formação discursiva9 a outra em um
contínuo processo de (re)configuração que está exposto ao equívoco e a deriva de sentidos.
Observamos em nossas análises a existência de um trabalho simbólico dos sujeitos
trans que visam o questionamento e a transformação de sentidos a partir de uma
reconfiguração das redes de memória que sustentam os dizeres - a fim de que novas formas
de constituição de subjetividade sejam viáveis, ou melhor, possíveis de serem vividas. As
formas de significação de homens e mulheres no discurso dos sujeitos trans, a partir da crítica
à cisnormatividade, produzem deslocamentos de sentidos sobre os corpos e identidades de
gênero.

7
Em outras formulações, Orlandi (2012a) define que a materialidade específica da ideologia é o discurso e a
materialidade específica do discurso é a língua. Segundo a autora, a língua, sistema capaz de falhas, se inscreve
na história para significar.
8
A autora também trabalha a noção de interdiscurso como “exterioridade constitutiva do discurso”,
“historicidade irrepresentável” e “memória discursiva que funciona através do esquecimento”.
9
A formação discursiva, segundo Orlandi (2012a), determina o que pode e deve ser dito, a partir de uma
posição dada numa conjuntura dada, define, portanto, as condições do exercício da função enunciativa.
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Segundo Orlandi (2012a, p.52), não há início ou origem10 do sentido de uma


expressão ou materialidade linguística, mas sim movimento contínuo de filiações de sentidos
que se fazem e se desmancham de acordo com sua inscrição em formações discursivas, dadas
as formas de circulação entre diferentes regiões do interdiscurso, em suas condições verbais
de existência histórica. O sentido, nesta perspectiva, é construído em confrontos de relações
que são sócio-historicamente fundadas e permeadas pelo poder; é parte de um processo,
realiza-se num contexto mas não se limita a ele (ORLANDI, 2012b, p.137).
Desta perspectiva resulta a compreensão de que as relações de poder são simbolizadas
a partir de projeções imaginárias dos lugares sociais, constituindo as posições de sujeitos no
discurso. Neste aspecto, também se abandona a hipótese do sentido possuir um núcleo ou
centro capaz de gerar o efeito de literalidade. Segundo Orlandi (2012b, p.26-27), o efeito de
literalidade se deve pela história dos sentidos que são cristalizados pelos jogos de poder da/na
linguagem; há de fato dominância de um sentido sem por isso se perder a relação com outros
(implícitos) ou com o não-sentido (o vir a ser dos sentidos, potencialidade de sentidos
futuros).
O surgimento da palavra “cisgeneridade11” usada para designar experiências
subjetivas de alinhamento às expectativas de gênero, ao mesmo tempo em que estabelece
relação de antonímia com “transgênero”, acrescenta novas perspectivas e abordagens de
análise possíveis para a compreensão das relações de gênero, como a inscrição da categoria
da temporalidade e da alteridade para com identidades não-cis (trans). O uso de “cisgênero”
proporciona pensar diferentemente, a partir de um deslocamento teórico e ético, as próprias
experiências de transgeneridade.
A palavra “cisgênero”, usada para qualificar as identidades de homens e mulheres,
passa a funcionar como forma de desvelar - no e pelo fio do discurso de teorização
transfeminista - processos de constituição de subjetividade que estavam funcionando até
então pelo seu ocultamento, o que gerava efeitos de sentido que naturalizam a posição cis
quanto ao gênero.
Não pretendemos, em nossas análises dos textos, nem atestar uma suposta origem de
novos sentidos sobre homens ou mulher nos discursos transfeministas (como se estivessem
deslocados das relações de memória discursiva), nem pressupor a pré-existência de sentidos
sobre homens ou mulheres que supostamente foram perdidos ou deturpados. Buscamos sim

10
Neste mesmo aspecto, tampouco o sujeito é origem de si mesmo e dos sentidos que produz.
11
Podemos pensar os efeitos metafóricos que resultam das posições “cis” e “trans” – prefixos pertencentes à
língua – ao se falar em gênero ou identidade de gênero.
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explicitar processos de significação e constituição de subjetividade em contínua


