Você está na página 1de 206

1

INTRODUÇÃO

O objeto da semiótica é o sentido. Domínio infinitamente vasto, do qual se ocupa o conjunto das
disciplinas que constituem as ciências humanas, da filosofia à lingüística, da antropologia à história, da
psicologia à sociologia. Uma restrição, portanto, se impõe logo de início: a semiótica se interessa pelo
“parecer do sentido”, que se apreende por meio das formas da linguagem e, mais concretamente, dos
discursos que o manifestam, tornando-o comunicável e partilhável, ainda que parcialmente. Este livro tem
por objetivo apresentar, de maneira metódica, a semiótica geral, em sua origem e em seus
desenvolvimentos mais atuais, focalizando um de seus campos de exercício privilegiado: o discurso
literário.

1. Definições

Duas denominações da disciplina têm estado tradicionalmente em concorrência: semiologia e


semiótica. Ambas se distinguem da semântica. Esta designa a parte da lingüística que tem por objeto o
estudo das significações lexicais, tomadas em sua evolução (semântica histórica) ou nas relações
constitutivas do sentido das palavras (semântica sincrônica). Semiologia e semiótica têm em comum o
fato de ultrapassarem a semântica em dois sentidos: para além da palavra, da oração e da frase, elas
encaram os fenômenos significantes em sua globalidade discursiva; mas sobretudo, para além da simples
língua natural, elas consideram a significação como um objeto próprio, transversal às diferentes
linguagens que lhe dão forma e asseguram-lhe a eficiência. A distinção teórica e metodológica entre a
semiologia e a semiótica, por sua vez, está mais ligada às transformações históricas de sua formação
recente no campo das ciências da linguagem. Salientaremos progressivamente essa distinção ao analisar
algumas das numerosas definições que acompanharam seu desenvolvimento.
Consideremos, em primeiro, duas definições de “semiologia”: “Ciência que estuda a vida dos
signos no seio da vida social” (F. de Saussure) e “Ciência que estuda os sistemas de signos (línguas,
códigos, sinalizações, etc.)” (Petit Robert). As duas mostram a extensão considerável de seu objeto: o
universo geral dos signos, bem além da mera língua. Assim, no texto fundador freqüentemente citado, do
qual foi extraída sua definição, Saussure precisa que “a língua é um sistema de signos que exprimem
idéias, e é comparável, por isso, à escrita, ao alfabeto dos surdos-mudos, aos ritos simbólicos, às formas
de polidez, aos sinais militares, etc. Ela é apenas o principal desses sistemas”. A lingüística não é “senão
uma parte dessa ciência geral”1. O signo-objeto da semiologia abrange, pois, as diferentes linguagens que
lhe dão forma de expressão: linguagens verbais (oral, escrita), não-verbais (visual, plástica, gestual,
musical, etc.) ou “ sincréticas” (combinando várias linguagens, como por exemplo o teatro). A semiologia
(ou semiótica) postula a unicidade do fenômeno da significação, quaisquer que sejam as linguagens que o
exprimam e o manifestem.
No entanto, uma diferença entre essas duas definições salta aos olhos. O Petit Robert fala em “
sistemas” de signos, enquanto Saussure fala na “ vida” dos signos, envolvendo assim, além do sistema,
sua realização dinâmica em forma de discurso e sua inserção na comunicação social. A semiótica francesa,
principalmente sob o impulso de A. J. Greimas, se esforçará para realizar esse programa, sempre
associando estreitamente as duas dimensões: a do sistema e a do processo.
Consideremos agora uma outra definição, a de “semiótica”, no mesmo dicionário Petit Robert. Ela
é dupla: “Teoria geral dos signos e de sua articulação no pensamento (> lógica). Teoria dos signos e do
sentido, e de sua circulação na sociedade (> semiologia).” Cada uma dessas definições delineia o campo
de duas concepções distintas da semiótica, que estão na origem de duas grandes tradições e que nos

1
F. de Saussure, Curso de lingüística geral, 12a ed. Trad. Antônio Chelini et al. São Paulo, Cultrix, 1976, p. 24.
2

limitaremos a localizar: a semiótica americana e a semiótica européia. A primeira, fundamentada na obra


do filósofo e lógico Charles Sanders Peirce (1839-1914), se atém especialmente ao modo de produção do
signo (os esquemas inferenciais do raciocínio: dedução, indução, abdução) e à sua relação com a realidade
referencial pela mediação do “interpretante” (de onde provém a tipologia dos signos: ícone, índice,
símbolo). É uma semiótica lógica e cognitiva, desvinculada de qualquer ancoragem nas formas
linguageiras. A segunda, ao contrário, tem suas raízes na teoria da linguagem, mostrando assim sua
filiação a Saussure, seus postulados estruturais e sua concepção da língua como instituição social; é esta
segunda semiótica, cujos principais modelos de análise são de origem lingüística, que vamos desenvolver
aqui. Ela é, às vezes, conhecida pelo nome de “Escola de Paris”.
O segundo enunciado definicional, por outro lado, estabelece uma distinção sugestiva: “teoria do
signo e do sentido”. Distinção importante de fato, pois ela determina a especificidade da semiótica com
relação à concepção redutora a que sempre se associou a semiologia: uma tipologia analítica dos sistemas
de signos reduzida aos códigos de sinais de caráter informativo e referencial (código rodoviário,
sinalizações, etc.). Tal redução é evidentemente grosseira e abusivamente parcial. Basta pensar na obra de
R. Barthes, que encarnou a “semiologia francesa” nas décadas de 1970-1980. Se podemos globalmente
caracterizá-la como uma “semiologia da conotação”, é porque ela não tem absolutamente nada a ver com
um projeto de análise denotativa dos signos. Ao contrário, o sentido e o valor são literalmente filtrados e
selecionados pelos crivos conotativos de leitura, significações secundárias que na realidade ocupam o
primeiro plano na comunicação social. Assim, para ele, “a ideologia seria em suma a forma dos
significados de conotação”. As significações envolvidas pelas denominações da disciplina (semiologia...,
semiótica...) são também, como vemos aqui, fortemente determinadas pelos valores conotativos
engendrados pelo uso, pelas conjunturas da história e pelos efeitos passageiros da moda. Seja como for, a
distinção “signo-sentido” no segundo enunciado do Petit Robert é preciosa. Ela permite determinar o lugar
exato do exercício semiótico: não é o do signo empírico e de suas codificações (de que a semiótica não
diz quase nada), é o do sentido que o signo suscita, que ele articula e que o atravessa. Os contornos da
disciplina tornam-se mais precisos e nos conduzem a uma terceira definição.
“ O objeto da semiótica é explicitar as estruturas significantes que modelam o discurso social e o
discurso individual “2. A linha divisória está aqui definida: a palavra “signo” desapareceu; é que não se
trata mais do signo, mas da significação. Não faltam metáforas para definir esse espaço próprio de
intervenção da semiótica, difícil de nomear, pois escapa à percepção empírica: “O olhar semiótico recai
sob a linha de flutuação do signo” (P. Fabbri), “o signo é a parte emersa do iceberg do sentido”. Essas
metáforas espaciais instalam a análise do sentido “sob” o signo. Indicam assim a hipótese estrutural que
está na base do método: seu objeto não é o signo, mas as relações estruturais, subjacentes e
reconstruíveis, que produzem a significação. Em Semântica estrutural, Greimas escreve: “A língua não é um
sistema de signos, mas uma reunião [...] de estruturas de significação” (p. 30). Ele precisa, em Sémiotique et
sciences sociales, que “o lingüista, [...] mesmo que esteja curioso por saber como se constituem os signos,
retém apenas o momento de sua dissolução, que lhe abre a possibilidade de analisar as formas lingüísticas
situadas (aquém e) além do signo” (p. 40).
A semiótica, assim compreendida, é uma teoria da relação; os “termos” (unidades significantes de
qualquer grandeza, empiricamente isoláveis), do ponto de vista da significação, são apenas intersecções de
relações apreendidas e articuladas em diferentes níveis de análise. E as estruturas relacionais de ordem
semântica e sintáxica se desdobram em séries organizadas de dependências, isto é, de hierarquias. As
regularidades notadas em tais estruturas, e reconstituídas a partir das próprias manifestações textuais, dão
lugar a construções menos ou mais formalizadas, que permitem transformá-las em modelos. Esses
modelos enunciativos, narrativos, figurativos, passionais são implicitamente convocados ou revogados
pelo exercício concreto do discurso, quer se trate dos vestígios de discurso depositados na memória

2
J. -C. Coquet, Le Discours et son sujet, Paris, Klincksieck, 1984, p. 21.
3

coletiva (como nos modelos narrativos estereotipados e outras formas discursivas e fraseológicas
cristalizadas, que ocupam um lugar considerável no uso cotidiano da palavra), quer se trate de um
discurso individual, inédito e criador, formador de novos usos da linguagem, como na escrita dos textos
literários.
Examinemos enfim uma última definição, mais técnica, que estabelece as bases programáticas do
projeto semiótico: “A teoria semiótica deve apresentar-se inicialmente como o que ela é, ou seja, como
uma teoria da significação. Sua primeira preocupação será, pois, explicitar, sob a forma de uma
construção conceitual, as condições da apreensão e da produção do sentido.”3. A seqüência do artigo do
qual se extraiu essa definição oferece um amplo panorama do canteiro de obras teórico: inicialmente a
significação como apreensão das “diferenças”, em seguida sua representação em uma estrutura elementar,
depois sua complexificação em um percurso global que simula a “geração” do sentido, desde as
estruturas profundas até as estruturas de superfície, e por fim sua operacionalização pelo “filtro que é a
instância da enunciação”. Eis aí em largos traços a economia geral da teoria semiótica. Suas divisões
sucessivas poderiam facilmente indicar a segmentação de um percurso introdutório à disciplina. Tal
esquema, entretanto, corresponderia a um estágio – início da década de 1980 – de uma teoria em
contínua remodelação.

2. Fontes

Para situar essa disciplina em construção e medir um pouco melhor a extensão de seu projeto, é
necessário indicar sumariamente as fontes principais de cuja convergência ela surgiu. Elas são três: a fonte
lingüística, a fonte antropológica e a fonte filosófica.
Da lingüística saussuriana, a semiótica extrai os princípios fundadores de sua metodologia.
Além do Curso de lingüística geral já citado, é preciso sobretudo insistir nos trabalhos do principal
continuador de Saussure, o lingüista dinamarquês Louis Hjelmslev, cujos Prolegômenos a uma teoria da
linguagem4 e Ensaios lingüísticos5 estabelecem os fundamentos epistemológicos do que será a semântica
estrutural (Greimas, 1966). Obras complexas e de difícil acesso, mas que apresentaram, sobretudo a
primeira, as condições de possibilidade de uma descrição formal do plano do conteúdo das linguagens,
no quadro de uma teoria de vocação científica. A semiótica é em grande parte, em seus princípios,
estrutural e de inspiração hjelmsleviana. Todavia, longe de permanecer num puro formalismo -
apreendendo o sentido através de suas descontinuidades e centrando-se na análise das estruturas
enunciadas independentemente do sujeito do discurso -, ela foi progressivamente integrando em seu
desenvolvimento as pesquisas em lingüística da enunciação, ilustradas principalmente pelos trabalhos
de É. Benveniste6. A concepção semiótica do discurso, visto como uma interação entre produção (por
um sujeito enunciador) e apreensão (ou interpretação, por um outro sujeito enunciador), foi pouco a
pouco se aproximando da realidade da linguagem em ato, procurando apreender o sentido em sua
dimensão contínua e estreitando cada vez mais o estatuto e a identidade de seu sujeito (orientação
ilustrada sobretudo pelos trabalhos de J. -C. Coquet).
Com a antropologia cultural a semiótica divide uma parte de seus objetos e de sua problemática.
Se ela não se interessa em primeiro lugar pela atividade singular do sujeito falante, é porque investiga mais

3
A. J. Greimas, J. Courtés, Dicionário de semiótica. Trad. Alceu Dias Lima et alii, São Paulo, Cultrix, s. d. [1983],
p. 415.
4
Tradução francesa, Paris, Minuit, 1971; tradução brasileira de J. Teixeira Coelho Neto, São Paulo, Perspectiva,
1975.
5
Tradução francesa, Paris, Minuit, 1971; tradução brasileira de Antônio de Pádua Danesi, São Paulo, Perspectiva,
1991.
6
Problemas de lingüística geral. Trad. Maria da Glória Novak e L. Neri, São Paulo, Nacional/EDUSP, 1976.
Problemas de lingüística geral II, Trad. E. Guimarães, et alii, Campinas, Pontes, 1989.
4

os usos culturais do discurso que modelam o exercício da palavra individual: rituais, hábitos, motivos
sedimentados na práxis coletiva das linguagens. Esta ligação entre as duas disciplinas se manifesta
particularmente no estudo das leis que regem a forma mais amplamente transcultural dos discursos, a da
narrativa, na maneira como ela modela e organiza o imaginário humano (da narrativa mítica ao conto
popular e deste ao texto literário). “É impossível enumerar todas as narrativas do mundo”7, escreve
Roland Barthes, abrindo sua “Introdução à análise estrutural da narrativa” em 1966. O primeiro
comentário da Morfologia do conto russo de Vladimir Propp, obra que tanto influenciou o surgimento da
teoria narrativa e, mais amplamente, da narratologia, foi publicado em 1960 por um antropólogo, C. Lévi-
Strauss8. Mais que os objetos partilhados, no entanto, é uma filiação metodológica oriunda de Marcel
Mauss que fundamenta o parentesco entre a antropologia e a semiótica. Esta prolongará e sistematizará o
que fora anteriormente constatado por aquela a respeito do primado das relações estruturais sobre a
realidade empírica dos objetos. A propósito do Ensaio sobre a dádiva, texto importante em que Mauss
estuda o problema da reciprocidade na circulação social dos valores e dos bens, Lévi-Strauss escreve:
“pela primeira vez na história do pensamento etnológico, foi feito um esforço para transcender a
observação empírica e alcançar realidades mais profundas. Pela primeira vez o social [...] torna-se um
sistema, entre cujas partes podemos pois descobrir conexões, equivalências e solidariedades”9. G.
Dumézil explica por sua vez, com termos surpreendentemente semelhantes, em Mythe et épopée, sua
descoberta essencial da característica comum das religiões indo-européias, na imensa variedade de seus
panteões: “a ideologia das três funções hierarquizadas”, função mágica e religiosa, função guerreira e
função de reprodução. Ele escreve: “um verdadeiro progresso se efetivou no dia em que eu reconheci [...]
que a ´ideologia tripartite´ não era acompanhada forçosamente, na vida de uma sociedade, da divisão
tripartite real dessa sociedade. [...] Em vez de fatos isolados e por isso mesmo incertos, uma estrutura
geral se propunha ao observador, na qual, como num vasto quadro, os problemas particulares
encontravam seu lugar preciso e limitado”10. Tanto no caso das relações sociais como no das mitologias, a
apreensão de um conjunto de relações conceituais simples e hierarquizadas, subjacentes à diversidade
empírica, pode dar conta da maneira como se organiza uma realidade significante infinitamente
complexa. Princípios similares comandam, como veremos, a metodologia semiótica em sua abordagem
do discurso. Compreendemos assim porque ela entra, para além dos seus próprios objetos, num estreito
parentesco teórico com a antropologia estrutural (Lévi-Strauss) e com a mitologia comparada (G.
Dumézil).
Enfim, no campo da filosofia, é da fenomenologia que a semiótica extrai, à distância, uma parte
importante de sua concepção da significação. A própria expressão “parecer do sentido”, que utilizamos
no início, ilustra essa inspiração fenomenológica. Nós a encontramos várias vezes nos escritos de
Greimas: desde o “véu do parecer” (em Du sens, 1970, p. 100)11 até a “tela do parecer” (em De
l´imperfection, 1987, p. 78), ela subjaz à sua abordagem relativista de um sentido, se não sempre
incompleto, pelo menos sempre pendente nas tramas do discurso. Ela define o estatuto das formas
significantes como um espaço intersticial entre o sensível e o inteligível, entre a ilusão e a crença
partilhada, na relação reciprocamente fundadora entre sujeito sensível e objeto percebido, destacando-se
no horizonte da sensação. Já em Semântica estrutural (1966), a ligação estava explicitamente assumida: “[...]
nos propomos a considerar a percepção como o lugar não lingüístico onde se situa a apreensão da
significação” (p. 15). É ponto pacífico, entretanto, que a semiótica não poderia ser considerada um ramo

7
A aventura semiológica. Trad. Maria de Sta Cruz, Lisboa, Ed. 70, s. d., p. 95.
8
C. Lévi-Strauss, “A estrutura e a forma. Reflexões sobre uma obra de Vladimir Propp”, Antropologia estrutural
dois. Trad. Maria do Carmo Pandolfo et alii, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1976, cap. VIII, pp. 121-151.
9
C. Lévi-Strauss, “Introdução à obra de Marcel Mauss”, abertura de M. Mauss, Sociologia e antropologia. Trad.
Lamberto Puccinelli, São Paulo, EPU, 1974, vol. 1, p. 21. Ver também, de Lévi-Strauss, Antropologia estrutural e
Antropologia estrutural dois, referência constante de vários semioticistas!
10
G. Dumézil, Mythe et épopée. L´idéologie des trois fonctions dans les épopées des peuples indo-européens, t. I,
Paris, Gallimard, 1968, pp. 15 e 16.
11
[N. dos T.] Edição brasileira: Sobre o sentido. Trad. Ana C. Cruz Cezar et alii, Petrópolis, Vozes, 1975, p. 93.
5

da fenomenologia. Ela se define, muito ao contrário, a uma certa distância do paradigma filosófico, como
uma teoria descritiva da significação discursiva: quando fala de ser, ela designa gramaticalmente um
predicado de estado, fora de qualquer visão ontológica. Mas se a distinção disciplinar vem assim
ostentada, talvez seja porque o ancoradouro filosófico da semiótica está claramente situado: suas
referências essenciais, nesse domínio, são as Idées directrices pour une phénoménologie, de Husserl12 e a
Fenomenologia da percepção, de M. Merleau-Ponty13 . Teremos a oportunidade de evocar novamente essa
ligação no momento de nossas reflexões sobre a figuratividade, característica central da literatura: a
figuratividade faz surgir aos olhos do leitor a “aparência” do mundo sensível. Olhando com mais
cuidado, notamos porém que os limites entre essas disciplinas não são assim tão estanques, e podemos
citar ainda o filósofo Paul Ricœur, para quem a mediação do signo e das obras é indispensável para a
compreensão da “consciência de si”: “O sujeito, diz ele, não se conhece a si mesmo diretamente, mas só
por meio dos signos depositados em sua memória e em seu imaginário pelas grandes culturas” 14. Ele
desenvolve esse tema sobretudo em Tempo e narrativa15, depois em O si mesmo como um outro16, e o inscreve
num longo diálogo com as ciências da linguagem, principalmente com a pragmática lingüística e a
semiótica narrativa e textual17.
Esta contextualização da semiótica, no seio das disciplinas que a inspiraram ou que ela
acompanhou, deve ser entendida como um simples balizamento. Trata-se apenas de mostrar aqui como,
aquém de toda a singularidade teórica e metodológica que lhe é peculiar entre as ciências da linguagem, a
semiótica é um produto interdisciplinar. Um discurso “com vocação científica” sobre o sentido tem
necessariamente ligação com a linguagem que o estrutura, com as produções significantes e transculturais
das sociedades que o modelam e com os postulados epistemológicos que fundamentam as condições de
sua análise. De resto, essa contextualização visa também a sugerir aberturas para numerosos textos que,
embora não fazendo parte diretamente do domínio da análise literária, são passíveis de esclarecer-lhe o
método e a prática.

3. Objetivos

Com relação ao horizonte teórico que acabamos de esboçar, nosso objetivo é naturalmente mais
restrito. É pôr em prática um percurso metodológico para a análise dos textos literários e, a partir daí, propor
prolongamentos e discussões críticas para um estudo da literatura centrado, segundo nosso postulado
inicial, na realidade textual e discursiva. Esta iniciação está portanto inserida num campo de especialidade:
a literatura. Isso não deve ocultar a amplitude muito maior dos domínios de investigação da semiótica: de
um lado, a teoria da linguagem e sua incessante busca epistemológica; de outro, os universos do discurso,
verbais ou não verbais (notadamente visuais), dos quais há análises feitas por semioticistas de diversas
especialidades. A bibliografia proposta no final do volume apresenta esses trabalhos em toda sua
variedade.
Nosso método consiste pois, inicialmente, em nos atermos ao texto propriamente dito, em
reconhecer sua autonomia relativa de objeto significante. Ele considera o texto como um “todo de
significação” que produz em si mesmo, ao menos parcialmente, as condições contextuais de sua leitura.
Uma das propriedades sempre reconhecidas no texto dito “literário” é que, diferentemente do conto oral,
do artigo de imprensa ou outras formas de discurso, ele incorpora seu contexto e contém em si mesmo o
seu “código semântico”: ele integra assim, atualizado por seu leitor e independente das intenções de seu

12
Paris, Gallimard,1950, trad. Paul Ricœur.
13
Trad. Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo, Martins Fontes, 1999.
14
Réflexion faite. Autobiographie intellectuelle, Paris, Éd. Esprit, 1995, p. 30.
15
T. II. Trad. Constança Marcondes Cesar, Campinas, Papirus, 1994.
16
Trad. Lucy Moreira César, Campinas, Papirus, 1991.
17
P. Ricœur manteve regularmente um debate com A. J. Greimas, sobre os problemas da narrativa e da paixão. O
texto da discussão sobre as paixões foi publicado por A. Hénault, no final de sua obra Le pouvoir comme passion,
Paris, PUF, col. “Formes sémiotiques”, 1995.
6

autor, as condições suficientes para sua legibilidade. P. Ricœur escreve: “ Na medida em que o sentido de
um texto se tornou autônomo em relação à intenção subjetiva de seu autor, a questão essencial não é
mais encontrar, por trás do texto, a intenção perdida, mas desdobrar, de certo modo diante do texto, o
´mundo` que ele abre e descobre “18. Esse duplo aspecto está no cerne de nosso método, que pretende
associar estreitamente uma semiótica do enunciado, destacando as articulações internas do texto, e uma
semiótica da enunciação, centrada nas operações da discursivização, incluídas – e sobretudo – as da
leitura.
Trata-se, com efeito, de procurar a conexão entre uma semiótica sistêmica e uma semiótica da
leitura: para a primeira, todas as relações são internas ao dispositivo da língua. Ela estuda as regras de
composição transfrásica, os princípios da coerência, as formas de estruturação articuladas em diferentes
níveis. A segunda reintroduz o sujeito do discurso e a dimensão intersubjetiva da interlocução no ato de
leitura. Ela reencontra, por conseguinte, as questões colocadas especificamente, no domínio literário,
pelas discussões clássicas sobre a interpretação e seus limites, sobre a polissemia dos textos, sobre a
pluralidade das leituras. Essas discussões interessam não somente à crítica literária, mas também à
didática da literatura, tanto no contexto do ensino como em um contexto intercultural. Nessa
perspectiva, o leitor não é mais aquela instância abstrata e universal, simplesmente pressuposta pelo
advento de uma significação textual já existente, que se costuma chamar “receptor” ou “destinatário” da
comunicação: ele é também e sobretudo um “centro do discurso”, que constrói, interpreta, avalia,
aprecia, compartilha ou rejeita as significações.

4. Método

A fim de precisar, neste momento, os fios condutores da abordagem semiótica na literatura,


convém inserir nosso projeto numa visão mais ampla do objeto e das principais orientações teóricas que
conduzem a metodologia.
Podemos dizer que uma dupla tensão caracteriza a posição da literatura no campo dos discursos:
tensão entre literatura e língua de um lado, tensão entre literatura e cultura de outro lado. É peculiaridade
do escritor, dizia R. Barthes, “ver a língua”, isto é, apreender ao mesmo tempo o som e o sentido, o
ritmo, a sintaxe e as imagens, a voz e os conceitos, a convenção que desgasta a língua na cotidianeidade
de seu uso e a inovação que a torna, em cada obra por assim dizer nascente, quase estrangeira a si mesma.
Como escreve Proust em Contre Sainte-Beuve: “ Os belos livros são escritos numa espécie de língua
estrangeira.” O escritor é aquele que sabe se fazer estrangeiro em sua própria língua, ele escava nela
possibilidades inéditas, não percebidas até então. Ele a força a tornar-se outra. A literatura exerce pois,
por natureza, uma função crítica sobre a língua, desaprumando-a em relação a si mesma em cada obra.
No âmbito da cultura, a literatura é esse imenso reservatório da memória coletiva, canteiro em que ela se
elabora com os materiais de que dispõe, arquivo em que ela se fixa e se institui como referência cultural.
Ela é assim reconhecida como meio de transmissão dos conteúdos míticos e axiológicos, das maneiras de
ser e das maneiras de fazer de uma comunidade, em parte fundadora de sua identidade; nela se depositam
e se transformam tanto os modelos da ação (a narrativa) e da representação (“realismo”, por exemplo)
quanto os modelos das liturgias passionais (como os do amor cortês). Ela propõe – ou impõe, contra sua
própria vontade – formas de organização discursiva do sentido e dos valores, interpretadas como
hierarquias e exclusões (o “bom” e o mau gosto...).
Ora, bem sabemos que a complexidade da literatura não pára aí: é também a do comentário
pululante que ela suscita, o qual prolonga e renova infinitamente as suas significações. Basta pensar, para
além da atividade crítica, na diversidade dos métodos de análise cujos instrumentos teóricos
extraordinariamente variados fazem do metadiscurso sobre a literatura uma espécie de duplo do próprio
objeto literário. Essas abordagens estão centradas na origem do texto (seu estabelecimento e sua gênese,
da abordagem filológica à crítica genética), no próprio texto (suas formas de expressão e de conteúdo,

18
Réflexion faite. Autobiographie intellectuelle, op. cit., pp. 56-57.
7

com que se preocupam a retórica, a estilística, a análise textual, a semiótica, a poética), na figura do autor
(como personagem de sua história na crítica biográfica, como inconsciente na crítica psicanalítica ou
como sujeito social na sociocrítica), e no contexto sócio-histórico, por fim (as transformações dos
gêneros, a história social da recepção dos textos e a da instituição literária).
Entre essas diferentes propostas, convém situar as orientações da semiótica. Interessando-se pelas
condições da apreensão da significação, ela situou o texto e suas estruturas organizadoras no centro de
suas investigações. Fazendo uma espécie de “limpeza da situação verbal”, para retomar uma expressão de
Paul Valéry19, os semioticistas da literatura, seguindo A. J. Greimas, consideraram com reserva, e até com
suspeição, todos os termos legados pela tradição literária, solidificados pelo uso e naturalizados como
evidências, que filtram imperiosamente nosso acesso à textualidade: personagens, atmosfera, imagem,
sentimento, descrição e narração, gêneros e estilo de escrita, etc. Rejeitando, pelo menos provisoriamente,
essas noções da prática descritiva, eles quiseram fazer tabula rasa para assegurar uma certa ingenuidade do
olhar ou até mesmo uma suspensão metódica do julgamento. Os conceitos analíticos que eles então
propuseram se enraizavam nos fundamentos de uma teoria geral da linguagem, a montante da literatura,
que era preciso reinserir na relatividade cultural de sua própria designação. Elaborados, não sem
dificuldade, na euforia estruturalista, esses novos instrumentos de descrição viriam a se interdefinir, a se
homologar, a entrar em uma hierarquia circunstanciada, e a reatar, sob uma luz renovada, com
problemáticas antigas, às quais eles garantiriam, num campo de pertinência claramente estabelecido, um
mínimo de confiabilidade descritiva.
Podemos resumir sucintamente seu método, dizendo que a semiótica privilegiou quatro
dimensões que, embora não sejam propriamente do texto literário, nele se articulam de maneira
específica. É talvez pela sua composição que se define em parte o uso literário da língua: a dimensão
narrativa, a dimensão passional, a dimensão figurativa e a dimensão enunciativa.
A dimensão narrativa é a mais solidamente estabelecida. Ela consiste em desnudar as estruturas
organizadoras de nossa intuição narrativa, transformadas pela linguagem nesses “seres de papel” que são
os atores, sujeitos de desejo ou de medo, adquirindo competências, agindo, lutando, fracassando ou
obtendo vitórias. Organizações predicativas de um tipo peculiar subtendem-lhes os percursos: as
estruturas actanciais se definem por uma composição modal (querer, dever, saber, poder, ser ou fazer)
que comanda a transformação da relação de um sujeito com objetos de valor (os quais ele adquire pelo
combate ou pela troca, e dos quais ele é privado por despossessão ou por renúncia) e com outros sujeitos
na mesma cena narrativa. As estruturas se desdobram em seqüências que a história cultural, a dos relatos,
fixou em nosso imaginário narrativo sob formas canônicas (do contrato inicial à sanção final, recompensa
do herói e punição do vilão nos contos populares). O primeiro grande romance da literatura francesa,
Percival ou a história do Graal, ilustra de maneira exemplar essa trama. Essa dimensão narrativa, menos ou
mais enriquecida e complexificada, tem permitido há muito tempo numerosas aplicações na análise dos
textos, eficazes até mesmo no nível mais elementar, mas sempre exageradamente simplificadoras (em
torno do esquema narrativo, principalmente).
Ocorre que as estruturas da ação não esgotam, longe disso, a organização discursiva do sentido. E
a literatura não se contenta em pôr em discurso ações e condutas. A narrativa mostra, de maneira robusta
porque sistematizável, como se transformam os “estados de coisas”: passagem da pobreza à riqueza, do
sucesso ao fracasso, da posse à privação; os objetos circulam, trocam-se, perdem-se. Mas que é feito do
sujeito que continua a existir no decorrer das transformações, que persiste e modula seus próprios
estados, seus “estados de alma”, através da circulação dos objetos e dos valores que os tornam desejáveis
ou temíveis? Uma possessão perdida deixa nele resíduos sob forma de “lamento” ou de “nostalgia”. A
impossível conquista de um objeto de desejo reforça, ao longo dos obstáculos encontrados, o querer do
sujeito, e eis a “obstinação”; os objetos virtuais crescem no decorrer das aquisições parciais, dilatando o
ser potencial do sujeito, e eis a “ambição”. Essa profusão de simulacros cuja remanescência o sujeito

19
P. Valéry, “Poesia e pensamento abstrato”, in Variedades. Trad. Maiza Martins de Siqueira, São Paulo,
Iluminuras, 1991, p. 202.
8

passional preserva ou projeta no futuro, analisáveis na medida em que eles se tornam objetos efetivos no
discurso, que a língua nomeia e organiza, levou a semiótica ao estudo desta dimensão relativamente
autônoma, que é a das paixões. Ora, a literatura é, de todas as formas do discurso social, a que em nossas
culturas fixa, isola e valoriza identidades, tipos e percursos passionais. Há aí um vasto domínio de
pesquisas para a análise literária, sem dúvida, mas também para a comparação intercultural das figuras e
configurações do sensível.
O sensível nos leva diretamente à terceira dimensão que a semiótica explorou amplamente, a
dimensão figurativa do discurso. A literatura é, entre outros, um discurso figurativo: ele representa,
estabelece, na leitura, uma relação imediata, uma semelhança, uma correspondência entre as figuras
semânticas que desfilam sob os olhos do leitor e as do mundo, que ele experimenta sem cessar em sua
experiência sensível. É a mimesis. Essa dimensão se interessa pela maneira como se inscreve o sensível na
linguagem e no discurso, ou seja, basicamente, a percepção e as formas da sensorialidade. Essa dimensão
figurativa da significação, a mais superficial e rica, a do imediato acesso ao sentido, é tecida no texto por
isotopias semânticas, e recobre com toda sua variedade cintilante de imagens as outras dimensões, mais
abstratas e profundas. Ela dá ao leitor, assim como ao espectador de um quadro ou de um filme, o
mundo a ver, a sentir, a experimentar. A práxis cultural, que se sedimenta com o uso, fixa então a ordem
de “verdade”, totalmente relativa, do figurativo em poéticas particulares e convencionais: é, por exemplo,
o alegorismo, o realismo, o simbolismo, o surrealismo, etc.
Chegamos finalmente à dimensão enunciativa. Essa posição, no fim do percurso, é significativa!
Enquanto se constituíam e se desenvolviam na França uma lingüística da enunciação (a partir dos
trabalhos de É. Benveniste e de A. Culioli) e uma pragmática da interação linguageira (a partir de Austin e
Searle, no universo anglo-saxão, e de O. Ducrot na França), os semioticistas se mantinham, na maioria de
seus trabalhos, “a boa distância” do sujeito (J. -C. Coquet foi por muito tempo uma exceção nesse
campo). Dava-se prioridade ao texto-enunciado, e tudo aquilo que pertencia à situação extralingüística (a
realidade, incluída a do sujeito da fala) era por princípio excluído do campo da análise. O sujeito está
pressuposto pela manifestação do discurso, reconstituível a partir dos traços que deixa nele, acessível por
meio de numerosas instâncias de delegação que simulam sua presença no interior do texto (o narrador, o
observador, os interlocutores), localizável por operações enunciativas (debreagem e embreagem,
focalização, ponto de vista e perspectiva), reconhecido como agente da textualização, mas sempre
cuidadosamente mantido dentro dos limites de pertinência que a teoria fixou. Essa posição foi objeto de
inúmeras discussões e, parece-nos, de mal-entendidos lamentáveis, mesmo porque o trabalho sobre a
literatura e a leitura implica, de uma maneira ou de outra, o empenho das subjetividades.
A fim de precisar este ponto, é necessário determo-nos um momento sobre as críticas dirigidas
hoje em dia à abordagem semiótica do texto: diretamente ou não, elas se referem quase sempre à ausência
da enunciação. Elas expressam, essencialmente, uma censura ao formalismo ligado ao princípio de
imanência reivindicado pelos semioticistas, segundo o qual os fenômenos “entram em um sistema
fechado de relações” que levam a considerar a língua e o discurso como objetos abstratos “em que
contam somente as relações entre os termos”20. O desnudamento das estruturas formais quebra o elo
entre o discurso e seu sujeito, tira a obra da realidade histórica de sua produção e recepção, ignora a
cronologia, a historicidade, as condições de leitura, as formas da instituição literária que enquadram e
determinam as significações do texto e sua eficácia comunicativa.
Tal crítica pode parecer plenamente justificada se considerarmos que os formalistas tiveram ou
têm ainda, às vezes, tendência a elaborar “em abismo” instrumentos conceituais cada vez mais
sofisticados, fazendo referência aos estágios anteriores de sua conceptualização e se afastando mais e
mais da realidade primeira de seu objeto. Esse trabalho pode levar, como dizia Montaigne, a “multiplicar
as sutilezas”, ensinando os homens a “aumentar as dúvidas”21. Para nós, todavia, esse julgamento crítico
se baseia fundamentalmente num mal-entendido: podemos considerar, com efeito, que o projeto

20
J. -C. Coquet, La Quête du sens, Paris, PUF, col. “Formes sémiotiques”, 1997, pp. 2 e 235.
21
Montaigne, Ensaios, “Da experiência”. Trad. Sérgio Milliet, Porto Alegre, Globo, 1961, p. 323.
9

semiótico é ser, ao mesmo tempo, uma sócio- e uma psico-semiótica. Parece-nos que descobrir estruturas
imanentes nas formas é também dotar-se dos meios de reconhecer as convenções que o uso pouco a
pouco estabeleceu, sedimentadas em estruturas e construídas com regras implícitas. Essas convenções
moldam as expectativas dos leitores. Elas asseguram, para além do sistema da língua em si, a
previsibilidade do conteúdo, as hipóteses e inferências da leitura. As estruturas assim compreendidas
deveriam estar também relacionadas com o sujeito, mas elas fazem parte agora de uma enunciação
enfraquecida, do murmúrio impessoal dos discursos que milhões de falas engendraram, retomadas e
repisadas: a fraseologia, as expressões fixas, os estereótipos, esses blocos pré-fabricados e “pré-
moldados” de discursos atestam na superfície a impessoalidade da enunciação. E à sedimentação,
produto cultural dessa práxis enunciativa, respondem a inovação e a ruptura, a abertura da língua, por
enunciações singulares, a formas novas e inéditas, criadoras de leitores novos, formas que o uso talvez
deposite mais tarde na regularidade das esquematizações. A história da literatura está pontuada por essas
formas emergentes, inaceitáveis no início para os leitores e sempre rejeitadas por sua estranheza, que
tomaram, às vezes, para além das expressões individuais, as formas institucionais de libelos ou de
manifestos talvez exageradamente valorizadas mais tarde pela história literária: “Defesa e ilustração da
língua francesa”, “Querela dos Antigos e dos Modernos”, “Manifesto do Surrealismo”, “Por um novo
romance”, etc. Vista dessa maneira, a abordagem sincrônica das estruturas não contradiz nem a
abordagem diacrônica da história, nem a abordagem pragmática da leitura: ao contrário, ela oferece
mesmo a possibilidade de uma história das poéticas, ou de uma história cultural das formas, apreendidas
sob um outro regime de duração que não o de uma cronologia de obras e de movimentos literários.
As observações precedentes orientam a concepção geral deste livro e sua organização. Uma
primeira parte apresenta o percurso geral da metodologia semiótica, cotejando, em torno de um mesmo
motivo, uma expressão estereotipada e uma realização romanesca. Seguem-se quatro partes, cada uma
destacando um domínio de investigação particular, cuja combinação e cujo arranjo com as outras podem
pôr em evidência certas propriedades do texto literário. Começaremos pela dimensão enunciativa, que
enquadra e rege, pela discursivização, as dimensões seguintes, as quais articulam em módulos os
diferentes níveis de profundidade da significação: será tomada primeiro a figuratividade, depois a
narratividade e finalmente a afetividade. Na conclusão, seremos levados a avaliar as relações,
recentemente reativadas na pesquisa, entre a semiótica e a herança retórica, contra a qual ela procurou,
por muito tempo, se colocar como disciplina autônoma, mas com a qual ela pode hoje fazer convergir
suas propostas. No interior de cada uma das partes, nosso percurso se propõe associar uma problemática
geral, que não seja específica da literatura, com estudos de textos. Estes, longe de só ilustrar os modelos
apresentados, especificam-nos, prolongam-nos e interrogam seus instrumentos22.

22
Algumas análises já foram publicadas em revistas especializadas ou obras coletivas. Elas foram retrabalhadas e
reescritas para a presente publicação.
10

Capítulo I
Manual de semiótica

1. Elementos de análise

Imagine uma alta muralha na noite. A meia-altura, uma janela. Barras na janela. Uma das barras
serrada. Lençóis amarrados com nós ao longo do muro. Um homem pendurado nos lençóis. O medo...
Imagine agora um bosque. A corrida desenfreada do homem entre as árvores. Seu desaparecimento na
noite.

1.1 Figuras
Essa sucessão de substantivos e adjetivos apresenta uma seqüência de figuras (“imagine”)
que interpretamos globalmente como uma narrativa: a significação que se forma e se atualiza na
passagem de uma figura a outra, e não em cada uma delas tomada individualmente, pertence
precisamente ao que a semiótica chama de nível figurativo*23 da leitura. Uma impressão de
“realidade” se depreende como se se tratasse de um quadro pintado. No entanto, a própria
evidência dessa leitura do sentido constitui um primeiro ponto problemático: o da coerência
discursiva. Com efeito, a passagem de uma frase à que lhe sucede imediatamente e assim por diante
até o fim do texto, só pode ser percebida como um continuum semântico se postularmos uma
isotopia* comum que tece uma ligação entre cada figura, pela recorrência de uma categoria
significante (ou de uma rede de categorias) no decorrer do desenvolvimento discursivo. No
exemplo – mas isso nem sempre é tão evidente – as ligações são asseguradas por repetições
(“barras”, “lençóis”, etc.) e por operadores anafóricos (artigos definidos, pronomes possessivos)
que, remetendo de um a outro enunciado, garantem a permanência da isotopia discursiva24.
Essas isotopias, no caso, de ordem figurativa, estabelecem um primeiro nível de leitura. Elas
dizem respeito à espacialização (“muralha”, “janela”, “barras”, “lençóis”, “bosque”, “árvores”:
podemos notar as duas isotopias sucessivas, da verticalidade e da horizontalidade), à temporalização
(a “noite” no plano da temporalidade enunciada, mas também o “agora” que, relacionado à
enunciação, marca, ao mesmo tempo, a sucessividade dos atos e o encadeamento das orações) e à
actorialização* (“homem”). As isotopias, com seus elos anafóricos, garantem a continuidade da
leitura do sentido. Assim funcionam as narrativas: “Um homem seguia sozinho a grande estrada que
vai de Marchiennes a Montsou”, “Diante dele, ele não via nem mesmo o chão preto,” “o homem
partira de”, “esse homem”, “ele”, “ele se chamava Étienne”, “Étienne”, “Nosso herói”, etc. Notemos
ainda que as isotopias são construídas pela competência discursiva do leitor, que preenche as elipses
predicativas: o homem do muro começou sua descida, ele se encontra no meio, ele chega embaixo,
ele se põe a correr... O texto não dá essas informações, mas o leitor as restitui.
Tal representação figurativa se assenta na seleção, entre as numerosas virtualidades
semânticas de cada unidade lexical, dos elementos de sentido compatíveis com seu entorno
imediato, a fim de formar isotopias. Ela é também naturalmente determinada por uma certa maneira
de “discursivizar”: nesse caso, o sujeito da enunciação* escolheu uma seqüência de frases nominais.
Procedendo de maneira completamente diversa, ele poderia ter contado a mesma história
escolhendo outras formas de frases, adotando o ponto de vista do homem preso ao lençol ou o do

23
Os asteriscos remetem às noções definidas no glossário ao final da obra.
24 Cf. A . J. Greimas, Maupassant. La sémiotique du texte: exercices pratiques, Paris, Seuil, 1976, pp.
22 e 28.
11

lençol, e não um ponto de vista exterior, delegando a um outro seu relato retrospectivo e não “ao
vivo”, escrevendo-a como um relatório de polícia, ou como um fait divers, ou como um sonho, ou
então desenvolvendo a interioridade do homem suspenso à sua corda (é o que fará, logo mais,
Stendhal)... Não importa, a leitura figurativa da significação do acontecimento teria permanecido
fundamentalmente a mesma.

1.2 Motivo

E todo intérprete, procedendo a uma primeira operação de abstração, reconhecerá que o


que está narrado, no trecho em pauta, pode ser condensado sob o termo “fuga”. Esse segundo
patamar de reconstrução do sentido também é falsamente evidente: um leitor ingênuo, vindo de
outro lugar e sem a competência cultural {requerida}, poderia reconstituir a cadeia figurativa e
concluir, entretanto, que essa gestualidade do homem tem outras funções: talvez ele vá a um
encontro, ou faça escalada ou esteja dirigindo-se à padaria... Assim, mais geral e mais abstrato do
que o precedente, porque confere ao sentido uma meta e está aberto a um maior número de
potencialidades semânticas, esse nível de leitura é denominado temático *, e já consiste em dar
sentido ao sentido.
Reconhecido e isolado como tal, esse nível temático (nesse caso, “fuga”) pode receber
múltiplas realizações figurativas diferentes quando ocorre a discursivização e dar origem a uma
infinidade de textos. Ele se apresenta, pois, como um “motivo”, isto é, uma seqüência narrativa
mais ou menos cristalizada, relativamente fechada em si mesma, parcialmente autônoma,
reconhecível pela estabilidade de sua estrutura e pela variabilidade das manifestações figurativas que
ela possibilita. A significação do motivo “fuga” se presta, desse modo, a uma grande diversidade de
narrativas possíveis cujo herói poderia, certamente, ser um prisioneiro ou um Fabrício Del Dongo,
mas também um leitor, um turista ou um sonhador.

1.3 Esquema

Se examinamos mais de perto esse motivo da fuga, como por um efeito de {zoom},
percebemos que sua significação, apreendida em um nível de generalidade mais elevado, não pode
ser separada da cadeia de pressuposições e conseqüências que determina o seu sentido e no qual ele
se insere como um momento particular. Assim, a fuga pressupõe uma sanção preliminar, ela própria
decomponível em subunidades que podemos reconstituir de trás para diante, tais como o
aprisionamento, a condenação, o julgamento, a instrução, seqüência global em que o sujeito é
submetido ao veredicto de um outro sujeito que tem autoridade sobre ele. A sanção, por sua vez,
pressupõe a realização de uma ação, provavelmente transgressiva ou, em todo caso, assim julgada,
em relação a um universo de valores e a normas estabelecidas no meio social. A ação do sujeito*
pressupõe, por sua vez, uma certa competência que lhe permitia agir como ele o fez, e essa
competência pressupõe, enfim, um contrato preliminar, explícito ou não, entre o sujeito, então
virtual, e uma instância (uma personagem, uma instituição, uma sociedade, etc.) que promove,
assume e garante o universo dos valores de referência, em função dos quais o contrato é
estabelecido e a ação avaliada: a semiótica narrativa nomeia essa instância o Destinador * (inicial
quando ele delega um fazer, final quando sanciona.)
Essa cadeia de pressuposições lógicas, no caso particular da “fuga”, permite dar conta
facilmente do contexto extenso que é constitutivo de sua significação. Ela pode também ser lida no
sentido inverso, na ordem das sucessões, partindo do contrato e indo em direção à sanção. O
encadeamento comanda, então, a previsibilidade discursiva e se apresenta, de maneira mais geral,
12

como um vasto esquema cristalizado pelo uso cultural, conhecido sob o nome de esquema narrativo
canônico * com suas quatro seqüências-tipo:

1- A seqüência da manipulação e do contrato primeiramente, em que o Destinador leva um


sujeito a crer, ou não crer, nos valores inscritos nos objetos: ele é a garantia desses
valores e em seu nome ele investe o sujeito de um mandato para realizar a ação e
realizar-se por meio dela.

2- A seqüência da competência em que o sujeito adquire o desejo, a convicção, o dever, o


saber e o poder necessários para agir, em conformidade ou em ruptura com os valores.

3- A seqüência da ação propriamente dita, a da performance, em que o sujeito realiza, ou


não realiza, ou realiza ao contrário, a ação, tendo em vista os valores de referência.

4- A seqüência, por fim, da sanção, a do retorno do Destinador, em que este reconhece,


avalia, recompensa ou pune o autor das ações realizadas.

Tal esquema se apresenta como um modelo narrativo estereotipado. Ele organiza,


freqüentemente, entre inúmeros outros exemplos, as séries televisivas americanas e permite ao
espectador reconstituir o conjunto da narrativa em qualquer momento em que ele entre na história.
Amplamente transcultural, não tem, contudo, o estatuto de um universal narrativo. Considera-se,
isso sim, que ele resulta da práxis enunciativa de comunidades lingüísticas e culturais que o
cristalizaram pelo uso como um “primitivo”, sempre disponível e convocável para engendrar ou
interpretar a organização e a finalização dos percursos narrativos. Como tal, ele aflora em sua
globalidade, e é convocado pelo leitor, quando se dá a interpretação semântica do motivo da fuga e
da rede figurativa que o formou. Ele conduz então a um novo nível de análise, chamado
semionarrativo.

1.4 Actantes

Esse nível se precisa quando examinamos mais de perto, em um novo {zoom}, a estrutura
sintáxica subjacente à própria fuga. Pode-se, com efeito, interpretá-la nos termos de uma gramática
elementar. A sintaxe, em lingüística, estuda, como se sabe, as regras de combinação no interior da
frase; a semiótica narrativa, por sua vez, mostra que existem organizações sintagmáticas mais vastas,
transfrasais, que também respondem na escala das seqüências, a regras precisas de ordenação
sintáxica. Seu objeto não é a frase, mas o discurso. Ela postula, pois, a existência de uma sintaxe
discursiva.
Essa sintaxe formal, ainda mais depurada e abstrata, permite dar conta das articulações
internas a cada uma das quatro seqüências do esquema canônico. A fuga, pois, confronta dois
actantes, um sujeito e um objeto: o condenado, de um lado; a liberdade, de outro. O sujeito está, no
princípio, privado de seu objeto, está disjunto dele, é seu estado inicial. Seu programa*, que é um
programa de aquisição, consiste em passar da disjunção à conjunção; ele vai assim transformar o
estado de sua relação com o objeto-valor. Estamos agora no núcleo da sintaxe narrativa: sua
dinâmica própria se assenta na transformação da relação entre dois actantes.
Todavia o estatuto do actante-sujeito tem de ser analisado mais em pormenor; ele resulta,
com efeito, de uma certa composição modal* evolutiva que determina, a cada instante do percurso no
qual está empenhado, sua identidade de sujeito que age, mas também de sujeito que sofre ( “o
medo”). Essas modalidades especificam, reciprocamente, as relações do sujeito com os outros
actantes da cena narrativa. Assim, nosso sujeito da fuga, pendurado em seus lençóis ao longo da
muralha, está modalizado pelo querer-fazer, seu ardente desejo de escapar: está modalizado também
13

por um poder-fazer, cuja carga modal se manifesta na superfície do discurso pelos objetos figurativos
(os lençóis amarrados, a lima que permitiu serrar a barra, etc.) e, obviamente, por outras
modalidades, sobretudo de ordem cognitiva, que o texto não manifesta.
Quanto ao objeto, a “liberdade” construída como um valor na narrativa da fuga, é, por sua
vez, modalizado pelo “desejável”, isto é, no jargão modal, como um “poder-ser-querido”: o traço
dessa modalidade do “poder-ser” está claramente presente em português nos sufixos em -ável e em -
ível (cf. odiável, exigível, temível, inteligível, etc.).
Outros actantes se delineiam ainda no horizonte do sentido para o sujeito, e particularmente
o Destinador, com suas figuras delegadas (juiz, policial, guarda de prisão, etc.) cujo estatuto e
percurso poderiam ser igualmente analisados em termos de estruturas modais: o Destinador é, no
mínimo, dotado do saber (porque ele delega o poder de agir) e do poder (porque ele sanciona). Sua
presença protetora, injuntiva ou ameaçadora faz surgir um percurso de uma outra ordem, o do
“fazer crer”, do “fazer-querer”, do “fazer saber”, e finalmente do “fazer fazer ou não fazer”. Ou do
“meter medo”! A narrativa pragmática do sujeito que age vem acompanhada, com efeito, de uma
outra matéria narrativa. É a do relato emocional, que pode ser interpretada também em nível
actancial, como um percurso modal: suas fases de tensão e de distensão, “apreensão”- “medo” –
“alívio”, nos conduzem a essa semiótica da fobia, evocada por Greimas25, simétrica e paralela à
semiótica “fílica” do desejo e da ação realizada. A análise dessas estruturas “patêmicas” é objeto da
semiótica das paixões*.

1.5 Categorias

Mais profundamente ainda, no nível das estruturas denominadas elementares, o semioticista


analisará a definição desse valor-para-o-sujeito que a “liberdade” representa, ocultada sob a trama
figurativa e narrativa. Esse valor axiológico, erigido em actante-objeto, em nossa narrativa, pode
aparecer como meta de um “projeto de vida” individual ou coletivo: ele finaliza o percurso
narrativo.
Ele não poderia, de um ponto de vista semântico, existir por si mesmo de maneira
autônoma. A /liberdade/ só pode ser definida e determinada por sua posição em uma rede
diferencial de significação: ela surge de sua negação; é sua privação que a transforma em valor e
objeto visado. É assim que sua identidade semântica se insere em uma estrutura elementar
conhecida sob o nome de quadrado semiótico*. Nessa perspectiva, a noção de liberdade pode ser
simplesmente parafraseada sob a forma modal do /poder-fazer/. E a possibilidade de sua asserção
está na dependência de sua negação, ao modo da contradição: “a impotência” do /não-poder-
fazer/. A negatividade aparece propriamente como a mola fundadora, afirmativa da positividade: ela
condiciona a afirmação do termo positivo; não há noção de liberdade sem a de seu impedimento.
Essa posição negativa implica, como sua complementar, a da “independência”, que consiste em
/poder-não-fazer/, cujo valor contraditório será enfim o da “obediência”, parafraseada, em boa
lógica de asserção e de negação, por um /não-poder-não-fazer/. As regras de construção do
quadrado semiótico e os problemas que ele cria serão explicitados mais tarde, mas podemos, desde
já, ver que o percurso elementar da fuga, a despeito de suas complicações possíveis e quaisquer que
sejam as diferentes variações modais, sintáxicas, enunciativas e figurativas que a produzirão em
discurso, obtém sua invariância profunda dessa troca de posição no quadrado, que conduz da
impotência à liberdade, como da angústia ao alívio

25 A. J. Greimas, “Avant-propos” à J. Fontanille. “Les passions de l’asthme”. Nouveaux actes


sémiotiques, Limoges, PULIM, 1989, p. V.
14

poder fazer poder não fazer


liberdade independência

não poder não fazer não poder fazer


obediência impotência

2. Síntese e perspectivas
Identificamos, dessa maneira, o arcabouço semiótico dessa breve cadeia figurativa enunciada
no início do capítulo, compreendida e interpretada como uma “fuga”. O percurso
{circunstanciado} de análise que acabamos de comentar se apresenta como uma hierarquia (as
diferentes “tomadas em {zoom}”): ele vai da superfície manifestada do texto a suas formas de
organização profundas, vai do mais particular ao mais geral, do mais concreto ao mais abstrato. Se o
observamos, ao contrário, partindo das estruturas elementares e profundas, isto é, indo do mais
simples (do que é mais elementar) ao mais complexo (a diversidade das formas manifestadas na
superfície), poderemos dizer que, enriquecendo-se progressivamente de nível em nível, ele propõe
uma simulação da geração do sentido: é por essa razão que é denominado “percurso gerativo”.
É claro que as expressões “nível superficial” e “ nível profundo” não comportam, nesse caso,
nenhum juízo de valor, contrariamente às mesmas expressões, quando são às vezes utilizadas na
análise literária em que a “significação profunda”, herdeira de uma longa tradição hermenêutica,
supostamente revelaria um sentido guardado no segredo do texto, e por isso implicitamente julgado
mais essencial. Essa estratificação considera simplesmente a significação por meio de um folheado,
como a massa do mesmo nome ou as camadas geológicas, ainda que essas metáforas sejam
enganosas: não se trata de uma simples superposição cumulativa, mas antes, como se tentou
mostrar, de uma rede hierarquizada de dependências em que cada um dos níveis mais profundos
converte seus dados semânticos e sintáxicos, articulando-os e especificando-os no momento de sua
passagem ao grau superior. Os procedimentos de conversão de um nível a outro estiveram, durante
muito tempo, no centro da modelização semiótica do discurso. Presumia-se que o dispositivo do
percurso gerativo, formulado em caráter de hipótese metodológica por Greimas nos fins dos anos
1970, condensava a economia global da teoria semiótica. Em um quadro simplificado, teríamos:

Percurso gerativo da significação

Estruturas discursivas isotopias figurativas (espaço, tempo, atores)


isotopias temáticas

Estruturas semionarrativas esquema narrativo (contrato, competência, ação, sanção)


sintaxe actancial (sujeito, objeto, destinador, anti- sujeito;
programas narrativos; percursos narrativos)
estruturas modais (querer, dever, saber, poder-fazer ou ser e
suas negações)

Estruturas profundas semântica e sintaxe elementares (quadrado semiótico)


15

Cada um dos níveis desse percurso é, na realidade, uma janela aberta para um conjunto de
problemáticas que, separadamente, foram objeto de inúmeras investigações entre os semioticistas.
O próprio modelo geral é discutido, principalmente em razão do caráter “totalizante” que parece
impor. Teremos oportunidade, ao longo das análises, de evocar os problemas que ele traz. Vamos
adotá-lo, por ora, em virtude de seu caráter pedagógico. Sua elaboração e sua estruturação,
independentes da forma de expressão das linguagens, confirmam o postulado da unicidade dos
fenômenos de significação. Referimo-nos anteriormente a algumas variações possíveis do motivo da
fuga, todas situadas no plano do conteúdo. Mas é preciso acrescentar-lhes, evidentemente, as
variações de linguagem, verbal e não verbal (visual, gestual e, por que não, musical), suscetíveis de
conduzir à manifestação essa mesma estrutura folheada de significação. Quaisquer que sejam essas
linguagens, um amplo leque de escolhas enunciativas determina sua operacionalização: escolha de
perspectiva (sobretudo em função da estrutura polêmica que permite ordenar a narração, conforme,
por exemplo, a perspectiva do fugitivo ou a do policial), escolha de focalização e de ponto de vista
(segundo a posição adotada pelo narrador e o lugar do observador), escolha dos dispositivos de
ocultação, condensação ou expansão que, pela própria textualização, determinarão entre outras
coisas as formas e os gêneros de discurso. Tudo isso são decisões e estratégias que se prendem à
enunciação e a seu sujeito. Podemos, então, considerar que o percurso gerativo, subjacente ao
conjunto dessas operações, mostra, em seu esquema de conjunto, os materiais que a enunciação
mobiliza para se realizar e que ele constitui, por isso mesmo, um modelo enunciativo.
Seja como for, as entradas desse percurso formam, em cada um dos níveis de estruturação,
outros tantos centros de questionamentos para os textos que submeteremos à análise. Elas devem,
assim, ser compreendidas como “títulos de problemas”e não como um crivo ad hoc, aplicável
mecanicamente à análise de todo e qualquer texto. Propomo-nos, portanto, a examinar mais de
perto, no capítulo seguinte, como as coisas se dão com um texto reconhecido agora como
“literário”, bem distante, em todo caso, do motivo estereotipado: a fuga de Fabrício Del Dongo de
A Cartuxa de Parma, no romance de Stendhal. Será que o modelo resistirá? Como utilizar os
instrumentos que ele propõe? Terão eles um valor explicativo? Melhorarão a compreensão?

Síntese

MANUAL DE SEMIÓTICA
16

A semiótica apresenta modelos para a análise da significação, para além da palavra, para
além da frase, na dimensão do discurso que lhe é inerente.
Seu procedimento clássico propõe articular a apreensão do sentido segundo um percurso
estratificado em camadas relativamente homogêneas, indo das formas concretas e particulares,
manifestadas na superfície do texto, às formas mais abstratas e gerais subjacentes, dispostas em
múltiplos níveis de profundidade. Ela mostra, assim, como os percursos de significação se
organizam e se combinam, em razão de regras sintáxicas e semânticas que fundamentam, em
segredo, a sua coerência. Inversamente, partindo das estruturas profundas para as estruturas de
superfície, ela simula a “geração” da significação.
Esse “percurso gerativo” distingue, desse modo, as estruturas profundas (os valores
inscritos no quadrado semiótico) e semionarrativas (com os dispositivos modais, a sintaxe
actancial e o esquema narrativo) das estruturas discursivas que as “discursivizam”, por
intermédio da enunciação (aparecem, então, as tematizações que se investem ou não em
isotopias figurativas, produzindo as figuras do espaço, do tempo e dos atores ..., as imagens do
mundo). Os diferentes níveis estruturais se convertem uns nos outros, da profundidade à
superfície, segundo um percurso de enriquecimento e complexificação: é realmente a superfície
do texto que é a mais complexa.
Esse percurso é uma construção teórica ideal, independente das linguagens, das línguas ou
dos textos que a investem, ao se manifestar. Ele não constitui uma grade metodológica
aplicável tal e qual, mas permite localizar os espaços de formação de um sentido comunicável e
partilhável.
17

Capítulo 2
A resistência do texto

A fuga de Fabrício

Finalmente, atou a corda que conseguira desemaranhar numa abertura feita no parapeito pelo
vazar das águas; subiu para o dito parapeito e invocou Deus com fervor; depois, como um
herói dos tempos da cavalaria, pensou um pouso em Clélia. Quanto estou diferente,
ponderou, do Fabrício volúvel e libertino que entrou aqui há nove meses! Por fim principiou a
descer daquela assombrosa altura. Declarou que agia mecanicamente, como se estivesse
descendo em pleno dia, diante de amigos, para ganhar uma aposta. No meio do trajeto, sentiu
de repente que seus braços perdiam a força; acredita ter soltado a corda um instante, tornando
logo a agarrá-la; talvez o retivessem os espinheiros por sobre os quais escorregava e que o
arranhavam. Sentia de vez em quando uma dor atroz entre as espáduas e que quase lhe tirava a
respiração. A corda fazia um movimento ondulatório muito incômodo enviando-o sem cessar
de encontro aos espinhos. Roçou em diversos pássaros muito grandes que acordavam e que se
jogavam sobre ele, batendo as asas. Nas primeiras vezes se supôs alcançado por pessoas
descendo da cidadela pela mesma via que ele, para persegui-lo, e tratou de prepara-se para
defender-se. Chegou afinal à parte inferior da torre grande, com o único inconveniente de ter
as mãos ensangüentadas.
(Stendhal. A Cartuxa de Parma (1839). Livro segundo, cap. XXII, São
Paulo, Difusão Européia do Livro, 1961, p.144-145. Tradução de
José Geraldo Vieira)

1.Preliminares

Antes de pôr à prova a eficácia descritiva dos instrumentos semióticos neste texto célebre,
faremos duas observações preliminares, primeiramente no que concerne à crítica do modelo
teórico e, em seguida, ao problema das análises concretas de textos.
Em um artigo intitulado “Et maintenant?”26, o semioticista suíço J. Geninasca
interroga-se sobre a herança teórica de A. J. Greimas (morto em 1992), particularmente sobre
o modelo geral de análise que ele instaurou e do qual percorremos as grandes linhas.
{Ansiando} por uma história dos conceitos da vulgata semiótica, Geninasca sublinha as
contradições internas, as mudanças de direção e as revisões inevitáveis que marcaram o
itinerário da pesquisa; criticando a idéia de uma teoria consumada, tenciona fazer aparecer a
bricolagem conceitual greimasiana 27 como um dispositivo sempre aberto à criação cujos
resultados teriam sido depois reordenados para apresentar de súbito a semiótica como uma
ciência constituída no Dicionário de semiótica. Assim põe particularmente em questão os dois
modelos que estão no cerne da semiótica “padrão”: o percurso gerativo da teoria e o quadrado
semiótico. Afirma, por um lado, que “o percurso gerativo é um modelo desprovido de

26 In “A.J. Greimas et la semiotica”, Documenti di lavoro e pre-pubblicazioni. Università di Urbino (Italia), serie A, 230-
231-232, 1994, pp. 1-15.
27 Na acepção consagrada da palavra “bricolagem” por Cl. Lévi-Strauss, que a aplica ao funcionamente do

pensamento mítico. Os conceitos greimasianos tais como isotopia, timismo e outros, são importados de outras
disciplinas para serem redefinidos no contexto semiótico. Como os materiais usados de que se serve o bricolador
para fabricar um objeto novo, eles conservam traços de sua função primeira que vêm inflectir e enriquecer, de
maneira às vezes inesperada, o trabalho de criação.
18

qualquer valor operatório” (p.10) e, por outro, que não se poderia pôr a inteligibilidade e a
significação dos objetos textuais “sob a dependência de uma estrutura de significação prévia a
toda manifestação” (p.12), fazendo, desse modo, alusão ao quadrado semiótico. Teremos
ocasião de retomar essas críticas de fundo: elas concernem à economia geral da análise e às
relações que os modelos descritivos mantêm com a própria atividade enunciativa.
Mais especificamente, contudo, uma das observações de J. Geninasca é dirigida aos
objetos textuais a que a semiótica se aplica. Ele considera que a semiótica “deve poder dar
conta da variedade de tipos de discursos e, no interior deles, da especificidade dos discursos
singulares, ao menos daqueles que, não reproduzindo o já visto, o já ouvido e o já sabido,
escapam - como os discursos literários – à esfera do lugar comum.” (p. 12). É bem essa nossa
preocupação aqui, já que propomos submeter os modelos de análise, aplicados em um
primeiro momento a um objeto pertencente a essa esfera (o estereótipo narrativo da fuga), a
um outro objeto que não é da mesma esfera, ou que pelo menos a transforma e a transtorna.
Assim procedendo, o trabalho de análise que vamos executar pode ser aproximado da
tradicional “explication de textes”, antes de ser dela diferenciado. Greimas, em um artigo
intitulado “Transmission et comunication”28, definia, em 1969, esse exercício da seguinte
maneira: “Explicitação parcial das estruturas profundas [...]; desmitificação que consiste em
reduzir o nível figurativo do texto a seu nível conceitual”. Muitas questões decorrem dessa
proposição definicional: os estratos do percurso gerativo correspondem a esse programa? A
“desmitificação” convida a uma mudança radical no modo de adesão do leitor àquilo que lê?
Ao desmontar uma ilusão, uma crença errônea, será que ela sugere uma outra ordem de
crença, mais “verdadeira”? As “estruturas profundas” podem ser compreendidas como
isotopias axiológicas*? Tratar-se-ia, por conseguinte, no texto de Stendhal como no
estereótipo, da oposição /impotência vs liberdade/? Da oposição /vida vs morte/?
Diante de uma realidade textual muito mais complexa, não poderíamos formular a
priori a hipótese de que uma estrutura elementar – única – ordena em profundidade o jogo das
significações. A redução a uma estrutura desse tipo parece de imediato inadequada. Na
realidade, a exigência da análise concreta implica a primazia do discurso que impõe sua voz. É
ele que desencadeia em seu rasto a formulação de uma problemática. Será preciso então aqui,
por exemplo, levar-se em conta a multiplicidade das isotopias figurativas que se cruzam assim
como as posições e as funções variáveis do sujeito do discurso. As questões que essa realidade
textual traz à tona nos conduzirão passo a passo a extrair alguns traços próprios à poética
stendhaliana e a análise poderá apontar mais amplamente a identificação de um “estilo”
Stendhal. Entenderemos por isso, não só uma forma específica de escritura, mas um arranjo
complexo de valores que emanam dos diferentes níveis e percursos de análise, tanto no plano
do andamento e da aspectualidade* quanto no dos valores semânticos e da organização
sintáxica. Poderemos assim questionar, a título de hipótese, se os percursos de significação que
dão forma à imagem global do ator “Fabrício”, apreensíveis a partir desse pequeno excerto,
não seriam a expressão de uma “forma de vida” fundada na resolução da oposição entre o
“desprendimento” e o “engajamento”.
Mas essa perspectiva, enunciada dessa forma, é muito geral. O
“texto” é, com efeito, aquilo que a leitura atualiza e o que a análise constrói.
Contra a ilusão de uma explicação que esgotaria as significações (como sugeria a
instituição francesa da “explication de textes”), consideraremos que a análise
seleciona suas isotopias de leitura e apenas retém o que é suscetível de

28L´Enseignement de la littérature. Actes du Colloque de Cerisy, 1969. Bruxelles-Paris. De Boeck-Duculot, 1981,


p.30.
19

estabelecer-lhe a pertinência. Ela deixa de lado as dimensões que considera


“como não pertinentes para a descrição visada”29. É por isso que somente
examinaremos aqui, através de algumas pistas de análise, como se constrói a
figura complexa do ator “Fabrício” por meio dos percursos semânticos da fuga.

