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1. Breve Introdução
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Agradeço à Aline Fernandes de Azevedo pelos seus comentários e revisão deste artigo.
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Segundo Orlandi (2012a) o político está presente em todo discurso e diz respeito à divisão, tanto do sujeito
como do sentido. A ética, segundo Orlandi (ibid.), diz respeito ao fato da produção da interpretação se dar a
partir necessariamente de uma posição que implica a tomada de responsabilidade pelo sujeito (que não se limita
a uma conduta individual). Articulando a noção de discurso e de minoria social – pensando na constituição de
um “discurso de uma minoria”, em nosso caso, transgênera – consideramos pertinentes as colocações de Orlandi
(2014, p.32) sobre as minorias constituírem não um “sujeito coletivo coeso absolutamente idêntico a si mesmo e
numericamente definido”, mas um “lugar” capaz transformação e passagem, “como localização de um corpo,
espaço ocupado, lugar da ação humana”, ou, em outras palavras, um “dispositivo simbólico com um vetor
material ético-político dentro da luta contra-hegemônica”.
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Ver Vergueiro (2016).
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Tais diálogos resultam na constituição da corrente feminista denominada transfeminista (transfeminismo).
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As novas tecnologias de escrita, segundo Orlandi (2012a), atravessam a relação do sujeito com a linguagem de
forma particular, sendo capazes de reorganizar o trabalho intelectual.
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A criatividade, segundo Orlandi (2012b, p.26), instaura o diferente na linguagem na medida em que é capaz de
romper com o processo de produção dominante de sentidos e de, na tensão da relação com o contexto histórico-
social, criar novas formas, novos sentidos; pode realizar uma ruptura, um deslocamento em relação ao dizível.
ZOPPI FONTANA, M. & A.J. FERRARI Mulheres em Discurso: Gênero, linguagem e ideologia.
Campinas, Pontes, 2017, p.149-169
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Em outras formulações, Orlandi (2012a) define que a materialidade específica da ideologia é o discurso e a
materialidade específica do discurso é a língua. Segundo a autora, a língua, sistema capaz de falhas, se inscreve
na história para significar.
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A autora também trabalha a noção de interdiscurso como “exterioridade constitutiva do discurso”,
“historicidade irrepresentável” e “memória discursiva que funciona através do esquecimento”.
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A formação discursiva, segundo Orlandi (2012a), determina o que pode e deve ser dito, a partir de uma
posição dada numa conjuntura dada, define, portanto, as condições do exercício da função enunciativa.
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Neste mesmo aspecto, tampouco o sujeito é origem de si mesmo e dos sentidos que produz.
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Podemos pensar os efeitos metafóricos que resultam das posições “cis” e “trans” – prefixos pertencentes à
língua – ao se falar em gênero ou identidade de gênero.
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Faço um paralelo com a noção de ideologia, trabalhada por Orlandi (2012a, p.81), na medida em que se
constitui como “estrutura-funcionamento que dissimula sua própria existência no interior de seu funcionamento
produzindo evidências em que se constitui o sujeito”. Em outras formulações, a autora (2012c, p.92) afirma que
“na transparência da linguagem, é a ideologia que fornece as evidências que apagam o caráter material do
sentido, sua historicidade, evitando o corpo das palavras e do sujeito, regrando a relação com a interpretação, ao
mesmo tempo em que faz o sujeito responsável, fonte de seus sentidos”.
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Pessoas trans, por sua vez, não possuem um poder estrutural para pensar e
teorizar sobre pessoas cisgêneras (a exemplo disso, encontramos a própria
resistência de pessoas cisgêneras se reconhecerem como cis).
Ou seja: todos os sistemas teóricos – da biologia, da medicina, da
psicologia, antropologia, sociologia, e do feminismo – resistem a se deixar ser
transformados para contemplar a vivência de pessoas trans.
Essa dupla hierarquia – epistêmica e corporal – implica que pessoas trans
dificilmente encontram na nossa sociedade:
(1) a possibilidade de ver-se desde os próprios referenciais
(2) a possibilidade de pensar-se desde os próprios referenciais.
E tudo aquilo que desafia essa dupla hierarquia encontra uma resposta
violenta, por parte dos guardiões e guardiãs da cisgeneridade.
O transfeminismo se instala como uma resposta política a essa relação de
poder, buscando por um lado:
(1) construir outras visibilidades acerca dos corpos que desviam da
cisgeneridade, positivando nossas diferenças para além de uma perspectiva de
“passabilidade” ou assimilação.
(2) construir novas perspectivas teóricas acerca dos corpos, das vidas e da
nossa sociedade.
É impossível tocar nossas vidas de uma forma respirável enquanto
continuarmos sendo unilateralmente pensadas por pessoas cisgêneras, sem
possibilidade de resposta ou de participação na forma como as tecnologias de sexo-
gênero são pensadas, assim como é impossível tocar nossas vidas de uma forma
respirável enquanto os corpos cisgêneros continuarem enquanto o padrão unívoco
de como se pauta “o verdadeiro sexo”, sem possibilidade de aceitação e legitimação
para outras corporeidades desviantes.
