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SITCOMS ESTADUNIDENSES: UM GÊNERO DISCURSIVO

Graziella Steigleder Gomes (PUCRS - CAPES/PROEXT)

Quando assistimos a sitcoms, estamos assistindo a nós


mesmos; e quando as desconstruímos, nos tornamos
mais cientes de como nós somos construídos.116
(MORREALE, 2003, p. xix)

A televisão tornou-se, em nossos dias, um veículo do qual muitos de nós não podem
prescindir. Através dela temos acesso a todo o tipo de informações jornalísticas e também a
programas, filmes, séries, etc., cujos objetivos são, entre outros, formar opiniões, informar e
entreter. Dentro daquilo que visa ao entretenimento, que pode ser de ação, suspense, terror,
ficção científica ou aventura (para citar alguns), encontramos as séries cômicas, também
chamadas de sitcoms, abreviação de situation comedy – comédia de situação (ou de costumes)
–, as quais escolhemos como objeto de análise deste estudo.
Tendo em vista essas considerações, o objetivo deste trabalho é identificar o que há de
recorrente nas sitcoms estadunidenses, procurando identificar quais traços as definem como um
gênero discursivo, a partir de uma perspectiva de análise baseada nos pressupostos do Círculo
de Bakhtin.
Antes de começarmos a discorrer sobre as peculiaridades das sitcoms, torna-se relevante
elencarmos algumas noções sobre o que são gêneros do discurso no conjunto da obra
bakhtiniana, sobretudo no que diz respeito à publicação Gêneros do Discurso, de 1979.
Segundo Machado (2014), a noção de gêneros teve sua origem na Grécia antiga, com
Platão. Suas considerações, assim como delineadas em A República, inspiraram seu discípulo
Aristóteles a escrever a Poética, obra na qual o filósofo grego toma como objeto de estudo o
fazer dos poetas, classificando suas produções de acordo com a voz e as formas miméticas que
nesse processo surgiam. Tratava-se, portanto, de identificar diferentes tipos de poesia: a lírica,
a épica e a dramática. Apesar de a Poética ainda ser uma referência para os estudos de gêneros,
é preciso lembrar que ela opera com gêneros de ordem poética e oral. Ainda para a autora, à
medida que a prosificação da cultura foi tomando corpo, novos gêneros surgiram, e novas
formas de estudá-los tiveram de ser criadas.
Assim, com a emergência da cultura prosificada, passou-se a trabalhar com as noções
de gênero de maneira a reunir textos com propriedades em comum (MACHADO, 2014).

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"When we watch sitcoms, we are watching ourselves; and when we deconstruct them, we become more
aware of how we are constructed."

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Trata-se de um reconhecimento de determinados padrões nos quais se podem agrupar formas
discursivas a partir de determinadas similitudes, que são reconhecíveis no processo de interação
verbal. Interessa a nós a abordagem em uma orientação comunicacional, assim como proposta
pelo Círculo de Bakhtin.
Para a teoria bakhtiniana, a noção de gênero está calcada no entendimento de produção
discursiva viva, porque oriunda de uma sociedade dinâmica. Assim, os gêneros, sob essa
perspectiva, comportam plasticidade e fluidez, que permitem que seja sua tipificação menos
relevante do que sua produção.
A classificação de gêneros, portanto, não pode seguir orientações metodológicas pré
estabelecidas, já que um mesmo excerto discursivo (independentemente de sua extensão) pode
conter traços híbridos, acumulando mais de um critério de definição; tal é o caso da literatura
fantástica, que se apresenta em momentos distintos da história, fazendo uso de diferentes
formatos. Há mesmo casos em que um gênero se transfigura em outro. Por exemplo, pode-se
citar o "Poema tirado de uma notícia de jornal", de Manuel Bandeira. O conteúdo poético é,
nessa instância, redigido fazendo-se uso de um gênero culturalmente aceito como noticioso
(FIORIN, 2016). Assim, diferentes formas de perceber um dado texto podem autorizar e
legitimar suas considerações e classificações de acordo com suas abordagens específicas.
Faraco (2009) explica a etimologia do termo "gênero", dizendo que: essa expressão
relaciona-se com palavras como genitor, primogênito, genital, genitura; ou seja, há uma
referência ao ato de gerar e ao produto dessa geração. Gêneros, então, são textos que
compartilham traços em comum. Ainda de acordo com o autor, Os gêneros do discurso foi um
texto escrito por Mikhail Bakhtin (1895-1975) possivelmente entre 1952-53, e trata-se de um
material que não foi concluído. Foi encontrado entre os seus alfarrábios e publicado pela
primeira vez na Rússia no ano de 1979.
Segundo Bakhtin ([1979] 2016, p. 42), "Os gêneros do discurso [são] formas
relativamente estáveis e normativas de enunciado." Tanto Fiorin (2016) quanto Faraco (2009)
dão ênfase à palavra "relativamente". Temos, então, características fronteiriças que se
modificam constantemente, em uma tensa relação. "O gênero une estabilidade e instabilidade,
permanência e mudança. [...] A reiteração possibilita-nos entender as ações e, por conseguinte,
agir; a instabilidade permite adaptar suas formas a novas circunstâncias." (FIORIN, 2016, p.
76).
Os gêneros relacionam-se constantemente entre si, relacionando também enunciados.
Para Bakhtin, "O enunciado [consiste na] unidade real da comunicação discursiva." (itálicos
do autor, [1979] 2016, p. 22), sempre ocorrendo dentro de determinada esfera de atividade