reconfiguração e deslocamento na sua relação constitutiva com o interdiscurso.
3. Análises
No texto de Grimm (2016a), exposto abaixo, encontramos uma teorização consistente
acerca da cisgeneridade. A cisgeneridade é compreendida como uma posição relativa ao
gênero que estrutura relações de poder – hierarquias “corporais” e “epistêmicas”. Podemos
dizer que, a partir deste texto, atingimos um discurso que simboliza as relações de poder: ao
problematizar teoricamente as posições que enunciam a verdade dos corpos no confronto
entre as noções de “natureza” e “artificial”. A mobilização do conceito de cisgeneridade é
capaz de desvelar estas relações – que se estruturam através da sua própria dissimulação12,
acobertando a causa do sujeito no próprio interior do seu efeito. A cisgeneridade só deixa de
ser o óbvio do gênero através de um processo crítico de questionamento de evidências. Este
processo de desvelamento crítico da constituição de subjetividade, mediado pela teoria
transfeminista, é fundamental para a formação do que a autora caracteriza como “lugares de
existência respiráveis para nossas corpas, para nossas vidas transviadas”.
Se consideramos que tanto o sexo quanto o gênero são construções sociais,
a diferença entre cisgeneridade e transgeneridade não se dá na ordem de uma
“verdade interior” das pessoas ou dos seus corpos mas de diferentes situações
políticas frente às tecnologias que constroem sexo e gênero.
A cisgeneridade se constitui por uma posição desde a qual a enunciação do
próprio sexo pode ocupar um lugar de “natureza”, de obviedade, de origem sagrada
dos seres viventes, ao passo que a enunciação transgênera do próprio sexo constitui
um lugar de “artificial”, de engano, de profano – algo que desvia daquilo que era
marcado como o “original” da biologia.
Essa diferenciação não é simplesmente uma construção teórica, mas marca
uma série de hierarquias sociais, desde as quais a violência cisgênera se exerce:
(1) Uma hierarquia corporal.
Enquanto o corpo cisgênero ocupa o lugar considerado “original”, ele é
sempre o modelo desde o qual as corporeidades trans devem se espelhar e se ajustar
para terem seu gênero legitimado – espelhamento e ajuste à base de cosméticos,
hormônios, cirurgias. Quanto mais cisgênero, quanto menos uma pessoa parecer
trans, maior sua possibilidade de ser aceito.
(2) Uma hierarquia epistêmica.
As pessoas cisgêneras constituem-se não só como o modelo desde o qual
as verdades do sexo são pensadas, mas como as proprietárias autorais desde as
quais as verdades de sexo e gênero podem ser enunciadas.
Em resumo: pessoas cisgêneras têm um poder estrutural para pensar sobre
pessoas trans (interpretar suas vivências, narrar suas vidas) – desde um amplo
escopo de teorias (psiquiátricas, psicológicas, antropológicas, sociológicas e –
porque não – feministas).

