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O preconceito na sociedade existe para todos. De fato, mais para alguns que para
outros – pensando-se em termos de etnias, religiões, orientação sexual, etc. À guisa de
ilustração, citamos o dicionário Houaiss (2001, p. 2282), em que aparecem as seguintes
definições, que servem como parâmetro dos registros recorrentes no senso comum:
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O programa 220 Volts foi ao ar de 2011 a 2013 em 4 temporadas. Atualmente (2015), está no ar a 5°
temporada.
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III SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE LÍNGUA,
LITERATURA E PROCESSOS CULTURAIS
Novas vozes. Novas linguagens. Novas leituras.
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discurso que pretende ser livre de qualquer tipo de discriminação. Em sua enunciação,
percebe-se a intolerância em relação a negros, índios, pobres, idosos, obesos, analfabetos e
homossexuais, isto é, a grupos minoritários em geral.
Um trabalho com essa temática faz-se relevante e pertinente à medida que pode
contribuir para a compreensão do humor enquanto crítica social, a partir de um discurso
repleto de julgamentos de valor e posições axiológicas pré-determinadas. Tomamos uma
citação de Gonçalves (2015)140, cuja dissertação de mestrado versa sobre charges com temas
polêmicos, e a reformulamos para nosso escopo, a fim de evidenciar a importância de um
estudo como o nosso. Diz a autora que um trabalho dessa natureza:
[...] Torna-se relevante por levar o sujeito a perceber a mobilização dos discursos
sociais evocados nos enunciados do gênero [esquete], a fim de compreender como
acontece a construção dialógica dos sentidos e, nesse ato, levantar a discussão
acerca da formação crítica de [telespectadores]. (p. 8). Grifos nossos.
Um produto ideológico faz parte de uma realidade (natural ou social) como todo
corpo físico, instrumento de produção ou produto de consumo; mas, ao contrário
destes, ele também reflete e refrata uma outra realidade, que lhe é exterior. Tudo que
é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo. Em
outros termos, tudo que é ideológico é um signo. Sem signos não existe ideologia.
[...] (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, p. 31)
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“[...] Torna-se relevante por levar o sujeito a perceber a mobilização dos discursos sociais evocados nos
enunciados do gênero charge, a fim de compreender como acontece a construção dialógica dos sentidos e, nesse
ato, levantar a discussão acerca da formação crítica de leitores.”
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Para Faraco, “ideologia é o nome que o Círculo costuma dar [...] para o universo que
engloba a arte, a ciência, a filosofia, o direito, a religião, a ética, a política, ou seja, todas as
manifestações superestruturais (para usar certa terminologia da teoria marxista)” (2009, p.
46). À ideologia também se atribui um caráter de ordem axiológica, i.e., toda posição do
sujeito é determinada por uma perspectiva de origem tanto social quanto avaliativa e
ideológica.
Relativamente à personagem que constitui o objeto de nosso estudo, podemos
perceber que sua enunciação está impregnada de signos ideológicos, como veremos a seguir.
Um exemplo desse tipo de consideração é o de que, no esquete analisado, ela se refere aos
“pobres” como “toscos”, e que por esse motivo não são merecedores de um bom tipo de
serviço de assistência à saúde.
Levando-se em conta que nos constituímos na interação por meio da linguagem, é
possível verificar que, em nossas falas ou enunciações, temos, além da nossa própria voz, que
já é por si constituída a partir de diversas valorações, muitas outras vozes sociais, que nos
atravessam subjetivamente. É nesse sentido que, em Marxismo e Filosofia da Linguagem,
capítulo três, que Bakthin/Volochínov ([1929] 2014) discorre sobre o fato de a subjetividade
formar-se a partir do social.
Dessa maneira, nossa voz não é uma, mas composta por várias, as quais se encontram
em constante tensão ideológica. Explica Faraco: “Em outros termos, o [nosso] mundo interior
[que se constitui em uma espécie de “microcosmo heteroglóssico”] é uma arena povoada de
vozes sociais em suas múltiplas relações de consonâncias e dissonâncias; e em permanente
movimento, já que a interação socioideológica é um contínuo devir” (2009, p. 84).
Portanto, ao procurarmos que nossas opiniões sejam aceitas e compartilhadas,
encontramos o paradoxo que é o de nos mantermos singulares ao mesmo tempo em que
desejamos pertencer a um grupo. Assim sendo, o sujeito é construído na relação social com o
outro, num jogo dialógico em que divergentes perspectivas de observar o mundo, bem como
diferentes universos axiológicos, permitem que nos reconheçamos. Somos dotados de
individualidade, mas a construção do nosso ser passa pela coletividade.
Como afirma Charaudeau (2016): “[...] como eu saberia quem eu sou, como teria
consciência de minha existência se não existisse um outro diferente de mim?” (2016, p. 24-
25)
Segue o autor francês: é nas atividades discursivas
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Aparecem nessa sequência duas técnicas para que um texto cômico funcione: a quebra
de expectativa e a surpresa. Elas se dão porque, ao invés de A Senhora apresentar uma saída
razoável para esse grave problema social, que é a lotação dos hospitais, ela sugere que a
maneira ideal de lidar com isso é aumentar o valor do preço dos planos de saúde, ou seja,
aumentar a exclusão e o acesso das camadas mais populares ao serviço de saúde.
Eu acho, gente, que assim, quem não tem dinheiro pro plano, eu não digo matar, eu
digo, deixar morr..., fazer vista grossa, digamos assim. Eu acho melhor.