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humana. Por essa razão, os sujeitos, ao se enunciarem, esperam por uma responsividade ativa
vinda de seus interlocutores, criando, dessa maneira, elos discursivos que se projetam tanto para
o futuro quanto fazem referência a enunciados já proferidos. Dessa forma, segundo o filósofo
russo,

[...] o enunciado é um elo na cadeia da comunicação discursiva e não pode ser


separado dos elos precedentes que o determinam tanto de fora quanto de dentro,
gerando nele atitudes responsivas diretas e ressonâncias dialógicas." ([1979] 2016 p.
62)

A Bakhtin, ([1979] 2016) interessa menos a classificação em diferentes espécies de


textos que o dialogismo inerente ao processo de comunicação social. O filósofo russo se afasta
das teorias tradicionais de classificação para dar lugar a manifestações discursivas, tais como o
heterodiscurso, isto é, os diversos códigos que não se restringem à palavra, concebida como
"um fenômeno ideológico por excelência que, possuindo natureza dinâmica, entra em contato
com uma diversidade de fios ideológicos de modo a refletir e refratar diferentes graus de
transformações sociais." (DI FANTI, 2009, p. 182).
Feito esse preâmbulo e retomando a discussão sobre sitcoms, tomaremos como material
de análise sitcoms estadunidenses de modelo técnico do tipo clássico, conforme o paradigma
criado por I love Lucy nos anos 50. Justificamos que nossa opção por trabalhar com shows dessa
nacionalidade se deve a dois fatores: primeiramente, porque os EUA foram o país em que esse
gênero despontou e, em segundo lugar, por esse mesmo motivo, é onde mais desenvolvidas se
encontram as produções cujas características pretendemos traçar.
Vejamos a definição de sitcom pela Encyclopaedia Britannica online117:

Comédia de situação, também chamada sitcom. Séries de comédia de rádio ou


televisão que envolvem um elenco contínuo de personagens em uma sucessão de
episódios. Frequentemente, os personagens são tipos marcadamente diferentes que se
encontram juntos por alguma circunstância e que compartilham um dado ambiente,
tal como um prédio ou local de trabalho. As sitcoms duram tipicamente meia hora,
podendo ser gravadas na frente de um público no estúdio ou fazendo uso de risos e
aplausos pré-gravados, sendo caracterizados por discussões e conflitos que são
rapidamente resolvidos.

