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INTRODUÇÃO
O objeto da semiótica é o sentido. Domínio infinitamente vasto, do qual se ocupa o conjunto das
disciplinas que constituem as ciências humanas, da filosofia à lingüística, da antropologia à história, da
psicologia à sociologia. Uma restrição, portanto, se impõe logo de início: a semiótica se interessa pelo
“parecer do sentido”, que se apreende por meio das formas da linguagem e, mais concretamente, dos
discursos que o manifestam, tornando-o comunicável e partilhável, ainda que parcialmente. Este livro tem
por objetivo apresentar, de maneira metódica, a semiótica geral, em sua origem e em seus
desenvolvimentos mais atuais, focalizando um de seus campos de exercício privilegiado: o discurso
literário.
1. Definições
1
F. de Saussure, Curso de lingüística geral, 12a ed. Trad. Antônio Chelini et al. São Paulo, Cultrix, 1976, p. 24.
2
2
J. -C. Coquet, Le Discours et son sujet, Paris, Klincksieck, 1984, p. 21.
3
coletiva (como nos modelos narrativos estereotipados e outras formas discursivas e fraseológicas
cristalizadas, que ocupam um lugar considerável no uso cotidiano da palavra), quer se trate de um
discurso individual, inédito e criador, formador de novos usos da linguagem, como na escrita dos textos
literários.
Examinemos enfim uma última definição, mais técnica, que estabelece as bases programáticas do
projeto semiótico: “A teoria semiótica deve apresentar-se inicialmente como o que ela é, ou seja, como
uma teoria da significação. Sua primeira preocupação será, pois, explicitar, sob a forma de uma
construção conceitual, as condições da apreensão e da produção do sentido.”3. A seqüência do artigo do
qual se extraiu essa definição oferece um amplo panorama do canteiro de obras teórico: inicialmente a
significação como apreensão das “diferenças”, em seguida sua representação em uma estrutura elementar,
depois sua complexificação em um percurso global que simula a “geração” do sentido, desde as
estruturas profundas até as estruturas de superfície, e por fim sua operacionalização pelo “filtro que é a
instância da enunciação”. Eis aí em largos traços a economia geral da teoria semiótica. Suas divisões
sucessivas poderiam facilmente indicar a segmentação de um percurso introdutório à disciplina. Tal
esquema, entretanto, corresponderia a um estágio – início da década de 1980 – de uma teoria em
contínua remodelação.
2. Fontes
Para situar essa disciplina em construção e medir um pouco melhor a extensão de seu projeto, é
necessário indicar sumariamente as fontes principais de cuja convergência ela surgiu. Elas são três: a fonte
lingüística, a fonte antropológica e a fonte filosófica.
Da lingüística saussuriana, a semiótica extrai os princípios fundadores de sua metodologia.
Além do Curso de lingüística geral já citado, é preciso sobretudo insistir nos trabalhos do principal
continuador de Saussure, o lingüista dinamarquês Louis Hjelmslev, cujos Prolegômenos a uma teoria da
linguagem4 e Ensaios lingüísticos5 estabelecem os fundamentos epistemológicos do que será a semântica
estrutural (Greimas, 1966). Obras complexas e de difícil acesso, mas que apresentaram, sobretudo a
primeira, as condições de possibilidade de uma descrição formal do plano do conteúdo das linguagens,
no quadro de uma teoria de vocação científica. A semiótica é em grande parte, em seus princípios,
estrutural e de inspiração hjelmsleviana. Todavia, longe de permanecer num puro formalismo -
apreendendo o sentido através de suas descontinuidades e centrando-se na análise das estruturas
enunciadas independentemente do sujeito do discurso -, ela foi progressivamente integrando em seu
desenvolvimento as pesquisas em lingüística da enunciação, ilustradas principalmente pelos trabalhos
de É. Benveniste6. A concepção semiótica do discurso, visto como uma interação entre produção (por
um sujeito enunciador) e apreensão (ou interpretação, por um outro sujeito enunciador), foi pouco a
pouco se aproximando da realidade da linguagem em ato, procurando apreender o sentido em sua
dimensão contínua e estreitando cada vez mais o estatuto e a identidade de seu sujeito (orientação
ilustrada sobretudo pelos trabalhos de J. -C. Coquet).
Com a antropologia cultural a semiótica divide uma parte de seus objetos e de sua problemática.
Se ela não se interessa em primeiro lugar pela atividade singular do sujeito falante, é porque investiga mais
3
A. J. Greimas, J. Courtés, Dicionário de semiótica. Trad. Alceu Dias Lima et alii, São Paulo, Cultrix, s. d. [1983],
p. 415.
4
Tradução francesa, Paris, Minuit, 1971; tradução brasileira de J. Teixeira Coelho Neto, São Paulo, Perspectiva,
1975.
5
Tradução francesa, Paris, Minuit, 1971; tradução brasileira de Antônio de Pádua Danesi, São Paulo, Perspectiva,
1991.
6
Problemas de lingüística geral. Trad. Maria da Glória Novak e L. Neri, São Paulo, Nacional/EDUSP, 1976.
Problemas de lingüística geral II, Trad. E. Guimarães, et alii, Campinas, Pontes, 1989.
4
os usos culturais do discurso que modelam o exercício da palavra individual: rituais, hábitos, motivos
sedimentados na práxis coletiva das linguagens. Esta ligação entre as duas disciplinas se manifesta
particularmente no estudo das leis que regem a forma mais amplamente transcultural dos discursos, a da
narrativa, na maneira como ela modela e organiza o imaginário humano (da narrativa mítica ao conto
popular e deste ao texto literário). “É impossível enumerar todas as narrativas do mundo”7, escreve
Roland Barthes, abrindo sua “Introdução à análise estrutural da narrativa” em 1966. O primeiro
comentário da Morfologia do conto russo de Vladimir Propp, obra que tanto influenciou o surgimento da
teoria narrativa e, mais amplamente, da narratologia, foi publicado em 1960 por um antropólogo, C. Lévi-
Strauss8. Mais que os objetos partilhados, no entanto, é uma filiação metodológica oriunda de Marcel
Mauss que fundamenta o parentesco entre a antropologia e a semiótica. Esta prolongará e sistematizará o
que fora anteriormente constatado por aquela a respeito do primado das relações estruturais sobre a
realidade empírica dos objetos. A propósito do Ensaio sobre a dádiva, texto importante em que Mauss
estuda o problema da reciprocidade na circulação social dos valores e dos bens, Lévi-Strauss escreve:
“pela primeira vez na história do pensamento etnológico, foi feito um esforço para transcender a
observação empírica e alcançar realidades mais profundas. Pela primeira vez o social [...] torna-se um
sistema, entre cujas partes podemos pois descobrir conexões, equivalências e solidariedades”9. G.
Dumézil explica por sua vez, com termos surpreendentemente semelhantes, em Mythe et épopée, sua
descoberta essencial da característica comum das religiões indo-européias, na imensa variedade de seus
panteões: “a ideologia das três funções hierarquizadas”, função mágica e religiosa, função guerreira e
função de reprodução. Ele escreve: “um verdadeiro progresso se efetivou no dia em que eu reconheci [...]
que a ´ideologia tripartite´ não era acompanhada forçosamente, na vida de uma sociedade, da divisão
tripartite real dessa sociedade. [...] Em vez de fatos isolados e por isso mesmo incertos, uma estrutura
geral se propunha ao observador, na qual, como num vasto quadro, os problemas particulares
encontravam seu lugar preciso e limitado”10. Tanto no caso das relações sociais como no das mitologias, a
apreensão de um conjunto de relações conceituais simples e hierarquizadas, subjacentes à diversidade
empírica, pode dar conta da maneira como se organiza uma realidade significante infinitamente
complexa. Princípios similares comandam, como veremos, a metodologia semiótica em sua abordagem
do discurso. Compreendemos assim porque ela entra, para além dos seus próprios objetos, num estreito
parentesco teórico com a antropologia estrutural (Lévi-Strauss) e com a mitologia comparada (G.
Dumézil).
Enfim, no campo da filosofia, é da fenomenologia que a semiótica extrai, à distância, uma parte
importante de sua concepção da significação. A própria expressão “parecer do sentido”, que utilizamos
no início, ilustra essa inspiração fenomenológica. Nós a encontramos várias vezes nos escritos de
Greimas: desde o “véu do parecer” (em Du sens, 1970, p. 100)11 até a “tela do parecer” (em De
l´imperfection, 1987, p. 78), ela subjaz à sua abordagem relativista de um sentido, se não sempre
incompleto, pelo menos sempre pendente nas tramas do discurso. Ela define o estatuto das formas
significantes como um espaço intersticial entre o sensível e o inteligível, entre a ilusão e a crença
partilhada, na relação reciprocamente fundadora entre sujeito sensível e objeto percebido, destacando-se
no horizonte da sensação. Já em Semântica estrutural (1966), a ligação estava explicitamente assumida: “[...]
nos propomos a considerar a percepção como o lugar não lingüístico onde se situa a apreensão da
significação” (p. 15). É ponto pacífico, entretanto, que a semiótica não poderia ser considerada um ramo
7
A aventura semiológica. Trad. Maria de Sta Cruz, Lisboa, Ed. 70, s. d., p. 95.
8
C. Lévi-Strauss, “A estrutura e a forma. Reflexões sobre uma obra de Vladimir Propp”, Antropologia estrutural
dois. Trad. Maria do Carmo Pandolfo et alii, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1976, cap. VIII, pp. 121-151.
9
C. Lévi-Strauss, “Introdução à obra de Marcel Mauss”, abertura de M. Mauss, Sociologia e antropologia. Trad.
Lamberto Puccinelli, São Paulo, EPU, 1974, vol. 1, p. 21. Ver também, de Lévi-Strauss, Antropologia estrutural e
Antropologia estrutural dois, referência constante de vários semioticistas!
10
G. Dumézil, Mythe et épopée. L´idéologie des trois fonctions dans les épopées des peuples indo-européens, t. I,
Paris, Gallimard, 1968, pp. 15 e 16.
11
[N. dos T.] Edição brasileira: Sobre o sentido. Trad. Ana C. Cruz Cezar et alii, Petrópolis, Vozes, 1975, p. 93.
5
da fenomenologia. Ela se define, muito ao contrário, a uma certa distância do paradigma filosófico, como
uma teoria descritiva da significação discursiva: quando fala de ser, ela designa gramaticalmente um
predicado de estado, fora de qualquer visão ontológica. Mas se a distinção disciplinar vem assim
ostentada, talvez seja porque o ancoradouro filosófico da semiótica está claramente situado: suas
referências essenciais, nesse domínio, são as Idées directrices pour une phénoménologie, de Husserl12 e a
Fenomenologia da percepção, de M. Merleau-Ponty13 . Teremos a oportunidade de evocar novamente essa
ligação no momento de nossas reflexões sobre a figuratividade, característica central da literatura: a
figuratividade faz surgir aos olhos do leitor a “aparência” do mundo sensível. Olhando com mais
cuidado, notamos porém que os limites entre essas disciplinas não são assim tão estanques, e podemos
citar ainda o filósofo Paul Ricœur, para quem a mediação do signo e das obras é indispensável para a
compreensão da “consciência de si”: “O sujeito, diz ele, não se conhece a si mesmo diretamente, mas só
por meio dos signos depositados em sua memória e em seu imaginário pelas grandes culturas” 14. Ele
desenvolve esse tema sobretudo em Tempo e narrativa15, depois em O si mesmo como um outro16, e o inscreve
num longo diálogo com as ciências da linguagem, principalmente com a pragmática lingüística e a
semiótica narrativa e textual17.
Esta contextualização da semiótica, no seio das disciplinas que a inspiraram ou que ela
acompanhou, deve ser entendida como um simples balizamento. Trata-se apenas de mostrar aqui como,
aquém de toda a singularidade teórica e metodológica que lhe é peculiar entre as ciências da linguagem, a
semiótica é um produto interdisciplinar. Um discurso “com vocação científica” sobre o sentido tem
necessariamente ligação com a linguagem que o estrutura, com as produções significantes e transculturais
das sociedades que o modelam e com os postulados epistemológicos que fundamentam as condições de
sua análise. De resto, essa contextualização visa também a sugerir aberturas para numerosos textos que,
embora não fazendo parte diretamente do domínio da análise literária, são passíveis de esclarecer-lhe o
método e a prática.
3. Objetivos
Com relação ao horizonte teórico que acabamos de esboçar, nosso objetivo é naturalmente mais
restrito. É pôr em prática um percurso metodológico para a análise dos textos literários e, a partir daí, propor
prolongamentos e discussões críticas para um estudo da literatura centrado, segundo nosso postulado
inicial, na realidade textual e discursiva. Esta iniciação está portanto inserida num campo de especialidade:
a literatura. Isso não deve ocultar a amplitude muito maior dos domínios de investigação da semiótica: de
um lado, a teoria da linguagem e sua incessante busca epistemológica; de outro, os universos do discurso,
verbais ou não verbais (notadamente visuais), dos quais há análises feitas por semioticistas de diversas
especialidades. A bibliografia proposta no final do volume apresenta esses trabalhos em toda sua
variedade.
Nosso método consiste pois, inicialmente, em nos atermos ao texto propriamente dito, em
reconhecer sua autonomia relativa de objeto significante. Ele considera o texto como um “todo de
significação” que produz em si mesmo, ao menos parcialmente, as condições contextuais de sua leitura.
Uma das propriedades sempre reconhecidas no texto dito “literário” é que, diferentemente do conto oral,
do artigo de imprensa ou outras formas de discurso, ele incorpora seu contexto e contém em si mesmo o
seu “código semântico”: ele integra assim, atualizado por seu leitor e independente das intenções de seu
12
Paris, Gallimard,1950, trad. Paul Ricœur.
13
Trad. Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo, Martins Fontes, 1999.
14
Réflexion faite. Autobiographie intellectuelle, Paris, Éd. Esprit, 1995, p. 30.
15
T. II. Trad. Constança Marcondes Cesar, Campinas, Papirus, 1994.
16
Trad. Lucy Moreira César, Campinas, Papirus, 1991.
17
P. Ricœur manteve regularmente um debate com A. J. Greimas, sobre os problemas da narrativa e da paixão. O
texto da discussão sobre as paixões foi publicado por A. Hénault, no final de sua obra Le pouvoir comme passion,
Paris, PUF, col. “Formes sémiotiques”, 1995.
6
autor, as condições suficientes para sua legibilidade. P. Ricœur escreve: “ Na medida em que o sentido de
um texto se tornou autônomo em relação à intenção subjetiva de seu autor, a questão essencial não é
mais encontrar, por trás do texto, a intenção perdida, mas desdobrar, de certo modo diante do texto, o
´mundo` que ele abre e descobre “18. Esse duplo aspecto está no cerne de nosso método, que pretende
associar estreitamente uma semiótica do enunciado, destacando as articulações internas do texto, e uma
semiótica da enunciação, centrada nas operações da discursivização, incluídas – e sobretudo – as da
leitura.
Trata-se, com efeito, de procurar a conexão entre uma semiótica sistêmica e uma semiótica da
leitura: para a primeira, todas as relações são internas ao dispositivo da língua. Ela estuda as regras de
composição transfrásica, os princípios da coerência, as formas de estruturação articuladas em diferentes
níveis. A segunda reintroduz o sujeito do discurso e a dimensão intersubjetiva da interlocução no ato de
leitura. Ela reencontra, por conseguinte, as questões colocadas especificamente, no domínio literário,
pelas discussões clássicas sobre a interpretação e seus limites, sobre a polissemia dos textos, sobre a
pluralidade das leituras. Essas discussões interessam não somente à crítica literária, mas também à
didática da literatura, tanto no contexto do ensino como em um contexto intercultural. Nessa
perspectiva, o leitor não é mais aquela instância abstrata e universal, simplesmente pressuposta pelo
advento de uma significação textual já existente, que se costuma chamar “receptor” ou “destinatário” da
comunicação: ele é também e sobretudo um “centro do discurso”, que constrói, interpreta, avalia,
aprecia, compartilha ou rejeita as significações.
4. Método
18
Réflexion faite. Autobiographie intellectuelle, op. cit., pp. 56-57.
7
com que se preocupam a retórica, a estilística, a análise textual, a semiótica, a poética), na figura do autor
(como personagem de sua história na crítica biográfica, como inconsciente na crítica psicanalítica ou
como sujeito social na sociocrítica), e no contexto sócio-histórico, por fim (as transformações dos
gêneros, a história social da recepção dos textos e a da instituição literária).
Entre essas diferentes propostas, convém situar as orientações da semiótica. Interessando-se pelas
condições da apreensão da significação, ela situou o texto e suas estruturas organizadoras no centro de
suas investigações. Fazendo uma espécie de “limpeza da situação verbal”, para retomar uma expressão de
Paul Valéry19, os semioticistas da literatura, seguindo A. J. Greimas, consideraram com reserva, e até com
suspeição, todos os termos legados pela tradição literária, solidificados pelo uso e naturalizados como
evidências, que filtram imperiosamente nosso acesso à textualidade: personagens, atmosfera, imagem,
sentimento, descrição e narração, gêneros e estilo de escrita, etc. Rejeitando, pelo menos provisoriamente,
essas noções da prática descritiva, eles quiseram fazer tabula rasa para assegurar uma certa ingenuidade do
olhar ou até mesmo uma suspensão metódica do julgamento. Os conceitos analíticos que eles então
propuseram se enraizavam nos fundamentos de uma teoria geral da linguagem, a montante da literatura,
que era preciso reinserir na relatividade cultural de sua própria designação. Elaborados, não sem
dificuldade, na euforia estruturalista, esses novos instrumentos de descrição viriam a se interdefinir, a se
homologar, a entrar em uma hierarquia circunstanciada, e a reatar, sob uma luz renovada, com
problemáticas antigas, às quais eles garantiriam, num campo de pertinência claramente estabelecido, um
mínimo de confiabilidade descritiva.
Podemos resumir sucintamente seu método, dizendo que a semiótica privilegiou quatro
dimensões que, embora não sejam propriamente do texto literário, nele se articulam de maneira
específica. É talvez pela sua composição que se define em parte o uso literário da língua: a dimensão
narrativa, a dimensão passional, a dimensão figurativa e a dimensão enunciativa.
A dimensão narrativa é a mais solidamente estabelecida. Ela consiste em desnudar as estruturas
organizadoras de nossa intuição narrativa, transformadas pela linguagem nesses “seres de papel” que são
os atores, sujeitos de desejo ou de medo, adquirindo competências, agindo, lutando, fracassando ou
obtendo vitórias. Organizações predicativas de um tipo peculiar subtendem-lhes os percursos: as
estruturas actanciais se definem por uma composição modal (querer, dever, saber, poder, ser ou fazer)
que comanda a transformação da relação de um sujeito com objetos de valor (os quais ele adquire pelo
combate ou pela troca, e dos quais ele é privado por despossessão ou por renúncia) e com outros sujeitos
na mesma cena narrativa. As estruturas se desdobram em seqüências que a história cultural, a dos relatos,
fixou em nosso imaginário narrativo sob formas canônicas (do contrato inicial à sanção final, recompensa
do herói e punição do vilão nos contos populares). O primeiro grande romance da literatura francesa,
Percival ou a história do Graal, ilustra de maneira exemplar essa trama. Essa dimensão narrativa, menos ou
mais enriquecida e complexificada, tem permitido há muito tempo numerosas aplicações na análise dos
textos, eficazes até mesmo no nível mais elementar, mas sempre exageradamente simplificadoras (em
torno do esquema narrativo, principalmente).
Ocorre que as estruturas da ação não esgotam, longe disso, a organização discursiva do sentido. E
a literatura não se contenta em pôr em discurso ações e condutas. A narrativa mostra, de maneira robusta
porque sistematizável, como se transformam os “estados de coisas”: passagem da pobreza à riqueza, do
sucesso ao fracasso, da posse à privação; os objetos circulam, trocam-se, perdem-se. Mas que é feito do
sujeito que continua a existir no decorrer das transformações, que persiste e modula seus próprios
estados, seus “estados de alma”, através da circulação dos objetos e dos valores que os tornam desejáveis
ou temíveis? Uma possessão perdida deixa nele resíduos sob forma de “lamento” ou de “nostalgia”. A
impossível conquista de um objeto de desejo reforça, ao longo dos obstáculos encontrados, o querer do
sujeito, e eis a “obstinação”; os objetos virtuais crescem no decorrer das aquisições parciais, dilatando o
ser potencial do sujeito, e eis a “ambição”. Essa profusão de simulacros cuja remanescência o sujeito
19
P. Valéry, “Poesia e pensamento abstrato”, in Variedades. Trad. Maiza Martins de Siqueira, São Paulo,
Iluminuras, 1991, p. 202.
8
passional preserva ou projeta no futuro, analisáveis na medida em que eles se tornam objetos efetivos no
discurso, que a língua nomeia e organiza, levou a semiótica ao estudo desta dimensão relativamente
autônoma, que é a das paixões. Ora, a literatura é, de todas as formas do discurso social, a que em nossas
culturas fixa, isola e valoriza identidades, tipos e percursos passionais. Há aí um vasto domínio de
pesquisas para a análise literária, sem dúvida, mas também para a comparação intercultural das figuras e
configurações do sensível.
O sensível nos leva diretamente à terceira dimensão que a semiótica explorou amplamente, a
dimensão figurativa do discurso. A literatura é, entre outros, um discurso figurativo: ele representa,
estabelece, na leitura, uma relação imediata, uma semelhança, uma correspondência entre as figuras
semânticas que desfilam sob os olhos do leitor e as do mundo, que ele experimenta sem cessar em sua
experiência sensível. É a mimesis. Essa dimensão se interessa pela maneira como se inscreve o sensível na
linguagem e no discurso, ou seja, basicamente, a percepção e as formas da sensorialidade. Essa dimensão
figurativa da significação, a mais superficial e rica, a do imediato acesso ao sentido, é tecida no texto por
isotopias semânticas, e recobre com toda sua variedade cintilante de imagens as outras dimensões, mais
abstratas e profundas. Ela dá ao leitor, assim como ao espectador de um quadro ou de um filme, o
mundo a ver, a sentir, a experimentar. A práxis cultural, que se sedimenta com o uso, fixa então a ordem
de “verdade”, totalmente relativa, do figurativo em poéticas particulares e convencionais: é, por exemplo,
o alegorismo, o realismo, o simbolismo, o surrealismo, etc.
Chegamos finalmente à dimensão enunciativa. Essa posição, no fim do percurso, é significativa!
Enquanto se constituíam e se desenvolviam na França uma lingüística da enunciação (a partir dos
trabalhos de É. Benveniste e de A. Culioli) e uma pragmática da interação linguageira (a partir de Austin e
Searle, no universo anglo-saxão, e de O. Ducrot na França), os semioticistas se mantinham, na maioria de
seus trabalhos, “a boa distância” do sujeito (J. -C. Coquet foi por muito tempo uma exceção nesse
campo). Dava-se prioridade ao texto-enunciado, e tudo aquilo que pertencia à situação extralingüística (a
realidade, incluída a do sujeito da fala) era por princípio excluído do campo da análise. O sujeito está
pressuposto pela manifestação do discurso, reconstituível a partir dos traços que deixa nele, acessível por
meio de numerosas instâncias de delegação que simulam sua presença no interior do texto (o narrador, o
observador, os interlocutores), localizável por operações enunciativas (debreagem e embreagem,
focalização, ponto de vista e perspectiva), reconhecido como agente da textualização, mas sempre
cuidadosamente mantido dentro dos limites de pertinência que a teoria fixou. Essa posição foi objeto de
inúmeras discussões e, parece-nos, de mal-entendidos lamentáveis, mesmo porque o trabalho sobre a
literatura e a leitura implica, de uma maneira ou de outra, o empenho das subjetividades.
A fim de precisar este ponto, é necessário determo-nos um momento sobre as críticas dirigidas
hoje em dia à abordagem semiótica do texto: diretamente ou não, elas se referem quase sempre à ausência
da enunciação. Elas expressam, essencialmente, uma censura ao formalismo ligado ao princípio de
imanência reivindicado pelos semioticistas, segundo o qual os fenômenos “entram em um sistema
fechado de relações” que levam a considerar a língua e o discurso como objetos abstratos “em que
contam somente as relações entre os termos”20. O desnudamento das estruturas formais quebra o elo
entre o discurso e seu sujeito, tira a obra da realidade histórica de sua produção e recepção, ignora a
cronologia, a historicidade, as condições de leitura, as formas da instituição literária que enquadram e
determinam as significações do texto e sua eficácia comunicativa.
Tal crítica pode parecer plenamente justificada se considerarmos que os formalistas tiveram ou
têm ainda, às vezes, tendência a elaborar “em abismo” instrumentos conceituais cada vez mais
sofisticados, fazendo referência aos estágios anteriores de sua conceptualização e se afastando mais e
mais da realidade primeira de seu objeto. Esse trabalho pode levar, como dizia Montaigne, a “multiplicar
as sutilezas”, ensinando os homens a “aumentar as dúvidas”21. Para nós, todavia, esse julgamento crítico
se baseia fundamentalmente num mal-entendido: podemos considerar, com efeito, que o projeto
20
J. -C. Coquet, La Quête du sens, Paris, PUF, col. “Formes sémiotiques”, 1997, pp. 2 e 235.
21
Montaigne, Ensaios, “Da experiência”. Trad. Sérgio Milliet, Porto Alegre, Globo, 1961, p. 323.
9
semiótico é ser, ao mesmo tempo, uma sócio- e uma psico-semiótica. Parece-nos que descobrir estruturas
imanentes nas formas é também dotar-se dos meios de reconhecer as convenções que o uso pouco a
pouco estabeleceu, sedimentadas em estruturas e construídas com regras implícitas. Essas convenções
moldam as expectativas dos leitores. Elas asseguram, para além do sistema da língua em si, a
previsibilidade do conteúdo, as hipóteses e inferências da leitura. As estruturas assim compreendidas
deveriam estar também relacionadas com o sujeito, mas elas fazem parte agora de uma enunciação
enfraquecida, do murmúrio impessoal dos discursos que milhões de falas engendraram, retomadas e
repisadas: a fraseologia, as expressões fixas, os estereótipos, esses blocos pré-fabricados e “pré-
moldados” de discursos atestam na superfície a impessoalidade da enunciação. E à sedimentação,
produto cultural dessa práxis enunciativa, respondem a inovação e a ruptura, a abertura da língua, por
enunciações singulares, a formas novas e inéditas, criadoras de leitores novos, formas que o uso talvez
deposite mais tarde na regularidade das esquematizações. A história da literatura está pontuada por essas
formas emergentes, inaceitáveis no início para os leitores e sempre rejeitadas por sua estranheza, que
tomaram, às vezes, para além das expressões individuais, as formas institucionais de libelos ou de
manifestos talvez exageradamente valorizadas mais tarde pela história literária: “Defesa e ilustração da
língua francesa”, “Querela dos Antigos e dos Modernos”, “Manifesto do Surrealismo”, “Por um novo
romance”, etc. Vista dessa maneira, a abordagem sincrônica das estruturas não contradiz nem a
abordagem diacrônica da história, nem a abordagem pragmática da leitura: ao contrário, ela oferece
mesmo a possibilidade de uma história das poéticas, ou de uma história cultural das formas, apreendidas
sob um outro regime de duração que não o de uma cronologia de obras e de movimentos literários.
As observações precedentes orientam a concepção geral deste livro e sua organização. Uma
primeira parte apresenta o percurso geral da metodologia semiótica, cotejando, em torno de um mesmo
motivo, uma expressão estereotipada e uma realização romanesca. Seguem-se quatro partes, cada uma
destacando um domínio de investigação particular, cuja combinação e cujo arranjo com as outras podem
pôr em evidência certas propriedades do texto literário. Começaremos pela dimensão enunciativa, que
enquadra e rege, pela discursivização, as dimensões seguintes, as quais articulam em módulos os
diferentes níveis de profundidade da significação: será tomada primeiro a figuratividade, depois a
narratividade e finalmente a afetividade. Na conclusão, seremos levados a avaliar as relações,
recentemente reativadas na pesquisa, entre a semiótica e a herança retórica, contra a qual ela procurou,
por muito tempo, se colocar como disciplina autônoma, mas com a qual ela pode hoje fazer convergir
suas propostas. No interior de cada uma das partes, nosso percurso se propõe associar uma problemática
geral, que não seja específica da literatura, com estudos de textos. Estes, longe de só ilustrar os modelos
apresentados, especificam-nos, prolongam-nos e interrogam seus instrumentos22.
22
Algumas análises já foram publicadas em revistas especializadas ou obras coletivas. Elas foram retrabalhadas e
reescritas para a presente publicação.
10
Capítulo I
Manual de semiótica
1. Elementos de análise
Imagine uma alta muralha na noite. A meia-altura, uma janela. Barras na janela. Uma das barras
serrada. Lençóis amarrados com nós ao longo do muro. Um homem pendurado nos lençóis. O medo...
Imagine agora um bosque. A corrida desenfreada do homem entre as árvores. Seu desaparecimento na
noite.
1.1 Figuras
Essa sucessão de substantivos e adjetivos apresenta uma seqüência de figuras (“imagine”)
que interpretamos globalmente como uma narrativa: a significação que se forma e se atualiza na
passagem de uma figura a outra, e não em cada uma delas tomada individualmente, pertence
precisamente ao que a semiótica chama de nível figurativo*23 da leitura. Uma impressão de
“realidade” se depreende como se se tratasse de um quadro pintado. No entanto, a própria
evidência dessa leitura do sentido constitui um primeiro ponto problemático: o da coerência
discursiva. Com efeito, a passagem de uma frase à que lhe sucede imediatamente e assim por diante
até o fim do texto, só pode ser percebida como um continuum semântico se postularmos uma
isotopia* comum que tece uma ligação entre cada figura, pela recorrência de uma categoria
significante (ou de uma rede de categorias) no decorrer do desenvolvimento discursivo. No
exemplo – mas isso nem sempre é tão evidente – as ligações são asseguradas por repetições
(“barras”, “lençóis”, etc.) e por operadores anafóricos (artigos definidos, pronomes possessivos)
que, remetendo de um a outro enunciado, garantem a permanência da isotopia discursiva24.
Essas isotopias, no caso, de ordem figurativa, estabelecem um primeiro nível de leitura. Elas
dizem respeito à espacialização (“muralha”, “janela”, “barras”, “lençóis”, “bosque”, “árvores”:
podemos notar as duas isotopias sucessivas, da verticalidade e da horizontalidade), à temporalização
(a “noite” no plano da temporalidade enunciada, mas também o “agora” que, relacionado à
enunciação, marca, ao mesmo tempo, a sucessividade dos atos e o encadeamento das orações) e à
actorialização* (“homem”). As isotopias, com seus elos anafóricos, garantem a continuidade da
leitura do sentido. Assim funcionam as narrativas: “Um homem seguia sozinho a grande estrada que
vai de Marchiennes a Montsou”, “Diante dele, ele não via nem mesmo o chão preto,” “o homem
partira de”, “esse homem”, “ele”, “ele se chamava Étienne”, “Étienne”, “Nosso herói”, etc. Notemos
ainda que as isotopias são construídas pela competência discursiva do leitor, que preenche as elipses
predicativas: o homem do muro começou sua descida, ele se encontra no meio, ele chega embaixo,
ele se põe a correr... O texto não dá essas informações, mas o leitor as restitui.
Tal representação figurativa se assenta na seleção, entre as numerosas virtualidades
semânticas de cada unidade lexical, dos elementos de sentido compatíveis com seu entorno
imediato, a fim de formar isotopias. Ela é também naturalmente determinada por uma certa maneira
de “discursivizar”: nesse caso, o sujeito da enunciação* escolheu uma seqüência de frases nominais.
Procedendo de maneira completamente diversa, ele poderia ter contado a mesma história
escolhendo outras formas de frases, adotando o ponto de vista do homem preso ao lençol ou o do
23
Os asteriscos remetem às noções definidas no glossário ao final da obra.
24 Cf. A . J. Greimas, Maupassant. La sémiotique du texte: exercices pratiques, Paris, Seuil, 1976, pp.
22 e 28.
11
lençol, e não um ponto de vista exterior, delegando a um outro seu relato retrospectivo e não “ao
vivo”, escrevendo-a como um relatório de polícia, ou como um fait divers, ou como um sonho, ou
então desenvolvendo a interioridade do homem suspenso à sua corda (é o que fará, logo mais,
Stendhal)... Não importa, a leitura figurativa da significação do acontecimento teria permanecido
fundamentalmente a mesma.
1.2 Motivo
1.3 Esquema
Se examinamos mais de perto esse motivo da fuga, como por um efeito de {zoom},
percebemos que sua significação, apreendida em um nível de generalidade mais elevado, não pode
ser separada da cadeia de pressuposições e conseqüências que determina o seu sentido e no qual ele
se insere como um momento particular. Assim, a fuga pressupõe uma sanção preliminar, ela própria
decomponível em subunidades que podemos reconstituir de trás para diante, tais como o
aprisionamento, a condenação, o julgamento, a instrução, seqüência global em que o sujeito é
submetido ao veredicto de um outro sujeito que tem autoridade sobre ele. A sanção, por sua vez,
pressupõe a realização de uma ação, provavelmente transgressiva ou, em todo caso, assim julgada,
em relação a um universo de valores e a normas estabelecidas no meio social. A ação do sujeito*
pressupõe, por sua vez, uma certa competência que lhe permitia agir como ele o fez, e essa
competência pressupõe, enfim, um contrato preliminar, explícito ou não, entre o sujeito, então
virtual, e uma instância (uma personagem, uma instituição, uma sociedade, etc.) que promove,
assume e garante o universo dos valores de referência, em função dos quais o contrato é
estabelecido e a ação avaliada: a semiótica narrativa nomeia essa instância o Destinador * (inicial
quando ele delega um fazer, final quando sanciona.)
Essa cadeia de pressuposições lógicas, no caso particular da “fuga”, permite dar conta
facilmente do contexto extenso que é constitutivo de sua significação. Ela pode também ser lida no
sentido inverso, na ordem das sucessões, partindo do contrato e indo em direção à sanção. O
encadeamento comanda, então, a previsibilidade discursiva e se apresenta, de maneira mais geral,
12
como um vasto esquema cristalizado pelo uso cultural, conhecido sob o nome de esquema narrativo
canônico * com suas quatro seqüências-tipo:
1.4 Actantes
Esse nível se precisa quando examinamos mais de perto, em um novo {zoom}, a estrutura
sintáxica subjacente à própria fuga. Pode-se, com efeito, interpretá-la nos termos de uma gramática
elementar. A sintaxe, em lingüística, estuda, como se sabe, as regras de combinação no interior da
frase; a semiótica narrativa, por sua vez, mostra que existem organizações sintagmáticas mais vastas,
transfrasais, que também respondem na escala das seqüências, a regras precisas de ordenação
sintáxica. Seu objeto não é a frase, mas o discurso. Ela postula, pois, a existência de uma sintaxe
discursiva.