2. A dimensão enunciativa: o sujeito pluralizado

Depois da leitura dessa passagem de A Cartuxa de Parma, poderíamos nos


perguntar primeiramente o que resta do motivo da fuga, nos diferentes níveis
que antes distinguimos para identificá-lo: nível discursivo (figurativo e temático),
nível sêmionarrativo (actancial e modal), nível profundo (axiológico). Está claro
que se, por um lado, podemos mobilizar esses diversos instrumentos, como os
de uma gramática, para descrever o conteúdo desse texto, por outro, não
poderíamos aplicar mecanicamente seu modelo geral sem simplificar
exageradamente as significações particulares, reduzi-las a um esqueleto, e, assim
fazendo, perder aquilo que constitui sua complexidade singular. Tudo se passa
aqui, de fato, como se houvesse superposição e entrelaçamento de diferentes
códigos possíveis de leitura.
Esse fenômeno parece-nos ligado antes de tudo à extraordinária “mise en scène” da
atividade enunciativa e de seu sujeito. Enquanto no motivo antes estudado, nenhuma marca
manifestava a presença do sujeito enunciador (efeito de frases nominais) e o ator (o homem)
era reduzido ao simples encadeamento de suas ações, aqui, ao contrário, os dois grandes
modos de presença do sujeito, no nível da enunciação e no interior do enunciado, estão de
ponta a ponta manifestados. Em ambos os casos, o ator Fabrício é incontestavelmente o
“centro de perspectiva”. A marca pessoal “il” em posição de sujeito da oração aparece assim
vinte e duas vezes! 30Ora, sob a unidade de superfície que o nome próprio e o pronome
anafórico condensam, suas funções e seus estatutos são, na realidade, extremamente diversos.
Podemos dizer que a característica primeira do texto é a pluralização de papéis do sujeito e sua
instabilidade.
Do ponto de vista da enunciação em ato, Fabrício é ao mesmo tempo o sujeito
explicitamente localizado da fala e o sujeito incerto de um discurso indireto livre. Sujeito da
enunciação simulada ele ocupa o lugar do narrador. É ele essencialmente que assume a
narração e seu relato de fuga é uma narrativa na narrativa. Podemos assim compreender que
ele rege por completo a sucessão dos enunciados. E o modo paratático, escandido dessa
sucessão, configura-o indiretamente: o andamento acelerado de sua enunciação poderá ser
colocado em relação com o “fôlego”, a respiração cortada. Mas quando o olhamos de perto, o
discurso direto é raro (um único enunciado em primeira pessoa) e ele se funde literalmente em
um discurso indireto livre que ocupa o essencial do texto. Tão livre e tão destacado de seu
enraizamento enunciativo que fica então embaralhado, às vezes de maneira indiscernível, com
o discurso do narrador efetivo que se imprime sobre o dele próprio. Esse narrador aparece
explicitamente por meio dos enunciados que assume: “disse ele”, “ele disse a si mesmo,” mas

29 Cf. A.J. Greimas, Semântica estrutural. São Paulo, Cultrix, 1976 {pp.147-148, edição portuguesa?}, e Semiótica.
Dicionário..., op.cit., entrada “pertinência”, pp.334-335.
30 [N. dos T.] Na tradução utilizada, é sobretudo a desinência verbal que manifesta esta marca de 3. ª pessoa.
20

é freqüentemente impossível identificar com segurança a que instância devemos atribuir o


conjunto dos enunciados narrativos: o narrador? Fabrício? Ambos?
No interior do discurso-enunciado, Fabrício é o ator central,
quase exclusivo, da narrativa. Ora, aí também, ele ocupa simultaneamente
inúmeras posições distintas. É, ao mesmo tempo, sujeito pragmático*, sujeito
cognitivo* e sujeito passional, desenvolvendo por meio dessas três identidades
percursos narrativos que parecem quase estranhos uns aos outros. Sujeito do
fazer, encarna a figura robusta do herói que se constrói resolutamente na ação.
Sujeito do conhecimento, mobiliza um saber cultural (“como um herói dos
tempos da cavalaria”) e se instala, à boa distância, como o observador de seu
próprio fazer. Destacado da ação, flutuando na incerteza, interroga-se sobre sua
identidade, avalia e interpreta suas percepções. Sujeito sensível e passional enfim,
ele experimenta alternativamente dor, alegria, indiferença, esses múltiplos efeitos
de sentido que são da ordem do patêmico no momento mesmo em que está
mergulhado no cerne do agir .
Dotado dessas diferentes facetas identitárias, “Fabrício” aparece,
pois, como uma figura complexa e instável. Ele está, poderíamos dizer, em
estado de transformação contínua, como atesta esse enunciado em primeira
pessoa: “como eu estou diferente do Fabrício leviano e libertino que entrou aqui
há nove meses!” Sujeito engajado no discurso e na ação, ele aparece ao mesmo
tempo desprendido desse discurso (os efeitos de distanciamento e de ironia) e
dessa ação (ele sofre a ação tanto quanto age). Os entrelaçamentos dessas
diversas figuras e desses diversos percursos permitem inferir a pluralização do
sujeito, constituindo-o como inúmeras identidades parciais. A essa instabilização
corresponde a do enunciatário: o leitor é convidado, ao ler, a partilhar a
multiplicidade de pontos de vista e a diversificar suas próprias perspectivas. Mas
é suficiente levar em consideração, neste momento, a multiplicação dos modos
de presença e a instabilização das posições-sujeito, plano de pertinência que
adotamos para esta análise.
A fim de compreender essas identidades parciais, veremos separadamente o percurso
particular que cada uma delas desenvolve. Assim, distinguiremos o percurso pragmático, o da
fuga da prisão, do percurso passional, o da fuga de si mesmo, e do percurso que poderíamos
chamar analógico, o que aciona, pelo viés das próprias estruturas figurativas, o nascimento de
um outro sujeito.
Cada um desses itinerários de sentido é suscetível, como veremos, de mobilizar
diferentemente o conjunto dos níveis da análise semiótica, dando origem, cada vez, a uma
significação particular. Cada um, no entanto, liga-se prioritariamente a um ou a outro desses
níveis: o percurso pragmático focaliza sobretudo a dimensão do “fazer” e suas
transformações, o percurso passional destaca a dimensão do “ser” e as modulações do estado
do sujeito, o percurso analógico enfim depende essencialmente da dimensão figurativa,
organizando aberturas sobre novas isotopias. Assim, no lugar de uma análise gerativa,
propomos aqui uma análise modular, já que a geratividade semiótica se investe de maneira
variável em cada um dos conjuntos significantes que pudemos extrair a partir do dispositivo
da enunciação.
21

3. O percurso pragmático do sujeito: fuga da prisão

Por si mesmo, esse percurso permite justificar a escolha da passagem: ele a


institui como uma unidade textual relativamente autônoma, um “todo de
significação”. Claro que essa totalidade é somente discursiva, contida por
diferentes elementos que permitem estabelecer a delimitação do texto. Sabemos
de fato que a fuga da torre Farnèse se distribui no romance em diferentes
seqüências, correspondendo aos três muros que o herói deve descer
sucessivamente: o da torre, o da cidadela e enfim a muralha da fortaleza. Esse
fenômeno de “triplicação da prova” é um processo de intensificação freqüente
nas narrativas etnoliterárias (mitos, contos): ele corresponde em geral a uma
gradação das dificuldades. No romance de Stendhal, somente a segunda
seqüência, a que estamos estudando, constitui objeto de uma expansão narrativa
e pode ser, por isso mesmo, estabelecida como uma unidade de leitura.
Reconhecemos essa delimitação do texto nos diferentes níveis de análise que
instalam o percurso pragmático do sujeito: a narrativa de uma fuga.
No nível figurativo, o conjunto do texto é articulado por uma
segmentação do espaço que distribui sucessivamente as categorias
alto/meio/baixo: “ele subiu para o dito parapeito”, “No meio do trajeto”,
“Chegou afinal à parte inferior da torre grande”. Essa clara segmentação do
percurso espacial que restitui a ordem do visível pode ser correlacionada às figuras
opostas da “neblina”, do embaralhamento e “dos espinheiros, espinhos” (duas
ocorrências no trecho), que instalam, contrastivamente, uma isotopia da não-
visibilidade. Na passagem que precede imediatamente nossa seqüência, pode-se ler
: “a neblina de que falamos começava a subir, e Fabrício disse que quando ele
estava sobre a plataforma a neblina parecia-lhe já ter chegado até a metade da
torre Farnèse. Mas essa neblina não era de modo nenhum espessa [...]”; da
mesma forma, a grande corda “embaralhou-se duas vezes; ele gastou muito
tempo para desembaraçá-la [...]” Assim, coexistem na disposição figurativa da
espacialidade duas ordens contraditórias do visível: o claro e o escuro, o discreto
e o embaralhado, o descontínuo e o contínuo. Somada a outras observações,
concernentes notadamente às variações da percepção que Fabrício tem do
universo que o circunda, essa oposição significante assumirá toda a sua
importância.
Uma constatação comparável pode ser feita a propósito da
temporalidade, ou mais precisamente, da aspectualidade, pois é o aspecto que
dirige o emprego das diversas formas temporais. O desenrolar discursivo
encadeia assim de maneira muito coerente as categorias aspectuais da
incoatividade, da duratividade e da terminatividade, que permitem temporalizar a
sucessão linear dos enunciados de estado e dos enunciados do fazer e, dessa
maneira, representá-los como um processo. Incoatividade: “principiou a descer”;
22

duratividade: “descendo”, “escorregava”, “de vez em quando”, “movimento


ondulatório”, “sem cessar”; terminatividade: “Chegou afinal”. Aí também,
podemos observar que a distribuição linear, orientada e descontínua das
categorias aspectuais, é desigual e embaralhada. A extensão considerável da
duratividade no texto merece especial exame: ela introduz um movimento de
variações contínuas no interior da descontinuidade dos enunciados de ação
(passagem do pretérito perfeito ao imperfeito, semas de continuidade:
“escorregar”, “movimento de ondulação”). Esse fato torna-se mais importante
na medida em que a temporalidade perde sua orientação finalizada (“de vez em
quando”, “sem cessar”): somos instalados em uma duração sem origem nem fim,
no meio da duração, em um tempo suspenso.
Uma análise mais detalhada da dimensão aspectual pode também
conduzir à interrogação sobre as três ocorrências de “finalmente, por fim, afinal”
na passagem: “Finalmente, atou a corda que conseguira desemaranhar” e “Por fim
principiou a descer”, por último, “Chegou afinal.” O valor terminativo dessas
marcas modifica sensivelmente a leitura linear de uma ação única. Combinando o
aspecto terminativo e o incoativo de processos entrecruzados, elas evidenciam
segmentos de ação que se encavalam e se sobrepõem, engendrando em última
análise um efeito de “precipitação”. Há, além disso, uma complexidade
suplementar: esses “enfim” podem estar vinculados ao desenvolvimento da
própria enunciação narrativa, à fala em ato de Fabrício, e não somente ao
enunciado das ações embaralhadas pela proximidade e colisão de categorias
opostas.
No nível semionarrativo, a coerência do conjunto do percurso
enfim se confirma. Reduzido a sua estrutura actancial e modal, o discurso revela
primeiramente a competência do sujeito de um fazer (saber fazer e poder fazer
implicados em “Finalmente, atou a corda que conseguira desemaranhar”) e, em
seguida, a própria performance (os predicados de ação e a sucessão de
programas narrativos, decomponíveis no mesmo número de provas). Além do
trecho examinado, a recepção nos braços da duquesa Sanseverina, “Ah! querida
amiga! depois ele desmaiou [...] profundamente”, marca o término do percurso, o
fim da prova, o reconhecimento final ou, na metalinguagem semiótica: a sanção
positiva. O conjunto dessas seqüências encadeadas apresenta-se, pois, como um
percurso de busca que, em si mesmo, pouco difere do estereótipo da fuga... E se
os diferentes parâmetros que nós analisamos garantem o fechamento da
seqüência, justificando a escolha do trecho como um segmento autônomo, é
porque eles a impõem como uma unidade narrativa. Nessa perspectiva, o
percurso de Fabrício é de fato pragmático, ou seja, de um “sujeito do fazer”. E
poderíamos parar aí se reduzíssemos esse percurso a um encadeamento de
programas de ação, com o mesmo número de unidades participando da
execução do projeto. Ora, esses programas são perturbados pelas variações do
23

sujeito cognitivo e pelas modulações do sujeito tímico* – o sujeito do “humor”.


É então que se desvela o que denominamos o percurso passional do sujeito.

4. O percurso passional: fuga de si mesmo

Uma frase atesta, em meio à passagem, o estranho intricamento do agir e


do sofrer: ”acredita ter soltado a corda um instante, tornando logo a agarrá-la“.
Espantoso! Eis que Fabrício parece se dividir em dois sujeitos distintos, um
cognitivo (crer), outro pragmático (soltar, depois retomar a corda), empenhados
em dois percursos independentes um do outro e mesmo contraditórios. Tudo se
passa como se o sujeito cognitivo (da incerteza) não tivesse mais domínio sobre
o percurso do sujeito pragmático (que age efetivamente): a ação se desenrola
independentemente dele. Essa observação nos permite reconhecer, num plano
teórico mais geral, a existência de dimensões estruturalmente autônomas no seio
do discurso narrativo: a dimensão pragmática, quando concerne à ação,
cognitiva, quando diz respeito ao saber, passional, enfim, quando se relaciona ao
“vivenciado” pelo sujeito. Dediquemo-nos agora a essa última dimensão.
Fato notável, a distribuição das séries verbais, ao longo do texto,
acompanha progressivamente a transformação do sujeito, quando, após ter sido
ativo, ele torna-se passivo. Podemos facilmente agrupar o conjunto das formas
verbais em três conjuntos: um primeiro, no início do texto, na voz ativa: “atou”,
“subiu”, “pensou”, “principiou a descer”, série concluída pelo verbo genérico:
“agia”. Um segundo conjunto, no fim do texto, na voz passiva, que o impessoal
inaugura “fazia (um movimento ondulatório)”: “enviando-o sem cessar de
encontro a”, “roçou”, “se supôs alcançado”, antes do predicado ativo do final:
“Chegou”. 31 E, entre os dois, um conjunto verbal semanticamente caracterizado
por verbos de sensação (“sentiu, sentia”, “que quase lhe tirava a respiração”), por
verbos de ação dos quais ele é objeto (“que o arranhavam”) ou caracterizados
pela perda de domínio do sujeito (“escorregava”) e enfim por uma modalização
do saber no modo da incerteza (“acredita”, ”talvez”).
Essa distribuição verbal sugere uma transformação progressiva, mas
profunda ao fio do texto, do estatuto da personagem: o sujeito ativo torna-se
sujeito apassivado, é agora a sombra de si mesmo. Não age mais, é acionado.
Ora, a passagem da ação desejada e controlada à ação permitida e sofrida realiza-
se pela mediação do sensível antes do apagamento sintáxico da pessoa-sujeito
(passamos da impessoalização – “fazia” – à passivização). Deixando-se investir

31[N. dos T.] No texto original, essa série de exemplos se inicia com a forma verbal impessoal: “Il
y avait (un mouvement d´ondulation)” [ Havia (um movimento ondulatório)], e o exemplos subseqüentes estão
na voz passiva: “il était renvoyé” [ele era enviado], “Il fut touché” [Ele foi tocado], “il crut être atteint” [ele
acreditou ser alcançado]. A tradução utilizada, no início deste capítulo, optou por outros recursos gramaticais.
24

pelo sentir e pelo vivenciar, Fabrício abandonou o controle de sua ação. Seu
percurso é agora “patêmico” 32*.
Paralelamente ao fazer, desenvolve-se então um percurso centrado
no ser do sujeito. Superpondo-se ao primeiro e substituindo-o pouco a pouco,
esse percurso inicia-se na mecanicidade dos gestos: a oração “agia
mecanicamente” constitui o primeiro indício do sujeito afastando-se de si
mesmo. Recorrendo à terminologia proposta por J.-Cl. Coquet, podemos dizer
que esse enunciado introduz Fabrício na classe dos não-sujeitos: ao contrário do
”actante investido pelos atos que cumpre (noção de sujeito)”, o não-sujeito é um
agente que se desliga de seu ato, que “é assimilado a sua função”, ou que “se
anula naquilo que tem a função de cumprir”, enfim o não-sujeito é aquele que
(só) sabe sua lição.33 É bem este o caso, Fabrício apaga-se, desaparece como
sujeito no automatismo de sua gesticulação. Acentuando mais tarde o hiato entre
o sujeito e seu fazer, os enunciados regidos pela voz passiva liberam totalmente
o percurso patêmico. O herói é então apenas uma placa sensível, sobre a qual se
imprimem as variações de seu ser: o fazer, como resultado de uma vontade e de
um domínio, desapareceu da cena do discurso.
Essa mudança de perspectiva, evidenciada pela transformação dos predicados verbais,
corresponde a uma transformação modal mais profunda que afeta a posição e o estatuto do
sujeito. O ser de que falamos aqui, não é, bem entendido, nem psicológico, nem ontológico,
ele é simplesmente predicativo. Em outros termos, as modalidades do fazer dão lugar às
modalidades de estado de agora em diante: a ação se passa sem que Fabrício a assuma, e o
discurso descreve a maneira pela qual os objetos do mundo determinam, moldam e modificam
os estados do sujeito: estados de “alma”, estados do “corpo sensível”. Vê-se claramente essa
modificação generalizada das modalidades: a passagem do ativo ao passivo implica primeiro
uma inversão da modalidade subjetiva por excelência: o /querer/ deixou a cena do discurso e
o agente tornou-se paciente. A modalização do /crer/ suplantou a do /saber/: remete-se o
universo figurativo à ignorância (o possível e o incerto do “acredita” e do “talvez”) e
finalmente à ilusão (o erro de interpretação perceptiva, próximo da alucinação, leva-o a tomar
os pássaros que ele desperta por perseguidores). O herói perde enfim a qualificação modal,
essencial para um sujeito de ação, a do /poder-fazer/ corporal, somático (ele se entrega, a dor
vai até “lhe tira [r] a respiração” ).
Como vemos, uma dinâmica de outra ordem vem duplicar, dominar e suplantar a do
sujeito que age: é o percurso patêmico paralelo. Fabrício parece inteiramente absorvido nas
variações de seu estado, são os objetos que o dominam e não o inverso, e a articulação do
mundo sensível é então feita de “ondulações”, de “deslizes”, de percepções embaralhadas ou
de ilusões figurativas. O mundo descontínuo, claramente discretizado e categorizado, da ação
deu lugar a um mundo contínuo, modulado, ondulante, sem orientação nem finalidade (cf. o
“de vez em quando”), submetido a variações de intensidade: é o mundo que caracteriza os
movimentos da alma. Fabrício literalmente se ausentou, enquanto sujeito, da ação que se
realiza por assim dizer a sua revelia e que se completa por si mesma no cumprimento do
resultado. Retomando o subtítulo do livro de A. J. Greimas e J. Fontanille, Semiótica das

32 Esse neologismo designa a isotopia semântica do pathos. O sufixo –êmico instala claramente o domínio
descritivo visado, o da análise semântica (trata-se aqui, no léxico da semântica estrutural, de um classema), e evita
qualquer confusão com uma acepção psicológica e referencial.
33 Cf. J.-Cl. Coquet. Le discours et son sujet. Paris, Klincksieck, t.1, 1984, p. 65.
25

paixões34, poderíamos dizer que a modulação dos “estados de alma” se desenvolve


paralelamente à transformação dos “estados de coisas”.
Esses estados de alma apresentam-se no texto como momentos
sucessivos, sem ligação entre eles ou mesmo um tanto contraditórios. Eles não
podem ser relacionados a uma configuração passional-tipo que organizaria o
conjunto: o medo, a ansiedade, o entusiasmo, a impaciência, etc. É assim que
sofrimento e euforia se associam, formando uma espécie de oxímoro sensível, e
que a intensidade da “dor atroz” se combina com a expressão atenuada de um
movimento simplesmente “incômodo” ou do ligeiro “inconveniente” de ter “as
mãos em sangue”. Acima de toda designação, o percurso patêmico fixa-se então
através de arranjos figurativos (os espinheiros, as espáduas, o movimento
ondulatório, os pássaros, os perseguidores) e a seqüência apenas seleciona as
impressões experimentadas, vindas das coisas fora da responsabilidade do
sujeito: daí o distanciamento do ator, entregue a essas impressões puras.
Fugindo, Fabrício foge de si mesmo. Tornou-se um sujeito ao
mesmo tempo pluralizado e indiferenciado, fundido aos objetos que definem a
cada instante seu estado, um sujeito cuja unidade apenas se reconstitui ao
término do percurso. Nesse sentido, a experiência da fuga torna-se a experiência
momentânea de uma fusão. Ela nos relata como em um sonho as intersecções
embaralhadas entre um sujeito, sua ação, e os objetos de sua percepção: por
meio de suas fases patêmicas e da irrupção de uma ordem da figuratividade que
não é mais a da representação mas sobretudo da incorporação do sensível, ela
transforma a narrativa da fuga em uma experiência estésica35; assim,
paralelamente ao percurso narrativo, o percurso passional se define. Fabrício, no
tempo suspenso de uma “cristalização”, recebe o mundo sensível com uma
espécie de abandono consentido. As figuras do mundo, as Gestalten, se
precipitam sobre ele, ele tornou-se sujeito de uma experiência sensorial quase
estética.
5. O percurso analógico: a emergência de um outro sujeito

A última parte de nossa análise concerne precisamente aos jogos de significação ligados à
figuratividade nesse texto. Esta ultrapassa de todas as maneiras, como nós dissemos, a simples
representação referencial. Ela exerce funções distintas, desenvolvendo seus percursos
analógicos em inúmeras direções diferentes, às quais o leitor-intérprete {anexa} sua
compreensão. Quaisquer que sejam os percursos em questão, eles remetem sempre à figura do
sujeito, a seu corpo que age e a seu “ser” que sente: a figuratividade não é então nem cenário,
nem ornamento, nem simples figuração do real, ela se insere precisamente numa relação
constitutiva com o ator que ela transforma. Ela ilustra, nas aberturas semânticas que sugere, a
diferença que permite identificar o novo Fabrício: “Quanto estou diferente, ponderou”...
Focalizaremos aqui – mas seria uma escolha de leitura? - dois percursos analógicos, um
relacionado à isotopia da natureza, outro à da cultura.

34 A.J. Greimas et J. Fontanille, Semiótica das paixões. Dos estados de coisas aos estados de alma. São Paulo, Ática, 1993.
35 Aptidão de perceber sensações “ (Petit Robert)
26

Em relação à isotopia da natureza, a fuga pode ser interpretada


como um relato de nascimento. Vimos com a análise do estereótipo que a
tematização é uma operação que consiste em reconhecer uma isotopia mais
abstrata, subjacente aos conteúdos figurativos cuja significação global ela
condensa e orienta. É fácil perceber no texto de Stendhal uma dupla tematização
da figuratividade que, fundada por uma série de identidades semânticas parciais,
estabelece duas isotopias paralelas: de um lado, uma fuga e de outro, um parto.
Não nos colocaremos a questão da relação entre as duas isotopias (de tipo
metafórico? simbólico? parabólico?), isso nos levaria muito longe. Digamos
somente que as duas isotopias estão ao mesmo tempo co-presentes e
hierarquizadas. A isotopia da fuga, tematização manifesta do conjunto da
configuração, rege a do parto e não o inverso.
Essa dupla isotopia é reconhecível no plano paradigmático, onde as
similitudes figurativas são suficientemente numerosas e suficientemente
sugestivas para serem correlacionadas entre si:

Fuga Parto
“nove meses”
“corda” cordão
“escoamento das águas” bolsa d’água
“torre volumosa”36 gravidez
“dor atroz”
“respiração entrecortada”
“mãos em sangue”

Ela é reconhecível também no plano sintagmático. Paralelamente


ao desenrolar da fuga, podemos facilmente ler, o das seqüências de um parto,
cuja disposição geral é confirmada, a montante e a jusante no romance, por
outras figuras. Anteriormente, a descrição minuciosa da cela de Fabrício é a de
um invólucro dentro de um invólucro. Essa criação pela qual “o general Fábio
Conti demostrava sua genealidade” é uma célula matricial: “Um conspirador
colocado num desses quartos [...] não podia ter comunicação com ninguém do
mundo, nem fazer um movimento sem que se ouvisse. O general mandara
colocar em cada quarto grandes toras de carvalho formando como que uns
bancos de três pés de altura. [...] Em cima desses mochos mandara montar uma

36 [N. dos T.}Em francês “grosse”, que contém, numa outra acepção, o sema grávida.
27

cabana feita de pranchas, muito sonora, com dez pés de altura, e que não tocava
as paredes a não ser do lado das janelas. Nos outros três lados havia um pequeno
corredor de quatro pés de largura, entre a parede primitiva da prisão, composta
de enormes pedras de talha, e as paredes de pranchas da cabana” (p.71).
Posteriormente, quando Fabrício desmaiado é recebido pela duquesa, ao pé da
terceira muralha, essa aparece como uma figura parturiente da mãe: ela
“apertava-o convulsivamente nos braços, depois ficou desesperada vendo-se
coberta de sangue: era das mãos de Fabrício” (p.147) Podemos então considerar
que um verdadeiro motivo do nascimento fica assim constituído.
Porém, uma tal assimilação simbólica da significação figurativa, cujo processo
semântico poder-se-ia analisar mais minuciosamente, apenas nos parece realizável em razão da
convergência das observações feitas até aqui, no percurso pragmático e passional, com a
hipótese analógica que, em torno do motivo do nascimento, reúne, condensa e tematiza suas
potencialidades. É, pois, a organização discursiva em seu conjunto, e não somente similitudes
semânticas contingentes em nível lexical, que assegura e reforça a coerência dessa leitura
interpretativa. O ser novo que surge é assim figurativamente confirmado pela dupla isotopia
de leitura, mas sua formação já se manifestara em outros momentos da análise: o andamento
acelerado da enunciação, o embaralhamento das categorias discretas do visível, a suspensão
aspectual do tempo, o apagamento do sujeito do fazer na passivação passional, eis as
condições para que se constitua um sujeito novo em um novo universo de sentido. A fuga é,
pois, uma “liberação”37, Fabrício se liberta de si mesmo (o Fabrício “volúvel e libertino”) e a
estada na prisão foi a gestação dessa liberação. É compreensível que ele tenha ficado tão feliz!
Mas um segundo percurso analógico, relacionado à isotopia da
cultura, se desenvolve paralelamente ao primeiro. Ele veicula {estratégias}
diferentes relacionadas desta vez à escritura sthendaliana. Ao nascimento, no
universo de valores naturais, corresponde a iniciação, no dos valores culturais. O
relato dentro do relato, que é a narração de Fabrício, se organiza claramente a
partir de um plano de referência narrativa que constitui seu modelo. O narrador
convoca em seu discurso o gênero original do romance, o romance de cavalaria,
que forma assim seu referente interno. É por meio da comparação que se instala
esse novo percurso analógico: “Depois, como um herói dos tempos de cavalaria,
pensou um pouco em Clélia.” Ora, esse imaginário narrativo e cultural
referencializado não aparece somente por meio da citação que associa a Fabrício
a figura típica, percevaliana, do romance de iniciação e de aprendizagem. A
intertextualidade é mais profundamente estrutural: é todo o esquema narrativo
do romance de cavalaria que se desenvolve com suas seqüências canônicas e suas
figurações emblemáticas.
Encontramos primeiramente o contrato inicial e a formação da competência do herói.
A vigília de prece do cavaleiro e o dom da prova à dama, esses dois motivos indissociáveis do
amor cortês, fixam o duplo registro, espiritual e amoroso, do contrato (“invocou Deus com
fervor”, “ pensou um pouco em Clélia” que se opõem respectivamente ao Fabrício “volúvel”,
para a axiologia espiritual, e “libertino”, para a axiologia amorosa). Desenvolve-se em seguida
a performance do herói em busca de aventura. Essa é iniciada, com a multiplicação das provas

37 [N. dos T.] Em francês “délivrance” que tem também a acepção de parto, nascimento.
28

que intensificam a dificuldade, equipadas com toda sua bagagem figurativa: a floresta escura e
impenetrável, os animais fantásticos, o encontro com o anti-sujeito. A narrativa conclui-se
com o reconhecimento final quando o cavaleiro, ferido e vitorioso, é acolhido e reconhecido
na corte (a duquesa). Ele narrará seus altos feitos.
Essa convocação do universo romanesco é evidentemente paródica.
A análise das marcas difusas da enunciação irônica permitiria dar conta dela:
basta, no âmbito desta análise, evocar o duplo jogo de envolvimento e
afastamento enunciativos que caracteriza em geral, como já observamos, a
pluralização do sujeito. Assumindo e deslocando ao mesmo tempo o centro de
responsabilidade do discurso, a ironia é um dos procedimentos característicos da
escritura stendhaliana. Ela desloca, multiplicando-a, a posição do sujeito
enunciador que alternativamente se engaja e se ausenta. Ela funda, na leitura, a
cumplicidade dos happy few que sabem, no jogo da linguagem, colocar-se à boa
distância dos códigos e valores. Não é menos verdade que aquém dessa ironia
singular, o esquema cultural do relato iniciático em plano de fundo “dá à luz”
Fabrício, igualmente como o fazia, para o universo de valores naturais, o
percurso figurativo do parto. A história da fuga pode ser assim compreendida
como a história de uma identidade, a de um ego que se constrói por meio de um
devaneio estético.
Para concluir esta análise, proporemos algumas observações de
ordem metodológica e “estilística”. O objetivo era primeiramente pôr à prova os
instrumentos de descrição semiótica cujo modelo padrão havia sido apresentado
por meio de um pequeno relato de fuga estereotipado. Logo tornou-se evidente
que o modelo em sua rigidez ideal era desprovido de “valor operatório”
(J.Geninasca), quando aplicado globalmente como um esquema para análise. O
texto, na realidade, dita sua lei. Mas buscamos mostrar, por um outro lado, que
as diferentes vias de leitura do trecho de Stendhal tais como as depreendemos
permitiam mobilizar, como “módulos” de análise ao mesmo tempo
relativamente autônomos e interagentes, a geratividade das significações nos
diferentes níveis de apreensão. É a convergência, construída pouco a pouco,
entre as conclusões provisórias de cada uma das análises que nos leva a expor o
eixo diretor de nossa leitura: a constituição do ego nascente de Fabrício por meio
do relato de sua fuga. São também esses diferentes “módulos” que vão constituir
as matérias sucessivas desta introdução à semiótica literária: a questão da
enunciação antes de mais nada, com as numerosas facetas de identidade que ela
destaca entre o discurso social e o discurso individual, depois a da figuratividade
cujos desafios já apareceram, em seguida, a problemática da narratividade cujas
estruturas sintáxicas regem os percursos dos actantes, e, por fim, a dimensão
passional que estuda os modos de sensibilização do sujeito.
Seria evidentemente excessivo pretender tirar conclusões, a partir
de um tão breve trecho, sobre a escrita ou o “estilo” de Stendhal. Entretanto,
algumas vias de reflexão possíveis se abrem: a prevalência da dimensão patêmica
29

sobre a dimensão pragmática, a enunciação plural entre o envolvimento do


discurso embreado e o afastamento do discurso distanciado, o elo entre os
efeitos figurativos e a percepção vivida pelo sujeito, o tempo suspenso de uma
duração “pura” que coincide com a de um devaneio. Todos esses aspectos
convergem para marcar uma singularidade, um estilo. Mas além de uma
concepção do estilo como forma original de escrita, podemos ver aqui mais
amplamente o estilo como expressão particular de uma forma de vida. A que
Fabrício encarna pelo conjunto de seus jogos de linguagem consistiria em se
afastar dos esquematismos do discurso social estereotipado para fazer emergir
um sujeito individual caracterizado pela “plenitude vivida do sentido”.38

Síntese
A RESISTÊNCIA DO TEXTO

A aplicação dos conceitos, modelos e procedimentos semióticos está submetida, particularmente no contexto da
criação literária, à singularidade irredutível do texto. A análise está a seu serviço: explicando-o mais, ela permite
compreendê-lo melhor (conforme as palavras de P. Ricoeur).
Os instrumentos semânticos e sintáxicos indicam diferentes problemáticas: são lugares de
questionamento da textualidade e de seus efeitos de sentido. O contraste entre um relato estereotipado,
produzido por uma enunciação impessoal facilmente submetida à modelização teórica (como um exemplo de
gramática), e uma narrativa literária, resultante de uma enunciação particular, convida a adaptar, para essa última,
as estratégias de análise. As diferentes dimensões do discurso: enunciativa, figurativa, narrativa, passional e
axiológica, nele, a cada vez, articulam-se de maneira específica.
A análise busca então as redes de significação que vão fundar seu plano de pertinência para
apreender, com a acuidade possível, o acontecimento de sentido que constitui o texto. Ela se organiza em
“módulos” que vão mobilizar, de maneira variável, o dispositivo metodológico. A contribuição de observações
efetuadas conforme essas diferentes dimensões (no caso: pragmática, passional e analógica) permite formular
hipóteses interpretativas sobre a especificidade de uma escritura. E não somente sobre as formas de escritura,
mas para além delas, sobre a singularidade dos valores que aí se formam, que instalam uma “visão de mundo”,
que ilustram nos jogos de linguagem uma proposta de “forma de vida” e que, em última análise, constituem um
“estilo”.

38 J.Geninasca. “Le régard esthétique”, Atas semióticas. Documentos, VI, 58. Paris, EHESS-CNRS, 1984, p. 27. O
estudo tem como objeto uma página de Stendhal extraída de Roma, Nápoles e Florença (1811).
30

Capítulo 3
A enunciação em semiótica

Où maintent? Quand maintenant?


Qui maintent? Sans me le demander.
Dites je. Sans le penser.
S. Beckett, L´Innommable (incipit)39

Se considerarmos, em traços gerais, a história da lingüística na França, poderemos nos


sentir tentados a classificar suas três grandes décadas por meio de três palavras-chave:
«estrutura» para os anos 1960-1970, «enunciação» para 1970-1980, «interação» para 1980-1990.
Os lingüistas do primeiro período vêem a linguagem pelas relações entre as formas que a
constituem, tanto na semântica como na morfossintaxe, independente do sujeito da fala: eles
destacam o sistema da língua e desenvolvem os procedimentos estruturais que permitem
objetivá-la e descrevê-la, segundo o modelo que garantira, a princípio, o sucesso da fonologia.
Os do segundo período, fazendo em parte o contrário do estruturalismo, destacam o exercício
da fala, dando prioridade ao sujeito falante e considerando que só se pode ver a linguagem
pela atividade enunciativa, já que é ela que determina, na verdade, o estatuto das formas
lingüísticas. Benveniste escreve:«Muitas noções na lingüística [...] aparecerão sob uma luz
diferente se as restabelecermos no quadro do discurso, que é a língua enquanto assumida pelo
homem que fala, e sob a condição de intersubjetividade, única que torna possível a comunicação
lingüística40.» No decorrer desse período triunfa a pragmática, convidando a olhar o sentido
«em ação», na esteira da famosa obra de Austin, Quando dizer é fazer, que pôs em evidência a
dimensão performativa da linguagem. Levando em conta essa nova focalização, os linguistas
do terceiro período colocam no centro de suas preocupações a dimensão interativa, dialógica e
conversacional, e se opõem então à tendência «egológica» do período precedente, tomando ao
pé da letra a reflexão de Benveniste e considerando que só se pode compreender o estudo da
linguagem na dimensão intersubjetiva que lhe é inerente.
Nesse contexto, a posição da semiótica é paradoxal. Greimas declarava em 1976 que,
para ele, «a reflexão sobre o estatuto da língua esteve, desde o começo, indissoluvelmente
ligada à dimensão discursiva de sua manifestação enquanto fala41». E, no entanto, a semiótica,
como vimos, está claramente enraizada numa abordagem estrutural. Ela faz abstração do
sujeito enunciador para desvendar a organização interna dos dispositivos significantes:
estruturas elementares tais como o quadrado semiótico, estruturas narrativas centradas no
actante, estruturas discursivas tecidas em isotopias. Essa concepção semiótica deixa pouco
espaço para a enunciação, e ainda menos para a interação. Na verdade ela privilegia claramente
o uso, isto é, a dimensão social da linguagem, que organiza e deposita na memória coletiva o
thesaurus estruturado das formas significantes. Ela procura assim compreender acima de tudo
as condições da partilha cultural do sentido. Antes de dar detalhes sobre esse ponto e sobre a

39[N. dos T.] Onde agora? Quando agora?/Quem agora? Sem me indagar./Diga eu. Sem pensar.
40 É. Benveniste, Problemas de lingüística geral., op. cit., p.293.
41
«Entretien avec A .J. Greimas sur les structures élémentaires de la signification», in F. Nef (éd.), Structures élémentaires
de la signification, Bruxelas, Complexe-PUF, 1976.
31

concepção de enunciação que dele decorre, vamos retomar em suas grandes linhas a história
das relações complexas que a semiótica greimasiana manteve com a problemática enunciativa.

1. Elementos de história conceitual

Enquanto a enunciação ia se mostrando cada vez mais, ao longo dos anos 1970, como
a noção dominante de toda a pesquisa lingüística, seu estatuto na semiótica permanecia
ambíguo: ela criava problema. Mesmo reconhecendo sua importância crítica em relação ao
estruturalismo formal, o semioticista percebia a enunciação e sua «situação» como a entrada de
direito do universo extralinguístico na imanência tão laboriosamente construída do objeto-
linguagem, ele desconfiava de um sujeito da fala soberano, ele temia, sob a invocação do ego
ou acobertado pelo dialogismo, o retorno à ontologia do sujeito, que caracterizava
particularmente os estudos literários. Essa questão do estatuto da enunciação e de seu sujeito
constitui, pois, um dos pontos de discussão essenciais da semiótica com as outras disciplinas
da linguagem e do sentido. Entre sua supressão metodológica inicial e sua reintegração no
corpo da teoria, sob a dupla forma do uso e da discursivização, podemos sublinhar alguns
momentos cruciais desse itinerário.

1.1. Supressão

Longe de ser ignorado, o problema se apresentou a Greimas desde meados da década


de 1960, em Semântica estrutural, onde ele foi resolvido categoricamente: a descrição semântica
do texto enunciado deve ser feita expulsando de seu campo de pertinência a atividade
enunciativa do sujeito falante. Tratava-se de construir a objetivação do texto. Isso implica,
escreve ele, «a eliminação do parâmetro da subjetividade» e das principais categorias que o
manifestam: a pessoa, o tempo da enunciação, os dêiticos espaciais, os elementos fáticos. Essa
eliminação, estritamente metodológica, na verdade delineava, como num negativo fotográfico,
o espaço de uma análise enunciativa da atividade do discurso. Antecipando a distinção entre as
operações de debreagem e de embreagem (cf. infra), o método semiótico se propunha então
circunscrever a análise somente ao domínio do discurso debreado, a fim de «garantir a
homogeneidade da própria descrição42». A enunciação assim rejeitada se vê então reduzida a
uma definição preliminar articulando a famosa dicotomia de Saussure, língua/fala: o sujeito do
discurso não é apenas uma instância virtual, «uma instância construída [...], para dar conta da
transformação da forma paradigmática» da linguagem – sistema ou língua – «em uma forma
sintagmática» - processo ou fala.43

1. 2. Pressuposição

Essa exclusão radical, mas provisória, pôde ser posta em questão quando veio à luz a
possibilidade de reintegrar a problemática da enunciação no interior do dispositivo global da
teoria semiótica, desde seus postulados até seus procedimentos descritivos. Uma nova
definição do estatuto da enunciação se apresenta então, desenvolvida por Greimas por ocasião
de uma reflexão sobre o discurso poético, onde o «parâmetro da subjetividade» pode ser
considerado, mais que nos outros, como um elemento essencial. Permitamo-nos uma longa
citação: «Devemos procurar determinar o estatuto e o modo de existência do sujeito da
enunciação. A impossibilidade em que nos encontramos de falar, na semiótica, do sujeito puro

42
A. J. Greimas, Semântica estrutural, op. cit., pp. 200-201.
43
A. J. Greimas, Semiótica e ciências sociais, São Paulo, Cultrix, 1981, p. 4.
32

e simples, sem o conceber necessariamente como fazendo parte da estrutura lógico-gramatical


da enunciação, da qual ele é o actante-sujeito, mostra a um só tempo os limites nos quais se
encerra deliberadamente nossa reflexão semiótica e o quadro teórico em cujo interior seu
estatuto pode ser definido. Ou bem a enunciação é um ato performativo não lingüístico e
escapa, como tal, à competência do semioticista, ou bem ela está presente de uma maneira ou
de outra – como um pressuposto implícito no texto, por exemplo – e então a enunciação pode
ser formulada como um enunciado de um tipo particular, isto é, como um “enunciado dito
enunciação”, porque ele comporta um outro enunciado com a função de actante-objeto, e a
partir daí ela se acha reintegrada na reflexão semiótica, que procurará definir o estatuto
semântico e gramatical de seu sujeito44.» Dessa maneira, o lugar da enunciação é reconhecido
na medida, e somente na medida em que ela está logicamente pressuposta pela existência do
enunciado. Já que assumimos o fato de que, em toda relação predicativa, a presença de um
actante-objeto implica a de um actante-sujeito e vice-versa, basta conhecer um dos actantes
para poder deduzir a existência do outro: nesse caso, conhecemos «o objeto-enunciado», que é
o texto, podemos pois inferir a partir dele a existência do actante-sujeito. A operação
certamente é complexa, mas ilustra bem a exigência formal do método. Ela permite localizar,
stricto sensu, o sujeito enunciador: antes de tudo sujeito lógico, ele é uma posição pura e
simples. Instância teórica de que nada se sabe no início, esse sujeito constrói pouco a pouco,
ao longo do discurso, sua espessura semântica. Sua identidade resulta do conjunto das
informações e das determinações de toda ordem que lhe dizem respeito no texto. É pois
somente a partir do conhecimento que temos do enunciado que essa instância pode ser
apreendida, segundo um caminho a montante, do fim para o começo, e não o inverso. As
formas estruturais organizadoras do discurso-enunciado, em primeiro lugar as estruturas
actanciais, vão ser então mobilizadas e transpostas para descrever essa recorrência da
enunciação, que acompanha a totalidade do discurso.
Na perspectiva da análise textual, a semiótica se interessa primeiramente pelas figuras
da enunciação manifestadas e operacionalizadas no próprio interior do texto, aquelas que
dizem respeito ao que se chama então «enunciação enunciada». Esta instala, de maneira
simulada, a presença e a atividade dos sujeitos da fala, as do narrador* e as das personagens,
no monólogo ou no diálogo por exemplo, que recebem a totalidade de sua definição dos
próprios enunciados. Quanto ao sujeito da enunciação «real», o da cena intersubjetiva da
comunicação, autor ou locutor, ele é sempre inevitavelmente relegado a uma posição implícita:
ele é visto na cadeia recursiva do «eu digo que digo que digo, etc.», e permanece, em si mesmo,
inacessível. Ele só se manifesta pelos simulacros lingüísticos de enunciações enunciadas
precedentes (digo, penso, me parece, etc.) que dependerão dos critérios de análise que
permitem apreendê-las. Ora, para Greimas, «não vemos como, sem recair na ontologia do
sujeito, de que a semiótica literária custou tanto a se libertar, conceber a definição do sujeito
da enunciação a não ser pela totalidade de suas determinações textuais45». O sujeito do
discurso é então concebido como uma instância em construção, sempre parcial, incompleta e
transformável, que apreendemos a partir dos fragmentos do discurso realizado.

1.3. Mediação

Mais um passo foi dado nessa direção, quando a longa pesquisa sobre os diferentes
níveis da estruturação da significação foi estabilizada, pelo fim dos anos 1970, com a
apresentação da economia geral da teoria no percurso gerativo da significação. Lembremos (cf.

44
“Pour une théorie du discours poétique”, A.J. Greimas (éd.), Essais de sémiotique poétique, Paris, Larousse, 1972, p. 20.
{VER TRAD. PORT.}
45
Ibid, p. 21.{VER TRAD. PORT.}
33

cap. 1) que, indo das estruturas mais profundas para as estruturas mais superficiais, os estratos
da articulação do sentido se convertem um no outro, segundo um percurso de
complexificação e de enriquecimento progressivo. Nesse percurso, a enunciação aparece então
como a instância de mediação e de conversão crucial entre estruturas profundas e estruturas
superficiais. Por meio da operação de «discursivização», ela organiza a passagem das estruturas
elementares e semionarrativas virtuais, consideradas aquém da enunciação, como um estoque
de formas disponíveis (uma gramática), para as estruturas discursivas (temáticas e figurativas),
que as atualizam e especificam, em cada ocorrência, no interior do discurso que se realiza. O
sujeito enunciador é assim instalado no cruzamento das restrições sintáxicas e semânticas que
lhe determinam a competência com o espaço de liberdade relativa pressuposto pela efetuação
do discurso.
Podemos discutir essa concepção e considerar, como foi proposto acima (cap. 1), que
é o conjunto do percurso que se apresenta como um modelo possível da enunciação.
Evidenciaríamos assim sua dupla dimensão: a que faz parte das codificações do uso, de um
lado, e de outro, a que remete à efetuação sempre singular do discurso. A originalidade da
abordagem semiótica nesse campo é na verdade, segundo nos parece, ressaltar com nitidez no
interior da atividade enunciativa o que vem da práxis social e cultural da linguagem para
fortalecer o discurso em ato. É a essa práxis que se prendem, por exemplo, as expectativas
genéricas, cuja previsibilidade guia tanto nossas atitudes de leitores, quando fazemos a leitura
de um texto, bem como nosso comportamento de locutores, quando tomamos a palavra.

2. Práxis enunciativa

O esforço teórico da semiótica repousa em parte sobre uma dupla crítica, do «sujeito»
e da «realidade». Esta crítica não filosófica está fundamentada, acima de tudo, no receio de
reencontrar tais noções psicologizadas ou ontologizadas no interior da própria descrição. A
questão é manter-se o mais rigorosamente possível na realidade do objeto textual a construir, a
única a que se tem acesso, verdadeiramente, no âmbito do projeto semiótico. O essencial é
então localizar e desvendar aquilo que, condicionando os percursos e as partilhas do sentido,
comanda o exercício do discurso. É aí que encontramos a força regente do uso.

2.1. Estrutura, uso, história

Quando percorremos a obra de Greimas, ficamos impressionados ao verificar como


essa questão do uso a atravessa de ponta a ponta, desde Semântica estrutural, em que ele nota
que «O caráter idioletal dos textos individuais não nos permite esquecer o aspecto
eminentemente social da comunicação humana» (p. 125), até Semiótica das paixões, onde a
experiência individual da paixão está relacionada com as «taxinomias passionais» selecionadas
pelas culturas (pp.79-80), depositadas no léxico da língua, estruturadas e valorizadas pelos
discursos, especialmente os literários. O uso tem, pois, um estatuto conceitual fortemente
firmado na semiótica, mantendo vínculos com os conceitos de sistema e de história de um
lado, e com o conceito de fala de outro. No quadro teórico da semântica estrutural, Greimas
estabelecia claramente a relação entre a disponibilidade do sistema (a infinidade das
combinações possíveis entre as unidades mínimas de sentido) e o que se atualiza em um ou
outro estado da língua (as significações efetivamente realizadas): «Nenhuma língua esgota sua
34

combinatória teórica, [...] ela deixa uma margem de liberdade mais que suficiente às
manifestações ulteriores da história46.»

É preciso voltar a Hjelmslev para perceber o que está em jogo nessa problemática. Foi
ele, com efeito, que propôs substituir o conceito saussuriano de fala pelo de uso, na célebre
dicotomia língua/fala (que ele rebatizou esquema/uso). A fala remete exclusivamente ao
exercício livre e individual da língua, apresentado como promessa de uma criatividade
indefinida, enquanto o uso remete, ao contrário, às práticas pouco a pouco sedimentadas pelos
hábitos das comunidades lingüísticas e culturais ao longo da história. Esta noção permite
assim dar conta do relativo cerceamento da manifestação «em relação às possibilidades
oferecidas pela estrutura». Essa estrutura semântica «permanece aberta, só recebendo
fechamento pela história»; a história «fecha a porta a novas significações contidas como
virtualidades da estrutura da qual participa47». O discurso social é tecido por configurações já
prontas, blocos pré-moldados e prontos para serem utilizados, produtos do uso que se
depositam, na qualidade de primitivos, no sistema da língua. É portanto a utilização da
estrutura de significação que define o uso. Quer esta definição seja vista positivamente – como
o conjunto das escolhas efetuadas – quer negativamente – a partir das coerções e
incompatibilidades semânticas impostas – em qualquer dos casos o uso “designa a estrutura
fechada pela história48» É assim que seus produtos resultam da práxis enunciativa. Podemos, pois,
dizer que «o cerceamento de nossa condição de homo loquens» se fundamenta em duas ordens
de restrições que determinam a realização do discurso, as imposições a priori das categorias
morfossintáxicas e os limites, de ordem sociocultural, impostos pelo hábito, pelas
ritualizações, pelos esquemas, pelos gêneros, e até pela fraseologia, que moldam e modelam,
sem que o saibamos, a previsibilidade e as expectativas de sentido. O resultado é na aparência
paradoxal: com efeito, concebia-se intuitivamente o sistema como um conjunto fechado de
regras e a fala como o exercício soberano de uma liberdade («a liberdade de palavra»). A
análise inverte as propostas, dando destaque, contrariamente, ao jogo das restrições que se
impõem a toda enunciação, para além do simples dispositivo estabilizado das regularidades
gramaticais. Assim, em vez de uma dicotomia, é uma «tricotomia» que permite dar conta dessa
realidade em que, entre a fala e o sistema, se inserem os produtos do uso que o locutor
atualiza e que condicionam uma comunicação eficiente.

2. 2. O impessoal da enunciação

Compreende-se que a enunciação individual não pode ser vista como independente do
imenso corpo das enunciações coletivas que a precederam e a tornam possível. A
sedimentação das estruturas significantes, resultante da história, determina todo ato de
linguagem. Há sentido «já-dado», depositado na memória cultural, arquivado na língua e nas
significações lexicais, fixado nos esquemas discursivos, controlado pelas codificações dos
gêneros e das formas de expressão que o enunciador, no momento do exercício individual da
fala, convoca, atualiza, reitera, repete ou, ao contrário, revoga, recusa, renova e transforma. O
impessoal da enunciação rege a enunciação individual e esta às vezes se insurge contra ele. A
fala, «idealizada como livre, [...] se fixa e se cristaliza no uso, dando origem, por redundâncias e
amálgamas sucessivos, a configurações discursivas e estereótipos lexicais que podem ser

46
A. J. Greimas, Semântica estrutural, op. cit., pp. 146.
47
A. J. Greimas, Sobre o sentido, Petrópolis, Vozes, 1975, p. 104.
48
Ibid., p. 105.
35

interpretados como tantas outras formas de “socialização” da linguagem49». A primazia da


práxis enunciativa sobre o engajamento particular na fala em ato é um primeiro dado: a
enunciação, a seu modo, convoca os produtos do uso que ela atualiza no discurso. Quando
os revoga, ela pode transformá-los, dando lugar a práticas inovadoras, que criam relações
semânticas novas e significações inéditas. E esses enunciados, por sua vez, se forem assumidos
pela práxis coletiva, poderão cair no uso, nele se sedimentando e assim se tornando
convocáveis, antes de se desgastarem e serem revogados. A escrita literária, tensionada entre
conservação e revolução das formas, associa estreitamente esses dois movimentos. A
abordagem do componente passional ilustra particularmente o fenômeno: as lexicalizações
passionais, depositadas na língua pela história e pelo uso, oferecem estruturas de acolhimento
para os estados de alma efetivos, conferindo-lhes estatuto, sentido e valor. Esses estados de
alma, e com eles os sujeitos passionais que os incorporam, tomam forma através da grade
léxico-cultural que a língua lhes propõe. Essa dialética da práxis (sedimentação/inovação)
questiona pois, prioritariamente, a espessura cultural do sentido.

Nessa perspectiva, a rejeição metodológica da enunciação era apenas provisória. Por


mais que o exercício individual da fala seja determinado por seu uso social, ainda assim é por
ele que a linguagem se manifesta e que o sujeito se constitui. Essa dimensão essencial foi, na
verdade, retomada pelos semioticistas, que se apoiaram na conhecida definição de Benveniste:
«A enunciação é este colocar em funcionamento a língua por um ato individual de
utilização50.» A esta definição liga-se estreitamente a noção de discurso, que é, como já vimos
no início deste capítulo, «a língua enquanto assumida pelo homem que fala, e sob a condição
de intersubjetividade, única que torna possível a comunicação linguística 51». A enunciação é,
assim, compreendida como a mediação entre o sistema social da língua e sua assunção por
uma pessoa individual na relação com o outro. Ela deu origem, na semiótica, a uma análise de
seus mecanismos: as operações enunciativas.

3. Operações enunciativas

Assim, pouco a pouco reintegrada na economia geral da teoria, a enunciação pode


então ser modelizada, por meio das duas operações correlatas de debreagem* e embreagem*.
Greimas emprestou de R. Jakobson o conceito de shifter (=embreante), que designa, para o
linguista russo, as unidades gramaticais cuja significação «não pode ser definida fora de uma
referência à mensagem52» e que só podem ser interpretadas em relação com a própria
enunciação. O embreante, desde a marca gramatical da primeira e da segunda pessoa até os
sinais indiretos, como os grifos no texto por exemplo, manifesta a presença do sujeito da fala.

3.1. Debreagem

A semiótica, ao integrar este conceito, divide-o em dois termos complementares, a


debreagem e a embreagem. Podemos assim representar o fenômeno enunciativo
considerando, de início, o espaço antepredicativo onde o discurso se forma. O enunciador, no
acontecimento de linguagem, projeta fora de si categorias semânticas que vão instalar o
universo do sentido. Essa operação consiste em uma separação, uma cisão, uma pequena

49
A. J. Greimas, “Semiótica e comunicações sociais”, em Semiótica e ciências sociais, op. cit., p. 41.
50
É. Benveniste, «O aparelho formal da enunciação», Problemas de lingüística geral, t. II, cap. 5, op. cit., p. 82.
51
É. Benveniste, «Da subjetividade na linguagem», Problemas de lingüística geral, cap.21, op. cit., p. 293.
52
R. Jakobson, Essais de linguistique générale, Paris, Minuit, 1963, p. 178.{VER TRAD. PORT.}
36

«esquizia» ao mesmo tempo criadora, por um lado, das representações actanciais, espaciais e
temporais do enunciado e, por outro, do sujeito, do lugar e do tempo da enunciação. Tudo
começa, assim, com a ejeção das categorias básicas que servem de suporte para o enunciado: é
o mecanismo da debreagem. Pela debreagem, o sujeito enunciante cria objetos de sentido
diferentes do que ele é fora da linguagem. Ele projeta no enunciado um não-eu (debreagem
actancial), um não-aqui (debreagem espacial) e um não-agora (debreagem temporal), separados
do /eu-aqui-agora/, que fundamentam sua inerência a si mesmo. A debreagem é a condição
primeira para que se manifeste o discurso sensato e partilhável: ela permite estabelecer, e assim
objetivar, o universo do «ele» (para a pessoa), o universo do «lá» (para o espaço) e o universo
do «então» (para o tempo).

3. 2. Embreagem

Num segundo momento, a partir do horizonte da debreagem, o sujeito enunciador


pode retornar à enunciação e realizar a segunda operação, a embreagem, que instala o discurso
em primeira pessoa. Ela consiste então, para o sujeito da fala, em enunciar as categorias
dêiticas que o designam, o «eu», o «aqui» e o «agora»: sua função é manifestar e recobrir o
«lugar imaginário da enunciação53» por meio dos simulacros de presença, que são eu, aqui e
agora. Essas categorias se definem por sua relação e sua oposição às categorias debreadas. «Eu»
só pode ser compreendido no horizonte do «ele». A embreagem supõe então a debreagem
anterior à qual ela se acrescenta. Essa anterioridade da debreagem é fácil de compreender.
Basta pensar na aquisição da linguagem pela criança. Ela começa invariavelmente pelo
universo do «ele», pois seus semelhantes se dirigem a ela na terceira pessoa (cf. os enunciados
hipocorísticos do tipo «Bem, o Paulo está contente»). As crianças, por meio dos relatos e das
histórias que lhes contam, descobrem primeiro o mundo objetivado, separado de si mesmas,
um mundo sem «eu». É apenas num segundo tempo que o «eu» aparecerá e será dominado.

3. 3. Uma concepção da atividade de linguagem

Detenhamo-nos um pouco mais nessa concepção da enunciação e em suas


implicações. Mantendo-se nos princípios de pertinência da semiótica, ela mostra uma tomada
de posição fundamental em relação à própria atividade da linguagem. Podemos destacar nela
três características essenciais.
Antes de mais nada, o primado das operações sobre os termos. Não se vê o sujeito como uma
instância-fonte, que teria uma existência própria anterior à debreagem. Considera-se, ao
contrário, que é esta operação, em si mesma, a condição de possibilidade recíproca tanto do
sujeito da enunciação quanto do discurso-enunciado. O fenômeno é assim apreendido no
meio de sua realização, durante seu processo de efetuação.
Em segundo lugar se, como acabamos de ver, «toda embreagem pressupõe uma
operação de debreagem, que lhe é logicamente anterior», e conserva dela alguma marca
discursiva, a embreagem, discurso com «eu», não anula a operação anterior, mais precisamente
a integra. Vimos que ela marca o retorno ao enunciador das formas já debreadas, que servem
de suporte à sua manifestação, e sem as quais a atividade de linguagem não é concebível. Indo
um pouco mais longe nesse sentido, reconhecemos então não só a preeminência da ejeção
«fora de si mesmas» das categorias semânticas sobre a operação inversa de engajamento e
implicação do sujeito mas, mais profundamente, a condição de presença deste último no

53
A. J. Greimas, Dicionário de semiótica, op. cit., p. 127. {VER TRAD. PORT}
37

discurso. Essa antecedência lógica do «ele» em relação ao «eu» é essencial. A possibilidade de


usar ele, então e lá, isto é, de abandonar a inerência a si mesmo e de representar sujeitos e coisas
sem relação com a situação de fala, como numa projeção objetivante, é a característica
primordial da linguagem humana. Sob essa luz, os enunciados atribuídos diretamente à própria
pessoa, aqueles que, como o grito, acompanham o surgimento dos afetos e das emoções,
pouco diferem das linguagens animais. Uma tirada contundente, provocadora e profunda de
Greimas exprime essa posição: «o ele, denegrido do ponto de vista da criatividade, é talvez, ao
lado do cavalo, uma das grandes conquistas do homem54».
Terceira característica enfim, a impossibilidade de uma embreagem actancial integral. Uma
embreagem total, sem debreagem anterior logicamente pressuposta, dificilmente poderá ser
concebida. Ela seria equivalente à própria ruptura da atividade simbólica, permanecendo o
sujeito obstinadamente inerente a si mesmo, numa expressão autista. Nenhum «eu»
encontrado no discurso pode, assim, ser identificado como o sujeito da enunciação
propriamente dita: ele é apenas um simulacro construído, sujeito de uma enunciação antiga e
citada e, como tal, observável em sua incompletude, seus percursos e suas transformações.