As sitcoms tiveram sua origem no rádio, na década de 1920. As primeiras comédias de


situação televisivas eram simplesmente um decalque daquelas que eram antes transmitidas pelo

117
https://global.britannica.com/art/situation-comedy. (Acesso em 01out2017) 412
"Situation comedy, also called sitcom. Radio or television comedy series that involves a continuing cast of
characters in a succession of episodes. Often the characters are markedly different types thrown together by
circumstance and occupying a shared environment such as an apartment building or workplace. Sitcoms are
typically half an hour in length; they are either taped in front of a studio audience or employ canned applause,
and they are marked by verbal sparring and rapidly resolved conflicts." (Acesso em 03abr2017)
rádio. Entretanto, essa variedade de entretenimento começou a tomar forma própria e a primeira
sitcom televisiva da qual se tem notícia foi produzida de 1947 a 1950, intitulada Mary Kay and
Johnny. Por terem se tornado muito populares, as sitcoms começaram a se proliferar,
respeitando seu formato técnico praticamente fixo, como teremos chance de ver mais adiante.
A evolução desse gênero midiático acompanhou a forma como a sociedade igualmente
evoluiu. Nos anos 1950, séries que retratavam o cotidiano familiar eram muito comuns. Nessa
seara, podemos mencionar o já citado I love Lucy (1951-1957), que inaugurou o modelo
clássico de sitcoms, até hoje reproduzido.
Desse período até nossos dias, vimos o nascimento de novos tipos de sitcoms; esses
podem ser considerados uma variação daqueles cuja formatação é mais rígida em termos
técnicos ou de conteúdo, ou seja, encontramos aqui a emergência de subgêneros, criados a partir
de um modelo reconhecido como clássico. Concerne a nós, entretanto, os shows que, ainda
hoje, possuem formatos e estrutura tradicionais, tais como The Big Bang Theory e How I met
your mother, comédias nas quais o núcleo familiar é substituído por um coeso grupo de amigos.
Esse tipo de gênero de entretenimento midiático consiste, no modelo estadunidense, em
programas veiculados semanalmente, com duração média de 24 minutos. As séries podem ser
gravadas diante de um público real ou podem fazer uso do recurso das risadas e aplausos pré-
gravados. Os personagens são fixos e de número limitado, e suas histórias pessoais vão se
revelando capítulo a capítulo. Muitos são estereotipados e, na maioria das vezes, consistem em
personagens cujas desventuras, vitórias, felicidade, tristezas, etc., podem facilmente encontrar
identificação e empatia por parte do público.
De forma geral, esses programas se utilizam de trocadilhos e jogos verbais de toda sorte
(o que muitas vezes dificulta a vida do tradutor do inglês para o português), situações
engraçadas e inusitadas, problemas que podem ocorrer com qualquer pessoa, mas que
rapidamente atingem um ápice e são então resolvidos. É possível que, se tomadas isoladamente,
as cenas do programa não sejam consideradas cômicas, o que as faz engraçadas é
principalmente o contexto em que elas ocorrem.
Nas sitcoms, temos o humor enquanto artefato cuidadosamente preparado pelos
redatores. O efeito cômico é, então, minuciosamente calculado, para que o riso apareça em
situações comunicativas desenvolvidas através do enredo e das relações entre os personagens.
Nessa perspectiva, encontramos sujeitos enunciando à espera de uma atividade responsiva que
busque causar o riso, que traga ao interlocutor um efeito de cunho risível, portanto humorístico.
Charney (2014) elenca as subdivisões geralmente encontradas em sitcoms: o início, no
qual aparece um pequeno teaser sobre o conteúdo do episódio, na sequência aparece a vinheta