Essa sintaxe formal, ainda mais depurada e abstrata, permite dar conta das articulações
internas a cada uma das quatro seqüências do esquema canônico. A fuga, pois, confronta dois
actantes, um sujeito e um objeto: o condenado, de um lado; a liberdade, de outro. O sujeito está, no
princípio, privado de seu objeto, está disjunto dele, é seu estado inicial. Seu programa*, que é um
programa de aquisição, consiste em passar da disjunção à conjunção; ele vai assim transformar o
estado de sua relação com o objeto-valor. Estamos agora no núcleo da sintaxe narrativa: sua
dinâmica própria se assenta na transformação da relação entre dois actantes.
Todavia o estatuto do actante-sujeito tem de ser analisado mais em pormenor; ele resulta,
com efeito, de uma certa composição modal* evolutiva que determina, a cada instante do percurso no
qual está empenhado, sua identidade de sujeito que age, mas também de sujeito que sofre ( “o
medo”). Essas modalidades especificam, reciprocamente, as relações do sujeito com os outros
actantes da cena narrativa. Assim, nosso sujeito da fuga, pendurado em seus lençóis ao longo da
muralha, está modalizado pelo querer-fazer, seu ardente desejo de escapar: está modalizado também
13
por um poder-fazer, cuja carga modal se manifesta na superfície do discurso pelos objetos figurativos
(os lençóis amarrados, a lima que permitiu serrar a barra, etc.) e, obviamente, por outras
modalidades, sobretudo de ordem cognitiva, que o texto não manifesta.
Quanto ao objeto, a “liberdade” construída como um valor na narrativa da fuga, é, por sua
vez, modalizado pelo “desejável”, isto é, no jargão modal, como um “poder-ser-querido”: o traço
dessa modalidade do “poder-ser” está claramente presente em português nos sufixos em -ável e em -
ível (cf. odiável, exigível, temível, inteligível, etc.).
Outros actantes se delineiam ainda no horizonte do sentido para o sujeito, e particularmente
o Destinador, com suas figuras delegadas (juiz, policial, guarda de prisão, etc.) cujo estatuto e
percurso poderiam ser igualmente analisados em termos de estruturas modais: o Destinador é, no
mínimo, dotado do saber (porque ele delega o poder de agir) e do poder (porque ele sanciona). Sua
presença protetora, injuntiva ou ameaçadora faz surgir um percurso de uma outra ordem, o do
“fazer crer”, do “fazer-querer”, do “fazer saber”, e finalmente do “fazer fazer ou não fazer”. Ou do
“meter medo”! A narrativa pragmática do sujeito que age vem acompanhada, com efeito, de uma
outra matéria narrativa. É a do relato emocional, que pode ser interpretada também em nível
actancial, como um percurso modal: suas fases de tensão e de distensão, “apreensão”- “medo” –
“alívio”, nos conduzem a essa semiótica da fobia, evocada por Greimas25, simétrica e paralela à
semiótica “fílica” do desejo e da ação realizada. A análise dessas estruturas “patêmicas” é objeto da
semiótica das paixões*.
1.5 Categorias
2. Síntese e perspectivas
Identificamos, dessa maneira, o arcabouço semiótico dessa breve cadeia figurativa enunciada
no início do capítulo, compreendida e interpretada como uma “fuga”. O percurso
{circunstanciado} de análise que acabamos de comentar se apresenta como uma hierarquia (as
diferentes “tomadas em {zoom}”): ele vai da superfície manifestada do texto a suas formas de
organização profundas, vai do mais particular ao mais geral, do mais concreto ao mais abstrato. Se o
observamos, ao contrário, partindo das estruturas elementares e profundas, isto é, indo do mais
simples (do que é mais elementar) ao mais complexo (a diversidade das formas manifestadas na
superfície), poderemos dizer que, enriquecendo-se progressivamente de nível em nível, ele propõe
uma simulação da geração do sentido: é por essa razão que é denominado “percurso gerativo”.
É claro que as expressões “nível superficial” e “ nível profundo” não comportam, nesse caso,
nenhum juízo de valor, contrariamente às mesmas expressões, quando são às vezes utilizadas na
análise literária em que a “significação profunda”, herdeira de uma longa tradição hermenêutica,
supostamente revelaria um sentido guardado no segredo do texto, e por isso implicitamente julgado
mais essencial. Essa estratificação considera simplesmente a significação por meio de um folheado,
como a massa do mesmo nome ou as camadas geológicas, ainda que essas metáforas sejam
enganosas: não se trata de uma simples superposição cumulativa, mas antes, como se tentou
mostrar, de uma rede hierarquizada de dependências em que cada um dos níveis mais profundos
converte seus dados semânticos e sintáxicos, articulando-os e especificando-os no momento de sua
passagem ao grau superior. Os procedimentos de conversão de um nível a outro estiveram, durante
muito tempo, no centro da modelização semiótica do discurso. Presumia-se que o dispositivo do
percurso gerativo, formulado em caráter de hipótese metodológica por Greimas nos fins dos anos
1970, condensava a economia global da teoria semiótica. Em um quadro simplificado, teríamos:
Cada um dos níveis desse percurso é, na realidade, uma janela aberta para um conjunto de
problemáticas que, separadamente, foram objeto de inúmeras investigações entre os semioticistas.
O próprio modelo geral é discutido, principalmente em razão do caráter “totalizante” que parece
impor. Teremos oportunidade, ao longo das análises, de evocar os problemas que ele traz. Vamos
adotá-lo, por ora, em virtude de seu caráter pedagógico. Sua elaboração e sua estruturação,
independentes da forma de expressão das linguagens, confirmam o postulado da unicidade dos
fenômenos de significação. Referimo-nos anteriormente a algumas variações possíveis do motivo da
fuga, todas situadas no plano do conteúdo. Mas é preciso acrescentar-lhes, evidentemente, as
variações de linguagem, verbal e não verbal (visual, gestual e, por que não, musical), suscetíveis de
conduzir à manifestação essa mesma estrutura folheada de significação. Quaisquer que sejam essas
linguagens, um amplo leque de escolhas enunciativas determina sua operacionalização: escolha de
perspectiva (sobretudo em função da estrutura polêmica que permite ordenar a narração, conforme,
por exemplo, a perspectiva do fugitivo ou a do policial), escolha de focalização e de ponto de vista
(segundo a posição adotada pelo narrador e o lugar do observador), escolha dos dispositivos de
ocultação, condensação ou expansão que, pela própria textualização, determinarão entre outras
coisas as formas e os gêneros de discurso. Tudo isso são decisões e estratégias que se prendem à
enunciação e a seu sujeito. Podemos, então, considerar que o percurso gerativo, subjacente ao
conjunto dessas operações, mostra, em seu esquema de conjunto, os materiais que a enunciação
mobiliza para se realizar e que ele constitui, por isso mesmo, um modelo enunciativo.
Seja como for, as entradas desse percurso formam, em cada um dos níveis de estruturação,
outros tantos centros de questionamentos para os textos que submeteremos à análise. Elas devem,
assim, ser compreendidas como “títulos de problemas”e não como um crivo ad hoc, aplicável
mecanicamente à análise de todo e qualquer texto. Propomo-nos, portanto, a examinar mais de
perto, no capítulo seguinte, como as coisas se dão com um texto reconhecido agora como
“literário”, bem distante, em todo caso, do motivo estereotipado: a fuga de Fabrício Del Dongo de
A Cartuxa de Parma, no romance de Stendhal. Será que o modelo resistirá? Como utilizar os
instrumentos que ele propõe? Terão eles um valor explicativo? Melhorarão a compreensão?
Síntese
MANUAL DE SEMIÓTICA
16
A semiótica apresenta modelos para a análise da significação, para além da palavra, para
além da frase, na dimensão do discurso que lhe é inerente.
Seu procedimento clássico propõe articular a apreensão do sentido segundo um percurso
estratificado em camadas relativamente homogêneas, indo das formas concretas e particulares,
manifestadas na superfície do texto, às formas mais abstratas e gerais subjacentes, dispostas em
múltiplos níveis de profundidade. Ela mostra, assim, como os percursos de significação se
organizam e se combinam, em razão de regras sintáxicas e semânticas que fundamentam, em
segredo, a sua coerência. Inversamente, partindo das estruturas profundas para as estruturas de
superfície, ela simula a “geração” da significação.
Esse “percurso gerativo” distingue, desse modo, as estruturas profundas (os valores
inscritos no quadrado semiótico) e semionarrativas (com os dispositivos modais, a sintaxe
actancial e o esquema narrativo) das estruturas discursivas que as “discursivizam”, por
intermédio da enunciação (aparecem, então, as tematizações que se investem ou não em
isotopias figurativas, produzindo as figuras do espaço, do tempo e dos atores ..., as imagens do
mundo). Os diferentes níveis estruturais se convertem uns nos outros, da profundidade à
superfície, segundo um percurso de enriquecimento e complexificação: é realmente a superfície
do texto que é a mais complexa.
Esse percurso é uma construção teórica ideal, independente das linguagens, das línguas ou
dos textos que a investem, ao se manifestar. Ele não constitui uma grade metodológica
aplicável tal e qual, mas permite localizar os espaços de formação de um sentido comunicável e
partilhável.
17
Capítulo 2
A resistência do texto
A fuga de Fabrício
Finalmente, atou a corda que conseguira desemaranhar numa abertura feita no parapeito pelo
vazar das águas; subiu para o dito parapeito e invocou Deus com fervor; depois, como um
herói dos tempos da cavalaria, pensou um pouso em Clélia. Quanto estou diferente,
ponderou, do Fabrício volúvel e libertino que entrou aqui há nove meses! Por fim principiou a
descer daquela assombrosa altura. Declarou que agia mecanicamente, como se estivesse
descendo em pleno dia, diante de amigos, para ganhar uma aposta. No meio do trajeto, sentiu
de repente que seus braços perdiam a força; acredita ter soltado a corda um instante, tornando
logo a agarrá-la; talvez o retivessem os espinheiros por sobre os quais escorregava e que o
arranhavam. Sentia de vez em quando uma dor atroz entre as espáduas e que quase lhe tirava a
respiração. A corda fazia um movimento ondulatório muito incômodo enviando-o sem cessar
de encontro aos espinhos. Roçou em diversos pássaros muito grandes que acordavam e que se
jogavam sobre ele, batendo as asas. Nas primeiras vezes se supôs alcançado por pessoas
descendo da cidadela pela mesma via que ele, para persegui-lo, e tratou de prepara-se para
defender-se. Chegou afinal à parte inferior da torre grande, com o único inconveniente de ter
as mãos ensangüentadas.
(Stendhal. A Cartuxa de Parma (1839). Livro segundo, cap. XXII, São
Paulo, Difusão Européia do Livro, 1961, p.144-145. Tradução de
José Geraldo Vieira)
1.Preliminares
Antes de pôr à prova a eficácia descritiva dos instrumentos semióticos neste texto célebre,
faremos duas observações preliminares, primeiramente no que concerne à crítica do modelo
teórico e, em seguida, ao problema das análises concretas de textos.
Em um artigo intitulado “Et maintenant?”26, o semioticista suíço J. Geninasca
interroga-se sobre a herança teórica de A. J. Greimas (morto em 1992), particularmente sobre
o modelo geral de análise que ele instaurou e do qual percorremos as grandes linhas.
{Ansiando} por uma história dos conceitos da vulgata semiótica, Geninasca sublinha as
contradições internas, as mudanças de direção e as revisões inevitáveis que marcaram o
itinerário da pesquisa; criticando a idéia de uma teoria consumada, tenciona fazer aparecer a
bricolagem conceitual greimasiana 27 como um dispositivo sempre aberto à criação cujos
resultados teriam sido depois reordenados para apresentar de súbito a semiótica como uma
ciência constituída no Dicionário de semiótica. Assim põe particularmente em questão os dois
modelos que estão no cerne da semiótica “padrão”: o percurso gerativo da teoria e o quadrado
semiótico. Afirma, por um lado, que “o percurso gerativo é um modelo desprovido de
26 In “A.J. Greimas et la semiotica”, Documenti di lavoro e pre-pubblicazioni. Università di Urbino (Italia), serie A, 230-
231-232, 1994, pp. 1-15.
27 Na acepção consagrada da palavra “bricolagem” por Cl. Lévi-Strauss, que a aplica ao funcionamente do
pensamento mítico. Os conceitos greimasianos tais como isotopia, timismo e outros, são importados de outras
disciplinas para serem redefinidos no contexto semiótico. Como os materiais usados de que se serve o bricolador
para fabricar um objeto novo, eles conservam traços de sua função primeira que vêm inflectir e enriquecer, de
maneira às vezes inesperada, o trabalho de criação.
18
qualquer valor operatório” (p.10) e, por outro, que não se poderia pôr a inteligibilidade e a
significação dos objetos textuais “sob a dependência de uma estrutura de significação prévia a
toda manifestação” (p.12), fazendo, desse modo, alusão ao quadrado semiótico. Teremos
ocasião de retomar essas críticas de fundo: elas concernem à economia geral da análise e às
relações que os modelos descritivos mantêm com a própria atividade enunciativa.
Mais especificamente, contudo, uma das observações de J. Geninasca é dirigida aos
objetos textuais a que a semiótica se aplica. Ele considera que a semiótica “deve poder dar
conta da variedade de tipos de discursos e, no interior deles, da especificidade dos discursos
singulares, ao menos daqueles que, não reproduzindo o já visto, o já ouvido e o já sabido,
escapam - como os discursos literários – à esfera do lugar comum.” (p. 12). É bem essa nossa
preocupação aqui, já que propomos submeter os modelos de análise, aplicados em um
primeiro momento a um objeto pertencente a essa esfera (o estereótipo narrativo da fuga), a
um outro objeto que não é da mesma esfera, ou que pelo menos a transforma e a transtorna.
Assim procedendo, o trabalho de análise que vamos executar pode ser aproximado da
tradicional “explication de textes”, antes de ser dela diferenciado. Greimas, em um artigo
intitulado “Transmission et comunication”28, definia, em 1969, esse exercício da seguinte
maneira: “Explicitação parcial das estruturas profundas [...]; desmitificação que consiste em
reduzir o nível figurativo do texto a seu nível conceitual”. Muitas questões decorrem dessa
proposição definicional: os estratos do percurso gerativo correspondem a esse programa? A
“desmitificação” convida a uma mudança radical no modo de adesão do leitor àquilo que lê?
Ao desmontar uma ilusão, uma crença errônea, será que ela sugere uma outra ordem de
crença, mais “verdadeira”? As “estruturas profundas” podem ser compreendidas como
isotopias axiológicas*? Tratar-se-ia, por conseguinte, no texto de Stendhal como no
estereótipo, da oposição /impotência vs liberdade/? Da oposição /vida vs morte/?
Diante de uma realidade textual muito mais complexa, não poderíamos formular a
priori a hipótese de que uma estrutura elementar – única – ordena em profundidade o jogo das
significações. A redução a uma estrutura desse tipo parece de imediato inadequada. Na
realidade, a exigência da análise concreta implica a primazia do discurso que impõe sua voz. É
ele que desencadeia em seu rasto a formulação de uma problemática. Será preciso então aqui,
por exemplo, levar-se em conta a multiplicidade das isotopias figurativas que se cruzam assim
como as posições e as funções variáveis do sujeito do discurso. As questões que essa realidade
textual traz à tona nos conduzirão passo a passo a extrair alguns traços próprios à poética
stendhaliana e a análise poderá apontar mais amplamente a identificação de um “estilo”
Stendhal. Entenderemos por isso, não só uma forma específica de escritura, mas um arranjo
complexo de valores que emanam dos diferentes níveis e percursos de análise, tanto no plano
do andamento e da aspectualidade* quanto no dos valores semânticos e da organização
sintáxica. Poderemos assim questionar, a título de hipótese, se os percursos de significação que
dão forma à imagem global do ator “Fabrício”, apreensíveis a partir desse pequeno excerto,
não seriam a expressão de uma “forma de vida” fundada na resolução da oposição entre o
“desprendimento” e o “engajamento”.
Mas essa perspectiva, enunciada dessa forma, é muito geral. O
“texto” é, com efeito, aquilo que a leitura atualiza e o que a análise constrói.
Contra a ilusão de uma explicação que esgotaria as significações (como sugeria a
instituição francesa da “explication de textes”), consideraremos que a análise
seleciona suas isotopias de leitura e apenas retém o que é suscetível de
29 Cf. A.J. Greimas, Semântica estrutural. São Paulo, Cultrix, 1976 {pp.147-148, edição portuguesa?}, e Semiótica.
Dicionário..., op.cit., entrada “pertinência”, pp.334-335.
30 [N. dos T.] Na tradução utilizada, é sobretudo a desinência verbal que manifesta esta marca de 3. ª pessoa.
20
31[N. dos T.] No texto original, essa série de exemplos se inicia com a forma verbal impessoal: “Il
y avait (un mouvement d´ondulation)” [ Havia (um movimento ondulatório)], e o exemplos subseqüentes estão
na voz passiva: “il était renvoyé” [ele era enviado], “Il fut touché” [Ele foi tocado], “il crut être atteint” [ele
acreditou ser alcançado]. A tradução utilizada, no início deste capítulo, optou por outros recursos gramaticais.
24
pelo sentir e pelo vivenciar, Fabrício abandonou o controle de sua ação. Seu
percurso é agora “patêmico” 32*.
Paralelamente ao fazer, desenvolve-se então um percurso centrado
no ser do sujeito. Superpondo-se ao primeiro e substituindo-o pouco a pouco,
esse percurso inicia-se na mecanicidade dos gestos: a oração “agia
mecanicamente” constitui o primeiro indício do sujeito afastando-se de si
mesmo. Recorrendo à terminologia proposta por J.-Cl. Coquet, podemos dizer
que esse enunciado introduz Fabrício na classe dos não-sujeitos: ao contrário do
”actante investido pelos atos que cumpre (noção de sujeito)”, o não-sujeito é um
agente que se desliga de seu ato, que “é assimilado a sua função”, ou que “se
anula naquilo que tem a função de cumprir”, enfim o não-sujeito é aquele que
(só) sabe sua lição.33 É bem este o caso, Fabrício apaga-se, desaparece como
sujeito no automatismo de sua gesticulação. Acentuando mais tarde o hiato entre
o sujeito e seu fazer, os enunciados regidos pela voz passiva liberam totalmente
o percurso patêmico. O herói é então apenas uma placa sensível, sobre a qual se
imprimem as variações de seu ser: o fazer, como resultado de uma vontade e de
um domínio, desapareceu da cena do discurso.
Essa mudança de perspectiva, evidenciada pela transformação dos predicados verbais,
corresponde a uma transformação modal mais profunda que afeta a posição e o estatuto do
sujeito. O ser de que falamos aqui, não é, bem entendido, nem psicológico, nem ontológico,
ele é simplesmente predicativo. Em outros termos, as modalidades do fazer dão lugar às
modalidades de estado de agora em diante: a ação se passa sem que Fabrício a assuma, e o
discurso descreve a maneira pela qual os objetos do mundo determinam, moldam e modificam
os estados do sujeito: estados de “alma”, estados do “corpo sensível”. Vê-se claramente essa
modificação generalizada das modalidades: a passagem do ativo ao passivo implica primeiro
uma inversão da modalidade subjetiva por excelência: o /querer/ deixou a cena do discurso e
o agente tornou-se paciente. A modalização do /crer/ suplantou a do /saber/: remete-se o
universo figurativo à ignorância (o possível e o incerto do “acredita” e do “talvez”) e
finalmente à ilusão (o erro de interpretação perceptiva, próximo da alucinação, leva-o a tomar
os pássaros que ele desperta por perseguidores). O herói perde enfim a qualificação modal,
essencial para um sujeito de ação, a do /poder-fazer/ corporal, somático (ele se entrega, a dor
vai até “lhe tira [r] a respiração” ).
Como vemos, uma dinâmica de outra ordem vem duplicar, dominar e suplantar a do
sujeito que age: é o percurso patêmico paralelo. Fabrício parece inteiramente absorvido nas
variações de seu estado, são os objetos que o dominam e não o inverso, e a articulação do
mundo sensível é então feita de “ondulações”, de “deslizes”, de percepções embaralhadas ou
de ilusões figurativas. O mundo descontínuo, claramente discretizado e categorizado, da ação
deu lugar a um mundo contínuo, modulado, ondulante, sem orientação nem finalidade (cf. o
“de vez em quando”), submetido a variações de intensidade: é o mundo que caracteriza os
movimentos da alma. Fabrício literalmente se ausentou, enquanto sujeito, da ação que se
realiza por assim dizer a sua revelia e que se completa por si mesma no cumprimento do
resultado. Retomando o subtítulo do livro de A. J. Greimas e J. Fontanille, Semiótica das
32 Esse neologismo designa a isotopia semântica do pathos. O sufixo –êmico instala claramente o domínio
descritivo visado, o da análise semântica (trata-se aqui, no léxico da semântica estrutural, de um classema), e evita
qualquer confusão com uma acepção psicológica e referencial.
33 Cf. J.-Cl. Coquet. Le discours et son sujet. Paris, Klincksieck, t.1, 1984, p. 65.
25
A última parte de nossa análise concerne precisamente aos jogos de significação ligados à
figuratividade nesse texto. Esta ultrapassa de todas as maneiras, como nós dissemos, a simples
representação referencial. Ela exerce funções distintas, desenvolvendo seus percursos
analógicos em inúmeras direções diferentes, às quais o leitor-intérprete {anexa} sua
compreensão. Quaisquer que sejam os percursos em questão, eles remetem sempre à figura do
sujeito, a seu corpo que age e a seu “ser” que sente: a figuratividade não é então nem cenário,
nem ornamento, nem simples figuração do real, ela se insere precisamente numa relação
constitutiva com o ator que ela transforma. Ela ilustra, nas aberturas semânticas que sugere, a
diferença que permite identificar o novo Fabrício: “Quanto estou diferente, ponderou”...
Focalizaremos aqui – mas seria uma escolha de leitura? - dois percursos analógicos, um
relacionado à isotopia da natureza, outro à da cultura.
34 A.J. Greimas et J. Fontanille, Semiótica das paixões. Dos estados de coisas aos estados de alma. São Paulo, Ática, 1993.
35 Aptidão de perceber sensações “ (Petit Robert)
26
Fuga Parto
“nove meses”
“corda” cordão
“escoamento das águas” bolsa d’água
“torre volumosa”36 gravidez
“dor atroz”
“respiração entrecortada”
“mãos em sangue”
36 [N. dos T.}Em francês “grosse”, que contém, numa outra acepção, o sema grávida.
27
cabana feita de pranchas, muito sonora, com dez pés de altura, e que não tocava
as paredes a não ser do lado das janelas. Nos outros três lados havia um pequeno
corredor de quatro pés de largura, entre a parede primitiva da prisão, composta
de enormes pedras de talha, e as paredes de pranchas da cabana” (p.71).
Posteriormente, quando Fabrício desmaiado é recebido pela duquesa, ao pé da
terceira muralha, essa aparece como uma figura parturiente da mãe: ela
“apertava-o convulsivamente nos braços, depois ficou desesperada vendo-se
coberta de sangue: era das mãos de Fabrício” (p.147) Podemos então considerar
que um verdadeiro motivo do nascimento fica assim constituído.
Porém, uma tal assimilação simbólica da significação figurativa, cujo processo
semântico poder-se-ia analisar mais minuciosamente, apenas nos parece realizável em razão da
convergência das observações feitas até aqui, no percurso pragmático e passional, com a
hipótese analógica que, em torno do motivo do nascimento, reúne, condensa e tematiza suas
potencialidades. É, pois, a organização discursiva em seu conjunto, e não somente similitudes
semânticas contingentes em nível lexical, que assegura e reforça a coerência dessa leitura
interpretativa. O ser novo que surge é assim figurativamente confirmado pela dupla isotopia
de leitura, mas sua formação já se manifestara em outros momentos da análise: o andamento
acelerado da enunciação, o embaralhamento das categorias discretas do visível, a suspensão
aspectual do tempo, o apagamento do sujeito do fazer na passivação passional, eis as
condições para que se constitua um sujeito novo em um novo universo de sentido. A fuga é,
pois, uma “liberação”37, Fabrício se liberta de si mesmo (o Fabrício “volúvel e libertino”) e a
estada na prisão foi a gestação dessa liberação. É compreensível que ele tenha ficado tão feliz!
Mas um segundo percurso analógico, relacionado à isotopia da
cultura, se desenvolve paralelamente ao primeiro. Ele veicula {estratégias}
diferentes relacionadas desta vez à escritura sthendaliana. Ao nascimento, no
universo de valores naturais, corresponde a iniciação, no dos valores culturais. O
relato dentro do relato, que é a narração de Fabrício, se organiza claramente a
partir de um plano de referência narrativa que constitui seu modelo. O narrador
convoca em seu discurso o gênero original do romance, o romance de cavalaria,
que forma assim seu referente interno. É por meio da comparação que se instala
esse novo percurso analógico: “Depois, como um herói dos tempos de cavalaria,
pensou um pouco em Clélia.” Ora, esse imaginário narrativo e cultural
referencializado não aparece somente por meio da citação que associa a Fabrício
a figura típica, percevaliana, do romance de iniciação e de aprendizagem. A
intertextualidade é mais profundamente estrutural: é todo o esquema narrativo
do romance de cavalaria que se desenvolve com suas seqüências canônicas e suas
figurações emblemáticas.
Encontramos primeiramente o contrato inicial e a formação da competência do herói.
A vigília de prece do cavaleiro e o dom da prova à dama, esses dois motivos indissociáveis do
amor cortês, fixam o duplo registro, espiritual e amoroso, do contrato (“invocou Deus com
fervor”, “ pensou um pouco em Clélia” que se opõem respectivamente ao Fabrício “volúvel”,
para a axiologia espiritual, e “libertino”, para a axiologia amorosa). Desenvolve-se em seguida
a performance do herói em busca de aventura. Essa é iniciada, com a multiplicação das provas
37 [N. dos T.] Em francês “délivrance” que tem também a acepção de parto, nascimento.
28
que intensificam a dificuldade, equipadas com toda sua bagagem figurativa: a floresta escura e
impenetrável, os animais fantásticos, o encontro com o anti-sujeito. A narrativa conclui-se
com o reconhecimento final quando o cavaleiro, ferido e vitorioso, é acolhido e reconhecido
na corte (a duquesa). Ele narrará seus altos feitos.
Essa convocação do universo romanesco é evidentemente paródica.
A análise das marcas difusas da enunciação irônica permitiria dar conta dela:
basta, no âmbito desta análise, evocar o duplo jogo de envolvimento e
afastamento enunciativos que caracteriza em geral, como já observamos, a
pluralização do sujeito. Assumindo e deslocando ao mesmo tempo o centro de
responsabilidade do discurso, a ironia é um dos procedimentos característicos da
escritura stendhaliana. Ela desloca, multiplicando-a, a posição do sujeito
enunciador que alternativamente se engaja e se ausenta. Ela funda, na leitura, a
cumplicidade dos happy few que sabem, no jogo da linguagem, colocar-se à boa
distância dos códigos e valores. Não é menos verdade que aquém dessa ironia
singular, o esquema cultural do relato iniciático em plano de fundo “dá à luz”
Fabrício, igualmente como o fazia, para o universo de valores naturais, o
percurso figurativo do parto. A história da fuga pode ser assim compreendida
como a história de uma identidade, a de um ego que se constrói por meio de um
devaneio estético.
Para concluir esta análise, proporemos algumas observações de
ordem metodológica e “estilística”. O objetivo era primeiramente pôr à prova os
instrumentos de descrição semiótica cujo modelo padrão havia sido apresentado
por meio de um pequeno relato de fuga estereotipado. Logo tornou-se evidente
que o modelo em sua rigidez ideal era desprovido de “valor operatório”
(J.Geninasca), quando aplicado globalmente como um esquema para análise. O
texto, na realidade, dita sua lei. Mas buscamos mostrar, por um outro lado, que
as diferentes vias de leitura do trecho de Stendhal tais como as depreendemos
permitiam mobilizar, como “módulos” de análise ao mesmo tempo
relativamente autônomos e interagentes, a geratividade das significações nos
diferentes níveis de apreensão. É a convergência, construída pouco a pouco,
entre as conclusões provisórias de cada uma das análises que nos leva a expor o
eixo diretor de nossa leitura: a constituição do ego nascente de Fabrício por meio
do relato de sua fuga. São também esses diferentes “módulos” que vão constituir
as matérias sucessivas desta introdução à semiótica literária: a questão da
enunciação antes de mais nada, com as numerosas facetas de identidade que ela
destaca entre o discurso social e o discurso individual, depois a da figuratividade
cujos desafios já apareceram, em seguida, a problemática da narratividade cujas
estruturas sintáxicas regem os percursos dos actantes, e, por fim, a dimensão
passional que estuda os modos de sensibilização do sujeito.
Seria evidentemente excessivo pretender tirar conclusões, a partir
de um tão breve trecho, sobre a escrita ou o “estilo” de Stendhal. Entretanto,
algumas vias de reflexão possíveis se abrem: a prevalência da dimensão patêmica
29
Síntese
A RESISTÊNCIA DO TEXTO
A aplicação dos conceitos, modelos e procedimentos semióticos está submetida, particularmente no contexto da
criação literária, à singularidade irredutível do texto. A análise está a seu serviço: explicando-o mais, ela permite
compreendê-lo melhor (conforme as palavras de P. Ricoeur).
Os instrumentos semânticos e sintáxicos indicam diferentes problemáticas: são lugares de
questionamento da textualidade e de seus efeitos de sentido. O contraste entre um relato estereotipado,
produzido por uma enunciação impessoal facilmente submetida à modelização teórica (como um exemplo de
gramática), e uma narrativa literária, resultante de uma enunciação particular, convida a adaptar, para essa última,
as estratégias de análise. As diferentes dimensões do discurso: enunciativa, figurativa, narrativa, passional e
axiológica, nele, a cada vez, articulam-se de maneira específica.
A análise busca então as redes de significação que vão fundar seu plano de pertinência para
apreender, com a acuidade possível, o acontecimento de sentido que constitui o texto. Ela se organiza em
“módulos” que vão mobilizar, de maneira variável, o dispositivo metodológico. A contribuição de observações
efetuadas conforme essas diferentes dimensões (no caso: pragmática, passional e analógica) permite formular
hipóteses interpretativas sobre a especificidade de uma escritura. E não somente sobre as formas de escritura,
mas para além delas, sobre a singularidade dos valores que aí se formam, que instalam uma “visão de mundo”,
que ilustram nos jogos de linguagem uma proposta de “forma de vida” e que, em última análise, constituem um
“estilo”.
38 J.Geninasca. “Le régard esthétique”, Atas semióticas. Documentos, VI, 58. Paris, EHESS-CNRS, 1984, p. 27. O
estudo tem como objeto uma página de Stendhal extraída de Roma, Nápoles e Florença (1811).
30
Capítulo 3
A enunciação em semiótica
39[N. dos T.] Onde agora? Quando agora?/Quem agora? Sem me indagar./Diga eu. Sem pensar.
40 É. Benveniste, Problemas de lingüística geral., op. cit., p.293.
41
«Entretien avec A .J. Greimas sur les structures élémentaires de la signification», in F. Nef (éd.), Structures élémentaires
de la signification, Bruxelas, Complexe-PUF, 1976.
31
concepção de enunciação que dele decorre, vamos retomar em suas grandes linhas a história
das relações complexas que a semiótica greimasiana manteve com a problemática enunciativa.
Enquanto a enunciação ia se mostrando cada vez mais, ao longo dos anos 1970, como
a noção dominante de toda a pesquisa lingüística, seu estatuto na semiótica permanecia
ambíguo: ela criava problema. Mesmo reconhecendo sua importância crítica em relação ao
estruturalismo formal, o semioticista percebia a enunciação e sua «situação» como a entrada de
direito do universo extralinguístico na imanência tão laboriosamente construída do objeto-
linguagem, ele desconfiava de um sujeito da fala soberano, ele temia, sob a invocação do ego
ou acobertado pelo dialogismo, o retorno à ontologia do sujeito, que caracterizava
particularmente os estudos literários. Essa questão do estatuto da enunciação e de seu sujeito
constitui, pois, um dos pontos de discussão essenciais da semiótica com as outras disciplinas
da linguagem e do sentido. Entre sua supressão metodológica inicial e sua reintegração no
corpo da teoria, sob a dupla forma do uso e da discursivização, podemos sublinhar alguns
momentos cruciais desse itinerário.
1.1. Supressão
1. 2. Pressuposição
Essa exclusão radical, mas provisória, pôde ser posta em questão quando veio à luz a
possibilidade de reintegrar a problemática da enunciação no interior do dispositivo global da
teoria semiótica, desde seus postulados até seus procedimentos descritivos. Uma nova
definição do estatuto da enunciação se apresenta então, desenvolvida por Greimas por ocasião
de uma reflexão sobre o discurso poético, onde o «parâmetro da subjetividade» pode ser
considerado, mais que nos outros, como um elemento essencial. Permitamo-nos uma longa
citação: «Devemos procurar determinar o estatuto e o modo de existência do sujeito da
enunciação. A impossibilidade em que nos encontramos de falar, na semiótica, do sujeito puro
42
A. J. Greimas, Semântica estrutural, op. cit., pp. 200-201.
43
A. J. Greimas, Semiótica e ciências sociais, São Paulo, Cultrix, 1981, p. 4.
32
1.3. Mediação
Mais um passo foi dado nessa direção, quando a longa pesquisa sobre os diferentes
níveis da estruturação da significação foi estabilizada, pelo fim dos anos 1970, com a
apresentação da economia geral da teoria no percurso gerativo da significação. Lembremos (cf.
44
“Pour une théorie du discours poétique”, A.J. Greimas (éd.), Essais de sémiotique poétique, Paris, Larousse, 1972, p. 20.
{VER TRAD. PORT.}
45
Ibid, p. 21.{VER TRAD. PORT.}
33
cap. 1) que, indo das estruturas mais profundas para as estruturas mais superficiais, os estratos
da articulação do sentido se convertem um no outro, segundo um percurso de
complexificação e de enriquecimento progressivo. Nesse percurso, a enunciação aparece então
como a instância de mediação e de conversão crucial entre estruturas profundas e estruturas
superficiais. Por meio da operação de «discursivização», ela organiza a passagem das estruturas
elementares e semionarrativas virtuais, consideradas aquém da enunciação, como um estoque
de formas disponíveis (uma gramática), para as estruturas discursivas (temáticas e figurativas),
que as atualizam e especificam, em cada ocorrência, no interior do discurso que se realiza. O
sujeito enunciador é assim instalado no cruzamento das restrições sintáxicas e semânticas que
lhe determinam a competência com o espaço de liberdade relativa pressuposto pela efetuação
do discurso.