3. 4. Implicações para a análise textual

Essa concepção da enunciação, longe de ser somente especulativa, propõe para a


análise textual alguns de seus instrumentos básicos. As grandes categorias de gênero se
distinguem, assim, conforme privilegiam, em seu modo de enunciação, a embreagem ou a
debreagem. O teatro, a exemplo do diálogo, é regido pelo discurso embreado, assim como o
monólogo lírico da poesia, enquanto o romance e a maior parte dos gêneros narrativos (conto,
relato, novela, etc.) se classificam, na maioria das obras, como um discurso debreado. Em
todos os casos, as estratégias de enunciação implicam um jogo com o dispositivo das
encenações possíveis da fala. É isso que justifica o emprego do conceito de narrador, definido
pela relação enunciativa que esse «centro do discurso» estabelece com os enunciados
narrativos, em substituição ao conceito de autor, que provoca uma confusão com a realidade
extratextual. Assim, mesmo na autobiografia, discurso embreado por excelência, o «eu» que se
enuncia como ancoragem exclusiva do discurso não constitui uma embreagem actancial
integral, designando a pessoa efetiva: ele é sempre um simulacro construído do escritor, que se
define no interior do texto por suas relações com os outros atores aí instalados (pela
genealogia, por exemplo), assim como com as categorias espaciais (seu lugar de nascimento) e
temporais (sua época), que são também debreadas.
O discurso, em sua realização romanesca e fictícia, e também cotidiana e funcional,
alterna constantemente as debreagens e as embreagens, variando seus registros e seus modos
de sucessão: o enunciador instala, por exemplo, uma personagem, que ele coloca num
universo ao mesmo tempo espacial, temporal e actorial (debreagem), ele a faz falar
(embreagem interna), introduz em seu discurso outras personagens (debreagem de segundo
grau), que por sua vez podem tomar a palavra (embreagem de segundo grau), etc. Percebemos
então a arquitetura enunciativa do discurso que se põe em ação. Está claro, por exemplo, que a
atividade analítica de segmentação de um texto, que só faz explicitar a atividade natural do
leitor, apóia-se nessas operações que regem as mudanças de isotopia. Quando comandam
isotopias figurativas, elas permitem distinguir as clássicas unidades do discurso: a «narração» se
fundamenta em debreagens ou embreagens actanciais, a «descrição» em debreagens espaciais e
temporais, o «monólogo» em uma embreagem actancial, o «diálogo» em um jogo alternado de
embreagens e debreagens pessoais, etc. Quando comandam isotopias abstratas, essas

54
A. J. Greimas, «L’ énonciation (une posture épistémologique)», in Significação, 1, Ribeirão Preto, 1974, p. 19.
38

operações instauram as operações cognitivas que segmentam, por exemplo, o


desenvolvimento do percurso argumentativo. É o que podemos constatar lendo este curto
trecho do «Sermão sobre a morte», de Bossuet:

A natureza de um composto só se define claramente com a separação de suas partes.


Como elas se alteram mutuamente na mistura, é preciso separá-las para bem
conhecê-las. Com efeito, a associação da alma e do corpo faz com que o corpo nos
pareça algo mais do que ele é, e a alma, algo menos; mas quando, vindo a se
separarem, o corpo retorna à terra, e a alma se encontra em condição de retornar ao
céu, de onde ela foi tirada, vemos um e outra em sua pureza. Assim, só temos que
considerar o que a morte nos tira e o que ela deixa em sua inteireza; qual parte de
nosso ser desaparece sob seus golpes, e qual outra se conserva nessa ruína; teremos
então compreendido o que é o homem: de maneira que eu não temo assegurar que é
do seio da morte e de suas sombras espessas que sai uma luz imortal para iluminar
nossos espíritos sobre o estado de nossa natureza55.

A passagem da analogia inicial para a discussão sobre a separação entre a alma e o


corpo se efetua por uma debreagem cognitiva: «Com efeito», que introduz a isotopia do
discurso explicativo. Uma sucessão de operações lógico-temporais, articulando uma cadeia de
causas e conseqüências, isola em seguida, por uma série de dissociações enunciativas, que são
outras tantas minidebreagens cognitivas, os segmentos do discurso: «quando», «Assim»,
«então», «de maneira que». O conjunto é enquadrado por uma série de operações que incidem,
agora, sobre a categoria da pessoa: a primeira debreagem actancial (discurso objetivo em «ele»,
de cunho científico) progressivamente vai cedendo lugar a uma embreagem actancial parcial (o
coletivo «nós») antes de surgir uma embreagem pessoal que marca o empenho do sujeito «eu»,
que assume seu discurso: «eu não temo assegurar». A eficácia persuasiva do discurso se baseia
pois, sobretudo, como sugere este esboço de análise, na estruturação das operações
enunciativas que subtendem os percursos argumentativos.

Observações do mesmo tipo poderiam ser estendidas às formas e aos gêneros da


escritura e permitiriam reconhecer-lhes algumas especificidades formais. Podemos pensar, por
exemplo, na escritura dita «realista». Um de seus traços consiste em mostrar, articular e
hierarquizar a sucessão das operações que, ao mesmo tempo, isolam e associam estreitamente
as unidades do discurso. Assim, uma descrição precederá uma narração, que precederá um
diálogo. A relação entre essas unidades não é mera sucessão. De fato, o diálogo se apóia sobre
uma dessas unidades, a narração que, fornecendo-lhe seus recursos semânticos, constitui seu
referente interno. Esse dispositivo garante a coesão do conjunto e engendra essa forma de
credibilidade particular para o leitor que se chama «ilusão referencial». A escritura do nouveau
roman, em contrapartida, se caracteriza pelo desmoronamento dessa arquitetura enunciativa.
Ela dará ao leitor, cuja competência é guiada pela poética realista da escritura, a impressão de
um universo embaralhado, já em razão do desaparecimento desses procedimentos de
referencialização interna. O contraste se baseia em parte na gestão das operações enunciativas.

4. Enunciação e interação

55
J.- B. Bossuet, Sermon sur la mort et autres sermons, Paris, GF-Flammarion, 1996, p. 132.
39

4. 1. A narrativização da enunciação

Já que a enunciação é considerada como um ato entre outros, porque como todo ato é
orientada, voltada para um objetivo e uma «visão de mundo», ela pode ser considerada como
um enunciado cuja função é a «intencionalidade». Essa intencionalidade se deduz da realização
do ato de fala, assim como a intencionalidade de uma personagem da narrativa se lê,
posteriormente, seguindo de trás para frente as transformações dos estados de coisas que ela
provocou. Compreendemos então que a análise do sujeito enunciador, apreendido como um
actante-sujeito cujo objeto é o «enunciado-discurso», pode ser submetida às mesmas regras
que regem, no interior do enunciado, a realização do próprio discurso. A enunciação poderá
então ser interpretada em diferentes níveis, e principalmente no das estruturas narrativas e
modais (cf. quarta parte), a partir dos enunciados que são o único meio de reconhecer os
lugares móveis e instáveis, exibidos ou ocultados, que os sujeitos da comunicação ocupam no
jogo de suas respectivas estratégias. Sua competência é definida por um equipamento modal, e
a relação intersubjetiva pode ser assimilada às interações de papéis actanciais. Destinador e
destinatário da comunicação prestam-se, desse modo, a uma análise em termos
semionarrativos.

4. 2. Pragmática e semiótica

Esta concepção subtende a relação entre a semiótica e a pragmática. É com efeito a


enunciação que permite traçar uma linha divisória entre o que a semiótica rejeita na pragmática
anglo-saxônica (uma teoria da referência) e o que lhe parece fazer parte de preocupações
próximas das suas (a problemática dos atos de linguagem). A recusa de uma lógica da
referência é precisamente motivada pela necessidade de levar em conta o sujeito: «O objeto
primeiro da teoria semiótica não é a análise da referência [...], mas a determinação das
condições de produção e apreensão do sentido, tanto é verdade que os ´ estados de coisas`
jamais darão conta, sem a participação ativa e primordial do sujeito, da assunção pelo homem
das significações do mundo56.»
A proximidade entre a semiótica e a pragmática lingüística, em compensação, é
justificada pela enunciação: «As aquisições teóricas de Austin foram há muito tempo
integradas por Émile Benveniste, sob a forma de reflexões sobre a enunciação e a
discursivização, ao conjunto da herança saussuriana.» Assim, a análise das pressuposições e das
«implicaturas» subjacentes os atos de linguagem poderia conduzir à elaboração de uma
«tipologia das competências dos sujeitos, falantes ou simplesmente agentes». É esse programa
que será esboçado com o estudo das estruturas da manipulação e da sanção. Elas mostram
tipos de sujeito caracterizados por um estilo de comportamento linguageiro: o uso da
linguagem que permite definir um irônico, um sedutor ou um provocador insere-o na classe
modal dos sujeitos manipuladores (do fazer crer ao fazer fazer); as dominantes discursivas que
permitem identificar um peremptório, um cínico ou um espírito julgador inscreverão essa
classe de sujeitos no universo da sanção (sua modalidade culminante é a assunção de um saber
soberano); o veleidoso, por seu lado, fará parte de uma problemática da competência (ele
afirma ter uma competência que jamais se concretiza em performance), etc. Isso quer dizer

56
A. J. Greimas, «Observations épistémologiques», in «Pragmatique et sémiotique», Actes sémiotiques. Documents, 50,
Besançon, INALF-CNRS, 1983, p. 6. As citações do parágrafo seguinte são todas extraídas, salvo menção particular,
desse mesmo texto (pp. 5-8)
40

que semioticistas e pragmaticistas partilham uma mesma visão da linguagem quando


reconhecem «o caráter indireto e ardiloso do discurso», visão de europeus que Greimas
costumava opor, em tom de brincadeira, àquela da outra margem do «pântano de falsidades»
{mar de enganos/mentiras}: a tradição européia vê na linguagem «não a cobertura, um pouco
modulada pelos valores de verdade, da realidade das coisas», concepção de americanos57, mas
ao contrário «um tecido de mentiras e um instrumento de manipulação social». Estendendo a
dimensão performativa da linguagem ao conjunto da comunicação, o verdadeiro desafio da
pragmática seria então criar uma gramática apta a descrever esse «jogo, muito complexo, de
interações entre os papéis ético-modais» e de dar conta assim «das gesticulações e tribulações
dos homens». A partir disso, considerar a enunciação como uma ação regida por um contrato
– o contrato enunciativo – leva-nos a questionar a natureza dos objetos de valor que este põe
em jogo. São, obviamente, valores de verdade que cada um procura impor ao outro. O
problema não é, pois, o «verdadeiro» em si mesmo, em sua hipotética realidade, mas o balanço
incerto entre o «fazer crer» de um lado e o «crer verdadeiro» de outro. Aqui se situa a
problemática da veridicção: «O discurso é esse espaço frágil em que se inserem e se lêem a
verdade e a falsidade, a mentira e o segredo; [...] equilíbrio mais estável ou menos, proveniente
de um acordo implícito entre os dois actantes da estrutura da comunicação. É esse
entendimento tácito que é designado pelo nome de contrato de veridicção58.» Levando em conta
que os instrumentos de sua análise fazem parte da problemática narrativa e modal, nós o
examinaremos na quarta parte («Narratividade»).

5. Perspectivas atuais

As duas vias de acesso à enunciação desenvolvidas pela semiótica, a que se refere à


convocação dos produtos do uso e a que se refere à atividade do sujeito enunciante, são
estreitamente complementares uma à outra. Juntas, elas esclarecem a dupla dimensão atuante
em toda prática de linguagem, e principalmente em seu exercício literário: a força impessoal da
coerção e a afirmação singular do sujeito. Mas elas conduzem sobretudo, por causa de sua
convergência, a encarar o discurso, daqui para a frente, em sua própria efetuação e não mais
somente através das articulações organizadoras de um enunciado ou de um texto realizado.
Com ancoragem na enunciação, a análise semiótica do discurso é então levada a por o sujeito
no centro de suas investigações e a analisar o discurso em ato.

5. 1. Presença e variações do sujeito

A obra de J. C. Coquet59, inteiramente centrada na questão do sujeito, representa o que


poderíamos chamar de uma semiótica enunciativa. Trata-se de apreender e descrever a
atividade significante propriamente dita, inseparável da experiência concreta da fala que nos
prende à realidade. Nessa perspectiva, a teoria da significação concede a primazia ao discurso

57
«Enquanto na Europa e mais particularmente na França a linguagem é comumente considerada como uma tela
mentirosa destinada a esconder uma realidade e uma verdade que lhe são subjacentes, [...] nos Estados Unidos ao
contrário, considera-se que o discurso cola às coisas e as exprime de maneira inocente», in «Le contrat de véridiction», A.
J. Greimas, Du sens II, Paris, Seuil, 1983, p. 108.
58
A. J. Greimas, Ibid., p. 105.
59
J. C. Coquet, Le Discours et son sujet, Essai de grammaire modale (vol. 1), Pratique de la grammaire modale (vol. 2),
Paris, Klincksieck, 1984 e 1985; La Quête du sens, Paris, PUF, col. «Formes sémiotiques», 1997. É a esta última obra ,
sobretudo, que fazemos referência aqui.
41

como ato fundador daquele que, ao enunciá-lo, se enuncia e se afirma. Podemos defini-la
como uma fenomenologia discursiva do sujeito.
O universo da significação, assim relacionado a seu sujeito, é sustentado por um
alicerce actancial. Os actantes, definidos por seu «modo de junção modal60» (ou
«predicativa61»), designam essas facetas de identidade implicadas em toda enunciação. São
apreendidos de imediato na dimensão discursiva, transfrásica, da atividade significante.
Podem, por conseguinte, variar e evoluir no interior de um «campo posicional» (Benveniste).
E como «eles não comportam todos e a todo instante uma morfologia estável 62», o desafio da
análise será caracterizá-los antes de apreender suas modulações dinâmicas. Os actantes de J. C.
Coquet são em número de três. Possuem um nome de código que, marcando sua natureza
puramente posicional, indica que podem passar de uma posição a outra: primeiro-actante,
segundo-actante e terceiro-actante.
O «primeiro-actante» se divide em duas instâncias, o não-sujeito e o sujeito. O não-sujeito
é o actante puramente funcional, cuja atividade é a predicação sem assunção de seu ato, a
predicação irrefletida. O sujeito é o actante pessoal, cuja atividade é a asserção assumida, que
implica o julgamento. Retomando a fórmula de Benveniste: «É ego quem diz ego», J. C.
Coquet acrescenta: «e quem se diz ego» para indicar o ato de assunção que caracteriza
propriamente o sujeito. O «segundo actante», em seguida, designa o objeto implicado por todo
ato de discurso. O «terceiro actante», enfim, comparável ao Destinador da sintaxe narrativa,
designa a instância de autoridade dotada de um poder transcendente («portanto irreversível 63»).
O modelo, na sua depuração formal, parece simples. Muito mais sutis são os fenômenos que
ele recobre e tudo o que estes põem em jogo na teoria do discurso. Trata-se de aproximar-se
ao máximo das finas variações da realidade enunciativa, de recortar, por meio da
actancialidade, os contornos flutuantes da palavra em ato e de apreender, assim, os modos de
«presença» do sujeito em seu discurso. O primeiro-actante está no centro do dispositivo, e
mais precisamente as relações entre as duas instâncias que o constituem, sujeito e não-sujeito.
Essas relações determinam o «esquema básico da análise fenomenológica do discurso64».
J. C. Coquet ilustra a tensão entre o sujeito e o não-sujeito analisando por essa
perspectiva o estatuto dos actantes na fábula de La Fontaine «O lobo e o cordeiro». O lobo,
predador, destinado por natureza a obedecer à sua função, encarna o não-sujeito. Ora,
procurando justificar pela razão seu ato, ele se esforça, mediante o discurso, para se constituir
como sujeito. Multiplica os argumentos: «ele debate mal, mas ele debate», chegando assim à
posição desejada de sujeito de assunção do discurso. Enfim, de erro em erro de julgamento,
acaba por executar a ação para a qual fora programado, consuma o ato que lhe determina sua
natureza predatória, recobra seu estatuto de não-sujeito. O cordeiro, ao contrário, encarna
plenamente o sujeito. Ele tem o domínio do julgamento e sustenta um discurso de veracidade.
Verdadeiro «campeão da pretoria», ele condena dessa maneira o lobo a ser apenas uma força
cega. Mas a vitória cognitiva é de pouco valor em face da derrota pragmática...
Esta teoria da enunciação em ato está encerrada em dois parâmetros que marcam a
distância que a separa da concepção greimasiana apresentada mais acima: o parâmetro do
tempo, implicando a história e o devir, e o parâmetro da realidade, contra o imanentismo.
Cabe a eles desprender a actancialidade enunciativa de um puro formalismo e introduzi-la
numa fenomenologia da linguagem.
A reflexão sobre o tempo é quase sempre reduzida, na perspectiva da semiótica
narrativa, ao revestimento em superfície de estruturas formais acrônicas mais profundas: a

60
La Quête du sens, op. cit., p. 149.
61
Ibid., p. 216.
62
Ibid., p. 216.
63
Ibid.. p. 40.
64
Ibid., p. 8.
42

transformação de um estado (falta/liquidação da falta) é assim temporalizada em


antes/depois. Ora, essa reflexão é central em J. C. Coquet, onde o tempo reveste as formas da
história e da presença. A história é duplamente invocada. Em primeiro lugar, contra a
imobilização de nossos hábitos de pensamento, o «retorno à história das idéias é um precioso
antídoto65». As posições teóricas da semiótica enunciativa são assim cuidadosamente situadas
na historicidade das ciências da linguagem, através de suas filiações e bifurcações
epistemológicas. Duas grandes linhas se definem: de um lado a de Trubetzkoy, Brøndal,
Jakobson, Benveniste, no rastro da fenomenologia husserliana, à qual se ligam as proposições
de J. C. Coquet; de outro lado a de Saussure, Hjelmslev e Greimas, que seria de caráter
formalista, logicista e estruturalista, no estrito senso. A história é aqui colocada a serviço do
debate contraditório que polemiza a existência de dois paradigmas: uma semiótica da realidade
contra uma semiótica da imanência, uma semiótica da enunciação contra uma semiótica do
enunciado, uma abordagem subjetal contra uma abordagem objetal, uma apreensão do sentido
como contínuo contra uma apreensão descontínua, fundamentada nas oposições categoriais.
Mas a história também se coloca, de resto, no interior das próprias proposições teóricas.
Aparece como um dos componentes constitutivos da identidade actancial do sujeito, tendo a
perspectiva sintagmática da análise o propósito de “acompanhar tão de perto quanto possível,
até a abolição do limite, a história transformacional do actante66». O sujeito é a partir disso
definido por dois critérios: «o juízo[...] e a história (que molda o actante)67».
Prolongando a inserção histórica, as relações entre o tempo e o discurso, concernentes
às questões da presença e do devir, são exploradas e seus desafios evidenciados68. O autor
opõe então o tempo cronológico, descontínuo, quantitativo, conjugável e aspectualizável,
relacionado ao terceiro actante, o qual faz dele um instrumento de seu poder veridictório, ao
tempo lingüístico, contínuo, qualitativo, centrado na presença e no devir, que se prende, por
sua vez, ao primeiro actante. A tese defendida por J. C. Coquet é que «o tempo cronológico
[...] está subordinado ao tempo lingüístico69». A coerência e a homogeneidade do primeiro,
aparentes ou reconstruídas pelo imaginário gramatical, se acham, na realidade, na dependência
do tempo da presença, que é próprio do segundo: fonte do tempo, «o presente é “essa
presença no mundo que somente o ato de enunciação torna possível70». Ora o presente é
literalmente monopolizado pelo terceiro actante (social, ideológico, logicista, gramatical...), que
oculta assim o tempo sempre iminente, volátil e real da presença. Este é problema do primeiro
actante, do qual o terceiro actante é apenas uma projeção histórica e cultural. E no interior do
primeiro actante, essa inserção no presente diz respeito mais precisamente ao não-sujeito,
instância pré-assertiva, subtraída à estrutura do juízo, a quem cabe experimentar o que o
sujeito e o terceiro actante não conseguem jamais: a dissolução do tempo no presente da
presença. É uma experiência dessa natureza que o empreendimento de M. Proust restitui71.
Compreende-se que essa apreensão fenomenológica do tempo conduza J. C. Coquet a
acabar com o tabu da substância e da realidade na teoria da significação: é preciso tornar o
espaço discursivo, diz ele, «um espaço mais acolhedor para a substância72». Isso leva a opor ao

65
Ibid.. p. 109.
66
Ibid., p. 60.
67
Ibid., p. 152.
68
Principalmente em «Temps ou aspect? Le problème du devenir» (La Quête du sens, op. cit. pp. 55-71).
69
Ibid., p. 65.
70
É. Benveniste, op. cit. pp. 61 e 246.
71
A experiência pela qual «um ser [...] podia se encontrar no único meio em que poderia viver, gozar a essência das
coisas, por assim dizer, fora do tempo» (M. Proust, op. cit. P. 70). E J. C. Coquet conclui, citando ainda M. Proust: «É ao
não-sujeito, a essa instância pré-assertiva, que cabe “obter, isolar, imobilizar – na duração de um instante – o que (meu
ser) jamais apreende: um pouco de tempo no estado puro”» (in Le Temps retrouvé, À la recherche du temps perdu, Paris,
Gallimard, col. «La Pléiade», t. III, p. 872). {VER TRAD. PORT.}
72
Ibid. p. 75
43

famoso princípio da imanência o princípio da realidade. Na verdade, somente a crítica da


imanência (segundo a qual «a língua é um objeto abstrato onde só contam as relações entre os
termos» e para a qual os fenômenos «entram num sistema fechado de relações73») permite
entreabrir a análise do discurso e de seu sujeito para o espaço da presença real e efetiva no
mundo, rasgar a tela que barra o caminho dessa inserção, implicada pela própria experiência da
linguagem. Obviamente a realidade não é, nesse caso, o referente dos linguistas, mas a
inserção corporal do ser de linguagem no mundo, ancoragem que é feita de maneira solidária
pela percepção sensível e pelo acontecimento da fala. O conceito central que exprime esta
implantação é o de instância, «instância enunciante» e não mais sujeito da enunciação, a fim de
bem separar a análise enunciativa do objeto formal-enunciado, de restituir a pluralidade das
formas-sujeito e sobretudo de afirmar seu enraizamento no tempo e no espaço. Essa instância,
com efeito, é um centro de discursividade ao mesmo tempo real e formal: real, ela é o que se
coloca carnalmente no mundo, sendo portanto ligada ao corpo, «suporte material de toda
significação74»: formal, ela é identificável, e fundadora de identificação, por meio dos traços
modais que imprime no discurso ao se enunciar75. A semiótica enunciativa implica pois o
duplo estatuto da instância enunciante, fenomenológico e lingüístico ao mesmo tempo, que se
analisa no nível mais abstrato dos actantes não-sujeito e sujeito.

5. 2. O discurso em ato

A luz trazida por J. C. Coquet, pondo em destaque o sujeito e as implicações da fala


em ato, contribui substancialmente para mudar o ponto de vista da semiótica sobre a
enunciação. Ela une as condições perceptivas, sensíveis e afetivas da significação a suas
condições linguageiras na própria emergência do processo significante, no acontecimento da
semiose. A semiótica estrutural, por sua vez, se preocupava em apreender o processo
semiótico em seu aspecto pronto e acabado, sob a forma do enunciado realizado. Essa dupla
abordagem não implica, no entanto, um antagonismo entre dois paradigmas semióticos, como
podemos facilmente demonstrar.
Puro actante da predicação, o não-sujeito forma, segundo J. C. Coquet, o
«embasamento permanente» do sujeito. É somente a assunção que pode transformá-lo e
conferir-lhe novo estatuto. Podemos então considerar que o desligamento da inerência
sensível consiste em uma projeção de si mesmo para fora de si mesmo, pelo estabelecimento
de uma distância, e que somente a realização de um ato cognitivo de separação torna possível
a asserção assumida: essas operações correspondem à debreagem. Se essa interpretação é
aceitável, então a relação entre as duas instâncias do não-sujeito e do sujeito retomaria o
primado do ele sobre o eu, tal como o defende Greimas na fórmula já citada: «o “ele” é, ao lado
do cavalo, uma das grandes conquistas do homem». Na perspectiva greimasiana, a invenção
do ele é assimilada {à/com} debreagem, que rompe a inerência do sujeito consigo mesmo, tal
como a exprimem a disposição passional e a linguagem emocional, o grito e o estupor,
partilhados pelos animais e pelos homens. O ego é, pela assunção que lhe permite dominar a
significação, um eu que, no ato da asserção, se retoma, se projeta, se assume e se faz ele.
Parece-nos portanto que, levando a discussão para além dos problemas da metalinguagem, a
radicalidade polêmica da oposição de paradigmas pode ser atenuada.
Dito isso, veremos a partir do próximo capítulo, sobre as «posições enunciativas», que
a perspectiva do discurso em ato permite examinar, junto à atividade significante, as

73
Ibid. pp. 2 e 235.
74
Ibid. p. 8.
75
Voltaremos, na quinta parte, «Afetividade», à teoria da paixão desenvolvida por J. C. Coquet a partir das instâncias
enunciantes, e principalmente ao duplo estatuto, problemática do não-sujeito (cf. abaixo).
44

problemáticas que a análise semiótica tem introduzido nos últimos vinte anos e, de certa
maneira, reconfigurá-las: a figuratividade do discurso não pode ser vista somente em termos
de «representação» e densidade sêmica, estando claramente vinculada, daqui por diante, à
própria percepção. A narratividade já não se reduz apenas às operações de transformação dos
enunciados de ação, mas se desdobra em percursos actanciais implicando a temporalidade e o
devir; a dimensão afetiva e passional do discurso não depende mais somente dos conteúdos
modais que definem o estado do sujeito, seus estados de alma, mas leva em conta as
modulações do campo de presença que esse sujeito «sente» e que o afetam. De modo geral,
esses diferentes campos de análise explorados pela semiótica não têm mais como única
referência os conteúdos que os estruturam, mas estão relacionados à instância do discurso que
permite sua atualização.76
.

SÍNTESE

A enunciação em semiótica

A história das relações que a semiótica manteve com a problemática da


enunciação – a fala em ato – é complexa e rica em ensinamentos. A partir de uma
rejeição inicial, ela foi pouco a pouco reintegrando a enunciação em seu corpo teórico e
hoje faz dela o elemento central em sua análise da linguagem e do discurso.
Além da desconfiança em relação à subjetividade psicológica, a rejeição se baseia
em duas razões. A primeira está ligada à metodologia estrutural, que dá prioridade à
objetivação dos constituintes e das relações internas no texto (princípio da imanência).
A enunciação só pode então ser definida, no quadro da construção teórica, como
pressuposição. A segunda razão está ligada à importância do conceito de uso, que
submete toda enunciação individual ao conjunto dos hábitos lingüísticos de uma dada
sociedade. O estudo dessa dimensão sociocultural, e impessoal, da enunciação é
prioritário na medida em que ela condiciona a comunicabilidade.
Sobre o pano de fundo do uso, a enunciação individual é analisada por meio de
duas operações: a debreagem (que funda o discurso na terceira pessoa) e a embreagem
(que instaura o discurso na primeira e na segunda pessoa). A semiótica considera que a
operação de debreagem é anterior e determina a possibilidade da fala. Pressupondo uma
debreagem prévia, a embreagem é posterior. Essas operações codificam os grandes
gêneros do discurso e a estruturação dos textos. Observada do ponto de vista da
interação entre os sujeitos falantes, a enunciação é então modelizada pelos esquemas
narrativos. As interações entre actantes que a narrativa põe em cena podem ser
transferidas para o jogo de papéis, persuasivos e interpretativos, aos quais se dedicam os
locutores e interlocutores da fala viva. Assim se tecem as relações de proximidade entre
a semiótica do discurso e a pragmática lingüística. Os desenvolvimentos atuais da
semiótica se concentram na realidade do discurso em ato. Reativando suas ligações com
a fenomenologia, a semiótica focaliza a um só tempo a enunciação e a percepção, que
asseguram juntas a inserção do sujeito no mundo.

76
Esta problemática do discurso em ato é comentada particularmente por J. Fontanille, em Sémiotique et littérature. Essais
de méthode, Paris, PUF, col. “Formes sémiotiques”, 1999.
45
46

CAPÍTULO 4

Posições enunciativas
1. A questão do ponto de vista

1.1 Diversidade de empregos

A assunção do discurso, no âmbito da análise literária, é geralmente colocada sob a


égide do narrador, figura delegada do enunciador nesse contexto. Mas o narrador tem uma
função tão englobante que é suscetível de abranger todos os empregos e de ter sua pertinência
diminuída à medida que aumentam suas atribuições. É, portanto, necessário especificar os
papéis, manter o narrador no campo do narrativo e identificar mais nitidamente as posições
enunciativas que ele tende a ocultar. É o que nos propomos a fazer aqui, a partir das
operações examinadas no capítulo precedente, rediscutindo a noção de ponto de vista*. Para
tanto, nós nos deteremos primeiramente nos meios utilizados na obra para determinar a
organização e a disposição do espaço enunciativo construído pela escritura. Diretamente
ligados à instância do discurso, esses meios controlam os modos de acesso à significação para
o leitor. As seleções operadas orientam a apreensão do sentido e a dos valores. Em um
segundo momento, comparando diferentes formas de organização enunciativa da descrição,
relacionadas com a própria atividade perceptiva, nosso objetivo será compreender melhor as
poéticas do sensível fixadas nos textos literários. Por isso, serão objeto de questionamento a
relatividade cultural das maneiras de ver e as poéticas que as codificam.

1.1.1 Uma noção crucial


As observações que acabamos de fazer sobre o narrador poderiam também se aplicar
ao ponto de vista: a extensão de seus empregos dificulta sua eficiência. Ele diz respeito tanto
ao uso corrente da língua quanto a uma utilização técnica como instrumento de análise para a
narratologia e a lingüística da enunciação. A noção então se desdobra e dá origem a uma
grande variedade de conceitos: “focalização” (G. Genette)77, “perspectiva” (A. J. Greimas, J.
Courtés78), “centro de orientação” (J. Lintvelt79), “observador” (Fontanille80) no campo da
narratologia, e “modalização” da enunciação, “transformação ativa/passiva” ou “dêixis”, no
campo da lingüística.
A extensão da metalinguagem natural à metalinguagem técnica atesta com propriedade
a importância crucial dessa noção: não há enunciado, qualquer que seja sua dimensão, que não
esteja submetido à orientação de um ponto de vista. A mais objetivante neutralidade a implica
inevitavelmente, ainda que por omissão. Mas essa extensão obscurece ao mesmo tempo sua
significação e torna delicado seu manuseio. Se definirmos, de maneira muito geral, o ponto de
vista como o conjunto de operações que o enunciador efetua para orientar e estruturar seu
enunciado, verificaremos que ele é transversal às diferentes formas do discurso, mas recebe
uma significação específica conforme se trate de um discurso narrativo, descritivo ou

77
G.Genette, Figures III, Paris, Seuil, 1973.
78
A.J.Greimas, J.Courtés. Dicionário de semiótica, op.cit., verbete "perspectiva".
79
J.Lintvelt, Essai de typologie narrative. Le point de vue, Paris, José Corti, 1981.
80
J.Fontanille, Les espaces subjectifs. Introduction à la sémiotique de l'observateur, Paris, Hachette, 1989.
47

argumentativo. Além do mais, em cada caso, o ponto de vista engloba, ao mesmo tempo, o
modo de presença do enunciador em seu discurso e a maneira pela qual ele dispõe, organiza e
orienta seus conteúdos. Podemos tentar esboçar um balanço dessa noção, explicitando suas
diversas acepções.

1.1.2 O discurso narrativo: focalização e perspectiva

No discurso narrativo, o ponto de vista indica os modos de presença do narrador.


Evitando a polissemia da noção e utilizando o termo focalização* nesse contexto, G. Genette
propõe distinguir a “focalização zero” (é o caso do narrador onisciente que controla o
conjunto da cena narrativa, sabe mais que suas personagens e entra em sua interioridade), a
“focalização interna” (quando o narrador se esconde atrás de suas personagens, delega-lhes a
assunção da narrativa e não sabe mais do que elas) e a “focalização externa” (quando o
narrador se instala fora da narrativa e só revela o que essa posição externa autoriza).
Mas o ponto de vista está igualmente implicado, na estruturação da narrativa, pela
seleção de uma personagem e pelo desenvolvimento de seu percurso, que assume, então, uma
função de regência. Essa escolha é determinada pelas coerções da textualização*, cuja
linearidade obriga a apresentar, de maneira sucessiva, o que é simultâneo. O que está em jogo
é da maior importância, porque é em função dessa escolha que o conjunto narrativo vai se
organizar e que os outros atores passarão a ocupar posições secundárias. Podemos falar nesse
caso de perspectiva* narrativa. Os dois primeiros capítulos de Germinal, desse modo, alternam a
perspectiva de Étienne Lantier, futuro herói, que chega ao local da mina, e a dos Maheu, os
operários que acordam e partem para o trabalho, para fazê-los se reencontrar no terceiro
capítulo, justificando a contratação de Étienne. O primeiro capítulo da segunda parte
introduzirá a perspectiva dos Grégoire, os burgueses, etc. Compreende-se que a escolha de
perspectiva, tanto quanto as focalizações do enunciador, determina a ordem dos valores
postos em cena no texto (narrativas de herói ou de anti-herói, narrativa de glorificação dos
valores ou, ao contrário, de ridicularização). Fundada sobre a estrutura polêmica subjacente à
narrativa, essa escolha implica o jogo duplo de seleção de um percurso narrativo e de
ocultação simultânea dos outros percursos possíveis: o narrador do conto dispõe
tradicionalmente a narração na perspectiva do herói, portador dos valores da comunidade, e
oculta a do anti-sujeito, que só aparece nos momentos da prova e da sanção.

1.1.3 O discurso descritivo: o observador e seu objeto

No discurso descritivo, o ponto de vista se refere diretamente à atividade perceptiva. A


primeira acepção do dicionário Robert é esta: “lugar onde nos devemos colocar para ver um
objeto o melhor possível”. O ponto de vista é, pois, regido pelo observador* e seu modo de
presença enunciativa. Ele pode estar completamente oculto (“A Terra é redonda”), pode estar
implicado pela indicação da posição de observação (“Vista da Lua, a Terra é redonda”), pode
estar instalado no texto por uma marca da pessoa e um predicado perceptivo (“Vê-se que a
Terra é redonda”), pode estar assumido, em focalização interna, por um ator da narrativa que
então toma a si a atividade descritiva (“Quando ela levantou os olhos, [...] percebeu um grande
luar, uma poeira de sol, já cheia do burburinho matinal de Paris”, E. Zola, L'assomoir).
Precisaremos, no próximo parágrafo, essa tipologia dos observadores.
48

Por outro lado, como no discurso narrativo, o ponto de vista é determinado pela
disposição dos elementos da descrição, igualmente ligada às coerções da textualização: no caso
do retrato, por exemplo, resultará da escolha das partes e de sua relação com o conjunto, do
próprio percurso descritivo e das segmentações que opera (partir da cabeça para visualizar em
seguida o corpo, ou, ao contrário, partir dos pés e subir para o rosto), da relação entre os
elementos de representação e os elementos de apreciação que introduzirão na descrição uma
dimensão argumentativa. Esse dispositivo textual da descrição pode corresponder a uma
codificação de gênero (as normas “realistas” delegam aos atores o encargo descritivo e os
levam a selecionar os “traços” representativos do conjunto) ou, ao contrário, a transgredi-la.
Em todos os casos, essas observações mostram que o ponto de vista não é tarefa apenas do
sujeito observador, mas se situa propriamente, como o mostra J. Fontanille com a noção de
“regulagem modal”81, na relação entre o objeto e o sujeito. Necessariamente percebido de
maneira parcial e incompleta, o objeto visado determina, com efeito, o modo de sua
apreensão: o que ele mostra, o que dissimula, o que dá a entender, etc. E o desafio do ponto
de vista assenta então sobre as estratégias de apreensão do objeto que podem ora visá-lo em
sua totalidade, de maneira englobante ou cumulativa, ora visá-lo em suas particularidades,
isolando detalhes ou selecionando, entre esses, os aspectos mais representativos de uma
totalidade inacessível por outros meios. Centradas no objeto focalizado, essas estratégias
determinam as condições da apreensão. O fragmento seguinte de Roger Martin du Gard pode
ilustrar a maneira pela qual as seleções implicam variações de orientação na organização de um
espaço:
De bicicleta, o correio de Maupeyrou está apenas a cinco minutos da estação:
mas a estação de Maupeyrou está a uns bons quinze minutos do correio, por causa da
encosta do Bois-Laurent.82

O leitor pode interrogar-se, por um instante, sobre o lugar que se encontra no alto da
encosta. A focalização inicial no correio orienta a leitura, fundindo sujeito frástico e posição
espacial de partida (o lugar fonte); ela convida ao mesmo tempo a colocar esse correio no alto
e estabelecer a estação ferroviária em nível inferior (o que seria aliás confirmado pelo saber
enciclopédico: as estações estão, na maioria das vezes, instaladas nas baixadas). Mas a leitura
sintáxica da localização leva evidentemente a corrigir essa primeira interpretação: é subindo do
correio à estação que se leva três vezes mais tempo, como o confirma, à página seguinte, o
percurso de bicicleta do carteiro, cujo esforço é marcado pelo ritmo bem cadenciado: “E é
agora a subida até a estação, através dos campos onde volteiam os corvos.” A inversão das
posições sintáxicas (fonte e meta), correlacionada às posições espaciais, desloca bruscamente o
ponto de vista e embaralha assim, por um momento, a leitura.

1.1.4 O discurso argumentativo: a tomada de posição

No discurso argumentativo, enfim, o ponto de vista designa a expressão de um juízo,


de uma opinião, de uma tomada de posição. A metáfora espacial dessa última expressão indica
claramente que os modos de enunciação são, aí também, questão de posições. A opinião pode
ser expressa sob a aparência do discurso objetivo ou da evidência (com o “ele”, a {pessoa

81
J. Fontanille desenvolve nessa perspectiva uma teoria global do ponto de vista, no capítulo intitulado
"Point de vue: perception et signification" de Sémiotique et littérature. Essais de méthode, op. cit., p. 41-61.
82
R. Martin du Gard, Vieille France, in Œuvres Complètes, t. II, Paris, Gallimard, col. "La Pléiade", 1955, p.
1018.
49

universal}(VER BENVENISTE PESSOA DE UNIVERSO): “é evidente que...”) ou sob a


égide de um sujeito coletivo (com o “se”: “sabe-se há muito tempo que...”), ou pelo empenho
de uma subjetividade assumida (com o “eu”). O ponto de vista daquele que sustenta uma
opinião será igualmente determinado pela maneira como ele instala o discurso de outrem, com
vistas a refutá-lo ou a consolidar seu próprio discurso. Ele resultará, enfim, da textualização do
percurso argumentativo, de sua organização e de seu desenvolvimento: ir da tese refutada à
tese proposta, do particular ao geral, do exemplo ao argumento, ou inversamente.
Ponto de vista do narrador, ponto de vista do herói, ponto de vista de perceptivo,
ponto de vista argumentativo... Se considerarmos o que há de comum entre essas diversas
acepções, ligadas ao recorte das grandes formas de discurso que o uso estabilizou, veremos
que alguns traços constantes as unem e formam, por assim dizer, seu alicerce. Em todos os
casos, o ponto de vista é determinado pelo jogo das posições enunciativas, segundo as
posições graduais de debreagem e embreagem. Ele é determinado pela relação modal
instaurada entre o sujeito do discurso e seu objeto, e não, como dá a entender a primeira
acepção do termo, pelo sujeito sozinho, identificado como um centro de orientação. É
determinado pelas estratégias de estruturação que selecionam e orientam os percursos e,
particularmente, as relações entre o todo e as partes.

1.2 Ponto de vista e poéticas da descrição

A fim de ilustrar concretamente essa problemática e de salientar-lhe os aspectos


decisivos, detenhamo-nos sobre um fenômeno singular na história da literatura. A lenda de
Tristão e Isolda só chegou até nós, como se sabe, por um conjunto de fragmentos
incompletos: versão de Béroul, versão de Thomas, diferentes versões da Folie Tristan, Lai du
chèvrefeuille de Marie de France, narrativa de Eilhart d'Oberg, narrativa de Gottfried de
Strasbourg. Esses fragmentos foram traduzidos, reunidos, reelaborados e reescritos por
Joseph Bédier no final do século XIX, dando assim origem a uma nova versão, completa e
seqüencial, dessa célebre história. Ora, a reescritura de Bédier, que se insere como uma de suas
variantes na longa tradição tristoniana, é, por sua vez, determinada pelo contexto cultural que,
na virada do século XX, define as condições de legibilidade romanesca. Para esclarecer esse
fenômeno, confrontemos dois fragmentos descritivos, um extraído de La Folie Tristan d'Oxford
e o outro de O romance de Tristão e Isolda de J. Bédier. Elaborado a partir do mesmo material
semântico de base que o primeiro, o segundo trecho o modifica, entretanto, de maneira radical
e essa transformação é precisamente realizada em função das regras que controlam, de forma
diferente, em cada caso, as seleções do ponto de vista.

O castelo de Tintagel

Texto 1
Sobre a costa da Cornualha
Se erguia a grande torre sólida e imponente.
Gigantes a haviam construído outrora.
50

As pedras, todas de mármore,


estavam dispostas e unidas com arte;
elas resistiam solidamente.
A parede apresentava uma superfície matizada
pelos reflexos de quartzo e do lazúli/ de sinople de
azul ... O castelo
possuía uma bela ponte levadiça
por sua vez, larga e fortificada.
Dois guardas armados supervisionavam
atentamente as entradas e saídas. Era lá
que o rei Marc habitava em companhia de bretões
e de cornualhenses porque ele amava o castelo,
aliás, da mesma forma que a rainha Isolda.
Nos arredores, havia muitas campinas,
florestas, caça, águas doces,
peixes e belas propriedades rurais.
Os navios, vindos do alto mar,
chegavam diretamente ao porto
situado no castelo.

“La Folie Tristan d'Oxford” in Tristan et Iseut. Les poèmes français.


La saga norroise, trad. D. Lacroix et Ph Walter, Paris, Livre de Poche,
coll. “Lettres gothiques”, 1989, pp. 235-236.

Texto 2

Então, puseram-se a caminho, conversando animadamente, até que divisaram finalmente um


rico castelo. Prados o cercavam, pomares, águas de nascentes, lugares para pescarias e terras
de cultivo. Numerosas naus entravam no porto. O castelo elevava-se diante do mar, forte e
belo, bem guarnecido contra qualquer assalto e contra todos os engenhos de guerra; e sua
torre principal, outrora erguida pelos gigantes, era construída de blocos de pedra, grandes e
bem talhados, dispostos como um tabuleiro de sinople e de azul.
51

O romance de Tristão e Isolda. Joseph Bédier, trad. Luís Cláudio de Castro e Costa, (pref.
G. Paris, 1901), São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 5.

O “castelo à beira-mar” constitui um motivo* descritivo estereotipado na literatura


medieval. Configuração textual cristalizada por sua estrutura, o motivo dispõe de uma
autonomia relativa que permite seu caráter “migratório” nos textos. Ele pode situar-se em
diferentes pontos da narrativa e essa posição contextual determina as variações temáticas de
sua significação. Situado no início da narrativa, o motivo do casamento, por exemplo, será
compreendido como contrato inicial, destinado a ser posto em xeque; situado no final da
narrativa, o mesmo motivo será tematizado como “recompensa” do herói. Aqui, a descrição
do castelo de Tintagel ocupa duas posições bastante diferentes: colocada no centro de uma
ação há muito iniciada na Folie Tristan (retorno de Tristão para junto de Isolda depois de seu
exílio), atualiza conhecimentos já assumidos e investidos no espaço da axiologia medieval;
situada bem no início do romance, no texto de Bédier, tem então um valor informativo e
quase documentário.
A comparabilidade das duas descrições é fundada sobre certas semelhanças:
encontram-se aí os traços essenciais da sintaxe descritiva (enunciados de estado, enunciados
qualificativos) que correspondem ao mesmo paradigma semântico, freqüentemente com o
mesmo material lexical (a muralha “de sinople e de azul”). E, se a quantidade de informação
não é exatamente a mesma, não há dúvida de que a disposição dos conteúdos e os universos
de valores que eles propõem são rigorosamente similares. Duas séries de campos semânticos
se opõem assim nitidamente em cada texto: as figuras do não-animado (mineral) opostas às do
animado (vegetal, animal, humano), os traços do universo guerreiro (força, defesa) opostos aos
do universo da fecundidade (campos, pesqueiros, águas vivas, etc). Esses conjuntos ilustram
duas das grandes funções ideológicas do mundo medieval, sugerindo os motivos contrastantes
da cavalaria: o castelo, o combate e o território de um lado; o pomar, o amor e a cortesania de
outro.
Mas o que distingue esses dois textos é antes de tudo o modo de assumir esses campos
semânticos. A discursivização transforma esses campos de significação em isotopias
discursivas, regidas por focalizações e por isso mesmo designando o lugar de um observador,
pura posição induzida pela organização dos elementos descritivos. Em conseqüência, os
modos de assunção sintáxica vão modificar as relações entre essas isotopias e fazer divergir
profundamente as significações. O exame do percurso descritivo mostra assim que, no texto 1,
há uma passagem sucessiva do exterior ao interior, depois do interior ao exterior, e enfim,
novamente, do exterior ao interior. A variação do ponto de vista marca uma seqüência de
rupturas, deslocando de maneira complexa a posição do observador, enquanto, no texto 2, o
percurso se desenvolve de maneira linear e contínua: ele parte do exterior, de uma panorâmica
geral, depois continua em focalizações progressivas até entrar no castelo. O observador
“acompanha” os viajantes, cujo ponto de vista adota. É o fenômeno da focalização interna.
Constatamos então que, na versão de La Folie Tristan d'Oxford, a complexidade dos
percursos de observação está sustentada por uma coerência de ordem temática. A passagem da
isotopia mineral (no início do texto) à isotopia do vivo (no fim do texto) é assegurada pela
mediação temática do amor. É o amor do rei pelo castelo, e o de Isolda, sobretudo, que
conduz o olhar como sua expansão figurativa natural aos “arredores”, e introduz a descrição
da abundante natureza, animal e vegetal. Passa-se assim do universo não humano, o da pedra e
dos gigantes, ao de uma humanidade tranqüila e fecunda. O amor assegura, no
desenvolvimento descritivo, a passagem da primeira isotopia à segunda: a sintaxe cumulativa
52

desta, contrastando com a sintaxe seletiva precedente, impõe a abundância no plano do


significante e confirma a transformação axiológica. Como se vê, a introdução dos valores
passionais comanda então a disposição dos elementos figurativos e a própria organização da
descrição.
Na versão de Bédier, as coisas se passam de modo muito diverso. Os dois universos
são articulados apenas pelo olhar de um observador exterior, exclusivamente cognitivo, que
vai descobrindo pouco a pouco a paisagem. Se, na outra versão, íamos do mineral ao vivo, da
guerra ao amor, passamos aqui do vivo ao mineral, do mundo natural ao mundo construído,
para exprimir a passagem “racional” da natureza à cultura. Essa estrutura inversa das duas
descrições está assentada exatamente em duas diferentes organizações s do ponto de vista: a
assunção do universo vegetal e animal da fecundidade pelo amor de Marcos e de Isolda
justificava a aparente flutuação dos pontos de observação; mas, agora, a estabilidade e a
permanência do ponto de vista instala um simples percurso de reconhecimento do universo
visível, sem a menor dimensão passional.
Essas diferenças entre as duas descrições ultrapassam a mera dimensão estilística. Elas
implicam, para além dos modos de enunciação individuais, formas de representação e de
racionalidade distintas, que se investem localmente num discurso descritivo, à primeira vista
redundante. Por um lado, a descontinuidade do ponto de vista em La Folie Tristan impõe a
tematização dos motivos medievais e da poética cortês: a mediação do amor transforma os
valores guerreiros em valores de fecundidade. E por outro lado, a continuidade do ponto de
vista em Bédier se insere por sua vez em uma poética da descrição que resulta de um uso
cultural. A enunciação individual, com a deformação que inflige à versão original, é da ordem
de um discurso coletivo e de suas codificações. Ao contrário da anterior, a descrição se apóia
desta vez em um ponto de observação explícito e rigorosamente motivado, no caso presente,
pelo deslocamento das personagens. Semelhante {regulação} do discurso descritivo
corresponde rigorosamente às normas da escritura “realista” do fim do século XIX.
Verificamos, assim, que variações, aparentemente tênues, da enunciação descritiva retomam
poéticas culturalmente cristalizadas que a análise permite evidenciar mediante o jogo das
próprias focalizações.

2. Ponto de vista e percepção

2.1 A questão do observador

2.1.1 Uma tipologia dos observadores

Para precisar a noção de observador já mencionada, faremos aqui referência às


propostas de J. Fontanille83. Ele evidencia a diversidade de posições do observador e dos
dispositivos que definem seus processos a partir de operações graduais de debreagem
enunciativa. Dessa gradação resultam diferentes modos de presença que fundamentam a
localização de quatro tipos de observadores.

83
J. Fontanille, Les espaces subjectifis. Introduction à la sémiotique de l'observateur, Paris, Hachette, col.
"U", 1989. (Primeira parte: "L'observateur dans le discours verbal").
53

 O focalizador. O papel não é nesse caso assumido por nenhum dos atores do discurso, nem
é orientado por qualquer dêixis espaço-temporal; é estritamente implícito. O papel do
focalizador é, pois, engendrado por uma mera debreagem actancial. Instância pressuposta,
ele é passível de reconstrução unicamente a partir das seleções e ocultações operadas e
identificadas no enunciado (será o caso na descrição de C. Simon, mais abaixo).
 O espectador. O focalizador se transforma em espectador, quando o ponto focal da
observação é determinado pela organização espaço-temporal do enunciado. É o caso, por
exemplo, da perspectiva no sentido pictural: o modo de perspectiva escolhido implica uma
posição do observador (no alto, em baixo, de frente, de lado, etc.) e acrescenta-lhe uma
tematização (a contre-plongée, por exemplo, cria uma relação dominado/dominante). Nesse
caso, a posição do observador é construída pelo enunciado espacial.
 O assistente. A presença do observador se instala no texto. O focalizador-espectador torna-
se um ator explícito no interior do enunciado. Mas seu papel é então exclusivamente
cognitivo. Não tem outra função a não ser construir o espaço figurativo. É, por exemplo,
o se anônimo da descrição “realista”: “Podia-se ver, à direita, etc”.
 O ator-participante. Desta vez, a debreagem é completa: ela é actancial (estabelecendo um
sujeito da ação), espaço-temporal (instalada no lugar e tempo da narrativa), actorial (é uma
personagem, freqüentemente um dos principais papéis), temática (sua percepção tem um
sentido e um valor em relação ao contexto). O discurso figurativo (ou descritivo) é a partir
de então inteiramente assumido por esse ator instalado na narrativa e associado a ele. A
seu papel cognitivo se juntam outros papéis na dimensão pragmática (ele age, manipula,
sanciona), cognitiva (ele percebe, examina, perscruta) ou passional (ele teme, suspeita, se
emociona). É desse observador tematizado na narrativa que P. Hamon84 propôs uma
tipologia: distingue assim o “descritor observador” definido pelo ver, o “descritor falante”
definido pelo dizer, o “descritor trabalhador” definido pelo fazer.

Pode-se então dizer que, a partir do momento em que há discurso e representação, há


sempre um observador que comanda sua disposição. Mas sua posição e seu estatuto variam;
eles são identificáveis a partir da análise do próprio texto. É, portanto, a organização
discursiva dos processos cognitivos que determina o papel atribuído pelo sujeito da
enunciação ao observador e que indica sua forma de ancoragem no discurso.

2.1.2 Observador e apreensão perceptiva

Os tipos de observador se depreendem da discursivização dos atos de conhecimento.


Eles implicam, por isso mesmo, uma atividade perceptiva. Esta pode ser explicitada por meio
de predicados da percepção (ver, envolver com o olhar, perceber, explorar, examinar, etc.) que
definem a natureza do ato, a estratégia utilizada e o papel atribuído ao observador. Ela pode
igualmente ser induzida pela disposição dos objetos, pelo modo de sua seleção, pela
estruturação das diferentes partes em relação à totalidade visada. Em todos os casos, a ligação
entre a questão do observador e a da própria percepção deve ser levada em conta em uma
reflexão sobre o ponto de vista.

84
P. Hamon, Introduction à l'analyse du descriptif. "Le système configuratif de la description", Paris,
Hachette, 1981, pp. 180-223.
54

Com efeito, essa totalidade visada pela percepção é em si mesma inacessível. A


apreensão dos objetos é necessariamente imperfeita. Erwin Straus, em Du sens des sens85,
ressalta essa incompletude perceptiva que ele, como psicólogo, situa sob o signo da
discursividade: “Os objetos são singulares como partes de um mundo. Eu os descubro na
discursividade de minha experiência vivida, em meus encontros com o mundo”.86 Afirmando
que essa discursividade da experiência sensorial é fundamental e que a do pensamento
conceptual é apenas uma de suas formas entre outras, E. Straus propõe as bases da semiótica
do mundo natural. Mas ele vai além: abre o espaço problemático das relações entre as
significações da percepção e as das linguagens que as comunicam. A experiência sensível se
apresenta, com efeito, como a sucessão dos hic et nunc que atualizam, limitam e especificam a
relação de “totalidade”. E. Straus utiliza o conceito de perspectiva para nomear essa apreensão
discursiva das propriedades sensoriais. As da bola que percebo, redonda e cinza, lisa, leve e
elástica, revelam, pelo jogo da conjunção “e”, o caráter particular e fragmentário de cada
aspecto. Mas o próprio enunciado dessas propriedades indica que o objeto nunca se manifesta
aos sentidos a não ser de maneira incompleta. A totalidade do objeto reúne suas diversas
perspectivas, mas ele não é jamais completamente desvelado em nenhuma delas. O “que” do
objeto nos é sempre dado em uma única perspectiva e, conseqüentemente, nos escapa de
forma inevitável: “Nós somos e permanecemos ligados à perspectiva e, no entanto, por ela
somos orientados para esse ‘quê’87”. Essa distância entre o foco perceptivo e a apreensão
efetivamente realizada constitui um dos problemas centrais da fenomenologia da percepção, à
qual voltaremos ao estudar a figuratividade. Os aspectos fragmentários da percepção são
chamados “esboços” por Husserl e seu arranjo na apreensão é uma “composição de
esboços”88; essa mesma operação é chamada “síntese de transição” por Merleau-Ponty,
precisando que “a ipseidade da coisa não é, evidentemente, nunca atingida”89. Greimas
assinala, por sua vez, a parcela de falta inerente à apreensão, introduzindo o traço aspectual da
imperfeição: é “o parecer imperfeito do sentido”90.

2.2 Observador e formas do visível

Compreende-se, portanto, que não podemos considerar a problemática do observador


sem lhe associar a das composições sensoriais que ele instaura. Ora, a distância que acabamos
de destacar entre o foco do observador e a apreensão do objeto está precisamente em jogo nas
variações da captação descritiva. Poderíamos dizer que a literatura traça no texto, pelas
codificações de suas poéticas e suas transformações, a busca sempre inacabada da completude
perceptiva. O exame comparativo de dois fragmentos, apresentando ambos descrições de
estações ferroviárias, vai nos permitir prolongar as observações que fizemos a propósito de
duas versões do castelo de Tintagel e explicar o que está em jogo nas poéticas da percepção
que diferenciam os dois discursos descritivos, a partir de seus protocolos de observação.

85
E. Straus. Du sens des sens. Contribution à l'étude des fondements de la psychologie (1935), Grenoble,
Jérôme Millon, 1989.
86
Ibid, p. 364.
87
Ibid, p. 370.
88
E. Husserl, Idées directrices pour une phénoménologie (1913), Paris, Gallimard, coll. "Tel", 1950, p. 132.
89
M. Merleau-Ponty, Phénoménologie de la perception, Paris, Gallimard, coll. "Tel", 1945, p. 269.{VER
TRAD. PORT.}
90
A. J. Greimas, De l'imperfection, Périgueux, Fanlac, 1987.
55

Visões de estações

Debaixo dos alpendres das linhas principais, a chegada de um comboio de Mantes animara o cais, e
ele seguiu com os olhos a máquina de manobras, uma màquinazinha tender, de três rodas baixas e
emparelhadas, que começava o desmanchar do comboio, ativa, mexida, levando, empurrando os
vagões para as vias de armazenagem. Outra máquina, essa mais poderosa, máquina de expresso,
com duas grandes rodas devoradoras, estacionava isolada, lançando pela chaminé uma grossa
fumaça preta, que subia direita e vagarosa, no ar tranqüilo. Mas tôda sua atenção foi atraída pelo
comboio das três e vinte e cinco, com destino a Caen, já cheio de viajantes e que esperava apenas
pela máquina. Não podia ver esta máquina, pois estava parada além da ponte da Europa; ouvia-a
apenas pedir passagem, com pequenos silvos apressados, como alguém que começa a impacientar-
se. Foi dada uma ordem, ela, com silvo breve, mostrou que compreendera. Depois, antes de pôr-se
em marcha, foram abertas as válvulas da frente, o vapor silvou rasando o solo num jato
ensurdecedor. E viu então aparecer por cima da ponte aquela brancura que se alastrava,
redemoinhante como uma penugem de neve, voando através das armações de ferro. Um bom
espaço ficou branco de vapor, ao passo que o fumo sempre crescente da outra máquina alargava o
seu véu negro. Por detrás, abafavam sons prolongados de cornetas, vozes de comando, abalos de
plataformas girantes. Produziu-se um rasgão, e êle distinguiu, ao fundo, um comboio de Versalhes e
outro de Auteuil, um ascendente e outro descendente, cruzando-se.
Émile Zola, A besta humana, trad. Eduardo Nunes Fonseca. São
Paulo: Hemus, 1982 {pág. ??? .........}

A um só tempo aérea e monumental, avançando-se mais lentamente como que levada por uma
nuvem, com os jatos de vapor fundindo-se entre as bielas cobertas de óleo amarelecido, sacudindo
o solo sob sua massa, puxando, atrás de si, um conjunto de vagões de um modelo antigo tirados dos
depósitos em que eram conservados, talvez à espera desse dia (feitos de madeira, pintados de uma
cor marrom descascada e providos de um bagageiro em cada uma de suas extremidades), a
locomotiva entrou com um rumor surdo sob a vidraça da estação onde, na plataforma, se
acotovelava uma multidão compacta cuja primeira fila recuou um passo ao vê-la aproximar-se, não
propriamente por medo de ser consumida pelo vapor ou cair sob as rodas, mas por uma espécie de
horror instintivo, de intuitivo instinto de repulsão que lhe ordenava conservar, pelo maior tempo
possível entre si e a parede vertical dos vagões, que desfilavam cada vez mais lentamente, um
ilusório e último intervalo de vida, como um fosso, um estreito vale, ou melhor, uma invisível
muralha, um invisível paredão para além do qual, uma vez transposto, seria perpetrado algo de
irremediável, definitivo e terrível.

Claude Simon, L'Acacia, Paris, © Éd. de Minuit, 1989, pp. 153-154.

O confronto das estações – a descrição inicial da estação Saint-Lazare em A besta humana, e a


de uma estação sem nome, extraída L´Acacia, duas descrições de um lugar similar por um século
separadas – torma eminentemente sensível o contraste entre duas poéticas da percepção: a primeira
parece orientada para a fase de conclusão de uma interpretação cognitiva, abrindo-se, em
conseqüência, para a dimensão simbólica, isto é, para a possibilidade de considerar os conteúdos
espaciais como signficantes de um outro discurso, temático e abstrato; a outra, ao contrário, volta-se
para a fase inicial da percepção, aplicada à aventura do seu advento, de seu surgimento no universo
sensível, atrapalhando, por isso, a manifestação cognitiva, ou dando origem, em todo o caso, a um
processo muito diferente de conhecimento.
56

2.2.1 Dois universos da visão

Tendo em vista a tipologia proposta a pouco, é fácil reconhecer duas posições bem
diferenciadas do observador: em Zola, o observador é ator participante, em Simon, é focalizador-
espectador. O primeiro é dedutível a partir de localizações explícitas, predicados perceptivos e
denominações especializadas (ele é do ramo!). São tais estruturas regentes estáveis que
resultam na criação de um espaço descontínuo, discretizado, segmentado, pelo qual o
observador é, de certo modo, o responsável (decide sobre o visível, mas também sobre o que
não o é ainda). O saber do observador é definido pela assunção da verdade do que vê: a
composição de um mundo prévia e sabiamente ordenado. No segundo caso, ao contrário, não
há ator instalado que faça ver o que é mostrado: nenhuma qualificação para descrevê-lo,
nenhuma posição explícita, nenhum predicado perceptivo, ele é apenas um ponto focal
inferido pelas formas que “vêm até ele”. O espaço criado é então impreciso, incerto, marcado
pela suposição, pela dúvida e pela crença. A um universo de conhecimentos verdadeiros se
opõe o universo flutuante da percepção por si só. Cada parcela de sensação, enunciada pelas
qualidades que emanam dos objetos e não pelos próprios objetos (sua denominação é
protelada) entra, pouco a pouco, em composição com as outras, constituindo, por
aproximação e por ajuste, a figuração desses objetos.
Além dessa abordagem contrastiva, nosso objetivo será esclarecer as características
próprias à representação do espaço em A besta humana e ampliar-lhes o alcance: como se
depreendem, a partir desse único trecho, os elementos de uma gramática do espaço? Poderiam
estes contribuir para solucionar um pequeno enigma de composição literária próprio dessa
obra? Dois “romances”, com efeito, compõem A besta humana: o da estrada de ferro (cujo
herói é Jacques Lantier) e o do inquérito judiciário (cujo herói é o juiz Denizet); dois grandes
percursos narrativos cuja convergência, na gênese do romance, constitui um dos problemas
discutidos pela crítica de Zola.15 Nossa hipótese é a de que o dispositivo espacial permitiria
assegurar uma estreita conexão entre esses dois percursos. Sobre o pano de fundo de uma
linguagem espacial comum estabelecer-se-ia a ligação estrutural entre as formações do
conhecimento sensível, que regula a representação figurativa, e as do conhecimento inteligível,
que determina os valores cognitivos da certeza e da “íntima convicção” de um juiz. Essa
ligação, unindo secretamente a dualidade temática do romance, garantiria também a unidade
efetiva do texto.
Antes de examinar essa contribuição particular da semiótica à crítica literária,
tentaremos, por meio de uma microanálise, retornar à fonte de uma certa poética da percepção
espacial, buscando o que pode fundamentar suas próprias características. Como o discurso de
Zola reconstrói a percepção? Que relações estabelece entre a percepção e o sujeito do saber?
Como o texto romanesco fixa uma certa esquematização cultural da percepção, um certo uso
da visibilidade? O confronto entre as duas estações, “vistas” por É. Zola e por C. Simon, vai
nos permitir salientar com nitidez algumas respostas a essas questões. Tomando como ponto
de partida a visão, para chegarmos ao que o texto diz sobre a espacialidade, consideramos que
a contribuição da literatura é, de certo modo, decisiva: ela entra, até certo ponto, na
constituição da própria visão, molda nossa maneira de perceber. Como diz M. de Certeau, “a
literatura traça, na língua, o insensato da visão”. Trata-se, portanto, de tentar compreender

15
Zola havia decidido, durante o trabalho preparatório, fundir em um só romance dois projetos inicialmente
distintos: um romance {judiciário} e um romance sobre estradas de ferro. Cf. H. Mitterand, “Étude" sur La
Bête humaine, em Zola, Les Rougon-Macquart, Paris, Gallimard. Col. “La Pléiade”. t . IV, 1966, pp. 1714-
1729.
57

como o discurso modela uma certa ordem cultural da visão, como, desenvolvendo o
imperceptível da percepção, ele a transforma em significação. O trabalho textual de C. Simon,
contrastando vigorosamente com o de Zola, é, desse ponto de vista, notável: impõe uma
espécie de ruptura nas formas de escritura solidamente estabilizadas pelo uso, provocando
uma espécie de abalo sísmico no interior das figuras sensíveis que a tradição discursiva da
percepção apresentava, isoláveis e unificadas, como evidentemente nomeáveis {PERÍODO
DE DIFÍCIL COMPREENSÃO}. Ele nos faz voltar à gênese e ao advento da percepção, ao
passo que a escritura de Zola parece, ao contrário, acoplar-se a ela, avalizá-la e prolongar-lhe
as conseqüências, sustentando-a além do próprio acontecimento perceptivo. Encontramo-nos,
portanto, em presença de duas esquematizações distintas da percepção. Ora, em Zola, como
veremos, é o desenvolvimento de seu modelo espacial que parece garantir, em A besta humana,
a unificação dos dois discursos, o das vias férreas e o das vias do saber.
Nossa análise concerne essencialmente ao papel da dimensão cognitiva* e
apóia-se no papel do observador na construção perceptiva das duas estações: no primeiro
caso, em Zola, a percepção é inteiramente conduzida pelo /saber/ comandado pelo ator-
participante; no segundo, em Simon, ela é apreendida em sua textura, voltada para o /crer/
que a funda e que submete a seus arabescos a progressiva formação do /saber/. Trata-se de
uma percepção irrefletida, assujeitada ao movimento de uma “fé perceptiva” (M. Merleau-
Ponty): é precisamente nesse espaço de irreflexão que a escritura observa uma pausa,
tornando-o, por assim dizer, “visível”.
Por sua vez, em Zola a construção parece ter o aval de uma inteligibilidade
estabelecida previamente. Como escreve Bernard Noël, “o olho, quem é que não confia nele?
Temos fé naquilo que vemos16”. Essa construção apóia-se na figura de um sujeito observador
debreado, “ele”, fonte do saber, verdadeira sentinela do conhecimento, que hierarquiza,
controla e ordena e que, enfim, por sobre a base inalterável dessa confiança, torna possível a
expansão semântica das imagens percebidas: tal sujeito autoriza, assim, a efusão simbólica do
figurativo. Já em C. Simon, observamos, pelo contrário, se não um apagamento completo,
pelo menos um enfraquecimento do sujeito. Quer se trate do sujeito-observador pressuposto
pela enunciação (mas ausente, simples focalizador), ou do sujeito gramatical da frase (a
locomotiva), a figura do sujeito está literalmente encoberta na processualidade do percurso
perceptivo, que forma o núcleo da descrição. Esta se desenvolve, por aproximações e
contigüidades sucessivas, ao largo do sujeito e ao largo do objeto; ou seja, por assim dizer, no
limiar entre os dois. O saber, sob a forma de avaliações, hipóteses e previsões, se entremeia
com o sensível. Sua emergência se prende e se submete à do visível; ele se torna tão sensível
quanto o sensível.