12
Faço um paralelo com a noção de ideologia, trabalhada por Orlandi (2012a, p.81), na medida em que se
constitui como “estrutura-funcionamento que dissimula sua própria existência no interior de seu funcionamento
produzindo evidências em que se constitui o sujeito”. Em outras formulações, a autora (2012c, p.92) afirma que
“na transparência da linguagem, é a ideologia que fornece as evidências que apagam o caráter material do
sentido, sua historicidade, evitando o corpo das palavras e do sujeito, regrando a relação com a interpretação, ao
mesmo tempo em que faz o sujeito responsável, fonte de seus sentidos”.
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Pessoas trans, por sua vez, não possuem um poder estrutural para pensar e
teorizar sobre pessoas cisgêneras (a exemplo disso, encontramos a própria
resistência de pessoas cisgêneras se reconhecerem como cis).
Ou seja: todos os sistemas teóricos – da biologia, da medicina, da
psicologia, antropologia, sociologia, e do feminismo – resistem a se deixar ser
transformados para contemplar a vivência de pessoas trans.
Essa dupla hierarquia – epistêmica e corporal – implica que pessoas trans
dificilmente encontram na nossa sociedade:
(1) a possibilidade de ver-se desde os próprios referenciais
(2) a possibilidade de pensar-se desde os próprios referenciais.
E tudo aquilo que desafia essa dupla hierarquia encontra uma resposta
violenta, por parte dos guardiões e guardiãs da cisgeneridade.
O transfeminismo se instala como uma resposta política a essa relação de
poder, buscando por um lado:
(1) construir outras visibilidades acerca dos corpos que desviam da
cisgeneridade, positivando nossas diferenças para além de uma perspectiva de
“passabilidade” ou assimilação.
(2) construir novas perspectivas teóricas acerca dos corpos, das vidas e da
nossa sociedade.
É impossível tocar nossas vidas de uma forma respirável enquanto
continuarmos sendo unilateralmente pensadas por pessoas cisgêneras, sem
possibilidade de resposta ou de participação na forma como as tecnologias de sexo-
gênero são pensadas, assim como é impossível tocar nossas vidas de uma forma
respirável enquanto os corpos cisgêneros continuarem enquanto o padrão unívoco
de como se pauta “o verdadeiro sexo”, sem possibilidade de aceitação e legitimação
para outras corporeidades desviantes.
Nomear a cisgeneridade como a violência que exerce para manter-se
enquanto padrão é o primeiro passo. Descentrar-se da cisgeneridade enquanto eixo
pensante e definidor das nossas possibilidades de existência é o segundo para de
fato construirmos lugares de existência respiráveis para nossas corpas, para nossas
vidas transviadas. (GRIMM, 2016a)
Para Alves (2013a), afirmar que “mulheres trans* são mulheres” constitui um ato de
“bater na tecla insistentemente”. Há um trabalho simbólico com a memória discursiva em que
falar o aparentemente (ou nem tanto) óbvio de forma redobrada13 se constitui como uma
necessidade política e ética (que produz sentidos): falar que certas mulheres sejam mulheres
não constitui uma repetição do mesmo, já que passa a “desafiar ontologias que relegam
nossos corpos como masculinos” e que “reificam nossos corpos”. Nesse processo de
constituição de um “eu” na relação com um “nós” (“nós mulheres trans”), há a passagem pela
demarcação de uma fronteira (imaginária) com as mulheres cis que é significada como
condição de possibilidade para que ambas as categorias sejam vistas com a mesma
legitimidade, como formula a autora.
Uma das principais bandeiras do Transfeminismo é o empoderamento das pessoas
trans* em seu aspecto pleno, ou seja, contemplando o empoderamento de nossos
corpos. Quando eu bato na tecla insistentemente de que mulheres trans* são
mulheres, e quando luto para que nenhum discurso feminista usurpe a categoria de
mulher para atender a sua própria agenda cisgênera, isso também é empoderar nós
mulheres trans* que desejamos ser vistas como mulheres de mesma categoria que as
mulheres cisgêneras, isto é, ter a mesma legitimidade – pois dizer que somos

13
Podemos pensar este redobramento através da noção de repetição histórica, formulada por Orlandi (2012c,
p.70), em que o dizer é inscrito no repetível como forma de fazer a língua significar, processo este que é
mediado pela função-autor.
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mulheres também é desafiar as ontologias que relegam nossos corpos como


masculinos e que contribuem para nossas disforias. É desafiar as ontologias que
reificam nossos corpos. (ALVES, 2013a)
Segundo Orlandi (2012a, p.93),
o corpo do sujeito é, nas condições sócio-históricas em que vivemos, parte do corpo
social tal como ele está significado na história. Isto quer dizer, entre outras coisas,
que o sujeito relaciona-se com seu corpo já atravessado por uma memória, pelo
discurso social que o significa, pela maneira como ele se individualiza. No entanto,
sempre há incompletude, a falha, o possível. E os sentidos, como tenho repetido,
sempre podem ser outros.
Nas análises de Alves (2013b), há a textualização do funcionamento desta memória
que significa os corpos, ao afirmar que “certas alterações corporais irrefreáveis” acabam por
culminar no processo (tido como) espontâneo de “tornar-se cisgênero”. “Tornar-se cisgênero”
é o modus operandi do funcionamento da memória que significa os corpos – na sua pretensa
naturalidade. Ao desvelar o funcionamento desta memória, inscrevendo o corpo como
passível de ser significado em um processo passível de falha, há deslocamento possível para
que os sujeitos possam constituir novos sentidos que podem emergir dos corpos, como a
contestação dos sentidos que patologizam as identidades e experiências transgêneras. Novos
sentidos capazes de “desuniversalizar” as identidades trans, como formula a autora. É a partir
de uma filiação a estes sentidos em ruptura com a memória sedimentada que se torna possível
concluir que “meu corpo não é errado” mesmo que a “memória de nunca termos sido
normais” jamais seja esquecida. Há uma formulação no texto de Alves (ibid.) que aponta para
a relação entre o real e o simbólico num processo de nomeação em que se intercalam distintas
temporalidades entre ser trans e possuir um gênero inconforme: nós, trans, nem sempre fomos
trans, mas pode-se dizer que muitxs de nós fomos pessoas cujo gênero era inconforme ao
cistema. Fomos não, somos.
No ritual de passagem adolescente, alterações corporais irrefreáveis
ganham espaço nas vidas de várias pessoas, agregando-se às suas subjetividades.
Tornar-se cisgênero acaba sendo, então, um evento inevitável, nem sempre
desejável, um modus operandi hormonal inesperado.
A partir daí, nossos corpos são (mais) veementemente simbolizados,
nossas sexualidades mais fortemente evidenciadas (e/ou hipersexualizadas), nossos
atos cistematicamente indesculpáveis; Não podemos mais, na presumida inocência
infantil, perguntar por que não podemos usar/se associar a essa ou aquela coisa, agir
dessa ou daquela maneira. Não que a coerção (e a correção) não viesse, de outras
formas, enquanto crianças, mas há algo de agenciador no ritual de passagem
cisgênero, que marca a nossa (i)responsabilidade em não sermos outra coisa que
não cisgêneros. Após o ritual deixamos de ser crianças, e socialmente devemos
responder por nossos atos que podem ou não tencionar nossa cisgeneridade. (...)
O que o devir cisgênero tem a ensinar sobre autonomia?
Tornar-se transgênero é categoria nosológica, tornar-se cisgênero é
natureza.
Tornar-se transgênero é a pedra no caminho, tornar-se cisgênero é o
próprio caminho.
Nos compêndios médicos, uma infinidade de técnicas e guias sobre como
“tratar” a nosologia trans*, mil e uma explicações que inexplicavelmente reduzem
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as subjetividades trans* a apenas uma. Um estudo de caso com 14 sujeitos que