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de abertura; ainda no início, temos delineado o contexto principal do episódio (que pode incluir
problemas, decisões difíceis, obstáculos, etc.). Entretanto, posto o conflito, esse não pode ser
resolvido muito rapidamente, pois dessa forma o episódio deixaria de ter seu motivo de ser.
Portanto, surge algum tipo de problema ou de impedimento para que se chegue a uma resolução.
Há então a necessidade de uma nova abordagem para que o objetivo seja alcançado antes do
fim da história. Esse momento marca o meio do programa, quando obstáculos se apresentam e
vários problemas de entendimento entre os personagens podem acontecer, aumentando assim a
tensão, que será resolvida na última parte, com um fim altamente previsível e no qual tudo é
solucionado.
A empatia com os personagens é condição necessária para que o riso e a catarse que ele
proporciona ocorram. Conhecer bem os personagens, suas histórias de vida, suas fraquezas,
habilidades, particularidades de forma geral, dão suporte às razões pelas quais torcemos por
eles, rimos e sofremos com seus pequenos problemas.
Outra característica do gênero em questão é a previsibilidade. Determinados
personagens servem como o centro condutor do episódio enquanto outros servem de apoio para
esses, visando a fazer funcionar o aspecto cômico pretendido. Além disso, alguns personagens
têm bordões que acabam por caracterizá-los.
Segundo Furquim, os jargões podem mesmo ser manifestados por gestos e expressões,
o que garante ao público "sentir-se parte integrante do elenco retratado na sitcom, fazendo-o
conhecer e reconhecer seus personagens como se fossem seus velhos amigos." (1999, p. 12).
Dentre as características mais marcadamente tradicionais dessa forma de
entretenimento, podemos perceber que, apesar de haver em cada episódio uma nova aventura
ou imbróglio a ser resolvido, em verdade muito pouco muda. O elenco fixo é de número
limitado, pois assim há a possibilidade de que as subtramas se desenvolvam, sem que se perca
de vista a estória principal. De acordo com Wamsler (2014), esse formato estandardizado, no
qual aproximadamente três histórias ocorrem em paralelo, sendo uma mais sobressalente que
as outras duas, confere versatilidade ao show.
Todos os enredos (o principal e os que ocorrem de forma paralela a esse) devem ter
início-meio-fim no mesmo episódio, com exceção do surgimento de algum grande evento
(como um casamento, por exemplo). A consistência e previsibilidade são, dessa forma,
inerentes a esse gênero, pois há somente 24 minutos para que tudo se resolva. Para Charney
(2014), simplicidade é, portanto, o conceito chave para que se possa compreender a estrutura
de uma sitcom.

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Existem atualmente diversos tipos de sitcoms, entretanto, focaremos num exemplo que,
apesar de estar correntemente no ar, se atém ao modelo clássico previsto a partir das primeiras
sitcoms gravadas. O modelo clássico é baseado na fórmula que gira em torno de um núcleo
familiar, entretanto, atualmente, temos a opção de substituir a família por um grupo de amigos
que são bastante unidos.
Apesar das sitcoms tratarem de temas variados, em relação à escolha de estilos técnicos
há um número mais restrito de opções. Como já afirmado, podem ser gravadas em frente a uma
plateia ou podem ser gravadas no set de filmagens sem a interação com o público. As sitcoms
são raramente filmadas em locações exteriores, dadas as limitações do formato. A maior parte
das ações se desenrola em um set de filmagens. Basta lembrar-se do apartamento da Monica ou
o coffee shop Central Perk em Friends, ou do apartamento de Lucy em I love Lucy. No formato
clássico, o cenário das sitcoms pode ser equiparado ao de um teatro, constituindo-se em três
paredes, e a quarta parede é onde ficam as câmeras e o staff técnico, e logo atrás delas, o público.
Temos um exemplo de uma sitcom atual que faz uso desse tipo de formatação. Trata-se
do The Big Bang Theory (2007-). A série foi ao ar pela primeira vez em 2007 no canal de
televisão CBS e teve até agora 10 temporadas transmitidas no Brasil pela Warner. Os episódios
se passam em Pasadena, Califórnia. O core do programa consiste em cinco personagens
principais, com trinta e poucos anos. As locações são, com raríssimas exceções, em ambientes
fechados (os apartamentos dos personagens ou seus locais de trabalho), e a gravação é feita em
estúdio, em frente a uma plateia. O esquema de gravação consiste em 3 câmeras. O mote
principal da série é a busca do amor romântico e as curiosas situações que ocorrem em relação
à ocupação profissional de cada personagem – por serem a maioria cientistas, apesar de o serem
em diferentes áreas.
Interessa-nos neste artigo menos entrar em detalhes sobre a série The Big Bang Theory
e seu conteúdo do que fazer-lhe de exemplo de como uma sitcom que se prende a um modelo
praticamente fixo desde os anos 1950 continua a ser popular e lucrativa.