Nesse trecho temos a explicação do porquê do nome da personagem ser “Senhora dos
Absurdos”: a proposta dela é deixar de atender ao público menos favorecido simplesmente os
abandonando à própria sorte. Não matando, mas fazendo “vista grossa”, os deixando, dessa
forma, perecer, sem auxílio de qualquer sorte. O nome da personagem a autoriza, de certa
forma, a proferir esse discurso circulante em nossa sociedade, carregado axiologicamente por
vozes de teor intolerante.
(tosse) Uhum, não, isso aqui é uma tosse minha que eu peguei aqui no Leblon, não
dá nada.
Nesse segmento vemos que, se a tosse (uma possível virose) foi pega no Leblon,
bairro de classe alta do Rio de Janeiro, não há problemas. Subentende-se que, entretanto, se a
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tosse tivesse sido adquirida num bairro de menor classe econômica, talvez isso a fizesse
efetivamente se preocupar com seu estado de saúde.
Porque você mexer numa virose de uma pessoa dessas tá mexendo numa obra que é
de Deus, porque às vezes foi Deus que jogou aquela virose na vida daquela pessoa, e
você mexer nisso é até pecado.
Vê-se aqui que até o discurso religioso entra em pauta quando o assunto é defender-se
do inimigo, que no caso, é o desprovido, o pobre, o “tosco”, como ela mesma o define no
começo do esquete. Para legitimar o descaso com a saúde, relacionado às camadas mais
humildes da população, entra em pauta a vontade de Deus, como se fosse trabalho Dele fazer
com que tal ser humano pegasse determinada doença, e que, assim sendo, não cabe a nós,
homens, interferir nesse processo. Tem-se aqui a inversão do discurso religioso, porque este,
socialmente, se edifica no sentido de ajudar, não de deixar morrer, como a personagem
sugere. Aqui entram também ecos do discurso calvinista, em que Deus escolhe quem salvar,
independentemente de sua trajetória sobre a Terra. Isso não depende das boas ações
praticadas, mas da decisão divina. Certamente, A Senhora se considera uma das escolhidas,
não se sentindo desconfortável em relação ao fato de que há pessoas que não têm acesso aos
serviços de saúde em nosso país, já que ela os possui.
Charaudeau nos diz que: “Segundo os dogmas da natureza, os seres não são iguais
entre si, isso é uma essência, uma marca da humanidade.” (2016, p.101). Esse tipo de
argumento é o que legitima o discurso que promove a desigualdade e a exclusão (no que tange
a raças ou etnias, tal é o berço do racismo). Assim, os destinatários desse discurso excludente
podem aderir à ideia de que existem seres humanos inferiores, que, portanto, não devem ser
considerados membros plenos da sociedade.
Essa é a ideia que perpassa todo o discurso da personagem A Senhora dos Absurdos. A
cada palavra proferida, há uma valoração que se filia a discursos sociais de intolerância. Para
ela, há efetivamente seres humanos inferiores, e ela os desqualifica através de uma fala
irônica e jocosa.
Um outro fator a ser levado em conta é que o programa 220 volts foi veiculado à noite,
em um canal conhecido especialmente por produzir atrações brasileiras de humor. Assim
sendo, o telespectador já sabe que o que vai assistir não tem compromisso com a realidade; é
claro, críticas são feitas, mas os textos humorísticos ou piadas que aparecem parecem ter
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menor grau de potencial ofensivo justamente porque os esquetes são construídos a partir de
assuntos polêmicos.
Devemos também considerar o fenômeno da heteroglossia dialogizada, ou seja, a
personagem encontra-se atravessada por preconceitos e fobias que ela incorporou
naturalmente através do ambiente em que ela cresceu, e provavelmente herdou esse ideário
intolerante das pessoas que a rodeavam, sem deixar passar pela própria consciência e espírito
crítico esses juízos de valor.
Mais uma vez, levemos em consideração o nome da personagem: A Senhora dos
Absurdos. Não temos aqui a individualidade de um ser, mas uma caricatura. É a representação
de uma educação antiquada e preconceituosa. Ela se considera herdeira de uma linhagem
superior e se julga isenta de motivos para tornar-se objeto de escárnio de qualquer sorte. Em
seu discurso humorístico e intolerante, percebe-se um tom de crítica e reivindicação social.
Aparece nessa enunciação um certo tipo de antítese, na qual a personagem diz algo, mas dá
pistas de que deseja expressar o contrário. Essa enunciação revela uma tensa relação entre a
classe dominante e as minorias, mas essa tensão pode ser considerada de modo relativo,
levando-se em conta que
O riso participa organicamente desse processo porque tudo dessacraliza [...]. Rir dos
discursos deixa clara sua unilateridade e seus limites, descentrando-os, portanto. A
consciência socioideológica passa a percebê-los como apenas um entre muitos e em
suas relações tensas e contraditórias. O riso destrói, assim, as grossas paredes que
aprisionam a consciência no seu próprio discurso, na sua própria linguagem.
(FARACO, p. 82)
Finalizando, traremos uma citação de Di Fanti, que se mostra muito produtiva para os
nossos propósitos: “É necessário ir além do dito, do visível, observando que há uma tensão
entre o que é mostrado e o que não é aparente, mas decisivo para produção de sentidos.”
(2015, p. 428, itálico da autora).
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. Tradução: Paulo Bezerra. São Paulo: Editora
34, 2016.
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FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. 2ª. ed. São Paulo: Contexto, 2016.
FARACO, Carlos Alberto. Linguagem & Diálogo. As ideias do Círculo de Bakhtin. São
Paulo: Parábola Editorial, 2009
HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. 1ª. ed. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2001.
POSSENTI, Sírio. Humor, língua e discurso. São Paulo: Contexto, 2014. 1 ed. 2ª.
reimpressão.
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