universalizam a experiência identitária. Dezenas de artigos e discussões sobre
“transexualidade na infância”. A patologia amplia seus domínios. (...)
Nós trans*, nem sempre fomos trans*, mas pode-se dizer que muitxs de
nós fomos pessoas cujo gênero era inconforme ao cistema. Fomos não, somos.
Muitas de nossas infâncias foram pautadas pela subversão das normas que orientam
o gênero. E nós éramos quem sempre fomos: nós mesmxs. Que essa experiência,
posteriormente, foi classificada com o termo “transexualidade” de nada sabíamos e
não teria feito diferença. Talvez a diferença tivesse sido o conforto que a patologia
traz aos pais e mães desesperados com a “pane no cistema”.
Me entendo como trans* porque existe uma categoria identitária que
abraço, sobretudo politicamente, para demandar direitos e explicar o que meu corpo
e meu gênero significam para um mundo cistemático. Para mim, é uma categoria
que inteligibiliza minha existência. Só que ao mesmo tempo, essa categoria
permanece como doença mental. Só existe se for através do estigma da doença. E
como lembra Missé, só podemos subir à Arca que promete a cura para os corpos
errados, que nos levará à Ítaca com a promessa de uma vida melhor, se estamos
convencidxs que nossos corpos sempre foram errados, de que necessitamos
consertos, e essa memória de nunca termos sido normais é algo que jamais
conseguiremos desexperienciar.
Meu corpo não é errado, não necessito de cura, errado é o cistema. Nunca
fui uma criança transgênera, eu fui eu.
Prazer, eu sou a Hailey. (ALVES, 2013b)
De alguma forma eu consegui registrar alguns passos importantes da
minha transição que se deu no meu ano de 2013, ano que de certa forma eu
ressignifiquei muitas questões da minha vida e organizei de uma forma diferente a
percepção do que eu sou, como as pessoas me veem e na minha busca por ter a vida
mais significativa pra mim mesmo. Me disse que era queer, multigênero, e mais um
monte de coisa. Eu não paro de fluir, entre sensações de gênero, me sentir de uma
forma ou de outra, de sentir afinidade com questões femininas (ou ditas femininas).
Acho que as coisas dentro de mim nunca vão parar de se mexer e dançar. Mas estão
organizadas de uma forma diferente, eu sou homem trans. Todas minhas
inconstâncias, sentimentos diversos estão dentro deste fato. Sou homem trans.
A visibilidade que eu quero é além das pessoas saberem que
transexualidade existe, que homens trans existem e que sexualidade é diferente de
gênero. A visibilidade que eu quero e preciso é pela despatologização das
identidades trans, que as pessoas possam ter acesso a saúde sem constrangimentos,
que tenham direito ao seu nome. (PANDA, 2014)
No recorte do texto de Panda (2014), narrar-se enquanto trans não se desvincula de
um processo de “ressignificação”, de “organização de uma forma diferente da percepção” de
si e da busca por uma “vida mais significativa”. Sua forma de se identificar enquanto homem
trans se dá a partir da fluidez, de uma “dança que nunca para de mexer as coisas”, o que
confere singularidade à sua experiência: a feminilidade é uma “coisa organizada de forma
diferente” a partir do momento em que ele se enuncia enquanto homem trans. Afirmar-se
homem trans ao mesmo tempo em que enuncia a sua feminilidade e sua fluidez identitária
não são aspectos meramente antagônicos ou auto-excludentes: Panda nos aponta para a
singularidade desta posição, ao mesmo tempo masculina, trans, feminina (e portanto fluida).
Ele textualiza a representação deste lugar ao mesmo tempo trans+masculino e feminino: a
transmasculinidade não “nega” necessariamente a feminilidade, mas a trabalha
(simbolicamente) de uma outra forma, deslocada, diferente, como ele mesmo designa. No
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final, há a passagem que articula a esfera do “eu sou” para o “eu quero” como forma de
reivindicação de uma identidade politica, em nome de uma causa: a despatologização.
Podemos remeter para relações interdiscusivas deste texto a partir do momento em
que as considerações de Panda questionam as evidências sobre a constituição identitária de
pessoas transgêneras presentes virtualmente em outras formações discursivas. Dizer-se
homem trans, a partir da fluidez de sua própria identidade, questiona as associações feitas
entre as identidades trans implicarem necessariamente um trânsito (enquanto “mudança”)
entre os gêneros de forma permanente e binária.
Quantas vezes me senti com medo de ser classificado como uma menina
ou mulher por meu comportamento? Quantas vezes me senti desconfortável por me
enquadrarem como menino ou homem em diversas situações? Não me seria
possível contá-las, mas ao menos agora posso entendê-las. Como quando não me
sentia confortável em cruzar as pernas como uma mulher ou de tirar a camisa como
um homem. Afinal, não sou uma mulher, mas também não sou um homem. O medo
de ser classificado como uma ou outro tornou-me um androide sem que eu pudesse
perceber.
Mas não sou um androide, sou um andrógino. Não sou inumano, não sou
sem gêneros: sou, sim, um homem, mas também sou uma mulher! Ah, e eu que
pensava que apenas homens homossexuais é que gostavam de soltar a franga! Sou
colorida como o arco-íris, brilhante como a purpurina, gosto de usufruir do gênero
andrógino.
Eu sou toda cheia de gêneros!
Tenho, sim, permissão para me comportar como quiser. Sou um homem
que gosta de usar esmalte, sou uma mulher que gosta de sua própria barba. O
armário já não prende mais a menina, finalmente consegui alcançar sua mão e
beijar-lhe os doces lábios. A leoa está solta e quer lutar pelo seu direito à existência.
(ANÔNIMO/A, 2013)
Eu entendia as pessoas transexuais como sendo aquelas que desde muito
cedo na infância já sabiam qual era o seu gênero certo; uma sucessão de certezas
culminando na redesignação sexual. Qual não foi minha surpresa quando percebi
que identidade de gênero não seguia uma “receita de bolo”! A ideia de que uma
pessoa só pode ser homem ou mulher se sentir do jeito x e se comportar do jeito y
cria um limbo onde colocamos as identidades não-binárias. Pra mim, invisibilizá-las
totalmente e tentar forçá-las a se conformar dentro do modelo binário é uma
violência. (...) O fato de a minha identidade não ser binária – por qualquer motivo
que seja, desde puramente político até eu “simplesmente” não me situar em
nenhuma das extremidades do espectro – não significa que eu esteja ameaçando
aquelas que não são. Já conheci pessoas com experiências muito parecidas com as
minhas, e nenhuma delas é igual à outra. Estamos falando de gente. Não há como
uma coisa só englobar toda a vastidão de experiências que uma pessoa pode ter na
vida, mas ainda assim há quem se ache no direito de poder validar quem ou o que
você é. Demonizar a dúvida só faz com que nos sintamos culpados por
experimentar, por tentar saber por nós mesmos o que é melhor pra nós. Parece-me
que as pessoas muitas vezes se esquecem de que viver é uma sucessão de tentativas,
uma construção contínua. (ANÔNIMO/A, 2012)
A narração de si a partir da fluidez de gênero de modo a questionar (ou trabalhar
simbolicamente) os pressupostos binários sobre masculinidade e feminilidade se encontra
presente no discurso de várias pessoas transgêneras, como nos relatos anônimos publicados
no blog transfeminismo.
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O medo e desconforto são sentimentos decorrentes do olhar que classifica/enquadra