2.2.2 Visão e inteligibilidade

Em Zola, um duplo sistema, semântico e enunciativo, estabelece a arquitetura:


uma seqüência de localizações ( “debaixo dos alpendres”, “parada além da ponte da Europa”,
“por cima da ponte”, “por detrás”, “ao fundo”) determina, entre cada debreagem, o mesmo
número de isotopias espaciais que tem exatamente a função de moldura: os alpendres não
estão ali para serem vistos, mas para delimitar o espaço cognitivo do quadro. Um conjunto de
predicados visuais, em seguida, circunscreve as operações do observador (“ele seguiu com os

16
B. Noël, Journal du regard, Paris, POL, 1988, p.14.
58

olhos”, “tôda a sua atenção foi atraída”, “viu então aparecer”, e enfim, “distinguiu”): este é
exatamente a peça chave de uma cena que ele articula e sustenta pelos diferentes regimes do
saber. O que se situa fora de seu campo visual (“não podia ver”) não é apreendido em virtude
de uma síntese visual “de transição” (Merleau-Ponty) – que permite assumir a existência
daquilo que não vemos, a partir do que vemos – sabendo que, deslocando-nos, nós o
veremos, mas é apreendido por uma síntese puramente intelectual: o que ele não vê não é
colocado como “visível a partir de um outro lugar”, presente e iminente sob outros pontos de
vista, mas simplesmente pressuposto pela espera do trem; a locomotiva invisível é algo
esperado, ela deve aparecer.
O percurso se apresenta, então, como uma pequena narrativa do mundo
inteligível. O observador não se contenta em ver ou ouvir, lê o sentido do que percebe. Ver e
compreender tornaram-se indissociáveis. Ele “vê” as relações, os engates e desengates, a
seqüência ininterrupta das conjunções e disjunções, as esperas percebidas como causas, os
objetivos últimos dos deslocamentos, enfim, toda essa micronarratividade que tem por atores
as máquinas. A inteligibilidade do mundo percebido englobou o movimento ou a imobilidade
dos trens, a distinção ou a indistinção das figuras, a nitidez ou a difusão das imagens que
compõem o quadro. Destacado da percepção que inicialmente o funda, o universo da estação
é estruturado como um campo de conhecimentos. Ele está então pronto para exercer outras
funções além da mera representação: esta se abre para a possibilidade de um outro discurso,
paralelo ao primeiro, em que cada figura será convocada para uma outra atribuição que não
aquela de sua primeira designação figurativa. Cada uma se torna assim uma possível metáfora.
Os conectores de isotopias entre os dois níveis de significação conduzem explicitamente o
leitor para essa via interpretativa: “ele ouvia a máquina em busca da linha com ligeiros apitos
apressados, como uma pessoa que vai sendo tomada pela impaciência humana”, conferindo
assim à locomotiva um estatuto antropomórfico.
Mas essa própria personificação pontual está sob a dependência de um outro
deslocamento semântico de maior envergadura. Eis aí três máquinas, ocupando cada uma três
subseqüências do texto: a primeira tem “três rodas emparelhadas”, a segunda tem “duas
grandes rodas devoradoras”; quanto à terceira, ela permanece invisível, mesmo sob os sinais
"abundantes" de sua aparição. Uma série de engates, desengates e emparelhamentos torna
legível a ossatura narrativa do texto. A micronarrativa das máquinas torna-se assim
emblemática da narrativa global: as locomotivas em seu movimento projetam, como metáfora
de estrutura, as duas figuras femininas centrais de A besta humana, Flora, a solitária, e Severina,
a impaciente. Suas duas fumaças se misturam no momento da crise, a fumaça branca e a
fumaça negra. Então, o desenho desaparece, as linhas são “ultrapassadas” pelo aumento do
volume que transforma a ordem do visível, instalando formas indistintas e disparatadas,
encobrindo todas as conexões na sua ilusão sensível, até que se produza, enfim, a “ruptura”
que reinstaura a toponímia, a linha e o cruzamento, ou seja, a racionalidade perceptiva inicial.
Essas poucas observações sugerem que a escritura zoliana obedece a um verdadeiro
sistema de esquematização discursiva da percepção. Se a percepção se traduz em modo de
conhecimento, é porque corresponde a um esquema canônico mais cristalizado ou menos
cujas seqüências podem ser identificadas. A primeira etapa refere-se a um /fazer saber/ que
instala a competência soberana de um observador, que se manifesta por meio de predicados
perceptivos. A segunda etapa é a da transformação, que assegura a conversão das
representações concretas em percursos temáticos mais abstratos. A figura (“rodas
emparelhadas”, “comboio”) não designa mais somente seu objeto, ela torna-se testemunha e
agente: está pronta para entrar em outros programas além daqueles aos quais estava
inicialmente destinada. Os conectores de isotopia tais como a comparação e a metáfora
assinalam precisamente, em sua interface semântica, essa operação. A terceira etapa, enfim, é a
59

de um reconhecimento da dimensão temática, do “símbolo”. O universo visível, agora levado à


abstração, é outro, mas permanecendo inteiramente o mesmo; ele garante nas marcas
concretas do visível uma certa ordem finalizada do conhecimento. Desse modo, estendido às
representações cognitivas, esse dispositivo permite explicar as estruturas significantes
transversais no conjunto do romance.

2.2.3 A aventura da percepção

Assim como a filosofia positivista tinha encontrado seu narrador em É. Zola,


igualmente a fenomenologia da percepção encontrou em C. Simon seu romancista: aquele que
retrata a aventura de perceber. Merleau-Ponty notava assim, já em 1960, após a leitura de La
Route des Flandres: “ver é a permissão para não pensar a coisa, já que a vemos” e, mais adiante:
“visão sensorial é visão de visionário17”. À dilatação em Zola se opõe, nesse caso, em Simon,
uma retração do gesto perceptivo sobre si mesmo, em um simples jogo de focalizações. A
visão, voltada para o exame detalhado das qualidades sensoriais, parece retornar à sua forma
elementar e primitiva: o tato. O esquema descritivo é, pois, muito diferente daquele que
depreendemos anteriormente. Vamos nos deter em duas características que concernem ao
estatuto do sujeito e à escritura da percepção.

Primeiramente, se consideramos o enunciado principal, no centro do trecho citado: “a


locomotiva entrou”, constatamos que se encaixa literalmente nas determinações que o
precedem (o acúmulo de particípios presentes) e nas que lhe sucedem até o final do texto. Sua
função regente é atenuada por sua posição. E seu sujeito “locomotiva” surge em meio a
qualificações, como uma denominação esperada no processo de uma construção: o termo
resultante de um feixe de percepções do qual ele é a condensação lexical. De modo que a
figura semântica da palavra “locomotiva” se impõe de modo mais tênue que todas as que
concorreram para construí-la. Da mesma forma, a “multidão” é apenas a síntese das
apreensões, das repulsões, de toda a massa afetiva de defesa e de temor que constituem sua
forma nesse instante. O mesmo ainda podemos dizer para os enunciados de saber que
focalizam o observador: não apenas eles estão modalizados pelo possível ou pelo provável
(“talvez à espera desse dia”), não apenas estão imersos em um contexto emocional e sensível,
mas além disso não remetem a qualquer fonte subjetiva determinável.

Podemos dizer, então, que a escritura de C. Simon retarda o sujeito: explora todo o
espaço intermediário que o faz surgir, nas dimensões passional, perceptiva e cognitiva, e
parece manter-se nessa mediação. Ela expõe a sensorialidade movente que insere o sujeito no
mundo dos objetos, mas suspende até o limite o momento de nomeá-lo, ou seja, de fixá-lo.
Então, como no caso da locomotiva, a formação sensível se acha a tal ponto consumada que o
nome, quando enfim aparece, tem a função de uma simples caixa registradora: sua significação
não determina mais nada, ele é apenas a síntese ressoante do processo que o formou, é o
produto de uma definição indireta que tem toda prioridade sobre ele. De uma forma mais
geral, podemos dizer que, na escritura de C. Simon, o actante está enfraquecido. Sujeito e
objeto tanto da enunciação quanto do enunciado, estão instalados, sempre precários, ao final
de uma rede complexa de relações predicativas que contribuíram, em conjunto, para constituí-
los. Ao contrário do sujeito em Zola - sentinela que controla a ordem da visão - ele está

17
M. Merleau-Ponty, "Cinq notes sur Claude Simon", in Esprit, 66, 1982, pp. 64-66.
60

imerso por uma espécie de dissipação dócil e consentida, no próprio centro da percepção,
como para favorecer a explicitação do que o institui, na solidariedade estreita, íntima, entre
aquele que vê e o que é visto.

No que concerne à escritura da percepção, podemos dizer que é o percurso narrativo


de seu advento que é visado na descrição: um percurso de diferenciação actancial. Merleau-
Ponty ressalta muitas vezes o paradoxo da percepção18: entranhando-se na “textura” da visão,
na “imbricação”, na “intersecção”, na “intromissão”, na “imanência” do percebido e daquele
que percebe, no “ocultamento” do sujeito que vê no interior dos objetos visíveis, ele procura
sempre o limiar, o corte originário e necessário que instaura nossas percepções como
possibilidades do conhecimento. Ele procura isolar a ruptura a partir da qual se organizam as
práticas do saber. Esse intervalo entre o olhar e a coisa é ocupado por uma modalidade
fundadora: o /crer/, a “fé perceptiva”. É ela que funda a distinção e a impossível indistinção
entre objetos vistos e sujeitos que vêem. Fora desse /crer/ fundador, a imersão seria total,
alucinada, na inerência absoluta de um sujeito e de um objeto que seriam, por isso mesmo,
inomeáveis. É exatamente esse limiar, o da actancialização, que é visado pelo texto de C.
Simon, chegando aos limites da indizibilidade do visível, e dando a “palavra” ao imperceptível
da percepção.

Isso explica a forma de uma escritura que procede de uma apreensão tensionada por
aproximações graduais, acumulações e intromissões. São as superposições quase sinonímicas :
“por uma espécie de horror instintivo”, de “ instinto intuitivo de repulsão”, ou ainda a
diferenciação progressiva entre dois temores, o medo, virtualizado, de “cair sob as rodas”, e o
horror, atualizado, de penetrar nos vagões. É o deslizamento do modo sensorial, na iminência
do embarque no trem, que substitui a ordem do visível (“fosso”,“vale”) pela ordem mais
elementar do tátil (“invisível muralha”, “um invisível paredão”) e, inverte, na anulação da
distância, a relação entre o sujeito e o objeto da percepção: é o trem que avança contra a
multidão, é o vagão que vai incorporá-la. A correspondência das figuras visuais e táteis com as
que qualificavam a locomotiva no início do texto: “aérea e monumental”, reforça a absorção
do sujeito em sua percepção, o “tornar-se-trem” da multidão19.

Assim, o jogo das “diferenças” (no sentido estrutural do termo), na escritura de


C.Simon, mais do que ser categorial, é sempre uma variação de intensidade; em Zola, a
diferença, articulada em junções, era, antes de mais nada, categorial. O espaço, que se
apresentava como uma complexidade discretizada e segmentável, oferece-se agora como um
conjunto impreciso, submetido às modulações de tensão sensorial. O sujeito-observador, no
texto de Simon, difundido nas figuras de sua percepção, é enfraquecido e incerto; ele formava,
no de Zola, a base inabalável da construção do mundo visível, garantia da visão e responsável
pela extensão aplicativa das categorias espaciais.

18
Cf. particularmente Le visible et l'Invisible, Paris, Gallimard, 1964 {EXISTE TRAD. BRAS.} e Le Primat
de la perception et ses conséquences philosophiques, Grenoble, Cynara, 1989.
19
Absorvido na percepção, o conhecimento é suspenso: o leitor compreenderá posteriormente que a cena se
passa em junho de 1940, no momento da ofensiva alemã no norte da França, e que o trem em questão é o do
êxodo das populações que fogem do invasor.
61

2.2.4 O trem da justiça

A distinção entre os dois textos, além das formas de escritura, implica, portanto,
atitudes profundamente diferentes quanto à percepção do espaço. A análise permitiu
esclarecer, de maneira contrastiva, algumas características do discurso espacial no romance de
Zola, que são, de resto, consideravelmente recorrentes. Com efeito, a descrição da mesma
estação, com o vai-e-vem de trens nas plataformas, é retomada cinco vezes no primeiro
capítulo de A besta humana, e rearticula, em cada ocorrência, o mesmo esquema espacial. Este,
que organiza em superfície as representações concretas, pode ser formulado nos termos mais
abstratos de uma espacialidade profunda, e suscita a hipótese segundo a qual o espaço,
desvinculado da ordem sensorial, regeria como significante a dimensão cognitiva do discurso
no romance. Esse esquema espacial abstrato pode facilmente ser reduzido ao enunciado de
duas categorias fundamentais da sintaxe narrativa: a junção e a suspensão da junção. À
primeira categoria, que se subdivide em relações de conjunção e disjunção, correspondem as
figuras do engate, da ligação, do entroncamento e do desentroncamento, das conexões e das
desconexões, do atrelar e do desatrelar das máquinas. À segunda correspondem as figuras
dissolventes que embaralham as categorias, esfumam o desenho, apagam as linhas e os
contornos: o vapor, a fumaça, a bruma, o mato ou a escuridão tornam então confusas e
indecisas as formas segmentadas da sintaxe inicial. A nuvem deforma os objetos e os
percursos, tornando-os difusos e indiscerníveis.

Ora, essa transformação, cujo núcleo sintáxico se percebe claramente (estado juntivo,
seguido de negação ou suspensão desse estado) se reconhece em outros lugares no romance,
em que ela organiza, enquanto significante, outros conteúdos além do espaço visual disposto
nas seqüências descritivas. Ela comanda, por exemplo, o discurso explicativo da famosa
doença hereditária que afeta Jacques Lantier. A “ruptura” assenta primeiramente em um jogo
alternativo de disjunções e conjunções no interior de um sujeito cindido em dois actantes.
Disjunções: ele está “ausente do seu ser” (p. 205), “terrificado de já não poder ser senhor de si”, “era
necessário a ele ir em frente, mais longe, sempre mais longe, para {“fugir do outro”} (p. 218); e
depois, repentinamente, brusca conjunção, “admirado de entrar bruscamente na posse de si
mesmo” (p. 205). Essas transferências acabam por misturar-se em uma "fumaça" dissipadora
das próprias categorias actanciais, por meio de figuras espaciais, como podemos notar: “havia
em seu ser súbitas perdas de equilíbrio como rupturas, buracos pelos quais o seu eu lhe escapava,
no meio de uma espécie de fumaceira que deformava tudo” (p. 48).

O modelo dessa transformação espacial "profunda" determina também, e isso é mais


importante em relação à economia geral do romance, o funcionamento do discurso
veridictório da justiça: o trabalho do juiz consiste em interligar dois crimes; ele realiza, por
meio de “engrenagens complicadas”, a conjunção dos percursos disjuntos e chega a uma
certeza “iluminadora”. Mas a bela conjunção é uma ilusão. A dissolução final dessa certeza
categórica se manifesta, no momento do processo, quando “o vôo silencioso da melancólica
verdade” atravessa por um instante a sala. O percurso cognitivo do juiz Denizet, simétrico em
sua disposição romanesca do percurso figurativo dos trens (um no início, outro ao final), é
reconstruído como uma série de junções, de entrelaçamentos, de entroncamentos, de
conjunções aparentemente indestrutíveis, ou seja, incontestáveis. Seu triunfo é ter sabido
“exumar o velho caso e relacioná-lo ao novo crime”, ter anunciado “o duplo processo duma só
vez” (p. 298), ter dado “a sua acusação uma solidez (...) indestrutível”, “uma força de evidência”
(p. 294). Seu “edifício de lógica” era tão bem construído que “se lhe deslocassem uma peça, tudo se
desmoronaria” (p. 301). Mas, conforme o esquema espacial, o sistema categorial da construção
62

judiciária se funde no indiscernível, aí representado pelo “mato”: “A justiça, que derradeira


ilusão! Querer ser justo, não era um lôgro quando a verdade anda tão obstruída91 [pelo mato]?”
(p. 299). A bela junção veridictória se dissipa igualmente no espaço furtivo e movente da
emoção que difunde um instante de verdade contra a “mentira lógica”: “uma emoção vinda92
da garganta dos jurados: era a verdade que passava, muda” (p. 305).

A espacialidade profunda rege, do mesmo modo, por meio da mesma estruturação, o


discurso figurativo do trânsito ferroviário e o discurso interpretativo da elaboração do saber
“verdadeiro”. Essa correlação estrutural faz justiça, parece-nos, à intenção de Zola quando,
procurando justificar a unidade das duas narrativas, ferroviária e judiciária, observava em uma
carta que lhe “era necessário conservar o grande trânsito de uma linha como acompanhamento
contínuo” (grifo nosso). Essa correlação, na verdade, apenas explicitava suas razões internas,
porque esse acompanhamento é o de um mesmo regime de espacialização que pauta o
desenvolvimento dos dois discursos e os torna homogêneos em uma mesma escritura. A rede
de metáforas espaciais manifesta, em superfície, os princípios dessa organização e reduz sua
eficácia simbólica. A espacialidade profunda assegura a junção entre o desenvolvimento do
conhecimento sensível e o do conhecimento inteligível. Cada um deles encontra no outro, em
virtude dessa estrutura espacial, sua motivação: a ilusão referencial e a ilusão interpretativa se
reúnem por meio dela. O trem e a justiça estão, nesse caso, nos mesmos trilhos. Esse
imaginário da espacialidade, tão pregnante em A besta humana, ancora-se nas escolhas
enunciativas e nas funções conferidas ao observador.

2.2.5 Para concluir: a “linguagem espacial” de Zola

Além dessa análise particular, podemos ampliar a perspectiva para uma hipótese mais
geral sobre a poética do espaço peculiar ao universo de Zola. Vasta cenografia do visível, sua
obra pode parecer dirigida por uma reflexão sobre o espaço. De algumas figuras espaciais
matrizes irradia, em inúmeros romances, uma significação que ultrapassa amplamente sua
função referencial. É por essa razão que o estudo específico da espacialidade nessa obra
conduz a uma reflexão mais geral sobre seu estatuto semiótico: as relações que o espaço
mantém com a ação romanesca, com os sujeitos, cuja identidade ela sustenta, com a axiologia
e o conjunto de valores em jogo na narrativa20. A análise global de Germinal sugeriu-nos, assim,
uma hipótese que diz respeito ao papel da espacialidade no romance, cujas significações
ultrapassariam a mera representação figurativa. Ora, além de sua eventual validade descritiva
para um romance em particular, essa hipótese tinha uma ambição mais ampla: a de desvelar

91
[N. dos T.] Em francês, esse último enunciado é “”Vouloir être juste n’était-ce pas um leurre, quand la
vérité est si obstruée de broussailles?” (p. 1316). Na versão para o português, de Eduardo Nunes Fonseca, a
expressão “de broussailles” foi omitida. Entretanto, consideramos pertinente mantê-la aqui, tendo em vista
sua relevância na discussão de D. Bertrand.
92
[N. dos T.] Em francês, temos o seguinte enunciado com os destaques feitos por Denis Bertrand: “une
émotion venue ils ne savaient d’où serra um instant les jures à la gorge: c’était la vérité qui passait,
muette”(p. 1322). Novamente, na tradução portuguesa, omitiu-se a expressão “venue ils ne savaient d’où”
(“vinda eles não sabiam de onde”), também destacada por Bertrand em sua análise.
20
Inúmeros trabalhos foram consagrados a essa questão. Cf. particularmente G. Deleuze, “Zola et la fêlure”,
Logique du sens, Paris, Minuit, 1969; P. Hamon, Introduction à l'analyse du descriptif, Paris, Hachette, 1985;
Denis Bertrand, L'Espace et Le Sens, Paris-Amsterdam, Hadès-Benjamins, 1985; H.Mitterand, "Figures de
l’espace". Zola, L'histoire et la fiction, Paris, PUF, 1990.
63

um funcionamento geral do discurso espacial que rege vários níveis de leitura e remete à
enunciação em ato. De um lado, ela permite traçar o perfil cognitivo do enunciador e, de
outro, permite sugerir uma explicação da eficácia particular da escritura romanesca de Zola,
em termos de recepção. É, pois, sobre uma certa "poética" da legibilidade do chamado
romance realista que nos propomos refletir aqui, procurando resgatar alguns de seus princípios
fundamentais e encontrando-os precisamente em torno da espacialidade. Uma pesquisa
relacionada à descrição de propriedades generalizáveis da escritura de Zola deve, com efeito,
ser testada em um corpus mais amplo que o de um único romance. É essa hipótese que
pusemos à prova no exame de alguns dispositivos espaciais de A besta humana e que confirma a
análise transversal efetuada a propósito de Germinal.

Esta análise assenta na distinção entre dois níveis, o de uma representação figurativa
“de superfície”, que torna visíveis os objetos do mundo natural e os expõe ao leitor como se
ela o convidasse a se situar entre eles, e o de um dispositivo figurativo “profundo” que rege
uma dimensão mais abstrata do discurso, de ordem interpretativa e hermenêutica, impondo
seus efeitos de verdade e garantindo sua credibilidade. A relação entre esses dois níveis produz
o que às vezes se denominou a lógica figurativa (cf. mais abaixo, terceira parte:
“Figuratividade”): haveria assim em Zola uma forma de raciocínio espacial? Tal como
verificamos a respeito de A besta humana, as expansões semânticas da espacialidade em
Germinal levam, de fato, a reconhecer a existência de uma verdadeira linguagem espacial que
seria característica da organização do discurso em Zola. A espacialidade, portanto, não
controlaria somente uma ordem de representação icônica do mundo sensível, a topografia, o
cenário, a percepção e os movimentos das personagens; ela formaria, ao mesmo tempo, uma
“topologia” mais abstrata, responsável por outras funções semânticas.

Cobrindo de ponta a ponta o universo romanesco de Germinal, a isotopia espacial se


apresenta como um sistema ao mesmo tempo paradigmático (a oposição entre a planície e a
mina, o universo da superfície e o do fundo) e sintagmático (pela transformação sucessiva das
relações antagônicas entre a superfície e o fundo). É desse modo, por exemplo, que as figuras
elementares (a terra, a água, o fogo) são apresentadas nos dois universos e recebem as
definições próprias em cada um deles: a geometria e o controle ordenado dessas figuras
estabelecem, na superfície, sua subordinação ao universo dos valores culturais (os da
burguesia); o labirinto e a expansão destruidora dessas mesmas figuras nas profundezas da
mina, as insere no universo dos valores naturais (as forças ctonianas).

Os mineiros, por sua vez, não têm um espaço próprio. Nessa perspectiva, sua busca
aparece, pois, como a de um lugar de residência para seus valores: não há axiologia possível
sem território. Excluídos da superfície, eles tentam conquistá-la no momento da grande greve:
quando esta fracassa (no episódio do tiroteio), retornam ao fundo. Mas o desmoronamento do
poço, em decorrência da sabotagem, afundando a planície no abismo, aniquila, por sua vez, os
valores que se prendiam à superfície. Como os pólos se excluem mutuamente, a anulação de
um dos pólos pelo outro suprime toda produção de valores. A solução se encontra na figura
final da germinação: é ela que, ao mesmo tempo subterrânea, terrestre e aérea, encarna o
nascimento de uma nova axiologia. A última página do romance, com a alucinação hiper-
estésica de Étienne que o faz perceber, em conjunto e em plena luz, todas as dimensões da
espacialidade, visível e invisível, realiza a conjunção dos espaços que dá sentido e valor à
“fábula reformista” de Zola.

Ora, esse sistema de conexões espaciais (exclusão de pólos que engendra o negativo,
inclusão que engendra o positivo) parece subtender não só o dispositivo figurativo do
romance, mas igualmente seu dispositivo interpretativo - ou mesmo anagógico - na medida em
64

que aí se delineia uma visão extrema e finalizada do sentido. Os dois discursos, concreto e
abstrato, figurativo e teórico, fundamentados em uma mesma estruturação da espacialidade, se
referencializam entre si; em outros termos, o sistema espacial assegura a coesão recíproca
entre um discurso de representação dos acontecimentos e um discurso ideológico relativo ao
progresso social e político da humanidade. Assim, desprendendo-nos da referência ao mundo
extratextual, o da natureza, da sociedade industrial e da história, somos levados a nos
interrogar sobre os processos dessa referencialização interna, descobrindo neles uma chave
possível da credibilidade e da eficácia simbólica do discurso romanesco, em síntese, do sucesso
de Germinal. Os modos de funcionamento das realidades perceptivas encenadas no texto se
encontram de alguma forma garantidos por meio de um projeto filosófico de inteligibilidade
cuja elaboração reproduz ponto por ponto suas estruturas; {e inversamente, as finalizações
menos ou mais duvidosas do discurso teórico encontram seu apoio natural e recebem sua
confirmação epistêmica em uma organização do conhecimento sensível que lhes remete seu
esquematismo espacial.} O inteligível torna-se tanto mais convincente quanto é sustentado
pelo sensível, e o sensível, tanto mais “real” quanto mais se encontra confirmado pelo
inteligível. Essa significação, simultaneamente mostrada e demonstrada, se firma em um duplo
uso do mesmo esquema espacial: toda conexão exclusiva do alto e do baixo engendra valores
negativos (os gestos dos assassinos em Germinal se explicam por esta fórmula: “que é que
havia subido de suas entranhas a seu crânio?”); toda conexão inclusiva produz valores
positivos (as figuras do “alargamento”, da “libertação” e da “dilatação” representam
espacialmente o progresso intelectual de Étienne Lantier: a germinação final é uma figura do
mesmo tipo).

O significado do discurso concreto articula categorias e relações que operam como


significantes para produzir o discurso abstrato. Por meio dessa ligação particular tecida na
escritura se delineia ao mesmo tempo uma certa concepção do saber verdadeiro e se
representa a "epistemologia" particular de um sujeito do saber, a do enunciador verdadeiro.
Na verdade, este não é outro senão o próprio autor, Zola, definido em filigrana e, de certa
forma, por dentro, pelas configurações, arranjos e manipulações do que se tornou
propriamente uma linguagem espacial. Nisso esse sujeito cognitivo é assimilável aos “espíritos
pré-científicos” segundo G. Bachelard, aqueles que são apaixonados pela fusão entre o
concreto e o abstrato e que são “tanto mais seguros de sua abstração quanto essa abstração for
mais claramente representada por uma intuição sensível21”. Tendo chegado, por uma trajetória
semiótica, à hipótese dessa identificação cognitiva do enunciador de Zola, parecia-nos
necessário verificá-la, em um sentido ou noutro, comprovando-a em outros textos do mesmo
autor. O caso de A besta humana pareceu-nos, a esse respeito, exemplar: embora seja
igualmente central, o dispositivo espacial nesta última obra se organiza em torno de uma outra
figura: o “poço” é substituído pela “linha”, a verticalidade pela horizontalidade. O universo
figurativo difere, mas o sistema que o ordena secretamente é o mesmo.

Síntese

Posições enunciativas

21
G. Bachelard, La formation de l' esprit scientifique. Contribuition à la psychanalyse de la connaissance
objective, Paris, Vrin, 1975, p. 8.
65

A partir da concepção enunciativa do discurso em ato, a semiótica desenvolve as


diferentes representações da enunciação cujo dispositivo, em grande parte, tem sido
estabelecido pela literatura no curso de sua história. Tal dispositivo se ordena em torno da
noção de ponto de vista. Essa noção intuitiva, que pertence tanto à linguagem comum quanto à
metalinguagem técnica, deve ser {precisada.} Ela designa o conjunto de procedimentos
utilizados pelo enunciador para selecionar os objetos de seu discurso e orientar sua
interpretação. Ela se aplica às diferentes formas de discurso: narrativo, descritivo,
argumentativo, etc., e concerne em cada caso ao jogo de posições enunciativas (da debreagem
à embreagem), à relação modal instaurada entre o sujeito (narrador, observador,
argumentador) e seu objeto, às estratégias de estruturação submetidas às coerções da
textualização (anterioridade/posterioridade, relações entre partes e todo, passagem do
particular ao geral ou inversamente, etc.). O vasto campo do "ponto de vista" foi {precisado}
com o auxílio de conceitos mais específicos tais como "focalização", "perspectiva",
"observador".

A focalização é um procedimento de debreagem cognitiva que determina a posição e o


modo de presença do narrador (ou do observador). G. Genette distingue assim a "focalização
zero" (narrador onisciente, que controla o conjunto da cena narrativa, sabe mais que seus
personagens, entra em sua interioridade), a "focalização interna" (narrador apagado atrás de
suas personagens, delegando-lhes a assunção da narrativa ou da descrição, não sabendo mais
que elas), a "focalização externa" (narrador exterior à narrativa, revelando somente o que essa
posição permite).

Diferentemente do ponto de vista, que implica um observador, a {colocação} em


perspectiva faz parte da textualização. Ela consiste na escolha que faz o enunciador em função
das coerções da linearidade, de selecionar o percurso narrativo deste ou daquele ator em
detrimento deste ou daquele, igualmente presente na cena narrativa. Assim, no romance
policial, a escolha consistirá em colocar o leitor na perspectiva do investigador, na do
criminoso ou na da vítima...

Sujeito cognitivo instalado pelo enunciador, devido à debreagem, o observador está


encarregado de receber a informação e de transmiti-la. Seus modos de presença no discurso
são variados: ele pode estar implícito, reconhecível somente pela análise (assim, por exemplo,
um "acontecimento" é uma "ação" considerada do ponto de vista de um observador), ele pode
manifestar-se pela indicação de um posto de observação, pode ser instalado no texto por uma
marca pessoal e por um predicado perceptivo, podendo sua atividade ser assumida por um
ator instalado na narrativa. As relações entre observador e observado podem ser complexas e
reversíveis (o sujeito que se sabe observado pode procurar modificar, manipular, enganar o
sujeito observador...).

A exploração dessas noções descritivas mostra que elas não servem somente para
localizar e identificar os dispositivos ou as estratégias do enunciador em um texto; elas
revelam, mais amplamente, as poéticas da representação e, mais profundamente, as relações
entre o sujeito do discurso e os universos perceptivos, cognitivos e afetivos, que ele põe em
cena.
66

{INCLUIR TEXTO GERMINAL}


Capítulo 5

Acesso à figuratividade

1. Apresentação teórica

Em semiótica, os conceitos construídos para a descrição foram muitas vezes


tomados a outras disciplinas. Foram aclimatados em seu novo domínio, no qual receberam
uma definição específica, cuidadosamente localizada e precisamente interdefinida no interior
da teoria global. Foi o que se deu com o conceito de actante, emprestado à sintaxe estrutural da
frase desenvolvida por L. Tesnière e transformado, em semiótica do discurso, no conceito
central da narratividade (cf. abaixo, quarta parte). É também o caso da isotopia, conceito
emprestado à física (onde define “elementos que possuem um mesmo número de prótons,
mas diferentes massas atômicas”), e que designa em semiótica discursiva a permanência de um
efeito de sentido ao longo da cadeia do discurso (cf. abaixo). É igualmente o caso da
figuratividade. Tal categoria descritiva é oriunda da teoria estética, que opõe, como todos sabem,
a arte figurativa e a arte “não figurativa” ou “abstrata”. Sugere espontaneamente a semelhança,
a representação, a imitação do mundo pela disposição das formas numa superfície.
Ultrapassando porém o universo particular da expressão plástica que o viu nascer, o conceito
semiótico de figuratividade foi estendido a todas as linguagens, tanto verbais quanto não
verbais, para designar esta propriedade que elas têm em comum de produzir e restituir
parcialmente significações análogas às de nossas experiências perceptivas mais concretas. A
figuratividade permite, assim, localizar no discurso este efeito de sentido particular que
consiste em tornar sensível a realidade sensível: uma de suas formas é a mímesis. Mas,
conforme veremos, o conceito de figuratividade está enraizado mais profundamente na teoria
do sentido, e permite, por isso mesmo, considerar de maneira mais ampla os fenômenos
semânticos e as realizações culturais que se ligam aos processos de figurativização.
Ao lermos um texto literário, {entramos} imediatamente na figuratividade:
{“Era no tempo em que as árvores florescem, as florestas se cobrem de folhas, os prados
verdejam, em que os pássaros em seu latim cantam docemente pela manhã, e em que todas as
coisas se inflamam de alegria...”}. {VER TRAD. PORT}Assim começa a narrativa de Percival
ou O Conto do Graal, de Chrétien de Troyes. Uma imagem do mundo se delineia, instalando
tempo, espaço, objetos, valores. Mas, se a dimensão figurativa do sentido proporciona uma
primeira caracterização possível da literatura, compreendemos também que ela a insere no
interior de uma classe muito mais geral de discursos. Com efeito, a figuratividade rege em boa
medida muitas outras formas e gêneros discursivos: a narrativa mítica, o conto popular, o
provérbio, o texto religioso, o discurso jornalístico ou publicitário, os episódios da troca
cotidiana, etc. Ela permite opô-los, num grande bloco, aos chamados discursos abstratos:
discursos teórico, científico, filosófico, etc.
A cada um desses vastos grupos corresponde uma forma de adesão específica
do enunciatário: pode-se fazer compreender algo pela argumentação dedutiva de um
67

raciocínio abstrato, persuadindo assim o leitor, mas, por outro lado, fazer ver também é fazer
crer! É o papel atribuído ao exemplum na retórica clássica desde Aristóteles. Longe de se
reduzir à representação anedótica do mundo, portanto, a escrita figurativa não é desprovida de
abstração. Simétrica e inversamente, a escrita abstrata, longe de ser puramente conceptual, é
raramente desprovida de figuratividade: da maçã de Newton ao “Big Bang”, os exemplos
concretos, as imagens e comparações, as ilustrações narrativas tomam parte no encadeamento
persuasivo do discurso científico. As fronteiras entre os dois universos de discurso, figurativo
e abstrato, não são estanques. Não obstante, os textos figurativos requerem uma forma de
racionalidade peculiar, que é de ordem analógica, e não dedutiva. A adesão do leitor procede,
por assim dizer, de maneira lateral: basta pensar no funcionamento da parábola (evangélica ou
não), cujo significado figurativo está ali para veicular uma mensagem abstrata, espiritual ou
teórica, que só pode adotar, para se dizer e ser compreendida, um suporte concreto de
linguagem: uma história de semeadura, por exemplo, ou de filho pródigo. Fala-se, então, em
“pensamento figurativo”, em “raciocínio figurativo”, e evoca-se a “profundidade” do
figurativo, embora este se situe na superfície das estruturas discursivas, dentro do percurso
gerativo da semiótica.
Noção extremamente rica, que deve ser corretamente assimilada, a
figuratividade recebeu em semiótica diversas definições precisas, mas evolutivas, que vamos
examinar para começar. A partir de tais definições, de fato, será possível desenrolar todo o
novelo da teoria do sentido, desde os dados básicos da semiótica e a concepção das estruturas
elementares, até a abertura interpretativa da leitura.

1.1 Uma definição evolutiva

Abriremos, pois, a reflexão lendo algumas definições da figuratividade. Sua


análise vai nos permitir apresentar progressivamente as problemáticas básicas da descrição
semiótica: os planos da expressão e do conteúdo, a estrutura semântica, as isotopias do
discurso.

• Primeira definição:
“O qualificativo figurativo é empregado somente com relação a um conteúdo
dado (de uma língua natural, por exemplo) quando este tem um correspondente no nível da
expressão da semiótica natural (ou do mundo natural). Nesse sentido, no quadro do percurso
gerativo do discurso, a semântica discursiva inclui, com o componente temático (ou abstrato),
um componente figurativo93.”

• Segunda definição:
“Qualificaremos de figurativo todo significado, todo conteúdo de uma língua
natural e, de maneira mais abrangente, de qualquer sistema de representação (visual, por
exemplo), que tenha um correspondente no plano do significante (ou da expressão) do mundo
natural, da realidade perceptível. Logo, será considerado figurativo, num determinado universo de

93
A. J. Greimas, J. Courtés, Dicionário de semiótica, op. cit., pp. 187-188.
68

discurso (verbal ou não verbal), tudo que puder ser diretamente referido a um dos cinco sentidos
tradicionais [...] ; em suma, tudo que se liga à percepção do mundo exterior94.”

• Terceira definição:
“A figuratividade se define como todo conteúdo de um sistema de
representação, verbal, visual, auditivo ou misto, que entra em correlação com uma figura
significante do mundo percebido, quando ocorre sua assunção pelo discurso. As formas de
adequação, lábeis e culturalmente moldadas pelo uso, entre essas duas semióticas – a do
mundo natural e a das manifestações discursivas das linguagens naturais – constituem o objeto
da semiótica figurativa95.”

• A quarta definição recai mais precisamente sobre o universo visual. Ela descreve o
ato de semiose, isto é, a passagem da visão natural, modelada por um crivo cultural de leitura do
mundo, para o reconhecimento das formas figurativas numa imagem ou num quadro:
“O crivo de leitura, de natureza semântica, solicita [...] o significante planar e,
assumindo feixes de traços visuais, de densidade variável, aos quais constitui em formantes
figurativos, dota-os de significados, transformando assim as figuras visuais em signos-objeto. O
exame mais acurado do ato de semiose mostraria bem que a principal operação que o constitui
é a seleção de certo número de traços visuais e sua globalização, é a apreensão simultânea que
transforma o feixe de traços heterogêneos num formante, vale dizer, numa unidade do
significante que pode ser reconhecida, quando enquadrada no crivo do significado, como a
representação parcial de um objeto do mundo natural96.”

• Uma última definição, por fim:


“A figuratividade não é mera ornamentação das coisas; é essa tela do parecer
cuja virtude consiste em entreabrir, em deixar vislumbrar, em razão de sua imperfeição ou por
culpa dela, como que uma possibilidade de além-sentido. Os humores do sujeito reencontram,
então, a imanência do sensível97.”

Tais definições são técnicas: cada uma delas mobiliza um saber semiótico
prévio que lhes condiciona a compreensão. Agruparemos as três primeiras, bastante próximas
umas das outras, para examinar, em cada par, os termos que as constituem: elas representam o
que se poderia chamar definições estruturais da figuratividade. Note-se, todavia, que estas
integram progressivamente os dados da percepção. No desenvolvimento do trabalho,
examinaremos a quarta, que relata o acontecimento da semiose a partir dos dados perceptivos
(visuais), e depois a quinta definição, que, integrando plenamente a sensorialidade, abre o
figurativo para sua ultrapassagem, para o “além-sentido”.

94
J. Courtés, Analyse sémiotique du discours. De l’énoncé à l’énonciation, Paris, Hachette, 1991, p. 163.
95
D. Bertrand, “Le langage spatial dans La Bête humaine”, in Mimesis et Semiosis. Littérature et
représentation, Miscellanées offertes à Henri Mitterand, Paris, Nathan, 1993, p. 190.
96
A. J. Greimas, “Semiótica figurativa e semiótica plástica”. Trad. Ignácio Assis Silva. Significação –
Revista brasileira de semiótica, 4, Araraquara, junho de 1984, p. 25.
97
A. J. Greimas, De l’imperfection, op. cit., p. 78.
69

1.2 A semiose

1.2.1 Língua natural* e mundo natural*

A análise semiótica do discurso se firma, de início, no postulado hjelmsleviano


da “autonomia essencial da língua” e das organizações significantes. Isso quer dizer que ela
não autoriza uma remissão imediata e displicente do discurso à referência ou à representação
do “real”. Assim, o Dicionário de semiótica98 considera claramente que o conceito de “referente”,
compreendido como a realidade extralingüística designada pelas expressões das línguas
naturais, não tem pertinência no seu quadro teórico. Vamos tentar entender as razões dessa
rejeição do clássico conceito lingüístico de referente.
Em vez de exclusão, é de problematização do referente que se deveria falar: o
domínio extralingüístico que tal conceito designa cede lugar a uma abordagem fenomenológica
das relações entre o discurso e o mundo da percepção. Sua relação não é entendida como
simples designação (as palavras designam as coisas), mas antes como correlação entre duas
semióticas. O mundo natural, do “senso comum”, na medida em que é logo de saída instruído
pela percepção, constitui em si mesmo um universo significante, ou seja, uma semiótica. Ver
não é apenas identificar objetos do mundo, é simultaneamente apreender relações entre tais
objetos, para construir significações. As percepções fazem sentido na medida em que os
objetos percebidos se inserem em cadeias inferenciais que os solidarizam, como se infere o
fogo a partir da fumaça. Para esclarecer esse fenômeno, podemos registrar uma experiência
patológica citada por Merleau-Ponty: “Um esquizofrênico diz: ‘Um pássaro gorjeia no jardim.
Ouço o pássaro e sei que gorjeia, mas, que seja um pássaro e que gorjeie, as duas coisas estão a
tal ponto distantes uma da outra... Há um abismo... Como se o pássaro e o gorjeio não
tivessem nada que ver um com o outro’”99. Semelhante deslocamento do mundo na percepção
pulveriza-lhe a significação; ao mesmo tempo, isso permite entender a contrario que ver é
compreender e interpretar relações de sentido.
O mundo visível, ou “mundo natural”, pode ser considerado como uma
linguagem biplana, que comporta um plano da expressão e um plano do conteúdo. Por isso,
ele é construído – lido, interpretado – como uma semiótica. Como escreve Michel de Certeau
num comentário de Le visible et l’invisible, de Merleau-Ponty: “Ver já é um ato de linguagem.
Esse ato faz das coisas vistas a enunciação da invisível textura que as ata”100. Observação que
faz eco a uma reflexão do próprio Merleau-Ponty acerca da experiência da percepção: “essa
experiência nos põe em presença do momento em que se constituem para nós as coisas [...];
ela nos fornece um logos no estado nascente”. Se a visão já está habitada por um sentido “que
lhe dá uma função no espetáculo do mundo”101, logo esse mundo do senso comum se
desenvolve como uma linguagem figurativa articulada em “propriedades sensíveis”
inseparáveis de “propriedades discursivas”. Tais propriedades podem ser formuladas em
termos de uma organização narrativa subjacente à percepção de cada figura do mundo natural:
uma microssintaxe, reguladora das interações entre os sujeitos que percebem e os objetos
percebidos, assume-a simultaneamente, por assim dizer. A percepção assimila a co-presença
das coisas, integra a causa e a conseqüência, “lembra-se e antecipa, arremete e retroage”, ela é

98
A. J. Greimas, J. Courtés, op. cit.
99
M. Merleau-Ponty, Phénoménologie de la perception, op. cit., p. 326. {VER TRAD. BRAS.}
100
M. de Certeau, “La folie de la vision”, in “Maurice Merleau-Ponty”, Esprit, 66, Paris, 1982, p. 97.
101
M. Merleau-Ponty, Phénoménologie de la perception, op. cit., p. 64. {VER TRAD. BRAS.}
70

expectativa e previsão, associa “a defesa e a apropriação”, nas palavras do filósofo Maurice


Pradines102.
São essas mesmas figuras, desenvolvidas no interior de percursos narrativos,
que constituem a dimensão figurativa dos discursos. Por meio delas, o mundo “nos fala”. De
onde a terceira definição da figuratividade proposta acima: “todo conteúdo de um sistema de
representação, verbal, visual ou outro, que entra em correlação com uma figura significante do
mundo percebido (o mundo natural) quando ocorre sua assunção no discurso”. É essa
posição que o semioticista italiano P. Fabbri resume numa fórmula incisiva: “não referimos o
real: proferimo-lo”103.
As formas de ajuste entre as duas semióticas – a do mundo natural e a das
manifestações discursivas das línguas naturais – são relativamente movediças e culturalmente
forjadas pelo uso. Por isso, não será mais o caso de opor os textos que têm um “referente
real” e os que têm um “referente fictício ou imaginário”. Tentaremos de preferência distinguir
as formas de discurso a partir do regime de “veridicção”* – os jogos de verdade que o
discurso instala em seu interior – que as caracteriza propriamente. Noutras palavras, a partir
do modo de adesão que o contrato enunciativo de cada um deles propõe a seu leitor: em que
ele faz crer, e como? O efeito produzido por ocasião da leitura poderá ser o de “realidade”,
mas também os de “irrealidade” ou “surrealidade”. Entre as outras formas literárias, esse
problema diz respeito diretamente ao romance “realista”, que só o é em virtude de uma certa
poética da escritura, culturalmente marcada: nele, a realidade não é de modo algum legível
como uma verdade intrínseca, mas como um efeito específico do discurso e de sua
organização. Já evocamos a sucessão e o entrecruzamento das clássicas unidades de discurso:
descrição, narração, diálogo, monólogo interior, comentário, etc. Trata-se de estratégias
discursivas que, em razão de sua organização, participam da criação das impressões
referenciais. Esse modo de estruturação seqüencial condiciona nossa adesão de leitor. Cada
unidade de discurso se apóia na outra: a narrativa se alicerça numa descrição que fixou o
quadro da ação, o diálogo tira sua verdade da narrativa que o motivou, etc. Assim, cada
unidade faz de uma outra seu plano de referência, em que ela seleciona os elementos que
atualiza, e que em compensação a confirmam. Tal processo tem o efeito de reforçar o
coeficiente de realidade de cada uma delas, “referencializando-as” reciprocamente. E no
entanto ele não é mais que a marca de uma poética de escritura que visa à produção de certos
efeitos: uma ordem cultural da veridicção na leitura.

1.2.2 Expressão e conteúdo

Essas poucas observações têm apenas o propósito de situar o plano de fundo


fenomenológico que condiciona a concepção semiótica da figuratividade. Tendo os textos
literários a propriedade de jogar com as distorções dessa figuratividade na linguagem, os
aspectos decisivos desse alicerce fenomenológico aparecem claramente quando da análise
concreta dos textos. É o que já observamos, no capítulo anterior, com o texto de Claude
Simon.

102
M. Pradines, La fonction perceptive, Paris, Denoël/Gonthier, 1981.
103
P. Fabbri, Introdução à edição italiana de Sémiotique. Dictionnaire raisonné de la théorie du langage,
trad. francesa, Nouveaux actes sémiotiques, Limoges, PULIM, 1992.
71

Passemos agora à análise lingüística que subtende a descrição dos efeitos de


sentido figurativos. Já evocamos a autonomia da linguagem, com seus dois planos
indissociáveis, o da expressão e o do conteúdo. A relação entre esses dois planos, que se
pressupõem reciprocamente, constitui precisamente a semiose. Trata-se de uma reformulação,
levada a efeito por L. Hjelmslev, da conhecida dicotomia saussuriana entre o significante (o
suporte material fônico ou gráfico) e o significado (o conceito formado por sua ligação com um
significante). A contribuição da formulação hjelmsleviana consiste em evidenciar a homologia
estrutural entre os dois planos: com efeito, cada um deles pode ser analisado em termos de
uma “substância” e uma “forma”, de acordo com o seguinte esquema:

S Plano da Substância da
expressão expressão
E
Forma da
M
expressão
I
O
Plano do Forma do
S conteúdo conteúdo
E Substância do
conteúdo

No terreno da lingüística stricto sensu, a fonética e a fonologia estudam o plano


da expressão das línguas naturais. A primeira analisa a substância da expressão (a articulação
fisiológica e auditiva dos sons da língua, nos níveis segmental ou supra-segmental – neste
último caso, seu objeto é a prosódia); a segunda analisa-lhe a forma (as unidades funcionais
elementares, que permitem distinguir as significações: são os fonemas, constituídos por uma
reunião de traços fônicos distintivos, os femas). Como se sabe, a operação central da fonologia
consiste em identificar suas unidades por substituição num mesmo contexto; é a prova da
comutação, entre /ba/ e /pa/, por exemplo, que permite identificar, convocando a diferença
de sentido que elas geram (“bato”, “pato”), o estatuto fonemático em português das
consoantes /b/ e /p/. Sendo assim, os termos – neste caso, os dois fonemas – só existem em
virtude da relação diferencial da qual são os resultantes. Na perspectiva ampla do lingüista
dinamarquês, o plano da expressão não diz respeito apenas às línguas (e a suas substâncias
fônica ou gráfica), mas a todos os sistemas significantes (os “formantes planares” da
linguagem visual, por exemplo, constituem seu plano da expressão).
A hipótese central de Hjelmslev é que o plano do conteúdo está estruturado de
maneira formalmente idêntica (isomorfa) ao plano da expressão: uma substância articulada
numa forma. Se se considera que a substância do conteúdo constitui uma “zona de sentido”,
ou seja, conjuntos significantes como por exemplo o “cromatismo” ou as “relações filiais”, ou
qualquer outro universo semântico, cada língua recortará esse segmento de mundo à sua
maneira; logo, articulará a forma desse conteúdo em unidades específicas. Para o cromatismo,
a segmentação do espectro das cores se realiza em denominações que recobrem de maneiras
diferentes o universo sensível: onde o francês distingue quatro cores, determinada outra língua
reconhecerá três, por exemplo. Para o universo das relações filiais, certa língua enunciará os
traços de anterioridade ou posterioridade de toda relação de fraternidade ou de sororato por
meio de uma única denominação (em russo ou em húngaro, por exemplo), ali onde outra
72

língua isolará as duas noções em duas denominações distintas (“primogênito”, “caçula”),


criando assim um espaço de coerção no primeiro caso, ou de liberdade no segundo (para o
segredo, a discrição ou a dissimulação!). De maneira paralela ao plano da expressão, substância
e forma do conteúdo são interdependentes: uma não existe sem a outra. Para retomarmos as
sugestivas imagens de Martinet, “o sentido é como um fluido que adota a forma do vaso que o
contém, e que não tem existência senão como a substância dessa forma”, e “a forma se projeta
na substância como a sombra de uma rede numa superfície contínua”104 a que ela recorta e
segmenta. Reticulação imperiosa! É nesse sentido que R. Barthes evocava, por uma metáfora
contestada, o caráter “fascista” de toda língua, que domina o locutor pela força implacável de
sua estrutura: “pois o fascismo, explicava ele, não é impedir de dizer, é obrigar a dizer”105.
Como quer que seja, assim estruturalmente identificada, a forma do conteúdo torna-se um
objeto em si mesmo analisável e descritível.
A dicotomia hjelmsleviana permite, então, circunscrever com precisão o espaço
da semântica estrutural: a descrição da forma do conteúdo. A partir do instante em que se
postula o isomorfismo dos dois planos da linguagem (expressão/conteúdo), o procedimento
de comutação pode, em princípio, ser mobilizado para a apreensão do conteúdo como já o
fora, tão eficazmente, para analisar a forma da expressão: a comutação deve permitir
depreender-lhe as unidades mínimas e suas combinações, isolando as estruturações
fundamentais do sentido. Assim como a comutação revelava o fonema como uma
combinação distintiva de femas, igualmente, no outro plano, o semema* aparecerá como uma
combinatória de unidades semânticas mínimas, os semas*. Esse é o procedimento, muito
simplificado, que se encontra na base da análise sêmica. Esta, tornada possível por esse
postulado do isomorfismo, não tem, em princípio, de fazer intervir o referente. A articulação
do conteúdo corresponde ao crivo de leitura do mundo sensível, submetida ao relativismo
cultural, que constitui a substância do conteúdo; mas sua organização como semantismo é
autônoma. É o que está descrito, mediante minuciosa decomposição do processo, pela quarta
definição da figuratividade apresentada no início deste capítulo. Compreende-se, então, que a
análise da figuratividade se situa a montante da “representação”, a qual não é mais que uma de
suas formas culturais de manifestação, entre outras possíveis. Como observava Italo Calvino,
por mais que a “flecha” tenha desaparecido das armas modernas, “ela continua a ferir”.

1.3 Elementos de semântica estrutural

1.3.1 A estrutura sêmica

Em seu princípio, a análise sêmica é, portanto, para o plano do conteúdo


aquilo que a análise fonológica é para o plano da expressão. Constrói a unidade básica do
significado, efeito de sentido produzido quando ocorre a manifestação em discurso (chamado
de semema) a partir do arranjo das figuras semânticas elementares que entram em sua
constituição (os semas). Tem como objeto e horizonte a semântica lexical: um lexema – ou
verbete de dicionário – é passível de realizar, enquanto significação manifestada, um ou vários
sememas. Estes constituem, pois, as “acepções” ou “significações realizadas” de uma palavra.
São analisáveis nesses constituintes que são os semas. Por exemplo, os diferentes sememas de

104
L. Martinet, “Au sujet des fondements de la théorie linguistique de Louis Hjelmslev”, artigo citado em L.
Hjelmslev, Nouveaux Essais, Paris, PUF, “Formes sémiotiques”, 1985, p. 183.
105
R. Barthes, Aula, Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo, Cultrix, 1980, p.14.
73

“mesa” (de cozinha, de cabeceira, de negociação, de operação, etc.) associarão, ao redor de um


núcleo sêmico permanente a ser depreendido, semas variáveis procedentes de seus diversos
contextos de uso.
Sem entrar nos debates dos semanticistas que fundaram essa análise no
decurso dos anos 1960 (B. Pottier, A. J. Greimas), nem nos que lhe reativam atualmente a
problemática, no âmbito da semântica cognitiva do protótipo (G. Kleiber), apresentaremos
aqui um apanhado metodológico: esquecida hoje pela semiótica do discurso, essa análise, ou
antes seus princípios, comandam no entanto os desenvolvimentos posteriores da teoria, e
fundamentam amplamente sua coerência interna.

1.3.2 O sema: núcleo sêmico, classema

Examinemos o método da análise sêmica por meio de um exemplo: 49 % das


mulheres são homens. Esse enunciado é um slogan feminista dos anos 1970. Se o interpretarmos
intuitivamente, verificaremos com facilidade que, longe de qualquer leitura referencial a sugerir
conotações desfavoráveis a uns ou a outros (como: “49 % das mulheres se comportam como
homens”), a significação desse slogan é construída pela inversão de um enunciado implícito que
constitui seu referente interno, e que é da ordem da mera constatação demográfica: como se
sabe, “51 % dos homens, ou seja, dos representantes da espécie humana, são mulheres”.
A análise sêmica permite explicitar sem dificuldade o que aconteceu no
enunciado do slogan. A confrontação de todos os seus contextos de uso leva a reconhecer, em
“homem” e “mulher”, um invariante semântico em comum, o núcleo sêmico, constituído pelos
traços /animado/ e /humano/. A esse núcleo se acrescenta, em “mulher”, o traço
/sexualidade/. O mesmo traço já não faz parte do núcleo sêmico em “homem”: é apenas um
traço (ou sema) contextual entre outros possíveis. Assim, os sememas de “homem” poderão
combinar: o núcleo e o sema contextual de /espécie/ (“o homem é o futuro do homem”, F.
Ponge), ou “os direitos do homem e do cidadão”, ou o sema contextual de /sexualidade/
(“um homem bonito”, “um Don Juan”), ou o de /conjugalidade/ (“meu homem!”), etc. Em
contrapartida, os diferentes sememas de “mulher”, por sua vez muito variados, não poderão
em nenhum caso realizar aquele que comporta o sema contextual de /espécie/, já que o sema
/sexualidade/ lhe é inerente.
O slogan nesse caso consiste, rompendo com o usual, em realizar essa operação
inesperada e em atribuir a “mulher” o sema de /espécie/. Isso se dá no interior de um
contexto que impõe a presença desse sema (a proporção demográfica) e injeta-o na
composição sêmica do lexema “mulher”, retirando-o simultaneamente das potencialidades
semêmicas de “homem”. O coup de force semântico, portanto, consiste em deslocar um sema
contextual para constituir um semema novo, neste caso garantido pela justificativa
quantitativa, e até mesmo legitimado: uma vez que as mulheres são mais numerosas, seria justo
ver o termo que as designa recobrir o conjunto da espécie! Invenção de um novo semema:
esse exemplo tão simples de criatividade na linguagem constitui obviamente, de maneira mais
ampla, fenômeno central em poesia, e em particular na surrealista, em que os invólucros
semêmicos fechados pelo uso são rompidos, liberando, muito além da metáfora, novas
virtualidades de sentido.
Esse exemplo nos permite depreender, agora, certas características mais gerais
da análise sêmica:
74

• O sema, ou figura sêmica, é a unidade mínima de significação. É uma unidade


diferencial: constitui um dos termos resultantes de uma categoria, ou seja, de uma estrutura
relacional construída por oposições elementares constituintes, do tipo: alto/baixo, vida/morte,
natureza/cultura, etc., ou por diferenças graduais do tipo: escuro/claro, frio/morno/quente,
etc., e que formam a base da estrutura elementar da significação.

• A tipologia sêmica elaborada pelos semanticistas a partir disso é a um só


tempo muito rica (cf. os trabalhos de B. Pottier, A. J. Greimas, F. Rastier) e muito
controvertida: fizeram-se distinções entre os semas genéricos e os semas específicos, os semas
inerentes e os aferentes, os semas denotativos e os conotativos. Sem entrar num debate cujo
contexto é a semântica estrutural dos anos 1960-1970, conservaremos aqui a distinção entre
duas categorias de semas: o núcleo sêmico e o sema contextual, cuja pertinência foi
suficientemente demonstrada pelo exemplo de nosso slogan.

• É fácil compreender, dessa maneira, que o semema, isto é, a significação


efetivamente realizada do lexema, resulta da combinação de dois tipos de semas: o(s) sema(s)
invariante(s), sempre presentes, quaisquer que sejam os contextos – denominados núcleo sêmico
–, e os semas variáveis, que, provenientes de cada contexto particular, incorporam-se à
significação como parte constituinte. Estes, por essa razão, são chamados de semas contextuais.
Às vezes são também denominados classemas, na medida em que, necessariamente comuns a
várias unidades (ex. /caninidade/ em “o cão late”), eles marcam a filiação de vários sememas a
uma mesma classe semântica. Assim, se os núcleos sêmicos existem em número muito elevado
numa língua, já o inventário dos classemas, unidades de grande generalidade, é mais limitado.
A hipótese dos universais semânticos é condicionada por esse inventário das categorias
classemáticas.

1.3.3 O semema

O semema não é delimitado pelas dimensões do signo mínimo, palavra ou


morfema. Exige aliás, para se constituir, a presença de um contexto formado pelo menos por
dois sememas ligados ao menos por um classema. Esse ponto de vista sobre a unidade mínima
de significação possui a imensa vantagem de introduzir na análise sêmica a dimensão
contextual e discursiva da manifestação do sentido: com efeito, o classema, vindo do contexto,
irriga, fortalece e modifica a significação dos lexemas. Ao entrar na composição dos sememas,
ele impõe por isso mesmo uma análise discursiva. A significação lexical, portanto, aparece
apenas como uma significação contextual artificialmente isolada: só a realidade contextual do
discurso é capaz de selecionar os elementos de sentido que se atualizam dentre as virtualidades
disponíveis, e de desambigüizar os enunciados. É o que faz naturalmente a leitura, e é o que
explica (pelo menos em parte) que vários leitores de um mesmo texto poderão atualizar nele
uma significação parcialmente diferente.
Três são as conseqüências dessa abordagem: em primeiro lugar, livramo-nos da
problemática da palavra, que, do ponto de vista semântico, não pode constituir por si só a
unidade em que reside o sentido. Em seguida, evitamos introduzir, na análise, elementos
referenciais ou provenientes dos domínios de experiência, que “reificam” a concepção da
significação e tendem a petrificá-la. Enfim, com tal procedimento, abrimos, sem solução de
75

continuidade, a análise semântica à análise do texto, que em conseqüência se vê colocado em


primeiro plano: o texto, qualquer que seja sua dimensão, é o lugar da desambigüização, ao
menos parcial, das significações. Por isso, esse método de análise integra igualmente o
problema da interpretação, da polissemia e, logo, da dimensão pragmática do discurso, cuja
importância na leitura e na interpretação dos textos literários é bem conhecida. Do ponto de
vista da significação, que assumimos, é o global que determina o local, o geral que determina o
particular, e não o inverso.

1.4 Desdobramento da estrutura binária: o quadrado semiótico

A estrutura elementar da significação, ou quadrado semiótico, situa-se em


estreita continuidade com a análise sêmica. O “quadrado” não faz nada além de desenvolver-
lhe as potencialidades estruturais. Já apresentamos um exemplo concreto dele ao término de
nossa análise da narrativa elementar da “fuga” (cf. Primeira Parte). Examinemos agora, mais
de perto, a concepção e o funcionamento desse modelo.