Nomear a cisgeneridade como a violência que exerce para manter-se
enquanto padrão é o primeiro passo. Descentrar-se da cisgeneridade enquanto eixo
pensante e definidor das nossas possibilidades de existência é o segundo para de
fato construirmos lugares de existência respiráveis para nossas corpas, para nossas
vidas transviadas. (GRIMM, 2016a)
Para Alves (2013a), afirmar que “mulheres trans* são mulheres” constitui um ato de
“bater na tecla insistentemente”. Há um trabalho simbólico com a memória discursiva em que
falar o aparentemente (ou nem tanto) óbvio de forma redobrada13 se constitui como uma
necessidade política e ética (que produz sentidos): falar que certas mulheres sejam mulheres
não constitui uma repetição do mesmo, já que passa a “desafiar ontologias que relegam
nossos corpos como masculinos” e que “reificam nossos corpos”. Nesse processo de
constituição de um “eu” na relação com um “nós” (“nós mulheres trans”), há a passagem pela
demarcação de uma fronteira (imaginária) com as mulheres cis que é significada como
condição de possibilidade para que ambas as categorias sejam vistas com a mesma
legitimidade, como formula a autora.
Uma das principais bandeiras do Transfeminismo é o empoderamento das pessoas
trans* em seu aspecto pleno, ou seja, contemplando o empoderamento de nossos
corpos. Quando eu bato na tecla insistentemente de que mulheres trans* são
mulheres, e quando luto para que nenhum discurso feminista usurpe a categoria de
mulher para atender a sua própria agenda cisgênera, isso também é empoderar nós
mulheres trans* que desejamos ser vistas como mulheres de mesma categoria que as
mulheres cisgêneras, isto é, ter a mesma legitimidade – pois dizer que somos
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Podemos pensar este redobramento através da noção de repetição histórica, formulada por Orlandi (2012c,
p.70), em que o dizer é inscrito no repetível como forma de fazer a língua significar, processo este que é
mediado pela função-autor.
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final, há a passagem que articula a esfera do “eu sou” para o “eu quero” como forma de
reivindicação de uma identidade politica, em nome de uma causa: a despatologização.
Podemos remeter para relações interdiscusivas deste texto a partir do momento em
que as considerações de Panda questionam as evidências sobre a constituição identitária de
pessoas transgêneras presentes virtualmente em outras formações discursivas. Dizer-se
homem trans, a partir da fluidez de sua própria identidade, questiona as associações feitas
entre as identidades trans implicarem necessariamente um trânsito (enquanto “mudança”)
entre os gêneros de forma permanente e binária.
Quantas vezes me senti com medo de ser classificado como uma menina
ou mulher por meu comportamento? Quantas vezes me senti desconfortável por me
enquadrarem como menino ou homem em diversas situações? Não me seria
possível contá-las, mas ao menos agora posso entendê-las. Como quando não me
sentia confortável em cruzar as pernas como uma mulher ou de tirar a camisa como
um homem. Afinal, não sou uma mulher, mas também não sou um homem. O medo
de ser classificado como uma ou outro tornou-me um androide sem que eu pudesse
perceber.
Mas não sou um androide, sou um andrógino. Não sou inumano, não sou
sem gêneros: sou, sim, um homem, mas também sou uma mulher! Ah, e eu que
pensava que apenas homens homossexuais é que gostavam de soltar a franga! Sou
colorida como o arco-íris, brilhante como a purpurina, gosto de usufruir do gênero
andrógino.
Eu sou toda cheia de gêneros!
Tenho, sim, permissão para me comportar como quiser. Sou um homem
que gosta de usar esmalte, sou uma mulher que gosta de sua própria barba. O
armário já não prende mais a menina, finalmente consegui alcançar sua mão e
beijar-lhe os doces lábios. A leoa está solta e quer lutar pelo seu direito à existência.