comportamentos - por mais aparentemente banais que sejam, como o cruzamento de pernas
“como uma mulher” ou tirar a camisa “como um homem” - a partir do binário - ou masculino
ou feminino. Esta sensação de desconforto é descrita como algo que pré-existe à tomada de
consciência de si (“sem que eu pudesse perceber”) que é então trabalhada simbolicamente em
outro instante (“agora posso entendê-las”), a partir do momento em que o sujeito passa
habitar um outro lugar subjetivo. Este novo lugar se constitui a partir de negações deste olhar
externo - “não sou um androide”, “não sou inumano” e “não sou sem gêneros” - e da
emergência de afirmações “sou homem, mas também sou uma mulher” e “tenho, sim,
permissão para me comportar como quiser”. Visibilizar processos de constituição de
identidades de gênero não binárias produz efeitos de questionamento das evidências sobre a
própria transexualidade (“não existe receita de bolo”). As experiências podem ser parecidas
ao mesmo tempo em que nenhuma delas é igual à outra; esta formulação é capaz de instalar a
diferença no interior do grupo. Se politicamente a coesão imaginária do grupo é importante,
justamente porque ela cria um lugar para agregar reivindicações, a experiência trans (tal
como é simbolizada pelos discursos transfeministas) admite a falha no interior do grupo,
instala uma diferença interna.
AMAN significa Assignade Masculino Ao Nascer. A gente também
encontra por aí AMAB, que é a versão em inglês (Assigned Male At Birth). Essa
expressão carrega uma perspectiva ao mesmo tempo teórica, e política de entender
que nenhuma de nós "nasce" homem ou mulher que não somos "biologicamente
homens" nem "biologicamente mulheres".
Mas que boa parte de nós fomos assignadas "masculino" ou "feminino", seja
no momento do ultrassom, seja no momento do nascimento, a partir de uma leitura
sobre nossos corpos. Ter pinto ou buceta no momento do nascimento não define
ninguém "masculino" ou "feminino" (...) mas direciona o olhar médico e jurídico
para nos assignar um lugar, para nos assignar papéis, nomes, cores, pedagogias
dentro dessa sociedade. (...)
Ter sido assignada masculina ao nascer sim, é algo que marca seu corpo.
Mas não faz de ninguém - automática e necessariamente - um homem. (Assim como
a assignação feminina ao nascer, que também marca corpos, não faz de ninguém -
automática e necessariamente uma mulher). Você pode tornar-se um homem se sua
configuração subjetiva se articula de forma relativamente satisfatória ao
cumprimento dessas expectativas.
E o cis.tema trabalha (investe em ti, te educa) pra garantir isso. Mas quando
sua subjetividade não se articula a essa assignação, o cis.tema passa a te codificar
como outra coisa. Principalmente se você incorporar outros nomes, outras
tecnologias de construção e expressão do corpo (desviando hormônios,
comportamentos, códigos de estética) que não se encaixam com aquilo que foi a ti
prescrito quando você nasceu.
Sua existência passa a questionar aquela assignação no nascimento enquanto
fato, enquanto destino dado. Coloca em questão a "organicidade natural" e
harmônica que a medicina, as escolas, as famílias, as igrejas, o Estado etc esperam
dos nossos corpos.
Sua movimentação social e subjetiva te materializa enquanto um corpo em
crise. Seja essa crise nomeada enquanto transexualidade
enquanto transgeneridade
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Campinas, Pontes, 2017, p.149-169