1.4.1 Construção do modelo

A origem do quadrado remonta ao Organon de Aristóteles, obra que reúne o


conjunto dos tratados que o filósofo dedicou à lógica e à dialética. No tratado “Da
interpretação”, Aristóteles introduz a relação canônica que regula a oposição das proposições:
a contradição e a contrariedade. Tais relações fundam, com a noção de coerência, a
representação racional do real e subjazem aos esquemas lógicos da argumentação
(especialmente no interior do silogismo). “A oposição que denomino de contradição, escreve
Aristóteles, é a de uma afirmação que exprime um sujeito apreendido universalmente a uma
negação que exprime o mesmo sujeito não apreendido universalmente”. Por exemplo: “todos
os homens são justos – alguns homens não são justos”, ou “nenhum homem é justo – alguns
homens são justos”. Quanto à oposição de contrariedade, “é a da afirmação de um sujeito
universal à negação de um sujeito universal”106. Por exemplo: “todo homem é justo – nenhum
homem é justo”. Obtém-se assim a seguinte representação canônica:

Afirmaçã Negação
o universal universal
todo A B nenhum
homem é justo homem é justo

alguns
alguns homens
homens são justos n n não são justos
106
Aristóteles, Organon, I. Catégories, II. De l’interprétation, Paris, ão
Afirmação ão B A 1994, p. 90. {Procurar versão
J. Vrin,
brasileira existente?} Negação
particular
particular
76

O jogo das relações entre as proposições, compatíveis entre si ou mutuamente


excludentes, permite calcular os valores de verdade das proposições e reger os modos de
funcionamento do discurso argumentativo. Assim, a relação de contrariedade polariza os
termos de uma argumentação exclusiva, por exemplo entre o que é obrigatório ou necessário,
de um lado, e proibido ou impossível, do outro. A relação de contradição, por sua vez,
introduz uma gradualidade entre os termos de uma argumentação, entre o que é obrigatório
ou necessário, por um lado, e o que é facultativo (não obrigatório) ou contingente (não
necessário), pelo outro; ou ainda, entre o que é proibido ou impossível, de um lado, e o que é
permitido (não proibido) ou possível (não impossível), do outro.
Reatualizando a estrutura do quadrado, os semioticistas levaram em conta a
composição lógica das relações, mas deslocaram-lhe sensivelmente o campo de aplicação. Ele
já não versa sobre a organização lógica dos modos de raciocínio, senão, mais concretamente,
sobre o modo de estruturação dos microuniversos semânticos constituídos pela categorização
das línguas naturais. Apresenta-se então como um instrumento de descrição.
Se nos abstivermos de levantar os problemas teóricos, e notadamente lógicos,
de sua elaboração (que foram longamente debatidos entre lógicos e semioticistas), o princípio
da projeção em quadrado pode ser apresentado de maneira bem simples: consiste num
desdobramento da categoria semântica (s1 vs s2), por meio da operação de negação de cada um
dos termos que a constituem (não s1 vs não s2). O modelo põe à mostra uma rede de relações
diferenciais. Apresenta o jogo das “diferentes diferenças” passíveis de articular um
microuniverso de significação, apreendido sob a forma de categoria. A estruturação binária vai
ao encontro dos topoi (os “lugares” do discurso) desenvolvidos desde a origem da retórica:
aparência/realidade, meio/fim, unicidade/pluralidade, humano/divino, vida/morte,
obrigatório/proibido, natureza/cultura, etc. O quadrado desenvolve os termos s1 e s2, que
formam o eixo semântico da categoria. Cada um destes, bem como suas respectivas negações,
designa semas, que só são constituídos como tais pela intersecção das relações que os
solidarizam.

s s
1 2
77

n n
ão-s2 ão-s1

n
ão-S

Assim, o quadrado se apresenta, de maneira formal, como uma rede relacional


abstrata. Suas grandes relações constitutivas são cinco: contradição, contrariedade,
subcontrariedade, complementaridade, hierarquia.
Entre s1 e não-s1, bem como entre s2 e não-s2 (setas oblíquas descendentes),
estabelece-se uma relação de contradição. Essa relação, que pode parecer à primeira vista
“privativa”, é fundadora: é a negação que permite fazer surgir o termo positivo. Como
escrevia Greimas: “é a somação do termo s1 que faz aparecer o termo contraditório. A
estrutura da contradição não é, pois, uma estrutura do tipo presença/ausência; é, ao contrário,
a ausência fazendo surgir a presença: não-s1 já é o primeiro termo positivo”107, uma vez que
implica, ao manifestar-se, aquele que ele nega. Um exemplo simples em francês ilustra de
maneira evidente a realidade e a força dessa relação primeira de contradição: o “si” afirmativo
é a negação de um “non” anteriormente enunciado. O “si” é um “oui” que conserva a
memória do “non” e o reatualiza. Mantém o rastro de uma operação sintáxica prévia, de
caráter negativo, e assim ele nega o “non”, no eixo da contradição.

o n
ui on

n n
on- s on- ?
non
i oui

O exemplo mostra o caráter de afirmação negativa da contradição: esta chegou


a ser considerada como a forma elementar da estrutura polêmica que será posteriormente
desdobrada e articulada no nível das estruturas narrativas. Tal exemplo também demonstra,
por uma manifestação concreta da língua, a não-equivalência entre o termo contraditório e o
termo contrário correspondente (não-s2 e s1, não-s1 e s2).
Entre s1 e s2 se estabelece a relação de contrariedade (seta horizontal duplamente
orientada). Essa relação, por vezes denominada oposição “qualitativa”, supõe um eixo
semântico em comum, que autorize a oposição com base numa identidade parcial,

107
In M. Arrivé, J. -C. Coquet (eds.), Sémiotique en jeu. À partir et autour de l’œuvre de A. J. Greimas,
Paris-Amsterdam, Hadès-Benjamins, 1987, p. 314.
78

hierarquicamente superior, a qual define a categoria semântica em si própria. Toda diferença se


forma contra o fundo de uma semelhança, com base num classema comum. “Homem” e
“mulher” se opõem por comportar um sema idêntico de /animado-humano/. Esse eixo
semântico (S), hierarquicamente superior (ou hiperonímico), garante o caráter ao mesmo
tempo solidário e oponível dos termos contrários, que são seus hipônimos.
Entre não-s2 e não-s1, encontramos uma relação paralela de subcontrariedade (seta
horizontal de baixo). Por um princípio similar, os termos resultantes da operação de
contradição são oponíveis como contrários. A equivalência formal postulada entre
contrariedade e subcontrariedade encontra, contudo, obstáculos concretos, a partir do
momento em que estas sejam investidas por conteúdos semânticos das línguas naturais: estes,
infinitamente modulados pelo uso, resistem aos efeitos de simetria e não se depositam
necessariamente num molde lógico pré-estabelecido. O modelo aparece, portanto, como uma
estrutura receptora de potencialidades semânticas, sejam estas realizadas ou não em um
discurso, sejam estas até mesmo lexicalizadas ou não por determinada língua natural. A
categoria semântica que subsume os subcontrários é definida como o termo “neutro”, aquela
que repousa sobre a asserção “nem... nem...”. Ela própria está em relação de contrariedade
com respeito à categoria, termo “complexo” (de “ou... ou...” a “e... e...”) que solda os
contrários.
A relação entre não-s2 e s1, assim como entre não-s1 e s2, é uma relação de
complementaridade (setas verticais orientadas de baixo para cima). Tal relação marca a implicação
lógica de s1 por não-s2, e de s2 por não-s1. O agrupamento dos termos complementares é
chamado dêixis (o termo contraditório “aponta para” o termo contrário daquele que
contradiz), positiva (não-s2 / s1 ) e negativa (não-s1 / s2 ).
Enfim, entre os termos dos pólos contrários ou subcontrários do quadrado e
aqueles que os subsumem (S e não-S), isto é, que selecionam o sema comum aos termos
contrários, formando assim seu eixo semântico, estabelece-se uma relação de hierarquia. É a
relação clássica entre hipônimos e hiperônimos que aí se exprime, como é o caso por exemplo
entre termos específicos e genéricos. No quadrado, os hipônimos (hierarquicamente
inferiores) formam a primeira “geração”, e os hiperônimos são passíveis de desdobrar-se em
um modelo de segunda “geração”.

1.4.2 Exemplo

Assim, por exemplo, partindo da categoria tópica dos meios opostos aos fins, J.
–M. Floch introduziu o modelo das “axiologias do consumo”, capaz de reger um vasto
conjunto de discursos sociais, como, entre outros, o da publicidade automobilística 108. Ele
identifica quatro grandes tipos de valorizações: a valorização prática ou utilitária, correspondente
aos valores de uso dos objetos, considerados como meios (será, por exemplo, a manejabilidade
ou a robustez de um automóvel), opor-se-á, no eixo dos contrários, à valorização utópica,
correspondente a valores básicos ou “existenciais”, considerados como fins em si próprios (o
automóvel será valorizado como encarnação da identidade, da vida, da aventura). Essa
valorização prática opor-se-á também, ao modo da contradição, a um terceiro tipo de
valorização, a valorização lúdica, que corresponde a sua negação (o carro será então valorizado
por seu luxo ou refinamento, como uma “pequena loucura”). Por fim, a valorização utópica

108
J. -M. Floch, Sémiotique, marketing et communication. Sous les signes, les stratégies, Paris, PUF,
“Formes sémiotiques”, 1990, pp. 126-132.
79

será, por sua vez, negada, contraditoriamente, por um último tipo axiológico, a valorização
crítica, que encenará, por exemplo, as relações qualidade/preço, ou potência/consumo, etc.

Valoriza Valoriza
ção prática ção utópica
valores valores
utilitários existenciais
(“meios”) (“fins”)

Valoriza Valoriza
ção crítica ção lúdica
valores não valores não
existenciais utilitários

Tal modelo indica de fato diversos tipos de relações diferenciais, ora exclusivas, ora
compatíveis. Assim, se parece difícil para um fabricante manter um discurso incidente ao
mesmo tempo sobre os valores utilitários e utópicos, fica claro, por outro lado, que estes
últimos estarão numa relação de implicação com os valores lúdicos, dos quais constituirão, na
mesma dêixis, uma possível realização complementar.
O quadrado se apresenta, portanto, como a estrutura constitutiva de um
microuniverso de significação, que “amarra”, por uma rede de interdefinições, os valores
semânticos (e os termos que os designam). Em conseqüência, estes não poderiam ser
considerados de maneira isolada. O quadrado pode ser apreendido e utilizado, por um lado,
como um modelo posicional e taxionômico, formando um paradigma que indica as posições
relativas dos termos uns em relação aos outros. Mas pode também, por outro lado, ser
considerado como um modelo dinâmico que apresenta sucessivamente, no plano
sintagmático, a passagem de uma posição a outra. Constitui assim, no nível profundo, a forma
primeira das estruturas que, num nível mais superficial, se desdobrarão em arquitetura
narrativa.
A fim de concretizar tais dados teóricos, dando uma amostra de suas
intervenções concretas na análise do texto literário, examinemos agora dois exemplos simples
ligados a uma categoria semântica profunda que isolamos a partir de seus investimentos
figurativos na superfície do discurso.

1.5 Ilustração do quadrado semiótico na análise textual

1.5.1 Um modelo axiológico: vida/morte

A. J. Greimas propôs considerar-se, em caráter de hipótese geral, a categoria


“vida/morte” como a articulação fundamental do universo semântico dos valores individuais,
formando assim no nível abstrato a base (a tópica) de uma axiologia. Outra oposição
80

fundamental postulada igualmente como um topos universal, “natureza/cultura”, articularia,


por sua vez, o universo semântico da axiologia social.

v m
ida orte

n n
ão- ão-
morteda novela Deux amis de Maupassant
Em sua análise vida
109
, ele mostra como esses
valores axiológicos são concretamente manifestados na novela por atores figurativos que
representam as figuras elementares do ar (o “Céu”), da terra (o “monte Valérien”, de onde se
faz ouvir o canhão prussiano), da água (o “Sena”, onde se realiza a pesca “milagrosa” dos dois
amigos) e do fogo (o “Sol”). Sua análise explica, inversamente, como a presença de tais figuras
no texto de Maupassant, longe de se apresentar apenas como um conjunto de conteúdos
figurativos nas seqüências descritivas, instala simultaneamente os valores de que estas são
revestidas por meio das sensações experimentadas pelos heróis da narrativa: assim, elas fazem
sentido de maneira coerente, prestam conta dos valores investidos, marcando-os eufórica*
(dêixis positiva) ou disforicamente* (dêixis negativa), e explicitam o “simbolismo” peculiar a
Maupassant. Sem entrar nos detalhes de uma análise que justifica por uma argumentação
densa a complexidade das funções axiológicas do tecido figurativo, mostraremos aqui o
quadrado que a resume, associando o nível do imaginário figurativo dos quatro elementos ao
dos valores que subjazem a eles:

Sol mont
f Valérien
ogo terr
/ a
vida/ /m
conjunção do orte/ conjunção do
sol e da água, espaço de céu e da terra, espaço de
baixo: euforia cima: disforia

/ /
não-morte/ não-vida/
ág a
ua r
Água Céu
Assim evocado, o uso do quadrado leva a explicitar um microuniverso de
significação: um paradigma de termos definidos por suas posições relativas. Em outras
palavras, estabelece, de maneira estática, a organização taxionômica de um universo figurativo.

109
A. J. Greimas, Maupassant. La sémiotique du texte: exercices pratiques, op. cit., em especial as pp. 54-62
e 139-144.
81

1.5.2 O quadrado, modelo dinâmico

Ilustremos agora a segunda dimensão operatória do quadrado indicada acima, a


dimensão sintagmática: o desenrolar de uma narrativa pode se inscrever como um percurso
entre os pólos de uma estrutura elementar. Para tanto, vamos ler o pequeno texto seguinte,
extraído do Chercheur d’or de J. –M. G. Le Clézio. A cena se passa dentro de um barco, no
oceano Índico.
{Cit. Le Clézio – Le chercheur d’or, Gallimard, 1985, p. 130. VER
TRAD. BRAS. ???}

Vamos nos ater aqui ao relato do timoneiro. A primeira seqüência, claramente


isolável entre as debreagens temporais {“Antigamente”} e {“E, um dia”}, apresenta, por meio
de uma sucessão de enunciados de estado (predicados de ser e de ter), a situação inicial da
narrativa. Ela instala nesta o paradigma dos valores que estarão em jogo depois: {“paraíso”}
(duas ocorrências) vs {“inferno”} {(“os ratos são animais do diabo”)}. Esses dois termos
podem sem dificuldade ser assimilados, como figuras míticas, aos valores da Vida e da Morte.
Nesse estado initial, como se vê, só o termo {“paraíso”} está atualizado: o termo contrário,
construído por uma dupla metonímia (ratos  animais do diabo  inferno), ainda é apenas
virtual. O desenvolvimento narrativo, nas primeiras seqüências do relato, consiste em instalar
um conflito no paradigma, ou, em suma, em narrativizar a relação de contrariedade. Ele
inverte o modo de existência dos dois termos da categoria, virtualiza o primeiro e atualiza
progressivamente o segundo, empreendendo portanto a abolição do paraíso e fazendo surgir o
inferno. A transformação se completa com o novo enunciado de estado intermediário, que
marca a vitória dos ratos, vitória da morte: {“tudo era deles”}. Quando se chega à conclusão
da narrativa, após as diversas tentativas de luta contra os ratos, a questão do estado final pode
ser colocada nestes termos: paraíso ou inferno? E a resposta, evidentemente, só pode ser: nem
um, nem outro, nem paraíso, nem inferno. Esse simples desenrolar, por conseguinte, põe em
evidência a estrutura elementar. A alternância dos contrários (ou... ou...) é substituída, ao final
do percurso, pela coexistência dos subcontrários, que se realiza no termo neutro (nem...
nem...). Cada uma das seqüências do relato pode então ser considerada, estruturalmente –
logo, previamente ao desenrolar cronológico – como uma posição no quadrado.

1
2
(
estado (vit
inicial) ória dos ratos)

P Infer
araíso no

V Mo
ida rte

3
n n
ão-Morte ão-Vida
nã nã
o-Inferno o-Paraíso
(l C
uta) éu
82

4
coexistênci
a dos valores
Passamos de um estado ideal, anterior a qualquer oposição de valores, para um
(estado
pacto entre o bem e o mal, pela mediação de um conflito. A oposição entre os contrários
final)
instalava um universo mítico (um mundo sem origem determinável, ilustrado, entre outros,
por este enunciado: {“um velho barco, cujo nome ninguém sabe mais, e que ninguém
conhecia”}); a convivência dos subcontrários, por sua vez, instala um universo histórico
(figurativizado pela intervenção dos ingleses, que transformam o universo natural da dádiva
numa relação social de contrato e troca). A narrativa se apresenta como a fábula de uma
gênese condensada da cultura e da história, a partir do paraíso perdido.
A combinação final transforma a relação polêmica (aqui implicada pela
passagem exclusiva às posições contrárias e contraditórias) em uma relação contratual
(implicada, como seu núcleo semântico, pela co-presença inclusiva dos subcontrários). Esse
pacto entre os valores opostos é figurativizado pela partilha do território. A unidade espacial
da ilha, homologável a sua unidade axiológica inicial, é quebrada e cede lugar a uma nova
cartografia, doravante segmentada: territorialização horizontal, em torno dos pontos cardeais
(os ratos ao norte, as pessoas ao sul), e territorialização vertical (os ratos nas árvores, as
pessoas no chão). Ademais, tal reorganização da figuratividade não é apenas espacial, ela
também diz respeito aos atores. A ilha-paraíso constituía, no estado inicial, um ator coletivo
indiferenciado. Ao final da narrativa, os atores estão singularizados; definem-se relativamente
uns aos outros, por papéis distintos e hierarquizados, formando um esboço de estruturação
social: os ingleses, que {“tiveram uma idéia”}, revestem-se do papel actancial de destinador,
que delega um mandato e sanciona; as crianças ocupam o lugar do sujeito-herói, e os cães, o
de adjuvante. Essa nova situação narrativa se opõe globalmente à situação pré-narrativa que
caracterizava o início do relato. A transformação, apreendida no nível das estruturas
profundas, é confirmada no da manifestação textual, na própria superfície significante: a
primeira inversão no paradigma inicial (paraíso vs inferno) encontra eco sensível na inversão
fônica (R/I, Rainha das Ilhas, torna-se I/R, Ilha dos Ratos), antes de trocar, na situação final,
de paradigma lingüístico. Ao fim, uma nova denominação substituiu a oposição inicial,
marcando uma mudança radical de código: “queen of islands” indica, daí por diante, a posse da
ilha pelo novo destinador social, os ingleses.
Seria naturalmente abusivo considerar que a análise de um texto consiste em
isolar “a” estrutura elementar que estaria, em todos os casos, subjacente a ele, e que presidiria
logicamente ao advento e à organização de suas significações. Para dizer a verdade, esse caso é
antes a exceção: se acontece que tais modelos possam, parcialmente, dar conta de fenômenos
de estruturação, sabemos que, na maioria das vezes, os textos correspondem a outros modos,
muito mais complexos, de organização. No caso analisado, em contrapartida, a presença quase
exemplar dessa estrutura é sobretudo reveladora do caráter canônico da narrativa de Le Clézio.
Fazendo coincidir seu desenrolar com o molde lógico que lhe dá forma, a análise explicita o
modo de racionalidade desse pequeno conto e justifica, provendo-a de razões, a
“transparência” das significações intuitivamente percebida na leitura.

1.6 Estruturação sintagmática: a isotopia do discurso


83

A isotopia* não diz respeito à categorização em si, mas ao desdobramento das


categorias semânticas ao longo do discurso. Pertence à dimensão sintagmática. A problemática
da isotopia permite examinar a permanência e a transformação dos elementos de significação
cuja estrutura formal era depreendida pelo modelo anterior. É um dos conceitos semióticos
que, em razão de seu caráter operatório na análise concreta dos textos, tiveram a mais ampla
difusão fora do campo restrito da pesquisa. Convém, em primeiro lugar, situá-lo em contexto,
esclarecendo a diferença entre noções freqüentemente consideradas como muito próximas:
campo lexical, campo semântico e isotopia.
O campo lexical designa o conjunto dos lexemas de uma língua que podem ser
agrupados por sua filiação a um mesmo universo de experiência: por exemplo, o campo lexical
da estrada de ferro, ou do alimento, etc. Tendo por referência um corpus em língua, esse
conceito é do âmbito da lexicologia e tem pequena rentabilidade em análise textual.
O campo semântico designa um conjunto de unidades lexicais dotadas de uma
organização estrutural comum e que constituem, por conseguinte, no interior de um texto ou
de uma obra, um universo de significação coerente: por exemplo, o campo semântico da
“feminilidade” nas Flores do mal. A análise dos campos semânticos pode então ser considerada
como uma primeira etapa para uma análise temática. Mas tal análise, cujo objeto primeiro e
último é a palavra, tem dificuldade em explicar o desenvolvimento sintagmático do discurso.
É de fato essa dimensão que o conceito de isotopia tenta apreender. Apoiando-
se de início na análise sêmica, a isotopia designa a iteração de semas ao longo de uma cadeia
sintagmática. Essa iteração, que é a dos elementos de significação e não das palavras, das
figuras e não dos signos, assegura a coesão semântica e a homogeneidade do discurso
enunciado. Se nos lembrarmos da distinção inicial feita pela semântica estrutural entre núcleo
sêmico e classema (ou sema contextual), compreenderemos facilmente que a iteração de um
classema componente de pelo menos dois sememas de um sintagma já basta para estabelecer
uma isotopia mínima: é o caso, por exemplo, do classema /caninidade/ em “o cão late”, por
oposição aos enunciados não isotópicos “*o gato late” ou “*a nuvem mia”.
Assim, se considerarmos, com os gramáticos, que as grandes regras de
coerência textual se apóiam na repetição e na progressão, a isotopia aparece propriamente como
um dos instrumentos de tais regras: ela assegura a repetição, pela recorrência, dos elementos
semânticos que se repetem de uma frase a outra, garantindo a continuidade figurativa e
temática do texto (especialmente por meio dos termos de retomada, as anáforas pronominais e
nominais). Provê também a progressão, ou seja, o aporte de informações novas por sobre o
fundo de continuidade ao longo dos enunciados, quando os traços semânticos são
selecionados, assumidos e desenvolvidos na alternância e encadeamento dos “temas” e
“comentários”110. Examinemos agora mais de perto a concepção semiótica da isotopia do
discurso. Suas definições variaram ao longo dos anos, atestando as evoluções da própria
semiótica, que progressivamente pôs o estabelecimento das isotopias na dependência da
enunciação.

1.6.1 A abordagem estrutural da isotopia: do elemento ao conjunto

110
Cf. M. Riegel, J. -C. Pellat, R. Rioul, Grammaire méthodique du français, Paris, PUF, 1994, “La
structuration du texte”, cap. XXI, pp. 603-623.
84

A primeira definição desse conceito, em Sémantique structurale, era assim


formulada: “é preciso entender por isotopia de um texto [...] a permanência de uma base
classemática hierarquizada, que permite, em virtude da abertura dos paradigmas constituídos
pelas categorias classemáticas, as variações das unidades de manifestação, variações que, ao
invés de destruir a isotopia, nada fazem, ao contrário, senão confirmá-la”111. Em outros
termos, a isotopia assentava exclusivamente nos classemas, essas categorias trânsfugas que
constituem o liame entre sememas diferentes e que homogeneízam a significação. As variações
semêmicas sobre o suporte comum do classema itinerante têm o efeito de consolidar, ao
longo do discurso, a isotopia estabelecida. Essa concepção tende a considerar que a
significação está, de certo modo, pré-estabelecida no próprio texto, sendo por isso fechada e
imutável. Ela não leva minimamente em conta as operações de construção do sentido pela
atividade enunciativa do autor ou do leitor.
Embora permaneçam baseadas no mesmo princípio, as definições posteriores
são mais flexíveis, fazendo assentar a isotopia na recorrência de elementos de significação,
qualquer que seja seu nível de reconstrução (logo, não limitada aos classemas). Então, é
possível distinguir diferentes níveis de presença das isotopias na leitura. Assim, as isotopias
figurativas – que concernem antes de mais nada aos atores, ao espaço e ao tempo, no
desenvolvimento de uma narrativa, por exemplo – serão distinguidas das isotopias temáticas,
mais abstratas, e estabelecidas pela leitura a partir da superfície figurativa. É o que mostrava,
de maneira elementar, o exemplo da “fuga” a partir da trama figurativa: as barras serradas, o
muro, o lençol, o homem.
As isotopias, assim compreendidas, são na maioria das vezes complexas e
entretecidas, na realidade dos textos: exclusivamente figurativas numa receita de cozinha, elas
podem tornar-se infinitamente entrelaçadas num poema simbolista. A leitura consistirá muitas
vezes em hierarquizá-las e reconhecer, isolando-a, uma isotopia regente mais profunda, que
dominará e controlará os conjuntos de isotopias de nível superior. A análise textual consiste
precisamente em selecionar e justificar uma ou várias isotopias que comandam a significação
global. Compreende-se que a escolha de tal isotopia é estratégica: ela é responsável pela
interpretação que o analista proporá in fine do texto, e é ela que irá fundar-lhe a coerência.
Podemos considerar que as divergências de interpretação se baseiam, boa parte delas, em
diferentes seleções de isotopias regentes. Isso pode se dar tanto no mal-entendido durante a
conversação cotidiana, quanto na leitura “plural” dos textos, permitida por sua polissemia. No
primeiro caso, cada um dos interlocutores seleciona o núcleo isotopante do discurso do outro
em função de seu saber ou suas disposições passionais; no segundo, a polissemia provém de
diferentes decisões de leitura, cada leitor escolhendo e valorizando as isotopias capazes de
reger “em profundidade” as significações de superfície. Os conflitos de interpretação só
podem então ser resolvidos por uma negociação dessas isotopias.
As figuras de retórica – metáfora, comparação e metonímia à frente – estão
baseadas, como se sabe, no duplo sentido. Instalam a coexistência tensa e eventualmente
competitiva de dois ou vários planos de significação simultaneamente oferecidos à
interpretação. Podem, portanto, ser compreendidas como conectores de isotopias, que
introduzem uma isotopia inicial (por exemplo, o comparado) no campo de atração de uma
segunda isotopia (por exemplo, o comparante), abrindo essa significação inicial para um novo
universo de sentido, e instalando assim duas leituras coexistentes e parcialmente concorrentes
de uma mesma significação.

111
A. J. Greimas, Sémantique structurale, op. cit., p. 96.
85

1.6.2 A abordagem interpretativa da isotopia: do conjunto ao elemento

As diferenças entre a definição restrita (iteração de classemas) e a definição


ampla (redundância de um efeito de sentido, sob a responsabilidade do enunciador) são
esclarecedoras. Ilustram duas abordagens profundamente distintas da isotopia, que marcam
duas etapas na reflexão sobre esse conceito: a primeira abordagem consiste em ir do elemento
para o conjunto, e a segunda consiste, ao contrário, em ir do conjunto para o elemento. A
primeira ilustra a concepção estrutural, dedutiva, que postula na base o desnudamento dos
menores elementos de significação (os semas) e considera que a isotopia se estabelece pouco a
pouco por acumulação, organização e hierarquização dos semas: a análise assim concebida
podia ter a pretensão, em teoria, de explicitar progressivamente a totalidade do sentido. Tal
concepção ilusória é invertida pela segunda abordagem: ir do conjunto ao elemento consiste
em ressaltar a atividade de leitura e em integrar as hipóteses interpretativas, ao mesmo tempo
indutivas e dedutivas, que esta realiza ao se desenvolver, isto é, ao construir as significações.
Esse método considera que a coerência de um texto assenta, de início, em uma
suposição de isotopia. A leitura consiste em antecipar-lhe a existência e em atualizar, nos
encadeamentos e elipses do texto, os elementos sêmicos que serão compatíveis com ela.
Podemos ilustrar o fenômeno considerando o exemplo famoso que o lingüista Chomsky havia
proposto como caso típico de enunciado gramatical, mas assemântico: “As idéias verdes
incolores dormem furiosamente”. A concepção estrutural estrita da isotopia não pode senão
confirmar a ausência de qualquer coerência semântica: nenhum classema liga os sememas, os
termos sucessivos só exibem traços contraditórios e incompatíveis, esse enunciado é a-
isotópico. A concepção interpretativa permite perceber as coisas de modo totalmente outro.
Se, com efeito, o leitor formular a hipótese de que o semema da palavra “idéias” pode ser uma
metonímia de “partido” (as “idéias socialistas”, por exemplo), ele a prolonga facilmente,
considerando que “idéias” forma o núcleo regente de uma isotopia temática que convida a
uma leitura /política/ do conjunto do enunciado. Ele tentará atualizar, para tanto, um sema
compatível com essa isotopia presumida em cada um dos sememas subseqüentes. Por
conseguinte, a leitura mostra quase naturalmente uma coerência possível das significações: as
“idéias verdes”, as opiniões ecologistas, “incolores”, nem de direita nem de esquerda,
“dormem”, são ocultadas na comunicação social (na mídia, por exemplo), “furiosamente”, o
que provoca a legítima revolta de seus defensores. Pode-se, obviamente, crer ou não crer, e
considerar que a interpretação é forçada, sem pé nem cabeça... Mas isso não faz senão
confirmar a existência pressuposta de um espaço fiduciário subjacente à leitura, que comanda
a correta ou possível interpretação dos enunciados.
Esse afã de depreender a coerência semântica esclarece a realidade do sentido.
Esta é caracterizada, realmente, pela abertura e disponibilidade dos sememas associados à
elaboração semântica na interpretação, única criadora das isotopias de leitura. Encontramos
um belo exemplo literário desse fenômeno no texto de Italo Calvino intitulado “O trinado
{sifflement} do melro”112. O Senhor Palomar se indaga sobre a significação dos trinados
alternados de um casal de melros que observa em seu jardim. Constata a invariância sonora do
trinado, mas também a variação do tempo que transcorre entre as “falas” dos dois pássaros.
Interroga-se: “E se o sentido da mensagem se encontrasse na pausa, e não no trinado? Se os
melros se falassem precisamente por seu silêncio?” E conclui: “Será que os diálogos humanos
são muito diferentes?”. {VERIFICAR TRAD. EXISTENTE – PALOMAR, DE I.
CALVINO} Explorando tal hipótese, o observador analista se dedica então a desenvolver as

112
I. Calvino, Palomar, trad. fr., Paris, Seuil, 1985, pp. 28-33.
86

isotopias que garantem a coerência, implícita porém efetiva, do diálogo bastante elíptico que
ele mesmo trava, no mesmo momento, com sua mulher, que está regando a grama no jardim.
Nada une, aparentemente, as falas. Ele diz a ela: “Psiu!”. Ela responde, após um silêncio: “Em
um dia, ela voltou a secar”. Ele retoma, depois de uma pausa: “Droga..., no entanto..., de
novo..., é, porra nenhuma...”. E ela: “Chhhhh!... você os está assustando...”, atestando, pela
anáfora e pela segunda pessoa, que se tratava de fato, entre os dois esposos, de um diálogo
bem coerente, pondo em cena a um só tempo os saberes compartilhados, a confiança
estabelecida de sua relação, e o leve conflito que os opõe quanto à prioridade de seu vínculo
com os melros do jardim.

1.6.3 A recção semântica

Essa visão sobre a isotopia consiste em ressaltar a operação de “recção


semântica”, que lhe determina a atualização. Do mesmo modo como, na sintaxe, a recção
define a maneira pela qual um verbo reclama seu complemento (recção direta, indireta), pode-
se dizer que em semântica um fenômeno análogo ocorre na determinação das relações entre as
isotopias. A recção opera, então, sobre os traços e núcleos isotopantes que comandam, após
si, o desenrolar coerente da interpretação. Um exemplo esclarecedor foi analisado nessa
perspectiva pelo semioticista dinamarquês Per Aage Brandt113: “O delegado está latindo”. Se o
núcleo isotopante estiver estabelecido no semema “delegado”, então o traço /humano/ se
estende sobre toda a cadeia, e o enunciado pode ser parafraseado: “o delegado emite gritos
comparáveis aos de um cão”. Mas se, leitura igualmente plausível, o núcleo isotopante se situar
no semema “está latindo”, espalhando sobre a cadeia inteira a isotopia da /caninidade/, então
o sentido passa a ser: “um cão, chamado ‘O delegado’, está latindo”. O efeito da recção
semântica é, segundo Brandt, o de regular “as relações de força entre os lexemas atualizados,
um dos quais, o mais ‘forte’, atualiza seus classemas e os faz valer junto aos demais, menos
‘fortes’ [...]. Assim é que o mais ‘forte’ manifesta seu ‘sentido próprio’, enquanto os outros, se
não possuírem em si mesmos esses classemas, manifestam apenas ‘sentido figurado’”.
Fenômenos de recção forçada da mesma ordem caracterizam o enunciado poético:
procedemos assim ao ler e tentar interpretar os textos de escrita automática de Breton-
Soupault. A leitura, espontânea ou analítica, é feita portanto de negociações contínuas com o
sentido.

2. Figuratividade, iconicidade e “impressão referencial”

Como se estabelecem e ordenam as isotopias que produzem no texto aquele


“efeito de realidade” que R. Barthes denominava “ilusão referencial” (ou, pela proposta de F.
Rastier, “impressão referencial”, a fim de eliminar qualquer conotação pejorativa, inoportuna
em uma denominação técnica)? Para responder a essa pergunta, vamos examinar de perto a
gênese de um texto de Émile Zola, o incipit de Germinal, desde suas primeiras formulações até
o texto definitivo. Ao mesmo tempo, tentaremos mostrar, utilizando os instrumentos de

113
Verbete “isotopie”, em Sémiotique. Dictionnaire raisonné de la théorie du langage, vol. II, Paris,
Hachette, 1986, pp. 127-128.
87

análise apresentados até aqui, como se estreita pouco a pouco o tecido das isotopias, em uma
abordagem que reúne a semiótica e a genética textuais.
Para além dessa análise, propomos também confrontar o incipit ao desinit dessa
obra. Descobriremos então que os conteúdos iniciais do romance apresentam-se como a
forma invertida dos conteúdos terminais, garantindo um fechamento semântico, de ordem
paradigmática, do universo de Germinal. Com isso, o alcance da famosa fórmula de R.
Jakobson, que caracterizava a escritura poética como “projeção do eixo paradigmático da
linguagem sobre o eixo sintagmático”, parecer-nos-á bem mais geral: não diz respeito somente
à poesia, mas também a certos dispositivos romanescos. Assim, no caso de Germinal, a
correlação, quase sempre simétrica e até mesmo termo a termo, de valores substituíveis e
oponíveis no interior de paradigmas semânticos se efetua como resultado das provas e
transformações realizadas no decorrer das ações do herói no romance; em outras palavras,
como resultado de seu percurso sintagmático. Reconheceremos neste um verdadeiro “caso
exemplar”, de tão canônicas que se mostram essas relações à distância. É certo que Zola usava
e abusava daquilo que chamou, numa carta a Octave Mirbeau, de “simetrias voluntárias
demais”. Não se pode negar, ainda assim, que o texto extrai desses mecanismos parte de sua
eficácia, e o leitor, boa parte de sua adesão. A estrutura formal transforma assim o material
figurativo em iconicidade, pondo-se a serviço das “impressões referenciais” produzidas pelo
texto.

Germinal de Émile Zola: estados do incipit

RASCUNHOS

Plano geral

Chegada de Étienne [...]

Primeiro plano em pormenor

Primeiros dias de março de 66. Segunda-feira. Datar o império.


Étienne sozinho na estrada de Marchiennes a Montsou. Marchiennes a duas léguas.
Ele saiu cedo de lá para ir a Douai, ou a outra parte. Ali, não encontrou trabalho nas grandes
fábricas. A estrada toda reta, a noite escura, o céu coberto por um véu cinza, o vento glacial
que sopra na planície rasa. O vento nos corta.
Ele partiu há quase uma hora. [...]

Segundo plano em pormenor


88

Na planície rasa, sob a noite de março, introduzir um homem andando. Ele não vê
nada; só tem consciência da extensão pelo vento que sopra e vem de longe (o vento que
varre). A estrada escura aos seus pés (toda reta), ele não a vê. Tempo seco, rude, céu espesso
de tinta. A terra soa dura. (Ele deixou Marchiennes antes das três...).

O TEXTO DEFINITIVO {VER TRAD. BRASILEIRA DE GERMINAL}

Na planície rasa, sob a noite sem estrelas, de uma escuridão e de uma espessura de
tinta, um homem seguia sozinho a grande estrada de Marchiennes a Montsou, dez quilômetros
de pavimentação cortando em linha reta através dos campos de beterrabas. Adiante, ele nem
via o chão preto, e só tinha a sensação do imenso horizonte plano pelos sopros do vento de
março, rajadas largas como no mar, e geladas de varrer léguas de pântanos e terras nuas.
Nenhuma sombra de árvore manchava o céu, a pista se desdobrava com a retidão de um
embarcadouro, no meio da bruma ofuscante das trevas.
O homem partira de Marchiennes por volta das duas. [...]

2.1 Plano geral

Chegada de Étienne: as notações elementares de espaço, movimento e ator estabelecem


três isotopias: espacial, aspectual, actorial. A denominação “Étienne” sugere a hipótese de que
designe o futuro herói do romance (Étienne Lantier, membro da família dos Rougon-
Macquart). Esse estatuto privilegiado está implicado pelo enunciado apenas do primeiro nome
do ator, que pressupõe o conhecimento e a familiaridade do narrador. No plano geral, o herói
já é conhecido, o romance começa in medias res. Fazendo uma antecipação lógica do fim do
romance, podemos supor que o termo “chegada” reclama seu complementar na categoria do
deslocamento: “partida”. Podemos, enfim, observar que o sintagma “chegada de Étienne”,
terminativo, cobre uma dimensão narrativa mais ampla do que as versões seguintes, as quais
vão restringi-la a um fragmento de seu percurso.

2.2 Primeiro plano em pormenor

2.2.1 O tempo

As marcas que instalam e precisam a isotopia temporal são abundantes. Todas


têm em comum (traço isotopante) o fato de marcar o ponto de articulação entre um fim e um
começo, num triplo registro de temporalidade: temporalidade natural (o dia: bem cedo, noite
escura antes da aurora; a estação: fim de inverno-começo de primavera), cultural (o mês:
“primeiros dias de março de 1866”; a semana: “segunda-feira”) e histórica (“datar o Império”).
A marca aspectual, neste caso pontual e incoativa, permite antecipar uma aspectualidade final
de cunho durativo.
89

2.2.2 O espaço

As marcas da isotopia espacial também são numerosas. São de duas ordens:


nomes próprios de lugares (quatro denominações) e nomes comuns; cada um destes últimos é
qualificado por um adjetivo (estrada “reta”, noite “escura”, céu “cinza”, vento “glacial”,
planície “rasa”). Cada um projeta, como termo de uma categoria, seu termo oposto já
previsível (assim confirmado no final do romance: “em pleno céu, o sol de abril irradiava em
sua glória, aquecendo a terra que dava à luz” {VERIFICAR TRAD. EXISTENTE DE
GERMINAL}. Como o tempo, o espaço é igualmente precisado pela quantificação (“duas
léguas”). Os topônimos e as qualificações dos estados de coisas, assim como, anteriormente,
os cronônimos (tempo histórico), fundam sua iconicidade em sua especificidade
(quantificação, qualificação), levando à produção de um efeito de “realidade”.

2.2.3 O ator e sua ação

Designado, como no plano geral, apenas por seu primeiro nome, o ator não
recebe aqui nenhuma qualificação descritiva. Suas propriedades são determinadas pela ação:
ele está “só”; “partiu” (duas vezes); e, sobretudo, “não encontrou trabalho nas grandes
fábricas”, que indica a um só tempo seu estado narrativo (estado de falta, condição da
formação de um sujeito de busca) e seu estatuto sociocultural (operário). É um sujeito de ação,
mas, designado somente por predicados de estado, está como que imobilizado no cenário.

2.2.4 Manifestação textual

Seis frases, essencialmente nominais, breves e sem liames sintáxicos. As raras


formas verbais são verbos de estado (ser e ter), particípios passados, dois verbos de ação que
têm por sujeito “o vento” (“sopra”, “corta”). O início do texto evoca o movimento do
homem, o fim descreve o espaço em que este se encontra: as duas isotopias, a do ator e a do
espaço, estão nitidamente separadas, ocupando de maneira exclusiva cada uma das duas
extremidades da seqüência. Esses fatos estilísticos contribuem para isolar o ator. Quanto à
marca pessoal final: “o vento nos corta”, ela introduz com o enunciador a presença de um
sujeito coletivo participante, convocando a expressão de uma “subjetividade solidária” nas
versões posteriores, cujos meios discursivos poderão variar (o discurso indireto livre será seu
instrumento privilegiado). Como quer que seja, o conjunto dos fatos textuais desse primeiro
plano pormenorizado instala um modo de veridicção com o qual os enunciados do segundo
plano detalhado contrastarão fortemente.

2.3 Segundo plano em pormenor

É constituído de cinco frases. A confrontação entre os dois planos é


esclarecedora, como demonstra o inventário das similitudes e diferenças na maneira de
desenvolver as três grandes isotopias do tempo, do espaço e do ator. As similitudes dizem
respeito à noite de março, ao vento que sopra, à estrada escura, ao céu espesso, velado, a um
homem que se movimenta. Mas as diferenças são mais numerosas. No que toca ao tempo,
90

verifica-se que não há mais qualquer marca temporal precisa, o aspecto já não é incoativo, e
sim durativo: o homem está andando. Em relação ao espaço, os topônimos desapareceram,
desfazendo assim qualquer conhecimento externo do espaço. Já quanto ao ator e a sua ação,
estes agora se baseiam exclusivamente em predicados sensoriais: ele “não vê nada”, “só tem
consciência da extensão por...”; a estrada, “ele não a vê”, “a terra soa dura”. O percurso narrativo
faz desaparecer a falta social (o trabalho), mas introduz uma falta numa nova isotopia, desta
vez sensorial. A percepção sensível só está presente ao modo negativo.
O essencial das mudanças, de fato, procede do lugar central que ocupam no
caso os verbos de sensação, ligados ao sujeito (doravante anônimo) que é seu agente: ver,
tocar, ouvir. A ação do homem e o cenário em que se encontra já não estão separados: ele se
tornou ator-participante. O leitor percebe por meio das percepções e sensações do homem. Nós
o conhecíamos antes por fora, por intermédio das focalizações do narrador (um nome
próprio, lugares nomeados, um projeto e uma falta); de agora em diante, nós o conhecemos de
outro modo, menos globalmente decerto, mas “por dentro”. As três isotopias figurativas,
anteriormente autônomas e disjuntas, estão agora integradas e hierarquizadas. É a do ator,
sensível e cognitivo, que rege totalmente a do espaço (que ele percebe negativamente) e a do
tempo (que é a duração subjetiva). A estratégia veridictória optou por outro suporte: a
iconicidade do figurativo era construída por elementos lexicais; agora, firma-se sobre um jogo
de referencialização interna das isotopias, por intermédio da encenação sensorial.
Como anteriormente, é possível projetar a partir do segundo plano pormenorizado
hipóteses paradigmáticas sobre a seqüência final do romance, fundando-as nas transformações
sensoriais do herói: obnubilado, ele não via – “clarividente”, verá além do visível; o mundo era
opaco (até mesmo o ar) – torna-se transparente (incluindo a terra); a percepção entravada se
transforma em hipersensorialidade...

2.4 Texto definitivo

2.4.1 Retomadas e transformações

O texto compreende dessa vez três frases, mas com uma estrutura muito mais
complexa. Pode-se examinar antes de mais nada o que resta do primeiro, e depois do segundo
plano pormenorizado, para concluir que o texto final se nutre dos materiais de ambas as
versões.

Primeiro plano Segundo plano


... na planície rasa Na planície rasa...
à noite à noite
a estrada de Marchiennes a Montsou; duas a estrada (toda reta) – retidão
léguas – dez quilômetros Ele só tem consciência de [...] –
a estrada toda reta (– retidão) Ele só tinha a sensação [...] por [...]
Não vê nada – ele nem via [...].
91

O texto final aparece como mescla dos dois planos pormenorizados: a precisão da
toponímia vem do primeiro, a percepção sensorial vem do segundo. Mas as qualificações estão
deslocadas, as imagens, multiplicadas e a organização global, profundamente modificada. À
maneira de uma estrutura textual relativamente fechada sobre si mesma, a seqüência encerra
seu próprio sistema de relações à distância. Assim, podem-se observar os paralelismos entre a
primeira e a última frase que emolduram a frase central: três isotopias são redundantes nelas, a
da luz, a da geometria e a do englobamento.

F1 F3
luz escuridão escuridão
geometria retidão da estrada retidão da estrada
englobamento “através de” “no meio de”

2.4.2 Simetria e fechamento do texto

A simetria semântica entre as duas frases, reforçada por uma simetria sintáxica
(o adjunto de lugar final) e prosódica (as doze sílabas do primeiro e do último segmento do
parágrafo, que ecoam assim como quase-alexandrinos, o ritmo ternário da terceira frase, as
repetições fônicas), garante o fechamento dessa passagem: o conjunto é fechado como um
poema. A análise poderia especificar melhor essas observações, mas estas já indicam princípios
de escrita.

2.4.3 A negatividade

Enfim, uma última investigação permite antecipar de modo mais detalhado o


fim do romance e projetar suas hipóteses redacionais. Pode-se sem dificuldade fazer um
levantamento, no texto definitivo do primeiro parágrafo, de tudo o que carrega uma
significação negativa e aparece como um “conteúdo invertido” daquilo que poderá no final ser
positivado. Percebe-se que essa isotopia temática da negatividade, para além da morfossintaxe
da negação, reúne praticamente todos os elementos do texto, podendo em conseqüência ser
considerada como regente da significação global.

As formas de escritura negativas


(Ele nem via sequer... não tinha a sensação [...] a não ser por [...]... a noite sem
estrelas... Nenhuma sombra de árvore manchava o céu...)

O ator
ação “passivizada” (Ele segue a estrada, a pavimentação se desenrola)
sensações negativas (ele não vê, ele não tem a sensação a não ser por)
92

solidão e isolamento

O espaço
opacidade (escuridão, espessura de tinta, chão preto, sombra, bruma ofuscante)
horizontalidade exclusiva (ausência de céu, planície rasa, pântanos e terras nuas,
imenso horizonte plano)
geometria exclusiva (dez quilômetros cortando, toda reta, a retidão de um
embarcadouro)

A projeção paradigmática desse conjunto conduzirá a opor a profusão de um


saber positivo à negação de qualquer saber (marcado em especial pela proliferação dos nomes
próprios: Vandame, Montsou, La Victoire, Saint-Thomas, Feutry-Cantel, etc.), o
desaparecimento de qualquer forma sintáxica da negação (atestada pelo último parágrafo do
romance) a sua onipresença, a ação positiva de um caminhante que “se apressa” a de um
homem que “segue a estrada”, a hiperestesia de percepções positivas (“Sob seus pés, os golpes
profundos, os golpes obstinados das picaretas continuavam. [...] Ouvia-os a segui-lo”) à
anestesia de toda sensação, a presença da comunidade (“os camaradas estavam todos lá”) à
solidão e ao isolamento, a transparência (“o ar transparente da manhã”, “o sol de abril
irradiava em toda sua glória”) à opacidade, a pluridimensionalidade do espaço (o subterrâneo,
o chão e o aéreo reunidos) à horizontalidade exclusiva, a abundância labiríntica e o calor do
jorro vital à gélida geometria; em suma, a germinação à seca infecunda.
Podemos agora ler o desinit do romance à vista do incipit, lembrando que, para
intensificar o efeito de veridicção figurativa, o autor não recuava perante as “simetrias mais
que voluntárias”:

“Mas Étienne, deixando o caminho de Vandame, ...” {cit.


do desinit de Germinal de Zola, PROCURAR TRAD.
EXISTENTE, p.537}

Queremos enfatizar, ao concluir esta análise parcial dos processos figurativos,


o vínculo entre as estruturas semânticas e as estruturas narrativas. Evidenciamos um
dispositivo paradigmático, sob a forma de um conjunto de oposições semânticas correlatas.
Essas oposições são orientadas, e sua orientação é generalizável: elas levam de um termo
negativo a um positivo, formando assim um sistema de valores oponíveis e substituíveis, ou
seja, um paradigma. Ora, este vai ao encontro da estrutura elementar da narrativa mítica, posta
em evidência notadamente por Lévi-Strauss, e que consiste na passagem de um conteúdo
invertido a um conteúdo posto. Esse exemplo ilustra, assim, o domínio da dimensão paradigmática
sobre a dimensão sintagmática, já que aquela ordena e administra os conteúdos desta. Expõe,
ao mesmo tempo, o caráter mítico da narrativa de Zola, cuja estrutura global “dá sentido” a
um universo posto inicialmente, se não como um universo de não-sentido, pelo menos como
um mundo opaco e negativo, à espera de significações e valores.
93

Síntese

ACESSO À FIGURATIVIDADE

A questão da figuratividade, central para a análise literária, é abordada em


três etapas (caps. 5, 6 e 7), que correspondem ao desenvolvimento, nas linhas
gerais, da reflexão semiótica a seu respeito: a introdução do conceito de
figuratividade no contexto da semiótica estrutural, o percurso dos efeitos de
sentido figurativos num continuum que vai da iconicidade à abstração, a relação
estreita entre figuratividade da linguagem e ato de percepção.
A primeira etapa, “acesso à figuratividade”, precisa as condições de
formação desse conceito, desde as análises da semântica estrutural. Estas assentam
numa concepção da semiose (ou função semiótica) que, por um lado, associa língua
natural e mundo natural como duas semióticas em relação uma com a outra
(rejeitando o conceito lingüístico de referente) e, por outro lado, articula a forma da
expressão e a do conteúdo das línguas naturais.
A organização da forma do conteúdo é obtida a partir da análise
sêmica, na qual o “núcleo sêmico” e o “sema contextual” (ou classema) são
responsáveis pela formação dos sememas (significações realizadas ou acepções de
uma palavra). A estruturação de um microuniverso semântico se desdobra sob a
forma de uma estrutura elementar (o quadrado semiótico). Esse modelo define as
relações lógico-semânticas (contradição, contrariedade, complementaridade,
hierarquia) em cujo cruzamento se constituem os efeitos de sentido; ele as dispõe
sob a forma de um paradigma e também pode ser lido de maneira sintagmática,
como um percurso entre os termos, oferecendo então o esboço elementar da
narratividade.
De maneira geral, o desenvolvimento semântico do discurso é
{Revisão mais recente deste capítulo: ICL, 07/fevereiro/2002}
assegurado pelas isotopias. Esse conceito designa a iteração de um elemento
semântico produtor de um efeito de permanência das significações ao longo dos
enunciados. Ao contrário do campo lexical (conjunto dos lexemas que se referem a
um mesmo universo de experiência) e do campo semântico (conjunto de lexemas
dotados de uma organização estrutural em comum), a isotopia não tem por
horizonte a palavra, e sim o discurso. Dessa maneira, ela pode dizer respeito ao
estabelecimento de um universo figurativo (isotopias dos atores, do tempo, do
espaço), à tematização desse universo (isotopias abstratas e axiológicas), e
principalmente à hierarquia entre as isotopias de leitura (pela identificação de um
núcleo isotopante que rege as isotopias de nível inferior). Conectando isotopias, as
figuras de retórica (metáfora, metonímia, etc.) instalam a coexistência,
eventualmente competitiva, de dois ou mais planos de significação que se
apresentam simultaneamente à interpretação.
A análise comparativa do incipit e do desinit de Germinal permite
depreender as estratégias de escritura que organizam a rede das isotopias, e que
além disso garantem, em associação com as estruturas narrativas, o fechamento do
texto, e fundam a “impressão referencial” característica da chamada escritura
94

CAPÍTULO 6

Figuratividade e tematização :
o efeito de profundidade

1. A gradualidade do figurativo

1.1 As duas vias da figuratividade: a iconicidade e a abstração


O exemplo anterior de Zola ilustrava a maneira pela qual a escrita pode produzir
impressões referenciais. O leitor, quando faz surgir o mundo ao ler da forma como percebe,
ao provar dele em sua experiência vivida, reconhece ao mesmo tempo um traço central desse
tipo de texto: sua iconicidade, ou, ao menos, uma das formas possíveis da iconização.
Essa é uma das manifestações da figuratividade, determinada pelos códigos
culturais de apreensão do sentido: o gênero realista evoca uma concepção da realidade e uma
poética da escrita assumidas pelos produtores e usuários desse gênero de discurso. Foi contra
essa codificação, consolidada nos usos da leitura a ponto de ser aceita como evidente, que se
ergueram os teóricos do Nouveau Roman. A crítica da “personagem”, simples efeito de uma
construção discursiva, é um exemplo disso: “O romance de personagens pertence sem sombra
de dúvida ao passado, ele caracteriza uma época: a que marcou o apogeu do indivíduo114.”
Essa iconicidade, portanto, nada mais é do que uma forma dentre outras possíveis de explorar
componentes figurativos da expressão lingüística. Ao inseri-la como um termo polar no
interior de uma categoria, o que faz a semiótica é opô-la então à polaridade contrária, a da
abstração, que também manipula, mas de maneira completamente outra, as disponibilidades
figurativas primeiras da língua. “Iconização e abstração [...] constituem antes graus variáveis da
figuratividade”115.

Figurativo

icônico abstrato

A figuratividade é portanto concebida como uma propriedade semântica fundamental


da linguagem. Ela proporciona manifestações graduais, de acordo com o uso que o discurso
faz dela. Um exemplo simples pode esclarecer essa constatação: um lógico conclui a

114
A. Robbe-Grillet, « Sur quelques notions périmées », in Pour un nouveau roman, Paris, Gallimard, col.
« Idées », 1963, p. 33.
115
A. J. Greimas, “Semiótica figurativa e semiótica plástica”. Trad. Ignácio Assis Silva. Significação –
Revista brasileira de semiótica, 4, Araraquara, junho de 1984, p. 27.
95

introdução de sua obra indicando que se contentou até então em apresentar “a ossatura de seu
raciocínio”. Leitor algum, é óbvio, imaginaria concretamente a organização de um esqueleto.
Os elementos figurativos, embora presentes, estão de alguma forma suspensos. Seria muito
diferente se ele continuasse dizendo: “passemos agora à carne e aos músculos”. Rompendo a
isotopia abstrata de seu discurso (cujo termo regente é “raciocínio”), ele transformaria assim a
figuratividade enfraquecida e virtualizada que se tece na abstração em figuratividade saliente,
de caráter icônico, e perturbaria um pouco as expectativas do leitor...
Durante a preparação de um estudo dedicado aos diferentes logotipos das
grandes instituições públicas (ministérios, estabelecimentos públicos, etc.), tendo em vista a
elaboração de um logotipo do Estado francês, ocorreu-nos examinar seu modo de
representação e reconhecer nele variações notáveis. Verificava-se antes de mais nada que os
logotipos analisados (cerca de trinta) manifestavam, em graus variáveis, um componente
figurativo. Mas esse componente procedia, como vimos, de diferentes regimes de significação:
como um ponteiro que percorre a escala de um instrumento de medida, a figuração deslizava
gradualmente da representação icônica (reproduzindo uma percepção sensível, como a
solenidade de um monumento, a familiaridade do mapa da França ou a presença de um olhar)
à representação abstrata (sugerindo valores fundamentais, como o equilíbrio e a eqüidade da
Justiça), passando por tratamentos estilizados, alegorias e símbolos.
A escala gradual da figuratividade podia ser estabelecida assim:

Exemplos de Conteúdo
ministérios figurativo
Figuratividade
+
Função pública
- o pátio do
iconização ministério
- Juventude e uma
estilização Esportes personagem
- alegoria Relações exteriores feixe, folhas
- símbolo Economia e balança
Finanças
- Equipamento raios?
conceito {***rayons}
Figuratividade
-

O tratamento figurativo, aliado à análise do tratamento plástico, geraria uma


ampla diversidade de tematizações, e esse conjunto declina de forma logicamente estruturável
certos valores capazes de encarnar a imagem do Estado: a identidade da Nação (a bandeira), a
história da República (feixe, folhas de carvalho e de louro), o enunciado dos valores
republicanos (a eqüidade da balança), a vinculação ao território (o mapa, a paisagem), a
tecnicidade de uma competência (figuras geométricas), a gestualidade da ação (uma
personagem em movimento). Em suma, valores utópicos opostos a valores práticos, e valores
96

técnicos (que negam os valores utópicos) opostos a valores éticos (que negam os valores
práticos).
A diferença semântica precisa entre os pólos icônico e abstrato é interpretada
pela semântica estrutural em termos de densidade sêmica. Queremos dizer com isso a
densidade não somente dos traços que entram na construção do formante figurativo, mas
também a das redes associativas que ela possibilita com outros formantes. A iconicidade
ocorrrerá se os traços que o formante reúne forem suficientes para “permitir sua interpretação
como representante de um objeto do mundo natural116”. Trata-se do processo descrito na
quarta definição da figuratividade proposta no capítulo anterior. Um simples esboço basta
para provocar esse efeito: uma oval e três pontos sugerem um rosto. Essa densidade de traços
pode ser submetida a variações consideráveis que vão, para dar um exemplo baseado na
pintura, da densidade máxima (produzindo a iconização ilusionista do hiper-realismo) à
densidade mínima, até a ausência (conduzindo à impossibilidade de qualquer reconhecimento,
e dando lugar, em caso de desaparecimento total dos traços figurativos, à abstração). Nos
textos, a iconização poderá ser formada se a densidade sêmica dos traços for elevada, ou, em
outras palavras, se o semema escolhido admitir muito poucas variações semêmicas e se suas
associações forem bastante restritivas. É o caso por exemplo dos termos técnicos e
especializados nos romances naturalistas, que produzem, independentemente do
conhecimento que o leitor venha a ter de sua significação efetiva, um efeito de referenciação
forte: o semema designa uma coisa e uma só, num contexto sociocultural preciso (o
“gradador” em Germinal, por exemplo) Inversamente, a abstração vai se formar caso a
densidade sêmica seja baixa. Em outras palavras, se o semema admitir uma larga faixa de
variações semêmicas e se os contextos de uso forem muito abertos (a “beleza”, por exemplo).
Pode-se aproximar a concepção semiótica da iconicidade daquilo que a retórica
dos tropos chama de hipotipose: “A hipotipose pinta as coisas de maneira tão viva e tão
enérgica que ela como que as põe diante de nossos olhos, e faz de uma narração ou de uma
descrição uma imagem, um quadro, ou até mesmo uma cena viva117.” Essa definição de P.
Fontanier é retomada por B. Dupriez118, que cita um exemplo de Flaubert extraído da Educação
Sentimental : “Pessoas que chegavam sem fôlego; barris, cabos, cestos de roupas atrapalhavam a
circulação; os marujos não respondiam a quem os abordasse; toda a gente se esbarrava”. No
entanto, a retórica define essa figura sem descrever-lhe o mecanismo; ela a apresenta, além do
mais, como um fenômeno geral e universal, sem inscrevê-la na poética de um contexto
cultural específico. Ora, como sugere esse exemplo, trata-se nada mais, nada menos que de um
modo discursivo possível da figuratividade. Ao contrário da hipotipose, o conceito de
iconicidade é definido como um arranjo particular dos conteúdos figurativos virtuais no ato de
sua discursivização. Ele é construído no campo da teoria semântica, previamente às variáveis
culturais que lhe dão forma, e admite uma descrição independente das normas e dos cânones
que estas engendram. No seio de uma mesma cultura, a literatura não somente propõe
variações à codificação dos efeitos figurativos, mas sobretudo tem por especificidade
interrogar de maneira crítica as funções da figuratividade na linguagem e também as crenças
que ela traz consigo. Assim, na célebre abertura de Jacques, O Fatalista {***verif. título em
port.}, Diderot empenha-se em aniquilar logo de saída as expectativas de iconicidade do leitor.
Veremos no capítulo seguinte como H. Michaux, por sua vez, põe em cena, de modo
conflituoso, os aspectos fiduciários da iconização no discurso.

116
A. J. Greimas, ibid., p. 25.
117
P. Fontanier, Les Figures du discours, Paris, Flammarion, col. « Champs », p. 390.
118
B. Dupriez, Gradus. Les procédés littéraires (Dictionnaire), Paris, 10/18, 1984, p. 240.
97

1.2 O figurativo e o temático

É nessa elasticidade semântica da figuratividade que se baseia, quando nos dirigimos ao


outro pólo da categoria, a distinção entre figurativo e temático. O “tema” é uma das noções
mais comumente utilizadas na análise literária, mas nem por isso sua definição pode ser
considerada estável. Ela oscila entre os topoi (a paisagem, por exemplo, como signo cultural da
Natureza) e os motivos axiológicos (como “a decadência”). A comodidade dessa noção está
assentada decerto no caráter difuso de sua definição. Ora, é possível torná-la mais precisa se
ligarmos as isotopias temáticas a seu suporte figurativo. A tematização consiste em dotar uma
seqüência figurativa de significações mais abstratas que têm por função alicerçar os seus
elementos e uni-los, indicar sua orientação e finalidade, ou inseri-los num campo de valores
cognitivos ou passionais.
Assim, para ser compreendido, o figurativo precisa ser asumido por um tema.
Este último dá sentido e valor às figuras. A descrição de uma isotopia figurativa visa na
maioria das vezes ao estabelecimento da isotopia temática que a fundamenta, se esta não
estiver textualizada. Isso porque essa significação de segundo nível pode se manifestar de
maneira extremamente variada. Ela pode ser, por certo, explicitamente denominada, por meio
de um termo abstrato, por exemplo, que condensará um conjunto de seqüências figurativas. J.
Courtés dá um exemplo disso com uma ilustração extraída de um conto de Perrault: “a mãe
tinha uma aversão horrível à caçula. Ela a obrigava a comer na cozinha e a trabalhar sem
descanso. Entre outras coisas, a pobrezinha era obrigada duas vezes por dia a ir buscar água a
mais de meia légua de casa”, etc119. O desenvolvimento figurativo e a precisão icônica (mais de
meia légua) confirmam e intensificam o conteúdo temático-passional da aversão.
Tal significação temática e abstrata pode também ser desenvolvida como uma
unidade discursiva de comentário combinado ou agregado à significação figurativa da narrativa
Assim ocorre, entre outros casos, com a fábula e sua moral. A primeira dispõe em expansão
figurativa aquilo que a última condensa abstratamente. A relação de equivalência entre as duas
unidades de discurso pode ser formalmente comparada àquela que une a palavra à sua
definição. Mas o par fábula/moral, reformulado como figurativo/temático, realiza sobretudo
uma das regras básicas da retórica aristotélica: a persuasão se dá, quer por meio de exemplos,
quer por meio de raciocínios.
A significação temática pode ainda ser indicada com o auxílio das expressões
cuja função é conectar as duas isotopias de leitura (expressões que a retórica denomina
precisamente figuras). Tais conectores podem ser fixos e funcionar termo a termo, quando a
significação abstrata é ilustrada por uma figura necessária, como no caso da alegoria: as flechas
sucessivas do Cupido no Romance da rosa correspondem a uma distribuição regulamentada dos
sentimentos amorosos. Os conectores podem manter a significação aberta, quando a isotopia
figurativa é predominante e se oferece como estrutura receptora para as isotopias possíveis da
abstração, como no caso do símbolo: “La Nature est un temple où de vivants piliers / Laissent
parfois sortir de confuses paroles”, ou, de forma diferente, no caso da metáfora: “Mon beau
navire ô ma mémoire / Avons-nous assez navigué [...]”120.
Mas essa significação pode também permanecer implícita, quer porque se
espere que seja interpretada de maneira evidente, quer porque se abra à livre interpretação do

119
J. Courtés, Analyse sémiotique du discours, Paris, Hachette, 1991, p. 165.
120
[N. dos T.] Respectivamente, Baudelaire : “A Natureza é um templo onde pilares vivos / Deixam às vezes
escapar palavras confusas” e Rimbaud {???}:“Meu lindo navio, oh, minha memória / Será que navegamos o
bastante [...]”.
98

destinatário, ficando então inteiramente sob sua responsabilidade. É o caso da parábola,


caracterizada pela pluralidade de isotopias figurativas possíveis para significar uma única
isotopia temática, na qual diversas narrativas diferentes trazem uma mesma mensagem
axiológica.
Certos discursos parecem se instituir sobre isotopias exclusivamente
figurativas, como o manual do proprietário ou a receita culinária. Mas, também nesses casos,
uma tematização poderia facilmente ser reconhecida, /funcional/, por exemplo, sem excluir
outros desenvolvimentos temáticos, na ordem dos valores estéticos, gustativos, etc., passíveis
de serem introduzidos nesse tipo de discurso. Inversamente, os discursos científico, filosófico,
teórico, etc., parecem arrolar exclusivamente isotopias temáticas. A análise poderia então
examinar os modos de inserção da figuratividade no discurso argumentativo, não somente por
meio de ilustrações concretas (cf. o exemplum retórico), porém mais profundamente por meio
das figuras analógicas que buscam tornar sensível aquilo que é por natureza exterior e
inacessível à percepção.