Podemos discutir essa concepção e considerar, como foi proposto acima (cap. 1), que
é o conjunto do percurso que se apresenta como um modelo possível da enunciação.
Evidenciaríamos assim sua dupla dimensão: a que faz parte das codificações do uso, de um
lado, e de outro, a que remete à efetuação sempre singular do discurso. A originalidade da
abordagem semiótica nesse campo é na verdade, segundo nos parece, ressaltar com nitidez no
interior da atividade enunciativa o que vem da práxis social e cultural da linguagem para
fortalecer o discurso em ato. É a essa práxis que se prendem, por exemplo, as expectativas
genéricas, cuja previsibilidade guia tanto nossas atitudes de leitores, quando fazemos a leitura
de um texto, bem como nosso comportamento de locutores, quando tomamos a palavra.
2. Práxis enunciativa
O esforço teórico da semiótica repousa em parte sobre uma dupla crítica, do «sujeito»
e da «realidade». Esta crítica não filosófica está fundamentada, acima de tudo, no receio de
reencontrar tais noções psicologizadas ou ontologizadas no interior da própria descrição. A
questão é manter-se o mais rigorosamente possível na realidade do objeto textual a construir, a
única a que se tem acesso, verdadeiramente, no âmbito do projeto semiótico. O essencial é
então localizar e desvendar aquilo que, condicionando os percursos e as partilhas do sentido,
comanda o exercício do discurso. É aí que encontramos a força regente do uso.
combinatória teórica, [...] ela deixa uma margem de liberdade mais que suficiente às
manifestações ulteriores da história46.»
É preciso voltar a Hjelmslev para perceber o que está em jogo nessa problemática. Foi
ele, com efeito, que propôs substituir o conceito saussuriano de fala pelo de uso, na célebre
dicotomia língua/fala (que ele rebatizou esquema/uso). A fala remete exclusivamente ao
exercício livre e individual da língua, apresentado como promessa de uma criatividade
indefinida, enquanto o uso remete, ao contrário, às práticas pouco a pouco sedimentadas pelos
hábitos das comunidades lingüísticas e culturais ao longo da história. Esta noção permite
assim dar conta do relativo cerceamento da manifestação «em relação às possibilidades
oferecidas pela estrutura». Essa estrutura semântica «permanece aberta, só recebendo
fechamento pela história»; a história «fecha a porta a novas significações contidas como
virtualidades da estrutura da qual participa47». O discurso social é tecido por configurações já
prontas, blocos pré-moldados e prontos para serem utilizados, produtos do uso que se
depositam, na qualidade de primitivos, no sistema da língua. É portanto a utilização da
estrutura de significação que define o uso. Quer esta definição seja vista positivamente – como
o conjunto das escolhas efetuadas – quer negativamente – a partir das coerções e
incompatibilidades semânticas impostas – em qualquer dos casos o uso “designa a estrutura
fechada pela história48» É assim que seus produtos resultam da práxis enunciativa. Podemos, pois,
dizer que «o cerceamento de nossa condição de homo loquens» se fundamenta em duas ordens
de restrições que determinam a realização do discurso, as imposições a priori das categorias
morfossintáxicas e os limites, de ordem sociocultural, impostos pelo hábito, pelas
ritualizações, pelos esquemas, pelos gêneros, e até pela fraseologia, que moldam e modelam,
sem que o saibamos, a previsibilidade e as expectativas de sentido. O resultado é na aparência
paradoxal: com efeito, concebia-se intuitivamente o sistema como um conjunto fechado de
regras e a fala como o exercício soberano de uma liberdade («a liberdade de palavra»). A
análise inverte as propostas, dando destaque, contrariamente, ao jogo das restrições que se
impõem a toda enunciação, para além do simples dispositivo estabilizado das regularidades
gramaticais. Assim, em vez de uma dicotomia, é uma «tricotomia» que permite dar conta dessa
realidade em que, entre a fala e o sistema, se inserem os produtos do uso que o locutor
atualiza e que condicionam uma comunicação eficiente.
2. 2. O impessoal da enunciação
Compreende-se que a enunciação individual não pode ser vista como independente do
imenso corpo das enunciações coletivas que a precederam e a tornam possível. A
sedimentação das estruturas significantes, resultante da história, determina todo ato de
linguagem. Há sentido «já-dado», depositado na memória cultural, arquivado na língua e nas
significações lexicais, fixado nos esquemas discursivos, controlado pelas codificações dos
gêneros e das formas de expressão que o enunciador, no momento do exercício individual da
fala, convoca, atualiza, reitera, repete ou, ao contrário, revoga, recusa, renova e transforma. O
impessoal da enunciação rege a enunciação individual e esta às vezes se insurge contra ele. A
fala, «idealizada como livre, [...] se fixa e se cristaliza no uso, dando origem, por redundâncias e
amálgamas sucessivos, a configurações discursivas e estereótipos lexicais que podem ser
46
A. J. Greimas, Semântica estrutural, op. cit., pp. 146.
47
A. J. Greimas, Sobre o sentido, Petrópolis, Vozes, 1975, p. 104.
48
Ibid., p. 105.
35
3. Operações enunciativas
3.1. Debreagem
49
A. J. Greimas, “Semiótica e comunicações sociais”, em Semiótica e ciências sociais, op. cit., p. 41.
50
É. Benveniste, «O aparelho formal da enunciação», Problemas de lingüística geral, t. II, cap. 5, op. cit., p. 82.
51
É. Benveniste, «Da subjetividade na linguagem», Problemas de lingüística geral, cap.21, op. cit., p. 293.
52
R. Jakobson, Essais de linguistique générale, Paris, Minuit, 1963, p. 178.{VER TRAD. PORT.}
36
«esquizia» ao mesmo tempo criadora, por um lado, das representações actanciais, espaciais e
temporais do enunciado e, por outro, do sujeito, do lugar e do tempo da enunciação. Tudo
começa, assim, com a ejeção das categorias básicas que servem de suporte para o enunciado: é
o mecanismo da debreagem. Pela debreagem, o sujeito enunciante cria objetos de sentido
diferentes do que ele é fora da linguagem. Ele projeta no enunciado um não-eu (debreagem
actancial), um não-aqui (debreagem espacial) e um não-agora (debreagem temporal), separados
do /eu-aqui-agora/, que fundamentam sua inerência a si mesmo. A debreagem é a condição
primeira para que se manifeste o discurso sensato e partilhável: ela permite estabelecer, e assim
objetivar, o universo do «ele» (para a pessoa), o universo do «lá» (para o espaço) e o universo
do «então» (para o tempo).
3. 2. Embreagem
53
A. J. Greimas, Dicionário de semiótica, op. cit., p. 127. {VER TRAD. PORT}
37
54
A. J. Greimas, «L’ énonciation (une posture épistémologique)», in Significação, 1, Ribeirão Preto, 1974, p. 19.
38
4. Enunciação e interação
55
J.- B. Bossuet, Sermon sur la mort et autres sermons, Paris, GF-Flammarion, 1996, p. 132.
39
4. 1. A narrativização da enunciação
Já que a enunciação é considerada como um ato entre outros, porque como todo ato é
orientada, voltada para um objetivo e uma «visão de mundo», ela pode ser considerada como
um enunciado cuja função é a «intencionalidade». Essa intencionalidade se deduz da realização
do ato de fala, assim como a intencionalidade de uma personagem da narrativa se lê,
posteriormente, seguindo de trás para frente as transformações dos estados de coisas que ela
provocou. Compreendemos então que a análise do sujeito enunciador, apreendido como um
actante-sujeito cujo objeto é o «enunciado-discurso», pode ser submetida às mesmas regras
que regem, no interior do enunciado, a realização do próprio discurso. A enunciação poderá
então ser interpretada em diferentes níveis, e principalmente no das estruturas narrativas e
modais (cf. quarta parte), a partir dos enunciados que são o único meio de reconhecer os
lugares móveis e instáveis, exibidos ou ocultados, que os sujeitos da comunicação ocupam no
jogo de suas respectivas estratégias. Sua competência é definida por um equipamento modal, e
a relação intersubjetiva pode ser assimilada às interações de papéis actanciais. Destinador e
destinatário da comunicação prestam-se, desse modo, a uma análise em termos
semionarrativos.
4. 2. Pragmática e semiótica
56
A. J. Greimas, «Observations épistémologiques», in «Pragmatique et sémiotique», Actes sémiotiques. Documents, 50,
Besançon, INALF-CNRS, 1983, p. 6. As citações do parágrafo seguinte são todas extraídas, salvo menção particular,
desse mesmo texto (pp. 5-8)
40
5. Perspectivas atuais
57
«Enquanto na Europa e mais particularmente na França a linguagem é comumente considerada como uma tela
mentirosa destinada a esconder uma realidade e uma verdade que lhe são subjacentes, [...] nos Estados Unidos ao
contrário, considera-se que o discurso cola às coisas e as exprime de maneira inocente», in «Le contrat de véridiction», A.
J. Greimas, Du sens II, Paris, Seuil, 1983, p. 108.
58
A. J. Greimas, Ibid., p. 105.
59
J. C. Coquet, Le Discours et son sujet, Essai de grammaire modale (vol. 1), Pratique de la grammaire modale (vol. 2),
Paris, Klincksieck, 1984 e 1985; La Quête du sens, Paris, PUF, col. «Formes sémiotiques», 1997. É a esta última obra ,
sobretudo, que fazemos referência aqui.
41
como ato fundador daquele que, ao enunciá-lo, se enuncia e se afirma. Podemos defini-la
como uma fenomenologia discursiva do sujeito.
O universo da significação, assim relacionado a seu sujeito, é sustentado por um
alicerce actancial. Os actantes, definidos por seu «modo de junção modal60» (ou
«predicativa61»), designam essas facetas de identidade implicadas em toda enunciação. São
apreendidos de imediato na dimensão discursiva, transfrásica, da atividade significante.
Podem, por conseguinte, variar e evoluir no interior de um «campo posicional» (Benveniste).
E como «eles não comportam todos e a todo instante uma morfologia estável 62», o desafio da
análise será caracterizá-los antes de apreender suas modulações dinâmicas. Os actantes de J. C.
Coquet são em número de três. Possuem um nome de código que, marcando sua natureza
puramente posicional, indica que podem passar de uma posição a outra: primeiro-actante,
segundo-actante e terceiro-actante.
O «primeiro-actante» se divide em duas instâncias, o não-sujeito e o sujeito. O não-sujeito
é o actante puramente funcional, cuja atividade é a predicação sem assunção de seu ato, a
predicação irrefletida. O sujeito é o actante pessoal, cuja atividade é a asserção assumida, que
implica o julgamento. Retomando a fórmula de Benveniste: «É ego quem diz ego», J. C.
Coquet acrescenta: «e quem se diz ego» para indicar o ato de assunção que caracteriza
propriamente o sujeito. O «segundo actante», em seguida, designa o objeto implicado por todo
ato de discurso. O «terceiro actante», enfim, comparável ao Destinador da sintaxe narrativa,
designa a instância de autoridade dotada de um poder transcendente («portanto irreversível 63»).
O modelo, na sua depuração formal, parece simples. Muito mais sutis são os fenômenos que
ele recobre e tudo o que estes põem em jogo na teoria do discurso. Trata-se de aproximar-se
ao máximo das finas variações da realidade enunciativa, de recortar, por meio da
actancialidade, os contornos flutuantes da palavra em ato e de apreender, assim, os modos de
«presença» do sujeito em seu discurso. O primeiro-actante está no centro do dispositivo, e
mais precisamente as relações entre as duas instâncias que o constituem, sujeito e não-sujeito.
Essas relações determinam o «esquema básico da análise fenomenológica do discurso64».
J. C. Coquet ilustra a tensão entre o sujeito e o não-sujeito analisando por essa
perspectiva o estatuto dos actantes na fábula de La Fontaine «O lobo e o cordeiro». O lobo,
predador, destinado por natureza a obedecer à sua função, encarna o não-sujeito. Ora,
procurando justificar pela razão seu ato, ele se esforça, mediante o discurso, para se constituir
como sujeito. Multiplica os argumentos: «ele debate mal, mas ele debate», chegando assim à
posição desejada de sujeito de assunção do discurso. Enfim, de erro em erro de julgamento,
acaba por executar a ação para a qual fora programado, consuma o ato que lhe determina sua
natureza predatória, recobra seu estatuto de não-sujeito. O cordeiro, ao contrário, encarna
plenamente o sujeito. Ele tem o domínio do julgamento e sustenta um discurso de veracidade.
Verdadeiro «campeão da pretoria», ele condena dessa maneira o lobo a ser apenas uma força
cega. Mas a vitória cognitiva é de pouco valor em face da derrota pragmática...
Esta teoria da enunciação em ato está encerrada em dois parâmetros que marcam a
distância que a separa da concepção greimasiana apresentada mais acima: o parâmetro do
tempo, implicando a história e o devir, e o parâmetro da realidade, contra o imanentismo.
Cabe a eles desprender a actancialidade enunciativa de um puro formalismo e introduzi-la
numa fenomenologia da linguagem.
A reflexão sobre o tempo é quase sempre reduzida, na perspectiva da semiótica
narrativa, ao revestimento em superfície de estruturas formais acrônicas mais profundas: a
60
La Quête du sens, op. cit., p. 149.
61
Ibid., p. 216.
62
Ibid., p. 216.
63
Ibid.. p. 40.
64
Ibid., p. 8.
42
65
Ibid.. p. 109.
66
Ibid., p. 60.
67
Ibid., p. 152.
68
Principalmente em «Temps ou aspect? Le problème du devenir» (La Quête du sens, op. cit. pp. 55-71).
69
Ibid., p. 65.
70
É. Benveniste, op. cit. pp. 61 e 246.
71
A experiência pela qual «um ser [...] podia se encontrar no único meio em que poderia viver, gozar a essência das
coisas, por assim dizer, fora do tempo» (M. Proust, op. cit. P. 70). E J. C. Coquet conclui, citando ainda M. Proust: «É ao
não-sujeito, a essa instância pré-assertiva, que cabe “obter, isolar, imobilizar – na duração de um instante – o que (meu
ser) jamais apreende: um pouco de tempo no estado puro”» (in Le Temps retrouvé, À la recherche du temps perdu, Paris,
Gallimard, col. «La Pléiade», t. III, p. 872). {VER TRAD. PORT.}
72
Ibid. p. 75
43
5. 2. O discurso em ato
73
Ibid. pp. 2 e 235.
74
Ibid. p. 8.
75
Voltaremos, na quinta parte, «Afetividade», à teoria da paixão desenvolvida por J. C. Coquet a partir das instâncias
enunciantes, e principalmente ao duplo estatuto, problemática do não-sujeito (cf. abaixo).
44
problemáticas que a análise semiótica tem introduzido nos últimos vinte anos e, de certa
maneira, reconfigurá-las: a figuratividade do discurso não pode ser vista somente em termos
de «representação» e densidade sêmica, estando claramente vinculada, daqui por diante, à
própria percepção. A narratividade já não se reduz apenas às operações de transformação dos
enunciados de ação, mas se desdobra em percursos actanciais implicando a temporalidade e o
devir; a dimensão afetiva e passional do discurso não depende mais somente dos conteúdos
modais que definem o estado do sujeito, seus estados de alma, mas leva em conta as
modulações do campo de presença que esse sujeito «sente» e que o afetam. De modo geral,
esses diferentes campos de análise explorados pela semiótica não têm mais como única
referência os conteúdos que os estruturam, mas estão relacionados à instância do discurso que
permite sua atualização.76
.
SÍNTESE
A enunciação em semiótica
76
Esta problemática do discurso em ato é comentada particularmente por J. Fontanille, em Sémiotique et littérature. Essais
de méthode, Paris, PUF, col. “Formes sémiotiques”, 1999.
45
46
CAPÍTULO 4
Posições enunciativas
1. A questão do ponto de vista
77
G.Genette, Figures III, Paris, Seuil, 1973.
78
A.J.Greimas, J.Courtés. Dicionário de semiótica, op.cit., verbete "perspectiva".
79
J.Lintvelt, Essai de typologie narrative. Le point de vue, Paris, José Corti, 1981.
80
J.Fontanille, Les espaces subjectifs. Introduction à la sémiotique de l'observateur, Paris, Hachette, 1989.
47
argumentativo. Além do mais, em cada caso, o ponto de vista engloba, ao mesmo tempo, o
modo de presença do enunciador em seu discurso e a maneira pela qual ele dispõe, organiza e
orienta seus conteúdos. Podemos tentar esboçar um balanço dessa noção, explicitando suas
diversas acepções.
Por outro lado, como no discurso narrativo, o ponto de vista é determinado pela
disposição dos elementos da descrição, igualmente ligada às coerções da textualização: no caso
do retrato, por exemplo, resultará da escolha das partes e de sua relação com o conjunto, do
próprio percurso descritivo e das segmentações que opera (partir da cabeça para visualizar em
seguida o corpo, ou, ao contrário, partir dos pés e subir para o rosto), da relação entre os
elementos de representação e os elementos de apreciação que introduzirão na descrição uma
dimensão argumentativa. Esse dispositivo textual da descrição pode corresponder a uma
codificação de gênero (as normas “realistas” delegam aos atores o encargo descritivo e os
levam a selecionar os “traços” representativos do conjunto) ou, ao contrário, a transgredi-la.
Em todos os casos, essas observações mostram que o ponto de vista não é tarefa apenas do
sujeito observador, mas se situa propriamente, como o mostra J. Fontanille com a noção de
“regulagem modal”81, na relação entre o objeto e o sujeito. Necessariamente percebido de
maneira parcial e incompleta, o objeto visado determina, com efeito, o modo de sua
apreensão: o que ele mostra, o que dissimula, o que dá a entender, etc. E o desafio do ponto
de vista assenta então sobre as estratégias de apreensão do objeto que podem ora visá-lo em
sua totalidade, de maneira englobante ou cumulativa, ora visá-lo em suas particularidades,
isolando detalhes ou selecionando, entre esses, os aspectos mais representativos de uma
totalidade inacessível por outros meios. Centradas no objeto focalizado, essas estratégias
determinam as condições da apreensão. O fragmento seguinte de Roger Martin du Gard pode
ilustrar a maneira pela qual as seleções implicam variações de orientação na organização de um
espaço:
De bicicleta, o correio de Maupeyrou está apenas a cinco minutos da estação:
mas a estação de Maupeyrou está a uns bons quinze minutos do correio, por causa da
encosta do Bois-Laurent.82
O leitor pode interrogar-se, por um instante, sobre o lugar que se encontra no alto da
encosta. A focalização inicial no correio orienta a leitura, fundindo sujeito frástico e posição
espacial de partida (o lugar fonte); ela convida ao mesmo tempo a colocar esse correio no alto
e estabelecer a estação ferroviária em nível inferior (o que seria aliás confirmado pelo saber
enciclopédico: as estações estão, na maioria das vezes, instaladas nas baixadas). Mas a leitura
sintáxica da localização leva evidentemente a corrigir essa primeira interpretação: é subindo do
correio à estação que se leva três vezes mais tempo, como o confirma, à página seguinte, o
percurso de bicicleta do carteiro, cujo esforço é marcado pelo ritmo bem cadenciado: “E é
agora a subida até a estação, através dos campos onde volteiam os corvos.” A inversão das
posições sintáxicas (fonte e meta), correlacionada às posições espaciais, desloca bruscamente o
ponto de vista e embaralha assim, por um momento, a leitura.
81
J. Fontanille desenvolve nessa perspectiva uma teoria global do ponto de vista, no capítulo intitulado
"Point de vue: perception et signification" de Sémiotique et littérature. Essais de méthode, op. cit., p. 41-61.
82
R. Martin du Gard, Vieille France, in Œuvres Complètes, t. II, Paris, Gallimard, col. "La Pléiade", 1955, p.
1018.
49
O castelo de Tintagel
Texto 1
Sobre a costa da Cornualha
Se erguia a grande torre sólida e imponente.
Gigantes a haviam construído outrora.
50
Texto 2
O romance de Tristão e Isolda. Joseph Bédier, trad. Luís Cláudio de Castro e Costa, (pref.
G. Paris, 1901), São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 5.
83
J. Fontanille, Les espaces subjectifis. Introduction à la sémiotique de l'observateur, Paris, Hachette, col.
"U", 1989. (Primeira parte: "L'observateur dans le discours verbal").
53
O focalizador. O papel não é nesse caso assumido por nenhum dos atores do discurso, nem
é orientado por qualquer dêixis espaço-temporal; é estritamente implícito. O papel do
focalizador é, pois, engendrado por uma mera debreagem actancial. Instância pressuposta,
ele é passível de reconstrução unicamente a partir das seleções e ocultações operadas e
identificadas no enunciado (será o caso na descrição de C. Simon, mais abaixo).
O espectador. O focalizador se transforma em espectador, quando o ponto focal da
observação é determinado pela organização espaço-temporal do enunciado. É o caso, por
exemplo, da perspectiva no sentido pictural: o modo de perspectiva escolhido implica uma
posição do observador (no alto, em baixo, de frente, de lado, etc.) e acrescenta-lhe uma
tematização (a contre-plongée, por exemplo, cria uma relação dominado/dominante). Nesse
caso, a posição do observador é construída pelo enunciado espacial.
O assistente. A presença do observador se instala no texto. O focalizador-espectador torna-
se um ator explícito no interior do enunciado. Mas seu papel é então exclusivamente
cognitivo. Não tem outra função a não ser construir o espaço figurativo. É, por exemplo,
o se anônimo da descrição “realista”: “Podia-se ver, à direita, etc”.
O ator-participante. Desta vez, a debreagem é completa: ela é actancial (estabelecendo um
sujeito da ação), espaço-temporal (instalada no lugar e tempo da narrativa), actorial (é uma
personagem, freqüentemente um dos principais papéis), temática (sua percepção tem um
sentido e um valor em relação ao contexto). O discurso figurativo (ou descritivo) é a partir
de então inteiramente assumido por esse ator instalado na narrativa e associado a ele. A
seu papel cognitivo se juntam outros papéis na dimensão pragmática (ele age, manipula,
sanciona), cognitiva (ele percebe, examina, perscruta) ou passional (ele teme, suspeita, se
emociona). É desse observador tematizado na narrativa que P. Hamon84 propôs uma
tipologia: distingue assim o “descritor observador” definido pelo ver, o “descritor falante”
definido pelo dizer, o “descritor trabalhador” definido pelo fazer.
84
P. Hamon, Introduction à l'analyse du descriptif. "Le système configuratif de la description", Paris,
Hachette, 1981, pp. 180-223.
54
85
E. Straus. Du sens des sens. Contribution à l'étude des fondements de la psychologie (1935), Grenoble,
Jérôme Millon, 1989.
86
Ibid, p. 364.
87
Ibid, p. 370.
88
E. Husserl, Idées directrices pour une phénoménologie (1913), Paris, Gallimard, coll. "Tel", 1950, p. 132.
89
M. Merleau-Ponty, Phénoménologie de la perception, Paris, Gallimard, coll. "Tel", 1945, p. 269.{VER
TRAD. PORT.}
90
A. J. Greimas, De l'imperfection, Périgueux, Fanlac, 1987.
55
Visões de estações
Debaixo dos alpendres das linhas principais, a chegada de um comboio de Mantes animara o cais, e
ele seguiu com os olhos a máquina de manobras, uma màquinazinha tender, de três rodas baixas e
emparelhadas, que começava o desmanchar do comboio, ativa, mexida, levando, empurrando os
vagões para as vias de armazenagem. Outra máquina, essa mais poderosa, máquina de expresso,
com duas grandes rodas devoradoras, estacionava isolada, lançando pela chaminé uma grossa
fumaça preta, que subia direita e vagarosa, no ar tranqüilo. Mas tôda sua atenção foi atraída pelo
comboio das três e vinte e cinco, com destino a Caen, já cheio de viajantes e que esperava apenas
pela máquina. Não podia ver esta máquina, pois estava parada além da ponte da Europa; ouvia-a
apenas pedir passagem, com pequenos silvos apressados, como alguém que começa a impacientar-
se. Foi dada uma ordem, ela, com silvo breve, mostrou que compreendera. Depois, antes de pôr-se
em marcha, foram abertas as válvulas da frente, o vapor silvou rasando o solo num jato
ensurdecedor. E viu então aparecer por cima da ponte aquela brancura que se alastrava,
redemoinhante como uma penugem de neve, voando através das armações de ferro. Um bom
espaço ficou branco de vapor, ao passo que o fumo sempre crescente da outra máquina alargava o
seu véu negro. Por detrás, abafavam sons prolongados de cornetas, vozes de comando, abalos de
plataformas girantes. Produziu-se um rasgão, e êle distinguiu, ao fundo, um comboio de Versalhes e
outro de Auteuil, um ascendente e outro descendente, cruzando-se.
Émile Zola, A besta humana, trad. Eduardo Nunes Fonseca. São
Paulo: Hemus, 1982 {pág. ??? .........}
A um só tempo aérea e monumental, avançando-se mais lentamente como que levada por uma
nuvem, com os jatos de vapor fundindo-se entre as bielas cobertas de óleo amarelecido, sacudindo
o solo sob sua massa, puxando, atrás de si, um conjunto de vagões de um modelo antigo tirados dos
depósitos em que eram conservados, talvez à espera desse dia (feitos de madeira, pintados de uma
cor marrom descascada e providos de um bagageiro em cada uma de suas extremidades), a
locomotiva entrou com um rumor surdo sob a vidraça da estação onde, na plataforma, se
acotovelava uma multidão compacta cuja primeira fila recuou um passo ao vê-la aproximar-se, não
propriamente por medo de ser consumida pelo vapor ou cair sob as rodas, mas por uma espécie de
horror instintivo, de intuitivo instinto de repulsão que lhe ordenava conservar, pelo maior tempo
possível entre si e a parede vertical dos vagões, que desfilavam cada vez mais lentamente, um
ilusório e último intervalo de vida, como um fosso, um estreito vale, ou melhor, uma invisível
muralha, um invisível paredão para além do qual, uma vez transposto, seria perpetrado algo de
irremediável, definitivo e terrível.
Tendo em vista a tipologia proposta a pouco, é fácil reconhecer duas posições bem
diferenciadas do observador: em Zola, o observador é ator participante, em Simon, é focalizador-
espectador. O primeiro é dedutível a partir de localizações explícitas, predicados perceptivos e
denominações especializadas (ele é do ramo!). São tais estruturas regentes estáveis que
resultam na criação de um espaço descontínuo, discretizado, segmentado, pelo qual o
observador é, de certo modo, o responsável (decide sobre o visível, mas também sobre o que
não o é ainda). O saber do observador é definido pela assunção da verdade do que vê: a
composição de um mundo prévia e sabiamente ordenado. No segundo caso, ao contrário, não
há ator instalado que faça ver o que é mostrado: nenhuma qualificação para descrevê-lo,
nenhuma posição explícita, nenhum predicado perceptivo, ele é apenas um ponto focal
inferido pelas formas que “vêm até ele”. O espaço criado é então impreciso, incerto, marcado
pela suposição, pela dúvida e pela crença. A um universo de conhecimentos verdadeiros se
opõe o universo flutuante da percepção por si só. Cada parcela de sensação, enunciada pelas
qualidades que emanam dos objetos e não pelos próprios objetos (sua denominação é
protelada) entra, pouco a pouco, em composição com as outras, constituindo, por
aproximação e por ajuste, a figuração desses objetos.
Além dessa abordagem contrastiva, nosso objetivo será esclarecer as características
próprias à representação do espaço em A besta humana e ampliar-lhes o alcance: como se
depreendem, a partir desse único trecho, os elementos de uma gramática do espaço? Poderiam
estes contribuir para solucionar um pequeno enigma de composição literária próprio dessa
obra? Dois “romances”, com efeito, compõem A besta humana: o da estrada de ferro (cujo
herói é Jacques Lantier) e o do inquérito judiciário (cujo herói é o juiz Denizet); dois grandes
percursos narrativos cuja convergência, na gênese do romance, constitui um dos problemas
discutidos pela crítica de Zola.15 Nossa hipótese é a de que o dispositivo espacial permitiria
assegurar uma estreita conexão entre esses dois percursos. Sobre o pano de fundo de uma
linguagem espacial comum estabelecer-se-ia a ligação estrutural entre as formações do
conhecimento sensível, que regula a representação figurativa, e as do conhecimento inteligível,
que determina os valores cognitivos da certeza e da “íntima convicção” de um juiz. Essa
ligação, unindo secretamente a dualidade temática do romance, garantiria também a unidade
efetiva do texto.
Antes de examinar essa contribuição particular da semiótica à crítica literária,
tentaremos, por meio de uma microanálise, retornar à fonte de uma certa poética da percepção
espacial, buscando o que pode fundamentar suas próprias características. Como o discurso de
Zola reconstrói a percepção? Que relações estabelece entre a percepção e o sujeito do saber?
Como o texto romanesco fixa uma certa esquematização cultural da percepção, um certo uso
da visibilidade? O confronto entre as duas estações, “vistas” por É. Zola e por C. Simon, vai
nos permitir salientar com nitidez algumas respostas a essas questões. Tomando como ponto
de partida a visão, para chegarmos ao que o texto diz sobre a espacialidade, consideramos que
a contribuição da literatura é, de certo modo, decisiva: ela entra, até certo ponto, na
constituição da própria visão, molda nossa maneira de perceber. Como diz M. de Certeau, “a
literatura traça, na língua, o insensato da visão”. Trata-se, portanto, de tentar compreender
15
Zola havia decidido, durante o trabalho preparatório, fundir em um só romance dois projetos inicialmente
distintos: um romance {judiciário} e um romance sobre estradas de ferro. Cf. H. Mitterand, “Étude" sur La
Bête humaine, em Zola, Les Rougon-Macquart, Paris, Gallimard. Col. “La Pléiade”. t . IV, 1966, pp. 1714-
1729.
57
como o discurso modela uma certa ordem cultural da visão, como, desenvolvendo o
imperceptível da percepção, ele a transforma em significação. O trabalho textual de C. Simon,
contrastando vigorosamente com o de Zola, é, desse ponto de vista, notável: impõe uma
espécie de ruptura nas formas de escritura solidamente estabilizadas pelo uso, provocando
uma espécie de abalo sísmico no interior das figuras sensíveis que a tradição discursiva da
percepção apresentava, isoláveis e unificadas, como evidentemente nomeáveis {PERÍODO
DE DIFÍCIL COMPREENSÃO}. Ele nos faz voltar à gênese e ao advento da percepção, ao
passo que a escritura de Zola parece, ao contrário, acoplar-se a ela, avalizá-la e prolongar-lhe
as conseqüências, sustentando-a além do próprio acontecimento perceptivo. Encontramo-nos,
portanto, em presença de duas esquematizações distintas da percepção. Ora, em Zola, como
veremos, é o desenvolvimento de seu modelo espacial que parece garantir, em A besta humana,
a unificação dos dois discursos, o das vias férreas e o das vias do saber.
Nossa análise concerne essencialmente ao papel da dimensão cognitiva* e
apóia-se no papel do observador na construção perceptiva das duas estações: no primeiro
caso, em Zola, a percepção é inteiramente conduzida pelo /saber/ comandado pelo ator-
participante; no segundo, em Simon, ela é apreendida em sua textura, voltada para o /crer/
que a funda e que submete a seus arabescos a progressiva formação do /saber/. Trata-se de
uma percepção irrefletida, assujeitada ao movimento de uma “fé perceptiva” (M. Merleau-
Ponty): é precisamente nesse espaço de irreflexão que a escritura observa uma pausa,
tornando-o, por assim dizer, “visível”.
Por sua vez, em Zola a construção parece ter o aval de uma inteligibilidade
estabelecida previamente. Como escreve Bernard Noël, “o olho, quem é que não confia nele?
Temos fé naquilo que vemos16”. Essa construção apóia-se na figura de um sujeito observador
debreado, “ele”, fonte do saber, verdadeira sentinela do conhecimento, que hierarquiza,
controla e ordena e que, enfim, por sobre a base inalterável dessa confiança, torna possível a
expansão semântica das imagens percebidas: tal sujeito autoriza, assim, a efusão simbólica do
figurativo. Já em C. Simon, observamos, pelo contrário, se não um apagamento completo,
pelo menos um enfraquecimento do sujeito. Quer se trate do sujeito-observador pressuposto
pela enunciação (mas ausente, simples focalizador), ou do sujeito gramatical da frase (a
locomotiva), a figura do sujeito está literalmente encoberta na processualidade do percurso
perceptivo, que forma o núcleo da descrição. Esta se desenvolve, por aproximações e
contigüidades sucessivas, ao largo do sujeito e ao largo do objeto; ou seja, por assim dizer, no
limiar entre os dois. O saber, sob a forma de avaliações, hipóteses e previsões, se entremeia
com o sensível. Sua emergência se prende e se submete à do visível; ele se torna tão sensível
quanto o sensível.
16
B. Noël, Journal du regard, Paris, POL, 1988, p.14.
58
olhos”, “tôda a sua atenção foi atraída”, “viu então aparecer”, e enfim, “distinguiu”): este é
exatamente a peça chave de uma cena que ele articula e sustenta pelos diferentes regimes do
saber. O que se situa fora de seu campo visual (“não podia ver”) não é apreendido em virtude
de uma síntese visual “de transição” (Merleau-Ponty) – que permite assumir a existência
daquilo que não vemos, a partir do que vemos – sabendo que, deslocando-nos, nós o
veremos, mas é apreendido por uma síntese puramente intelectual: o que ele não vê não é
colocado como “visível a partir de um outro lugar”, presente e iminente sob outros pontos de
vista, mas simplesmente pressuposto pela espera do trem; a locomotiva invisível é algo
esperado, ela deve aparecer.
O percurso se apresenta, então, como uma pequena narrativa do mundo
inteligível. O observador não se contenta em ver ou ouvir, lê o sentido do que percebe. Ver e
compreender tornaram-se indissociáveis. Ele “vê” as relações, os engates e desengates, a
seqüência ininterrupta das conjunções e disjunções, as esperas percebidas como causas, os
objetivos últimos dos deslocamentos, enfim, toda essa micronarratividade que tem por atores
as máquinas. A inteligibilidade do mundo percebido englobou o movimento ou a imobilidade
dos trens, a distinção ou a indistinção das figuras, a nitidez ou a difusão das imagens que
compõem o quadro. Destacado da percepção que inicialmente o funda, o universo da estação
é estruturado como um campo de conhecimentos. Ele está então pronto para exercer outras
funções além da mera representação: esta se abre para a possibilidade de um outro discurso,
paralelo ao primeiro, em que cada figura será convocada para uma outra atribuição que não
aquela de sua primeira designação figurativa. Cada uma se torna assim uma possível metáfora.
Os conectores de isotopias entre os dois níveis de significação conduzem explicitamente o
leitor para essa via interpretativa: “ele ouvia a máquina em busca da linha com ligeiros apitos
apressados, como uma pessoa que vai sendo tomada pela impaciência humana”, conferindo
assim à locomotiva um estatuto antropomórfico.