enquanto travestilidade
enquanto não-binariedade.
Cada uma delas, identidades de luta - cada uma com uma história,
especificidade - que marca nosso lugar de crise, de falha, de interferência e
confronto diante de um cis.tema que nos violenta em nome de uma expectativa
sobre a "natureza" dos nossos corpos. (GRIMM, 2016b)
Os recortes acima do texto de Grimm (2016b) atestam a produção de um discurso que
busca opacificar a existência e a (re)produção material do gênero - em suas “assignações”,
“expectativas”, “pedagogias”, “lugares”, “papéis”, “expressão do corpo” e “tecnologias de
construção”. A opacificação do gênero é produzida (como efeito de sentido) a partir do
momento em que se atestam possibilidades de constituição de subjetividade que não se
“articula[m] à assignação de forma satisfatória” e que estão, portanto, em “crise” - sendo
estas “assignações” entendidas como as atribuições de gênero ao nascimento (“a partir de
uma leitura sobre nossos corpos”) que se ligam às expectativas sociais das identidades de
homens e mulheres.
O termo “assignação” condensa o trabalho simbólico quanto à temporalidade do
gênero neste discurso, pois questiona, a partir de relações com o interdiscurso, os sentidos
sobre gênero como uma atribuição estática, vinculados à noção de “nascimento”.
“Assignação” se contrapõe aos sentidos (temporais) de gênero como algo estabelecido ao
“nascimento”. Busca sinalizar que entre o nascimento e às expressões de gênero concretas
dos sujeitos há um hiato (temporal, mas também simbólico, porque diz respeito à constituição
do sujeito) capaz da produção de crises e quebra de expectativas (uma “movimentação social
e subjetiva” capaz de “materializar um corpo em crise”) sendo, portanto, um termo capaz de
demarcar uma margem entre distintas formações discursivas.
O corpo é significado, neste discurso, não como algo construído como um referente
estabilizado, ele ganha materialidade quando é “lido” e “marcado”. O corpo é passível de
uma leitura que orientará expectativas socialmente estabelecidas sobre homens e mulheres.
Uma leitura que produz marcas, como entende Grimm, mas não um destino inexorável nem
uma essência ou uma verdade primordial. O sexo é produto de leituras sedimentadas sobre os
corpos que geram marcas que, por sua vez, ensejam processos de questionamento pelos
sujeitos trans quanto às suas evidências.
4. Conclusões
Partindo das considerações de Orlandi (2012b) sobre a leitura como forma de
produção de sentido, podemos articular esta noção para a compreensão da produção de
sentido sobre o corpo e sexo. Segundo a autora, no momento em que se realiza o processo de
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leitura se configura um espaço de discursividade em que se instaura um modo de significação