1.3 Linguagem e “raciocínio” figurativo

Ao examinar a dimensão figurativa dos discursos, defrontamo-nos imediatamente com


a extensão e diversidade das formas que seus modos de atualização podem adotar. No
entanto, uma propriedade mais singular dos discursos figurativos deve ser salientada: é o que
se pode chamar de “profundidade” do figurativo. Como se viu, a significação figurativa
ultrapassa com folga seus significados literais, dotando-se de significações abstratas. Mas esse
“além-sentido” não se desenvolve necessariamente por via da duplicação que examinamos.
Ele pode ser inerente à ordem do próprio discurso figurativo.
É nesse sentido que se fala por vezes, em semiótica, de “raciocínio figurativo”.
Trata-se de uma forma de argumentação que, ao contrário da racionalidade dedutiva e
demonstrativa que articula causas e conseqüências, hierarquias, relações lógicas entre as partes
e o todo, etc., funciona por analogia direta ou, por assim dizer, lateralmente. O discurso da
parábola, de que falávamos acima, é um exemplo notável de racionalidade figurativa, pois a
argumentação que nele se enuncia só pode ser dita em termos concretos e sensíveis, como que
por uma catacrese generalizada: ela recorre assim à assunção dos ouvintes, sem transitar pelo
raciocínio lógico, sem adotar seus códigos nem suas estratégias de persuasão. A verdade que se
supõe contida no discurso parabólico não pode ser compreendida, no sentido racional da
palavra, ela tem de ser literalmente incorporada pelos ouvintes que a assumem e assimilam.
O discurso cotidiano é também, embora talvez mais modestamente, tecido a
partir dessas configurações que, mediante figuras enfraquecidas, permitem organizar vastos
campos conceptuais fundamentados tão-somente na figuratividade. Podem ser citadas como
exemplos as metáforas espaciais chamadas “de orientação”, tão numerosas na comunicação do
dia-a-dia. G. Lakoff e M. Johnson estudaram-nas numa obra cujo título original exprime
vigorosamente a ambição: Metaphors We Live By, frouxamente traduzido em francês como Les
Métaphores dans la vie quotidienne121. Assim, essa racionalidade figurativa, inscrita na fraseologia
consagrada da língua, confere orientação espacial aos conceitos e valores. Ela põe a felicidade
no alto (“estar no sétimo céu”) e a tristeza embaixo (“cair em depressão profunda”), o

121
G. Lakoff, M. Johnson, Les Métaphores dans la vie quotidienne, Paris, Minuit, 1985, cap. 4, pp. 24 ss. [N.
dos T.] Literalmente, em inglês, “Metáforas por que vivemos” e, em francês, “As metáforas na vida
cotidiana”. {HÁ TRAD. BRASILEIRA???}
99

consciente no alto (“a consciência ‘emerge’”) e o inconsciente embaixo (“ele caiu num sono
profundo”), a saúde e a vida no alto (“ele está no auge de sua forma”), a doença embaixo (“ele
caiu de cama”), a virtude no alto (“ele está acima de qualquer suspeita”) e o vício embaixo
(“não cometerei essa baixeza”), o racional no alto (“um alto nível intelectual”) e o passional
embaixo (“dominar suas emoções”), etc. Enraizada na experiência corporal, a figuratividade
espacial rege assim de forma extraordinariamente extensa as representações axiológicas, sejam
elas valores éticos, morais, racionais, socioculturais, físicos ou outros.
De maneira mais radical, Nietzsche, em Vérité et mensonge au sens extra-moral,
aponta o fundamento figurativo da linguagem para denunciar as ilusões da verdade que traz
consigo a palavra conceptualizada. A verdade nasce do desejo de conjurar a estranheza do
mundo pela sua inserção nas convenções sociais da língua, nos produtos da utilização cultural
que a geraram. Desse modo a questão da “verdade” evoca a questão do nascimento da língua.

Cada palavra torna-se de imediato um conceito pelo fato de que, justamente, não deve servir
de lembrança à experiência original, única e completamente singular a que ela deve seu nascimento, mas
deve adaptar-se também a inúmeros casos menos parecidos ou mais, isto é, rigorosamente falando,
jamais idênticos; uma diversidade de casos diferentes, portanto. Todo conceito nasce da identificação do
não-idêntico. Tão certo quanto uma folha não será jamais idêntica a outra, assim também o conceito de
folha se formou pela renúncia deliberada a essas diferenças individuais, pelo esquecimento do distintivo,
e ele desperta a representação, como se existisse na natureza, para além das folhas, uma coisa como “a
folha”, uma espécie de forma original a servir de modelo a partir do qual todas as folhas seriam tecidas,
desenhadas, medidas, coloridas, frisadas, pintadas, mas por mãos inábeis, a tal ponto que nenhum
exemplar correto e confiável jamais se apresentaria como transposição fiel da forma original122.

Isso é especialmente verdadeiro no tocante aos chamados conceitos abstratos,


como a honestidade ou a razão. A verdade é, por conseqüência, subordinada à “legislação da
linguagem”, que oculta o divórcio entre as palavras e as coisas, forçando a passagem do
particular ao geral, transformando a irredutibilidade das impressões singulares em
generalizações conceptuais. Operando por meio de tais transferências, os conceitos nada são
além de figuras: “Afinal, o que é a verdade?” Um exército móvel de metáforas, metonímias,
antropomorfismos, enfim, um compósito de correlações humanas poética e retoricamente
amplificadas, transpostas, ornamentadas, e que, ao cabo de muito uso, apresentam-se aos
olhos de um povo como canônicas e obrigatórias123.”
Assim, contrariamente ao que poderia sugerir uma concepção estreita do
percurso gerativo que instalaria o nível figurativo na superfície, como somatória das
contribuições advindas das relações abstratas fundadoras, a figuratividade não é uma
vestimenta da abstração, é a abstração que é fictícia e fabulatória, vestimenta desbotada de
uma figuratividade original. Na perspectiva desenvolvida por Nietzsche, os conceitos são
“metáforas que foram desgastadas e esvaziadas de sua força sensível”.

2. Figuratividade, entre iconização e tematização

122
F. Nietzsche, Vérité et mensonge au sens extra-moral, trad. fr. de N. Gascuel, Arles, Actes Sud, 1997, pp.
14-15.
123
Ibid., p. 16.
100

Recorrera-se, para as tortas e os nugás, a um pasteleiro de Yvetot. Este, como fosse novo na
região, esmerou-se no preparo dos pratos; e apresentou mesmo, à sobremesa, um bolo monumental que
provocou exclamações de entusiasmo. Na base, de início, havia um quadrado de papelão azul
representando um templo com seus pórticos, colunatas de estatuetas de alcorça nos nichos recamados de
estrelas de papel dourado; um torreão de bolo de Savóia, cercado de pequenas fortificações de hastes de
angélica, amêndoas, passas e quartos de laranja, elevava-se no segundo pavimento; finalmente, na
plataforma superior, que representava uma campina verdejante, em que havia rochedos e lagos de doces,
bem como barcos de lascas de avelãs, um pequeno Amor balançando-se em um trapézio de chocolate,
cujos esteios terminavam no topo por dois botões de rosa natural, à guisa de esferas.

Gustave Flaubert, Madame Bovary. Trad. Genésio Pereira


Filho. São Paulo, Melhoramentos, s/d, p. 40.

“Efeito de profundidade”. Essa expressão, figurativa, designa de maneira


imprecisa um problema clássico, comum à poética literária e à tradicional explication de textes:
uma outra significação estaria sempre destinada a ser lida “por trás” ou “por baixo” da
significação imediata. Reformulado em termos de estratificação do figurativo (entre icônico de
superfície e temático mais abstrato), esse problema geral nos levará agora, por um lado, a
examinar as ligações entre os diferentes “níveis” de leitura supostos, e, por outro, a vislumbrar
a formação de uma rede de referentes internos do texto que, ao afastá-lo de seu referente externo
(o bolo de verdade), permitem que ele se autonomize enquanto forma própria, que seja
isolado como objeto material, e que seja reconhecido como valor estético.

2.1 Arquiteturas

As coerções da linearidade textual (sucessividade dos enunciados) combinadas à


focalização espacial explicam e justificam o duplo registro de estruturação nesse curto
fragmento de Flaubert124: o registro da estratificação do espaço – os andares do bolo –
determinada pelo ponto de vista do observador, e o da descontinuidade temporal que pontua a
enunciação do discurso descritivo. Sobre o alicerce predicativo dos enunciados de estado, o
texto apresenta então a arquitetura do bolo monumental, do modo como suas partes se

124
[N.dos T] A tradução brasileira de referência omite duas das marcas discutidas por D. Bertrand, o
predicado perceptivo ¨via-se¨ e o articulador temporal ¨em seguida¨, aqui destacados no texto original de
Flaubert : On avait été chercher un pâtissier `a Yvetot, pour les tourtes et les nougats. Comme il débutait
dans le pays, il avait soigné les choses ; et il apporta, lui-même, au dessert, une pièce montée qui fit pousser
des cris. À la base, d´abord, c´était un carré de carton bleu figurant un temple avec portiques, colonnades et
statuettes de stuc tout autour dans des niches constellées d´étoiles en papier doré ; puis se tenait au second
étage un donjon en gâteau de Savoie, entouré de menues fortifications en angélique, amandes, raisins secs,
quarties d´oranges ; et enfin, sur la plate-forme supérieure, qui était une prairie verte où il y avait des
rochers avec des lacs de confiture et des bateaux en écales de noisettes, on voyait un petit Amour, se
balançant `a une escarpolette de chocolat, dont les deux poteaux étaient terminés par deux boutons de rose
naturelle, en guise de boule, au sommet. (in Oeuvres, t. I, Paris, Gallimard, coll. ¨La Pléiade¨, p.317)
101

apresentam, simultaneamente, ao olhar, e os encadeamentos da descrição tais como se


impõem, sucessivamente, ao enunciador.

Enunciados de Espacialização Temporalização


estado
havia na base de início
eleva-se no segundo pavimento em seguida
representava na plataforma superior finalmente
havia simultaneidade das sucessividade do
partes discurso
via-se

Ao examinar, nesse nível da textualização, o problema da descrição


flaubertiana, Jean Ricardou assinalou que, na realidade, nessa dupla estrutura co-ocorrente, há
duas leituras divergentes do texto: uma “leitura referencial” que apresenta a coisa em si mesma
e que a põe por assim dizer diante dos olhos como uma figura monumental (igual efeito de
“ampliação” arquitetural caracterizava, no início do romance, a descrição do boné
“complicado” de Charles Bovary), e uma “leitura literal” que se relaciona ao processo
descritivo propriamente dito. De fato, é claro que as marcas temporais não designam o
processo de apreensão visual do bolo, que se oferece imediatamente à percepção, mas as
diferentes operações do discurso cognitivo, que enuncia assim, passo a passo, o processo de
sua realização. “Deve-se notar aqui, escreve J. Ricardou, a atividade moderna de uma descrição
que se designa a si mesma”. Leitura do enunciado (o bolo), leitura da enunciação (a descrição
do bolo), que fundem num mesmo discurso a constituição do objeto figurativo e o ato de
enunciá-lo; discurso duplo e parcialmente reflexivo, cujo espaço de jogo dá livre expansão ao
sinal “autotélico” (= que aponta para si mesmo) que caracterizaria, como se diz, a
literariedade. É também nesse sentido que se evoca, com um termo igualmente impreciso, a
“conotação autonímica” responsável pelo mesmo efeito.
Apoiada nas marcas temporais e aspectuais, a análise enunciativa articularia,
pois, o percurso de construção do texto descritivo. Mas também podemos ver as coisas de
outro modo: de fato, se considerarmos o enquadramento narrativo da descrição, o objeto
trazido pelo confeiteiro suscita uma reação avaliatória que manifesta por si só a presença de
outro actante – os convivas – assim promovido a destinador-juiz, e seu estado passional: o
espanto, ou até mesmo o encantamento. O bolo monumental “provocou exclamações de
entusiasmo”. Pode-se considerar, nessa perspectiva, que é a surpresa eufórica dos
observadores que está precisamente encenada em câmara lenta e que é figurada mediante o
percurso aspectual da descrição. A surpresa, surgimento do inesperado, é suspensa no texto
pela revelação progressiva do objeto: “de início” e “em seguida” inauguram enunciados de
estado sem sujeito, o bolo monumental se apresenta a si mesmo, reflexivamente (“eleva-se”).
Sobrevém então o “finalmente” terminativo que evoca, à distância, o único predicado
perceptivo do texto: “via-se”. Adiado, suspenso, o ato de visão intervém no final do percurso,
atualizando subitamente o olhar observador e revelando-lhe a plenitude de sentido. Assim
considerada, a estrutura discursiva da descrição aparece como o relato de uma emoção
estética.
Examinemos mais de perto, agora, esses espaços da peça monumental – o
bolo, o texto, de agora em diante confundidos num objeto inédito – e mais precisamente sua
102

construção comparada. O primeiro espaço, que é o do bolo, apresenta um movimento


ascendente que corresponde à seqüência de programas narrativos de construção do objeto, da
base ao topo. O segundo espaço, do texto, exibe, por sua vez, um movimento descendente em
função das coerções do significante escritural: o alto do texto corresponde à “base” do bolo e
a parte baixa dele ao seu “topo”, termo situado na última linha da descrição. Essa contradição,
aparentemente ingênua, entre o espaço enunciado e o espaço enunciante talvez não seja tão
inocente quanto parece, a partir do momento em que a relacionamos com o duplo discurso
que mencionamos (discurso sobre o objeto, discurso sobre a descrição do objeto), e mais
ainda com os desdobramentos e inversões observados em outros níveis da análise. Isso se
aplica em especial ao nível da organização icônica, produto das isotopias figurativas: o texto
instaura efetivamente uma dupla figuratividade, que se atesta pela transformação do bolo
monumental em uma linguagem.
A isotopia figurativa do bolo, com seus elementos constitutivos, seus
ingredientes e suas partes, aparece como a “forma da expressão” dessa linguagem, e a forma
representada sobre e pelo bolo é sua “forma do conteúdo”: ele “representa” um templo, uma
torre, uma planície. O bolo é um texto que profere, em meio ao texto verbal, um discurso
próprio, condensado na tabela abaixo:

Espaço significante do bolo Espaço significado pelo bolo


baixo papelão azul, alcorça, papel templo, pórticos, colunatas, estatuetas,
dourado nichos, estrelas
meio bolo de Savóia, angélica, amêndoas, torreão, fortificações
passas, quartos de laranja
alto doces, lascas de avelãs, chocolate, campinas, rochedos, lagos, barcos,
botões de rosa trapézio, esteios, esferas

Uma análise um pouco mais atenta da textualização permite a reconstrução da


relação evolutiva entre as duas isotopias do significante e do significado, pois a transformação
de sua relação hierárquica se dá no desenrolar da descrição. De início, o espaço significante é
regente: é um “quadrado de papelão azul” que “representa” um templo. Depois a recção se
inverte, em dois tempos: o significado passa à primeira posição, sendo imediatamente
acompanhado por seu significante (torreão de bolo, fortificações de angélica), antes de ser
finalmente autonomizado, no momento em que a separação entre os dois lados da linguagem-
bolo se acentua, liberando o sentido: a campina, os rochedos e os lagos mostram-se em sua
significação icônica plena e inteira, independentemente de seu suporte significante particular,
que intervém somente ao final do percurso, incorporando-se ao significado (lemos “lago de
doces” como “lago de água doce”). A emergência progressiva, e, depois, a autonomia do
discurso figurativo do bolo monumental reforçam o efeito da “visão”, do deslumbramento
que “provoca exclamações de entusiasmo”: ele realiza literalmente a ilusão referencial. A
exemplo da linguagem corrente, que, para ser compreendida, faz esquecer seu significante, a
linguagem-bolo absorve pouco a pouco por inteiro seu destinatário na significação que ela
produz.
Ora – é isso que nos interessa aqui –, esse espaço figurado pelo bolo inverte a
ordem das representações referenciais. E ao mesmo tempo ele destrói sua funcionalidade
icônica: de fato, enquanto o espaço do bolo erigido em plano da expressão propõe uma leitura
ascendente que vai da base ao topo, o espaço figurado impõe, contraditoriamente, uma leitura
103

que nos faz “subir” das estrelas à campina, passando pela torreão. Esse arranjo figurativo
inverte, portanto, a ordem das hierarquias do espaço natural inscritas aqui no conteúdo do
espaço figurado, já que o universo elevado do templo e das estrelas encontra-se embaixo, o do
torreão – que comporta o sema da elevação – fica no meio, e o da campina, no alto. Qual é
então o discurso proferido pelo bolo?
Esse primeiro efeito de desiconização que impede a leitura referencial, ou que a
inverte ironicamente (voltaremos a falar sobre isso), convida-nos a reconhecer, na verdade,
uma outra significação, mais profunda. Cada pavimento constitui em si mesmo um motivo
que sustenta, unicamente pelo jogo de suas figuras, um pequeno discurso e apóia uma
micronarrativa cultural e social subjacente, facilmente reconhecível. Ele conduz assim a leitura,
num nível de apreensão mais abstrato (temático), em direção ao reconhecimento das funções e
das relações recíprocas entre os motivos. Nesses novos investimentos de significação formam-
se redes de referencialização internas ao texto, que o fixam como objeto e que são capazes de
fundar seu valor em termos de estética literária. De acordo com a fórmula de H. von
Hofmannsthal, “a profundidade deve se esconder. Onde? Na superfície”125.

2.2 Um bolo indo-europeu

Que espécie de investimento está em causa aqui? A descrição do bolo veicula um


universo axiológico que ultrapassa em muito os valores que se prometiam unicamente
gustativos, ou até mesmo os valores estéticos do deslumbramento. Pode-se considerar antes
de mais nada que a disposição dos motivos condensa os estereótipos românticos da história
cultural, com a representação cumulativa das três grandes eras da civilização ocidental: a
Antiguidade greco-romana com sua mitologia, a da Idade Média e seus romances de cavalaria,
e por fim o Romantismo, que associa os motivos da natureza e do amor (o lago). As
estratificações do bolo representariam assim algo como um dado primitivo sociocultural, que
todos podemos evocar e reconhecer. Este formaria um daqueles tantos clichês, ironicamente
interpretáveis, que constituem o crivo cultural de leitura do mundo próprio da heroína e que a
caracterizam: o bolo se mostra assim como uma definição oblíqua da própria Emma Bovary.
Mas uma outra interpretação se esboça ao mesmo tempo, a qual já não se
aplicaria a um estereótipo, mas designaria mais fundamentalmente um arquétipo. Esses
motivos distribuídos no bolo coincidiriam, pois, com um discurso ideológico de amplitude
muito mais geral. De forma bastante surpreendente, a organização tripartida do bolo
monumental vai ao encontro da “concepção social tripartida” da ideologia indo-européia,
evidenciada por G. Dumézil em Mythe et épopée. Trata-se da estrutura das três funções,
identificada como princípio e quadro organizador do imenso corpus, de aparência tão
heterogênea, das religiões indo-européias e de suas divindades. “Para além dos sacerdotes,
guerreiros e produtores, e mais essenciais que eles, articulam-se as ‘funções’ hierarquizadas de
soberania mágica e jurídica, de força física e principalmente guerreira, de abundância tranqüila
e fecunda126.” Levando adiante essa descoberta, Dumézil especifica que “a concordância dos
nomes divinos perde, se não todo o interesse, ao menos sua ilegítima primazia em prol de uma
outra concordância, que é a dos conceitos e, principamente, dos conjuntos articulados de
conceitos”. Ele salienta assim que o nível de reconhecimento de tudo aquilo que fundamenta a
semelhança e o parentesco entre os mitos e as religiões hindu e escandinava, grega e

125
H. von Hofmannsthal, citado por I. Calvino, Leçons américaines, Paris, Gallimard, 1989, p. 124.
126
G. Dumézil, Mythe et épopée, t. I, Paris, Gallimard, 1968, p. 16.
104

germânica, romana e celta não deve ser procurado, prioritariamente, em distantes e hipotéticos
parentescos lingüísticos ou filológicos, mas, sim, em uma estrutura ideológica (uma isotopia
temática) similar que constitui sua marca e institui sua origem comum. Esta pode se manifestar
sob formas extremamente diversas.
Ora, é exatamente uma manifestação dessa ordem cultural que parece propor,
in fine, o bolo de casamento de Emma Bovary. Por meio de sua disposição figurativa, em suas
camadas e em sua hierarquia, o bolo monumental apresenta o modelo conceptual das três
“funções ideológicas”. Poderíamos até ver nisso um dos princípios de sua coerência, ao passo
que toda coerência icônica (“realista”) é inexoravelmente minada, como vimos: o bolo traz
uma visão invertida do mundo. Na verdade, o texto realmente condensa no discurso
emblemático de suas figuras as três funções dumézilianas: com o céu e as estrelas, o templo
corresponde à função de soberania mágico-religiosa, com o torreão e suas fortificações, à
função guerreira, com a campina, o lago e o Amor no trapézio, à função de reprodução. A
profusão de ingredientes comestíveis, contrastando com sua ausência ou relativa escassez nos
dois níveis precedentes, ilustra aliás os valores de “abundância tranqüila” ligados a essa terceira
função. Incontestavelmente, pode-se reconstruir a partir desses traços figurativos a síntese do
sistema ideológico completo. Como se fosse uma modesta manifestação de um vasto modelo
de representação e de pertinência, o bolo de casamento reexprime pois, em seu enunciado, um
dos grandes arquétipos funcionais da cultura. E, no entanto, a hierarquia do panteão é
invertida: o templo está na posição inferior, o torreão na mediana, a campina na posição
superior e dominante: é interessante notar que a terceira função se encontra no topo. Estranho
efeito de ironia na inversão da hierarquia trifuncional, que vem reforçar a inversão já
observada dos valores espaciais do baixo e do alto e confirmada, uma vez mais, no plano da
substância do conteúdo, pela filiação do mais elevado – que está em baixo – à dimensão
desvalorizada do /não-comestível/ no contexto da sobremesa: papelão, alcorça e papel.

2.3 Ironia

Sabe-se que a ironia flaubertiana, que não se deixa analisar em termos de antífrase
(diferentemente da de Voltaire, por exemplo), joga com a inversão dos motivos
estereotipados, calcificados pelo uso, e com a inversão axiológica dos clichês. Os motivos em
questão, produtos da práxis cultural, são solidários de discursos subjacentes reconstruíveis: a
repisada moda das representações românticas da natureza, do amor e da História. Eles podem
não estar explicitamente citados (embora estejam, algumas vezes), sem que por isso a
possibilidade de um anti-discurso desapareça. Sua menção, ainda que implícita e, em alguns
casos, dificilmente decidível127, forma o plano interno de referência necessário à inteligibilidade
do discurso flaubertiano, estando pressuposta por ele. É o que verificamos aqui: o discurso
arquetípico da ideologia trifuncional, apreendido em sua estrutura temática, encontra-se
presente de fato, fixado na organização figurativa do bolo, homólogo e subjacente a ela.
A partir daí, a significação figurativa aparece, para além das representações
semânticas particulares, mas indissociavelmente por meio delas, como uma câmara de eco de
outras significações de alcance mais geral e abstrato, inscritas em outros discursos. Ao plano
figurativo de superfície, passível de se ostentar pela iconicidade, corresponde de fato uma
figuratividade profunda cujo efeito é reduzir, recategorizar e tematizar seu sentido. Nessa

É conhecida a observação de Flaubert: “Escrevo de tal maneira que o leitor nunca saiba se estão
127

zombando dele ou não.”


105

estratificação de estruturas significantes homólogas é estabelecido um processo de


referencialização recíproca, provedor de novos investimentos axiológicos por ocasião da
leitura e criador de uma “estrutura modelizante” capaz de esclarecer, a partir do plano
figurativo restrito que a suscita, a obra em seu conjunto. As categorias do discurso cuja trama
assim se tece “em profundidade” formam então uma rede significante própria, constitutiva do
referente interno. Isolável a partir de um fragmento, sua ressonância estende-se pela totalidade do
texto, que tem sua consistência assegurada por ele. A convocação dessas estruturas discursivas
é uma condição para o reconhecimento do funcionamento da derrisão flaubertiana: é ela que
permite entrever que se trata, no fundo, de um bolo irônico.

2.4 Para concluir

Prendendo-se, assim, a uma estruturação dessa ordem, a descrição do bolo


afasta-se do enfoque documentário da representação figurativa para se constituir como
“objeto absoluto”: a descrição do visível vale pelo invisível que ela engendra. E o bolo-texto –
verdadeira peça composta desprendida de todas as peças compostas do mundo referencial –
sustenta-se essencialmente pela solidariedade das ligações internas ao discurso que o formam.
Essas ligações, como vimos, são feitas de um conjunto de relações de homologias e inversões:
entre o plano da enunciação descritiva e o do enunciado espacial; no interior deste último,
entre o espaço referencial e o espaço figurado; no âmago desse espaço figurado, enfim, entre
um universo figurativo de superfície e um plano figurativo profundo que dá origem às
categorias funcionais. A diversidade dos vínculos assim isolados pela análise assegura a coesão
do conjunto, criando um efeito de solidariedade interna entre as partes constitutivas do
objeto-texto, provocando essa impressão de “escrita de aço” que Greimas costumava
reconhecer em Flaubert. Como escreveu Paul Valéry: “O segredo ou a exigência da
composição é que cada elemento invariante deve estar unido aos outros por mais de um liame,
pelo maior número possível de ligações de diferentes espécies. [...] Tudo está em presença,
tudo em trocas mútuas e modificações recíprocas128”. Reflexão na qual ecoa esta famosa
declaração de intenções que Flaubert enviou a Louise Collet: “O que eu gostaria de fazer é um
livro sobre nada, um livro sem vínculo exterior, que se sustentaria a si mesmo, pela força
interna de seu estilo, como a terra, sem ser sustentada, mantém-se no ar; um livro que quase
não tivesse assunto, ou, pelo menos, cujo assunto fosse quase invisível, se é que isso é
possível129.” A relação entre essas duas visões programáticas e a descrição do bolo
monumental é clara: a partir do momento em que o texto, objeto da linguagem, toma a
consistência de uma verdadeira “escultura” de significação, sua ordem de realidade própria
impõe e gera as múltiplas operações de sentido e valor que efetuamos no ato da leitura.
A prática da semiótica descritiva abre-se, pela análise da figuratividade, à
questão da abordagem interpretativa: a crença assumida e comunicável da leitura, que garante,
para além da apreensão das “semelhanças”, a partilha das “verossimilhanças”. Essa questão
nos leva a vislumbrar a dimensão estética, terceira etapa da abordagem semiótica da
figuratividade. Daí por diante, ela já não vai se referir somente às relações semânticas tramadas

128
P. Valéry, Cahiers, t. II, Paris, Gallimard, col. « La Pléiade », p. 1024.
129
Carta a Louise Collet, de 16 de janeiro de 1862, que continua assim : « As obras mais belas são aquelas
em que há menos matéria ; quanto mais a expressão se aproxima do pensamento, quanto mais a palavra nela
se amalgama e desaparece, mais bonito é […]… Não existem assuntos bonitos nem feios […], não há nada
disso, o estilo é por si mesmo a única maneira absoluta de ver as coisas. »
106

no texto, mas também ao evento sensorial da percepção – a estesia – que o discurso encena,
configura e questiona.
107

Síntese
Figuratividade e tematização

A figuratividade não pode ser assimilada à “representação” mimética, que é somente uma de suas
realizações possíveis. A figurativização do discurso é, mais exatamente, um processo gradual sustentado de um
lado pela iconização, que garante a semelhança por relação às figuras do mundo sensível e, de outro, pela
abstração, que delas se afasta. Essa concepção permite assim explicitar, de passagem, as categorizações culturais
da figuratividade. Estas associam e combinam, de maneira variável e específica, os dois pólos do icônico e do
abstrato: estilização, alegorização, parabolização, simbolização.
A semântica estrutural considera esses diferentes percursos semânticos em termos de
“densidade sêmica” mais elevada ou menos: quanto mais elevada ela for, menos o termo afetado por ela admitirá
compatibilidades com outros termos e mais o discurso tenderá para a iconicidade; quanto menor a densidade
sêmica, mais combinações serão aceitas pelo termo afetado e maior será a tendência à abstração. A tematização
consiste, assim, numa redução do figurativo. A semiótica analisa os diferentes modos de conexão entre os níveis
de articulação, figurativo e temático, da significação.
Essa elasticidade semântica da figuratividade permite que se fale em uma “profundidade” do figurativo, que,
longe de se manter na superfície do discurso, como a vestimenta de uma abstração mais profunda, pode ser considerado
em si mesmo, por meio dos raciocínios figurativos, por exemplo, como um dado primário da linguagem.

{Revisão mais recente: Edna&ICL, 21/maio/2002}


108

Capítulo 7

Figuratividade e percepção

1. A estesia

1.1 A figuratividade e a tela do parecer

Duas datas podem marcar a história das investigações semióticas sobre a


figuratividade: em 1983, o número 26 do Bulletin do Grupo de Pesquisas Semiolingüísticas era
inteiramente dedicado a ela. Nele culminava o que poderíamos chamar de definição estrutural
do conceito. Um texto conclusivo de A. J. Greimas, muito sintético, estabelecia os contornos
da problemática: o problema do referente e da “impressão referencial”, a tipologia das
isotopias figurativas, denotativas e conotativas, a questão da organização do espaço figurativo
e de sua estruturação. Nem “tensividade”, nem “foria”, nem “sujeito sensível”, nenhum dos
conceitos que, alguns anos depois, assinalariam o advento de uma semiótica do contínuo,
chegava então a perturbar um método solidamente arraigado em uma concepção diferencial,
categorial e descontínua da significação. Em 1987, saía De l’imperfection de Greimas130. Entre
outros trabalhos publicados no decorrer do mesmo período, principalmente na Itália, na
França e no Canadá, esse livrinho marcava aparentemente uma ruptura profunda com a
abordagem que impunha até então sua autoridade. As vias figurativas do sentido estavam
doravante ligadas ao acontecimento da apreensão perceptiva e a sua avaliação estética.

1.1.1 Primeira abordagem: estruturas figurativas

Até aqui, procuramos prestar contas da primeira abordagem, estrutural, da


figuratividade. Sua definição semântica se baseia na correspondência, desdobrada em isotopias
discursivas, entre figuras do plano da expressão do mundo natural e figuras do plano do
conteúdo de uma linguagem, afetando prioritariamente as categorias espaciais, temporais e
actoriais. A partir desse dado básico, várias formas de especificações podiam ser concebidas,
em função do crivo de leitura cultural – ao mesmo tempo crivo de sensibilização e de
interpretação – que, aplicado a essa correspondência, se realizava no âmbito de um contrato
fiduciário de veridicção: o crer compartilhado. Tal contrato enunciativo fixava a habilitação dos
valores figurativos e enunciava-lhes o regime de circulação. Distinguiam-se, de maneira
esquemática, as operações de iconização, que engendram o “efeito de real” ou impressão
referencial, e as da tematização, que autorizavam uma reformulação conceitual, abstrata, das
isotopias figurativas. Essa bi-isotopia, regulada em maior ou menor medida pelas codificações
culturais do uso, podia ser determinada por relações termo a termo, como no caso da alegoria,

130
De l’imperfection, op. cit.
109

ou, pelo contrário, ser deixada aberta e dedutível a partir de índices textuais disseminados. A
interpretação literária, cujo exercício hermenêutico se realizava na tradicional explication de textes
escolar, encontrava aí seu campo de aplicação, conforme vimos, ao comentar-lhe há pouco as
causas e efeitos teóricos, pela análise do “bolo indo-europeu” de Madame Bovary.

1.1.2 Segunda abordagem: a tela do parecer

Ora, esse patamar modal subjacente do /crer verdadeiro/, que sustenta por meio do
contrato enunciativo o reconhecimento comum de um “mundo” na leitura, situava-se no
plano de fundo da análise, como um imperceptível horizonte. Ele passa a ocupar agora, na
segunda abordagem da figuratividade, a frente do palco. Essa modalidade, realmente, institui o
espaço fiduciário que assegura a um só tempo a variação e a junção entre os diferentes níveis
de apreensão e interpretabilidade reclamados pelas isotopias figurativas: os efeitos de
realidade, mas também de surrealidade ou irrealidade, os efeitos de sensibilização, abstração e
argumentação, etc.
O reconhecimento da modalidade central e fundadora do crer consiste, no
fundo, em explicitar mais amplamente as fontes fenomenológicas de toda significação
figurativa. A apreensão da figuratividade dos textos já não se volta para a posterioridade dos
efeitos de sentido produzidos e sua estruturação; agora, ela está dirigida para o nascedouro da
figurativização, para as próprias condições daquilo que o fundador da fenomenologia, E.
Husserl, denominava “função figurativa”, isto é, “o ‘parecer da’ cor, ‘da’ forma, etc.”, que se
compõe com outros elementos na percepção para constituir “a unidade de apreensão”
sensorial das coisas131. Tal função designa as operações de reconhecimento e identificação dos
objetos na percepção. Dessa maneira, a nova definição se empenha menos em apreender em
que o patamar figurativo da significação se transforma na manifestação do discurso do que em
compreender como ele advém. O “parecer”, que definia o plano fenomenal do sentido132, já
não é somente uma questão de veridicção e regulação intersubjetiva, sobre o pano de fundo de
uma axiologia sociocultural que estabelece as normas da leitura; constitui em si próprio uma
problemática.
Esse parecer define agora um espaço semiótico próprio, e portanto
problemático em si mesmo, no qual se realiza a articulação entre a cena do ato sensível, essa
película de sentido que envolve as coisas na apercepção, e a discursivização das figuras que
atestam sua presença na linguagem. O ato de percepção, como demonstra M. Merleau-Ponty,
realiza um movimento de constituição recíproca, e por vezes frágil, entre o sujeito e o objeto
da visão, da audição, do olfato, etc. Sujeito e objeto, por esse ato, solidarizam-se e soldam-se,
confiantes na realidade e verdade do mundo sensível, ou então pelo contrário desprendem-se
e dessolidarizam-se, como demonstram as ilusões da sensibilidade, ou as alucinações.
Numerosos são os textos literários que nos fazem, por assim dizer, “remontar” a esse ato de
advento em que se delineiam, à beira do indizível, as formas antepredicativas do sentido, e se
instauram as condições da confiança preliminar do sujeito em seu “estar-no-mundo”. Como
veremos com H. Michaux, há até quem faça desse surgimento narrativizado o centro de uma
poética.

131
E. Husserl, Idées directrices pour une phénoménologie, trad. P. Ricœur, Paris, Gallimard, col. “Tel”,
1950, pp. 133-134.
132
Cf. a definição do verbete “fenomenal” em A. J. Greimas & J. Courtés, Dicionário de semiótica, op. cit.:
esse termo “pode ser empregado como sinônimo de parecer [...]: da mesma forma, plano fenomenal será
assimilado a plano do parecer”, p. 183-184.
110

O próprio esquema dinâmico da percepção parece, por conseguinte, instalar-se


no cerne da reflexão sobre a figuratividade: para ficarmos apenas com os enunciados de
Greimas em De l’imperfection, acerca do acontecimento de apreensão estética, são “os objetos
que se erguem diante de nós sob a forma de figuras do mundo”, é “a leitura socializada que se
projeta para a frente”, é também a possibilidade de uma “segunda leitura que vai ao encontro das
Gestalten iconizáveis” para reconhecer nelas “correspondências [...] ‘normalmente’ invisíveis,
outros formantes menos ou mais ‘desfigurados’”, portadores de “novas significações”133.
É essa dinâmica instável e reversível – como que movida por uma tensão cuja
orientação pode sempre se inverter entre o sujeito que percebe e o objeto percebido – que é
apreendida na quinta definição da figuratividade proposta no início do capítulo 5: é “essa tela
do parecer cuja virtude consiste em entreabrir, em deixar entrever, em razão da sua
imperfeição ou por culpa dela, como que uma possibilidade de além-sentido”134, quando “os
humores do sujeito reencontram [...] a imanência do sensível”. As marcas e modulações
aspectuais que entremeiam essa definição (“entreabertura”, “entrevisão”, “imperfeição”,
“como que uma possibilidade”...) delineiam precisamente, ao nosso ver, o espaço desse
potencial de atração que mantém sob sua dependência a significação das figuras; em suma, o
sentido em devir na figuratividade.

1.1.3 Duas concepções complementares

Como se vê, o lugar de articulação da figuratividade fica assim sensivelmente


deslocado. Desprendida, doravante, da “representação” – ao mesmo tempo mimesis e
interpretação –, essa definição mais elementar da figurativização, retornando para junto do
próprio ato sensorial, integra uma abertura para outras virtualidades além das aceitas pela doxa
do visível e do legível. Ela leva o olhar para os modos de “contato” pelos quais o sujeito vem
aderir à substância do conteúdo, para o próprio lugar das percepções, ao mesmo tempo
legadas pelo uso, depositadas na linguagem e simuladas nos discursos.
Haveria, por isso, uma ruptura entre as duas concepções? Não nos parece.
Pode-se demonstrar e precisar, ao contrário, o que está em jogo num deslocamento que, pelo
recurso à substância do conteúdo ligado ao jogo relacional das puras formas, não faz nada
mais do que tirar as conseqüências do modelo fundador da semiose. A substância no sentido
hjelmsleviano, ou seja, a “matéria” informada de significação, produto do uso e resultante
“dos hábitos de uma sociedade” (Hjelmslev), pode ser considerada como esquecida pela
semiótica estrutural. Remete para aquém, para o modo de presença e de ancoragem corporal
do sujeito sensível no universo do sentido. Ora, o lugar que estamos tentando circunscrever é
precisamente o de um trânsito entre a substância do conteúdo e a forma do conteúdo: esta,
articulada na linguagem, aparece como o fenômeno de organização da substância articulada na
percepção.
Conservando-se assim dentro do âmbito dos princípios que a fundamentam,
essa abordagem da figuratividade nada mais faz que depreender um novo espaço de
investigação, até então ocultado em nome da concepção diferencial do sentido e da
pressuposição recíproca. Essa nova dimensão nos parece aqui essencial, não tanto em si
própria, pois nesse caso seu conhecimento seria da alçada de uma psicologia cognitiva e de
uma antropologia do sensível, mas na medida em que, efetivamente enunciada no discurso

133
De l’imperfection, op. cit., p. 77. Grifos nossos.
134
Ibid., p. 78.
111

literário, ela forma uma de suas dimensões fundadoras. Quando P. Ricœur caracteriza o
romance do século XX como o do “fluxo de consciência”, de M. Proust a N. Sarraute, é
realmente esse primado da percepção que é enfatizado. A interrogação sobre a consciência
perceptiva e seus desafios fiduciários pode até mesmo ser literalmente encenada, conforme
veremos ao analisar o texto de Henri Michaux, “Intervenção”, fábula da adesão perceptiva
equívoca, entre o encerramento do sensível no figurativo e o dilaceramento do figurativo pelo
sensível. Mas, já que o /crer/ se encontra no centro de tal reflexão sobre o figurativo,
precisamos tomar mais um desvio e mostrar como a semiótica trata a questão da verdade e da
crença partilhada: é a problemática da veridicção que comanda os jogos do parecer do sentido.

1.2 Verdade e eficácia: modalidades veridictórias e contrato de veridicção

O discurso é esse lugar frágil em que se introduzem e lêem a


verdade e a falsidade, a mentira e o segredo; [...] equilíbrio mais estável ou
menos, proveniente de um acordo implícito entre os dois actantes da
estrutura da comunicação. É esse entendimento tácito que é designado
pelo nome de contrato de veridicção.135

1.2.1 O quadrado da veridicção: ser/parecer

A questão da veridicção está no âmago da semiótica, tocando nos postulados


fundamentais sobre o sentido. E, entre estes, a consideração de que o sentido se apresenta
sempre a nossos olhos, tanto na ordem da percepção quanto na da leitura, sob o modo do
parecer. Que o parecer seja apreendido como uma “promessa” de ser, ou como mera estratégia
de persuasão, a veridicção vem tomar o lugar de uma problemática da verdade, estabelecida
como valor ontológico ou – o que, no caso, dá no mesmo – como valor referencial. A
veridicção instala um hiato relacional na produção e interpretação dos valores de verdade,
hiato entre o que parece e o que se supõe ser, na cena intersubjetiva do discurso. Vinculando a
questão da verdade à do discurso, que é sua mediação obrigatória, a veridicção põe sempre em
jogo, por conseguinte, um roteiro de apresentação: faz dos valores de verdade o objeto de um
jogo de linguagem. O que é prometido por meio da apresentação de um objeto, por exemplo,
a árvore que lhe apontam com o dedo na praça, não é o objeto em si próprio, e sim “o ato ou
uma circunstância que lhe dizem respeito; aquele que promete passa por uma retórica do
objeto”136.
O desenvolvimento da veridicção se baseia, assim, na oposição entre o parecer
e o ser. Para A. J. Greimas, inventor desse modelo, tratava-se inicialmente de explicar as
vicissitudes da circulação dos saberes no interior das narrativas: os segredos e mistérios, as
mentiras e os mal-entendidos, os engodos e embustes que formam, dos contos populares até o
romance contemporâneo, matéria narrativa tão abundante. Com efeito, basta que o
conhecimento de duas personagens sobre um mesmo objeto não coincida, para que esse saber

135
A. J. Greimas, Du sens II, op. cit., p. 105.
136
Per Aage Brandt, “Quelque chose. Nouvelles remarques sur la véridiction”, in “Niveaux et stratégies de la
véridiction”, Nouveaux Actes sémiotiques, 39-40, Limoges, PULIM, 1995, p. 4.
112

em si próprio torne-se objeto de valor e motivação narrativa: um segredo só faz sentido se, de
uma maneira ou de outra, puder ser descoberto, traído ou revelado.
O quadrado da veridicção se apresenta como uma combinação dos valores de
ser e parecer, e de suas negações: a combinação define os termos de “segunda geração”. Assim,
quando há coincidência do parecer e do ser num universo de discurso, há “verdade”; a
coincidência do parecer e do não-ser define a “mentira”; a do não-parecer e do ser define o
“segredo”; enfim, a coincidência do não-parecer e do não-ser define a “falsidade”.

V
s erdad p
er e arecer
S M
egredo nã n entira
o-parecer F ão-ser
alsidad
e
Vê-se como as denominações dos termos da segunda geração refletem sem
dificuldade o universo figurativo do conto popular. J. Courtés137 ilustrou assim o modelo, por
meio de Cinderela, mostrando que o estado inicial da heroína é o da “falsidade” (nem parecer,
nem ser); seu estado de princesa furtiva no baile é, a seus próprios olhos, da ordem da mentira
(parece princesa, mas não é) e, quando foge ao bater do décimo-segundo toque de meia-noite,
ela entra, aos olhos do príncipe, na ordem do segredo (já não parece, porém persiste em seu
ser). A resolução do conto consiste então, pela revelação da marca (o sapatinho de vidro), em
eliminar a contradição e fundir o segredo e a mentira na verdade do casamento.

1.2.2 O contrato de veridicção

Esse quadrado da veridicção foi objeto de numerosos comentários e análises.


Estes conduziram a reformulações, visando a estabelecer variações graduais entre os pólos, a
neutralizar mais as denominações e a ampliar, com isso, o alcance do modelo para além do uso
restrito ao qual havia sido inicialmente destinado. Assim, concebendo uma modulação das
recções entre “ser” e “parecer”, J. Fontanille distinguiu diferentes tipos de verdades: se o
“parecer” rege o “ser”, temos uma verdade de evidência, “que salta aos olhos”; se,
inversamente, “ser” rege “parecer”, temos uma verdade provada, revelada, ou a marca da
“autenticidade”. Analogamente, se “ser” especificar “não parecer”, teremos um segredo de
tipo “arcano”, ao passo que, se “não parecer” especificar “ser”, o segredo será de tipo
“dissimulação”, “segredinho”138. Por outro lado, Per Aage Brandt propõe substituir os termos
existentes por outra denominação, de cunho mais pragmático (aqui indicada em itálicos):

137
J. Courtés, Introdução à semiótica narrativa e discursiva. Trad. Norma Backes Tasca, Coimbra,
Almedina, 1979.
138
In Sémiotique. Dictionnaire raisonné de la théorie du langage, t. II, op. cit., pp. 34-35.
113

E
vidência
V
Dis s erdad p S
simulação er e arece imulação
S M
egredo r
nã n entira
o-parecer F ão-
alsidad ser
Não-
e
pertinência

Como quer que seja, esse quadrado coloca múltiplas questões para os teóricos:
em que medida ser e parecer pertencem ao mesmo eixo semântico? Em que seriam eles a priori
oponíveis? Qual é exatamente o estatuto da falsidade? Sua força é trazer para as relações
internas ao próprio discurso o espaço problemático da verdade, desde os princípios mesmos
da teoria (o parecer do sentido) até sua exploração em análise textual. Constitui, assim, um dos
instrumentos mais significativos da semiótica.
É esse modelo que funda o contrato de veridicção, ou seja, as condições da
confiança que determinam o compartilhamento das crenças, em perpétuo ajuste entre os
sujeitos, no interior do discurso. A fidúcia, ou crença partilhada, está conseqüentemente no
fundamento da concepção intersubjetiva da enunciação e da interação em semiótica. Mas, na
linguagem, essa crença se apóia antes de tudo sobre os valores figurativos oriundos da
percepção, valores cuja perturbação nos é mostrada no texto de H. Michaux, Intervenção.

2. Os desafios veridictórios da figuratividade

Intervenção

Antigamente, eu tinha demasiado respeito pela natureza. Postava-me perante as coisas e


paisagens, e as deixava agir.
Basta, agora intervirei.
Assim, eu estava em Honfleur e me entediava. Então,
decididamente, introduzi camelos lá. Isso não parece muito indicado.
Pouco importa, era essa minha idéia. Aliás, levei-a a efeito com a maior
prudência. Eu os introduzi primeiramente nos dias de grande afluência,
aos sábados na praça do Mercado. O estorvo tornou-se indescritível, e os
turistas diziam: “Ai! Como fede! Que sujeira, essa gente daqui!”. O cheiro
ganhou o porto e pôs-se a abafar o do camarão. Saía-se da multidão cheio
de poeira e de pêlos, não se sabia do quê.
114

E, à noite, eram de se ouvir as patadas dos camelos quando


tentavam atravessar as eclusas, gong! gong!, sobre o metal e as pranchas !
A invasão dos camelos se fez com continuidade e segurança.
Começava-se a ver os honfleurenses olharem de soslaio a cada
instante, com aquele olhar desconfiado tão peculiar aos cameleiros,
quando inspecionam sua caravana para ver se não falta nada e se se pode
continuar a viajar; mas precisei deixar Honfleur no quarto dia.
Eu havia lançado também um trem de passageiros. Ele partia a toda
da Grand’Place, e decididamente arremetia contra o mar, sem se
preocupar com o peso do material; seguia em frente, salvo pela fé.
Pena que eu precisasse ir embora, mas duvido muito que a calma
renasça tão já naquela cidadezinha de pescadores de camarões e
mexilhões.

Henri Michaux, La nuit remue, “Mes propriétés”,


Paris, © Gallimard, 1967, p. 143.

Ao final da última obra publicada de Henri Michaux, Par des traits, pode-se ler
um texto intitulado: “Des langues et des écritures. Pourquoi l’envie de s’en détourner”139.
Trata-se de uma espécie de teoria genética da linguagem, ou melhor, de uma visão nostálgica
das “antelínguas”, “essas línguas inacabadas – feitas pela metade, abandonadas a meio
caminho [...]”, em prol das línguas acabadas, categorizadas, línguas de direção, comandantes,
línguas “de aplicação” e de estruturas, línguas “de coleção”, que “iam amplificar sem parar o
crescente pé-de-meia que irá chamar-se memória”. Se tivéssemos de qualificar numa palavra
essas supostas antelínguas, poderíamos denominá-las pré-categoriais, nem bem desprendidas
ainda desse continuum de sentido não analisado que é a substância do conteúdo, e
movimentando-se juntamente com ele. Entendamos por isso línguas que são apreensões
passantes de sentido, pré-figurativas, câmaras de eco de intensidades perceptivas; “pedaços de
língua”, como diz Michaux, feitos de “gestos mais felizes ou menos, os do tempo em que se
introduziam um por um, na incerteza, signos que talvez não fossem ‘pegar’”. São constituídas
de movimentos que interceptam o sentido lábil em que elas se moldam, sem se deter nele ou
fixá-lo: “signos pobres em conexões, traços no tronco da árvore que, ao dilatar-se, a casca
apagava sem que se percebesse”. Em suma, não uma verdadeira língua, mas antes “emoções
em signos, que não seriam decifráveis senão pela angústia e pelo humor”.
Consideramos que essa língua prefigurativa se encontra precisamente
figurativizada em Intervenção, por meio do desdobramento, como em câmera lenta, dos

139
Par des traits, Paris, Fata Morgana, 1984, não paginado.
115

materiais figurativos no ato perceptivo. Examinando-o mais de perto, poderemos assim


depreender-lhe três elementos constitutivos que se manifestam ao longo do texto: antes de
mais nada, um movimento de desiconização que se origina no espaço socialmente
convencionado da figuratividade; em seguida, a aplicação da “crença-mãe”, essa fé perceptiva
que fundamenta a adesão figurativa; enfim, o desenvolvimento da intervenção, a partir das
variações de intensidade do sensível, que garantem o controle da “partilha figurativa”.

2.1 A desiconização

A singularidade da escrita de Michaux assenta essencialmente, não sobre a


denegação de um universo figurativo referencializável, como fizeram os poetas surrealistas (as
figuras do mundo, afinal, estão ali, dispostas no discurso), mas sobre a introdução de uma
dúvida fundamental quanto a sua confiabilidade. Ao proceder, por tal modulação do /crer/, a
uma sutil “desrealização” desse universo, ela se situa – e nos situa – na intersecção do sensível
e do figurativo, no momento vacilante do figurável. Esse abalo no edifício da figuração é
gerado por um estado passional, no caso, ambíguo: o tédio. Com efeito, este se aplica
simultaneamente ao horizonte doxológico de Honfleur (os valores sociais comuns e as
opiniões partilhadas pelos habitantes e turistas) e ao que poderíamos denominar “dóxico” (os
valores elementares do crer perceptivo), horizonte do próprio sentir e perceber.

2.1.1 Figuratividade e valores sociais

Para o primeiro, o horizonte figurativo doxológico, certas figuras estabelecem


isotopias espaciais e actoriais que constituem o sistema normativo de referência ao qual a visão
comum está convidada a moldar-se. A cidade de Honfleur, a praça do Mercado, os turistas, as
eclusas, a Grand-Place, os honfleurenses, emolduram as ações estereotipadas do ator social, os
blocos de comportamentos sedimentados pelo hábito daquela “cidadezinha de pescadores de
camarões e mexilhões”. Programas e percursos previsíveis se delineiam, fora de qualquer
assunção particular, como automatismos. O sujeito social, inserido nos produtos do uso, “sabe
sua lição”, como diria J. -C. Coquet: é uma figura do não-sujeito. Ora, o abalo do sentido até
então imobilizado e, por conseguinte, a colocação em xeque da axiologia figurativa
estabelecida, realizam-se por um remonte ao sensível, como a um lugar, o da própria
percepção, em que a apreensão do sentido é anterior aos valores sociais nele investidos. Estes,
conseqüentemente, ficam em suspenso, antes de serem submetidos à prova da sensibilização
que pressupõem.
Esse processo geral da axiologia que pressupõe a intervenção do sensível pode
ser comparado à tese segundo a qual as relações entre estética e ética, e mais precisamente a
subordinação da segunda à primeira, seriam firmadas na re-sensibilização dos valores. Assim,
escreve J. Fontanille: “Para desestabilizar as normas morais ou inventar outras, é necessário
recomeçar pelo sentir, captar esse momento em que a escolha é tornada sensível e bela, e
basear-se, não sobre o que o sujeito sabe da axiologia [...], mas sobre o que ele percebe dela
116

nos objetos”140. É assim que o mundo dos valores retoma contato com a emergência sensível
das formas significantes, reencontra seu foco fundador com o surgimento do sentido na
percepção, e liga-se de fato ao plano de fundo fenomenológico que lhe condiciona o advento.
Eis a primeira justificativa da intervenção: remontar até a percepção em si própria, para agir
sobre o mundo dos valores coletivos.

2.1.2 Figuratividade e valências perceptivas

A segunda manipulação do crer, paralela à primeira, já diz respeito ao sujeito


individual e a sua própria competência perceptiva: “Postava-me perante as coisas e paisagens,
e as deixava agir. / Basta, agora intervirei.” Revolta do sujeito contra as figuras do mundo
sensível! A análise dos objetos visuais mostrou que um crivo de leitura do mundo natural era
necessário para transformar os objetos visíveis em figuras iconizáveis, assim permitindo sua
identificação e seu reconhecimento numa representação figurativa (cf. a quarta definição da
figuratividade, no início do capítulo 5). Compreende-se, no caso, que tal crivo de leitura é
também, simultaneamente, um crivo de sensibilização. O afeto é indissociável da percepção
em si mesma. Nessas condições, a cisão entre o sujeito e as figuras na percepção, implicada
pelo “estar perante” e pelo “deixar agir” pode ser assim interpretada: o sujeito já não
reconhece nos objetos as valências*, ou seja, as condições de existência e aparecimento dos
valores, capazes de sensibilizá-lo para que ele as transforme em valores efetivos. A narrativa
encena uma disfunção da apropriação perceptiva (o que se chama, em semiótica,
proprioceptividade). O observador dessensibilizado estabelece com os objetos de sua
percepção uma relação à distância, comparável à do alucinado, tal como o descreve M.
Merleau-Ponty: “A alucinação não está no mundo, mas ‘diante dele’”141.

2.1.3 O tédio

Na fonte da intervenção se encontra, portanto, uma falta de um tipo particular:


a privação do vínculo sensível. Essa falta é manifestada pelo tédio, do qual “deixar agir” e
“deixar ser” constituem o núcleo modal. Pode-se mais precisamente definir o tédio como
investimento negativo, ou disfórico, do deixar agir e do deixar ser (por oposição à
“passividade”, que seria uma forma neutra ou afórica dele). E, ao contrário do motivo
romântico do tédio, que se poderia caracterizar como doxológico, fundado no
enfraquecimento da dinâmica fiduciária, outra configuração se enraíza mais fundo na atonia do
ato sensível: nesse caso, ela se baseia na extinção do vínculo dóxico, isto é, do crer fundador
do sentir, de sua confiabilidade e validade. O primeiro tipo de tédio nega a adesão aos valores
que define o sujeito social, seus enfoques e percursos; o segundo nega, de maneira mais
radical, a apreensão das valências do sensível, e instala-se no grau zero de seu regime de
intensidade.

140
J. Fontanille, “Présentation” ao dossiê “Les formes de vie”, in RS/SI, Recherches Sémiotiques/Semiotic
Inquiry, vol. 13, nº 1-2, Association canadienne de sémiotique, 1993, p. 6.
141
M. Merleau-Ponty, Fenomenologia da percepção, op. cit., p. 455.
117

2.2 O espaço conflitual da crença-mãe

2.2.1 A fé perceptiva

Que há por trás desse “não sei quê”, dessa “confrontação negativa”, dessa
rejeição de uma figuratividade da similitude? O espaço de tal confrontação situa-se no interior
do que Merleau-Ponty denomina “fé perceptiva”, “opinião original”, “crença-mãe”, ou seja, a
modalidade geradora desse entrelaçamento da percepção, em que o sujeito e o objeto
estabelecem seu liame de valor recíproco e existem um para o outro: “Abaixo das percepções
propriamente ditas existe portanto, para subtendê-las, uma função mais profunda sem a qual
aos objetos percebidos faltaria o índice de realidade [...] e pela qual os objetos passam a contar
ou a valer para nós”142. Essa função é o “movimento que nos instala no mundo antes de
qualquer verificação”, operando o que Husserl já chamava, conforme vimos, de “função
figurativa”. As apreensões fragmentárias da percepção (os “esboços”) são unificadas – são as
“animações de esboços” –, permitindo o reconhecimento sintetizado dos objetos por meio do
aparecimento das formas, linhas e cores.
De fato, é a Husserl que devemos nos referir para a análise dessa “crença-mãe”
(a urdoxa) que Michaux ilustra aí numa fábula figurativa. A crença perceptiva se articula em
duas grandes classes de modalidades: a primeira está centrada no objeto que se forma na
percepção, dotando-o de caracteres (denominados “noemáticos”) que podemos assimilar às
modalidades aléticas dos lógicos: o real, o necessário, o possível, o problemático, o
contingente, o duvidoso ou o irreal. A segunda está centrada, não mais na própria coisa,
porém na crença do sujeito e na sua maneira de assumir ou fazer seu o objeto que percebe. Os
caracteres dessa crença (chamados de “noéticos”) podem ser assimilados às modalidades
epistêmicas da lógica: crença certa, dubitativa, conjectural, provável, improvável, estimativa143.
Assim constituído, o espaço complexo da adesão perceptiva é passível de
sofrer modulações, modificações e conflitos. O campo de exercício da poética de Henri
Michaux se encontra aí, nas variações desse espaço antepredicativo da percepção, para as quais
ele busca (ou encontra) uma língua.

2.2.2 A suspensão

Outro conceito fundamental da fenomenologia pode nos ajudar a entender


melhor as condições nas quais o sujeito da intervenção, nesse caso, inicia sua operação: o
conceito de “suspensão”, ou redução dos investimentos de sentido costumeiros nos objetos
percebidos. É a modificação primeira capaz de afetar a “crença-mãe”: suspensão do
julgamento, colocação entre parênteses, ou fora de circuito dos saberes e valores. É aí que se
encontra o sentido profundo do “deixar agir” das “coisas e paisagens”, motor inicial da
intervenção. O sujeito não nega o mundo e suas figuras, não põe em dúvida sua existência à
maneira de um cético; ele opera, ao seu modo, a suspensão fenomenológica, a redução do
sensível, a qual lhe veda qualquer juízo sobre a existência espaço-temporal e, em conseqüência,
qualquer adesão, inserção e subordinação ao sistema das formas. Ao fazer tábula rasa de todo

142
M. Merleau-Ponty, Fenomenologia da percepção, op. cit., p. 459.
143
E. Husserl, Idées directrices pour une phénoménologie, op. cit, pp. 354-359.
118

discurso doxológico anterior, erige a ingenuidade em princípio, antes de reconstruir e ocupar


seu espaço. Esse mundo do sensível já não tem valor preestabelecido pelo sujeito, que o põe
entre parênteses, sem atestá-lo, mas também sem contestá-lo. Semelhante suspensão, como se
vê, comanda as modificações da “crença-mãe”.

2.2.3 A ambivalência do crer perceptivo

Reduzida ao problema do duplo ponto de vista sobre a figuratividade do qual


partimos, a explanação sobre o estatuto ambíguo do crer nos permite agora enxergar com
maior clareza. O crer é bivalente: duas ordens da crença regem a fidúcia, essa camada modal
que, em ambos os casos, subjaz à figuratividade. E essas duas ordens de crença correspondem
aos dois modos de apreensão que distinguimos.
A primeira ordem fiduciária é de cunho intersubjetivo. Enuncia as condições
para um assentimento compartilhado sobre os modos de realização discursiva da
figuratividade (iconização e tematização, principalmente). Fundadora do vínculo social, ela tem
por objeto os valores realizados que o tecido figurativo carrega. É o crer “doxológico”.
A segunda ordem fiduciária é de cunho “intra-subjetivo” e enuncia as
condições para a adesão do sujeito da percepção ao parecer sensível. Empenhando então o
afeto (sendo o tédio um de seus casos particulares), essa variedade fiduciária ocupa o lugar das
valências perceptivas, tensionadas entre o aquém-sentido e o “além-sentido”. É o crer
“dóxico”, que sobredetermina o anterior. A intervenção de Michaux sobre o figurável se liga,
antes de mais nada, e de maneira geral, a esta segunda espécie. Assim, ele escreve em Saisir:
“Quanto esforço tenho de fazer para materializar um pouco tudo aquilo que, durante uma
longa infância, eu desmaterializava! Enquanto o animal ou o homem, olhos fitos em mim,
acredita me ver e ser visto, eu o elimino e esqueço”144. A poética de Michaux se situa precisamente
na fronteira da figuração.

2.3 O processo da intervenção sensível

2.3.1 Relato de esboços

“Introduzi camelos lá”: história do camelo? Não. História de camelos?


Tampouco. Mas história de “qualidades de camelo”. O partitivo orienta e determina o
processo da intervenção145. Com efeito, pode-se entender essa história como um relato de
esboços, transferindo esse conceito fenomenológico para a semiótica: a síntese das
percepções, evidente para qualquer pessoa, consiste em compor entre si os fragmentos
percebidos, animando-os e transformando-os, como vimos, em objetos identificáveis por
estarem unificados no tecido das percepções. Tal síntese é, no presente caso, esquecida ou,
pelo menos, suspensa. E a percepção está reduzida ao que ela é efetivamente na realidade, ou
seja, a fragmentos isoláveis e isolados – os esboços – que ainda não têm nem nome, nem
valor. O narrador isola, aí, esboços de camelo (daí o partitivo), e constitui como objetos

144
H. Michaux, Saisir, Paris, Fata Morgana, 1979 (sem paginação). Grifo nosso.
145
[N. dos T.] O original em francês comporta, de fato, o artigo partitivo, que a tradução para o português
omite: “J’y mis du chameau”.
119

funcionais esses fragmentos táteis, olfativos, auditivos, visuais, que intervêm inesperadamente
no mundo. As figuras que representam tais esboços, no curso da intervenção, explicitam
potencialidades de valores, “valências perceptivas”.

2.3.2 Infração

O enunciado regente: “Decididamente, introduzi camelos lá” destaca, por seu


aspecto pontual sobre um pano de fundo durativo, uma brusca descontinuidade no discurso.
Esta vem marcada como ruptura a um só tempo pela intensificação da modalidade volitiva no
advérbio e pelo pretérito perfeito na primeira pessoa, que assinala a intensidade de um
processo consumado. Esse enquadramento aspectual mostra que não estamos diante da mera
introdução de um termo aberrante e não isotópico no contexto figurativo, e sim de uma
verdadeira fratura na duratividade cotidiana do mundo sensível. O abalo repercute, com
diversas velocidades de propagação, no conjunto das significações: por contágio, as
qualidades-camelo vão contaminar pouco a pouco todo o universo do sentido. Observa-se, no
entanto, uma espécie de descompasso entre a transformação axiológica e a infração sensível. A
radicalidade da ruptura parece estar, efetivamente, ponderada pela manutenção, nessa isotopia
axiológica, de uma disposição “moral” do sujeito, estável e contínua, que se estende do
“respeito pela natureza” até o caráter não “indicado” da intervenção e até a “prudência” de
sua execução: traços de um sujeito dotado de um senso moral da medida. Na realidade, as
marcas de intensidade que afetam cada um dos sememas axiológicos (“tinha demasiado
respeito”, “Isso não parece muito indicado”, “a maior prudência”) põem tais valores em estado
de desequilíbrio e criam, entre esses dois universos, o do sensível e o da ética, uma tensão que
os faz vacilar em conjunto.