(ANÔNIMO/A, 2013)
Eu entendia as pessoas transexuais como sendo aquelas que desde muito
cedo na infância já sabiam qual era o seu gênero certo; uma sucessão de certezas
culminando na redesignação sexual. Qual não foi minha surpresa quando percebi
que identidade de gênero não seguia uma “receita de bolo”! A ideia de que uma
pessoa só pode ser homem ou mulher se sentir do jeito x e se comportar do jeito y
cria um limbo onde colocamos as identidades não-binárias. Pra mim, invisibilizá-las
totalmente e tentar forçá-las a se conformar dentro do modelo binário é uma
violência. (...) O fato de a minha identidade não ser binária – por qualquer motivo
que seja, desde puramente político até eu “simplesmente” não me situar em
nenhuma das extremidades do espectro – não significa que eu esteja ameaçando
aquelas que não são. Já conheci pessoas com experiências muito parecidas com as
minhas, e nenhuma delas é igual à outra. Estamos falando de gente. Não há como
uma coisa só englobar toda a vastidão de experiências que uma pessoa pode ter na
vida, mas ainda assim há quem se ache no direito de poder validar quem ou o que
você é. Demonizar a dúvida só faz com que nos sintamos culpados por
experimentar, por tentar saber por nós mesmos o que é melhor pra nós. Parece-me
que as pessoas muitas vezes se esquecem de que viver é uma sucessão de tentativas,
uma construção contínua. (ANÔNIMO/A, 2012)
A narração de si a partir da fluidez de gênero de modo a questionar (ou trabalhar
simbolicamente) os pressupostos binários sobre masculinidade e feminilidade se encontra
presente no discurso de várias pessoas transgêneras, como nos relatos anônimos publicados
no blog transfeminismo.
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enquanto travestilidade
enquanto não-binariedade.
Cada uma delas, identidades de luta - cada uma com uma história,
especificidade - que marca nosso lugar de crise, de falha, de interferência e
confronto diante de um cis.tema que nos violenta em nome de uma expectativa
sobre a "natureza" dos nossos corpos. (GRIMM, 2016b)
Os recortes acima do texto de Grimm (2016b) atestam a produção de um discurso que
busca opacificar a existência e a (re)produção material do gênero - em suas “assignações”,
“expectativas”, “pedagogias”, “lugares”, “papéis”, “expressão do corpo” e “tecnologias de
construção”. A opacificação do gênero é produzida (como efeito de sentido) a partir do
momento em que se atestam possibilidades de constituição de subjetividade que não se
“articula[m] à assignação de forma satisfatória” e que estão, portanto, em “crise” - sendo
estas “assignações” entendidas como as atribuições de gênero ao nascimento (“a partir de
uma leitura sobre nossos corpos”) que se ligam às expectativas sociais das identidades de
homens e mulheres.
O termo “assignação” condensa o trabalho simbólico quanto à temporalidade do
gênero neste discurso, pois questiona, a partir de relações com o interdiscurso, os sentidos
sobre gênero como uma atribuição estática, vinculados à noção de “nascimento”.
“Assignação” se contrapõe aos sentidos (temporais) de gênero como algo estabelecido ao
“nascimento”. Busca sinalizar que entre o nascimento e às expressões de gênero concretas
dos sujeitos há um hiato (temporal, mas também simbólico, porque diz respeito à constituição
do sujeito) capaz da produção de crises e quebra de expectativas (uma “movimentação social
e subjetiva” capaz de “materializar um corpo em crise”) sendo, portanto, um termo capaz de
demarcar uma margem entre distintas formações discursivas.
O corpo é significado, neste discurso, não como algo construído como um referente
estabilizado, ele ganha materialidade quando é “lido” e “marcado”. O corpo é passível de
uma leitura que orientará expectativas socialmente estabelecidas sobre homens e mulheres.
Uma leitura que produz marcas, como entende Grimm, mas não um destino inexorável nem
uma essência ou uma verdade primordial. O sexo é produto de leituras sedimentadas sobre os
corpos que geram marcas que, por sua vez, ensejam processos de questionamento pelos
sujeitos trans quanto às suas evidências.
4. Conclusões
Partindo das considerações de Orlandi (2012b) sobre a leitura como forma de
produção de sentido, podemos articular esta noção para a compreensão da produção de
sentido sobre o corpo e sexo. Segundo a autora, no momento em que se realiza o processo de
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O corpo também foi pensado por Orlandi (2012a, p.85) através da análise de discurso, fazendo referência à
“materialidade do sujeito” e à “significação do corpo” quando afirma que o “corpo de um sujeito é produzido
num processo de significação”.
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Orlandi (2012a) entende a produção de linguagem enquanto trabalho (cuja especificidade reside no seu
caráter simbólico).
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Referências Bibliográficas
ALVES, Hailey Kaas. Autoempoderamento é um exercício diário. 2013a. Disponível em:
https://generoaderiva.wordpress.com/2013/09/26/o-autoempoderamento-e-um-exercicio-
diario/ Acesso em 10/10/2016.
_____. Ser diferente é ser diferente: a quem interessam as minorias? In: ORLANDI, Eni. P.
(Org.). Linguagem, sociedade, políticas. Pouso Alegre: Univás; Campinas: RG, 2014.
PANDA, Jamal. Que visibilidade queremos? Qual a visibilidade dos homens trans (e
outras pessoas dentro da trans masculinidade)? 2014. Disponível em:
http://transfeminismo.com/que-visibilidade-queremos-qual-o-visibilidade-dos-homens-trans-
e-outras-pessoas-dentro-da-trans-masculinidade/ Acesso em 10/10/2016.