Mas essa própria personificação pontual está sob a dependência de um outro
deslocamento semântico de maior envergadura. Eis aí três máquinas, ocupando cada uma três
subseqüências do texto: a primeira tem “três rodas emparelhadas”, a segunda tem “duas
grandes rodas devoradoras”; quanto à terceira, ela permanece invisível, mesmo sob os sinais
"abundantes" de sua aparição. Uma série de engates, desengates e emparelhamentos torna
legível a ossatura narrativa do texto. A micronarrativa das máquinas torna-se assim
emblemática da narrativa global: as locomotivas em seu movimento projetam, como metáfora
de estrutura, as duas figuras femininas centrais de A besta humana, Flora, a solitária, e Severina,
a impaciente. Suas duas fumaças se misturam no momento da crise, a fumaça branca e a
fumaça negra. Então, o desenho desaparece, as linhas são “ultrapassadas” pelo aumento do
volume que transforma a ordem do visível, instalando formas indistintas e disparatadas,
encobrindo todas as conexões na sua ilusão sensível, até que se produza, enfim, a “ruptura”
que reinstaura a toponímia, a linha e o cruzamento, ou seja, a racionalidade perceptiva inicial.
Essas poucas observações sugerem que a escritura zoliana obedece a um verdadeiro
sistema de esquematização discursiva da percepção. Se a percepção se traduz em modo de
conhecimento, é porque corresponde a um esquema canônico mais cristalizado ou menos
cujas seqüências podem ser identificadas. A primeira etapa refere-se a um /fazer saber/ que
instala a competência soberana de um observador, que se manifesta por meio de predicados
perceptivos. A segunda etapa é a da transformação, que assegura a conversão das
representações concretas em percursos temáticos mais abstratos. A figura (“rodas
emparelhadas”, “comboio”) não designa mais somente seu objeto, ela torna-se testemunha e
agente: está pronta para entrar em outros programas além daqueles aos quais estava
inicialmente destinada. Os conectores de isotopia tais como a comparação e a metáfora
assinalam precisamente, em sua interface semântica, essa operação. A terceira etapa, enfim, é a
59
Podemos dizer, então, que a escritura de C. Simon retarda o sujeito: explora todo o
espaço intermediário que o faz surgir, nas dimensões passional, perceptiva e cognitiva, e
parece manter-se nessa mediação. Ela expõe a sensorialidade movente que insere o sujeito no
mundo dos objetos, mas suspende até o limite o momento de nomeá-lo, ou seja, de fixá-lo.
Então, como no caso da locomotiva, a formação sensível se acha a tal ponto consumada que o
nome, quando enfim aparece, tem a função de uma simples caixa registradora: sua significação
não determina mais nada, ele é apenas a síntese ressoante do processo que o formou, é o
produto de uma definição indireta que tem toda prioridade sobre ele. De uma forma mais
geral, podemos dizer que, na escritura de C. Simon, o actante está enfraquecido. Sujeito e
objeto tanto da enunciação quanto do enunciado, estão instalados, sempre precários, ao final
de uma rede complexa de relações predicativas que contribuíram, em conjunto, para constituí-
los. Ao contrário do sujeito em Zola - sentinela que controla a ordem da visão - ele está
17
M. Merleau-Ponty, "Cinq notes sur Claude Simon", in Esprit, 66, 1982, pp. 64-66.
60
imerso por uma espécie de dissipação dócil e consentida, no próprio centro da percepção,
como para favorecer a explicitação do que o institui, na solidariedade estreita, íntima, entre
aquele que vê e o que é visto.
Isso explica a forma de uma escritura que procede de uma apreensão tensionada por
aproximações graduais, acumulações e intromissões. São as superposições quase sinonímicas :
“por uma espécie de horror instintivo”, de “ instinto intuitivo de repulsão”, ou ainda a
diferenciação progressiva entre dois temores, o medo, virtualizado, de “cair sob as rodas”, e o
horror, atualizado, de penetrar nos vagões. É o deslizamento do modo sensorial, na iminência
do embarque no trem, que substitui a ordem do visível (“fosso”,“vale”) pela ordem mais
elementar do tátil (“invisível muralha”, “um invisível paredão”) e, inverte, na anulação da
distância, a relação entre o sujeito e o objeto da percepção: é o trem que avança contra a
multidão, é o vagão que vai incorporá-la. A correspondência das figuras visuais e táteis com as
que qualificavam a locomotiva no início do texto: “aérea e monumental”, reforça a absorção
do sujeito em sua percepção, o “tornar-se-trem” da multidão19.
18
Cf. particularmente Le visible et l'Invisible, Paris, Gallimard, 1964 {EXISTE TRAD. BRAS.} e Le Primat
de la perception et ses conséquences philosophiques, Grenoble, Cynara, 1989.
19
Absorvido na percepção, o conhecimento é suspenso: o leitor compreenderá posteriormente que a cena se
passa em junho de 1940, no momento da ofensiva alemã no norte da França, e que o trem em questão é o do
êxodo das populações que fogem do invasor.
61
A distinção entre os dois textos, além das formas de escritura, implica, portanto,
atitudes profundamente diferentes quanto à percepção do espaço. A análise permitiu
esclarecer, de maneira contrastiva, algumas características do discurso espacial no romance de
Zola, que são, de resto, consideravelmente recorrentes. Com efeito, a descrição da mesma
estação, com o vai-e-vem de trens nas plataformas, é retomada cinco vezes no primeiro
capítulo de A besta humana, e rearticula, em cada ocorrência, o mesmo esquema espacial. Este,
que organiza em superfície as representações concretas, pode ser formulado nos termos mais
abstratos de uma espacialidade profunda, e suscita a hipótese segundo a qual o espaço,
desvinculado da ordem sensorial, regeria como significante a dimensão cognitiva do discurso
no romance. Esse esquema espacial abstrato pode facilmente ser reduzido ao enunciado de
duas categorias fundamentais da sintaxe narrativa: a junção e a suspensão da junção. À
primeira categoria, que se subdivide em relações de conjunção e disjunção, correspondem as
figuras do engate, da ligação, do entroncamento e do desentroncamento, das conexões e das
desconexões, do atrelar e do desatrelar das máquinas. À segunda correspondem as figuras
dissolventes que embaralham as categorias, esfumam o desenho, apagam as linhas e os
contornos: o vapor, a fumaça, a bruma, o mato ou a escuridão tornam então confusas e
indecisas as formas segmentadas da sintaxe inicial. A nuvem deforma os objetos e os
percursos, tornando-os difusos e indiscerníveis.
Ora, essa transformação, cujo núcleo sintáxico se percebe claramente (estado juntivo,
seguido de negação ou suspensão desse estado) se reconhece em outros lugares no romance,
em que ela organiza, enquanto significante, outros conteúdos além do espaço visual disposto
nas seqüências descritivas. Ela comanda, por exemplo, o discurso explicativo da famosa
doença hereditária que afeta Jacques Lantier. A “ruptura” assenta primeiramente em um jogo
alternativo de disjunções e conjunções no interior de um sujeito cindido em dois actantes.
Disjunções: ele está “ausente do seu ser” (p. 205), “terrificado de já não poder ser senhor de si”, “era
necessário a ele ir em frente, mais longe, sempre mais longe, para {“fugir do outro”} (p. 218); e
depois, repentinamente, brusca conjunção, “admirado de entrar bruscamente na posse de si
mesmo” (p. 205). Essas transferências acabam por misturar-se em uma "fumaça" dissipadora
das próprias categorias actanciais, por meio de figuras espaciais, como podemos notar: “havia
em seu ser súbitas perdas de equilíbrio como rupturas, buracos pelos quais o seu eu lhe escapava,
no meio de uma espécie de fumaceira que deformava tudo” (p. 48).
Além dessa análise particular, podemos ampliar a perspectiva para uma hipótese mais
geral sobre a poética do espaço peculiar ao universo de Zola. Vasta cenografia do visível, sua
obra pode parecer dirigida por uma reflexão sobre o espaço. De algumas figuras espaciais
matrizes irradia, em inúmeros romances, uma significação que ultrapassa amplamente sua
função referencial. É por essa razão que o estudo específico da espacialidade nessa obra
conduz a uma reflexão mais geral sobre seu estatuto semiótico: as relações que o espaço
mantém com a ação romanesca, com os sujeitos, cuja identidade ela sustenta, com a axiologia
e o conjunto de valores em jogo na narrativa20. A análise global de Germinal sugeriu-nos, assim,
uma hipótese que diz respeito ao papel da espacialidade no romance, cujas significações
ultrapassariam a mera representação figurativa. Ora, além de sua eventual validade descritiva
para um romance em particular, essa hipótese tinha uma ambição mais ampla: a de desvelar
91
[N. dos T.] Em francês, esse último enunciado é “”Vouloir être juste n’était-ce pas um leurre, quand la
vérité est si obstruée de broussailles?” (p. 1316). Na versão para o português, de Eduardo Nunes Fonseca, a
expressão “de broussailles” foi omitida. Entretanto, consideramos pertinente mantê-la aqui, tendo em vista
sua relevância na discussão de D. Bertrand.
92
[N. dos T.] Em francês, temos o seguinte enunciado com os destaques feitos por Denis Bertrand: “une
émotion venue ils ne savaient d’où serra um instant les jures à la gorge: c’était la vérité qui passait,
muette”(p. 1322). Novamente, na tradução portuguesa, omitiu-se a expressão “venue ils ne savaient d’où”
(“vinda eles não sabiam de onde”), também destacada por Bertrand em sua análise.
20
Inúmeros trabalhos foram consagrados a essa questão. Cf. particularmente G. Deleuze, “Zola et la fêlure”,
Logique du sens, Paris, Minuit, 1969; P. Hamon, Introduction à l'analyse du descriptif, Paris, Hachette, 1985;
Denis Bertrand, L'Espace et Le Sens, Paris-Amsterdam, Hadès-Benjamins, 1985; H.Mitterand, "Figures de
l’espace". Zola, L'histoire et la fiction, Paris, PUF, 1990.
63
um funcionamento geral do discurso espacial que rege vários níveis de leitura e remete à
enunciação em ato. De um lado, ela permite traçar o perfil cognitivo do enunciador e, de
outro, permite sugerir uma explicação da eficácia particular da escritura romanesca de Zola,
em termos de recepção. É, pois, sobre uma certa "poética" da legibilidade do chamado
romance realista que nos propomos refletir aqui, procurando resgatar alguns de seus princípios
fundamentais e encontrando-os precisamente em torno da espacialidade. Uma pesquisa
relacionada à descrição de propriedades generalizáveis da escritura de Zola deve, com efeito,
ser testada em um corpus mais amplo que o de um único romance. É essa hipótese que
pusemos à prova no exame de alguns dispositivos espaciais de A besta humana e que confirma a
análise transversal efetuada a propósito de Germinal.
Esta análise assenta na distinção entre dois níveis, o de uma representação figurativa
“de superfície”, que torna visíveis os objetos do mundo natural e os expõe ao leitor como se
ela o convidasse a se situar entre eles, e o de um dispositivo figurativo “profundo” que rege
uma dimensão mais abstrata do discurso, de ordem interpretativa e hermenêutica, impondo
seus efeitos de verdade e garantindo sua credibilidade. A relação entre esses dois níveis produz
o que às vezes se denominou a lógica figurativa (cf. mais abaixo, terceira parte:
“Figuratividade”): haveria assim em Zola uma forma de raciocínio espacial? Tal como
verificamos a respeito de A besta humana, as expansões semânticas da espacialidade em
Germinal levam, de fato, a reconhecer a existência de uma verdadeira linguagem espacial que
seria característica da organização do discurso em Zola. A espacialidade, portanto, não
controlaria somente uma ordem de representação icônica do mundo sensível, a topografia, o
cenário, a percepção e os movimentos das personagens; ela formaria, ao mesmo tempo, uma
“topologia” mais abstrata, responsável por outras funções semânticas.
Os mineiros, por sua vez, não têm um espaço próprio. Nessa perspectiva, sua busca
aparece, pois, como a de um lugar de residência para seus valores: não há axiologia possível
sem território. Excluídos da superfície, eles tentam conquistá-la no momento da grande greve:
quando esta fracassa (no episódio do tiroteio), retornam ao fundo. Mas o desmoronamento do
poço, em decorrência da sabotagem, afundando a planície no abismo, aniquila, por sua vez, os
valores que se prendiam à superfície. Como os pólos se excluem mutuamente, a anulação de
um dos pólos pelo outro suprime toda produção de valores. A solução se encontra na figura
final da germinação: é ela que, ao mesmo tempo subterrânea, terrestre e aérea, encarna o
nascimento de uma nova axiologia. A última página do romance, com a alucinação hiper-
estésica de Étienne que o faz perceber, em conjunto e em plena luz, todas as dimensões da
espacialidade, visível e invisível, realiza a conjunção dos espaços que dá sentido e valor à
“fábula reformista” de Zola.
Ora, esse sistema de conexões espaciais (exclusão de pólos que engendra o negativo,
inclusão que engendra o positivo) parece subtender não só o dispositivo figurativo do
romance, mas igualmente seu dispositivo interpretativo - ou mesmo anagógico - na medida em
64
que aí se delineia uma visão extrema e finalizada do sentido. Os dois discursos, concreto e
abstrato, figurativo e teórico, fundamentados em uma mesma estruturação da espacialidade, se
referencializam entre si; em outros termos, o sistema espacial assegura a coesão recíproca
entre um discurso de representação dos acontecimentos e um discurso ideológico relativo ao
progresso social e político da humanidade. Assim, desprendendo-nos da referência ao mundo
extratextual, o da natureza, da sociedade industrial e da história, somos levados a nos
interrogar sobre os processos dessa referencialização interna, descobrindo neles uma chave
possível da credibilidade e da eficácia simbólica do discurso romanesco, em síntese, do sucesso
de Germinal. Os modos de funcionamento das realidades perceptivas encenadas no texto se
encontram de alguma forma garantidos por meio de um projeto filosófico de inteligibilidade
cuja elaboração reproduz ponto por ponto suas estruturas; {e inversamente, as finalizações
menos ou mais duvidosas do discurso teórico encontram seu apoio natural e recebem sua
confirmação epistêmica em uma organização do conhecimento sensível que lhes remete seu
esquematismo espacial.} O inteligível torna-se tanto mais convincente quanto é sustentado
pelo sensível, e o sensível, tanto mais “real” quanto mais se encontra confirmado pelo
inteligível. Essa significação, simultaneamente mostrada e demonstrada, se firma em um duplo
uso do mesmo esquema espacial: toda conexão exclusiva do alto e do baixo engendra valores
negativos (os gestos dos assassinos em Germinal se explicam por esta fórmula: “que é que
havia subido de suas entranhas a seu crânio?”); toda conexão inclusiva produz valores
positivos (as figuras do “alargamento”, da “libertação” e da “dilatação” representam
espacialmente o progresso intelectual de Étienne Lantier: a germinação final é uma figura do
mesmo tipo).
Síntese
Posições enunciativas
21
G. Bachelard, La formation de l' esprit scientifique. Contribuition à la psychanalyse de la connaissance
objective, Paris, Vrin, 1975, p. 8.
65
A exploração dessas noções descritivas mostra que elas não servem somente para
localizar e identificar os dispositivos ou as estratégias do enunciador em um texto; elas
revelam, mais amplamente, as poéticas da representação e, mais profundamente, as relações
entre o sujeito do discurso e os universos perceptivos, cognitivos e afetivos, que ele põe em
cena.
66
Acesso à figuratividade
1. Apresentação teórica
raciocínio abstrato, persuadindo assim o leitor, mas, por outro lado, fazer ver também é fazer
crer! É o papel atribuído ao exemplum na retórica clássica desde Aristóteles. Longe de se
reduzir à representação anedótica do mundo, portanto, a escrita figurativa não é desprovida de
abstração. Simétrica e inversamente, a escrita abstrata, longe de ser puramente conceptual, é
raramente desprovida de figuratividade: da maçã de Newton ao “Big Bang”, os exemplos
concretos, as imagens e comparações, as ilustrações narrativas tomam parte no encadeamento
persuasivo do discurso científico. As fronteiras entre os dois universos de discurso, figurativo
e abstrato, não são estanques. Não obstante, os textos figurativos requerem uma forma de
racionalidade peculiar, que é de ordem analógica, e não dedutiva. A adesão do leitor procede,
por assim dizer, de maneira lateral: basta pensar no funcionamento da parábola (evangélica ou
não), cujo significado figurativo está ali para veicular uma mensagem abstrata, espiritual ou
teórica, que só pode adotar, para se dizer e ser compreendida, um suporte concreto de
linguagem: uma história de semeadura, por exemplo, ou de filho pródigo. Fala-se, então, em
“pensamento figurativo”, em “raciocínio figurativo”, e evoca-se a “profundidade” do
figurativo, embora este se situe na superfície das estruturas discursivas, dentro do percurso
gerativo da semiótica.
Noção extremamente rica, que deve ser corretamente assimilada, a
figuratividade recebeu em semiótica diversas definições precisas, mas evolutivas, que vamos
examinar para começar. A partir de tais definições, de fato, será possível desenrolar todo o
novelo da teoria do sentido, desde os dados básicos da semiótica e a concepção das estruturas
elementares, até a abertura interpretativa da leitura.
• Primeira definição:
“O qualificativo figurativo é empregado somente com relação a um conteúdo
dado (de uma língua natural, por exemplo) quando este tem um correspondente no nível da
expressão da semiótica natural (ou do mundo natural). Nesse sentido, no quadro do percurso
gerativo do discurso, a semântica discursiva inclui, com o componente temático (ou abstrato),
um componente figurativo93.”
• Segunda definição:
“Qualificaremos de figurativo todo significado, todo conteúdo de uma língua
natural e, de maneira mais abrangente, de qualquer sistema de representação (visual, por
exemplo), que tenha um correspondente no plano do significante (ou da expressão) do mundo
natural, da realidade perceptível. Logo, será considerado figurativo, num determinado universo de
93
A. J. Greimas, J. Courtés, Dicionário de semiótica, op. cit., pp. 187-188.
68
discurso (verbal ou não verbal), tudo que puder ser diretamente referido a um dos cinco sentidos
tradicionais [...] ; em suma, tudo que se liga à percepção do mundo exterior94.”
• Terceira definição:
“A figuratividade se define como todo conteúdo de um sistema de
representação, verbal, visual, auditivo ou misto, que entra em correlação com uma figura
significante do mundo percebido, quando ocorre sua assunção pelo discurso. As formas de
adequação, lábeis e culturalmente moldadas pelo uso, entre essas duas semióticas – a do
mundo natural e a das manifestações discursivas das linguagens naturais – constituem o objeto
da semiótica figurativa95.”
• A quarta definição recai mais precisamente sobre o universo visual. Ela descreve o
ato de semiose, isto é, a passagem da visão natural, modelada por um crivo cultural de leitura do
mundo, para o reconhecimento das formas figurativas numa imagem ou num quadro:
“O crivo de leitura, de natureza semântica, solicita [...] o significante planar e,
assumindo feixes de traços visuais, de densidade variável, aos quais constitui em formantes
figurativos, dota-os de significados, transformando assim as figuras visuais em signos-objeto. O
exame mais acurado do ato de semiose mostraria bem que a principal operação que o constitui
é a seleção de certo número de traços visuais e sua globalização, é a apreensão simultânea que
transforma o feixe de traços heterogêneos num formante, vale dizer, numa unidade do
significante que pode ser reconhecida, quando enquadrada no crivo do significado, como a
representação parcial de um objeto do mundo natural96.”
Tais definições são técnicas: cada uma delas mobiliza um saber semiótico
prévio que lhes condiciona a compreensão. Agruparemos as três primeiras, bastante próximas
umas das outras, para examinar, em cada par, os termos que as constituem: elas representam o
que se poderia chamar definições estruturais da figuratividade. Note-se, todavia, que estas
integram progressivamente os dados da percepção. No desenvolvimento do trabalho,
examinaremos a quarta, que relata o acontecimento da semiose a partir dos dados perceptivos
(visuais), e depois a quinta definição, que, integrando plenamente a sensorialidade, abre o
figurativo para sua ultrapassagem, para o “além-sentido”.
94
J. Courtés, Analyse sémiotique du discours. De l’énoncé à l’énonciation, Paris, Hachette, 1991, p. 163.
95
D. Bertrand, “Le langage spatial dans La Bête humaine”, in Mimesis et Semiosis. Littérature et
représentation, Miscellanées offertes à Henri Mitterand, Paris, Nathan, 1993, p. 190.
96
A. J. Greimas, “Semiótica figurativa e semiótica plástica”. Trad. Ignácio Assis Silva. Significação –
Revista brasileira de semiótica, 4, Araraquara, junho de 1984, p. 25.
97
A. J. Greimas, De l’imperfection, op. cit., p. 78.
69
1.2 A semiose
98
A. J. Greimas, J. Courtés, op. cit.
99
M. Merleau-Ponty, Phénoménologie de la perception, op. cit., p. 326. {VER TRAD. BRAS.}
100
M. de Certeau, “La folie de la vision”, in “Maurice Merleau-Ponty”, Esprit, 66, Paris, 1982, p. 97.
101
M. Merleau-Ponty, Phénoménologie de la perception, op. cit., p. 64. {VER TRAD. BRAS.}
70
102
M. Pradines, La fonction perceptive, Paris, Denoël/Gonthier, 1981.
103
P. Fabbri, Introdução à edição italiana de Sémiotique. Dictionnaire raisonné de la théorie du langage,
trad. francesa, Nouveaux actes sémiotiques, Limoges, PULIM, 1992.
71
S Plano da Substância da
expressão expressão
E
Forma da
M
expressão
I
O
Plano do Forma do
S conteúdo conteúdo
E Substância do
conteúdo
104
L. Martinet, “Au sujet des fondements de la théorie linguistique de Louis Hjelmslev”, artigo citado em L.
Hjelmslev, Nouveaux Essais, Paris, PUF, “Formes sémiotiques”, 1985, p. 183.
105
R. Barthes, Aula, Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo, Cultrix, 1980, p.14.
73
1.3.3 O semema
Afirmaçã Negação
o universal universal
todo A B nenhum
homem é justo homem é justo
alguns
alguns homens
homens são justos n n não são justos
106
Aristóteles, Organon, I. Catégories, II. De l’interprétation, Paris, ão
Afirmação ão B A 1994, p. 90. {Procurar versão
J. Vrin,
brasileira existente?} Negação
particular
particular
76
s s
1 2
77
n n
ão-s2 ão-s1
n
ão-S
o n
ui on
n n
on- s on- ?
non
i oui
107
In M. Arrivé, J. -C. Coquet (eds.), Sémiotique en jeu. À partir et autour de l’œuvre de A. J. Greimas,
Paris-Amsterdam, Hadès-Benjamins, 1987, p. 314.
78
1.4.2 Exemplo
Assim, por exemplo, partindo da categoria tópica dos meios opostos aos fins, J.
–M. Floch introduziu o modelo das “axiologias do consumo”, capaz de reger um vasto
conjunto de discursos sociais, como, entre outros, o da publicidade automobilística 108. Ele
identifica quatro grandes tipos de valorizações: a valorização prática ou utilitária, correspondente
aos valores de uso dos objetos, considerados como meios (será, por exemplo, a manejabilidade
ou a robustez de um automóvel), opor-se-á, no eixo dos contrários, à valorização utópica,
correspondente a valores básicos ou “existenciais”, considerados como fins em si próprios (o
automóvel será valorizado como encarnação da identidade, da vida, da aventura). Essa
valorização prática opor-se-á também, ao modo da contradição, a um terceiro tipo de
valorização, a valorização lúdica, que corresponde a sua negação (o carro será então valorizado
por seu luxo ou refinamento, como uma “pequena loucura”). Por fim, a valorização utópica
108
J. -M. Floch, Sémiotique, marketing et communication. Sous les signes, les stratégies, Paris, PUF,
“Formes sémiotiques”, 1990, pp. 126-132.
79
será, por sua vez, negada, contraditoriamente, por um último tipo axiológico, a valorização
crítica, que encenará, por exemplo, as relações qualidade/preço, ou potência/consumo, etc.
Valoriza Valoriza
ção prática ção utópica
valores valores
utilitários existenciais
(“meios”) (“fins”)
Valoriza Valoriza
ção crítica ção lúdica
valores não valores não
existenciais utilitários
Tal modelo indica de fato diversos tipos de relações diferenciais, ora exclusivas, ora
compatíveis. Assim, se parece difícil para um fabricante manter um discurso incidente ao
mesmo tempo sobre os valores utilitários e utópicos, fica claro, por outro lado, que estes
últimos estarão numa relação de implicação com os valores lúdicos, dos quais constituirão, na
mesma dêixis, uma possível realização complementar.
O quadrado se apresenta, portanto, como a estrutura constitutiva de um
microuniverso de significação, que “amarra”, por uma rede de interdefinições, os valores
semânticos (e os termos que os designam). Em conseqüência, estes não poderiam ser
considerados de maneira isolada. O quadrado pode ser apreendido e utilizado, por um lado,
como um modelo posicional e taxionômico, formando um paradigma que indica as posições
relativas dos termos uns em relação aos outros. Mas pode também, por outro lado, ser
considerado como um modelo dinâmico que apresenta sucessivamente, no plano
sintagmático, a passagem de uma posição a outra. Constitui assim, no nível profundo, a forma
primeira das estruturas que, num nível mais superficial, se desdobrarão em arquitetura
narrativa.
A fim de concretizar tais dados teóricos, dando uma amostra de suas
intervenções concretas na análise do texto literário, examinemos agora dois exemplos simples
ligados a uma categoria semântica profunda que isolamos a partir de seus investimentos
figurativos na superfície do discurso.
v m
ida orte
n n
ão- ão-
morteda novela Deux amis de Maupassant
Em sua análise vida
109
, ele mostra como esses
valores axiológicos são concretamente manifestados na novela por atores figurativos que
representam as figuras elementares do ar (o “Céu”), da terra (o “monte Valérien”, de onde se
faz ouvir o canhão prussiano), da água (o “Sena”, onde se realiza a pesca “milagrosa” dos dois
amigos) e do fogo (o “Sol”). Sua análise explica, inversamente, como a presença de tais figuras
no texto de Maupassant, longe de se apresentar apenas como um conjunto de conteúdos
figurativos nas seqüências descritivas, instala simultaneamente os valores de que estas são
revestidas por meio das sensações experimentadas pelos heróis da narrativa: assim, elas fazem
sentido de maneira coerente, prestam conta dos valores investidos, marcando-os eufórica*
(dêixis positiva) ou disforicamente* (dêixis negativa), e explicitam o “simbolismo” peculiar a
Maupassant. Sem entrar nos detalhes de uma análise que justifica por uma argumentação
densa a complexidade das funções axiológicas do tecido figurativo, mostraremos aqui o
quadrado que a resume, associando o nível do imaginário figurativo dos quatro elementos ao
dos valores que subjazem a eles:
Sol mont
f Valérien
ogo terr
/ a
vida/ /m
conjunção do orte/ conjunção do
sol e da água, espaço de céu e da terra, espaço de
baixo: euforia cima: disforia
/ /
não-morte/ não-vida/
ág a
ua r
Água Céu
Assim evocado, o uso do quadrado leva a explicitar um microuniverso de
significação: um paradigma de termos definidos por suas posições relativas. Em outras
palavras, estabelece, de maneira estática, a organização taxionômica de um universo figurativo.
109
A. J. Greimas, Maupassant. La sémiotique du texte: exercices pratiques, op. cit., em especial as pp. 54-62
e 139-144.
81
1
2
(
estado (vit
inicial) ória dos ratos)
P Infer
araíso no
V Mo
ida rte
3
n n
ão-Morte ão-Vida
nã nã
o-Inferno o-Paraíso
(l C
uta) éu
82
4
coexistênci
a dos valores
Passamos de um estado ideal, anterior a qualquer oposição de valores, para um
(estado
pacto entre o bem e o mal, pela mediação de um conflito. A oposição entre os contrários
final)
instalava um universo mítico (um mundo sem origem determinável, ilustrado, entre outros,
por este enunciado: {“um velho barco, cujo nome ninguém sabe mais, e que ninguém
conhecia”}); a convivência dos subcontrários, por sua vez, instala um universo histórico
(figurativizado pela intervenção dos ingleses, que transformam o universo natural da dádiva
numa relação social de contrato e troca). A narrativa se apresenta como a fábula de uma
gênese condensada da cultura e da história, a partir do paraíso perdido.
A combinação final transforma a relação polêmica (aqui implicada pela
passagem exclusiva às posições contrárias e contraditórias) em uma relação contratual
(implicada, como seu núcleo semântico, pela co-presença inclusiva dos subcontrários). Esse
pacto entre os valores opostos é figurativizado pela partilha do território. A unidade espacial
da ilha, homologável a sua unidade axiológica inicial, é quebrada e cede lugar a uma nova
cartografia, doravante segmentada: territorialização horizontal, em torno dos pontos cardeais
(os ratos ao norte, as pessoas ao sul), e territorialização vertical (os ratos nas árvores, as
pessoas no chão). Ademais, tal reorganização da figuratividade não é apenas espacial, ela
também diz respeito aos atores. A ilha-paraíso constituía, no estado inicial, um ator coletivo
indiferenciado. Ao final da narrativa, os atores estão singularizados; definem-se relativamente
uns aos outros, por papéis distintos e hierarquizados, formando um esboço de estruturação
social: os ingleses, que {“tiveram uma idéia”}, revestem-se do papel actancial de destinador,
que delega um mandato e sanciona; as crianças ocupam o lugar do sujeito-herói, e os cães, o
de adjuvante. Essa nova situação narrativa se opõe globalmente à situação pré-narrativa que
caracterizava o início do relato. A transformação, apreendida no nível das estruturas
profundas, é confirmada no da manifestação textual, na própria superfície significante: a
primeira inversão no paradigma inicial (paraíso vs inferno) encontra eco sensível na inversão
fônica (R/I, Rainha das Ilhas, torna-se I/R, Ilha dos Ratos), antes de trocar, na situação final,
de paradigma lingüístico. Ao fim, uma nova denominação substituiu a oposição inicial,
marcando uma mudança radical de código: “queen of islands” indica, daí por diante, a posse da
ilha pelo novo destinador social, os ingleses.
Seria naturalmente abusivo considerar que a análise de um texto consiste em
isolar “a” estrutura elementar que estaria, em todos os casos, subjacente a ele, e que presidiria
logicamente ao advento e à organização de suas significações. Para dizer a verdade, esse caso é
antes a exceção: se acontece que tais modelos possam, parcialmente, dar conta de fenômenos
de estruturação, sabemos que, na maioria das vezes, os textos correspondem a outros modos,
muito mais complexos, de organização. No caso analisado, em contrapartida, a presença quase
exemplar dessa estrutura é sobretudo reveladora do caráter canônico da narrativa de Le Clézio.
Fazendo coincidir seu desenrolar com o molde lógico que lhe dá forma, a análise explicita o
modo de racionalidade desse pequeno conto e justifica, provendo-a de razões, a
“transparência” das significações intuitivamente percebida na leitura.
110
Cf. M. Riegel, J. -C. Pellat, R. Rioul, Grammaire méthodique du français, Paris, PUF, 1994, “La
structuration du texte”, cap. XXI, pp. 603-623.
84
111
A. J. Greimas, Sémantique structurale, op. cit., p. 96.
85
112
I. Calvino, Palomar, trad. fr., Paris, Seuil, 1985, pp. 28-33.
86
isotopias que garantem a coerência, implícita porém efetiva, do diálogo bastante elíptico que
ele mesmo trava, no mesmo momento, com sua mulher, que está regando a grama no jardim.
Nada une, aparentemente, as falas. Ele diz a ela: “Psiu!”. Ela responde, após um silêncio: “Em
um dia, ela voltou a secar”. Ele retoma, depois de uma pausa: “Droga..., no entanto..., de
novo..., é, porra nenhuma...”. E ela: “Chhhhh!... você os está assustando...”, atestando, pela
anáfora e pela segunda pessoa, que se tratava de fato, entre os dois esposos, de um diálogo
bem coerente, pondo em cena a um só tempo os saberes compartilhados, a confiança
estabelecida de sua relação, e o leve conflito que os opõe quanto à prioridade de seu vínculo
com os melros do jardim.
113
Verbete “isotopie”, em Sémiotique. Dictionnaire raisonné de la théorie du langage, vol. II, Paris,
Hachette, 1986, pp. 127-128.
87
análise apresentados até aqui, como se estreita pouco a pouco o tecido das isotopias, em uma
abordagem que reúne a semiótica e a genética textuais.
Para além dessa análise, propomos também confrontar o incipit ao desinit dessa
obra. Descobriremos então que os conteúdos iniciais do romance apresentam-se como a
forma invertida dos conteúdos terminais, garantindo um fechamento semântico, de ordem
paradigmática, do universo de Germinal. Com isso, o alcance da famosa fórmula de R.
Jakobson, que caracterizava a escritura poética como “projeção do eixo paradigmático da
linguagem sobre o eixo sintagmático”, parecer-nos-á bem mais geral: não diz respeito somente
à poesia, mas também a certos dispositivos romanescos. Assim, no caso de Germinal, a
correlação, quase sempre simétrica e até mesmo termo a termo, de valores substituíveis e
oponíveis no interior de paradigmas semânticos se efetua como resultado das provas e
transformações realizadas no decorrer das ações do herói no romance; em outras palavras,
como resultado de seu percurso sintagmático. Reconheceremos neste um verdadeiro “caso
exemplar”, de tão canônicas que se mostram essas relações à distância. É certo que Zola usava
e abusava daquilo que chamou, numa carta a Octave Mirbeau, de “simetrias voluntárias
demais”. Não se pode negar, ainda assim, que o texto extrai desses mecanismos parte de sua
eficácia, e o leitor, boa parte de sua adesão. A estrutura formal transforma assim o material
figurativo em iconicidade, pondo-se a serviço das “impressões referenciais” produzidas pelo
texto.
RASCUNHOS
Plano geral
Na planície rasa, sob a noite de março, introduzir um homem andando. Ele não vê
nada; só tem consciência da extensão pelo vento que sopra e vem de longe (o vento que
varre). A estrada escura aos seus pés (toda reta), ele não a vê. Tempo seco, rude, céu espesso
de tinta. A terra soa dura. (Ele deixou Marchiennes antes das três...).
Na planície rasa, sob a noite sem estrelas, de uma escuridão e de uma espessura de
tinta, um homem seguia sozinho a grande estrada de Marchiennes a Montsou, dez quilômetros
de pavimentação cortando em linha reta através dos campos de beterrabas. Adiante, ele nem
via o chão preto, e só tinha a sensação do imenso horizonte plano pelos sopros do vento de
março, rajadas largas como no mar, e geladas de varrer léguas de pântanos e terras nuas.