1 SITCOMS E NOÇÕES BAKHTINIANAS EM RELAÇÃO


Levando-se em conta o objeto de nosso escrutínio, podemos pensar em algumas
relações que dele surgem se confrontados com a teoria bakhtiniana. A primeira e mais relevante
é a questão do dialogismo, desde o momento em que, intradiscursivamente, os personagens
interagem entre si, enunciando ou respondendo às enunciações que são a eles dirigidos. O

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diálogo se vale de enunciados, e esses aparecem enquanto materialização da interação verbal
entre sujeitos inscritos na história - mesmo tratando-se de personagens fictícios. Vemos então
que "a intenção discursiva do falante, com toda a sua individualidade e subjetividade, é aplicada
e adaptada ao gênero escolhido, constitui-se e desenvolve-se em determinada forma de gênero"
(BAKHTIN, [1979] 2016, p. 38), sendo esse gênero a sitcom. Essas ponderações nos levam à
noção de atividade responsiva, que ocorre por parte dos telespectadores, que, nesse caso, são
os interlocutores do projeto enunciativo proposto, sendo que esse busca provocar um efeito
derrisório.
Podemos igualmente pensar no entendimento de heterodiscurso, enquanto diferentes
linguagens sociais que permeiam as relações entre os personagens. Por exemplo, se tomarmos
The Big Bang Theory, veremos que o tipo de discurso que Sheldon enuncia, enquanto Phd. em
Física, difere substancialmente da enunciação de Penny, que é uma garçonete. Essas
considerações nos remetem à questão da palavra enquanto dotada de entonação (que dá o
"colorido" ao enunciado). Diz Volochínov que "A entonação é dada pela elevação ou descenso
da voz e expressa nossa atitude em relação ao objeto de enunciação, atitude que pode ser feliz,
aflita, entusiasmada, interrogativa, etc." ( [1930] 2013, p. 147, nota de rodapé - grifos do autor).
Volochínov afirma igualmente que "A entonação sempre se encontra no limite entre o verbal e
o extraverbal, entre o dito e o não dito" (VOLOCHÍNOV, [1926] 2013, p. 82, grifos do autor).
Faz-se necessário, portanto, para compreender o que é entonação, mais que elementos
puramente linguísticos, já que esses carecem de sentido; desvinculados das suas condições de
produção, não podem significar. É preciso recorrer ao contexto extraverbal para apreendê-la.
Abaixo traremos um exemplo da aplicação dessa noção.
Voltando à sitcom Friends, vemos Joey enunciando seu famoso bordão "How you
doin'?" Percebe-se aqui a questão bakhtiniana de entonação nessa enunciação. "How you
doin'?" (Como você está?) é, por si, uma pergunta relativamente simples que suscita no
interlocutor respostas que podem ser de diversas ordens. No caso do enunciado de Joey,
entretanto, ela não é unicamente uma expressão que visa a saber sobre o estado do interlocutor;
na realidade, "How you doin'?" passa a relacionar-se com uma questão que subjaz a esse
discurso, que é: Joey o utiliza não para saber como o outro está, mas com um objetivo
específico, que é cortejar; ou seja, trata-se de uma "cantada". Por essa razão, sendo
heterossexual, o personagem somente enuncia essa pergunta para mulheres. Essas questões são
oportunas para quem está a par do contexto da série, conhece os personagens e, portanto,
entende o tema dos enunciados que ali circulam.