2.3.3 Visão ou alucinação?

Essa tensão entre os dois mundos define as condições de êxito da intervenção ao


conservar presentes, no decorrer do relato, ambos os universos em concorrência: a realidade
corriqueira de Honfleur e a que vem perturbá-la. Ela assegura o “domínio” progressivo da
intervenção sensível sobre a ordem da cotidianidade. Tal tensão afeta, no mesmo ato, a
modalidade íntima da “fé perceptiva”. Assiste-se, assim, a uma verdadeira dilatação do espaço
do crer fundamental, pois que a urdoxa, entre o sujeito individual e o sujeito social, converte-se
no motivo central do drama que se tece em torno da percepção. As condições de acesso ao
ato sensível, a difusão de suas qualidades e a constituição do universo espacial daí decorrente
alçam-no à categoria de objeto de valor, e por isso mesmo narrativizam-no.
Nessa surda luta pelo poder perceptivo, o estatuto do gesto sensível que provoca a
invasão das qualidades-camelo na plácida Honfleur é ambíguo: com efeito, ele poderia ser
assimilado a uma alucinação. Ora, não é o que lhe acontece, na exata medida em que o
narrador empenha furtivamente no processo o sujeito coletivo. Sua visão oscila, desse modo,
entre a percepção comum e a percepção alucinada.
Na percepção comum, a crença-mãe se converte em certeza confiante e assumida, por
ser uma crença confirmada sem cessar. Todos os pontos de vista sob os quais eu sei que posso
apreender um objeto, todos os acessos que tal objeto oferece ao ato sensível e que produzem
outras tantas figuras parciais, outros tantos esboços, unem-se numa composição – a
composição de esboços – que institui a plenitude do objeto. É então que se realiza, a partir
120

desses fragmentos, o que Merleau-Ponty denomina “síntese de transição” ou “síntese de


horizonte”. A percepção imperfeita coincide com um número infinito de percursos
perceptivos que lhe correspondem e a confirmam. Compartilhando a mesma experiência, o
outro, por isso mesmo, se insere nela. A apreensão sensível se introduz, a partir disso, numa
espécie de contrato fiduciário que garante a certeza trivial da visão correta e a inserção
confiante do sujeito no mundo dos objetos.
A percepção alucinada, por seu turno, detém-se aquém da composição dos esboços e
do contrato intersubjetivo. Os valores do sensível atêm-se ao estado de revelação incompleta e
fragmentária. A relação entre o sujeito e seu crer é disjuntiva. Falta-lhe a síntese das
percepções parciais e sua integração às demais experiências da percepção. O corpo que sente
do alucinado, escreve Merleau-Ponty, “perdeu sua inserção no sistema das aparências146”. A
experiência mescaliniana de Michaux confirma isso: “A mescalina elude a forma [...]. Os
objetos nunca foram vistos, mas sempre interpretados147”, e “a visão objetal dos objetos
diminuiu sua independência objetal148”. Nessa inerência do sujeito a si próprio, em um mundo
que não inventou o “ele” da distância e da objetividade, restam “ondas”, “entrelaçamentos”,
“vibrações”, “tramas”, “frêmitos”, ou seja, figuras da intensidade, puras valências do sensível.
Ora, Intervenção apresenta, entre essas duas formas opostas da sensibilidade, um estado
mediano. O sujeito introdutor das qualidades-camelo não transmite nem figuras consumadas,
nem valores identificáveis, nem a composição de um conjunto perceptivo. Entretanto, ele
comunica algo: propõe valências, isto é, qualidades sensíveis, ao sujeito coletivo, e força sua
partilha.

2.3.4 Disseminação

A difusão dessas qualidades, efetuando-se pelos diferentes canais da sensação, realiza-


se de acordo com um duplo percurso no qual tensão e distensão se encontram
correlacionadas: a intensidade tônica do sobrevir inicial (“decididamente, introduzi camelos
lá”) se transforma pouco a pouco, “com continuidade e segurança”, em extensão átona de um
devir: o da assimilação progressiva das qualidades-camelo pela comunidade.
Essa passagem do intensivo ao extensivo é marcada, antes de mais nada, pela
mobilização sucessiva e em separado das diversas ordens sensoriais. Nesse caso, não há
sinestesia: pelo contrário, a impregnação se desenvolve com regularidade, e a operação de cada
um dos sentidos é objeto de uma seqüência distinta. Sabe-se que as ordens sensoriais podem
ser apreendidas em camadas de profundidade, numa hierarquia da distância entre o sujeito e o
objeto. Em nosso exemplo, tudo começa pelo sentido mais profundo e penetrante, mais
intensamente incorporado: o olfativo (“como fede!”), transformado numa figura predadora (o
cheiro “abafa o do camarão”). Depois seguem-se a ordem tátil (“a poeira” e os “pêlos, não se
sabia do quê”), a ordem auditiva (as “patadas” e seu “gong! gong!”), para terminar enfim pelo
sentido de maior distância, logo de menor intensidade: a ordem visual (o olhar dos habitantes
de Honfleur).
Por sua vez, o centro de avaliação dos efeitos sensoriais se desloca: o cheiro, marcado
negativamente, é em primeiro lugar rejeitado de fora para dentro, por um sujeito afetado que

146
M. Merleau-Ponty, Fenomenologia da percepção, op. cit., p. 455.
147
H. Michaux, Connaissance par les gouffres, Paris, Gallimard, 1967, pp. 20-21.
148
Ibid., p. 188.
121

se caracteriza por sua exterioridade (os “turistas”). Ao cabo desse processo, a avaliação,
sempre disfórica, já se encontra interiorizada, incorporada pelo sujeito interno (os “habitantes
de Honfleur”), tornado “afetante”: os habitantes têm “aquele olhar desconfiado tão peculiar
aos cameleiros”. A disseminação do sensível, ou seja, sua máxima extensão, está consumada.
O tornar-se-camelo dos habitantes de Honfleur ou, mais precisamente, sua participação nas
qualidades sensíveis e axiológicas do “ser camelo”, está efetivamente realizado.
A trajetória das figuras da sensibilidade e sua progressiva transferência do sujeito
individual que as gerou para o sujeito coletivo que as assimilou, pode ser assim resumida: à
intensidade máxima do início correspondia uma extensão mínima; inversamente, ao final do
percurso, à intensidade mínima vem corresponder uma extensão máxima. Tal transfusão
gradual, que associa os dois percursos em relação inversa, perturba o regime dos valores
estabelecidos, suspende sua circulação e acaba substituindo-os pela nova ordem do sensível.
O duplo movimento que assim se observa indica, de maneira mais geral, as condições
de estabelecimento dos valores, localizando o espaço das valências. Seu desenvolvimento, no
texto de Michaux, realiza-se por uma transferência de intensidades, e mais precisamente por
uma correlação entre “gradientes de intensidade” postos em relação inversa. Assim, a regra
geral definida por J. Fontanille e C. Zilberberg149, a respeito do modo de funcionamento e
apreensão de tais valências, encontraria uma confirmação e quase um “caso exemplar” nessa
encenação específica das “valências perceptivas” pela qual Michaux ilustra, com uma pequena
fábula, as vias figurativas do sensível. É de fato por uma transferência tributária dessas regras
que a “corrente dóxica” passou. Sobre um fundo de atonia axiológica, o da estereotipia, a
reativação da adesão perceptiva se realizou: um mundo novo está em via de formação.
A transformação se cumpriu, previamente aos valores e a sua fixação efetiva,
diferencial e estabilizada nos objetos. É realmente nesse nível que se efetuou a mutação da
disposição sensível dos sujeitos: não vêem os camelos, porém percebem suas exalações,
sentem com o tato sua presença, ouvem o som de seus passos e, solicitados por uma nova “fé
perceptiva”, tais sujeitos incorporam todos esses efeitos, a ponto de acolherem dentro de si
essa intrusão do sensível e de se transformarem, convertendo-se, ao final, em sua fonte de
emanação. Ao término do texto, compreende-se que, como integrante da série das “partidas”
que deixam esse novo espaço num estado suspensivo – partida das caravanas, partida dos
viajantes, partida do interventor –, o trem se arroja no mar, “salvo pela fé”.

2.4 Conclusão: por uma semiótica figurativa

A semiótica integrou há um bom tempo as categorias, provenientes da psicologia da


percepção, de exteroceptividade (o mundo exterior), interoceptividade (o mundo interior) e
proprioceptividade (a interface entre ambas: a ressonância sensível). Sua transferência e
homogeneização no interior da teoria do sentido é clara: o conceito de figuratividade,
indicando a transcodificação das figuras da expressão do mundo natural em figuras do
conteúdo das línguas naturais, foi introduzido, substituindo as propriedades exteroceptivas;
para as categorias que não permitem semelhante transcodificação, o conceito de abstração
substituiu o de interoceptividade. E, por fim, o conceito de timia (= reação sensível do sujeito

149
Esse dispositivo geral da valência, concebida como correlação de gradientes (ao modo da conjunção:
“mais pede sempre mais, menos pede sempre menos”, ou ao modo da disjunção: “mais pede menos, menos
pede mais”) foi discutido e teorizado por J. Fontanille e C. Zilberberg in Tensão e significação, São Paulo,
Discurso Editorial/Humanitas, 2001. Ver, em especial, o capítulo primeiro, “Valência”, pp. 15-37.
122

corporal em seu meio, cf. ciclotimia), com sua dupla polaridade euforia/disforia, veio dar conta,
na qualidade de classema, da incorporação do sensível, substituindo então a
proprioceptividade150.
Quando a semiótica figurativa tentava explicar a “representação” e as impressões
referenciais, ela era exteroceptiva; quando discutia os vínculos entre o figurativo e o abstrato,
ela associava o figurativo à dimensão interoceptiva. Os desenvolvimentos atuais da
investigação sobre a figuratividade estão voltados para a dimensão proprioceptiva e para as
questões novas que esta levanta para o analista, relacionadas à fenomenologia. Como abrir
caminho entre o nível da apreensão sensorial, da percepção e do corpo sensível, e o nível
axiológico, dos valores investidos no discurso figurativo? Como as categorias tímicas, situadas
a montante, comandam tais investimentos? Como essa tensão que as caracteriza – sua
avaliação contínua e instável em termos de excesso e de falta, de mais e de menos, de
intensidade e de extensão – poderia ser descrita? A narrativa de Henri Michaux, Intervenção,
permitiu-nos, se não responder a essas questões, pelo menos estabelecer com mais clareza o
problema. O texto é uma verdadeira fábula da proprioceptividade, sugerindo-nos seu
esquema. Ao desnudar o processo de incorporação do sensível, como se o soletrasse, ele
ilustra a necessidade, por um lado, de conferir à tensão um estatuto semântico (é o papel
desempenhado pelo conceito de valência e pelas correlações que o definem) e, por outro lado,
de melhor definir as ligações entre a emergência do sentido na sensorialidade, sua estabilização
no figurativo e a estereotipização deste último no axiológico. Ao longo dessa trama, o sujeito
que “vê” e “sente” descobre seu espaço, e se descobre por meio dele.

150
Essa transferência conceitual e metodológica é apresentada em A. J. Greimas, J. Courtés, Dicionário de
semiótica, op. cit., nos verbetes “exteroceptividade”, “interoceptividade” e “proprioceptividade”.
123
124

Síntese

FIGURATIVIDADE E PERCEPÇÃO

Os desenvolvimentos atuais da reflexão sobre a figuratividade levam os


semioticistas a analisar as estreitas relações entre a dimensão figurativa do discurso
e a atividade de percepção. Quais os laços entre os objetos de linguagem descritos
pela semântica figurativa e os objetos sensíveis que o corpo sente por seus canais
sensoriais?
Tal questão interessa de perto à semiótica literária, na exata medida em que a
literatura põe em cena a existência sensível e questiona, ou até mesmo transforma,
as maneiras de se perceber. Desse modo, ela conduz a semiótica a reativar suas
relações com a fenomenologia, e em especial com os estudos de M. Merleau-Ponty
sobre a percepção.
A figuratividade apresenta-se como a “tela do parecer” (Greimas),
implicando portanto um certo modo de crença (cf. a noção de ilusão referencial).
Essa crença também é fundamental no campo da percepção, sob a denominação de
“fé perceptiva” ou “crença-mãe”. O crer, que funda assim, num mesmo gesto, a
percepção e suas representações figurativas no discurso, dá acesso à problemática
da veridicção. Esta descreve, não o cálculo dos valores de verdade, mas sim os
jogos e as facetas de sua operação entre os sujeitos do discurso: simulação e
dissimulação, verdade e falsidade, segredo e mentira, as quais comandam as formas
de adesão (o contrato de veridicção).
Na linguagem, a adesão se apóia sobre os valores figurativos oriundos da
percepção, que o discurso social transforma em valores axiológicos (sob a forma,
por exemplo, de evidências ou estereótipos). A análise de uma breve narrativa de
H. Michaux permite aprofundar os principais aspectos dessa cena sensível, através
das desventuras da sensorialidade, bem como introduzir o conceito de valência (cf.
na linguagem comum os termos de equi-valência ou de ambi-valência); este
exprime as condições de emergência e de existência dos valores a partir do sensível.
A problemática dos valores, estabilizados, postos em circulação e disputados
entre os sujeitos, estará no centro da reflexão semiótica sobre a narratividade.
125

Capítulo 8
Da análise da narrativa à narratividade

1. Resumo histórico

1.1. As fontes da narratividade151

Os anos 1960 foram marcados, nas ciências humanas, por uma verdadeira revolução
na reflexão sobre a narrativa. A publicação, em 1966, do número 8 da revista Communications,
sob o título “Recherches sémiologiques. L'analyse structurale du récit”, constitui seu
acontecimento de referência: encontram-se aí principalmente os textos de R. Barthes
(“Introduction à l’analyse structurale du récit”), A. J. Greimas, C. Brémond, U. Eco, G.
Genette, C. Metz, T. Todorov. O traço característico e comum a esses diferentes estudos é um
esforço de racionalização da ficção narrativa, que ocasionou uma profunda reviravolta
metodológica, levando à constituição da “narratividade”, uma quase-disciplina conhecida
também pelo nome de narratologia.
Podemos apresentar essa reviravolta como a passagem entre o que P. Ricœur chama
de “inteligência narrativa”, que é trans-histórica, cronológica, inserida na evolução e nas
mudanças da tradição histórica da “elaboração da intriga”, para uma “racionalidade semiótica”,
concebida de maneira a-histórica como um aprofundamento dos mecanismos formais
produtores da narrativa, isto é, a busca de estruturas profundas imanentes, cujas diferentes
configurações na superfície dos textos não seriam mais que manifestações particulares. A
imanência, lembremos, significa a autonomia das formas estruturais, seu funcionamento
próprio, sua indiferença enquanto sistema aos dados extralingüísticos.
P. Ricœur ilustra as transformações históricas da elaboração da intriga mostrando como, sobretudo na
esteira dos trabalhos de G. Lukács, o advento do romance moderno pode ser compreendido como um
inversão da hierarquia entre “intriga” e “caráter”. Nas formas primitivas da narrativa, a intriga era
englobante, enquanto os pensamentos, os afetos e os “caracteres” que os enquadram (e que a semiótica
desenvolverá com o conceito de “papel temático” dos atores) lhe eram subordinados. A inversão foi
produzida por uma extensão progressiva do “caráter”, que Ricœur segmenta em três etapas: em
primeiro lugar, extensão, operada pelo romance, da “esfera social”, a partir dos heróis exemplares,
encarnação dos valores de toda a sociedade (como Percival, em Chrétien de Troyes), ou de tipos
comuns, os quais também encarnam, ainda que ironicamente, os valores coletivos ( cf. o romance
picaresco); extensão ilustrada em seguida pelo “romance de aprendizagem”, que subordina a intriga à
“tomada de consciência” de uma personagem central (desde o romance do século XVIII até o meio do
XX): no romance do século XX, são a riqueza e complexidade do caráter que fundamentam a
complexidade episódica (Stendhal, Balzac, Dostoïevski, Tolstói...); extensão que culmina enfim com o
romance de “fluxo de consciência” (a partir de Flaubert, M. Proust, V. Woolf...), em que a diversidade
dos níveis de consciência, a agitação dos desejos e dos temores, das percepções e dos afetos recobre

151
Cf. em particular, a esse respeito, P. Ricœur, Tempo e narrativa, t. II, “As estruturas semióticas da
narratividade e suas restrições”, Campinas, Papirus, 1995, pp. 55-108. Retomamos aqui, em parte, elementos
desse ensaio.
126

inteiramente a efabulação. Essa fase é ilustrada em especial pelo Nouveau Roman (Sarraute, Robbe-
Grillet, Simon...).
A mudança metodológica introduzida pela narratologia consiste então em denunciar a
pertinência da cronologia, em substituir a história pela estrutura, em desprender-se da
inteligência narrativa histórica em favor das coerções estruturais a-crônicas. Várias razões
podem explicar essa revolução.
Primeiro, a imensa diversidade cultural do fato narrativo, que lhe dá um estatuto
universal. A variedade das formas de expressão (orais, gestuais, icônicas, escritas, etc.) e de
seus suportes (texto escrito, filme, HQ, pintura, conversação cotidiana, etc.), assim como
a das classes narrativas, dos gêneros e dos subgêneros (mito, epopéia, conto, romance,
fábula, novela, tragédia, drama, poesia, etc.) condena à ineficácia qualquer método
indutivo. Isso é atestado pelo recorrente fracasso de uma definição formal e consensual
dos “gêneros”. Segunda razão, o método dedutivo, que consiste em propor, a partir de
uma axiomática, modelos hipotéticos, para depois testá-los, derivar subclasses, interdefinir
e hierarquizar os conceitos operatórios, etc., parece impor-se de maneira a distinguir a
complexidade do fenômeno, reconhecer suas regularidades e formular regras. A terceira
razão, em continuidade com a precedente, está ligada à influência considerável dos
modelos lingüísticos e suas categorias fundamentais (como a dicotomia sistema/processo)
que, aplicadas primeiramente à fonologia, foram estendidas em seguida à semântica lexical
e por fim à análise da dimensão transfrásica da linguagem: o discurso. Ora, a narrativa é
uma das mais amplas classes do discurso. Sua realidade transcultural justifica a pesquisa
dos universais semânticos e sintáxicos suscetíveis de gerar suas formas. A última razão,
enfim, prende-se ao caráter autônomo e orgânico de todo sistema: prioridade do todo
sobre as partes, hierarquia dos níveis de análise, possibilidade de integração dos elementos
constitutivos no conjunto. Sob esse ponto de vista, a narratividade aparece como um
dinamismo integrador que transforma um conjunto variado de fatos e incidentes em uma
história completa, articulada e ordenada.
Por essas diversas razões, as relações entre formas da expressão e formas do conteúdo,
agora pensadas em termos de articulação e integração, podem ser desconectadas de toda
referência direta à tradição narrativa. Podemos lembrar a esse respeito a “palavra de
ordem” de R. Barthes, em seu período estruturalista: descronologizar e relogicizar! P.
Ricœur se questiona sobre a radicalidade e mesmo sobre a validade de tal procedimento:
não teria a narrativa um caráter irredutivelmente histórico? Tanto mais que a
descronologização tem um duplo alcance: de uma parte, consiste em desligar-se da
historicidade da função narrativa (a inteligência narrativa se inscreve no tempo humano e
no tempo social, é a tradição que fundamenta seu exercício). De outra parte, ela se desliga
do cunho diacrônico inerente a toda história contada, isto é, de sua dimensão temporal.
Ora, segundo P. Ricœur, um dos traços fundamentais da narrativa é justamente essa
discursivização da temporalidade: em razão disso, participaria mesmo da constituição da
experiência fenomenológica do tempo. “Uma pressuposição, escreve ele, domina todas as
demais, a saber, o desafio supremo, tanto da identidade estrutural da função narrativa
como da exigência de verdade de toda obra narrativa, é o caráter temporal da experiência
humana [...]. O tempo torna-se tempo humano na medida em que é articulado de maneira
narrativa; em compensação, a narrativa é significativa na medida em que define os traços
da experiência temporal.”152 Atenuando tal dimensão, a semiótica narrativa considera, ao
contrário, a temporalização como um investimento figurativo de superfície, ligado à
enunciação, e não como um dado profundo. As estruturas narrativas e lógico-semânticas

152
P. Ricœur, ibid., t I, p. 7
127

que a sustêm são, por sua vez, a-crônicas: são puras operações de transformação,
distantes de qualquer fenomenologia da experiência temporal.
Examinaremos sucintamente três etapas na gênese desta reflexão: a morfologia fundadora
de V. Propp; a lógica dos papéis desenvolvida no fim dos anos 1960 por C. Brémond; o
aprofundamento enfim da semiótica narrativa, cujos conceitos analíticos iremos em
seguida precisar e ilustrar.

1.2 A fundação da narratividade: Propp


A Morfologia do conto maravilhoso russo de V. Propp constitui o fundamento inevitável
de toda reflexão sobre a narratividade. Lembraremos aqui apenas os traços gerais de uma
obra bem conhecida. Publicada em russo, na cidade de Leningrado, em 1928, traduzida
para o inglês em 1958, depois para o francês em 1965 (nova tradução em 1970, na editora
Seuil), essa importante obra do Formalismo russo tem sido objeto de inumeráveis
comentários. Foi C. Lévi-Strauss que a deu a conhecer na França em 1960, em um texto
publicado sob o título “La structure et la forme. Réflexions sur un ouvrage de Vladimir
Propp” 153.
É necessário situar essa pesquisa no contexto dos estudos folclóricos dominados por uma
abordagem exclusivamente histórica: fontes, filiações, correspondências, genealogia dos
contos... Propp estabelece, como condição prévia, o conhecimento efetivo do objeto
“conto” em si mesmo, a análise de sua morfologia, isto é, de suas regularidades e
variações formais: trata-se de estabelecer a constância dos elementos (personagens e
ações) e das relações (encadeamento das ações) que constitui a forma do conto popular,
ou, segundo seus próprios termos, de fazer a “descrição dos contos segundo suas partes
constitutivas e as relações dessas partes entre si e com o conjunto” (p. 29). Tarefa que
consiste então, para retomar os termos de P. Ricœur, em “logicizar” a narrativa e
“descronologizá-la” (ao menos em parte) . A morfologia de Propp caracteriza-se por
quatro teses, depreendidas da análise de uma centena de contos de fadas eslavos (os
contos 50 a 151 da coletânea de Afanasiev).
1. As unidades constitutivas do conto são as funções. Elas definem-se pelo segmento da ação que as
denota: afastamento, interdição, fuga, transgressão, informação, engano, etc. Tais funções
são idênticas em todos os contos, qualquer que seja o revestimento figurativo que as
particulariza (cenário, personagens, lugares, tempos, etc.). As personagens são, pois,
eliminadas, constituindo apenas suportes das funções. E estas são definidas unicamente do
ponto de vista de sua significação no desenvolvimento da intriga. Atos idênticos poderão
ter significações diferentes e vice-versa (o “casamento”, por exemplo). O
“desenvolvimento da intriga” estabelece então uma perspectiva teleológica englobante
(essa finalização sustenta a diacronia interna da narrativa).
2. O número das funções é limitado. As ações e as personagens podem ser inumeráveis,
multiformes, pitorescas; apóiam-se, entretanto, em um número finito de funções: trinta e
uma. As sete primeiras, em letras do alfabeto grego, designam funções preparatórias; a
primeira que lhes sucede imediatamente estabelece a “carência”, depois encadeiam-se
busca, luta, retorno, etc; certos contos relançam então a ação e começa uma segunda série
de funções até o desmascaramento do vilão e a recompensa final. Essa limitação pode ser
comparada ao número finito de fonemas em um sistema fonológico. A segmentação linear
é bem orientada, precisando essa perspectiva teleológica de que falamos: a carência, ou o

153
[N. dos T.] Edição brasileira: C. Lévi-Strauss, “A estrutura e a forma. Reflexões sobre uma obra de
Vladimir Propp”, in Antropologia estrutural dois. Trad. Maria do Carmo Pandolfo, Rio de Janeiro, Tempo
Brasileiro, 1976, pp. 121-151.
128

dano (funções preparatórias), “dá ao conto todo o seu movimento”. Constitui o pivô da
intriga, desencadeando a busca. Temos assim uma cadeia de funções: carência – partida –
preparação – realização – reparação – retorno; depois, intervenção do falso herói – nova
partida – realização (combates, vitória, punição, etc.) – retorno – casamento do herói.
3. A ordem de sucessão das funções é constante. Elas se implicam umas às outras; algumas podem
ser reagrupadas por pares (proibição/violação; combate/vitória), exibindo uma estrutura
paradigmática; outras encadeiam-se em seqüências (traição – pedido de socorro – decisão
do herói – partida para a busca) formando blocos sintagmáticos concatenados, “pré-
moldados”. Cada conto tomado individualmente atualiza, entretanto, apenas um número
limitado de funções, sem que a ordem de sucessão seja modificada. A diferença formal
entre os contos resulta da seleção operada por cada um no estoque das funções
disponíveis. Propp supõe uma compatibilidade absoluta entre as funções; Lévi-Strauss
sugere, por sua vez, enfatizando as relações paradigmáticas, que uma tipologia ideal dos
contos deveria, ao contrário, estar fundada sobre “um sistema de incompatibilidades entre
as funções”154. Por exemplo, se considerarmos dois pares de funções que se encontram
raramente no interior do mesmo conto:
1. “combate com o vilão” – “vitória do herói”
2. “ atribuição de uma tarefa difícil” – “sucesso”,
podemos prever logicamente quatro classes diferentes de contos: os que realizam o par 1;
os que realizam o par 2; os que realizam a ambos; os que não realizam nem um nem outro.
Obtemos assim as condições de uma classificação estrutural.
4. Todas as funções conhecidas do conto definem um só tipo e se organizam segundo uma única
narrativa. “Encarados do ponto de vista da estrutura, todos os contos de fadas se reduzem
a um único tipo”155. Cada conto é então uma variante da protoforma do conto, uma
combinatória particular desse modelo.
A “formula” narrativa de um conto particular poderá ser assim apresentada:
α δ A B C I H K I W
que se lê , na ordem de sucessão: “Um rei, pai de três filhas” – “elas vão passear” - “elas
se demoram em um jardim onde são raptadas por um dragão e chamam por socorro” -
“três heróis se apresentam” - (I = “sua busca”) – “combate com o dragão - “vitória” -
“libertação das princesas” - (I = retorno) - “recompensa”.
As personagens se definem pela distribuição das funções que lhes são atribuídas e que
constituem sua “esfera de ação”. Existem, por conseqüência, em número limitado:
malfeitor, doador, auxiliar, personagem procurada, mandante, herói, falso herói formam
os sete protagonistas do conto. A partir de uma redução dessa lista, Greimas estabelecerá
o inventário dos actantes e dos papéis actanciais.

1.3 A lógica dos papéis: Brémond


Claude Brémond desenvolve sua Lógica da narrativa156 a partir de uma dupla crítica ao
modelo proppiano: ela incide de um lado sobre o caráter mecânico e coercitivo do
encadeamento das funções e, de outro, sobre o apagamento da personagem, cuja
perspectiva ele considera, ao contrário, essencial à compreensão da lógica narrativa.

154
Artigo citado, p. 131.
155
Artigo citado, p. 125.
156
Cl. Brémond, Logique du récit, Paris, Seuil, col. “Poétique”, 1973. Ver principalmente o cap. 1, “Le
message narratif” (1964), pp. 11-47.
129

Contra o percurso obrigatório, ele introduz alternativas e escolhas: a estrutura da narrativa


apresenta um mapa dos itinerários narrativos possíveis, entre melhoramento e
degradação. C. Brémond antecipava dessa maneira o desenvolvimento, no transcurso dos
anos 1980, das narrativas arborescentes e interativas (as “narrativas em que você é o
herói” ). Mais profundamente, seu método se baseia na crítica da necessidade teleológica,
que fundamenta o sentido da narrativa no fim para o qual ela tende. Uma lógica narrativa
formal não deveria se submeter a um sentido que é apenas uma escolha cultural no
interior de um dispositivo que, na realidade, multiplica as alternativas do princípio ao fim
de seu desenvolvimento. Numerosos finais são teoricamente possíveis (como o mostram,
por exemplo, as diversas saídas nas escolhas das arborescências). Brémond escreve, assim,
que “a implicação de luta por vitória é uma exigência lógica; a implicação de vitória por
luta é um estereótipo cultural157”.
A unidade básica dos possíveis narrativos é a “seqüência elementar”. Esta é
compreendida não mais como a sucessão sempre idêntica das mesmas funções, mas como
a série dos elementos que marcam o desenvolvimento de um processo, dos quais os dois
primeiros abrem-se para uma alternativa: uma virtualidade inscrita em uma situação pode
evoluir ou não para a passagem ao ato; a passagem ao ato pode acontecer ou não
acontecer. Assim, o termo posterior implica o termo anterior (para que o processo esteja
consumado, é necessário que tenha havido a passagem ao ato), mas não o inverso (a
passagem ao ato não implica necessariamente a realização acabada).
situação atualização resultado
(que abre um possível
narrativo)
passagem ao ato → finalização
Sq → eventualidade
não-passagem ao ato → não-finalização

Essa tríade elementar se complexifica segundo configurações sintáxicas variadas


(encadeamento, encaixe, paralelismo, etc.), mas também e sobretudo recusando “eliminar
da estrutura da narrativa a referência às personagens158”. Brémond considera que a
passagem da seqüência elementar às seqüências complexas faz necessariamente intervir a
perspectiva de uma personagem que, empenhada em seus interesses ou suas iniciativas,
assegura a continuidade das seqüências. Invertendo assim o primado de Propp, que
enfraquecia a personagem em proveito da função, de que ela era apenas o suporte,
Brémond parte das personagens e procura formalizar seus papéis intencionais. O conceito
central de papel é definido como a atribuição a uma personagem-sujeito de um processo-
predicado eventual, em ato ou não, acabado ou inacabado: por intermédio do predicado,
portanto, o papel se incorpora à seqüência elementar e, ligadas por seus respectivos
papéis, as personagens se mostram por isso mesmo interdependentes. Nessa perspectiva,
a estrutura da narrativa não se constrói, como em Propp, sobre uma seqüência de ações,
“mas sobre uma organização de papéis159”. E a pesquisa de uma lógica da intriga consiste
em elaborar “o inventário sistemático dos principais papéis narrativos160”. Disso resulta
uma rica taxionomia que procede por dicotomias sucessivas, a primeira das quais
contrapõe dois tipos fundamentais: os pacientes (afetados pelos processos modificadores)
e os agentes (iniciadores desses processos).

157
Ibid., p. 25
158
Ibid., p. 132
159
Ibid., p. 133.
160
Ibid., p. 134
130

Os pacientes são determinados seja pelas influências exercidas sobre eles, seja pelas ações
das quais são o objeto. As influências podem ser de ordem cognitiva, ao modo persuasivo
ou dissuasivo (informações, dissimulações, refutações, enganos), ou de ordem afetiva,
ocasionando satisfações ou insatisfações e projetando esperanças e temores. As ações
determinam dois tipos de pacientes, conforme modifiquem seu estado (melhoramento ou
degradação) ou, ao contrário, o mantenham (proteção ou frustração).
O agente, por seu lado, pode ser voluntário (intencional) ou involuntário (quando não
domina as conseqüências dos processos que desencadeia). Seus papéis são
complementares em relação aos do paciente, e se distribuem em ações e em influências.
As ações engendram os papéis do modificador e do conservador, do melhorador e do
degradador, do protetor e do frustrador. A ação é decomposta em três tempos que
correspondem geralmente, pelos seus modos de existência (virtual, atualizado, realizado),
aos três momentos da seqüência elementar e especificam tipos de agentes (eventual, em
ato, consumado segundo o sucesso ou o fracasso). Quanto às influências, passando pela
persuasão e pela dissuasão, levam a especificar o papel do “influenciador” como
informante, sedutor, dissimulador, falso conselheiro, intimidador, etc. Enfim, a
consideração do mérito ou do demérito faz do agente um retribuidor sob forma de
recompensa e de punição e do paciente, um beneficiário ou uma vítima.
Resulta dessa construção uma ampla classificação dos papéis, uma tabela das posições
possíveis para personagens eventuais em narrativas eventuais. A formalização, mais
abstrata que a de Propp, abre à análise um campo de aplicação mais vasto (incluindo, por
exemplo, a narração histórica), bem além do domínio exclusivo do conto maravilhoso
russo, limitação evidente do modelo proppiano. Por outro lado, a descronologização é
mais completa e mais radical que na morfologia de Propp: as propostas de C. Brémond
apresentam-se como uma análise paradigmática, sendo os possíveis narrativos posições
substituíveis umas pelas outras. Mas uma tal “lógica dos papéis” narrativos, assimilada à
intriga, bastaria para formalizar o conceito de narrativa?
Essas propostas não oferecem com efeito quase nenhuma abertura ao encadeamento dos
enunciados narrativos, isto é, à dimensão sintagmática que se encarrega do
desenvolvimento da narrativa. O modelo de C. Brémond não considera o desdobramento
discursivo dos papéis e, assim descontextualizada, sua tipologia define essencialmente a
moldura para uma semântica da ação: ela indica posições, mas faltam-lhe os percursos e as
transformações. Dado que o conhecimento dos papéis possíveis não fornece informação
sobre o movimento, sua simples nomenclatura não pode engendrar uma história. Existe aí
uma dificuldade com relação ao poder de integração do modelo. A partir do corpus
narrativo, a teoria de C. Brémond se instala, pois, no horizonte referencial da ação. A
seqüência elementar aparece assim mais como uma condição teórica da narratividade que
como um componente da construção narrativa.
Na verdade, se “eventualidade”, “passagem ao ato”, “finalização” descrevem bem os
modos de existência relativos do ato (virtualização, atualização, realização) sua aplicação
na narração exige a integração dos modelos culturais depositados na tradição narrativa.
Somente eles poderiam, no interior desse quadro tão aberto, determinar esquemas de
previsibilidade. Para passar de uma teoria da ação a uma teoria efetiva da narrativa, isto é,
como dizia Greimas, a uma teoria da ação «de papel», é necessária uma sintaxe que
determine uma ordem de encadeamento dirigida pelas configurações culturais que a
esquematizam e tornam a ação narrável.

1.4 A semiótica narrativa: Greimas


131

Na base da semiótica narrativa desenvolvida por Greimas e sua escola encontra-se o


projeto de desenvolver precisamente uma “sintaxe narrativa”. Ela tem como núcleo o
conceito de actante, obtido de um lado por uma redução paradigmática das funções
proppianas e, de outro lado, pela consideração de que uma sintaxe narrativa deve, para ser
válida, ser exclusivamente enraizada nas propriedades da linguagem. É portanto no
discurso em si mesmo, e não nas hipóteses sobre a ação, que se encontra o princípio de
sua construção. O conceito de actante é assim emprestado à sintaxe estrutural, frásica, de
Louis Tesnière, que comparava a frase a um pequeno drama, “espetáculo que o homo
loquens se dá a si mesmo”, implicando: um processo (o verbo), um actante (o substantivo)
e circunstantes (por exemplo o advérbio).
A partir desse conceito lingüístico e sintáxico de actante, podemos então redefinir a
função no sentido de Propp: sob o nome de Enunciado Narrativo, ela é então
simplesmente definida como uma “relação-função entre ao menos dois actantes”. A
formulação condensada desse enunciado elementar é: E N = R ( A 1 , A 2 . . . ) . O
desenvolvimento da sintaxe narrativa consistirá em fazer extrapolações a partir do
Enunciado elementar, em complexificar progressivamente a sua estrutura (os programas
narrativos e seu modos de organização) para apreender a dimensão do discurso e, mais
precisamente, em inscrever a descrição das estruturas narrativas no interior do conjunto
teórico que vai das formas mais superficiais, a manifestação por meio da enunciação, às
arquiteturas semânticas e sintáxicas elementares que fundamentam sua base relacional.
Antes de entrar no exame mais detalhado desse aparelho conceitual, propomo-nos a
apresentar e justificar essa “posição” do narrativo por meio de um novo exame breve da
narrativa de J.-M. G. Le Clézio cujas articulações figurativas e axiológicas elementares já
distinguimos (cf. Terceira Parte, “Figuratividade”; cap. 5). O texto, analisado aqui apenas
do ponto de vista de suas estruturas narrativas, encontra-se na p. {???114 do original
francês}.

2 A sintaxe narrativa: estudo de caso

2.1 Da seqüência narrativa à estrutura a-crônica


Nosso objetivo é indicar rapidamente como, a partir da herança proppiana, articulam-
se diferentes níveis de formulação que levam ao estabelecimento da narratividade e à sua
ligação com a estrutura elementar da significação. Para assim fazer, segmentamos o texto
(especificamente, o longo parágrafo) em dois elementos que isolam na superfície duas
unidades de discurso: a unidade “diálogo” (do início até “de ilha em ilha”, 1.9) e a unidade
“relato” que começa em “Outrora”. Outras estruturações desse fragmento do texto em dois
blocos atestariam maneiras diferentes de ler, levando a uma eventual confrontação entre
segmentações. Alguns leitores segmentarão no interior do diálogo entre o capitão e o
timoneiro (por exemplo, antes de “O timoneiro levantou os ombros”) concedendo a
prioridade à estrutura polêmica da troca (com o surgimento da antítese e a expressão do
desacordo); privilegiarão então uma leitura argumentativa do conjunto, tendo o relato, em
posição secundária, apenas um estatuto de ilustração ou de prova em apoio do argumento
(exemplum da retórica). Outros leitores estabelecerão sua segmentação no interior do próprio
relato (por exemplo, antes de “E um dia” ou antes de “Então, tentaram”...), privilegiando, por
meio das debreagens temporais no interior do próprio relato, uma leitura centrada na história
e no encadeamento da intriga. A segmentação que propomos reflete uma leitura analítica, que
tem por efeito considerar o relato como um todo de significação, independente do resto:
posição discutível se se considerar o discurso que o engloba, mas justificável se visarmos o
desnudamento de uma coerência estrutural. Em todo caso, a segmentação é em si mesma um
132

exercício de leitura do sentido, e seria interessante analisar mais profundamente as concepções


gerais do discurso que subtendem cada uma das hipóteses: prioridade da argumentação na
prática da linguagem, ou prioridade da narração, ou prioridade da disposição das unidades
homogêneas do discurso. Como quer que seja, é neste caso o dispositivo formal do relato que
nos interessa e que justifica a segmentação adotada.

2.1.1 A estruturação de superfície

Apreendida no nível de manifestação textual, a narrativa deixa-se facilmente recortar


em seqüências sucessivas, a partir de debreagens temporais:
1 – “Outrora”
2 – “E um dia”
3 – “Quando”
4 – “Então” (x 3)
Uma última seqüência se fundamenta sobre uma debreagem-embreagem
enunciativa interna, que comporta em si mesma uma dimensão temporal:
5 – “Disseram-me”
Essas cinco seqüências, baseando-se na sucessividade temporal, restituem o
encadeamento cronológico do relato. Ele é suficiente para formar um arcabouço
narrativo: de fato, poderíamos imaginar um narrador que se contentasse com essa
seqüência de enunciados para formar “o efeito-narração” (podemos pensar em Finissez vos
phrases, de J. Tardieu). Mas essa arquitetura continua sendo própria do relato considerado,
ela nos instala e, por assim dizer, nos encerra em seu universo figurativo particular. Logo,
não pode ser vista como um modelo generalizável de organização narrativa. Ora, é isso
que se procura aqui. Para tanto, é preciso subir um degrau na abstração e propor uma
nova formulação, capaz de apresentar uma estrutura da narrativa.

2.1.2 A estruturação funcional

Esse segundo nível de formulação se apóia sobre uma análise em termos proppianos,
isto é, em termos de funções que designam a morfologia narrativa. Chega-se então às
cinco seqüências seguintes:
1 – Situação inicial (funções preparatórias)
2 – Acontecimento perturbador (estabelecimento da falta)
3 – Agravamento
4 – Luta (sob a forma de diferentes possíveis narrativos)
5 – Situação final (desfecho)
Essa análise, a bem dizer, combina as propostas de Propp e de Brémond (ela põe
assim em evidência, na função “luta”, diferentes possíveis narrativos sucessivamente
atualizados). Há aí uma generalização incontestável: obtemos um modelo abstrato ao qual
se adapta a narrativa particular de Le Clézio. Rompendo com a linearidade da mera
sucessão temporal, a análise exibe, além disso, possibilidades de emparelhamentos
paradigmáticos (1 e 5), que dão conta do fechamento do texto narrativo. Mas esse
dispositivo apresenta-se, longe da realidade textual, como um esquema geral de ação,
específico pelo menos ao esquema de ação do tipo “conto”. As relações actanciais estão
ausentes de um molde narrativo baseado em modificações das situações,
independentemente dos sujeitos, dos objetos e dos valores em jogo.
Vista exclusivamente como esquema de ação, essa análise expõe dois problemas.
De uma parte, permanece muito próxima do nível figurativo da manifestação: situação,
luta, acontecimento figuram segmentos de ação. A estrutura narrativa permanece assim
133

prisioneira do universo das narrativas e interdita-se qualquer extensão à análise de outros


tipos de discurso (discursos não figurativos, filosóficos ou científicos, por exemplo, que
são entretanto analisáveis, também, em termos de estruturas narrativas). De outra parte,
ela não leva em conta a realidade linguageira da narrativa em si mesma, seus enunciados e
sua sintaxe, isto é, os simulacros linguageiros da ação. Ela tem por horizonte a ação, tal
como é percebida no universo da experiência. Daí a proposição de um terceiro nível de
formulação, mais abstrato, no qual vai se situar a análise semiótica propriamente dita.

2.1.3 A estruturação semiótica

Esse terceiro nível estabelece a estrutura geral dos fenômenos narrativos levando em
consideração as formas sintáxicas dos enunciados e somente elas, enraizando assim a
análise na realidade da linguagem, independentemente de toda pressuposição sobre a
realidade da ação. Obtemos então, para as cinco seqüências, as denominações elementares
seguintes:
1 – Estado 1
2 – Transformação 1
3 – Intensificação
4 – Transformação 2
5 – Estado 2
Como se vê, a temporalização desapareceu; resta apenas a armação lógica dos
enunciados. De ora em diante, o desenvolvimento sintagmático da narrativa revela uma
estrutura mais profunda, sobre a qual repousa, que é, por sua vez, de ordem
paradigmática. É nesse nível que se situaria a verdadeira arquitetura narrativa: o
paradigmático teria prioridade sobre o sintagmático. De fato, cada um dos enunciados
tem seu correspondente: ao estado 1 corresponde o estado 2, à transformação 1
corresponde a transformação 2, e a intensificação, aparentemente isolada, apresenta-se
como o ponto culminante da narrativa, seu clímax (como atestam na superfície as
diferentes marcas de intensidade, qualitativas – “até” – e quantitativas – “tão”, “todas”).
E se examinarmos mais de perto as coisas, constataremos que as denominações
propostas são precisamente motivadas pela estrutura dos enunciados por elas designados.
Assim o “estado 1” é constituído exclusivamente de predicados de estado: ter e ser, com
encaixe dos dois predicados positivos em “ser” nos dois predicados negativos em “ter”, o
que contribui para promover o fechamento dessa seqüência. Do mesmo modo, a
“transformação 1” baseia-se em predicados de /fazer/, a começar por “ele naufragou”.
Quanto à “intensificação”, ela se completa também por um enunciado de estado, mas
estado invertido, produto da transformação: “tudo lhes pertencia” . Poderíamos continuar
com as mesmas observações sobre a “transformação 2” (enunciados de fazer) e sobre o
“estado 2” (enunciados de estado: “É sobretudo ao norte da ilha que são mais
numerosos”). Assim, a estrutura narrativa está ancorada na estrutura dos enunciados, são
eles, e não os pressupostos sobre a ação, que engendram a narratividade.
Vemos assim emergir da narrativa de Le Clézio o núcleo de todo dispositivo
narrativo segundo a semiótica: existe narrativa desde que dois enunciados de estado (1 e
2) sejam regidos e transformados por um ou mais enunciados de fazer. A fórmula do
programa narrativo encontra-se inscrita nessa definição (cf. capítulo seguinte). É possível
então ligar essa formulação sintáxica fundada sobre a transformação (passagem de um
dado estado a seu estado contrário por mediação do fazer) à formulação mais profunda
da estrutura elementar. O quadrado semiótico que condensa a estrutura desse texto (cf.
cap. 5) assume a dimensão semântica dos valores em jogo na narrativa, e enuncia seus
134

percursos: paraíso ou inferno, que se tornam paraíso seguido de inferno, antes de se


reconverter em “nem paraíso, nem inferno”.

2.2 Da estrutura local à estrutura global


Como já observamos, os textos literários, incluídas as narrativas, não são todos
analisáveis em termos tão sistemáticos, longe disso, e felizmente. Contudo, se
quiséssemos estender a análise que acabamos de fazer ao conjunto do romance de Le
Clézio, poderíamos facilmente constatar que a estrutura local reconhecida nesse pequeno
conto de Agalega, que se encontra no meio do romance, repercute na estrutura global da
obra. Podemos constatá-lo analisando o resumo do romance que se encontra na quarta
capa de À busca do ouro. Esse release reproduz de modo idêntico na sua estrutura as
seqüências da micronarrativa, articulando valores de uma outra ordem. Assim, o valor
visado (o paraíso do Recôncavo de Boucan, como eco do paraíso de Agalega) não é
reconquistado ao fim da busca, mas o ouro do corsário transformou-se em ouro de uma
outra natureza, o do universo simbólico. O paradigma dos valores iniciais foi substituído
por um outro paradigma, passamos dos termos contrários aos termos subcontrários: nem
paraíso, nem inferno, a saída narrativa encontra-se na felicidade da linguagem, a da
narrativa (o duro “diário de bordo”).

J. -M. G. LE CLÉZIO

À busca do ouro

1982 : Alexis, o narrador, e sua irmã Laura (oito e nove anos) vivem felizes com seus
pais no refúgio do Recôncavo do Boucan, na costa oeste da ilha Maurício. Mas o pai,
doce sonhador, vai à falência quando um ciclone devasta a região. Mergulhada na
miséria, a família emigra para Forest Side onde, antes de morrer, o pai juntou certos
documentos relativos ao ouro do Corsário, ainda escondido, acredita ele, em um vale
da Enseada dos Ingleses, em Rodrigues, uma ilha vulcânica perdida no oceano Índico.
Seu objetivo: encontrar o fabuloso tesouro.
1910 : A bordo da escuna Zeta, Alexis parte para Rodrigues e empreende uma busca
que, ao correr dos dias, torna-se mais e mais quimérica. Se ele não naufraga no
desespero e na solidão, é graças a Ouma, a jovem “manaf” que lhe oferece em silêncio
seu corpo, seu coração e o sol diante do mar.
1915 : Respondendo ao apelo de Lord Kitchener, Alexis se engaja na armada inglesa e
parte para o front na França, na Ancre e na Somme.
1922 : Terminada a guerra, ele vai ao encontro de Laura em Forest Side, assiste à
morte de Mam. Retirando-se em Mananava, com Ouma, ele sonha com a felicidade,
mas Ouma se esquiva e desaparece. Alexis levou muito tempo para compreender que
sua louca busca pelo ouro do Corsário não poderia se resolver senão no fundo de si
mesmo, na sua paixão de viver. O ouro verdadeiro são o mar e as estrelas. O ouro é o
amor. O ouro é sua alma. Esse ouro só se deixa enfim apreender após a redação de um
duro “diário de bordo” em que a paz da beleza sobrepujará a amargura da experiência.

SÍNTESE
DA ANÁLISE DA NARRATIVA À NARRATIVIDADE
A reflexão sobre as formas organizadoras da narrativa é um fenômeno marcante das pesquisas em
ciências humanas desde os anos 1960. Seu primeiro passo levou a desvincular a narrativa de sua dimensão
135

temporal, para reconhecer nela uma estrutura formal a-crônica (posição criticada especialmente pelo
filósofo P. Ricœur).
V. Propp foi o primeiro a apresentar uma análise morfológica de um corpus de contos maravilhosos russos,
depreendendo deles o conceito central de função, que rege a regularidade da narração, e relegando a segundo
plano a noção de personagem. O conjunto das propostas desenvolvidas pelos teóricos, de C. Lévi-Strauss a
A. J. Greimas, passando por R. Barthes, C. Brémond, U. Eco, T. Todorov e muitos outros, está fundado, de
início, sobre a análise crítica do modelo de Propp.
Especialista em etnoliteratura, C. Brémond reverte o primado proppiano da função para conceder a
preeminência à noção de papel, por meio da qual se definem a personagem e as relações entre personagens.
A vasta tipologia das pessoas narrativas que ele elabora, projetando a lógica da intriga sobre a dos papéis,
amplia o campo de aplicação da análise e oferece as condições para uma teoria referencial da ação, mas não
permite dar conta do desenvolvimento da narrativa em si mesma.

Retomando por sua vez o conceito de função, A. J. Greimas depura a formulação e a reduz a um enunciado
sintáxico: uma relação entre actantes regida por predicados. Esforça-se assim por restituir a dimensão
sintagmática própria à dinâmica narrativa, e sobretudo por encerrar a análise dos fenômenos narrativos na
realidade linguageira do discurso, independentemente de seu horizonte referencial (a ação) e de suas
manifestações figurativas. Ele cria, desse modo, as condições para uma teoria narrativa suscetível de
ultrapassar o mero universo das narrativas e de abranger o conjunto das formas de discurso, formulando a
hipótese de que estas são todas igualmente sustentadas por uma arquitetura actancial.

CAPÍTULO 9

Elementos de narratividade

1. O modelo actancial

1.1 O actante

O actante, “peça-chave do teatro semiótico161”, conceito central e polêmico, recebeu em


sua história uma série de redefinições. Ou melhor, sua definição foi várias vezes estabelecida.
Vamos tentar apreendê-lo através dessa diacronia conceitual. Notemos inicialmente que a
introdução do actante ilustra o duplo movimento, dedutivo e indutivo, da análise semiótica:
dedutivo, ele é gerado a partir da sintaxe elementar. Oriundo da sintaxe estrutural da frase
proposta por L. Tesnière, seu emprego foi estendido ao discurso e seu estatuto foi modificado
por esse gesto. Indutivo, a tipologia que ele gera se baseia no exame de corpora empíricos de
narrativas e, sobretudo num primeiro momento, de contos populares. Os diferentes tipos de
actantes são, pois, produtos da práxis cultural dos discursos narrativos.

161
J. -C. Coquet, La Quête du sens. Le langage en question, op. cit., p. 149.
136

1.1.1 A perspectiva do modelo actancial

Mediante redução das dramatis personae do modelo proppiano, Greimas reconhece,


inicialmente, três pares de categorias actanciais. De acordo com o conceito estrutural de
categoria, cada termo é definido apenas por sua relação opositiva com outro termo do mesmo
nível. Esse conjunto é agrupado no modelo actancial bem conhecido, apresentado em
Sémantique structurale.
1. Sujeito - Objeto
2. Destinador - Destinatário
3. Adjuvante - Oponente
Um actante Destinador, actante soberano (rei, providência, Estado, etc.), fonte
e garantia dos valores, transmite-os, por intermédio de um actante Objeto, a um actante
Destinatário: é a categoria da comunicação. O Sujeito (que pode se fundir com o Destinatário)
tem por missão conquistar esse Objeto, “entrar em conjunção” com ele: é a categoria da
busca. Nesse fazer, o Sujeito é contrariado pelo Oponente e apoiado pelo actante Adjuvante: é
a categoria polêmico-contratual.
Esse modelo, resultado da leitura proppiana da narrativa, permanece, no
entanto, muito próximo do universo narrativo de referência, o conto popular. Ele adota sua
perspectiva dominante, que é a do sujeito-herói: este, portador dos desejos e temores do
grupo, encarna os valores sociais de referência. Mas o modelo oculta, ao mesmo tempo, o
percurso do “vilão” (o oponente), que intervém apenas ocasionalmente, para contrariar, no
momento das provas, o percurso do herói e pôr em risco os valores de que este é portador.
Dessa maneira, o modelo permanece preso ao universo axiológico próprio da etnoliteratura,
relacionado exclusivamente com a perspectiva adotada: o conto, por meio do percurso de seu
herói, submete os valores coletivos ao risco da prova com o fim único de reencontrá-los, no
fim da narrativa, consolidados. Ora, como os teóricos da literatura demonstraram (de Lukács e
Bakhtin a Ricœur e Kundera), o romance moderno foi criado quando, com Rabelais e
Cervantes, a narrativa rompeu com a adesão a esses valores, ao adotar a perspectiva de uma
outra personagem central que não aquela que é a priori representativa dos valores coletivos da
esfera social, introduzindo assim a ironia na origem da escrita romanesca da modernidade:
Panurge, por exemplo, em O terceiro-livro, ou Sancho em Dom Quixote.

1.1.2 Actantes posicionais


A fim de livrar-se das coerções típicas de um universo narrativo de referência e
de munir-se de um instrumento de maior alcance, a semiótica foi adotando progressivamente
uma segunda fórmula do dispositivo actancial. Substituindo a precedente, ela se apresenta
como um sistema mais depurado, mais abstrato e geral, reduzido a três posições relacionais: a
do sujeito (em relação com seus objetos valorizados), a do destinador (em relação com o sujeito-
destinatário que ele manipula e sanciona levando em conta os valores investidos nos objetos),
a do objeto (mediação entre o destinador e o sujeito).
Um segundo dispositivo se esboça, paralelo, simétrico e inverso ao modelo
centrado no sujeito, o do anti-sujeito. Estabelecendo uma relação de oposição com o sujeito, o
anti-sujeito se pauta por valores inscritos na esfera de um antidestinador. A dimensão
polêmica se acha, assim, instalada no centro dos processos narrativos. Os dois actantes
137

tendem a se encontrar e se enfrentar, seja de maneira conflituosa (pela guerra ou pela


competição), seja de maneira contratual (pela negociação e pela troca).
Adjuvante ou oponente desapareceram: o primeiro foi incluído na esfera do
destinador, que ele representa quando intervém na narrativa, assumindo assim seu papel
actancial; o segundo foi incluído na esfera do anti-sujeito. A introdução dessa “esfera”
modifica sensivelmente a representação dos universos narrativos: ela não apenas evidencia a
estrutura polêmica subjacente a todo desenvolvimento narrativo, manifestada sob a forma do
contrato ou do conflito, mas sobretudo mantém aberta a passagem de um pólo a outro (o
contrato abafa o conflito latente, o conflito se resolve em contrato). Ela exibe, dessa maneira,
o desdobramento dos percursos narrativos aquém de qualquer assunção de valores (o
percurso pode estar ligado à perspectiva do destinador ou à do antidestinador). A noção de
perspectiva, liberada da filiação a um universo axiológico de referência, assume então o seu
verdadeiro sentido (cf. cap. 4). Uma narrativa pode selecionar, como percurso central, o de
Sherlock Holmes ou o de Arsène Lupin...

1.2 O programa narrativo

O programa narrativo (PN) é a estrutura sintáxica elementar que vem


“musicar” o paradigma actancial, pela relação entre o sujeito e o objeto, instaurados assim
como hiperactantes. Ele constitui um algoritmo de transformação dos enunciados narrativos.
Acabamos de identificar seus predicados fundamentais na análise do texto de Le Clézio.
Vamos agora examiná-lo mais de perto. O programa narrativo articula dois enunciados
básicos: os enunciados de estado e os enunciados de fazer. Estes têm a função de transformar
os estados. Os enunciados de estado, por sua vez, se fundamentam nos predicados
elementares de “ser” e de “ter”. A narrativa mínima se baseia assim na transformação de um
“estado de coisas”, pela privação ou pela aquisição, que resultam de um predicado de ação.
Para compreender esse mecanismo de transformação, é necessário postular dois tipos opostos
de enunciados de estado, definidores da relação que o sujeito mantém com os objetos visados:
ou ele está na posse das qualidades e dos valores inscritos nesses objetos (a beleza, a riqueza, o
reconhecimento...), ou não. O conceito semiótico de junção* define essa dupla relação
elementar: conjunção (quando o sujeito possui o objeto, está conjunto com ele) e disjunção
(quando o sujeito é privado do objeto, está disjunto dele). O programa narrativo* designa
então a operação sintáxica elementar que promove a transformação de um enunciado de
estado em um outro enunciado de estado, pela mediação de um enunciado de fazer. Assim,
por exemplo, estado 1 disjuntivo: Cinderela é pobre (não-ter) e humilhada (não-ser). Ela
encontra o príncipe e casa-se com ele (enunciado de fazer). Estado 2 conjuntivo: Cinderela é
rica e respeitada...
A fórmula estenográfica desse programa narrativo elementar se apresenta da
seguinte maneira:
PN = função (fazer) (S1(sujeito do fazer) → (S2(sujeito de estado)  O
(objeto-valor))
PN = função (fazer) (S1(sujeito do fazer) → (S2(sujeito de estado)  O
(objeto-valor))
O programa narrativo é uma função (um fazer) pela qual um sujeito de fazer
(S1) faz com que um sujeito de estado (S2) se torne disjunto () de um objeto ao qual estava
138

conjunto (), ou vice-versa. Os dois actantes-sujeitos (de fazer e de estado) podem ser
manifestados por dois atores distintos (pensemos no caso da “dádiva”, por exemplo), ou por
um só e mesmo ator (pensemos no caso do “roubo”).
O PN se apresenta como uma fórmula elementar que as estruturas das narrativas efetivadas
desenvolvem, complexificam e hierarquizam a seu bel prazer. Poderemos, assim, distinguir as
narrativas de aquisição de valores e as narrativas de perda. A tipologia dos programas narrativos
convida, além disso, a hierarquizar o programa de base, ou programa principal, e os programas de
uso, ou programas secundários: o cumprimento destes é necessário à realização do primeiro. A
análise narrativa propõe, assim, uma fórmula sintáxica genérica dos meios e dos fins, conferindo-lhe
alcance maior na análise dos discursos da ação, e reintroduzindo neles, dessa maneira, sua
orientação teleológica.

2. O esquema narrativo

O programa narrativo modeliza a estrutura elementar da ação. Esta se inscreve numa


série de seqüências que, bem entendido, não é obrigatoriamente circular. A fim de tornar
perceptível o fato de que o encadeamento das ações postas na narrativa tem um sentido e de
que uma intencionalidade aí se delineia a posteriori, Greimas evidenciou a existência de um
quadro geral da organização da narrativa, quadro cujo alcance é, quando não universal, pelo
menos transcultural: o “esquema narrativo canônico”.
O termo esquema, tomado de Hjelmslev, é essencial na concepção semiótica da
linguagem. Designa, de maneira geral, a representação de um objeto semiótico reduzido às
suas propriedades essenciais. Mais precisamente, Hjelmslev reformula assim a célebre
dicotomia saussuriana Língua vs Fala, propondo Esquema vs Uso. O esquema se define então
como uma combinatória aberta, um sistema, em cujo interior o uso seleciona combinações
particulares. O uso é o que as comunidades lingüísticas, bem aquém da fala individual, fazem
com as disponibilidades do sistema que a língua oferece. Assim, quer se trate de língua, quer
de discurso, o esquema está aberto a uma infinidade de possibilidades, ao passo que o uso
realiza, entre essas possibilidades, um conjunto relativamente fechado de combinações
efetivamente produzidas no interior de uma dada área lingüística e cultural. Fechamento do
uso, abertura do esquema: essa concepção se aplica ao domínio particular da organização
narrativa.

2.1 A formação do esquema narrativo

2.1.1 Esquema 1: as três provas


Da mesma forma que para o actante, a gênese e as diferentes etapas da formulação do
esquema narrativo são esclarecedoras. De início, trata-se de depreender das 31 funções de
Propp princípios lógicos mais elementares de arranjo. A regularidade procurada surgiu com a
iteração de três provas que reúnem os conjuntos de funções: prova qualificante, prova
decisiva, prova glorificante.

1 2 3
139

Seqüencializa Prov Prov Prov


ção a a a

das provas quali decis glori


ficante iva ficante

Esse esquema pode ser lido nos dois sentidos: no sentido da sucessão, ele se apresenta
como um percurso do sujeito da busca. Intervém primeiro a qualificação que instaura o sujeito
enquanto tal, depois sua realização pela ação e, finalmente, o reconhecimento que garante o
sentido e o valor dos atos que ele praticou. Lido nesse sentido, o esquema exprime uma
orientação finalizada, uma mirada teleológica, e constitui assim, para Greimas, “um quadro
formal em que vem se inscrever o ‘sentido da vida’”162. Lido no sentido inverso, remontando
da prova glorificante à qualificação, ele exibe uma ordem de pressuposição às avessas, e
conseqüentemente uma intencionalidade reconhecível a posteriori. Essa dupla leitura permite
converter a ordem temporal da sucessão em ordem lógica da conseqüência. O caráter aleatório
da primeira é reinterpretado como um encadeamento causal em relação à segunda. Essa
causalidade é considerada como um dado de raciocínio lógico, embora proceda antes de uma
ritualização estereotipada. É nela que se firma, não obstante, a impressão de coerência
narrativa que renova o antigo entimema da retórica: Post hoc, ergo propter hoc, “depois disso,
portanto em razão disso”.

2.1.2 Esquema 2: a moldura contratual


Nessa formulação inicial, o esquema narrativo conserva a marca dos corpora da
etnoliteratura, que especifica e limita seu emprego. A “glorificação”, por exemplo, termo
figurativo, é apenas uma manifestação possível de um fenômeno mais geral de
reconhecimento do ato praticado. Um termo mais amplo poderá ser escolhido para denominá-
la: “sanção”. Ela pode ser positiva (gratificação) ou negativa (reprovação), pragmática
(recompensa ou punição) ou cognitiva (elogio ou censura). Da mesma maneira, constatamos
que o conjunto do esquema narrativo está, por assim dizer, emoldurado por uma estrutura
contratual. Inicialmente, um contrato entre o Destinador e o sujeito fixa os valores e a missão,
o sujeito adquire as competências (conhecimentos, meios de agir, etc.) para executar a ordem e
cumprir seu compromisso, realizando a ação (a performance propriamente dita), até que o
Destinador, no fim do percurso, verifique a conformidade da ação cumprida às condições do
contrato, e retribua ou puna, trazendo assim sua contribuição ao contrato inicialmente
estabelecido. As grandes seqüências desse modelo ideológico que é o esquema narrativo
apresentam-se então como segue:
contrato competência performance sanção
  

Uma distribuição das relações actanciais é agora reconhecível em cada etapa do esquema: o
contrato põe em relação o Destinador-manipulador e o sujeito; a competência põe em relação o
sujeito e o objeto; a performance põe em relação o sujeito e o anti-sujeito em torno do objeto-valor;
a sanção, enfim, restabelece o contato entre o sujeito e o Destinador, que desempenha agora um
papel de julgador.