Nenhuma sombra de árvore manchava o céu, a pista se desdobrava com a retidão de um
embarcadouro, no meio da bruma ofuscante das trevas.
O homem partira de Marchiennes por volta das duas. [...]
2.2.1 O tempo
2.2.2 O espaço
Designado, como no plano geral, apenas por seu primeiro nome, o ator não
recebe aqui nenhuma qualificação descritiva. Suas propriedades são determinadas pela ação:
ele está “só”; “partiu” (duas vezes); e, sobretudo, “não encontrou trabalho nas grandes
fábricas”, que indica a um só tempo seu estado narrativo (estado de falta, condição da
formação de um sujeito de busca) e seu estatuto sociocultural (operário). É um sujeito de ação,
mas, designado somente por predicados de estado, está como que imobilizado no cenário.
verifica-se que não há mais qualquer marca temporal precisa, o aspecto já não é incoativo, e
sim durativo: o homem está andando. Em relação ao espaço, os topônimos desapareceram,
desfazendo assim qualquer conhecimento externo do espaço. Já quanto ao ator e a sua ação,
estes agora se baseiam exclusivamente em predicados sensoriais: ele “não vê nada”, “só tem
consciência da extensão por...”; a estrada, “ele não a vê”, “a terra soa dura”. O percurso narrativo
faz desaparecer a falta social (o trabalho), mas introduz uma falta numa nova isotopia, desta
vez sensorial. A percepção sensível só está presente ao modo negativo.
O essencial das mudanças, de fato, procede do lugar central que ocupam no
caso os verbos de sensação, ligados ao sujeito (doravante anônimo) que é seu agente: ver,
tocar, ouvir. A ação do homem e o cenário em que se encontra já não estão separados: ele se
tornou ator-participante. O leitor percebe por meio das percepções e sensações do homem. Nós
o conhecíamos antes por fora, por intermédio das focalizações do narrador (um nome
próprio, lugares nomeados, um projeto e uma falta); de agora em diante, nós o conhecemos de
outro modo, menos globalmente decerto, mas “por dentro”. As três isotopias figurativas,
anteriormente autônomas e disjuntas, estão agora integradas e hierarquizadas. É a do ator,
sensível e cognitivo, que rege totalmente a do espaço (que ele percebe negativamente) e a do
tempo (que é a duração subjetiva). A estratégia veridictória optou por outro suporte: a
iconicidade do figurativo era construída por elementos lexicais; agora, firma-se sobre um jogo
de referencialização interna das isotopias, por intermédio da encenação sensorial.
Como anteriormente, é possível projetar a partir do segundo plano pormenorizado
hipóteses paradigmáticas sobre a seqüência final do romance, fundando-as nas transformações
sensoriais do herói: obnubilado, ele não via – “clarividente”, verá além do visível; o mundo era
opaco (até mesmo o ar) – torna-se transparente (incluindo a terra); a percepção entravada se
transforma em hipersensorialidade...
O texto compreende dessa vez três frases, mas com uma estrutura muito mais
complexa. Pode-se examinar antes de mais nada o que resta do primeiro, e depois do segundo
plano pormenorizado, para concluir que o texto final se nutre dos materiais de ambas as
versões.
O texto final aparece como mescla dos dois planos pormenorizados: a precisão da
toponímia vem do primeiro, a percepção sensorial vem do segundo. Mas as qualificações estão
deslocadas, as imagens, multiplicadas e a organização global, profundamente modificada. À
maneira de uma estrutura textual relativamente fechada sobre si mesma, a seqüência encerra
seu próprio sistema de relações à distância. Assim, podem-se observar os paralelismos entre a
primeira e a última frase que emolduram a frase central: três isotopias são redundantes nelas, a
da luz, a da geometria e a do englobamento.
F1 F3
luz escuridão escuridão
geometria retidão da estrada retidão da estrada
englobamento “através de” “no meio de”
A simetria semântica entre as duas frases, reforçada por uma simetria sintáxica
(o adjunto de lugar final) e prosódica (as doze sílabas do primeiro e do último segmento do
parágrafo, que ecoam assim como quase-alexandrinos, o ritmo ternário da terceira frase, as
repetições fônicas), garante o fechamento dessa passagem: o conjunto é fechado como um
poema. A análise poderia especificar melhor essas observações, mas estas já indicam princípios
de escrita.
2.4.3 A negatividade
O ator
ação “passivizada” (Ele segue a estrada, a pavimentação se desenrola)
sensações negativas (ele não vê, ele não tem a sensação a não ser por)
92
solidão e isolamento
O espaço
opacidade (escuridão, espessura de tinta, chão preto, sombra, bruma ofuscante)
horizontalidade exclusiva (ausência de céu, planície rasa, pântanos e terras nuas,
imenso horizonte plano)
geometria exclusiva (dez quilômetros cortando, toda reta, a retidão de um
embarcadouro)
Síntese
ACESSO À FIGURATIVIDADE
CAPÍTULO 6
Figuratividade e tematização :
o efeito de profundidade
1. A gradualidade do figurativo
Figurativo
icônico abstrato
114
A. Robbe-Grillet, « Sur quelques notions périmées », in Pour un nouveau roman, Paris, Gallimard, col.
« Idées », 1963, p. 33.
115
A. J. Greimas, “Semiótica figurativa e semiótica plástica”. Trad. Ignácio Assis Silva. Significação –
Revista brasileira de semiótica, 4, Araraquara, junho de 1984, p. 27.
95
introdução de sua obra indicando que se contentou até então em apresentar “a ossatura de seu
raciocínio”. Leitor algum, é óbvio, imaginaria concretamente a organização de um esqueleto.
Os elementos figurativos, embora presentes, estão de alguma forma suspensos. Seria muito
diferente se ele continuasse dizendo: “passemos agora à carne e aos músculos”. Rompendo a
isotopia abstrata de seu discurso (cujo termo regente é “raciocínio”), ele transformaria assim a
figuratividade enfraquecida e virtualizada que se tece na abstração em figuratividade saliente,
de caráter icônico, e perturbaria um pouco as expectativas do leitor...
Durante a preparação de um estudo dedicado aos diferentes logotipos das
grandes instituições públicas (ministérios, estabelecimentos públicos, etc.), tendo em vista a
elaboração de um logotipo do Estado francês, ocorreu-nos examinar seu modo de
representação e reconhecer nele variações notáveis. Verificava-se antes de mais nada que os
logotipos analisados (cerca de trinta) manifestavam, em graus variáveis, um componente
figurativo. Mas esse componente procedia, como vimos, de diferentes regimes de significação:
como um ponteiro que percorre a escala de um instrumento de medida, a figuração deslizava
gradualmente da representação icônica (reproduzindo uma percepção sensível, como a
solenidade de um monumento, a familiaridade do mapa da França ou a presença de um olhar)
à representação abstrata (sugerindo valores fundamentais, como o equilíbrio e a eqüidade da
Justiça), passando por tratamentos estilizados, alegorias e símbolos.
A escala gradual da figuratividade podia ser estabelecida assim:
Exemplos de Conteúdo
ministérios figurativo
Figuratividade
+
Função pública
- o pátio do
iconização ministério
- Juventude e uma
estilização Esportes personagem
- alegoria Relações exteriores feixe, folhas
- símbolo Economia e balança
Finanças
- Equipamento raios?
conceito {***rayons}
Figuratividade
-
técnicos (que negam os valores utópicos) opostos a valores éticos (que negam os valores
práticos).
A diferença semântica precisa entre os pólos icônico e abstrato é interpretada
pela semântica estrutural em termos de densidade sêmica. Queremos dizer com isso a
densidade não somente dos traços que entram na construção do formante figurativo, mas
também a das redes associativas que ela possibilita com outros formantes. A iconicidade
ocorrrerá se os traços que o formante reúne forem suficientes para “permitir sua interpretação
como representante de um objeto do mundo natural116”. Trata-se do processo descrito na
quarta definição da figuratividade proposta no capítulo anterior. Um simples esboço basta
para provocar esse efeito: uma oval e três pontos sugerem um rosto. Essa densidade de traços
pode ser submetida a variações consideráveis que vão, para dar um exemplo baseado na
pintura, da densidade máxima (produzindo a iconização ilusionista do hiper-realismo) à
densidade mínima, até a ausência (conduzindo à impossibilidade de qualquer reconhecimento,
e dando lugar, em caso de desaparecimento total dos traços figurativos, à abstração). Nos
textos, a iconização poderá ser formada se a densidade sêmica dos traços for elevada, ou, em
outras palavras, se o semema escolhido admitir muito poucas variações semêmicas e se suas
associações forem bastante restritivas. É o caso por exemplo dos termos técnicos e
especializados nos romances naturalistas, que produzem, independentemente do
conhecimento que o leitor venha a ter de sua significação efetiva, um efeito de referenciação
forte: o semema designa uma coisa e uma só, num contexto sociocultural preciso (o
“gradador” em Germinal, por exemplo) Inversamente, a abstração vai se formar caso a
densidade sêmica seja baixa. Em outras palavras, se o semema admitir uma larga faixa de
variações semêmicas e se os contextos de uso forem muito abertos (a “beleza”, por exemplo).
Pode-se aproximar a concepção semiótica da iconicidade daquilo que a retórica
dos tropos chama de hipotipose: “A hipotipose pinta as coisas de maneira tão viva e tão
enérgica que ela como que as põe diante de nossos olhos, e faz de uma narração ou de uma
descrição uma imagem, um quadro, ou até mesmo uma cena viva117.” Essa definição de P.
Fontanier é retomada por B. Dupriez118, que cita um exemplo de Flaubert extraído da Educação
Sentimental : “Pessoas que chegavam sem fôlego; barris, cabos, cestos de roupas atrapalhavam a
circulação; os marujos não respondiam a quem os abordasse; toda a gente se esbarrava”. No
entanto, a retórica define essa figura sem descrever-lhe o mecanismo; ela a apresenta, além do
mais, como um fenômeno geral e universal, sem inscrevê-la na poética de um contexto
cultural específico. Ora, como sugere esse exemplo, trata-se nada mais, nada menos que de um
modo discursivo possível da figuratividade. Ao contrário da hipotipose, o conceito de
iconicidade é definido como um arranjo particular dos conteúdos figurativos virtuais no ato de
sua discursivização. Ele é construído no campo da teoria semântica, previamente às variáveis
culturais que lhe dão forma, e admite uma descrição independente das normas e dos cânones
que estas engendram. No seio de uma mesma cultura, a literatura não somente propõe
variações à codificação dos efeitos figurativos, mas sobretudo tem por especificidade
interrogar de maneira crítica as funções da figuratividade na linguagem e também as crenças
que ela traz consigo. Assim, na célebre abertura de Jacques, O Fatalista {***verif. título em
port.}, Diderot empenha-se em aniquilar logo de saída as expectativas de iconicidade do leitor.
Veremos no capítulo seguinte como H. Michaux, por sua vez, põe em cena, de modo
conflituoso, os aspectos fiduciários da iconização no discurso.
116
A. J. Greimas, ibid., p. 25.
117
P. Fontanier, Les Figures du discours, Paris, Flammarion, col. « Champs », p. 390.
118
B. Dupriez, Gradus. Les procédés littéraires (Dictionnaire), Paris, 10/18, 1984, p. 240.
97
119
J. Courtés, Analyse sémiotique du discours, Paris, Hachette, 1991, p. 165.
120
[N. dos T.] Respectivamente, Baudelaire : “A Natureza é um templo onde pilares vivos / Deixam às vezes
escapar palavras confusas” e Rimbaud {???}:“Meu lindo navio, oh, minha memória / Será que navegamos o
bastante [...]”.
98
121
G. Lakoff, M. Johnson, Les Métaphores dans la vie quotidienne, Paris, Minuit, 1985, cap. 4, pp. 24 ss. [N.
dos T.] Literalmente, em inglês, “Metáforas por que vivemos” e, em francês, “As metáforas na vida
cotidiana”. {HÁ TRAD. BRASILEIRA???}
99
consciente no alto (“a consciência ‘emerge’”) e o inconsciente embaixo (“ele caiu num sono
profundo”), a saúde e a vida no alto (“ele está no auge de sua forma”), a doença embaixo (“ele
caiu de cama”), a virtude no alto (“ele está acima de qualquer suspeita”) e o vício embaixo
(“não cometerei essa baixeza”), o racional no alto (“um alto nível intelectual”) e o passional
embaixo (“dominar suas emoções”), etc. Enraizada na experiência corporal, a figuratividade
espacial rege assim de forma extraordinariamente extensa as representações axiológicas, sejam
elas valores éticos, morais, racionais, socioculturais, físicos ou outros.
De maneira mais radical, Nietzsche, em Vérité et mensonge au sens extra-moral,
aponta o fundamento figurativo da linguagem para denunciar as ilusões da verdade que traz
consigo a palavra conceptualizada. A verdade nasce do desejo de conjurar a estranheza do
mundo pela sua inserção nas convenções sociais da língua, nos produtos da utilização cultural
que a geraram. Desse modo a questão da “verdade” evoca a questão do nascimento da língua.
Cada palavra torna-se de imediato um conceito pelo fato de que, justamente, não deve servir
de lembrança à experiência original, única e completamente singular a que ela deve seu nascimento, mas
deve adaptar-se também a inúmeros casos menos parecidos ou mais, isto é, rigorosamente falando,
jamais idênticos; uma diversidade de casos diferentes, portanto. Todo conceito nasce da identificação do
não-idêntico. Tão certo quanto uma folha não será jamais idêntica a outra, assim também o conceito de
folha se formou pela renúncia deliberada a essas diferenças individuais, pelo esquecimento do distintivo,
e ele desperta a representação, como se existisse na natureza, para além das folhas, uma coisa como “a
folha”, uma espécie de forma original a servir de modelo a partir do qual todas as folhas seriam tecidas,
desenhadas, medidas, coloridas, frisadas, pintadas, mas por mãos inábeis, a tal ponto que nenhum
exemplar correto e confiável jamais se apresentaria como transposição fiel da forma original122.
122
F. Nietzsche, Vérité et mensonge au sens extra-moral, trad. fr. de N. Gascuel, Arles, Actes Sud, 1997, pp.
14-15.
123
Ibid., p. 16.
100
Recorrera-se, para as tortas e os nugás, a um pasteleiro de Yvetot. Este, como fosse novo na
região, esmerou-se no preparo dos pratos; e apresentou mesmo, à sobremesa, um bolo monumental que
provocou exclamações de entusiasmo. Na base, de início, havia um quadrado de papelão azul
representando um templo com seus pórticos, colunatas de estatuetas de alcorça nos nichos recamados de
estrelas de papel dourado; um torreão de bolo de Savóia, cercado de pequenas fortificações de hastes de
angélica, amêndoas, passas e quartos de laranja, elevava-se no segundo pavimento; finalmente, na
plataforma superior, que representava uma campina verdejante, em que havia rochedos e lagos de doces,
bem como barcos de lascas de avelãs, um pequeno Amor balançando-se em um trapézio de chocolate,
cujos esteios terminavam no topo por dois botões de rosa natural, à guisa de esferas.
2.1 Arquiteturas
124
[N.dos T] A tradução brasileira de referência omite duas das marcas discutidas por D. Bertrand, o
predicado perceptivo ¨via-se¨ e o articulador temporal ¨em seguida¨, aqui destacados no texto original de
Flaubert : On avait été chercher un pâtissier `a Yvetot, pour les tourtes et les nougats. Comme il débutait
dans le pays, il avait soigné les choses ; et il apporta, lui-même, au dessert, une pièce montée qui fit pousser
des cris. À la base, d´abord, c´était un carré de carton bleu figurant un temple avec portiques, colonnades et
statuettes de stuc tout autour dans des niches constellées d´étoiles en papier doré ; puis se tenait au second
étage un donjon en gâteau de Savoie, entouré de menues fortifications en angélique, amandes, raisins secs,
quarties d´oranges ; et enfin, sur la plate-forme supérieure, qui était une prairie verte où il y avait des
rochers avec des lacs de confiture et des bateaux en écales de noisettes, on voyait un petit Amour, se
balançant `a une escarpolette de chocolat, dont les deux poteaux étaient terminés par deux boutons de rose
naturelle, en guise de boule, au sommet. (in Oeuvres, t. I, Paris, Gallimard, coll. ¨La Pléiade¨, p.317)
101
que nos faz “subir” das estrelas à campina, passando pela torreão. Esse arranjo figurativo
inverte, portanto, a ordem das hierarquias do espaço natural inscritas aqui no conteúdo do
espaço figurado, já que o universo elevado do templo e das estrelas encontra-se embaixo, o do
torreão – que comporta o sema da elevação – fica no meio, e o da campina, no alto. Qual é
então o discurso proferido pelo bolo?
Esse primeiro efeito de desiconização que impede a leitura referencial, ou que a
inverte ironicamente (voltaremos a falar sobre isso), convida-nos a reconhecer, na verdade,
uma outra significação, mais profunda. Cada pavimento constitui em si mesmo um motivo
que sustenta, unicamente pelo jogo de suas figuras, um pequeno discurso e apóia uma
micronarrativa cultural e social subjacente, facilmente reconhecível. Ele conduz assim a leitura,
num nível de apreensão mais abstrato (temático), em direção ao reconhecimento das funções e
das relações recíprocas entre os motivos. Nesses novos investimentos de significação formam-
se redes de referencialização internas ao texto, que o fixam como objeto e que são capazes de
fundar seu valor em termos de estética literária. De acordo com a fórmula de H. von
Hofmannsthal, “a profundidade deve se esconder. Onde? Na superfície”125.
125
H. von Hofmannsthal, citado por I. Calvino, Leçons américaines, Paris, Gallimard, 1989, p. 124.
126
G. Dumézil, Mythe et épopée, t. I, Paris, Gallimard, 1968, p. 16.
104
germânica, romana e celta não deve ser procurado, prioritariamente, em distantes e hipotéticos
parentescos lingüísticos ou filológicos, mas, sim, em uma estrutura ideológica (uma isotopia
temática) similar que constitui sua marca e institui sua origem comum. Esta pode se manifestar
sob formas extremamente diversas.
Ora, é exatamente uma manifestação dessa ordem cultural que parece propor,
in fine, o bolo de casamento de Emma Bovary. Por meio de sua disposição figurativa, em suas
camadas e em sua hierarquia, o bolo monumental apresenta o modelo conceptual das três
“funções ideológicas”. Poderíamos até ver nisso um dos princípios de sua coerência, ao passo
que toda coerência icônica (“realista”) é inexoravelmente minada, como vimos: o bolo traz
uma visão invertida do mundo. Na verdade, o texto realmente condensa no discurso
emblemático de suas figuras as três funções dumézilianas: com o céu e as estrelas, o templo
corresponde à função de soberania mágico-religiosa, com o torreão e suas fortificações, à
função guerreira, com a campina, o lago e o Amor no trapézio, à função de reprodução. A
profusão de ingredientes comestíveis, contrastando com sua ausência ou relativa escassez nos
dois níveis precedentes, ilustra aliás os valores de “abundância tranqüila” ligados a essa terceira
função. Incontestavelmente, pode-se reconstruir a partir desses traços figurativos a síntese do
sistema ideológico completo. Como se fosse uma modesta manifestação de um vasto modelo
de representação e de pertinência, o bolo de casamento reexprime pois, em seu enunciado, um
dos grandes arquétipos funcionais da cultura. E, no entanto, a hierarquia do panteão é
invertida: o templo está na posição inferior, o torreão na mediana, a campina na posição
superior e dominante: é interessante notar que a terceira função se encontra no topo. Estranho
efeito de ironia na inversão da hierarquia trifuncional, que vem reforçar a inversão já
observada dos valores espaciais do baixo e do alto e confirmada, uma vez mais, no plano da
substância do conteúdo, pela filiação do mais elevado – que está em baixo – à dimensão
desvalorizada do /não-comestível/ no contexto da sobremesa: papelão, alcorça e papel.
2.3 Ironia
Sabe-se que a ironia flaubertiana, que não se deixa analisar em termos de antífrase
(diferentemente da de Voltaire, por exemplo), joga com a inversão dos motivos
estereotipados, calcificados pelo uso, e com a inversão axiológica dos clichês. Os motivos em
questão, produtos da práxis cultural, são solidários de discursos subjacentes reconstruíveis: a
repisada moda das representações românticas da natureza, do amor e da História. Eles podem
não estar explicitamente citados (embora estejam, algumas vezes), sem que por isso a
possibilidade de um anti-discurso desapareça. Sua menção, ainda que implícita e, em alguns
casos, dificilmente decidível127, forma o plano interno de referência necessário à inteligibilidade
do discurso flaubertiano, estando pressuposta por ele. É o que verificamos aqui: o discurso
arquetípico da ideologia trifuncional, apreendido em sua estrutura temática, encontra-se
presente de fato, fixado na organização figurativa do bolo, homólogo e subjacente a ela.
A partir daí, a significação figurativa aparece, para além das representações
semânticas particulares, mas indissociavelmente por meio delas, como uma câmara de eco de
outras significações de alcance mais geral e abstrato, inscritas em outros discursos. Ao plano
figurativo de superfície, passível de se ostentar pela iconicidade, corresponde de fato uma
figuratividade profunda cujo efeito é reduzir, recategorizar e tematizar seu sentido. Nessa
É conhecida a observação de Flaubert: “Escrevo de tal maneira que o leitor nunca saiba se estão
127
128
P. Valéry, Cahiers, t. II, Paris, Gallimard, col. « La Pléiade », p. 1024.
129
Carta a Louise Collet, de 16 de janeiro de 1862, que continua assim : « As obras mais belas são aquelas
em que há menos matéria ; quanto mais a expressão se aproxima do pensamento, quanto mais a palavra nela
se amalgama e desaparece, mais bonito é […]… Não existem assuntos bonitos nem feios […], não há nada
disso, o estilo é por si mesmo a única maneira absoluta de ver as coisas. »
106
no texto, mas também ao evento sensorial da percepção – a estesia – que o discurso encena,
configura e questiona.
107
Síntese
Figuratividade e tematização
A figuratividade não pode ser assimilada à “representação” mimética, que é somente uma de suas
realizações possíveis. A figurativização do discurso é, mais exatamente, um processo gradual sustentado de um
lado pela iconização, que garante a semelhança por relação às figuras do mundo sensível e, de outro, pela
abstração, que delas se afasta. Essa concepção permite assim explicitar, de passagem, as categorizações culturais
da figuratividade. Estas associam e combinam, de maneira variável e específica, os dois pólos do icônico e do
abstrato: estilização, alegorização, parabolização, simbolização.
A semântica estrutural considera esses diferentes percursos semânticos em termos de
“densidade sêmica” mais elevada ou menos: quanto mais elevada ela for, menos o termo afetado por ela admitirá
compatibilidades com outros termos e mais o discurso tenderá para a iconicidade; quanto menor a densidade
sêmica, mais combinações serão aceitas pelo termo afetado e maior será a tendência à abstração. A tematização
consiste, assim, numa redução do figurativo. A semiótica analisa os diferentes modos de conexão entre os níveis
de articulação, figurativo e temático, da significação.
Essa elasticidade semântica da figuratividade permite que se fale em uma “profundidade” do figurativo, que,
longe de se manter na superfície do discurso, como a vestimenta de uma abstração mais profunda, pode ser considerado
em si mesmo, por meio dos raciocínios figurativos, por exemplo, como um dado primário da linguagem.
Capítulo 7
Figuratividade e percepção
1. A estesia
130
De l’imperfection, op. cit.
109
ou, pelo contrário, ser deixada aberta e dedutível a partir de índices textuais disseminados. A
interpretação literária, cujo exercício hermenêutico se realizava na tradicional explication de textes
escolar, encontrava aí seu campo de aplicação, conforme vimos, ao comentar-lhe há pouco as
causas e efeitos teóricos, pela análise do “bolo indo-europeu” de Madame Bovary.
Ora, esse patamar modal subjacente do /crer verdadeiro/, que sustenta por meio do
contrato enunciativo o reconhecimento comum de um “mundo” na leitura, situava-se no
plano de fundo da análise, como um imperceptível horizonte. Ele passa a ocupar agora, na
segunda abordagem da figuratividade, a frente do palco. Essa modalidade, realmente, institui o
espaço fiduciário que assegura a um só tempo a variação e a junção entre os diferentes níveis
de apreensão e interpretabilidade reclamados pelas isotopias figurativas: os efeitos de
realidade, mas também de surrealidade ou irrealidade, os efeitos de sensibilização, abstração e
argumentação, etc.
O reconhecimento da modalidade central e fundadora do crer consiste, no
fundo, em explicitar mais amplamente as fontes fenomenológicas de toda significação
figurativa. A apreensão da figuratividade dos textos já não se volta para a posterioridade dos
efeitos de sentido produzidos e sua estruturação; agora, ela está dirigida para o nascedouro da
figurativização, para as próprias condições daquilo que o fundador da fenomenologia, E.
Husserl, denominava “função figurativa”, isto é, “o ‘parecer da’ cor, ‘da’ forma, etc.”, que se
compõe com outros elementos na percepção para constituir “a unidade de apreensão”
sensorial das coisas131. Tal função designa as operações de reconhecimento e identificação dos
objetos na percepção. Dessa maneira, a nova definição se empenha menos em apreender em
que o patamar figurativo da significação se transforma na manifestação do discurso do que em
compreender como ele advém. O “parecer”, que definia o plano fenomenal do sentido132, já
não é somente uma questão de veridicção e regulação intersubjetiva, sobre o pano de fundo de
uma axiologia sociocultural que estabelece as normas da leitura; constitui em si próprio uma
problemática.
Esse parecer define agora um espaço semiótico próprio, e portanto
problemático em si mesmo, no qual se realiza a articulação entre a cena do ato sensível, essa
película de sentido que envolve as coisas na apercepção, e a discursivização das figuras que
atestam sua presença na linguagem. O ato de percepção, como demonstra M. Merleau-Ponty,
realiza um movimento de constituição recíproca, e por vezes frágil, entre o sujeito e o objeto
da visão, da audição, do olfato, etc. Sujeito e objeto, por esse ato, solidarizam-se e soldam-se,
confiantes na realidade e verdade do mundo sensível, ou então pelo contrário desprendem-se
e dessolidarizam-se, como demonstram as ilusões da sensibilidade, ou as alucinações.
Numerosos são os textos literários que nos fazem, por assim dizer, “remontar” a esse ato de
advento em que se delineiam, à beira do indizível, as formas antepredicativas do sentido, e se
instauram as condições da confiança preliminar do sujeito em seu “estar-no-mundo”. Como
veremos com H. Michaux, há até quem faça desse surgimento narrativizado o centro de uma
poética.
131
E. Husserl, Idées directrices pour une phénoménologie, trad. P. Ricœur, Paris, Gallimard, col. “Tel”,
1950, pp. 133-134.
132
Cf. a definição do verbete “fenomenal” em A. J. Greimas & J. Courtés, Dicionário de semiótica, op. cit.:
esse termo “pode ser empregado como sinônimo de parecer [...]: da mesma forma, plano fenomenal será
assimilado a plano do parecer”, p. 183-184.
110
133
De l’imperfection, op. cit., p. 77. Grifos nossos.
134
Ibid., p. 78.
111
literário, ela forma uma de suas dimensões fundadoras. Quando P. Ricœur caracteriza o
romance do século XX como o do “fluxo de consciência”, de M. Proust a N. Sarraute, é
realmente esse primado da percepção que é enfatizado. A interrogação sobre a consciência
perceptiva e seus desafios fiduciários pode até mesmo ser literalmente encenada, conforme
veremos ao analisar o texto de Henri Michaux, “Intervenção”, fábula da adesão perceptiva
equívoca, entre o encerramento do sensível no figurativo e o dilaceramento do figurativo pelo
sensível. Mas, já que o /crer/ se encontra no centro de tal reflexão sobre o figurativo,
precisamos tomar mais um desvio e mostrar como a semiótica trata a questão da verdade e da
crença partilhada: é a problemática da veridicção que comanda os jogos do parecer do sentido.
135
A. J. Greimas, Du sens II, op. cit., p. 105.
136
Per Aage Brandt, “Quelque chose. Nouvelles remarques sur la véridiction”, in “Niveaux et stratégies de la
véridiction”, Nouveaux Actes sémiotiques, 39-40, Limoges, PULIM, 1995, p. 4.
112
em si próprio torne-se objeto de valor e motivação narrativa: um segredo só faz sentido se, de
uma maneira ou de outra, puder ser descoberto, traído ou revelado.
O quadrado da veridicção se apresenta como uma combinação dos valores de
ser e parecer, e de suas negações: a combinação define os termos de “segunda geração”. Assim,
quando há coincidência do parecer e do ser num universo de discurso, há “verdade”; a
coincidência do parecer e do não-ser define a “mentira”; a do não-parecer e do ser define o
“segredo”; enfim, a coincidência do não-parecer e do não-ser define a “falsidade”.
V
s erdad p
er e arecer
S M
egredo nã n entira
o-parecer F ão-ser
alsidad
e
Vê-se como as denominações dos termos da segunda geração refletem sem
dificuldade o universo figurativo do conto popular. J. Courtés137 ilustrou assim o modelo, por
meio de Cinderela, mostrando que o estado inicial da heroína é o da “falsidade” (nem parecer,
nem ser); seu estado de princesa furtiva no baile é, a seus próprios olhos, da ordem da mentira
(parece princesa, mas não é) e, quando foge ao bater do décimo-segundo toque de meia-noite,
ela entra, aos olhos do príncipe, na ordem do segredo (já não parece, porém persiste em seu
ser). A resolução do conto consiste então, pela revelação da marca (o sapatinho de vidro), em
eliminar a contradição e fundir o segredo e a mentira na verdade do casamento.
137
J. Courtés, Introdução à semiótica narrativa e discursiva. Trad. Norma Backes Tasca, Coimbra,
Almedina, 1979.
138
In Sémiotique. Dictionnaire raisonné de la théorie du langage, t. II, op. cit., pp. 34-35.
113
E
vidência
V
Dis s erdad p S
simulação er e arece imulação
S M
egredo r
nã n entira
o-parecer F ão-
alsidad ser
Não-
e
pertinência
Como quer que seja, esse quadrado coloca múltiplas questões para os teóricos:
em que medida ser e parecer pertencem ao mesmo eixo semântico? Em que seriam eles a priori
oponíveis? Qual é exatamente o estatuto da falsidade? Sua força é trazer para as relações
internas ao próprio discurso o espaço problemático da verdade, desde os princípios mesmos
da teoria (o parecer do sentido) até sua exploração em análise textual. Constitui, assim, um dos
instrumentos mais significativos da semiótica.
É esse modelo que funda o contrato de veridicção, ou seja, as condições da
confiança que determinam o compartilhamento das crenças, em perpétuo ajuste entre os
sujeitos, no interior do discurso. A fidúcia, ou crença partilhada, está conseqüentemente no
fundamento da concepção intersubjetiva da enunciação e da interação em semiótica. Mas, na
linguagem, essa crença se apóia antes de tudo sobre os valores figurativos oriundos da
percepção, valores cuja perturbação nos é mostrada no texto de H. Michaux, Intervenção.
Intervenção
Ao final da última obra publicada de Henri Michaux, Par des traits, pode-se ler
um texto intitulado: “Des langues et des écritures. Pourquoi l’envie de s’en détourner”139.
Trata-se de uma espécie de teoria genética da linguagem, ou melhor, de uma visão nostálgica
das “antelínguas”, “essas línguas inacabadas – feitas pela metade, abandonadas a meio
caminho [...]”, em prol das línguas acabadas, categorizadas, línguas de direção, comandantes,
línguas “de aplicação” e de estruturas, línguas “de coleção”, que “iam amplificar sem parar o
crescente pé-de-meia que irá chamar-se memória”. Se tivéssemos de qualificar numa palavra
essas supostas antelínguas, poderíamos denominá-las pré-categoriais, nem bem desprendidas
ainda desse continuum de sentido não analisado que é a substância do conteúdo, e
movimentando-se juntamente com ele. Entendamos por isso línguas que são apreensões
passantes de sentido, pré-figurativas, câmaras de eco de intensidades perceptivas; “pedaços de
língua”, como diz Michaux, feitos de “gestos mais felizes ou menos, os do tempo em que se
introduziam um por um, na incerteza, signos que talvez não fossem ‘pegar’”. São constituídas
de movimentos que interceptam o sentido lábil em que elas se moldam, sem se deter nele ou
fixá-lo: “signos pobres em conexões, traços no tronco da árvore que, ao dilatar-se, a casca
apagava sem que se percebesse”. Em suma, não uma verdadeira língua, mas antes “emoções
em signos, que não seriam decifráveis senão pela angústia e pelo humor”.
Consideramos que essa língua prefigurativa se encontra precisamente
figurativizada em Intervenção, por meio do desdobramento, como em câmera lenta, dos
139
Par des traits, Paris, Fata Morgana, 1984, não paginado.
115
2.1 A desiconização
nos objetos”140. É assim que o mundo dos valores retoma contato com a emergência sensível
das formas significantes, reencontra seu foco fundador com o surgimento do sentido na
percepção, e liga-se de fato ao plano de fundo fenomenológico que lhe condiciona o advento.
Eis a primeira justificativa da intervenção: remontar até a percepção em si própria, para agir
sobre o mundo dos valores coletivos.
2.1.3 O tédio
140
J. Fontanille, “Présentation” ao dossiê “Les formes de vie”, in RS/SI, Recherches Sémiotiques/Semiotic
Inquiry, vol. 13, nº 1-2, Association canadienne de sémiotique, 1993, p. 6.
141
M. Merleau-Ponty, Fenomenologia da percepção, op. cit., p. 455.
117
2.2.1 A fé perceptiva
Que há por trás desse “não sei quê”, dessa “confrontação negativa”, dessa
rejeição de uma figuratividade da similitude? O espaço de tal confrontação situa-se no interior
do que Merleau-Ponty denomina “fé perceptiva”, “opinião original”, “crença-mãe”, ou seja, a
modalidade geradora desse entrelaçamento da percepção, em que o sujeito e o objeto
estabelecem seu liame de valor recíproco e existem um para o outro: “Abaixo das percepções
propriamente ditas existe portanto, para subtendê-las, uma função mais profunda sem a qual
aos objetos percebidos faltaria o índice de realidade [...] e pela qual os objetos passam a contar
ou a valer para nós”142. Essa função é o “movimento que nos instala no mundo antes de
qualquer verificação”, operando o que Husserl já chamava, conforme vimos, de “função
figurativa”. As apreensões fragmentárias da percepção (os “esboços”) são unificadas – são as
“animações de esboços” –, permitindo o reconhecimento sintetizado dos objetos por meio do
aparecimento das formas, linhas e cores.