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Outra questão a se levar em conta é a dita "neutralidade" da palavra que, enquanto não
em uso, aguarda por um preenchimento ideológico. Isso ocorre em The Big Bang Theory.
"Bazinga!", palavra que Sheldon usa par fazer piadas, não tem valor argumentativo por si, na
verdade nem mesmo é uma palavra que existia antes do show. No entanto, a partir do uso que
o personagem faz desse item lexical, ele passa a ser preenchido por um acento valorativo;
ouvimos "Bazinga!" e lembramos imediatamente do personagem e suas "pegadinhas", e amiúde
o utilizamos entre amigos que compartilham da apreciação por essa série. "Bazinga", portanto,
já se encontra revestido por uma valoração ideológica. Devemos levar em conta que "bazinga"
é uma palavra inventada, mas o que foi dito até agora vale para qualquer palavra: quando não
em uso, resguardam uma neutralidade, enquanto potencialidade; em uso, carregam-se de
valorações, e de ideologia.
Em nível interdiscursivo, podemos pensar nas sitcoms em relação com outras sitcoms,
enquanto veiculadoras de posições axiológicas e de ideologias - tendo-se sempre em mente as
suas condições de produção. Wamsler (2014) sustenta que a partir dos anos 1970, essa forma
de entretenimento passou a tratar de temas socialmente relevantes, tais como a emancipação da
mulher, racismo e o renovado papel da família – temas, aliás, atuais até nossos dias. Pode-se
perceber, portanto, que as sitcoms não são um gênero que visa unicamente ao efeito catártico
do telespectador através do riso; ela é também um meio de veiculação ideológica.
À guisa de ilustração, traremos alguns exemplos. A série Mary Tyler Moore (1970-
1977) mostrava uma mulher divorciada lidando com reveses familiares e sua carreira
profissional, tópico, portanto, fortemente relacionado à questão da emancipação feminina, em
voga nessa época (e ainda hoje em pauta pela sua relevância). Da mesma forma, as comédias
de situação podem desempenhar um papel social, como de inclusão/aceitação de classes
minoritárias ou étnicas. Foi o que ocorreu com The Bill Cosby Show (1984-1992), bem como
com The Fresh Prince of Bel-Air (1990-1996), séries nas quais os episódios eram formados por
afrodescendentes somente. Na década de 1990, houve um distanciamento do tópico que tange
a núcleos familiares, e a atenção passou a recair sobre assuntos tais como relacionamentos,
amizade, trabalho e sexualidade, como em Friends (1994-2004) ou Seinfeld (1989-1998). É
assim que vemos Furquim afirmar que (1999, p. 05), "De forma satírica, ela [a sitcom] diz a
verdade sobre questões sociais, políticas e familiares de determinada cultura."
Vemos aqui de que forma as sitcoms resguardam um estreito vínculo com os gêneros
do discurso e com as diversas esferas da atividade humana, entendidas como as relações que
mantemos na escola, no trabalho, entre amigos, etc.

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2 CONCLUSÃO
A sitcom, gênero predominantemente televisivo (embora atualmente possa ser acessado
via smartphones, tablets, computadores) torna-se de grande relevância para o interlocutor desse
projeto enunciativo – nesse caso, o telespectador –, pois existe na relação entre personagens e
público uma identificação, não importando o fato de que os personagens não sejam pessoas
reais. As fronteiras entre realidade e ficção tornam-se tênues quando pensamos em assistir a
sitcoms como um meio de evasão dos problemas que encaramos diariamente.
Conforme Morreale (2003), as sitcoms encontram-se ancoradas na relação entre a
ideologia e a cultura da época em que são veiculadas. Ideologia aqui se refere à forma como as
pessoas pensam, agem e se percebem enquanto seres socialmente organizados. Apesar de ter
tido seu início no rádio, foi na televisão que o formato atingiu seu auge e desde seu início tem
refletido mudanças em como damos forma a crenças, atitudes, valores e maneiras de ser. Por
meio de seus personagens, podemos gerar uma atividade responsiva de identificação (ou não),
tendo-se em vista que, por vezes, a televisão torna-se um espaço significativo na maneira como
nossas subjetividades são moldadas. Ela pode ser definidora de comportamentos
convencionalmente aceitos, pois reflete a realidade de dada sociedade em determinado
momento, e é de responsabilidade dos telespectadores a inevitável refração sobre o que é
assistido, i.e., a interpretação do conteúdo dos programas, cujo potencial é essencialmente
risível, passa pelo critério valorativo do interlocutor do projeto enunciativo de cada sitcom.
Dentro de um formato supostamente simples e despretensioso e que serve "apenas"
como fonte de entretenimento e comicidade, pode-se perceber nas sitcoms relações conflitivas
no que tange a família, comunidades, ambiente de trabalho, etc., cujo tratamento humorístico
espelha a tensão que marca diferentes momentos históricos e sociais.
As atividades responsivas que temos diante das sitcoms e das situações que elas
apresentam se dão por meio de pertencimento e identificação do interlocutor com o que ele
assiste, aparecendo o programa como um meio em que mudanças de ordem social podem
começar a ser construídas. Levando-se em conta seu caráter ora conservador, ora
potencialmente progressivo, o humor aparece como uma estratégia enunciativa que visa a
atenuar a tensão existente em discursos de outra forma tidos como virtualmente polêmicos,
como aceitação de classes minoritárias ou discriminação de qualquer tipo.
Apesar das limitações que o formato apresenta, as sitcoms são meios autênticos de
veiculação de posições progressivas políticas e ideológicas. Sua evolução implica negociação
de sentidos e construção de subjetividades, tanto quanto construção do que é percebido por nós
como socialmente real.