específico.
O corpo14 produz sentido por meio das interpretações que se fazem dele e, para tanto,
ele precisa ser lido. A leitura numa concepção discursiva, não é algo que se dá abstratamente,
mas em condições determinadas, cuja especificidade está em serem sócio-históricas
(ORLANDI, 2012b, p.134). A leitura se dá no interior de uma contradição entre o pré-
existente - há algo legível (da ordem do repetível, constituindo um eixo vertical) que é
exterior aos sujeitos e que determina o processo de significação - e a contemporaneidade que
se produz no próprio momento da leitura, constituindo um eixo horizontal (ORLANDI, ibid,
p.150-151).
Segundo a autora, a naturalidade e o caráter evidente dos sentidos são produtos de
“espessos processos de produção de sentido historicamente determinados” e ideologicamente
construídos. A tarefa do analista de discurso reside em tornar visíveis estes processos que
produzem evidências, expondo pontos possíveis de derivas e de deslocamento de sentidos, ao
apontar para a possibilidade de outras leituras possíveis que direcionam outras interpretações
e processos de constituição de sentido e subjetividade.
A compreensão, segundo Orlandi (2012b), é refletir sobre a função do eu-aqui-agora e
saber que o sentido poderia ser outro; a compreensão também pressupõe necessariamente
uma posição crítica mediada por uma teoria, ou, em outros termos, uma desconstrução
teórica. A partir desta perspectiva metodológica se pode atingir a produção do efeito de
estabilidade referencial, produzido pelo interdiscurso (ORLANDI, 2012b, p.156).
Corpos cujos sexos se apresentam enquanto crise, ambíguos, fluidos ou
inclassificáveis a partir de uma perspectiva binária (masculino ou feminino) são lidos e
compreendidos diferentemente daqueles corpos cujos sexos produzem ou sustentam efeitos
de coerência e adequação - mesmo que tais efeitos sejam necessariamente provisórios e
constitutivamente instáveis. As leituras socialmente estabilizadas sobre os corpos que
produzem evidência sobre os sexos resistem a se abrirem para uma forma de leitura destes
corpos em suas opacidades - a crise passa a ser interpretada pelo viés da patologia, a
instabilidade e ambiguidade são vistos como “erros” que decorrem da mentira e da falta de
verdade ou mesmo de uma forma de alienação.

14
O corpo também foi pensado por Orlandi (2012a, p.85) através da análise de discurso, fazendo referência à
“materialidade do sujeito” e à “significação do corpo” quando afirma que o “corpo de um sujeito é produzido
num processo de significação”.
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A opacidade do corpo na produção de sentidos sobre o sexo é condição de