De fato, é a Husserl que devemos nos referir para a análise dessa “crença-mãe”
(a urdoxa) que Michaux ilustra aí numa fábula figurativa. A crença perceptiva se articula em
duas grandes classes de modalidades: a primeira está centrada no objeto que se forma na
percepção, dotando-o de caracteres (denominados “noemáticos”) que podemos assimilar às
modalidades aléticas dos lógicos: o real, o necessário, o possível, o problemático, o
contingente, o duvidoso ou o irreal. A segunda está centrada, não mais na própria coisa,
porém na crença do sujeito e na sua maneira de assumir ou fazer seu o objeto que percebe. Os
caracteres dessa crença (chamados de “noéticos”) podem ser assimilados às modalidades
epistêmicas da lógica: crença certa, dubitativa, conjectural, provável, improvável, estimativa143.
Assim constituído, o espaço complexo da adesão perceptiva é passível de
sofrer modulações, modificações e conflitos. O campo de exercício da poética de Henri
Michaux se encontra aí, nas variações desse espaço antepredicativo da percepção, para as quais
ele busca (ou encontra) uma língua.
2.2.2 A suspensão
142
M. Merleau-Ponty, Fenomenologia da percepção, op. cit., p. 459.
143
E. Husserl, Idées directrices pour une phénoménologie, op. cit, pp. 354-359.
118
144
H. Michaux, Saisir, Paris, Fata Morgana, 1979 (sem paginação). Grifo nosso.
145
[N. dos T.] O original em francês comporta, de fato, o artigo partitivo, que a tradução para o português
omite: “J’y mis du chameau”.
119
funcionais esses fragmentos táteis, olfativos, auditivos, visuais, que intervêm inesperadamente
no mundo. As figuras que representam tais esboços, no curso da intervenção, explicitam
potencialidades de valores, “valências perceptivas”.
2.3.2 Infração
2.3.4 Disseminação
146
M. Merleau-Ponty, Fenomenologia da percepção, op. cit., p. 455.
147
H. Michaux, Connaissance par les gouffres, Paris, Gallimard, 1967, pp. 20-21.
148
Ibid., p. 188.
121
se caracteriza por sua exterioridade (os “turistas”). Ao cabo desse processo, a avaliação,
sempre disfórica, já se encontra interiorizada, incorporada pelo sujeito interno (os “habitantes
de Honfleur”), tornado “afetante”: os habitantes têm “aquele olhar desconfiado tão peculiar
aos cameleiros”. A disseminação do sensível, ou seja, sua máxima extensão, está consumada.
O tornar-se-camelo dos habitantes de Honfleur ou, mais precisamente, sua participação nas
qualidades sensíveis e axiológicas do “ser camelo”, está efetivamente realizado.
A trajetória das figuras da sensibilidade e sua progressiva transferência do sujeito
individual que as gerou para o sujeito coletivo que as assimilou, pode ser assim resumida: à
intensidade máxima do início correspondia uma extensão mínima; inversamente, ao final do
percurso, à intensidade mínima vem corresponder uma extensão máxima. Tal transfusão
gradual, que associa os dois percursos em relação inversa, perturba o regime dos valores
estabelecidos, suspende sua circulação e acaba substituindo-os pela nova ordem do sensível.
O duplo movimento que assim se observa indica, de maneira mais geral, as condições
de estabelecimento dos valores, localizando o espaço das valências. Seu desenvolvimento, no
texto de Michaux, realiza-se por uma transferência de intensidades, e mais precisamente por
uma correlação entre “gradientes de intensidade” postos em relação inversa. Assim, a regra
geral definida por J. Fontanille e C. Zilberberg149, a respeito do modo de funcionamento e
apreensão de tais valências, encontraria uma confirmação e quase um “caso exemplar” nessa
encenação específica das “valências perceptivas” pela qual Michaux ilustra, com uma pequena
fábula, as vias figurativas do sensível. É de fato por uma transferência tributária dessas regras
que a “corrente dóxica” passou. Sobre um fundo de atonia axiológica, o da estereotipia, a
reativação da adesão perceptiva se realizou: um mundo novo está em via de formação.
A transformação se cumpriu, previamente aos valores e a sua fixação efetiva,
diferencial e estabilizada nos objetos. É realmente nesse nível que se efetuou a mutação da
disposição sensível dos sujeitos: não vêem os camelos, porém percebem suas exalações,
sentem com o tato sua presença, ouvem o som de seus passos e, solicitados por uma nova “fé
perceptiva”, tais sujeitos incorporam todos esses efeitos, a ponto de acolherem dentro de si
essa intrusão do sensível e de se transformarem, convertendo-se, ao final, em sua fonte de
emanação. Ao término do texto, compreende-se que, como integrante da série das “partidas”
que deixam esse novo espaço num estado suspensivo – partida das caravanas, partida dos
viajantes, partida do interventor –, o trem se arroja no mar, “salvo pela fé”.
149
Esse dispositivo geral da valência, concebida como correlação de gradientes (ao modo da conjunção:
“mais pede sempre mais, menos pede sempre menos”, ou ao modo da disjunção: “mais pede menos, menos
pede mais”) foi discutido e teorizado por J. Fontanille e C. Zilberberg in Tensão e significação, São Paulo,
Discurso Editorial/Humanitas, 2001. Ver, em especial, o capítulo primeiro, “Valência”, pp. 15-37.
122
corporal em seu meio, cf. ciclotimia), com sua dupla polaridade euforia/disforia, veio dar conta,
na qualidade de classema, da incorporação do sensível, substituindo então a
proprioceptividade150.
Quando a semiótica figurativa tentava explicar a “representação” e as impressões
referenciais, ela era exteroceptiva; quando discutia os vínculos entre o figurativo e o abstrato,
ela associava o figurativo à dimensão interoceptiva. Os desenvolvimentos atuais da
investigação sobre a figuratividade estão voltados para a dimensão proprioceptiva e para as
questões novas que esta levanta para o analista, relacionadas à fenomenologia. Como abrir
caminho entre o nível da apreensão sensorial, da percepção e do corpo sensível, e o nível
axiológico, dos valores investidos no discurso figurativo? Como as categorias tímicas, situadas
a montante, comandam tais investimentos? Como essa tensão que as caracteriza – sua
avaliação contínua e instável em termos de excesso e de falta, de mais e de menos, de
intensidade e de extensão – poderia ser descrita? A narrativa de Henri Michaux, Intervenção,
permitiu-nos, se não responder a essas questões, pelo menos estabelecer com mais clareza o
problema. O texto é uma verdadeira fábula da proprioceptividade, sugerindo-nos seu
esquema. Ao desnudar o processo de incorporação do sensível, como se o soletrasse, ele
ilustra a necessidade, por um lado, de conferir à tensão um estatuto semântico (é o papel
desempenhado pelo conceito de valência e pelas correlações que o definem) e, por outro lado,
de melhor definir as ligações entre a emergência do sentido na sensorialidade, sua estabilização
no figurativo e a estereotipização deste último no axiológico. Ao longo dessa trama, o sujeito
que “vê” e “sente” descobre seu espaço, e se descobre por meio dele.
150
Essa transferência conceitual e metodológica é apresentada em A. J. Greimas, J. Courtés, Dicionário de
semiótica, op. cit., nos verbetes “exteroceptividade”, “interoceptividade” e “proprioceptividade”.
123
124
Síntese
FIGURATIVIDADE E PERCEPÇÃO
Capítulo 8
Da análise da narrativa à narratividade
1. Resumo histórico
Os anos 1960 foram marcados, nas ciências humanas, por uma verdadeira revolução
na reflexão sobre a narrativa. A publicação, em 1966, do número 8 da revista Communications,
sob o título “Recherches sémiologiques. L'analyse structurale du récit”, constitui seu
acontecimento de referência: encontram-se aí principalmente os textos de R. Barthes
(“Introduction à l’analyse structurale du récit”), A. J. Greimas, C. Brémond, U. Eco, G.
Genette, C. Metz, T. Todorov. O traço característico e comum a esses diferentes estudos é um
esforço de racionalização da ficção narrativa, que ocasionou uma profunda reviravolta
metodológica, levando à constituição da “narratividade”, uma quase-disciplina conhecida
também pelo nome de narratologia.
Podemos apresentar essa reviravolta como a passagem entre o que P. Ricœur chama
de “inteligência narrativa”, que é trans-histórica, cronológica, inserida na evolução e nas
mudanças da tradição histórica da “elaboração da intriga”, para uma “racionalidade semiótica”,
concebida de maneira a-histórica como um aprofundamento dos mecanismos formais
produtores da narrativa, isto é, a busca de estruturas profundas imanentes, cujas diferentes
configurações na superfície dos textos não seriam mais que manifestações particulares. A
imanência, lembremos, significa a autonomia das formas estruturais, seu funcionamento
próprio, sua indiferença enquanto sistema aos dados extralingüísticos.
P. Ricœur ilustra as transformações históricas da elaboração da intriga mostrando como, sobretudo na
esteira dos trabalhos de G. Lukács, o advento do romance moderno pode ser compreendido como um
inversão da hierarquia entre “intriga” e “caráter”. Nas formas primitivas da narrativa, a intriga era
englobante, enquanto os pensamentos, os afetos e os “caracteres” que os enquadram (e que a semiótica
desenvolverá com o conceito de “papel temático” dos atores) lhe eram subordinados. A inversão foi
produzida por uma extensão progressiva do “caráter”, que Ricœur segmenta em três etapas: em
primeiro lugar, extensão, operada pelo romance, da “esfera social”, a partir dos heróis exemplares,
encarnação dos valores de toda a sociedade (como Percival, em Chrétien de Troyes), ou de tipos
comuns, os quais também encarnam, ainda que ironicamente, os valores coletivos ( cf. o romance
picaresco); extensão ilustrada em seguida pelo “romance de aprendizagem”, que subordina a intriga à
“tomada de consciência” de uma personagem central (desde o romance do século XVIII até o meio do
XX): no romance do século XX, são a riqueza e complexidade do caráter que fundamentam a
complexidade episódica (Stendhal, Balzac, Dostoïevski, Tolstói...); extensão que culmina enfim com o
romance de “fluxo de consciência” (a partir de Flaubert, M. Proust, V. Woolf...), em que a diversidade
dos níveis de consciência, a agitação dos desejos e dos temores, das percepções e dos afetos recobre
151
Cf. em particular, a esse respeito, P. Ricœur, Tempo e narrativa, t. II, “As estruturas semióticas da
narratividade e suas restrições”, Campinas, Papirus, 1995, pp. 55-108. Retomamos aqui, em parte, elementos
desse ensaio.
126
inteiramente a efabulação. Essa fase é ilustrada em especial pelo Nouveau Roman (Sarraute, Robbe-
Grillet, Simon...).
A mudança metodológica introduzida pela narratologia consiste então em denunciar a
pertinência da cronologia, em substituir a história pela estrutura, em desprender-se da
inteligência narrativa histórica em favor das coerções estruturais a-crônicas. Várias razões
podem explicar essa revolução.
Primeiro, a imensa diversidade cultural do fato narrativo, que lhe dá um estatuto
universal. A variedade das formas de expressão (orais, gestuais, icônicas, escritas, etc.) e de
seus suportes (texto escrito, filme, HQ, pintura, conversação cotidiana, etc.), assim como
a das classes narrativas, dos gêneros e dos subgêneros (mito, epopéia, conto, romance,
fábula, novela, tragédia, drama, poesia, etc.) condena à ineficácia qualquer método
indutivo. Isso é atestado pelo recorrente fracasso de uma definição formal e consensual
dos “gêneros”. Segunda razão, o método dedutivo, que consiste em propor, a partir de
uma axiomática, modelos hipotéticos, para depois testá-los, derivar subclasses, interdefinir
e hierarquizar os conceitos operatórios, etc., parece impor-se de maneira a distinguir a
complexidade do fenômeno, reconhecer suas regularidades e formular regras. A terceira
razão, em continuidade com a precedente, está ligada à influência considerável dos
modelos lingüísticos e suas categorias fundamentais (como a dicotomia sistema/processo)
que, aplicadas primeiramente à fonologia, foram estendidas em seguida à semântica lexical
e por fim à análise da dimensão transfrásica da linguagem: o discurso. Ora, a narrativa é
uma das mais amplas classes do discurso. Sua realidade transcultural justifica a pesquisa
dos universais semânticos e sintáxicos suscetíveis de gerar suas formas. A última razão,
enfim, prende-se ao caráter autônomo e orgânico de todo sistema: prioridade do todo
sobre as partes, hierarquia dos níveis de análise, possibilidade de integração dos elementos
constitutivos no conjunto. Sob esse ponto de vista, a narratividade aparece como um
dinamismo integrador que transforma um conjunto variado de fatos e incidentes em uma
história completa, articulada e ordenada.
Por essas diversas razões, as relações entre formas da expressão e formas do conteúdo,
agora pensadas em termos de articulação e integração, podem ser desconectadas de toda
referência direta à tradição narrativa. Podemos lembrar a esse respeito a “palavra de
ordem” de R. Barthes, em seu período estruturalista: descronologizar e relogicizar! P.
Ricœur se questiona sobre a radicalidade e mesmo sobre a validade de tal procedimento:
não teria a narrativa um caráter irredutivelmente histórico? Tanto mais que a
descronologização tem um duplo alcance: de uma parte, consiste em desligar-se da
historicidade da função narrativa (a inteligência narrativa se inscreve no tempo humano e
no tempo social, é a tradição que fundamenta seu exercício). De outra parte, ela se desliga
do cunho diacrônico inerente a toda história contada, isto é, de sua dimensão temporal.
Ora, segundo P. Ricœur, um dos traços fundamentais da narrativa é justamente essa
discursivização da temporalidade: em razão disso, participaria mesmo da constituição da
experiência fenomenológica do tempo. “Uma pressuposição, escreve ele, domina todas as
demais, a saber, o desafio supremo, tanto da identidade estrutural da função narrativa
como da exigência de verdade de toda obra narrativa, é o caráter temporal da experiência
humana [...]. O tempo torna-se tempo humano na medida em que é articulado de maneira
narrativa; em compensação, a narrativa é significativa na medida em que define os traços
da experiência temporal.”152 Atenuando tal dimensão, a semiótica narrativa considera, ao
contrário, a temporalização como um investimento figurativo de superfície, ligado à
enunciação, e não como um dado profundo. As estruturas narrativas e lógico-semânticas
152
P. Ricœur, ibid., t I, p. 7
127
que a sustêm são, por sua vez, a-crônicas: são puras operações de transformação,
distantes de qualquer fenomenologia da experiência temporal.
Examinaremos sucintamente três etapas na gênese desta reflexão: a morfologia fundadora
de V. Propp; a lógica dos papéis desenvolvida no fim dos anos 1960 por C. Brémond; o
aprofundamento enfim da semiótica narrativa, cujos conceitos analíticos iremos em
seguida precisar e ilustrar.
153
[N. dos T.] Edição brasileira: C. Lévi-Strauss, “A estrutura e a forma. Reflexões sobre uma obra de
Vladimir Propp”, in Antropologia estrutural dois. Trad. Maria do Carmo Pandolfo, Rio de Janeiro, Tempo
Brasileiro, 1976, pp. 121-151.
128
dano (funções preparatórias), “dá ao conto todo o seu movimento”. Constitui o pivô da
intriga, desencadeando a busca. Temos assim uma cadeia de funções: carência – partida –
preparação – realização – reparação – retorno; depois, intervenção do falso herói – nova
partida – realização (combates, vitória, punição, etc.) – retorno – casamento do herói.
3. A ordem de sucessão das funções é constante. Elas se implicam umas às outras; algumas podem
ser reagrupadas por pares (proibição/violação; combate/vitória), exibindo uma estrutura
paradigmática; outras encadeiam-se em seqüências (traição – pedido de socorro – decisão
do herói – partida para a busca) formando blocos sintagmáticos concatenados, “pré-
moldados”. Cada conto tomado individualmente atualiza, entretanto, apenas um número
limitado de funções, sem que a ordem de sucessão seja modificada. A diferença formal
entre os contos resulta da seleção operada por cada um no estoque das funções
disponíveis. Propp supõe uma compatibilidade absoluta entre as funções; Lévi-Strauss
sugere, por sua vez, enfatizando as relações paradigmáticas, que uma tipologia ideal dos
contos deveria, ao contrário, estar fundada sobre “um sistema de incompatibilidades entre
as funções”154. Por exemplo, se considerarmos dois pares de funções que se encontram
raramente no interior do mesmo conto:
1. “combate com o vilão” – “vitória do herói”
2. “ atribuição de uma tarefa difícil” – “sucesso”,
podemos prever logicamente quatro classes diferentes de contos: os que realizam o par 1;
os que realizam o par 2; os que realizam a ambos; os que não realizam nem um nem outro.
Obtemos assim as condições de uma classificação estrutural.
4. Todas as funções conhecidas do conto definem um só tipo e se organizam segundo uma única
narrativa. “Encarados do ponto de vista da estrutura, todos os contos de fadas se reduzem
a um único tipo”155. Cada conto é então uma variante da protoforma do conto, uma
combinatória particular desse modelo.
A “formula” narrativa de um conto particular poderá ser assim apresentada:
α δ A B C I H K I W
que se lê , na ordem de sucessão: “Um rei, pai de três filhas” – “elas vão passear” - “elas
se demoram em um jardim onde são raptadas por um dragão e chamam por socorro” -
“três heróis se apresentam” - (I = “sua busca”) – “combate com o dragão - “vitória” -
“libertação das princesas” - (I = retorno) - “recompensa”.
As personagens se definem pela distribuição das funções que lhes são atribuídas e que
constituem sua “esfera de ação”. Existem, por conseqüência, em número limitado:
malfeitor, doador, auxiliar, personagem procurada, mandante, herói, falso herói formam
os sete protagonistas do conto. A partir de uma redução dessa lista, Greimas estabelecerá
o inventário dos actantes e dos papéis actanciais.
154
Artigo citado, p. 131.
155
Artigo citado, p. 125.
156
Cl. Brémond, Logique du récit, Paris, Seuil, col. “Poétique”, 1973. Ver principalmente o cap. 1, “Le
message narratif” (1964), pp. 11-47.
129
157
Ibid., p. 25
158
Ibid., p. 132
159
Ibid., p. 133.
160
Ibid., p. 134
130
Os pacientes são determinados seja pelas influências exercidas sobre eles, seja pelas ações
das quais são o objeto. As influências podem ser de ordem cognitiva, ao modo persuasivo
ou dissuasivo (informações, dissimulações, refutações, enganos), ou de ordem afetiva,
ocasionando satisfações ou insatisfações e projetando esperanças e temores. As ações
determinam dois tipos de pacientes, conforme modifiquem seu estado (melhoramento ou
degradação) ou, ao contrário, o mantenham (proteção ou frustração).
O agente, por seu lado, pode ser voluntário (intencional) ou involuntário (quando não
domina as conseqüências dos processos que desencadeia). Seus papéis são
complementares em relação aos do paciente, e se distribuem em ações e em influências.
As ações engendram os papéis do modificador e do conservador, do melhorador e do
degradador, do protetor e do frustrador. A ação é decomposta em três tempos que
correspondem geralmente, pelos seus modos de existência (virtual, atualizado, realizado),
aos três momentos da seqüência elementar e especificam tipos de agentes (eventual, em
ato, consumado segundo o sucesso ou o fracasso). Quanto às influências, passando pela
persuasão e pela dissuasão, levam a especificar o papel do “influenciador” como
informante, sedutor, dissimulador, falso conselheiro, intimidador, etc. Enfim, a
consideração do mérito ou do demérito faz do agente um retribuidor sob forma de
recompensa e de punição e do paciente, um beneficiário ou uma vítima.
Resulta dessa construção uma ampla classificação dos papéis, uma tabela das posições
possíveis para personagens eventuais em narrativas eventuais. A formalização, mais
abstrata que a de Propp, abre à análise um campo de aplicação mais vasto (incluindo, por
exemplo, a narração histórica), bem além do domínio exclusivo do conto maravilhoso
russo, limitação evidente do modelo proppiano. Por outro lado, a descronologização é
mais completa e mais radical que na morfologia de Propp: as propostas de C. Brémond
apresentam-se como uma análise paradigmática, sendo os possíveis narrativos posições
substituíveis umas pelas outras. Mas uma tal “lógica dos papéis” narrativos, assimilada à
intriga, bastaria para formalizar o conceito de narrativa?
Essas propostas não oferecem com efeito quase nenhuma abertura ao encadeamento dos
enunciados narrativos, isto é, à dimensão sintagmática que se encarrega do
desenvolvimento da narrativa. O modelo de C. Brémond não considera o desdobramento
discursivo dos papéis e, assim descontextualizada, sua tipologia define essencialmente a
moldura para uma semântica da ação: ela indica posições, mas faltam-lhe os percursos e as
transformações. Dado que o conhecimento dos papéis possíveis não fornece informação
sobre o movimento, sua simples nomenclatura não pode engendrar uma história. Existe aí
uma dificuldade com relação ao poder de integração do modelo. A partir do corpus
narrativo, a teoria de C. Brémond se instala, pois, no horizonte referencial da ação. A
seqüência elementar aparece assim mais como uma condição teórica da narratividade que
como um componente da construção narrativa.
Na verdade, se “eventualidade”, “passagem ao ato”, “finalização” descrevem bem os
modos de existência relativos do ato (virtualização, atualização, realização) sua aplicação
na narração exige a integração dos modelos culturais depositados na tradição narrativa.
Somente eles poderiam, no interior desse quadro tão aberto, determinar esquemas de
previsibilidade. Para passar de uma teoria da ação a uma teoria efetiva da narrativa, isto é,
como dizia Greimas, a uma teoria da ação «de papel», é necessária uma sintaxe que
determine uma ordem de encadeamento dirigida pelas configurações culturais que a
esquematizam e tornam a ação narrável.
Esse segundo nível de formulação se apóia sobre uma análise em termos proppianos,
isto é, em termos de funções que designam a morfologia narrativa. Chega-se então às
cinco seqüências seguintes:
1 – Situação inicial (funções preparatórias)
2 – Acontecimento perturbador (estabelecimento da falta)
3 – Agravamento
4 – Luta (sob a forma de diferentes possíveis narrativos)
5 – Situação final (desfecho)
Essa análise, a bem dizer, combina as propostas de Propp e de Brémond (ela põe
assim em evidência, na função “luta”, diferentes possíveis narrativos sucessivamente
atualizados). Há aí uma generalização incontestável: obtemos um modelo abstrato ao qual
se adapta a narrativa particular de Le Clézio. Rompendo com a linearidade da mera
sucessão temporal, a análise exibe, além disso, possibilidades de emparelhamentos
paradigmáticos (1 e 5), que dão conta do fechamento do texto narrativo. Mas esse
dispositivo apresenta-se, longe da realidade textual, como um esquema geral de ação,
específico pelo menos ao esquema de ação do tipo “conto”. As relações actanciais estão
ausentes de um molde narrativo baseado em modificações das situações,
independentemente dos sujeitos, dos objetos e dos valores em jogo.
Vista exclusivamente como esquema de ação, essa análise expõe dois problemas.
De uma parte, permanece muito próxima do nível figurativo da manifestação: situação,
luta, acontecimento figuram segmentos de ação. A estrutura narrativa permanece assim
133
Esse terceiro nível estabelece a estrutura geral dos fenômenos narrativos levando em
consideração as formas sintáxicas dos enunciados e somente elas, enraizando assim a
análise na realidade da linguagem, independentemente de toda pressuposição sobre a
realidade da ação. Obtemos então, para as cinco seqüências, as denominações elementares
seguintes:
1 – Estado 1
2 – Transformação 1
3 – Intensificação
4 – Transformação 2
5 – Estado 2
Como se vê, a temporalização desapareceu; resta apenas a armação lógica dos
enunciados. De ora em diante, o desenvolvimento sintagmático da narrativa revela uma
estrutura mais profunda, sobre a qual repousa, que é, por sua vez, de ordem
paradigmática. É nesse nível que se situaria a verdadeira arquitetura narrativa: o
paradigmático teria prioridade sobre o sintagmático. De fato, cada um dos enunciados
tem seu correspondente: ao estado 1 corresponde o estado 2, à transformação 1
corresponde a transformação 2, e a intensificação, aparentemente isolada, apresenta-se
como o ponto culminante da narrativa, seu clímax (como atestam na superfície as
diferentes marcas de intensidade, qualitativas – “até” – e quantitativas – “tão”, “todas”).
E se examinarmos mais de perto as coisas, constataremos que as denominações
propostas são precisamente motivadas pela estrutura dos enunciados por elas designados.
Assim o “estado 1” é constituído exclusivamente de predicados de estado: ter e ser, com
encaixe dos dois predicados positivos em “ser” nos dois predicados negativos em “ter”, o
que contribui para promover o fechamento dessa seqüência. Do mesmo modo, a
“transformação 1” baseia-se em predicados de /fazer/, a começar por “ele naufragou”.
Quanto à “intensificação”, ela se completa também por um enunciado de estado, mas
estado invertido, produto da transformação: “tudo lhes pertencia” . Poderíamos continuar
com as mesmas observações sobre a “transformação 2” (enunciados de fazer) e sobre o
“estado 2” (enunciados de estado: “É sobretudo ao norte da ilha que são mais
numerosos”). Assim, a estrutura narrativa está ancorada na estrutura dos enunciados, são
eles, e não os pressupostos sobre a ação, que engendram a narratividade.
Vemos assim emergir da narrativa de Le Clézio o núcleo de todo dispositivo
narrativo segundo a semiótica: existe narrativa desde que dois enunciados de estado (1 e
2) sejam regidos e transformados por um ou mais enunciados de fazer. A fórmula do
programa narrativo encontra-se inscrita nessa definição (cf. capítulo seguinte). É possível
então ligar essa formulação sintáxica fundada sobre a transformação (passagem de um
dado estado a seu estado contrário por mediação do fazer) à formulação mais profunda
da estrutura elementar. O quadrado semiótico que condensa a estrutura desse texto (cf.
cap. 5) assume a dimensão semântica dos valores em jogo na narrativa, e enuncia seus
134
J. -M. G. LE CLÉZIO
À busca do ouro
1982 : Alexis, o narrador, e sua irmã Laura (oito e nove anos) vivem felizes com seus
pais no refúgio do Recôncavo do Boucan, na costa oeste da ilha Maurício. Mas o pai,
doce sonhador, vai à falência quando um ciclone devasta a região. Mergulhada na
miséria, a família emigra para Forest Side onde, antes de morrer, o pai juntou certos
documentos relativos ao ouro do Corsário, ainda escondido, acredita ele, em um vale
da Enseada dos Ingleses, em Rodrigues, uma ilha vulcânica perdida no oceano Índico.
Seu objetivo: encontrar o fabuloso tesouro.
1910 : A bordo da escuna Zeta, Alexis parte para Rodrigues e empreende uma busca
que, ao correr dos dias, torna-se mais e mais quimérica. Se ele não naufraga no
desespero e na solidão, é graças a Ouma, a jovem “manaf” que lhe oferece em silêncio
seu corpo, seu coração e o sol diante do mar.
1915 : Respondendo ao apelo de Lord Kitchener, Alexis se engaja na armada inglesa e
parte para o front na França, na Ancre e na Somme.
1922 : Terminada a guerra, ele vai ao encontro de Laura em Forest Side, assiste à
morte de Mam. Retirando-se em Mananava, com Ouma, ele sonha com a felicidade,
mas Ouma se esquiva e desaparece. Alexis levou muito tempo para compreender que
sua louca busca pelo ouro do Corsário não poderia se resolver senão no fundo de si
mesmo, na sua paixão de viver. O ouro verdadeiro são o mar e as estrelas. O ouro é o
amor. O ouro é sua alma. Esse ouro só se deixa enfim apreender após a redação de um
duro “diário de bordo” em que a paz da beleza sobrepujará a amargura da experiência.
SÍNTESE
DA ANÁLISE DA NARRATIVA À NARRATIVIDADE
A reflexão sobre as formas organizadoras da narrativa é um fenômeno marcante das pesquisas em
ciências humanas desde os anos 1960. Seu primeiro passo levou a desvincular a narrativa de sua dimensão
135
temporal, para reconhecer nela uma estrutura formal a-crônica (posição criticada especialmente pelo
filósofo P. Ricœur).
V. Propp foi o primeiro a apresentar uma análise morfológica de um corpus de contos maravilhosos russos,
depreendendo deles o conceito central de função, que rege a regularidade da narração, e relegando a segundo
plano a noção de personagem. O conjunto das propostas desenvolvidas pelos teóricos, de C. Lévi-Strauss a
A. J. Greimas, passando por R. Barthes, C. Brémond, U. Eco, T. Todorov e muitos outros, está fundado, de
início, sobre a análise crítica do modelo de Propp.
Especialista em etnoliteratura, C. Brémond reverte o primado proppiano da função para conceder a
preeminência à noção de papel, por meio da qual se definem a personagem e as relações entre personagens.
A vasta tipologia das pessoas narrativas que ele elabora, projetando a lógica da intriga sobre a dos papéis,
amplia o campo de aplicação da análise e oferece as condições para uma teoria referencial da ação, mas não
permite dar conta do desenvolvimento da narrativa em si mesma.
Retomando por sua vez o conceito de função, A. J. Greimas depura a formulação e a reduz a um enunciado
sintáxico: uma relação entre actantes regida por predicados. Esforça-se assim por restituir a dimensão
sintagmática própria à dinâmica narrativa, e sobretudo por encerrar a análise dos fenômenos narrativos na
realidade linguageira do discurso, independentemente de seu horizonte referencial (a ação) e de suas
manifestações figurativas. Ele cria, desse modo, as condições para uma teoria narrativa suscetível de
ultrapassar o mero universo das narrativas e de abranger o conjunto das formas de discurso, formulando a
hipótese de que estas são todas igualmente sustentadas por uma arquitetura actancial.
CAPÍTULO 9
Elementos de narratividade
1. O modelo actancial
1.1 O actante
161
J. -C. Coquet, La Quête du sens. Le langage en question, op. cit., p. 149.
136
conjunto (), ou vice-versa. Os dois actantes-sujeitos (de fazer e de estado) podem ser
manifestados por dois atores distintos (pensemos no caso da “dádiva”, por exemplo), ou por
um só e mesmo ator (pensemos no caso do “roubo”).
O PN se apresenta como uma fórmula elementar que as estruturas das narrativas efetivadas
desenvolvem, complexificam e hierarquizam a seu bel prazer. Poderemos, assim, distinguir as
narrativas de aquisição de valores e as narrativas de perda. A tipologia dos programas narrativos
convida, além disso, a hierarquizar o programa de base, ou programa principal, e os programas de
uso, ou programas secundários: o cumprimento destes é necessário à realização do primeiro. A
análise narrativa propõe, assim, uma fórmula sintáxica genérica dos meios e dos fins, conferindo-lhe
alcance maior na análise dos discursos da ação, e reintroduzindo neles, dessa maneira, sua
orientação teleológica.
2. O esquema narrativo
1 2 3
139
Esse esquema pode ser lido nos dois sentidos: no sentido da sucessão, ele se apresenta
como um percurso do sujeito da busca. Intervém primeiro a qualificação que instaura o sujeito
enquanto tal, depois sua realização pela ação e, finalmente, o reconhecimento que garante o
sentido e o valor dos atos que ele praticou. Lido nesse sentido, o esquema exprime uma
orientação finalizada, uma mirada teleológica, e constitui assim, para Greimas, “um quadro
formal em que vem se inscrever o ‘sentido da vida’”162. Lido no sentido inverso, remontando
da prova glorificante à qualificação, ele exibe uma ordem de pressuposição às avessas, e
conseqüentemente uma intencionalidade reconhecível a posteriori. Essa dupla leitura permite
converter a ordem temporal da sucessão em ordem lógica da conseqüência. O caráter aleatório
da primeira é reinterpretado como um encadeamento causal em relação à segunda. Essa
causalidade é considerada como um dado de raciocínio lógico, embora proceda antes de uma
ritualização estereotipada. É nela que se firma, não obstante, a impressão de coerência
narrativa que renova o antigo entimema da retórica: Post hoc, ergo propter hoc, “depois disso,
portanto em razão disso”.
Uma distribuição das relações actanciais é agora reconhecível em cada etapa do esquema: o
contrato põe em relação o Destinador-manipulador e o sujeito; a competência põe em relação o
sujeito e o objeto; a performance põe em relação o sujeito e o anti-sujeito em torno do objeto-valor;
a sanção, enfim, restabelece o contato entre o sujeito e o Destinador, que desempenha agora um
papel de julgador.
162
A. J. GREIMAS e Joseph COURTÉS, Dicionário de Semiótica, São Paulo, Cultrix, s/d [1983], p. 298.
140
O contrato pode ser inserido na esfera mais geral da “manipulação”. Esse termo, sem
qualquer conotação pejorativa, designa mais fundamentalmente o campo da factividade: o fazer-
fazer, que pressupõe um fazer-crer, um fazer-querer ou dever, um fazer-saber e um fazer-poder.
Dessa maneira, o Destinador-manipulador pode ser tanto o que manda (como o rei Artur), quanto
o que promete, o que incentiva ou o que desafia, o que lisonjeia ou o que seduz... O Destinador não
é mais uma figura actancial a priori, realizada nos papéis fixos da tradição cultural (Deus, rei, pai,
etc.), ele é construído pelos enunciados modais (factivos) que assume e que o definem, sem por isso
fixá-lo nessa posição: todo e qualquer ator pode encontrar-se em posição modal de Destinador e,
inversamente, um soldado, um pai ou um chefe de Estado podem ver sua função de Destinador
fragilizada ou instabilizada em razão de uma simples perda modal (a perda de confiança, por
exemplo)... Dessa maneira, o contrato é visto como uma dupla manipulação entre dois sujeitos que
ajustam e negociam seu /fazer-crer/ em função dos valores em jogo.
A competência e a performance se inserem na esfera mais geral da “ação”. É o fazer,
pragmático ou cognitivo, que a caracteriza, assim como as condições requeridas para seu exercício.
Seu desafio é o “fazer-ser” (definição do ato), que consiste em estabelecer um novo estado de
coisas. Ele põe frente a frente o sujeito que age e o anti-sujeito que lhe opõe uma resistência, numa
confrontação da qual resulta a aquisição ou a perda dos valores.
A “sanção”, pondo em cena, e em jogo, um Destinador particular (julgador, avaliador),
também representa uma esfera semiótica relativamente autônoma. O Destinador da sanção é então
dotado, ou supostamente dotado, de um saber verdadeiro e do poder de fazê-lo valer. Assim como
certas configurações específicas fazem parte da manipulação, tais como a sedução, a provocação ou
o desafio, aqui também as figuras da sanção podem ser isoladas: os discursos de elogio ou de
censura, por exemplo, recobertos pelo gênero epidíctico da retórica clássica, pressupõem, para a
validade de seu exercício, a posição actancial de poder ou de legitimidade do sujeito que os enuncia.