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As produções das esferas discursivas midiáticas podem, assim, ser consideradas gêneros
discursivos da cultura prosaica (MACHADO, 2014). A possibilidade da incorporação desses
novos meios de propagação do discurso tem relação com o fato de que esses estão ligados a
diálogos outros, aos quais podem constituir-se enquanto uma réplica ou esperar uma atitude
responsiva. Por isso, Bakhtin afirma que

A riqueza e a diversidade de gêneros do discurso são infinitas porque são inesgotáveis


as possibilidades da multifacetada atividade humana e porque em cada campo dessa
atividade vem sendo elaborado todo um repertório de gêneros do discursivo, que
cresce e se diferencia à medida que tal campo se desenvolve e ganha complexidade.
([1979] 2016, p. 12)

Como as sitcoms são produções que possuem um formato altamente padronizado e que
partilham de diversas características enunciativas e técnicas, pensamos ser possível encontrar
um conjunto de especificidades que permitam entender essa produção artístico-
cinematográfico-cultural nos parâmetros do conceito bakhtiniano de gêneros do discurso.
Assim, analisar um corpus desse tipo pode tornar-se interessante à medida que ele pode
ajudar-nos a desvendar o complexo engendramento que ocorre quando de sua produção
recepção desse ideário por parte do telespectador, fazendo com que esses se tornem
interlocutores mais críticos em relação ao conteúdo veiculado por esse "inocente" tipo de
gênero discursivo.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. [1979] Tradução: Paulo Bezerra. São Paulo: 34,
2016.

CHARNEY, Noah. Cracking the sitcom code. (28/12/2014).


https://www.theatlantic.com/entertainment/archive/2014/12/cracking-the-sitcom-
code/384068/ (Acesso25junho2017)

DI FANTI, Maria da Glória Corrêa. Palavra. In: Dicionário de linguística e enunciação. Org.:
Valdir Nascimento Flores [et al]. São Paulo: Contexto, 2009.

FARACO, Carlos Alberto. Linguagem e diálogo: as ideias linguísticas do Círculo de Bakhtin.


São Paulo: Parábola editorial, 2009.

FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Contexto, 2016.

FURQUIM, Fernanda. Sitcom: definição e história. Porto Alegre: FCF Editora, 1999.

MACHADO, Irene. Gêneros discursivos. In: Bakhtin - Conceitos-chave. Org.: Beth Brait. São
Paulo: Contexto, 2014.

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MORREALE, Joanne (editor). Critiquing the sitcom: a reader. New York: Syracuse University
Press, 2003.

VOLÓCHINOV, Valentin. Palavra na vida e palavra na poesia. Introdução ao problema da


poetica sociológica. [1926]. In: A construção da enunciação e outros ensaios. São Carlos: Pedro
e João, 2013.

___________. Que é a linguagem? Introdução ao problema da poética sociológica. [1930]. In:


A construção da enunciação e outros ensaios. São Carlos: Pedro e João, 2013.

WAMSLER, Irina. History and characteristics of US-sitcoms. Academic paper, Kindle Edition.
GRIN Publishing, 2014.

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