possibilidade de leitura e interpretação que produz tanto os efeitos de coerências e evidência
sobre os sexos como os efeitos de inconformidade e falta de sentido. Há, portanto, formas de
leituras que colocam à margem os sujeitos cujos corpos são incompreensíveis na medida em
que reiteram a naturalidade dos sentidos sobre os corpos a partir de uma noção de sexo
enquanto referente estável. Leituras estas que produzem e sustentam efeitos sociais de
exclusão e discriminação dos sujeitos cujos corpos são lidos a partir do erro. E do erro se
associa ao estigma de não pertencer e não sustentar o discurso sobre uma pretensa verdade
sobre os sexos. O próprio lugar de exclusão social ocupado por estes sujeitos é justificado
ideologicamente a partir desta falha.
Os discursos transfeministas nos direcionam para outra possibilidade de leitura desta
opacidade para além dos efeitos que reproduzem a sujeição e marginalização dos corpos que
escapam; eles intervêm, portanto, no legível do corpo. O discurso transfeminista trabalha uma
teoria feminista que lhe é própria e específica. Portanto, consideramos que o trabalho teórico
transfeminista não se dissocia do trabalho simbólico15, como ação transformadora capaz de
efetuar uma mediação entre sujeito e realidade. Este trabalho simbólico, mediado por uma
teoria feminista específica, vale ressaltar, se realiza em virtude da possibilidade (estrutural)
da falha da língua.
Segundo Orlandi (2012b), para a análise do discurso, considera-se que o que define o
sujeito é o “lugar do qual ele fala em relação aos diferentes lugares de uma formação social”.
O que implicaria falar a partir de um local de interdição no que diz respeito ao próprio corpo?
Como explicitar criticamente o local de fala de sujeitos cujos corpos estão à margem? Os
discursos transfeministas insistem na tomada de palavra por sujeitos tidos potencialmente
como inadequados, transtornados ou sem-sentidos; há algo de redobramento da própria fala
que produz resistência.
O sujeito-leitor que se relaciona criticamente com sua posição, que a problematiza,
explicitando as condições de produção de sua leitura, compreende. (ORLANDI, ibid., p.157).
A compreensão de outra forma (deslocada) sobre o gênero implica, portanto, a constituição
de outro sujeito-leitor dos corpos.
A condição de formação de uma formação discursiva específica - a constituição do
saber próprio a uma formação discursiva - se dá na relação com o interdiscurso. As
formações discursivas transfeministas formam seus saberes a partir da contestação do sexo

15
Orlandi (2012a) entende a produção de linguagem enquanto trabalho (cuja especificidade reside no seu
caráter simbólico).
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como um referente estabilizado - estabelecendo uma relação de antagonismo com outras


formações discursivas.
O fato da língua falhar – e atestar a possibilidade de sujeitos habitarem espaços
simbólicos de incompletude e indeterminação em relação a suas identidades de gênero – e
isto produzir efeitos de estigma não decorre de nenhum fato natural ou espontâneo. O lugar
da falha é o lugar do possível, do impensado, em que o irrealizado surge formando sentido do
interior do não sentido (ORLANDI, 2012a, p. 77). É o que o discurso transfeminista tem a
nos ensinar; neste processo, forçamos a barra até ela quebrar, como formula Grimm (2016c).

Imagina você - corpa desviante que questiona a natureza escrita a ferro na


"genética" - afirmar a possibilidade de feminilidades que não se reduza à submissão
ou sofrimento.
Imagina o sistema admitir a existência a de mulheres monstras, cheias de pêlo, de
maquiagem borrada, cagando e andando pro interesse masculino, que chupam e dão
o cu (ou o que quiserem) pra outras minas.
Imagina admitirem mulheres não definidas pelo útero, pela capacidade reprodutiva,
mas pela própria autonomia de se afirmarem enquanto sujeitos de existência, amor
e luta.
Força a barra.
Sim, a gente força a barra.
Ser trans e sapatão força a barra.
Ser trans, sapatão e feminista força a barra mais ainda.
A gente força a barra
até quebrar
a barra que é
esse monte de normas
demandas por obediência
controle
e submissão. (GRIMM, 2016c)

Referências Bibliográficas
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https://generoaderiva.wordpress.com/2013/09/26/o-autoempoderamento-e-um-exercicio-
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ANÔNIMO/A. Amanhã isso vai passar. 2012. http://transfeminismo.com/guest-post-


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GRIMM, Raíssa Éris. A violência cisgênera e suas hierarquias. 2016a. Disponível


em:http://transfeminismo.com/a-violencia-cisgenera-e-suas-hierarquias/ Acesso em
10/10/2016.
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ORLANDI, Eni. Discurso em análise: Sujeito, Sentido, Ideologia. 2ª edição – Campinas,


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_____. Ser diferente é ser diferente: a quem interessam as minorias? In: ORLANDI, Eni. P.
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inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade.
Dissertação de Mestrado, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2016.

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