Na falta de um sujeito “autorizado”, o discurso da sanção perde toda eficácia veridictória, como
acontece freqüentemente.
são constitutivos do próprio esquema. É por essa razão, a nosso ver, que é tão fácil comparar os
grandes gêneros retóricos tradicionais com as esferas semióticas assim isoladas, e integrá-los nelas:
vimos que o epidíctico fazia parte da sanção cognitiva; à sanção pertence também o gênero
judiciário, cuja função é estabelecer a verdade de ações realizadas no passado. Como escreve
Aristóteles, “a acusação ou a defesa incide sempre sobre fatos pretéritos” 163. Quanto ao gênero
deliberativo, que tem a propriedade de antecipar e projetar as realizações futuras, pertence
evidentemente à esfera da manipulação. A deliberação, que compreende a exortação e a dissuasão, é
um jogo contratual entre sujeitos manipuladores que exercitam o fazer-crer. Assim emoldurada pela
manipulação e pela sanção, a ação, em si mesma, fica como que incrustada no sentido.
Percebe-se, assim, que a teoria semiótica da narratividade, longe de se ater somente ao campo
da narrativa, apresenta-se como um modelo possível para uma teoria geral do discurso; e na
rivalidade que tem freqüentemente oposto os teóricos sobre a questão de considerar o narrativo ou
o argumentativo como a forma mais fundamental do discurso, os antagonistas poderiam
perfeitamente ter tanta razão uns como outros. Vemos, com efeito, que a narrativa pode estar, e
talvez esteja sempre, a serviço da persuasão, mas que, inversamente, a argumentação, no exercício
de seus papéis, de suas estratégias e de suas funções essenciais, segue os princípios mais elementares
da narratividade. Não há nada de espantoso em aceitarmos a idéia de que as estruturas e as relações
entre actantes, reconhecíveis no interior do discurso enunciado, são as mesmas que estruturam a
realidade enunciativa das interações. A narrativa é uma cenografia exemplar do discurso em ato.
163
Aristóteles, Arte retórica e arte poética, trad. Antônio Pinto de Carvalho, São Paulo, Difusão Européia do
Livro, 1964, p. 30.
142
espaço cada vez maior conquistado pela descrição, englobando a ação e até mesmo
sobrepondo-se a ela).
- A dimensão patêmica*, por fim: mais recente direção de pesquisa da semiótica, essa
dimensão diz respeito à modulação dos estados de alma. Está ligada à narratividade pela
sintaxe modal, mas dela se destaca profundamente, na medida em que busca descrever, não
mais a transformação dos estados de coisas, de unidades discretas em unidades discretas, isto
é, dentro de um universo de sentido descontínuo, mas a variação contínua e instável dos
próprios estados dos sujeitos. Essa terceira dimensão constitui o objeto da semiótica das
paixões.
Cabe propriamente ao sujeito o domínio da ação, quando ele está em busca do objeto e em
luta com o anti-sujeito. Mas o sujeito está evidentemente implicado na manipulação e na sanção: no
primeiro caso, ele é intimado a existir; no segundo, essa existência é confirmada ou invalidada.
Quanto ao objeto, seu percurso está disseminado ao longo dos três domínios, segundo três
modos de existência diferentes: ele está virtualizado no interior da manipulação, quando os valores
que representa o fazem ascender à existência; está atualizado na ação, quando é visado pelo sujeito
da busca; está realizado na sanção, quando se torna o critério segundo o qual a ação do sujeito é
avaliada. Esses diferentes modos de existência do objeto dependem, como vemos, das relações
particulares que o actante mantém com o valor nele investido.
São esses diferentes percursos que vamos examinar agora de maneira mais precisa, por meio
das análises textuais concretas, depois de apresentar a terceira e última definição do actante: não
mais sob a forma de um modelo actancial cristalizado, nem somente como estrutura posicional, mas
em termos de sintaxe modal.
143
Síntese
ELEMENTOS DE NARRATIVIDADE
A teoria das formas narrativas do discurso (ou narratividade) deve ser diferenciada da teoria da narrativa (ou
narratologia): os modelos que esta elaborou, deixando de lado, pouco a pouco, os corpora narrativos iniciais, permitem
construir uma sintaxe geral do discurso, aplicável à análise de textos não narrativos.
A peça-chave da gramática narrativa é o actante. Sua elaboração progressiva, no cruzamento das dramatis
personae de Propp com os actantes sintáxicos de Tesnière, permitiu o estabelecimento de um dispositivo actancial
simples, constituído por três actantes: o Destinador, o sujeito e o objeto. Ao percurso do sujeito se opõe, simétrica e
paralelamente, o do anti-sujeito, responsável pela estrutura polêmica (ou contratual) da narrativa. Posteriormente, o
actante será definido em termos de composição modal (Cf. cap. 10).
O programa narrativo constitui a operação sintáxica elementar da narratividade. Ele garante a transformação
de um enunciado de estado inicial (o sujeito está disjunto do objeto, por exemplo) em um enunciado de estado final (o
sujeito está conjunto com o objeto) pela mediação de um enunciado de fazer. A estrutura de um texto narrativo
apresenta uma arquitetura complexa de programas, que podem ser repetidos (de revés em revés para chegar ao êxito,
marcando assim a dificuldade da prova), intercalados (um programa pode ser suspenso ou desviado pela realização de
outros programas), hierarquizados (a realização de um programa “de base” pode exigir, para se cumprir, a realização de
programas intermediários, ditos “de uso”).
O crivo cultural da organização narrativa, depositado na memória coletiva pela tradição sob forma de
“primitivo”, contextualiza os programas num esquema canônico de alcance geral, que ordena seu percurso e orienta
suas finalidades: o esquema narrativo. Nele se introduz uma representação imaginária do “sentido da vida”. Ao longo de
reformulações sucessivas, esse esquema, inicialmente muito próximo do universo dos contos populares (sob forma de
três provas: qualificante, decisiva, glorificante), foi ampliado para quatro seqüências de alcance mais geral (contrato,
competência, performance, reconhecimento), ordenadas segundo uma dupla leitura: de sucessão (da esquerda para a
direita) e de pressuposição (da direita para a esquerda).
A última formulação desse modelo em três esferas semióticas (manipulação, ação, sanção) permite, além dos
universos narrativos, considerá-lo como um esquema da comunicação, apresentando o dispositivo dos papéis e das
interações essenciais entre os actantes do discurso. Nele se inserem, sem dificuldade, os grandes gêneros da tradição
retórica (deliberativo – no âmbito da manipulação –, judiciário e epidíctico – no âmbito da sanção): o fazer (a ação) está
assim interposto entre as formas de discurso que lhe dão sentido e valor.
Os processos narrativos se desdobram nas dimensões pragmática, cognitiva e patêmica do discurso, dando
lugar, segundo a perspectiva actancial adotada, a diferentes percursos narrativos.
144
CAPÍTULO 10
Percursos actanciais e sintaxe modal
Seguindo a ordem que normalmente adotamos até aqui, a primeira parte deste capítulo
será destinada a uma apresentação teórica; ela mostrará como se passou do dispositivo
actancial à sintaxe modal que o estrutura secretamente, o que nos levará a precisar o estatuto
do conceito de modalidade na semiótica. E a segunda parte, apoiando-se em estudos de textos,
desenvolverá sucessivamente três percursos actanciais “emparelhados”: o do sujeito e do
objeto ( a partir de um texto de C. Cros); o do objeto e do valor ( a partir de um excerto do
Terceiro-Livro de F. Rabelais); o do Destinador e do sujeito (a partir de um excerto de A.
Sefrioui).
As primeiras definições dos actantes tal como acabamos de ver, inscritas num quadro
estrutural, limitavam-se a identificar e definir uma posição actancial pela relação que ela
mantinha com uma outra posição: é a definição interactancial. O Destinador era definido pela
relação com o Destinatário, no eixo da comunicação: o primeiro comunicando ao segundo os
valores, atribuindo-lhe uma missão, por exemplo. O sujeito era definido por sua relação com o
objeto e vice-versa: relação de conjunção e/ou de disjunção, que define o programa narrativo
elementar. Assim, não haveria sujeito sem objeto, nem objeto sem sujeito. Esse conjunto
actancial era por sua vez definido por oposição a um outro conjunto, que fundamentava a
estrutura polêmica da narrativa: o universo do antidestinador e do anti-sujeito.
Essa abordagem, eficiente em textos narrativos simples, passava a ter baixo
rendimento a partir do momento em que os textos a analisar tornavam-se um pouco mais
complexos: ela induzia, nem mais nem menos, a identificar um papel actancial com uma
personagem. E a análise, aparentemente eficaz, corria o risco de uma simplificação abusiva e
de uma excessiva rigidez. Com efeito, como se pode facilmente imaginar, um mesmo ator
pode, no decorrer de uma narrativa, inscrever-se em numerosos percursos, ser Destinador
neste, sujeito naquele, anti-sujeito em outro ou na perspectiva de um outro ator. Um mesmo
papel actancial pode modificar-se durante o percurso, ver-se ampliado ou amputado.
145
Inversamente, um único papel actancial pode ser ocupado por vários atores diferentes, ou por
um ator coletivo (é o caso desse “fofoqueiro povo parisiense”, que vemos em Rabelais).
A distinção entre actante e ator* pode agora ser precisada: o actante é uma pura figura
sintáxica, existe apenas nos programas que o colocam em jogo; o ator – que outros
denominam personagem – é uma figura mais complexa, porque é constituída ao mesmo
tempo de componentes semânticos (de ordem figurativa e temática: um cavaleiro, por
exemplo, que se denomina Percival, etc.) e de componentes sintáxicos: um ou vários papéis
actanciais. De fato, uma «personagem» numa narrativa, que será apenas nomeada, mas não
entrará em nenhum programa de ação, será um puro elemento descritivo. Privada do papel
actancial, ela não constituirá um ator da narrativa.
Como, então, dar conta com mais acuidade da diversidade e da flutuação desses
percursos actanciais, quer se trate do percurso do sujeito, do objeto ou daquele que é
aparentemente o mais estável de todos, o Destinador? É aqui que intervém a problemática das
modalidades*. Ela permite encarar o actante mais de perto, não mais somente na sua relação
com outros actantes, mas nas relações constituintes de seu estatuto, que são os componentes
modais. Nossa hipótese será, então, seguindo nesse aspecto J. -C. Coquet, que “uma vez que
as modalidades formam o suporte constante do discurso, uma dimensão modal caracteriza
cada divisão do universo da significação e o actante, peça-chave do teatro semiótico, é
definido pelo seu modo de junção modal”164. Em outras palavras, apenas seu “equipamento”
modal e as articulações dessas modalidades (querer, dever, saber, crer, poder, fazer e ser)
permitem descrever a cada instante o que define o actante, sua composição, sua posição, seu
papel e seu estatuto. Foi assim que se passou de uma definição interactancial do actante a uma
definição intra-actancial. Para esclarecer essa abordagem, é preciso fazer uma rápida passagem
pela concepção semiótica das modalidades.
2. A modalidade em semiótica
164
J. –C. Coquet, La Quête du sens, op. cit., p. 149.
146
A lingüística analisa os verbos modais (verbos que podem ser seguidos por um outro
verbo no infinitivo, como querer, dever, poder, etc.) e mais amplamente as expressões modais
de todo tipo, incluindo as formas verbais dos “modos”, que definem a atitude do sujeito
enunciador com relação a seu enunciado (modalidades apreciativas, por exemplo, ou
epistêmicas – certeza, eventualidade, incerteza, etc.). A semiótica, dedicando-se apenas aos
predicados modais que se manifestam na superfície do texto, situa a modalidade em um nível
mais geral e abstrato: ela fala em “valores modais”. Assim, o /saber/ ou o /poder fazer/ de
um sujeito podem ser expressos por predicados de “saber” e de “poder”, mas igualmente por
atores ou objetos figurativos, que vão dotar o sujeito da competência correspondente; as
“túnicas brancas” do texto de Sefrioui, que iremos examinar adiante, dotando o herói de um
/poder fazer/, participarão da constituição de sua competência modal. Essa acepção ampliada
da modalidade permite também compreender como um valor modal pode, ao lado dos valores
descritivos, ser instalado como um objeto nos propósitos do sujeito: ele pode querer poder,
por exemplo.
165
Cf. J. –L. Gardiès, Essai sur la logique des modalités, Paris, PUF, 1979, pp. 27 e 89.
147
cálculos nos valores de verdade (verdadeiro ou falso) para avaliar a validade das relações entre
proposições formuladas no absoluto (por exemplo, se p, então q), ao passo que a semiótica
fundamenta sua descrição na realidade contingente e cultural dos discursos. Ela se atém a
determinar não as relações entre proposições modais consideradas em sua “pureza” formal,
mas as relações efetivas entre os actantes envolvidos na cena discursiva. O jogo se baseia na
competência modal dos sujeitos e na existência modal dos objetos. É o aspecto principal da
distinção entre verdade e veridicção. O semioticista, escreve Greimas, “não fica à vontade com
as modalidades do verdadeiro e do falso, sobretudo quando estas se referem a uma realidade
que não a lingüística, já que a sua concepção de linguagem não lhe permite encará-la sem lhe
ter antes conferido um estatuto semiótico. Ele precisaria de uma lógica lingüística que tratasse,
por exemplo, da mentira e do segredo, da astúcia e da sinceridade no mesmo plano que a
verdade e a falsidade”.166 É essa homogeneização que o modelo da veridicção propõe articular,
reinscrevendo o sujeito, os valores e as estratégias do saber em uma mesma problemática.
166
A. J. Greimas, Du Sens, Paris, Seuil, 1970, p. 11. [N. dos T.] Nesse trecho, recorremos ao original.
148
confrontações modais: /querer fazer/ e /poder fazer/, mas /dever não fazer/, como a mulher
do Barba Azul, por exemplo.
Aceitemos, pois, definir sumariamente uma modalidade como um enunciado que modifica
outro enunciado. A lista das modalidades fundamentais é limitada: “dever”, ou “querer”, ou
“saber”, ou “poder”, que modificam (modalizam) os enunciados de “fazer” ou de “ser”, ou
então “fazer” que modaliza “fazer”(“fazer fazer”) e, em conseqüência, todas as outras
modalizações do fazer (fazer querer, crer, saber, etc.). Essas modalidades podem igualmente
combinar-se entre si (“querer saber”) ou modalizarem-se a si próprias (“querer querer”). Não
é difícil entender que elas também são suscetíveis de receber uma definição categorial com
ajuda do quadrado, desde que se aplique a dupla regra da asserção e da negação,
alternativamente, a cada um de seus enunciados constitutivos.
Pres
crito
Obri Proibi
gatório do
Dever Dever
167
fazerII, “Da interpretação”. Trad. Pinharanda Gomes, Lisboa,não
Aristóteles, Organon, fazer Editores, 1985.
Guimarães
É nesse texto célebre que se encontra a teoria aristotélica das proposições modais, à qual se referem as
lógicas modais, a lingüística e a semiótica das modalidades. Essa teoria assenta sobre o desdobramento
proposicional que, opondo-se à proposição simples, resulta em dois predicados: o modus e o dictum; o
primeiro enunciando um juízo sobre o segundo. Por exemplo, “é possível”(modus) “que isso seja”(dictum)
(Ver sobretudo páginas 154-174).
149
Não Não
proibido obrigatório
Permitido Não Facultati
Não dever prescrito vo
não fazer Não dever
fazer
Tal representação lógica pode permitir, entre outras aplicações, estruturar um campo
lexical tão rico e tão complexo quanto o das qualificações deônticas. Além da antonímia
(obrigatório opõe-se de duas maneiras diferentes ao facultativo e ao interdito) e da
parassinonímia (obrigatório, imperativo, etc.), ela mostra: (1) a composição modal subjacente a
esse campo lexical (permitindo assim resolver ambigüidades: o necessário, muitas vezes
comparado ao obrigatório, é da ordem do /dever ser/); (2) a “memória” semântica das
posições contraditórias (o facultativo pressupõe o obrigatório negando-o, e o permitido
pressupõe da mesma forma a existência do proibido); (3) o caráter gradual, e não categorial, de
certas qualificações (o “tolerado”, situado entre o permitido [ou autorizado] e o proibido,
manifesta em seu enunciado a presença iminente e atualizável da interdição: “estacionamento
tolerado sobre a calçada”).
Poderíamos examinar nas narrativas a produtividade das confrontações modais,
quando diferentes modalidades, compatíveis ou incompatíveis, encontram-se convocadas
simultaneamente para definir a competência de um sujeito. Quando o campo do /dever fazer/
de um sujeito, por exemplo, acha-se confrontado com o do /querer fazer/, o do /saber fazer/
e o do /poder fazer/. As aplicações são numerosas, tanto no domínio coletivo para a
compreensão dos valores culturais e sua eventual confrontação (entre as normas, as tolerâncias
e a realidade das práticas), quanto no domínio individual, para a análise dos atores da narrativa,
por exemplo. Figura irênica daquele que deve, que quer, que sabe e que pode, tudo ao mesmo
tempo. Mas figura dilacerante daquele que, submetido à proibição, deve não fazer, porém,
submetido ao desejo, quer fazer e, dotado de meios pelo Destinador, pode fazê-lo...Essa
organização paradigmática permite, portanto, definir a identidade modal dos actantes,
apreendidos e “imobilizados” em um determinado ponto de seu percurso.
168
J. -C. Coquet, Le Discours et son sujet, 1, Paris, Klincksieck, 1984, p. 69.
169
A. J. Greimas, Semiótica e Ciências sociais, trad. Álvaro Lorencini e Sandra Nitrini, São Paulo, Cultrix,
1981, p. 28.
151
3 O sujeito e o objeto
Comecemos então pela relação entre o sujeito e o objeto, núcleo de toda narratividade,
examinando um texto que a encena de maneira particularmente notável, em razão da sua
exclusividade.
Antigamente
Personagem
170
A. J. Greimas, Du Sens II, Paris, Seuil, 1983, p. 112.
152
O DECLAMADOR:..................................................................................... M.
Coquelin Cadet
Há muito tempo – mas muito tempo não é o suficiente para lhes dar
a idéia... Entretanto, como dizer melhor?
Há muito tempo, muito, muito tempo; mas muito, muito tempo
mesmo.
Então, certo dia... não, não havia dia, nem noite, então certa vez, mas
não havia... sim, certa vez, como querem que eu diga? Então ele pôs na
cabeça (não, não existia cabeça), na idéia... Sim, é isso mesmo, na idéia,
fazer alguma coisa
Ele queria beber. Mas beber o quê? Não havia vermute, nem
madeira, nem vinho branco, nem vinho tinto, nem cerveja Dréher, nem
cidra, nem água! É que vocês não imaginam que foi preciso inventar tudo
isso, que ainda não tinha sido feito, que o progresso caminhou. Oh! o
progresso! Não podendo beber, ele queria comer. Mas comer o quê? Não
havia sopa de azedinha, nem linguado ao molho de alcaparras, nem carne
assada, nem batatas, nem carne de vaca à moda da casa, nem pêras, nem
queijo Roquefort, nem indigestão, nem lugares para se estar sozinho... nós
vivemos no progresso! Acreditamos que tudo isso aí sempre existiu!
Então, não podendo nem beber nem comer, ele quis cantar
(alegremente), cantar. Cantar (triste), sim, mas cantar o quê? Não havia
canções, não havia romanças, meu coração, minha flor! Nada de coração, nada
de flor, nada de lalaiá: dá vontade de estourar! Nada de ária para transportar a
voz, nada de violino, nada de acordeão, nada de órgão, (gesto) nada de piano!
Vocês sabem, para fazer-se acompanhar pela filha de sua zeladora; nada de
zeladora! Oh! o progresso!
Sem cantar; impossível? Pois bem, vou dançar. Mas dançar onde?
Sobre o quê? Não há assoalho encerado, entendem, para cair. Não há bailes
com lustres, candelabros nas paredes derrubando cera em nossas costas,
copos, bebidas derramadas nos vestidos! Não há vestidos! Não há
dançarinas para usar os vestidos! Não há pais resmungões, nem mães
ranzinzas para nos impedir de dançar à vontade!
Então, nada de beber, nada de comer, nada de cantar, nada de
dançar. Que fazer? – Dormir! Pois bem, vou dormir. Dormir, mas não
havia noite, nem esses momentos que se recusam a passar (vocês sabem,
quando bocejamos (ele boceja), quando bocejamos, quando bocejamos
durante a noite).
153
Não havia noite, nem cama, nem cobertas, nem colcha de piquê,
nem bolsa de água quente, nem criado-mudo, nem... basta! Oh! O
progresso!
Então, ele quis amar! Disse a si mesmo: eu vou me apaixonar; vou
suspirar; é uma distração; serei até ciumento; baterei na minha... Minha o
quê? Bater em quê? Em quem? Ter ciúme do quê? de quem? apaixonado
por quem? suspirar por quem? Por uma morena? Não havia morenas. Por
uma loira? Não havia loiras, nem ruivas; não havia nem mesmo cabelos
nem tranças postiças, pois não havia mulheres!
Não haviam inventado as mulheres! Oh! O progresso!
Então morrer! Sim, disse ele a si mesmo (resignado): quero morrer.
Morrer como? Não havia canal Saint-Martin, nem cordas, nem revólveres,
nem doenças, nem poções, nem farmacêuticos, nem médicos!
Então, ele não quis nada! (Lastimoso) Que situação mais infeliz! ...
(Mudando de idéia) Mas não, não chore! Não havia situação, nem infelicidade.
Felicidade, desgraça, tudo isso é moderno!
O fim da história? Mas não havia fim. Não haviam inventado o fim.
Finalizar é uma invenção, um progresso! Oh! o progresso! o progresso!
Ele sai, perplexo.
Narrativa singular, com efeito, porque se situa a montante da narrativa. Recai sobre os
pré-requisitos de toda narração, sobre o que lhe determina qualquer possibilidade de
desenvolvimento. Como em uma espécie de tartamudez narrativa, enuncia numa repetição
circular as condições de existência elementares da narrativa: manifesta então indiretamente,
por assim dizer pela negativa, suas exigências mais fundamentais e precisamente sua sintaxe
básica, a da transformação. A busca repetitiva do sujeito é exatamente, no caso, a de uma
transformação, de uma mudança de estado; em outras palavras, de um programa narrativo.
Nenhum esquema narrativo no horizonte, nem mesmo qualquer percurso, apenas o
imperativo do PN.
3.1 O progresso.
154
A palavra “progresso” forma, por sua repetição no final de cada seqüência, o termo
recorrente (leitmotiv) do texto (nove ocorrências). Sua definição no dicionário, “Mudança de
estado que consiste em uma passagem a um grau superior” (Petit Robert, sentido corrente), não
deixa de atrair nossa atenção: é a própria definição do programa narrativo de conjunção. Em
outros termos, o “progresso” é a manifestação lexical da estrutura narrativa elementar: estado
1 – fazer transformador – estado 2, cujo princípio se firma, lembremos, no jogo alternado da
relação entre actantes sujeito e objeto, assim definidos reciprocamente pela junção, ou seja,
dis-junções e con-junções. Essa observação lexical confirma, portanto, o caráter particular da
narrativa, intuitivamente percebido: antes de ser a busca de objetos de valor, ela nos apresenta
a busca do que condiciona toda busca, suas metas e suas aquisições, a busca do programa
narrativo.
3.2 O sujeito
O texto põe em cena de imediato um actante, definido como uma pura posição sintáxica:
“ele”, sujeito de uma seqüência de verbos. Mas trata-se de um actante abstrato, sem a menor
presença figurativa: não se sabe nada dele, ele não tem rosto, nem vestimenta. Sua
modalização elementar é da ordem do /querer/; ora, esse querer é anterior a sua própria
lexicalização, apresenta-se como uma abstração da intencionalidade (“ele pôs na idéia”), que
basta entretanto para lhe conferir um estatuto de sujeito. É um sujeito solitário: nenhum outro
actante ocupa com ele, no mesmo nível de presença, a cena narrativa. Não há Destinador,
nem anti-sujeito para fixar uma ordem de valores: o universo situa-se aquém do esquema
narrativo e da polêmica, isto é, fora de todo enquadramento axiológico.
Podemos seguir, na superfície, as variações dos predicados do querer fazer: desde “pôr
na idéia” e “ele queria”, “ele quis”, ao simples “vou”, observamos um percurso que vai da
abstração do querer à expressão do desejo e finalmente à pura orientação intencional. Essa
oscilação manifesta no fio do texto uma redução, um empobrecimento desse equipamento
modal elementar. Qualquer que seja, o querer implica um sujeito disjunto de um objeto (um
sujeito de falta), que visa a conjunção (a liquidação da falta). O texto apresenta-se então como
uma visada repetitiva de objetos, assim valorizados unicamente pelo querer do sujeito.
3.3 O objeto
Cf. A. J. Greimas, “A sopa ao ‘pistou’ ou a construção de um objeto de valor”. Trad. Edith Lopes
171
Modesto. Significação – Revista Brasileira de Semiótica, 11-12, setembro de 1996, pp. 7-21.
156
bebidas, dos vinhos curtidos aos vinhos crus, desses às bebidas fermentadas, dessas últimas,
enfim, à água.
“Ele queria comer. Mas comer o quê?” A seqüência lexical dos pratos apresenta no exemplo, à
guisa de cardápio, o percurso sintagmático de uma refeição burguesa do século XIX, da sopa à
sobremesa, ou, mais precisamente, da ingestão à (in)digestão. A mera segmentação dos pratos
forma, portanto, uma micronarrativa cultural. Acontece o mesmo nas cenas que se seguem:
cantar, dançar, amar, etc. Cada uma delas oferece à leitura uma micronarrativa estereotipada,
fortemente ancorada em um contexto sociocultural, animado pelas figuras cristalizadas dos
atores-tipo (o pai, a mãe, a zeladora, etc.) e dos praxemas-tipo (os “momentos que não querem
passar”, por exemplo). Essa estereotipia narrativa é sustentada e confirmada pela afirmação do
saber partilhado: “vocês sabem”.
Mas um traço caracteriza o conjunto dessas micronarrativas, sobrepondo-se ao estado
ante- ou pós- narrativo do texto e animando-o por sua dinâmica própria, os contrastes que
elas (as micronarrativas) impõem e suas manifestações figurativas. Esse traço é a negatividade:
todas essas micro-histórias que não existiam têm em comum o fato de serem orientadas para o
fracasso: fracasso do prazer de beber uma bebida refinada, fracasso do festim que termina pela
indigestão, fracasso do canto, fracassos repetidos da dança, etc. As narrativas que resistem à
estrutura antinarrativa do texto são, portanto, negadoras de seu próprio fazer. Assistimos,
então, confrontando o primeiro nível do discurso “narrativo” ao das narrativas intercaladas, a
uma colocação em abismo da negatividade. Voltados dessa forma para sua negação, os
motivos narrativos, assim como o discurso que os enquadra, acarretam consigo a denegação
do sujeito.
Por mais elementar que seja, quase uma pura forma actancial, nem por isso o sujeito é estável
ou imutável do começo ao fim. Seu estatuto modifica-se no decorrer do texto, sendo
apreendido num percurso que se poderia formular da seguinte maneira: uma redução
progressiva de sua “superfície de ser”. Sob um ponto de vista teórico, o actante sujeito é
primeiramente produzido pelas relações juntivas nas quais se insere e que lhe dão sentido,
valor e existência. São as relações com os objetos, por meio dos programas narrativos. Mas o
sujeito é também produto de sua história: seus programas realizados são sua memória
narrativa, formam a base de sua competência posterior, convertendo-se assim, de uma forma
ou de outra, em programas de uso para outros projetos. Dessa dupla definição do sujeito, que
condiciona sua existência narrativa, o sujeito do nosso texto não preenche nenhuma condição.
Está privado de toda junção com os objetos e não conserva qualquer memória, mesmo
negativa ou parcial, de seus programas ou tentativas de programas anteriores. Certamente
poderíamos considerar que o encadeamento das seqüências proporciona uma aparência de
ordem: do mais indispensável ao mais fútil, do mais individual ao mais participativo, do mais
dinâmico ao mais estático; por fim, da vida à morte. Na realidade, a série é sobretudo
paratáxica, não há nenhum liame lógico, nenhuma hierarquia entre os programas sucessivos.
Privado de junção e privado de memória, o sujeito reduz assim progressivamente seu espaço
de significação e, portanto, seu espaço existencial.
157
4. O objeto e o valor
O célebre texto de Marcel Mauss, “Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão da troca nas
sociedades arcaicas", publicado em Sociologia e Antropologia,172 está em grande parte na origem
da problemática semiótica dos objetos de valor. A tese central desse estudo é que a dádiva,
como modo de circulação dos objetos no interior da comunidade social, inscreve-se em um
sistema rigoroso de reciprocidade. Quer se trate de ferramentas, de produtos alimentícios, de
fórmulas mágicas, de ornamentos, de danças ou de mitos, os valores associados aos produtos
técnicos, econômicos, rituais, estéticos da atividade social, têm, subjacente à sua diversidade,
esse caráter comum: são transferíveis. Nesse ponto, tais valores são comparáveis, e mesmo
substituíveis uns aos outros, entrando em um sistema generalizado de trocas recíprocas. Por
isso, a dádiva convoca, de uma forma ou de outra, à proximidade ou à distância, uma contra-
dádiva. O equilíbrio das trocas assenta assim num pequeno número de operações elementares,
diversamente realizadas segundo o tipo de sociedade considerado. E o equilíbrio é rompido a
partir do momento em que a reciprocidade não possa se realizar. É o caso do potlatch, nas
sociedades indígenas do noroeste da América, em que o ritual da dádiva consiste em oferecer
ao destinatário rival muito mais do que ele poderia jamais retribuir, garantindo-se assim o
poder sobre ele. É a guerra pelo presente. Para além do episódico, esse sistema de obrigação
de dar e de receber, equiparado a um sistema de equivalências e de transferências, apresenta-
se, de fato, como um modelo estrutural avant la lettre (o “Ensaio sobre a dádiva” foi publicado
em 1923). Vem daí o imenso interesse que suscitou entre os antropólogos como Lévi-Strauss,
ou entre os semioticistas como Greimas, que nele se inspirou para elaborar uma sintaxe da
172
M. Mauss, Sociologia e Antropologia. Trad. de Mauro W. B. de Almeida, São Paulo, EPU, 1974, vol. 2,
p.37-67.
158
circulação dos valores, principalmente em “Un problème de sémiotique narrative: les objets de
valeur”173.
Focalizaremos essa problemática a partir de uma narrativa de Rabelais, extraída do
Terceiro-Livro. Esse texto nos permitirá ressaltar de maneira particularmente nítida a pertinência
da distinção entre o conceito actancial de objeto e o de valor, ao qual parece
indissociavelmente ligado. Mas, antes disso, é preciso determinar a abordagem específica da
noção de valor* em semiótica.
A semiótica associa estreitamente e concilia essas três acepções: em primeiro lugar, porque se
prende exclusivamente às formações do sentido no interior da linguagem e dos discursos
173
A. J. Greimas, Du sens II, op. cit., p. 19-48.
174
In L. Hjelmslev, Ensaios lingüísticos. Trad. Antônio de Pádua Danesi. São Paulo, Perspectiva, 1991, p.
111-127.
159
(acepção 1); em segundo lugar, porque postula que no centro da organização discursiva
encontram-se as estruturas narrativas e a regulamentação da comunicação dos valores entre os
sujeitos (acepção 2); e, enfim, porque considera que os discursos são os espaços de
acolhimento das axiologias de toda natureza, que formam suas estruturas profundas (acepção
3).
A clássica confusão entre as noções dá a entender que o valor identifica-se com o objeto
desejado. A simples existência do desejo implica o valor do objeto visado, e este se confunde
com aquele. Assim, o sintagma “objeto de valor” forma um único conceito, freqüentemente
denominado, de resto, objeto-valor . Ora, é útil distinguir bem as duas noções para perceber o
que fundamenta a dinâmica narrativa: o que nela se negocia e se disputa são valores, mais do
que objetos .
175
A. J. Greimas, Du sens II, op. cit., p. 21-2.
176
J. -M. Floch, Sémiotique, marketing et communication. Sous les signes, les stratégies, op. cit., p. 184-208.
160
Em seu estudo sobre os objetos de valor anteriormente citado (cf. acima, {p. 207}), Greimas
propôs definir uma tipologia dos grandes modos de comunicação dos valores entre os
sujeitos, por meio da sintaxe narrativa, sob a forma de programas narrativos característicos.
Essa tipologia formal estabeleceu-se anteriormente aos contextos conflituosos ou contratuais
em que se inserem os programas. Ela não leva em conta absolutamente os estados passionais
do sujeito (frustração, entusiasmo, generosidade, desprendimento, etc.) que se ligam a este ou
àquele modo de circulação e sensibilizam, em cada caso, a relação juntiva em si mesma.
Apresenta somente o arcabouço sintáxico da comunicação dos objetos e propõe, dessa forma,
um quadro dos regimes de sua circulação. As formas dessa comunicação diferenciam-se
conforme se refiram a um só objeto ou a dois objetos, associando relações de conjunção e
disjunção ou, no caso particular da comunicação participativa, a atribuição sem disjunção.
A comunicação de um objeto define-se por uma transformação que pode ser
conjuntiva ou disjuntiva. No primeiro caso, conduz à realização do valor sob forma de
aquisição: essa aquisição é dita reflexiva quando o sujeito do fazer e o sujeito de estado, termo
de chegada da operação (o beneficiário), constituem um único e mesmo ator, falando-se então
em apropriação do objeto; essa aquisição denomina-se transitiva quando o sujeito do fazer,
doador, e o sujeito de estado beneficiário formam dois atores distintos; falam-se então em
uma relação de atribuição. No caso de uma transformação disjuntiva, a comunicação conduz,
inversamente, a uma virtualização do valor sob a forma de privação para o sujeito que o
possuía: essa privação também poderá ser reflexiva (sujeito do fazer = sujeito de estado)
tratando-se então de uma renúncia, ou transitiva (sujeito do fazer sujeito de estado) quando se
trata de uma despossessão. Essas formas elementares da circulação do objeto valorizado podem
naturalmente ser manifestadas no discurso por meio de configurações variadas, segundo a
natureza do objeto, o estatuto dos sujeitos presentes e o enquadramento axiológico da
narrativa, que pode ritualizar esta ou aquela forma.
Após algumas manobras protelatórias, tentativas vãs de respeitar seu contrato, Fortunato vê-se
diante de um belo relógio de ouro, cintilando ao sol, que receberá em troca da revelação do
esconderijo. Fazendo então uma avaliação comparativa do valor do esconderijo, o menino
cede a essa nova proposição de contrato, e entrega o bandido à polícia. Voltando um pouco
mais tarde para casa e descobrindo a traição de seu filho, o pai o arrasta até o matagal. Ouve-
se um tiro: ele fez “justiça”.
O que está em jogo na circulação polêmica ou contratual dos objetos são, portanto,
menos os objetos em si que os valores com os quais os investem os atores envolvidos. Esses
objetos são nada mais que um espaço de fixação variável e instável, relacionado à perspectiva
de cada um deles. Assim a “fumaça” da narrativa de Rabelais adquire, na perspectiva do
churrasqueiro, um estatuto de objeto (vendável, comprável, negociável, etc.) a partir do
momento em que é investido de valor, enquanto que não lhe cabe esse estatuto na perspectiva
do carregador. Toda a argumentação deste último consiste em mostrar, ao contrário, que a
fumaça não corresponde a nenhum critério de definição do valor capaz de investir e construir
objetos: numerosas expressões cristalizadas o atestam (“são fumaças”, “tudo se esvaiu em
fumaça”, “vender ar”); para a moral social comum, definida pelo uso, a fumaça é, por
excelência, um não-objeto porque é um não-valor.
Ora, o que transforma a fumaça em objeto e lhe confere esse estatuto actancial e narrativo no
texto de Rabelais é precisamente o fato de o valor se encontrar contraditoriamente investido
177
Antiga moeda de prata.
178
Membros do famoso tribunal sediado na colina do areópago, em Atenas.
163
4.2.1 O conflito
Assim, dois pontos de vista inconciliáveis confrontam-se, porque eles remetem a duas lógicas
contraditórias, individual e cultural no caso do churrasqueiro, natural e coletiva no caso do
carregador.
4.2.2 A sanção
Num segundo momento, Joan, o louco, tendo assim estabilizado o valor dos valores
em jogo na disputa, pode estabelecer as condições da partilha fiduciária. Ele faz ouvir o som
da moeda contra o balcão. Confrontando os valores, daí em diante isolados, procede agora
por analogia para estabelecer sua equivalência:
A : B : C : D
:
f a so p
umaç ssado noridade rata
a
Ele estabelece um plano de pertinência isotópica entre dois objetos (o assado/a prata) a partir
de dois valores que lhes são associados: o cheiro emanado da fumaça, a sonoridade emanada
da prata (cf. a expressão “pagar de maneira soante e pesante”). Duas emanações do objeto que
entram em suas valências possíveis e fundamentam seu valor. A sonoridade é para a prata
aquilo que o cheiro da fumaça é para o assado: este é portanto retribuído por aquela. Pode-se
compreender que os “doutores supracitados” tenham ficado deslumbrados com a força
persuasiva desse belo exemplo de raciocínio figurativo e analógico, oposto aos raciocínios
lógicos dos dois protagonistas!
A história não diz se o churrasqueiro ficou frustrado, decepcionado ou satisfeito – isso resulta
das paixões do sujeito, da afecção possível de seus estados de alma – nem se o louco devolveu
a moeda ao carregador ou se ficou com ela em troca de seu julgamento... Mas, para o que nos
interessa no caso, vê-se claramente como a análise dessa breve narrativa reúne as diferentes
acepções da noção de valor de onde partimos.
A acepção axiológica, enfim, relaciona-se nesse caso ao domínio jurídico. Ela associa a justeza
do raciocínio de Joan, o louco, que soube destacar o lugar preciso das valências, ao sentimento
de justiça sob o ponto de vista das regulamentações sociais. O povo parisiense está lá para
testemunhar essa justeza e essa justiça.
5. O Destinador e o sujeito
165
Geralmente a posição do Destinador nas narrativas etnoliterárias (mitos, contos, rituais, etc.) é
a tal ponto caracterizada pela estabilidade, que não se imagina que ele possa escapar às
obrigações programadas de seu papel. Emoldurando o relato, situa-se nos dois extremos da
cadeia narrativa: é ele que atribui uma missão ao herói no momento do contrato, é ele que
reconhece e avalia a ação concluída no momento da sanção. Papel cristalizado e permanente
no universo do conto, o Destinador é o grande regulador que encarna o pano de fundo
axiológico, definindo o desejável, o temível e o odiável logo de início, e avaliando ao final do
percurso a conformidade das ações realizadas. É Deus, é o Rei e todas as instâncias delegadas
da autoridade, que formam tantos papéis típicos e estereotipados do Destinador (o pai, o
policial, o professor, etc.).
Na realidade, isto é, na realidade dos textos (tanto literários, como nos discursos
sociais e políticos), as coisas são muito mais complexas e muito mais ricas do que dá a
entender uma simples abordagem apoiada em contos maravilhosos. Como todos os outros
actantes, o Destinador, no discurso, é antes de tudo uma posição actancial, inscrita em um
percurso, portanto modulável, instável, sujeita a transformações e também exposta ao
reconhecimento de seu estatuto pelos sujeitos. Definido em primeiro lugar por sua
composição modal, de ordem factitiva (do fazer crer ao fazer fazer), o Destinador tem como
condição ser ele próprio reconhecido: seu poder pressupõe o reconhecimento, a aceitação
mantida e constantemente reativada do seu estatuto por parte do sujeito. Donde as numerosas
figuras do Destinador inquieto (cf. por exemplo o rei Artur). Encontramos um exemplo
particularmente notável de meditação sobre o Destinador na obra de La Boétie, A Servidão
voluntária. Contra um, publicada após sua morte por seu amigo Montaigne. La Boétie interroga-
se sobre o mistério político que faz com que todos aceitem obedecer a um só, mesmo sendo
este tão fraco que bastaria, para que desmoronasse, que todos recusassem por um instante essa
obediência...
fazer
crer fazer
não saber,
dever querer, etc.
querer
não
não
saber fazer saber,
fazer não
etc.
saber, etc.
poder
A partida do pai
Apesar das precauções que tomou, colocando todo seu dinheiro em um lenço, o pai o perdeu. Ele foi
então trabalhar como ceifeiro nos arredores de Fez.
Minha mãe olhou à direita, depois à esquerda, como se buscasse reconhecer o lugar onde se encontrava,
e me fixou com olhos espantados.
nada, porque você é gente grande. Quando eu for um homem, usarei belas
túnicas brancas que serão lavadas todos os dias e terei quarenta gatos que
me obedecerão sempre.
Um sorriso iluminou o semblante de minha mãe.
A pertinência da distinção entre actante e ator está aqui manifesta: o texto presentifica
três atores (o pai, o filho, a mãe), mas a narrativa organiza-se em torno de um único actante,
de uma única função actancial, a do Destinador. A posição e o papel vão ser ocupados
sucessivamente por cada um dos três atores: como se faz com o bastão de uma corrida de
revezamento, o pai, depois o filho, depois a mãe vão passar um ao outro a “carga modal” do
Destinador.
168
valor comercial) e os valores de base (os “gatos” são por si mesmos seu próprio fim,
exprimem valores lúdicos e estéticos) que o sintagma associa. E mais ainda, desconhecimento
dos valores sexuais: a mãe é projetada como esposa. O narrador não domina o tabu do
incesto.
179
A. J. Greimas, Sobre o sentido: ensaios semióticos, Petrópolis, Vozes, 1975, p. 255-6.
171
SÍNTESE
A definição estrutural dos actantes é interactancial: definem-se uns em relação aos outros, no âmbito de relações
sintáxicas. Essa definição esclarece o estatuto do ator (ou a tradicional “personagem”) que se situa na junção da
sintaxe narrativa (é um actante, dotado de programas narrativos) e da semântica discursiva (possui um ou
diversos papéis temáticos geralmente humanos e socializados, e manifesta-se sob uma forma figurativa - cf. os
“retratos”) Construído, dessa forma, por critérios semânticos e sintáxicos, o conceito de ator evita a psicologia
dos temperamentos que se prende à noção fluida e subjetiva de “personagem”.
CAPÍTULO 11
Semiótica das paixões
1 A localização do espaço passional
A semiótica das paixões se origina diretamente das hipóteses teóricas e dos procedimentos
metodológicos da semiótica geral. Assim, o estudo das dimensões pragmática e cognitiva dos
discursos deixava na sombra, como um vazio a preencher, a dimensão dos sentimentos, das
emoções e das paixões que ocupam, no entanto, um lugar essencial nos discursos, sejam eles
literários ou não. A introdução dessa dimensão patêmica* se fez progressiva e prudentemente,
situação em que o engajamento da subjetividade nas paixões convida espontaneamente a análise a
acompanhar a psicologia e a sair assim de seu campo de pertinência. Ora, trata-se, na verdade, aqui
de construir uma semântica da dimensão passional nos discursos, isto é, considerar a paixão não
naquilo em que ela afeta o ser efetivo dos sujeitos “reais”, mas enquanto efeito de sentido inscrito e
codificado na linguagem. Esta contribui, por sua vez, pelas configurações culturais que inscreve no
discurso, para moldar nosso imaginário passional, valorizar esta ou aquela paixão, desvalorizar uma
outra, fazer da paixão o motor do trágico ou, ao contrário, estabelecer um dever, poderíamos quase
dizer uma virtude social.
Podemos distinguir, em linhas gerais, duas abordagens semióticas da
problemática das paixões, que sustentam um confronto: a primeira faz emergir a
dimensão passional, a partir da semiótica da ação, tomando de empréstimo seus
modelos e considerando-a fundamentalmente em sua dimensão sintáxica (no
sentido semionarrativo do termo). Essa abordagem é ilustrada principalmente na
obra de A. J. Greimas e J. Fontanille: Semiótica das paixões. Dos estados de coisas aos
estados de alma (1993)180. A segunda estabelece a dimensão passional a partir do
estatuto particular do sujeito da paixão, oponível ao sujeito do julgamento.
Centrada nas formas da identidade subjetiva, essa abordagem reativa a categoria
tópica paixão/razão cuja descrição ela renova, enraizando-a na atividade de
discurso. Ela é ilustrada por J.-C. Coquet, na sua obra La quête du sens. Le langage
en question (1997).
180
[N. dos T.] O original francês data de 1991.
174
181
La quête du sens. op. cit., p.14.
182
Ibid, p.8.
183
Ibid, p.250.
177
executa aquilo para o que foi programado”, aquele que “é assimilável a sua
função” (p.154), aquele que “só sabe sua lição” (pp.41 e 207). Mas ele caracteriza
igualmente, como vimos, a instância do sujeito passional, privado ele também do
exercício do julgamento assumido. Na primeira acepção, três critérios o definem:
a ausência de julgamento, a ausência de história, o número limitado dos
processos de que pode ser o agente. O lobo da fábula é, desse modo, analisado
como um não-sujeito que, submetido à programação mecânica de sua natureza
predadora, tenta em vão se ajustar a seu estatuto actancial. Tais critérios são
aplicáveis ao sujeito passional? O apaixonado é, no mesmo sentido, um não-
sujeito? O sujeito patêmico não pode destacar-se de sua própria inerência,
inserido, fundido nos imperativos sensíveis do próprio corpo, “parte opaca” de
seu ser no mundo. O corpo é a instância do não-sujeito (p.12). Essa análise é
confirmada pelas proposições sobre o devir, tempo contínuo da presença, cuja
experiência é remetida, pela mediação do corpo, à mesma instância do não-
sujeito. Portanto, a ambigüidade aparece claramente; assim, o comentário de uma
citação de Sarrasine (“‘Ser amado por ela ou morrer!’ tal foi a paralisação que
Sarrasine se impôs”) indica que Balzac “apresenta o jovem escultor como um
sujeito apaixonado, mas um sujeito”, antes de indicar, no enunciado que segue, a
perda do julgamento e sua “transformação brutal em não-sujeito” (p.248). Esse
paradoxo das duas variedades de não-sujeito, funcional e passional, aparece
vivamente na análise da paixão, porque aí é “o corpo, a instância não-sujeito, que
representa melhor o bastião da autonomia, portanto, da liberdade” (p. 12, grifo
nosso), no momento em que o não-sujeito funcional é prisioneiro de sua
programação. Nas “supremas delícias do não-sujeito (p. 29) se reuniriam, então,
Teresa d’Ávila, cujos textos místicos são emblemáticos do discurso apaixonado,
e o lobo da fábula? Percebemos claramente a força da ligação – a própria
inerência, a corporeidade e a implantação no mundo sensível – mas como fazer a
separação entre as duas formas de não-sujeito?
De qualquer modo, no segundo plano dessa análise que coloca o
passional – ou o emocional – como alicerce permanente e condição inevitável do
discurso dominado, desenha-se uma dicotomia fundamental entre paixão e
julgamento, entre paixão e razão. A assunção do discurso que se estabelece na
plenitude do julgamento se depreende das condições passionais pregnantes do
não-sujeito, de sua euforia e de seu sofrimento.
As duas abordagens semióticas da paixão são, desse modo, muito
distintas. Elas nos parecem, na verdade, mais complementares do que
antagônicas, apoiando-se ambas em dois grandes topoi clássicos: ação/paixão,
razão/paixão. Desenvolveremos, entretanto, aqui o procedimento que funda a
análise das paixões sobre sua objetivação na linguagem, a partir dos modelos
(actanciais, modais e aspectuais) que permitiram a análise da ação. O horizonte
desse procedimento, com efeito, não é o da exclusiva subjetividade negociando
sua ancoragem no real e sua desancoragem pelo discurso assumido. Esse
178
184
Remetemos, para essas análises, à obra de A. J. Greimas e J. Fontanille – Semiótica das paixões. Dos
estados de coisas aos estados de alma, op. cit.
179
2.2.2 Tipologia
5
A. J. Greimas, “De la modalisation de l’être”, Du sens II, op. cit. p. 102.
181
ser/ (possível), o /não poder ser/ (impossível), o /poder não ser/ (discutível), o
/não poder não ser/ (indiscutível).
Os fenômenos passionais se traduzem no discurso por uma disposição
complexa de modalidades, muito freqüentemente contraditórias e incompatíveis,
criando um verdadeiro “tumulto modal” do qual, apenas as tipologias,
naturalmente, não dão conta. Para analisar os efeitos de sentido passionais tal
como se manifestam na língua e nos discursos, não podemos, portanto, nos ater
unicamente à modalização dos estados. Com efeito, apenas desse ponto de vista,
nada permitiria perceber o que distingue o “econômico” e o “avaro”: ambos se
definem pelo /querer/ e /dever estar/ conjuntos aos objetos de valor e à
vontade de não estar disjuntos. Devemos tomar o que aparece como um
excesso, uma excrescência da estrutura modal: ao mesmo tempo a
“sensibilização” dos dispositivos modais e sua “moralização”, duas
configurações que enquadram os dispositivos passionais.
cultura (a avareza é uma paixão cômica no século XVII em Molière, uma paixão
trágica no século XIX em Balzac). As taxionomias que modelam as
configurações passionais procedem do uso.
Essa inserção do passional na práxis enunciativa das comunidades lingüísticas e culturais
leva, de um lado, a relativizar o caráter eminentemente subjetivo e individual da paixão
(que podemos igualmente interpretar como uma conotação cultural), e, de outro lado, a
ressaltar o caráter fundamentalmente intersubjetivo das paixões. As que podemos
considerar como paixões de objetos (a avareza, por exemplo) são também submetidas às
regulações intersubjetivas que as identificam e as localizam, sensibilizando-as e
moralizando-as . Não há paixão solitária. As paixões, assim identificadas e compreendidas,
dão lugar a tipos passionais que podem ser interiorizados, favorecendo as regulações por
antecipação da comunicação entre interlocutores. Cada um modula e adapta seu discurso
em função da previsibilidade do esquema passional de seu parceiro. A paixão comanda,
nesse sentido, as estratégias intersubjetivas.
À disposição corresponde o estado inicial, ou seja, a disposição do sujeito para acolher tal
ou tal efeito de sentido passional. A disposição indica o estilo passional do sujeito, seu
“caráter”. À “emoção” corresponde a crise passional que prolonga e atualiza a
sensibilização; é o momento da patemização propriamente dita, que manifesta, por
exemplo, o discurso passional.
Ilustremos brevemente esse modelo por meio de uma “teoria” da
paixão, enunciada por uma educadora, anti-libertina, dos Desatinos do coração e do
espírito de Crébillon.
3. Um dispositivo passional
O amor em um coração virtuoso se mascara por muito tempo [...]: sua primeira
impressão se faz mesmo sem que nos apercebamos disso; não parece inicialmente senão um
gosto simples, e que podemos justificar facilmente. Esse gosto cresce, encontramos razões
184
para desculpar seu progresso. Quando, enfim, provamos sua desordem, ou não há mais tempo
de combatê-lo, ou não queremos mais isso. Nossa alma, já apegada a um erro tão doce,
angustia-se de se ver privada dele; longe de pensar em destruí-lo, nós mesmos nos
empenhamos em aumentá-lo. Parece que tememos que esse sentimento não aja bastante por si
mesmo. Procuramos incessantemente sustentar a desordem de nosso coração e nutri-lo das
quimeras de nossa imaginação. Se, às vezes, a razão quer nos iluminar, isso é somente um
lampejo que se apaga no mesmo instante, que não faz senão nos mostrar o precipício, e não
durou bastante para nos salvar. Envergonhando-nos de nossa fraqueza, ela nos tiraniza,
fortifica-se em nosso coração pelos próprios esforços que fazemos para arrancá-la, apaga nele
todas as paixões ou converte-se em seu princípio. Para nos aturdir ainda mais, temos a vaidade
de crer que não cederemos nunca, que o prazer de amar pode ser sempre inocente. Em vão,
temos o exemplo contra nós: ele não nos resguarda de nossa queda. Vamos de desatinos em
desatinos, sem prevê-los nem senti-los. Perecemos virtuosas ainda, sem estar presentes, por
assim dizer, no momento fatal de nossa derrota; e incorremos na culpa sem saber, não
somente como chegamos a isso, mas freqüentemente ainda antes de pensar que jamais
pudéssemos chegar a tanto.
Crébillon fils. Les égarements du cœur et de l’esprit (1736-1738).
Paris, Flammarion, 1985, p. 108.
Síntese
Campo de pesquisa desenvolvido pela semiótica ao longo dos anos 1980-1990, o estudo dos
sentimentos e das paixões é examinado fora de toda abordagem psicológica, no quadro geral da teoria do
discurso. Trata-se de analisar os efeitos de sentido e as configurações passionais tais como o uso as depositou na
língua, desde a lexicalização das paixões e suas taxionomias culturais até a apreensão dos percursos passionais do
sujeito e a enunciação passional da qual as obras literárias são o viveiro e talvez o modelo.
Podemos distinguir duas concepções semióticas da paixão: uma a define em relação à ação, outra por
oposição à razão.
186
Capítulo 12
A enunciação passional
1. O simulacro
Primeira carta
Considere, meu amor, a que ponto lhe faltou a previdência. Ah! infeliz! Você se enganou e também
me enganou com falsas esperanças. Uma paixão, para a qual você fez tantos projetos de prazer, causa-
lhe agora apenas um desespero mortal, só comparável à crueldade da ausência que o provoca. Como?
Essa ausência, para a qual minha dor, por mais engenhosa, não encontra um nome assaz funesto, há
de privar-me para sempre desses olhos em que eu via tanto amor, que me faziam experimentar
emoções plenas de alegria, que significavam tudo para mim e que, enfim, me bastavam? Ai de mim! os
meus olhos estão privados da única luz que os animava, restam-lhes apenas as lágrimas, e não os
tenho usado senão para chorar incessantemente desde que soube que o senhor se decidiu, enfim, por
um afastamento tão insuportável, que me fará morrer em pouco tempo. No entanto parece até que
sinto algum apego pelos males dos quais o senhor é a única causa: dediquei-lhe a minha vida desde o
momento em que o vi; e sinto ainda algum prazer em sacrificá-la pelo senhor. Mil vezes por dia envio-
lhe meus suspiros, eles o buscam por todos os lugares e só me trazem de volta, como recompensa
para tanta inquietude, uma advertência muito sincera da parte de meu infortúnio, que tem a crueldade
de não suportar que eu me iluda, e que me diz a todo momento: pare, pare, Mariane infeliz, de se
consumir em vão e de procurar um amante que você não verá jamais, que cruzou os mares para fugir
de você, que está na França em meio aos prazeres, que não pensa um só instante em suas dores, e que
a dispensa de todo esse êxtase, que ele nem mesmo reconhece. Mas não, não posso resignar-me a
julgá-lo injuriosamente, e tenho muito interesse em justificá-lo; não quero de maneira alguma imaginar
que o senhor me tenha esquecido.
185
[N. dos T.] Três traduções em língua portuguesa foram consultadas mas, como nenhuma delas fez
diferença entre o tratamento íntimo (tu) e o cerimonioso (vous), que é o ponto fundamental da análise em
questão, optamos por uma adaptação nossa, ressaltando essa distinção do texto.
188
186
F. Deloffre e J. Rougeot (ed.), Lettres portugaises, Valentins et autres œuvres de Guilleragues, Paris,
Garnier, 1962, pp. V-XXIII. Tese adotada por B. Bray e I. Landy-Houillon em sua edição das Lettres
portugaises, et autres romans par lettres, Paris, Flammarion, 1983.
187
Na sua introdução às Lettres de la Religieuse portugaise, Paris, Le Livre de poche, 1979.
188
“As mulheres não saberiam descrever, nem mesmo sentir o amor. [...] Eu apostaria tudo no mundo como
as Cartas portuguesas foram escritas por um homem”, J. -J. Rousseau, “Note” à Lettre à d’Alembert sur les
spectacles, 1758.
189
Stendhal evoca as Cartas Portuguesas no início de De l’Amour como o modelo canônico do “amor-
paixão”.
189
190
Lettres de la Religieuse portugaise, “Au lecteur”, Le Livre de poche, p.7.
191
saturar todos os lugares, explorar todos os percursos e, para eliminar os vazios que
mostram as faltas, exaurir as figuras emocionais no momento em que elas surgissem no
seu discurso. Poderíamos reconhecer, nessa tensão sempre reconduzida e sempre
“retomada”, um dos aspectos da estética barroca. Nosso objetivo entretanto não é
seguir nessa direção que põe em jogo a tipologia cultural dos discursos; é, ao contrário,
dar a conhecer e analisar o modo de produção discursiva do sujeito passional.
A distinção estabelecida entre objeto e valor permite descrever a sintaxe dos
simulacros: a existência modal do sujeito de estado (no caso, em estado de disjunção) é
suscetível de gerar percursos sintagmáticos, quebrando a estabilidade desse estado e
dinamizando-o. O valor, concebido como uma estrutura modal elementar, transforma
nessa ocasião o destinatário da carta em objeto passional. Desligado de seu suporte, e
perdendo assim seu estatuto de modalidade, esse valor torna-se inteiramente figura
actancial, em relação por sua vez com os valores que, enquanto sujeito, pode investir
nos objetos; os quais, por sua vez ..., e assim por diante. Todo valor patêmico é assim
capaz de surgir numa estrutura actancial e de proliferar, nos limites da inteligibilidade
definida pela recursividade sintáxica, para constituir uma configuração global, muito
complexa, que define o estatuto do sujeito da enunciação passional.
É então o valor patêmico (nesse caso, o efeito disfórico da ausência) que se
torna o ponto de partida desse “espaço de intimidade”, que o sujeito da paixão encaixa
nos meandros de seu discurso. Ao redor dele multiplicam-se e propagam-se arranjos de
simulacros que empurram, na mesma proporção, para sua periferia a figura inicial,
referencial, do sujeito epistolar ... chegando mesmo, no caso que analisamos, a ponto
de rejeitar a interlocução e aquele que era destinado a ser o seu ator. “Eu estou [...] com
ciúme de minha paixão”, “minha inclinação violenta me seduziu” (Quarta carta), e “ eu
comprovei que o senhor me era menos querido que minha paixão”, escreve a religiosa
(Quinta carta). Em outra parte, uma resposta de seu destinatário tendo rompido a
ordem passional que se tinha constituído, ela o injuria: “Detesto sua boa fé: acaso eu
lhe pedi que me enviasse sinceramente a verdade? Por que não me deixou a sós com
minha paixão? Bastava que o senhor não me escrevesse; eu não queria ser esclarecida”.
(Quinta carta).
A carta, justificada pela ausência e fundamentada nela, torna-se o campo de
exercício e de manifestação do sujeito passional (nisso, lembra o monólogo da tragédia
clássica em sua relação com o diálogo). Ela é sua condição de existência e de expressão
dinâmica: transforma o estado em movimento. A carta, como escreveu Kafka, é “uma
maneira de usufruir de uma intimidade imaginada, escrita, conquistada a duras penas
por todas as forças da alma”. Não surpreende pois que o discurso epistolar da religiosa
quebre a própria ordem do epistolar ou ao menos lhe eslareça uma função inédita.
Construída como uma coação, a relação intersubjetiva chega a retirar da carta sua
função elementar de troca: “eu teria prazer em desculpá-lo por não me escrever,
porque o senhor talvez tenha prazer em não se dignar escrever-me”. (Segunda Carta).
E inversamente, sendo a carta o lugar da instauração subjetiva, ela acha difícil terminá-
la: “Adeus, tenho mais dificuldade em terminar minha carta do que o senhor teve em
me deixar [...]. Escrevo mais para mim mesma do que para o senhor.” (Quarta carta).
Uma outra dimensão discursiva parece poder reforçar a idéia dessa oposição
entre sujeito epistolar e sujeito passional. Ela diz respeito ao estatuto do figurativo
nas cartas. Não só os elementos figurativos são raros, como também nunca é
instalada nelas uma isotopia figurativa. Ora, por seu enfoque referencial, o
figurativo remete à relação entre os sujeitos epistolares. É nesse nível de
representação semântica que se estabelecem pontos de referência em comum, a
convergência dos pontos de vista, uma certa partilha do mundo: o quarto, o
convento, o jardim, a família, o próprio interlocutor. Com relação a esse último,
como já vimos, o enunciador passional da carta tende a abolir a identidade
descritivo-figurativa que ele suscita. Essa rejeição ao figurativo se estende a todas as
outras formas de sua manifestação. Os elementos descritivos são totalmente
investidos pela dimensão tímica, e essa sobredeterminação é instituída pela religiosa
como a pedra angular de seu sistema axiológico. Tudo o que não é compatível com
seu “esquema tímico” é imperativamente excluído e em primeiro lugar, é claro, as
figuras dotadas de uma forte densidade referencial: “sou perseguida pelo ódio e
desgosto que tenho por todas as coisas: minha família, meus amigos e esse
convento são-me insuportáveis; tudo o que sou obrigada a ver e tudo o que preciso
fazer me é odioso”. (Quarta carta).
A partir dessa observação, podemos distinguir duas ordens do cognitivo,
rearticulando de maneira mais específica suas duas dimensões gerais, persuasiva vs
interpretativa. De um lado, na verdade, o sujeito epistolar é instalado sobre
isotopias figurativas de base, restaurando para o destinatário ausente as
coordenadas espaciais, temporais e actoriais de sua enunciação e assegurando, desse
modo, a legibilidade mínima de seu discurso. Ele é assim caracterizado, de maneira
muito ampla, por um fazer persuasivo, num movimento de abertura intersubjetiva. É
um sujeito “centrífugo”, que invoca (ou convoca) ininterruptamente a confirmação
de seu dizer. Acontece de modo totalmente diferente com o sujeito passional. Nele,
a sobredeterminação tímica dos valores descritivos é geral e absoluta, a ponto de
recusar o reconhecimento de qualquer pertinência à dimensão figurativa. Ora, é
possível compreender o timismo (euforia vs disforia) como um nível elementar da
interpretação, como um fazer interpretativo primário. O estado do sujeito (nos
enunciados que lhe dão forma, bem entendido) é um efeito das modalizações
investidas nos objetos: eles são “desejáveis”, “detestáveis”, “odiosos”, etc. Os
objetos, assim valorizados, são de imediato inscritos, formados nos circuitos da
interpretação que seleciona neles o valor pertinente em função de sua própria
disposição, a qual procede do timismo.
Teríamos assim dois regimes diferentes do fazer interpretativo. De um lado,
o que se dá entre dois sujeitos e que realiza a relação intersubjetiva entre eles pela
mediação do objeto; e do outro, o que faz um caminho mais curto, mas na
realidade igualmente complexo, que vai do objeto ao sujeito. Esse último recebe,
seleciona, valoriza a presença das coisas em função de sua “disposição” e das
categorias tímicas que a regem: é o interpretativo patêmico. Instalando seu discurso
em isotopias dessa ordem, o sujeito passional alimenta sem cessar uma cadeia
interpretativa que cria, bem ou mal, sua sintagmática própria. Aquela, por exemplo,
que resulta da exploração simultânea de valores incompatíveis, gerando os
múltiplos efeitos de contradição que caracterizam nesse ponto o discurso da
194
religiosa: “eu sou dilacerada por mil movimentos contrários”. Podemos então dizer
que o sujeito passional, ao inverso do precedente, define seu fazer interpretativo
num movimento de fechamento subjetivo: é um sujeito “centrípeto”. Sua única
função é fixar e preservar seu espaço patêmico.
falta estabelece, exige pela organização paradigmática da narratividade que ela seja
liquidada ou resolvida: encontrar os nomes próprios é, aqui, restaurar um equilíbrio
numa episteme da identificação. Num certo sentido, o “mal-estar” provocado pelas
Cartas portuguesas, tal como o ilustra a historiografia a elas vinculada, é do mesmo
tipo que o da carta anônima: resulta do princípio de legibilidade inscrito na carta em
si mesma. Aqui como lá, o apagamento do signatário está ligado ao
desaparecimento de um outro sujeito (o destinatário ameaçado, por exemplo). O
anonimato é corolário da anulação inscrita na própria carta; ele a fundamenta e a
garante. E a inquietude provocada – virtualidade do apagamento, paixão ôntica por
excelência – seduz, exige a busca.
2. As marcas do “vivenciar”
191
A. Hénault, Le Pouvoir comme passion, Paris, PUF, col. «Formes sémiotiques», 1995.
196
significante o outro texto vem confirmar, uma “sintaxe transfrásica passional 192”,
fundada na dimensão fórica e axiológica do vivenciar.
O Journal, que se considerava como uma relação histórica rigorosamente factual,
evidencia-se de um lado a outro atravessado e perturbado pela paixão de seu narrador,
paixão secreta, de uma ambição frustrada. “Paixão clássica” por excelência, como
destaca A. Hénault, a ambição pode ser redefinida a partir das marcas do vivenciar que
se antecipam a qualquer denominação no contexto sócio-cultural do começo do século
XVII: o do ideal heróico em seu término, em que o ardor pela excelência anima o
desejo de participar do poder real, mas ao modo do afeto e não da dominação. O rigor
dos silêncios no Journal expõe o caráter passional da decepção. Esse estudo permite
assim, medindo a distância conotativa entre a “ambição confessável” de então e seus
avatares modernos, apreender a transformação histórica de um tipo de paixão.
De um ponto de vista teórico e metodológico, a análise convida a associar a
abordagem do agir e do sofrer e mostra que os esquemas da ação, feitos de estados
descontínuos, ordenados e finalizados, se apresentam como um instrumento de gestão
eficaz dos “energetismos fóricos”193 que, anteriores à ação e da ordem do contínuo,
deles participam e neles se manifestam, mesmo sendo isoláveis, formalmente, como
configurações autônomas no interior do discurso narrativo. Podemos ver nisso, com
relação à economia geral da teoria semiótica, uma nova maneira de estreitar os vínculos
entre as dimensões pragmática e patêmica do discurso.
Síntese
A enunciação passional
192
Ibid.,p.174.
193
Ibid., p. 179.
197
Glossário
Debreagem: Operação enunciativa pela qual o sujeito da fala projeta “para fora de si”
as categorias semânticas do /não-eu/, /não-aqui/ e /não-agora/, instalando nesse ato as
condições primeiras da atividade simbólica do discurso. Rompendo sua inerência consigo
mesmo, ele instala as categorias objetivantes do “ele”, do “lá” e do “então”. Essa operação é
correlativa à embreagem.
Destinador: Actante que define a ordem dos valores em jogo dentro de uma narrativa.
Figura de autoridade, ele está na fonte do contrato (ele atribui ao sujeito uma missão) e da
sanção, garantindo o enquadramento axiológico da narrativa. Sob o ponto de vista modal, o
destinador é definido pela factitividade (ele faz crer, faz querer, faz saber, faz fazer).
“sensibilização” dos objetos, que depende da aspectualidade (cf. as paixões incoativas como a
impulsividade, ou terminativas como a nostalgia). Enfim, a estrutura passional é “controlada”
pela moralização, isto é, pela regulação social que estabelece a medida, entre excesso e
insuficiência, da circulação de valores. Considerada do ponto de vista da instância enunciante,
a paixão submetida à inerência do corpo e do mundo sensível é uma forma de não-sujeito: o
passional predica, mas falta-lhe o juízo que transforma a predicação em uma asserção
assumida e “refletida”. A paixão opõe-se, nesse caso, à razão.
Patêmico: Neologismo formado com a raiz pathos e o sufixo -ema, -êmico. Tal sufixo,
que se encontra na lingüística em “fonema”, “sema”, “semema”, etc. (e por extensão, na
antropologia, em “mitema”) designa a unidade mínima de descrição de um fenômeno no
campo de pertinência das ciências da linguagem. O “patema” é assim uma unidade semântica
do domínio passional. Seu emprego evita qualquer confusão com uma abordagem psicológica
do universo afetivo no âmbito do discurso. O estudo da dimensão patêmica do discurso,
complementar às dimensões pragmática e cognitiva, concerne não mais à transformação dos
estados de coisas (fulcro da narratividade), mas à modulação dos estados do sujeito, seus
“estados de alma”. Essa dimensão constitui objeto da semiótica das paixões.
perspectiva, o actante da paixão, perdendo o domínio cognitivo de sua ação, pertence à classe
dos não-sujeitos.
Uso: Introduzido por L. Hjelmslev, que com ele substituiu a “fala” na dicotomia
saussuriana língua/fala, o uso designa o conjunto dos hábitos lingüísticos de uma dada
sociedade. Resultantes da práxis enunciativa coletiva, os produtos do uso constituem a parte
impessoal da enunciação e compreendem os esquemas que caracterizam a organização das
grandes formas de discurso (como o esquema narrativo), o estabelecimento e a transformação
dos gêneros, os registros (registro épico, lírico, etc., bem como os níveis de língua), os lugares-
comuns (topoi), a fraseologia cristalizada, os blocos “pré-fabricados” de discursos, etc. Todo
locutor convoca esses produtos do uso no exercício da língua, e a criatividade linguageira
consiste muitas vezes em revogá-los (efeito de estilo, por exemplo). Se tais novas formas
“pegarem”, elas serão por sua vez reintegradas ao senso comum, ficando a partir daí
disponíveis para uso (cf. por exemplo as expressões “na moda”). Ainda que aberto à variação e
à criatividade, o uso está longe de explorar todas as virtualidades de combinatórias oferecidas
pelo sistema (a língua), e por isso fala-se de uma restrição do uso pela história (coerções e
códigos do uso).
exemplo, que em Eluard as valências são incoativas: isso significa que as coisas não podem ser
valorizadas a não ser que sejam percebidas no seu começo (aurora, despertar da amante,
nascimento da criança, pássaro alçando vôo, primórdios de um sentimento, etc.).