162
A. J. GREIMAS e Joseph COURTÉS, Dicionário de Semiótica, São Paulo, Cultrix, s/d [1983], p. 298.
140

2.1.3 Esquema 3: as esferas semióticas autônomas


Uma última etapa, extrema generalização na apresentação do esquema narrativo, consistiu
em explicitar os grandes conjuntos semióticos que ele recobre e que são analisáveis, como veremos,
em termos de estruturas modais. Desligamo-nos, agora, do imaginário narrativo propriamente dito,
o do encadeamento orientado das ações e dos acontecimentos. Mas, se nos interessamos menos
diretamente pela dimensão teleológica do esquema, é para melhor depreender os domínios de
articulação relativamente autônomos das significações narrativas, para isolar grandes esferas
semióticas reconhecíveis em todo tipo de discurso, mesmo localizadas de forma fragmentária, bem
além da narrativa propriamente dita. Assim, três grandes domínios semióticos se delineiam:

Manipulação  Ação  Sanção

O contrato pode ser inserido na esfera mais geral da “manipulação”. Esse termo, sem
qualquer conotação pejorativa, designa mais fundamentalmente o campo da factividade: o fazer-
fazer, que pressupõe um fazer-crer, um fazer-querer ou dever, um fazer-saber e um fazer-poder.
Dessa maneira, o Destinador-manipulador pode ser tanto o que manda (como o rei Artur), quanto
o que promete, o que incentiva ou o que desafia, o que lisonjeia ou o que seduz... O Destinador não
é mais uma figura actancial a priori, realizada nos papéis fixos da tradição cultural (Deus, rei, pai,
etc.), ele é construído pelos enunciados modais (factivos) que assume e que o definem, sem por isso
fixá-lo nessa posição: todo e qualquer ator pode encontrar-se em posição modal de Destinador e,
inversamente, um soldado, um pai ou um chefe de Estado podem ver sua função de Destinador
fragilizada ou instabilizada em razão de uma simples perda modal (a perda de confiança, por
exemplo)... Dessa maneira, o contrato é visto como uma dupla manipulação entre dois sujeitos que
ajustam e negociam seu /fazer-crer/ em função dos valores em jogo.
A competência e a performance se inserem na esfera mais geral da “ação”. É o fazer,
pragmático ou cognitivo, que a caracteriza, assim como as condições requeridas para seu exercício.
Seu desafio é o “fazer-ser” (definição do ato), que consiste em estabelecer um novo estado de
coisas. Ele põe frente a frente o sujeito que age e o anti-sujeito que lhe opõe uma resistência, numa
confrontação da qual resulta a aquisição ou a perda dos valores.
A “sanção”, pondo em cena, e em jogo, um Destinador particular (julgador, avaliador),
também representa uma esfera semiótica relativamente autônoma. O Destinador da sanção é então
dotado, ou supostamente dotado, de um saber verdadeiro e do poder de fazê-lo valer. Assim como
certas configurações específicas fazem parte da manipulação, tais como a sedução, a provocação ou
o desafio, aqui também as figuras da sanção podem ser isoladas: os discursos de elogio ou de
censura, por exemplo, recobertos pelo gênero epidíctico da retórica clássica, pressupõem, para a
validade de seu exercício, a posição actancial de poder ou de legitimidade do sujeito que os enuncia.
Na falta de um sujeito “autorizado”, o discurso da sanção perde toda eficácia veridictória, como
acontece freqüentemente.

2.2 Esquema narrativo, interação e argumentação


Nesse último estágio de formulação, constatamos que o esquema narrativo modificou
sensivelmente seu estatuto inicial e aumentou consideravelmente seu alcance. Longe de ser apenas
um dispositivo organizador dos textos narrativos, ele aparece daqui em diante como um modelo
geral de interação. O que ele esquematiza não é mais a narrativa, mas a própria comunicação entre
os homens, da qual a narrativa é uma das formas privilegiadas de manifestação. E, longe de ser um
simples esquema da comunicação (como os da lingüística clássica), ele implica, pelo dispositivo de
seus papéis, a focalização e os efeitos programados do discurso em ato. Esses focos e esses efeitos
141

são constitutivos do próprio esquema. É por essa razão, a nosso ver, que é tão fácil comparar os
grandes gêneros retóricos tradicionais com as esferas semióticas assim isoladas, e integrá-los nelas:
vimos que o epidíctico fazia parte da sanção cognitiva; à sanção pertence também o gênero
judiciário, cuja função é estabelecer a verdade de ações realizadas no passado. Como escreve
Aristóteles, “a acusação ou a defesa incide sempre sobre fatos pretéritos” 163. Quanto ao gênero
deliberativo, que tem a propriedade de antecipar e projetar as realizações futuras, pertence
evidentemente à esfera da manipulação. A deliberação, que compreende a exortação e a dissuasão, é
um jogo contratual entre sujeitos manipuladores que exercitam o fazer-crer. Assim emoldurada pela
manipulação e pela sanção, a ação, em si mesma, fica como que incrustada no sentido.
Percebe-se, assim, que a teoria semiótica da narratividade, longe de se ater somente ao campo
da narrativa, apresenta-se como um modelo possível para uma teoria geral do discurso; e na
rivalidade que tem freqüentemente oposto os teóricos sobre a questão de considerar o narrativo ou
o argumentativo como a forma mais fundamental do discurso, os antagonistas poderiam
perfeitamente ter tanta razão uns como outros. Vemos, com efeito, que a narrativa pode estar, e
talvez esteja sempre, a serviço da persuasão, mas que, inversamente, a argumentação, no exercício
de seus papéis, de suas estratégias e de suas funções essenciais, segue os princípios mais elementares
da narratividade. Não há nada de espantoso em aceitarmos a idéia de que as estruturas e as relações
entre actantes, reconhecíveis no interior do discurso enunciado, são as mesmas que estruturam a
realidade enunciativa das interações. A narrativa é uma cenografia exemplar do discurso em ato.

2.3 Dimensões pragmática, cognitiva e patêmica


Considerando o corpus das narrativas da tradição oral que permitiram, originalmente, a
elaboração do esquema narrativo, pode-se pensar que o modelo se prende exclusivamente à
análise dos discursos dos sujeitos que agem e que a semiótica narrativa é, de uma maneira ou
de outra, uma teoria da ação. Os desenvolvimentos do esquema narrativo mostram que esse
âmbito limitado foi rapidamente ultrapassado. Essa extensão dos seus campos de aplicação
faz-nos discernir três períodos no desenvolvimento da reflexão semiótica sobre a
narratividade. Eles levaram ao reconhecimento e à identificação de três grandes dimensões
distintas do discurso suscetíveis de serem assumidas pelos modelos narrativos. Essas
dimensões – pragmática, cognitiva e patêmica – formam conjuntos ao mesmo tempo
autônomos e solidários, unidos entre si pelas mesmas abordagens e pelos mesmos princípios
de análise.
- A dimensão pragmática*: designamos assim a semiótica da ação propriamente dita,
colocando em cena e em comunicação sujeitos somáticos e objetos concretos (tesouros
ocultos, princesas arrebatadas, territórios a conquistar, homicídios, etc.); essa dimensão é
centrada sobretudo nos corpora de tipo etnoliterário (narrativa mítica, conto maravilhoso),
literário (romance de cavalaria, mas também romance, novela, etc.) ou jornalístico
(reportagem, fatos do cotidiano, etc.). O emprego que se faz aqui do termo “pragmática” deve
ser distinguido do conceito de “pragmática”, que designa a disciplina cujo objeto é a análise da
linguagem em ato e como ato.
- A dimensão cognitiva*: estudamos agora a narrativização dos saberes, fundada sobre o
fato de que, numa narrativa dada, basta que dois atores não disponham de um mesmo saber
sobre os objetos, para que esse saber torne-se objeto de valor (secreto, ilusório, mentiroso,
verdadeiro: a problemática da veridicção), e portanto um desafio narrativo. Centrada na
proeminência desse parâmetro modal (o percurso do saber), a dimensão cognitiva se
desenvolveu nas narrativas literárias (especialmente a escrita romanesca do século XIX, com o

163
Aristóteles, Arte retórica e arte poética, trad. Antônio Pinto de Carvalho, São Paulo, Difusão Européia do
Livro, 1964, p. 30.
142

espaço cada vez maior conquistado pela descrição, englobando a ação e até mesmo
sobrepondo-se a ela).
- A dimensão patêmica*, por fim: mais recente direção de pesquisa da semiótica, essa
dimensão diz respeito à modulação dos estados de alma. Está ligada à narratividade pela
sintaxe modal, mas dela se destaca profundamente, na medida em que busca descrever, não
mais a transformação dos estados de coisas, de unidades discretas em unidades discretas, isto
é, dentro de um universo de sentido descontínuo, mas a variação contínua e instável dos
próprios estados dos sujeitos. Essa terceira dimensão constitui o objeto da semiótica das
paixões.

2.4 Os percursos actanciais

Como demonstram as diferentes versões do esquema narrativo, são exatamente os percursos


narrativos dos principais actantes que aí estão delineados. A manipulação (ou o contrato) e a sanção
(ou o reconhecimento), emoldurando o esquema, manifestam os percursos do Destinador. Mas ele
também está presente na ação sob a forma desse antigo papel actancial, evocado mais acima, o do
adjuvante, que acompanha o sujeito ao longo de suas provas como uma figura delegada do
Destinador.

Percurso do Contrato Ação Sanção


Destinador Destinador manipulador Destinador adjuvante Destinador julgador

Cabe propriamente ao sujeito o domínio da ação, quando ele está em busca do objeto e em
luta com o anti-sujeito. Mas o sujeito está evidentemente implicado na manipulação e na sanção: no
primeiro caso, ele é intimado a existir; no segundo, essa existência é confirmada ou invalidada.

Percurso do sujeito Contrato Competência Performance Reconhecimento


(Destor) – Suj Suj – Obj – anti-Suj Suj – (Destor)

Quanto ao objeto, seu percurso está disseminado ao longo dos três domínios, segundo três
modos de existência diferentes: ele está virtualizado no interior da manipulação, quando os valores
que representa o fazem ascender à existência; está atualizado na ação, quando é visado pelo sujeito
da busca; está realizado na sanção, quando se torna o critério segundo o qual a ação do sujeito é
avaliada. Esses diferentes modos de existência do objeto dependem, como vemos, das relações
particulares que o actante mantém com o valor nele investido.
São esses diferentes percursos que vamos examinar agora de maneira mais precisa, por meio
das análises textuais concretas, depois de apresentar a terceira e última definição do actante: não
mais sob a forma de um modelo actancial cristalizado, nem somente como estrutura posicional, mas
em termos de sintaxe modal.
143

Síntese
ELEMENTOS DE NARRATIVIDADE

A teoria das formas narrativas do discurso (ou narratividade) deve ser diferenciada da teoria da narrativa (ou
narratologia): os modelos que esta elaborou, deixando de lado, pouco a pouco, os corpora narrativos iniciais, permitem
construir uma sintaxe geral do discurso, aplicável à análise de textos não narrativos.
A peça-chave da gramática narrativa é o actante. Sua elaboração progressiva, no cruzamento das dramatis
personae de Propp com os actantes sintáxicos de Tesnière, permitiu o estabelecimento de um dispositivo actancial
simples, constituído por três actantes: o Destinador, o sujeito e o objeto. Ao percurso do sujeito se opõe, simétrica e
paralelamente, o do anti-sujeito, responsável pela estrutura polêmica (ou contratual) da narrativa. Posteriormente, o
actante será definido em termos de composição modal (Cf. cap. 10).
O programa narrativo constitui a operação sintáxica elementar da narratividade. Ele garante a transformação
de um enunciado de estado inicial (o sujeito está disjunto do objeto, por exemplo) em um enunciado de estado final (o
sujeito está conjunto com o objeto) pela mediação de um enunciado de fazer. A estrutura de um texto narrativo
apresenta uma arquitetura complexa de programas, que podem ser repetidos (de revés em revés para chegar ao êxito,
marcando assim a dificuldade da prova), intercalados (um programa pode ser suspenso ou desviado pela realização de
outros programas), hierarquizados (a realização de um programa “de base” pode exigir, para se cumprir, a realização de
programas intermediários, ditos “de uso”).
O crivo cultural da organização narrativa, depositado na memória coletiva pela tradição sob forma de
“primitivo”, contextualiza os programas num esquema canônico de alcance geral, que ordena seu percurso e orienta
suas finalidades: o esquema narrativo. Nele se introduz uma representação imaginária do “sentido da vida”. Ao longo de
reformulações sucessivas, esse esquema, inicialmente muito próximo do universo dos contos populares (sob forma de
três provas: qualificante, decisiva, glorificante), foi ampliado para quatro seqüências de alcance mais geral (contrato,
competência, performance, reconhecimento), ordenadas segundo uma dupla leitura: de sucessão (da esquerda para a
direita) e de pressuposição (da direita para a esquerda).
A última formulação desse modelo em três esferas semióticas (manipulação, ação, sanção) permite, além dos
universos narrativos, considerá-lo como um esquema da comunicação, apresentando o dispositivo dos papéis e das
interações essenciais entre os actantes do discurso. Nele se inserem, sem dificuldade, os grandes gêneros da tradição
retórica (deliberativo – no âmbito da manipulação –, judiciário e epidíctico – no âmbito da sanção): o fazer (a ação) está
assim interposto entre as formas de discurso que lhe dão sentido e valor.
Os processos narrativos se desdobram nas dimensões pragmática, cognitiva e patêmica do discurso, dando
lugar, segundo a perspectiva actancial adotada, a diferentes percursos narrativos.
144

CAPÍTULO 10
Percursos actanciais e sintaxe modal

Seguindo a ordem que normalmente adotamos até aqui, a primeira parte deste capítulo
será destinada a uma apresentação teórica; ela mostrará como se passou do dispositivo
actancial à sintaxe modal que o estrutura secretamente, o que nos levará a precisar o estatuto
do conceito de modalidade na semiótica. E a segunda parte, apoiando-se em estudos de textos,
desenvolverá sucessivamente três percursos actanciais “emparelhados”: o do sujeito e do
objeto ( a partir de um texto de C. Cros); o do objeto e do valor ( a partir de um excerto do
Terceiro-Livro de F. Rabelais); o do Destinador e do sujeito (a partir de um excerto de A.
Sefrioui).

1. Da sintaxe actancial à sintaxe modal

1.1 A sintaxe interactancial

As primeiras definições dos actantes tal como acabamos de ver, inscritas num quadro
estrutural, limitavam-se a identificar e definir uma posição actancial pela relação que ela
mantinha com uma outra posição: é a definição interactancial. O Destinador era definido pela
relação com o Destinatário, no eixo da comunicação: o primeiro comunicando ao segundo os
valores, atribuindo-lhe uma missão, por exemplo. O sujeito era definido por sua relação com o
objeto e vice-versa: relação de conjunção e/ou de disjunção, que define o programa narrativo
elementar. Assim, não haveria sujeito sem objeto, nem objeto sem sujeito. Esse conjunto
actancial era por sua vez definido por oposição a um outro conjunto, que fundamentava a
estrutura polêmica da narrativa: o universo do antidestinador e do anti-sujeito.
Essa abordagem, eficiente em textos narrativos simples, passava a ter baixo
rendimento a partir do momento em que os textos a analisar tornavam-se um pouco mais
complexos: ela induzia, nem mais nem menos, a identificar um papel actancial com uma
personagem. E a análise, aparentemente eficaz, corria o risco de uma simplificação abusiva e
de uma excessiva rigidez. Com efeito, como se pode facilmente imaginar, um mesmo ator
pode, no decorrer de uma narrativa, inscrever-se em numerosos percursos, ser Destinador
neste, sujeito naquele, anti-sujeito em outro ou na perspectiva de um outro ator. Um mesmo
papel actancial pode modificar-se durante o percurso, ver-se ampliado ou amputado.
145

Inversamente, um único papel actancial pode ser ocupado por vários atores diferentes, ou por
um ator coletivo (é o caso desse “fofoqueiro povo parisiense”, que vemos em Rabelais).

A distinção entre actante e ator* pode agora ser precisada: o actante é uma pura figura
sintáxica, existe apenas nos programas que o colocam em jogo; o ator – que outros
denominam personagem – é uma figura mais complexa, porque é constituída ao mesmo
tempo de componentes semânticos (de ordem figurativa e temática: um cavaleiro, por
exemplo, que se denomina Percival, etc.) e de componentes sintáxicos: um ou vários papéis
actanciais. De fato, uma «personagem» numa narrativa, que será apenas nomeada, mas não
entrará em nenhum programa de ação, será um puro elemento descritivo. Privada do papel
actancial, ela não constituirá um ator da narrativa.

1.2 A sintaxe intra-actancial: o arcabouço modal do actante

Como, então, dar conta com mais acuidade da diversidade e da flutuação desses
percursos actanciais, quer se trate do percurso do sujeito, do objeto ou daquele que é
aparentemente o mais estável de todos, o Destinador? É aqui que intervém a problemática das
modalidades*. Ela permite encarar o actante mais de perto, não mais somente na sua relação
com outros actantes, mas nas relações constituintes de seu estatuto, que são os componentes
modais. Nossa hipótese será, então, seguindo nesse aspecto J. -C. Coquet, que “uma vez que
as modalidades formam o suporte constante do discurso, uma dimensão modal caracteriza
cada divisão do universo da significação e o actante, peça-chave do teatro semiótico, é
definido pelo seu modo de junção modal”164. Em outras palavras, apenas seu “equipamento”
modal e as articulações dessas modalidades (querer, dever, saber, crer, poder, fazer e ser)
permitem descrever a cada instante o que define o actante, sua composição, sua posição, seu
papel e seu estatuto. Foi assim que se passou de uma definição interactancial do actante a uma
definição intra-actancial. Para esclarecer essa abordagem, é preciso fazer uma rápida passagem
pela concepção semiótica das modalidades.

2. A modalidade em semiótica

2.1 Modalidades semióticas, entre lingüística e lógica

2.1.1 Lingüística e semiótica

164
J. –C. Coquet, La Quête du sens, op. cit., p. 149.
146

A lingüística analisa os verbos modais (verbos que podem ser seguidos por um outro
verbo no infinitivo, como querer, dever, poder, etc.) e mais amplamente as expressões modais
de todo tipo, incluindo as formas verbais dos “modos”, que definem a atitude do sujeito
enunciador com relação a seu enunciado (modalidades apreciativas, por exemplo, ou
epistêmicas – certeza, eventualidade, incerteza, etc.). A semiótica, dedicando-se apenas aos
predicados modais que se manifestam na superfície do texto, situa a modalidade em um nível
mais geral e abstrato: ela fala em “valores modais”. Assim, o /saber/ ou o /poder fazer/ de
um sujeito podem ser expressos por predicados de “saber” e de “poder”, mas igualmente por
atores ou objetos figurativos, que vão dotar o sujeito da competência correspondente; as
“túnicas brancas” do texto de Sefrioui, que iremos examinar adiante, dotando o herói de um
/poder fazer/, participarão da constituição de sua competência modal. Essa acepção ampliada
da modalidade permite também compreender como um valor modal pode, ao lado dos valores
descritivos, ser instalado como um objeto nos propósitos do sujeito: ele pode querer poder,
por exemplo.

2.1.2 Lógica e semiótica

A proximidade entre lógica e semiótica, já mencionada, diz respeito especialmente à


arquitetura da estrutura elementar da significação e à articulação das modalidades, dois
conjuntos conceituais cujas primeiras formulações remontam a Aristóteles. A lógica modal se
aplica a descrever, a montante do discurso natural, o funcionamento de relações
interproposicionais “puras” e formalmente calculáveis, independentemente da realidade do
discurso e dos valores que nele se entrecruzam; ora, é disso precisamente que tenta dar conta a
sintaxe actancial. À semiótica modal interessa, com efeito, o que se trama na própria
organização discursiva. A modalidade não pode então ser pensada independentemente da cena
actancial, isto é, da competência modal dos sujeitos do fazer, envolvidos na interação, e da
existência modal dos objetos de valor que define, por meio de suas variações, o estatuto do
sujeito de estado.
Assim, por exemplo, a lógica deôntica (do grego “dever”) vai se dedicar a determinar a
boa formação das regras da “obrigação” (que obrigam, por exemplo, a rejeitar a proposição
“se é obrigatório que p, então p”, considerando a precariedade de qualquer norma165),
enquanto a semiótica especificará o obrigatório como “prescrição”. A nuança é importante.
No primeiro caso, o termo designa estritamente o caráter deôntico de uma relação entre
sujeitos abstratos, no segundo, faz aparecer o ambiente hierarquizado que essa modalidade
implica: de um lado, o sujeito que está diante do dever fazer, que o “experimenta” e o “sente”,
e, do outro, o Destinador, fonte da prescrição, que caracteriza um /fazer/ factitivo (ele faz
fazer). Da mesma forma, o /dever ser/ da lógica modal indica o caráter “necessário” de um
predicado que une um sujeito a um objeto (“a água ferve a 100 graus”), ao passo que na
semiótica essa mesma modalidade recairá sobre o próprio objeto de valor, considerado, por
conseguinte, como “indispensável” para o sujeito de estado, isto é, para o ser do sujeito.
A distinção entre “verdade” e “veridicção” ilustra também claramente a diferença de
abordagem e de projeto que separa a semiótica da lógica modal. Esta última fundamenta seus

165
Cf. J. –L. Gardiès, Essai sur la logique des modalités, Paris, PUF, 1979, pp. 27 e 89.
147

cálculos nos valores de verdade (verdadeiro ou falso) para avaliar a validade das relações entre
proposições formuladas no absoluto (por exemplo, se p, então q), ao passo que a semiótica
fundamenta sua descrição na realidade contingente e cultural dos discursos. Ela se atém a
determinar não as relações entre proposições modais consideradas em sua “pureza” formal,
mas as relações efetivas entre os actantes envolvidos na cena discursiva. O jogo se baseia na
competência modal dos sujeitos e na existência modal dos objetos. É o aspecto principal da
distinção entre verdade e veridicção. O semioticista, escreve Greimas, “não fica à vontade com
as modalidades do verdadeiro e do falso, sobretudo quando estas se referem a uma realidade
que não a lingüística, já que a sua concepção de linguagem não lhe permite encará-la sem lhe
ter antes conferido um estatuto semiótico. Ele precisaria de uma lógica lingüística que tratasse,
por exemplo, da mentira e do segredo, da astúcia e da sinceridade no mesmo plano que a
verdade e a falsidade”.166 É essa homogeneização que o modelo da veridicção propõe articular,
reinscrevendo o sujeito, os valores e as estratégias do saber em uma mesma problemática.

2.2 As estruturas modais

A modalidade na semiótica se prende, portanto, a essa grande problemática que


interessa igualmente à lingüística e à lógica. A despeito das diferenças de abordagem que
acabamos de sugerir, podemos considerar que essas três disciplinas se unem em uma definição
de modalidade com uma mínima base em comum: é denominado modal um predicado que modifica
outro predicado. O predicado modal opõe-se portanto em bloco ao predicado descritivo. Assim,
“eu canto” é um predicado descritivo, e em “eu quero, eu sei, eu posso cantar”, os três
predicados que determinam “cantar” são predicados modais.
Um critério simples, na lingüística, permite identificar os verbos modais: podem ser
seguidos de um verbo no infinitivo. Na realidade, a lingüística da enunciação remete mais
amplamente à problemática das modalidades tudo o que marca a relação que o sujeito da
enunciação mantém com seu enunciado. A avaliação, por exemplo: “ele canta magnificamente
afinado, ou completamente desafinado, etc.” Assim, a modalidade designará, como na lógica,
tudo o que modifica a inerência do sujeito a seu enunciado.
Na semiótica, as modalidades foram definidas de maneira um pouco diferente, em
relação a seu próprio objeto, o discurso. Fundamentando-se na definição básica do predicado
modal, a semiótica encara a modalidade não mais apenas na superfície dos enunciados
produzidos, mas em um nível mais abstrato, o da gramática actancial. A partir daí, o sujeito e
os predicados que lhe interessam não são mais unicamente os sujeitos da fala (ainda que eles
entrem no seu campo), mas os próprios actantes . E as modalidades não serão mais limitadas
às manifestações dos verbos modais “querer”, “poder”, etc., mas aos valores modais induzidos
por enunciados de toda natureza. As barras oblíquas (/querer fazer/, /fazer crer/, etc.)
servem para precisar que se trata de valor modal.
Compreende-se agora que um actante sujeito se encontre definido por uma seqüência
modulável de modalidades ao longo de seu percurso. Um sujeito de plenitude poderá ser
definido conjuntamente pelo /querer fazer/, pelo /dever fazer/, pelo /saber fazer/ e pelo
/poder fazer/... Mas um sujeito problemático será caracterizado por contradições e

166
A. J. Greimas, Du Sens, Paris, Seuil, 1970, p. 11. [N. dos T.] Nesse trecho, recorremos ao original.
148

confrontações modais: /querer fazer/ e /poder fazer/, mas /dever não fazer/, como a mulher
do Barba Azul, por exemplo.

2.3 A organização modal

2.3.1 Organização paradigmática

A colocação das estruturas modais no quadrado semiótico já foi realizada no caso


particular da veridicção, que é uma modalização dos enunciados. Examinaremos a seguir o
papel mais geral das modalidades na estruturação do discurso. Entretanto, como é por meio
dessas estruturas modais que aparece mais nitidamente a ligação entre o quadrado semiótico e
as categorias de Aristóteles, das quais se originou167, parece útil indicar aqui o seu princípio.

Aceitemos, pois, definir sumariamente uma modalidade como um enunciado que modifica
outro enunciado. A lista das modalidades fundamentais é limitada: “dever”, ou “querer”, ou
“saber”, ou “poder”, que modificam (modalizam) os enunciados de “fazer” ou de “ser”, ou
então “fazer” que modaliza “fazer”(“fazer fazer”) e, em conseqüência, todas as outras
modalizações do fazer (fazer querer, crer, saber, etc.). Essas modalidades podem igualmente
combinar-se entre si (“querer saber”) ou modalizarem-se a si próprias (“querer querer”). Não
é difícil entender que elas também são suscetíveis de receber uma definição categorial com
ajuda do quadrado, desde que se aplique a dupla regra da asserção e da negação,
alternativamente, a cada um de seus enunciados constitutivos.

A asserção simultânea do modalizante e do modalizado dá, por exemplo, /dever fazer/; a


negação apenas do modalizado dará /dever não fazer/; a negação do modalizante e a asserção
do modalizado dará /não dever fazer/; e a negação dos dois enunciados dará enfim /não
dever não fazer/. Serão contrários os enunciados que baseiam sua identidade parcial sobre o
modalizante (/dever/, por exemplo, estabelecendo então o eixo semântico da “prescrição”,
positiva no caso de “obrigatório”, negativa no caso de “interdito”); serão contraditórios os
enunciados que negam o enunciado modal regente, passando do /dever/ ao / não dever/ ou
inversamente. No caso das modalidades deônticas, que concernem às regras do dever
aplicadas à ação, representar-se-á assim o modelo global:

Pres
crito

Obri Proibi
gatório do
Dever Dever
167
fazerII, “Da interpretação”. Trad. Pinharanda Gomes, Lisboa,não
Aristóteles, Organon, fazer Editores, 1985.
Guimarães
É nesse texto célebre que se encontra a teoria aristotélica das proposições modais, à qual se referem as
lógicas modais, a lingüística e a semiótica das modalidades. Essa teoria assenta sobre o desdobramento
proposicional que, opondo-se à proposição simples, resulta em dois predicados: o modus e o dictum; o
primeiro enunciando um juízo sobre o segundo. Por exemplo, “é possível”(modus) “que isso seja”(dictum)
(Ver sobretudo páginas 154-174).
149

Não Não
proibido obrigatório
Permitido Não Facultati
Não dever prescrito vo
não fazer Não dever
fazer

Tal representação lógica pode permitir, entre outras aplicações, estruturar um campo
lexical tão rico e tão complexo quanto o das qualificações deônticas. Além da antonímia
(obrigatório opõe-se de duas maneiras diferentes ao facultativo e ao interdito) e da
parassinonímia (obrigatório, imperativo, etc.), ela mostra: (1) a composição modal subjacente a
esse campo lexical (permitindo assim resolver ambigüidades: o necessário, muitas vezes
comparado ao obrigatório, é da ordem do /dever ser/); (2) a “memória” semântica das
posições contraditórias (o facultativo pressupõe o obrigatório negando-o, e o permitido
pressupõe da mesma forma a existência do proibido); (3) o caráter gradual, e não categorial, de
certas qualificações (o “tolerado”, situado entre o permitido [ou autorizado] e o proibido,
manifesta em seu enunciado a presença iminente e atualizável da interdição: “estacionamento
tolerado sobre a calçada”).
Poderíamos examinar nas narrativas a produtividade das confrontações modais,
quando diferentes modalidades, compatíveis ou incompatíveis, encontram-se convocadas
simultaneamente para definir a competência de um sujeito. Quando o campo do /dever fazer/
de um sujeito, por exemplo, acha-se confrontado com o do /querer fazer/, o do /saber fazer/
e o do /poder fazer/. As aplicações são numerosas, tanto no domínio coletivo para a
compreensão dos valores culturais e sua eventual confrontação (entre as normas, as tolerâncias
e a realidade das práticas), quanto no domínio individual, para a análise dos atores da narrativa,
por exemplo. Figura irênica daquele que deve, que quer, que sabe e que pode, tudo ao mesmo
tempo. Mas figura dilacerante daquele que, submetido à proibição, deve não fazer, porém,
submetido ao desejo, quer fazer e, dotado de meios pelo Destinador, pode fazê-lo...Essa
organização paradigmática permite, portanto, definir a identidade modal dos actantes,
apreendidos e “imobilizados” em um determinado ponto de seu percurso.

2.3.2 A organização sintagmática


150

A organização modal apresenta-se, na realidade do discurso, em flutuação contínua.


Os actantes vêem sua carga e sua definição modais sempre modificadas, enriquecidas ou
alteradas. A organização sintagmática é, portanto, responsável pela forma evolutiva do actante
ao longo do seu ou dos seus percursos, pela modificação de sua identidade segundo a
perspectiva utilizada: um dado ator poderá, dessa forma, encontrar-se em posição actancial de
Destinador em seu percurso A e simultaneamente em posição de anti-sujeito em um percurso
B, ou de sujeito em um percurso C. O enfoque sintagmático tem, pois, como especificidade, a
consideração da “história transformacional do actante”168. A análise, dando preeminência à
composição modal sobre o próprio actante, apresenta-se então como um exercício de sintaxe
modal. É o tipo de análise que posteriormente aplicaremos no estudo de um breve excerto de
A. Sefrioui (cf. mais adiante).
A montante do percurso sintagmático e de suas transformações no decorrer do texto,
J. -C. Coquet propõe uma tipologia dos actantes básicos em função da seqüência modal
hierarquizada que os define. Ele distingue, assim, particularmente, o sujeito de busca e o sujeito de
direito. O primeiro é definido por uma seqüência modal cuja primeira modalidade é o
/Querer/, sendo as outras modalidades (/poder/ e /saber/) sucessivamente regidas por
aquela. O sujeito de direito, em contrapartida, baseia primeiramente sua identidade sobre o
/Saber/ (ele assume uma competência, legitimada por um programa previamente realizado),
numa seqüência em que o /saber/ rege o /poder/ e por fim o /querer/.

2.3.3 Os percursos modais do sujeito da enunciação

Voltemos um instante à veridicção (cf. acima, cap. 7, {p.........??? – 151 no original}).


Essa modalidade inscreve-se, como um componente, no interior do vasto campo das
modalidades que regem as relações complexas entre os sujeitos e os objetos de conhecimento.
Da presença à ausência, da assunção ao apagamento, o sujeito do saber modula suas atitudes.
Tais variações são particularmente manifestadas no discurso científico, em que a debreagem
actancial inicial permite, como escreveu Greimas, a “camuflagem do sujeito da enunciação”. A
identificação ilusória dos participantes da comunicação científica (enunciador e destinatário)
“explica o aparecimento primeiro de um ‘nós’, subsumindo as duas instâncias da comunicação,
que passa facilmente a um 'se', exprimindo qualquer sujeito do discurso, para culminar no
desaparecimento do sujeito com os ‘é verdade’ e ‘é preciso”169. Essa operação, que garante a
“transmissibilidade generalizada” do discurso científico, realiza-se segundo um percurso modal
que mobiliza e entrecruza as modalidades veridictórias, as modalidades epistêmicas e as
modalidades aléticas. A questão do saber, encarada em suas relações predicativas, reencontra
assim esses três conjuntos modais, por meio dos quais ela se regula.

As modalidades aléticas, de início, articulam o necessário (/dever ser/) e o contingente


(/dever não ser/), o impossível (/não dever ser/) e o possível (/não dever não ser/). Estão
centradas exclusivamente nas condições de existência do objeto e no enunciado das relações
entre as coisas, independentemente de qualquer sujeito, e válidas para todos. Designam a
objetivação do saber.

168
J. -C. Coquet, Le Discours et son sujet, 1, Paris, Klincksieck, 1984, p. 69.
169
A. J. Greimas, Semiótica e Ciências sociais, trad. Álvaro Lorencini e Sandra Nitrini, São Paulo, Cultrix,
1981, p. 28.
151

As modalidades epistêmicas, em seguida, exprimem a relação que o sujeito cognitivo mantém


com seu objeto de conhecimento, sob a forma do juízo que faz a respeito dele, e a força de
seu engajamento no enunciado. Ele o julga certo (/crer ser/) ou improvável (/crer não ser/),
provável (/não crer não ser/) ou incerto (/não crer ser/). Tais modalidades marcam os modos
de assunção do saber pelo sujeito.

As modalidades veridictórias, enfim, referem-se ao saber compartilhado ou não, isto é, às


relações entre os sujeitos a respeito dos objetos que estão no seu horizonte de conhecimento
comum. Elas inscrevem o saber em uma relação intersubjetiva, contratual ou polêmica.
Vemos assim que, da alética à epistêmica, e da epistêmica à veridictória, é um
verdadeiro percurso que se delineia. O do discurso científico consiste em apagar a veridicção
para afirmar o alético, que é o único que fundamenta a verdade nas coisas em si, impondo-as
como necessidade, como evidência, ou como produto de um cálculo. A ciência, tornando-se
sujeito, parece fazer-se por si mesma. Mas trata-se na verdade de uma estratégia persuasiva,
que convida a reconhecer, a contrario, a “preeminência dos julgamentos epistêmicos sobre os
julgamentos aléticos”170 e, mais amplamente, o enquadramento deles pelas estratégias e
motivações da veridicção. A análise do discurso mostra que “no processo da [sua] produção, a
introdução do plano das modalidades veridictórias precederia [...] logicamente a dos objetos
semióticos que constituem seu objeto”. Essas modalidades, com suas tensões ideológicas que
o discurso científico tenta neutralizar, coroam, pois, o edifício.
Essa breve discussão mostra a importância da composição modal do actante e a
mudança de perspectiva de que foi objeto: ele era definido, de início, inspirado nas dramatis
personæ de Propp, de fora para dentro e, portanto, como um pré-constructo cultural; ei-lo, de
ora em diante, definido a partir do interior, como termo resultante, precário e flutuante, de um
arranjo modal. Essa abordagem modifica consideravelmente o método de análise narrativa,
permitindo seguir mais de perto a história do actante e seus aspectos principais. É o que
tentaremos fazer agora, examinando concretamente aqueles poucos percursos narrativos mais
significativos anunciados no preâmbulo deste capítulo.

3 O sujeito e o objeto

Comecemos então pela relação entre o sujeito e o objeto, núcleo de toda narratividade,
examinando um texto que a encena de maneira particularmente notável, em razão da sua
exclusividade.

Antigamente

Personagem

170
A. J. Greimas, Du Sens II, Paris, Seuil, 1983, p. 112.
152

O DECLAMADOR:..................................................................................... M.
Coquelin Cadet

Há muito tempo – mas muito tempo não é o suficiente para lhes dar
a idéia... Entretanto, como dizer melhor?
Há muito tempo, muito, muito tempo; mas muito, muito tempo
mesmo.
Então, certo dia... não, não havia dia, nem noite, então certa vez, mas
não havia... sim, certa vez, como querem que eu diga? Então ele pôs na
cabeça (não, não existia cabeça), na idéia... Sim, é isso mesmo, na idéia,
fazer alguma coisa
Ele queria beber. Mas beber o quê? Não havia vermute, nem
madeira, nem vinho branco, nem vinho tinto, nem cerveja Dréher, nem
cidra, nem água! É que vocês não imaginam que foi preciso inventar tudo
isso, que ainda não tinha sido feito, que o progresso caminhou. Oh! o
progresso! Não podendo beber, ele queria comer. Mas comer o quê? Não
havia sopa de azedinha, nem linguado ao molho de alcaparras, nem carne
assada, nem batatas, nem carne de vaca à moda da casa, nem pêras, nem
queijo Roquefort, nem indigestão, nem lugares para se estar sozinho... nós
vivemos no progresso! Acreditamos que tudo isso aí sempre existiu!
Então, não podendo nem beber nem comer, ele quis cantar
(alegremente), cantar. Cantar (triste), sim, mas cantar o quê? Não havia
canções, não havia romanças, meu coração, minha flor! Nada de coração, nada
de flor, nada de lalaiá: dá vontade de estourar! Nada de ária para transportar a
voz, nada de violino, nada de acordeão, nada de órgão, (gesto) nada de piano!
Vocês sabem, para fazer-se acompanhar pela filha de sua zeladora; nada de
zeladora! Oh! o progresso!
Sem cantar; impossível? Pois bem, vou dançar. Mas dançar onde?
Sobre o quê? Não há assoalho encerado, entendem, para cair. Não há bailes
com lustres, candelabros nas paredes derrubando cera em nossas costas,
copos, bebidas derramadas nos vestidos! Não há vestidos! Não há
dançarinas para usar os vestidos! Não há pais resmungões, nem mães
ranzinzas para nos impedir de dançar à vontade!
Então, nada de beber, nada de comer, nada de cantar, nada de
dançar. Que fazer? – Dormir! Pois bem, vou dormir. Dormir, mas não
havia noite, nem esses momentos que se recusam a passar (vocês sabem,
quando bocejamos (ele boceja), quando bocejamos, quando bocejamos
durante a noite).
153

Não havia noite, nem cama, nem cobertas, nem colcha de piquê,
nem bolsa de água quente, nem criado-mudo, nem... basta! Oh! O
progresso!
Então, ele quis amar! Disse a si mesmo: eu vou me apaixonar; vou
suspirar; é uma distração; serei até ciumento; baterei na minha... Minha o
quê? Bater em quê? Em quem? Ter ciúme do quê? de quem? apaixonado
por quem? suspirar por quem? Por uma morena? Não havia morenas. Por
uma loira? Não havia loiras, nem ruivas; não havia nem mesmo cabelos
nem tranças postiças, pois não havia mulheres!
Não haviam inventado as mulheres! Oh! O progresso!
Então morrer! Sim, disse ele a si mesmo (resignado): quero morrer.
Morrer como? Não havia canal Saint-Martin, nem cordas, nem revólveres,
nem doenças, nem poções, nem farmacêuticos, nem médicos!
Então, ele não quis nada! (Lastimoso) Que situação mais infeliz! ...
(Mudando de idéia) Mas não, não chore! Não havia situação, nem infelicidade.
Felicidade, desgraça, tudo isso é moderno!
O fim da história? Mas não havia fim. Não haviam inventado o fim.
Finalizar é uma invenção, um progresso! Oh! o progresso! o progresso!
Ele sai, perplexo.

Charles Cros, “Monologues”, Œuvres complètes,


Paris, Gallimard, col. “La Pléiade”, pp. 297-8.

Narrativa singular, com efeito, porque se situa a montante da narrativa. Recai sobre os
pré-requisitos de toda narração, sobre o que lhe determina qualquer possibilidade de
desenvolvimento. Como em uma espécie de tartamudez narrativa, enuncia numa repetição
circular as condições de existência elementares da narrativa: manifesta então indiretamente,
por assim dizer pela negativa, suas exigências mais fundamentais e precisamente sua sintaxe
básica, a da transformação. A busca repetitiva do sujeito é exatamente, no caso, a de uma
transformação, de uma mudança de estado; em outras palavras, de um programa narrativo.
Nenhum esquema narrativo no horizonte, nem mesmo qualquer percurso, apenas o
imperativo do PN.

3.1 O progresso.
154

A palavra “progresso” forma, por sua repetição no final de cada seqüência, o termo
recorrente (leitmotiv) do texto (nove ocorrências). Sua definição no dicionário, “Mudança de
estado que consiste em uma passagem a um grau superior” (Petit Robert, sentido corrente), não
deixa de atrair nossa atenção: é a própria definição do programa narrativo de conjunção. Em
outros termos, o “progresso” é a manifestação lexical da estrutura narrativa elementar: estado
1 – fazer transformador – estado 2, cujo princípio se firma, lembremos, no jogo alternado da
relação entre actantes sujeito e objeto, assim definidos reciprocamente pela junção, ou seja,
dis-junções e con-junções. Essa observação lexical confirma, portanto, o caráter particular da
narrativa, intuitivamente percebido: antes de ser a busca de objetos de valor, ela nos apresenta
a busca do que condiciona toda busca, suas metas e suas aquisições, a busca do programa
narrativo.

3.2 O sujeito

O texto põe em cena de imediato um actante, definido como uma pura posição sintáxica:
“ele”, sujeito de uma seqüência de verbos. Mas trata-se de um actante abstrato, sem a menor
presença figurativa: não se sabe nada dele, ele não tem rosto, nem vestimenta. Sua
modalização elementar é da ordem do /querer/; ora, esse querer é anterior a sua própria
lexicalização, apresenta-se como uma abstração da intencionalidade (“ele pôs na idéia”), que
basta entretanto para lhe conferir um estatuto de sujeito. É um sujeito solitário: nenhum outro
actante ocupa com ele, no mesmo nível de presença, a cena narrativa. Não há Destinador,
nem anti-sujeito para fixar uma ordem de valores: o universo situa-se aquém do esquema
narrativo e da polêmica, isto é, fora de todo enquadramento axiológico.
Podemos seguir, na superfície, as variações dos predicados do querer fazer: desde “pôr
na idéia” e “ele queria”, “ele quis”, ao simples “vou”, observamos um percurso que vai da
abstração do querer à expressão do desejo e finalmente à pura orientação intencional. Essa
oscilação manifesta no fio do texto uma redução, um empobrecimento desse equipamento
modal elementar. Qualquer que seja, o querer implica um sujeito disjunto de um objeto (um
sujeito de falta), que visa a conjunção (a liquidação da falta). O texto apresenta-se então como
uma visada repetitiva de objetos, assim valorizados unicamente pelo querer do sujeito.

3.3 O objeto

As listas sucessivas de objetos aparecem apenas negativamente, e o texto economiza até


mesmo o vínculo verbal: “nada de... nada de...”. O objeto, portanto, existe lexicalmente, mas
não tem existência narrativa. Sua ausência, por definição, põe em xeque a conjunção.
Enquanto a narrativa se reduz à busca de uma junção, a negatividade indica que não há sintaxe
juntiva possível. Então, a dimensão sintagmática da narrativa, concebida como um
encadeamento de programas hierarquizados (PN de uso, PN de base), os únicos capazes de
determinar, capitalizando os valores, um objetivo e um término para o percurso do sujeito,
não pode instaurar-se. E o texto reduz-se a um inventário paradigmático: uma lista de objetos,
155

inscritos nos conjuntos de objetos e de ações, formando configurações discursivas


cristalizadas: o beber, o comer, o cantar, o dançar, etc. O texto, na totalidade de suas
seqüências, presentifica, pois – sem sucesso, podemos dizer – esses dois actantes e apenas eles:
sujeito e objeto.

3.4 A resistência do narrativo

Um problema se coloca então à análise narrativa: uma vez constatada a impossibilidade de


qualquer realização de programa narrativo, devemos concluir pela ausência absoluta de
narrativa? A narrativa torna-se decididamente impossível diante do desaparecimento de toda
relação juntiva? Não haveria mais vestígio de dimensão narrativa? O mundo reduz-se
realmente a um inventário de objetos virtualizados, a um paradigma lexical de objetos
ausentes? Essas questões poderiam quase conduzir a uma interrogação mais profunda sobre a
preeminência das palavras ou do discurso na formação da linguagem: tudo começou pelo
léxico, depois arranjado em enunciados, ou tudo começou por enunciados, segmentados
depois em unidades lexicais? Questão um pouco especulativa, sem dúvida, que nos conduz às
“pré-línguas”, de que falava Henri Michaux (cf. capítulo 7).
Na realidade, as estruturas narrativas, inerentes a toda discursivização da linguagem,
resistem a todos os obstáculos que se opõem ao seu desenvolvimento. Elas se difundem por
toda parte e se cravam no interior das próprias unidades lexicais, que são, na maioria das
vezes, apenas enunciados narrativos condensados (podemos pensar na definição de palavras
simples, como “cólera”, por exemplo, que requer um desenvolvimento narrativo, desde o
sentimento da frustração de um direito até a reparação pela vingança, passando pelo próprio
estado passional de “cólera”). Dessa maneira, o texto pré-narrativo de Charles Cros é, ele
próprio, do começo ao fim, tramado pela narratividade. A começar, naturalmente, pelas
estruturas narrativas condensadas na seqüência predicativa, mesmo elementar, da busca: o
/querer/ é suficiente para instaurar um sujeito, para estabelecer uma falta, para orientar um
perfil de valores. Mas a narratividade está igualmente presente, de maneira menos evidente e
mais inesperada, no interior das próprias seqüências dos objetos, nas cadeias nominais. É fácil
verificar a manifestação de tais estruturas narrativas, no conjunto dos inventários negativos de
objetos, à medida que, tecendo liames entre as palavras, eles se inscrevem no interior de
configurações. Como traços residuais, muitos desenvolvimentos sintagmáticos impõem-se
assim à leitura em um discurso que os nega.
“Ele queria beber. Mas beber o quê?” A lista das sete bebidas que se sucedem
apresenta-se segundo um percurso ordenado de des-construção progressiva dos objetos, que
coloca no final a categoria cultura versus natureza. Essas bebidas vão do mais complexo ao
menos complexo, do mais elaborado ao menos elaborado, do mais raro ao mais corrente, do
mais cultural ao mais natural. Nos termos de uma análise semionarrativa, poderíamos dizer
que as primeiras mobilizam o maior número de operações de construção, isto é, de programas
narrativos de construção do objeto de valor171, diminuindo essa seqüência de operações à
medida que se dirige para a última bebida inexistente: a água. Passamos assim, por pares de

Cf. A. J. Greimas, “A sopa ao ‘pistou’ ou a construção de um objeto de valor”. Trad. Edith Lopes
171

Modesto. Significação – Revista Brasileira de Semiótica, 11-12, setembro de 1996, pp. 7-21.
156

bebidas, dos vinhos curtidos aos vinhos crus, desses às bebidas fermentadas, dessas últimas,
enfim, à água.

“Ele queria comer. Mas comer o quê?” A seqüência lexical dos pratos apresenta no exemplo, à
guisa de cardápio, o percurso sintagmático de uma refeição burguesa do século XIX, da sopa à
sobremesa, ou, mais precisamente, da ingestão à (in)digestão. A mera segmentação dos pratos
forma, portanto, uma micronarrativa cultural. Acontece o mesmo nas cenas que se seguem:
cantar, dançar, amar, etc. Cada uma delas oferece à leitura uma micronarrativa estereotipada,
fortemente ancorada em um contexto sociocultural, animado pelas figuras cristalizadas dos
atores-tipo (o pai, a mãe, a zeladora, etc.) e dos praxemas-tipo (os “momentos que não querem
passar”, por exemplo). Essa estereotipia narrativa é sustentada e confirmada pela afirmação do
saber partilhado: “vocês sabem”.
Mas um traço caracteriza o conjunto dessas micronarrativas, sobrepondo-se ao estado
ante- ou pós- narrativo do texto e animando-o por sua dinâmica própria, os contrastes que
elas (as micronarrativas) impõem e suas manifestações figurativas. Esse traço é a negatividade:
todas essas micro-histórias que não existiam têm em comum o fato de serem orientadas para o
fracasso: fracasso do prazer de beber uma bebida refinada, fracasso do festim que termina pela
indigestão, fracasso do canto, fracassos repetidos da dança, etc. As narrativas que resistem à
estrutura antinarrativa do texto são, portanto, negadoras de seu próprio fazer. Assistimos,
então, confrontando o primeiro nível do discurso “narrativo” ao das narrativas intercaladas, a
uma colocação em abismo da negatividade. Voltados dessa forma para sua negação, os
motivos narrativos, assim como o discurso que os enquadra, acarretam consigo a denegação
do sujeito.

3.5 A denegação do sujeito

Por mais elementar que seja, quase uma pura forma actancial, nem por isso o sujeito é estável
ou imutável do começo ao fim. Seu estatuto modifica-se no decorrer do texto, sendo
apreendido num percurso que se poderia formular da seguinte maneira: uma redução
progressiva de sua “superfície de ser”. Sob um ponto de vista teórico, o actante sujeito é
primeiramente produzido pelas relações juntivas nas quais se insere e que lhe dão sentido,
valor e existência. São as relações com os objetos, por meio dos programas narrativos. Mas o
sujeito é também produto de sua história: seus programas realizados são sua memória
narrativa, formam a base de sua competência posterior, convertendo-se assim, de uma forma
ou de outra, em programas de uso para outros projetos. Dessa dupla definição do sujeito, que
condiciona sua existência narrativa, o sujeito do nosso texto não preenche nenhuma condição.
Está privado de toda junção com os objetos e não conserva qualquer memória, mesmo
negativa ou parcial, de seus programas ou tentativas de programas anteriores. Certamente
poderíamos considerar que o encadeamento das seqüências proporciona uma aparência de
ordem: do mais indispensável ao mais fútil, do mais individual ao mais participativo, do mais
dinâmico ao mais estático; por fim, da vida à morte. Na realidade, a série é sobretudo
paratáxica, não há nenhum liame lógico, nenhuma hierarquia entre os programas sucessivos.
Privado de junção e privado de memória, o sujeito reduz assim progressivamente seu espaço
de significação e, portanto, seu espaço existencial.
157

O último programa confirma essa situação: o sujeito da história chega, de negação em


negação, a “querer nada”: mas “nada”, considerado como semema, seria realmente nada? É
óbvio que não (R. Devos, cujos monólogos são descendentes diretos dos de C. Cros,
mostrou-o muito bem em um texto célebre). Sob a forma de semas contextuais ou de outro
modo, há valor injetado no “nada”. Podemos até mesmo afirmar a preeminência do valor
sobre o objeto. Dessa forma, o objeto “nada” não é um nada, visto que está investido de um
valor, ainda que tímico (isto é, da ordem do afetivo elementar), ainda que negativo (disforia:
“infeliz situação”): “felicidade, infelicidade”, isso é valor, e o valor “é moderno”. Aqui, ao
contrário, o universo é propositadamente anteaxiológico: “nada” é exatamente nada, o valor
investido no objeto “nada”, em geral suposto no discurso, está aqui desprendido do objeto,
semanticamente isolado para ser separadamente negado.
Uma vez consumado o percurso de redução, o sujeito “sai, perplexo”: não
encontrando a possibilidade, mesmo elementar, da narratividade que dá sentido, ele
experimentou o non-sens (perplexo: “que está acometido por uma espécie de inércia mental”:
inércia versus progresso). O texto aparece como uma história de denegação do sujeito. Assim,
reflexão indireta sobre o que constitui o núcleo da narratividade, ao mesmo tempo
confirmando seus fundamentos, esse monólogo de C. Cros é também, mais amplamente, uma
perturbadora e irônica reflexão sobre a linguagem.

4. O objeto e o valor

O célebre texto de Marcel Mauss, “Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão da troca nas
sociedades arcaicas", publicado em Sociologia e Antropologia,172 está em grande parte na origem
da problemática semiótica dos objetos de valor. A tese central desse estudo é que a dádiva,
como modo de circulação dos objetos no interior da comunidade social, inscreve-se em um
sistema rigoroso de reciprocidade. Quer se trate de ferramentas, de produtos alimentícios, de
fórmulas mágicas, de ornamentos, de danças ou de mitos, os valores associados aos produtos
técnicos, econômicos, rituais, estéticos da atividade social, têm, subjacente à sua diversidade,
esse caráter comum: são transferíveis. Nesse ponto, tais valores são comparáveis, e mesmo
substituíveis uns aos outros, entrando em um sistema generalizado de trocas recíprocas. Por
isso, a dádiva convoca, de uma forma ou de outra, à proximidade ou à distância, uma contra-
dádiva. O equilíbrio das trocas assenta assim num pequeno número de operações elementares,
diversamente realizadas segundo o tipo de sociedade considerado. E o equilíbrio é rompido a
partir do momento em que a reciprocidade não possa se realizar. É o caso do potlatch, nas
sociedades indígenas do noroeste da América, em que o ritual da dádiva consiste em oferecer
ao destinatário rival muito mais do que ele poderia jamais retribuir, garantindo-se assim o
poder sobre ele. É a guerra pelo presente. Para além do episódico, esse sistema de obrigação
de dar e de receber, equiparado a um sistema de equivalências e de transferências, apresenta-
se, de fato, como um modelo estrutural avant la lettre (o “Ensaio sobre a dádiva” foi publicado
em 1923). Vem daí o imenso interesse que suscitou entre os antropólogos como Lévi-Strauss,
ou entre os semioticistas como Greimas, que nele se inspirou para elaborar uma sintaxe da

172
M. Mauss, Sociologia e Antropologia. Trad. de Mauro W. B. de Almeida, São Paulo, EPU, 1974, vol. 2,
p.37-67.
158

circulação dos valores, principalmente em “Un problème de sémiotique narrative: les objets de
valeur”173.
Focalizaremos essa problemática a partir de uma narrativa de Rabelais, extraída do
Terceiro-Livro. Esse texto nos permitirá ressaltar de maneira particularmente nítida a pertinência
da distinção entre o conceito actancial de objeto e o de valor, ao qual parece
indissociavelmente ligado. Mas, antes disso, é preciso determinar a abordagem específica da
noção de valor* em semiótica.

4.1 A abordagem semiótica do valor

4.1.1 As três acepções do “valor”

O termo valor é notavelmente polissêmico: lingüística, lógica, economia, axiologia,


estética, moral, comunicação cotidiana, etc. empregam-no com “valores” bem diferentes. Em
sua definição, a semiótica aproxima e concilia três acepções do conceito, provenientes de três
disciplinas distintas:
● A acepção lingüística. Saussure designa pelo termo “valor” um elemento da significação
atribuído negativamente a um termo. O valor não é definido em si mesmo como o conteúdo
do termo, mas por suas relações diferenciais com outros valores próximos, comparáveis ou
opostos, investidos em outros termos. A significação, portanto, é feita apenas por valores
relativos, que se determinam uns aos outros. A noção de valor permite, então, estabelecer o
conteúdo como uma forma (homóloga à forma da expressão), e identificar-lhe os elementos
constitutivos: as unidades sêmicas. Essa acepção foi particularmente desenvolvida por L.
Hjelmslev, em um artigo intitulado “Por uma semântica estrutural”174 (1957).
● A acepção econômica. O valor, nesse contexto, é aquele atribuído aos bens materiais e
condiciona sua circulação entre os agentes pelos mecanismos econômicos da troca, da
negociação, da dádiva e da contra-dádiva: as regulamentações dessa circulação pelo jogo da
oferta e da procura definem a cada instante o valor do valor, ajustando as equivalências entre
os objetos.
● A acepção axiológica. Essa acepção designa os universos de valores, estéticos, éticos,
morais, etc., relacionados aos universos de discurso que os definem e os põem em cena ou em
jogo, como por exemplo as narrativas e, mais amplamente, os outros tipos de texto. A
semiótica distingue o conceito de axiologia, que designa os sistemas de valores (os paradigmas
virtuais), do conceito de ideologia, que supõe a assunção dos valores por um sujeito que os
seleciona e, no plano sintagmático, os atualiza e os narrativiza (eles passam então a embasar os
objetos de busca, de meta, de conflito, etc., aos quais dão sentido).

A semiótica associa estreitamente e concilia essas três acepções: em primeiro lugar, porque se
prende exclusivamente às formações do sentido no interior da linguagem e dos discursos

173
A. J. Greimas, Du sens II, op. cit., p. 19-48.
174
In L. Hjelmslev, Ensaios lingüísticos. Trad. Antônio de Pádua Danesi. São Paulo, Perspectiva, 1991, p.
111-127.
159

(acepção 1); em segundo lugar, porque postula que no centro da organização discursiva
encontram-se as estruturas narrativas e a regulamentação da comunicação dos valores entre os
sujeitos (acepção 2); e, enfim, porque considera que os discursos são os espaços de
acolhimento das axiologias de toda natureza, que formam suas estruturas profundas (acepção
3).

4.1.2 O estatuto semionarrativo do objeto de valor

A clássica confusão entre as noções dá a entender que o valor identifica-se com o objeto
desejado. A simples existência do desejo implica o valor do objeto visado, e este se confunde
com aquele. Assim, o sintagma “objeto de valor” forma um único conceito, freqüentemente
denominado, de resto, objeto-valor . Ora, é útil distinguir bem as duas noções para perceber o
que fundamenta a dinâmica narrativa: o que nela se negocia e se disputa são valores, mais do
que objetos .

O objeto é assim compreendido como um simples lugar de fixação e de investimento do


valor; e este, produzido pelo uso cultural, está tão estreitamente ligado aos objetos, que
participa em grande parte da sua definição. O lexicógrafo que procurasse dar uma definição
completa de um lexema deveria integrar, como seus elementos constitutivos, os valores que,
sem ser inerentes ao objeto que o lexema designa, mesmo assim formam literalmente corpo
com ele. Greimas sugere assim que “a definição do lexema ‘automóvel’ (por exemplo), que se
pretendesse exaustiva, deveria compreender:
a/ não somente um componente configurativo, decompondo o objeto em suas partes
constitutivas e recompondo-o como uma forma;
b/ e um componente táxico, que desse conta, por seus traços diferenciais, de seu
estatuto de objeto entre os outros objetos manufaturados;
c/ mas também seu componente funcional, tanto prático quanto mítico (prestígio,
poder, diversão, etc.)”.175
O investimento seletivo desses diferentes componentes nos diversos discursos sobre o
automóvel (discurso técnico, manual de utilização, discurso publicitário, etc.) mostra bem
claramente que é o discurso que seleciona segundo o campo (configurativo, táxico, funcional)
e que constrói o valor do objeto, dando-o a “ler”. A publicidade automobilística irá basear-se,
segundo as “ideologias publicitárias”, analisadas por J. -M. Floch176, tanto no componente
referencial prático (economia, segurança, etc.) quanto no componente funcional mítico
(utopia: cf. os “galões selvagens” da Citroën, sexualidade, potência, etc.)

4.1.3 Os grandes modos de comunicação dos valores

175
A. J. Greimas, Du sens II, op. cit., p. 21-2.
176
J. -M. Floch, Sémiotique, marketing et communication. Sous les signes, les stratégies, op. cit., p. 184-208.
160

Em seu estudo sobre os objetos de valor anteriormente citado (cf. acima, {p. 207}), Greimas
propôs definir uma tipologia dos grandes modos de comunicação dos valores entre os
sujeitos, por meio da sintaxe narrativa, sob a forma de programas narrativos característicos.
Essa tipologia formal estabeleceu-se anteriormente aos contextos conflituosos ou contratuais
em que se inserem os programas. Ela não leva em conta absolutamente os estados passionais
do sujeito (frustração, entusiasmo, generosidade, desprendimento, etc.) que se ligam a este ou
àquele modo de circulação e sensibilizam, em cada caso, a relação juntiva em si mesma.
Apresenta somente o arcabouço sintáxico da comunicação dos objetos e propõe, dessa forma,
um quadro dos regimes de sua circulação. As formas dessa comunicação diferenciam-se
conforme se refiram a um só objeto ou a dois objetos, associando relações de conjunção e
disjunção ou, no caso particular da comunicação participativa, a atribuição sem disjunção.
A comunicação de um objeto define-se por uma transformação que pode ser
conjuntiva ou disjuntiva. No primeiro caso, conduz à realização do valor sob forma de
aquisição: essa aquisição é dita reflexiva quando o sujeito do fazer e o sujeito de estado, termo
de chegada da operação (o beneficiário), constituem um único e mesmo ator, falando-se então
em apropriação do objeto; essa aquisição denomina-se transitiva quando o sujeito do fazer,
doador, e o sujeito de estado beneficiário formam dois atores distintos; falam-se então em
uma relação de atribuição. No caso de uma transformação disjuntiva, a comunicação conduz,
inversamente, a uma virtualização do valor sob a forma de privação para o sujeito que o
possuía: essa privação também poderá ser reflexiva (sujeito do fazer = sujeito de estado)
tratando-se então de uma renúncia, ou transitiva (sujeito do fazer  sujeito de estado) quando se
trata de uma despossessão. Essas formas elementares da circulação do objeto valorizado podem
naturalmente ser manifestadas no discurso por meio de configurações variadas, segundo a
natureza do objeto, o estatuto dos sujeitos presentes e o enquadramento axiológico da
narrativa, que pode ritualizar esta ou aquela forma.

A comunicação de dois objetos realiza-se quando a conjunção de um sujeito S1 com um


objeto que ele recebe de outro sujeito S2 é simultaneamente associada a sua disjunção de
outro objeto, que ele atribui a S2. Tem-se então a configuração do “dom recíproco” e da
“troca”. Que diferença há entre essas duas configurações? No primeiro caso, a equivalência
entre os valores dos dois objetos é simultânea, porque ela já se encontra de início admitida e
pressuposta (cf. o ritual dos presentes). No segundo caso, esse valor é negociado, tornando-se
por conseguinte objeto de uma avaliação pelos dois participantes, progressivamente ajustada
para que a troca se realize. Essa negociação que estabelece “o valor dos valores”, necessária
para que se fixe o equilíbrio entre os objetos, exibe um fenômeno de sentido novo, o do valor
atribuído a um valor assim que este seja posto em situação de comunicação: é o que se
denomina valência. Constatamos então que a troca se realiza quando há crença compartilhada
pelos parceiros sobre as valências de seus objetos, quando reconhecem juntos sua equi-
valência. Isso permite ressaltar a relação que existe entre valência e fidúcia: o liame fiduciário é
central para que o valor, por natureza flutuante, dos objetos, enfim se estabeleça.
Encontramos um belo exemplo de troca duas vezes negociada na novela de Mérimée,
Mateo Falcone. Mateo confia a seu filho Fortunato, durante sua ausência, a guarda da casa
familiar, situada junto ao matagal, na Córsega. Surge então um bandido ferido, perseguido
pelos guardas. Sabendo que não teria forças para alcançar o matagal, para nele se ocultar, pede
a Fortunato que o esconda. Ignorando as regras da axiologia corsa que prescrevem esconder o
bandido como um dever social (os valores da comunidade, terceira acepção acima), o jovem
guardião da casa estabelece a situação de troca: “O que você me dará se eu o esconder?”
Pressionado, o bandido lhe dá uma moeda de prata em troca do esconderijo, num monte de
feno. Chegam então os guardas, que perguntam ao jovem se ele “viu passar um homem”.
161

Após algumas manobras protelatórias, tentativas vãs de respeitar seu contrato, Fortunato vê-se
diante de um belo relógio de ouro, cintilando ao sol, que receberá em troca da revelação do
esconderijo. Fazendo então uma avaliação comparativa do valor do esconderijo, o menino
cede a essa nova proposição de contrato, e entrega o bandido à polícia. Voltando um pouco
mais tarde para casa e descobrindo a traição de seu filho, o pai o arrasta até o matagal. Ouve-
se um tiro: ele fez “justiça”.

Último grande tipo de comunicação de valores, a comunicação participativa é aquela em que


não há nem dom recíproco, nem troca, aquela em que a atribuição de um valor não implica
nenhuma privação, em que não há mais transformação simétrica entre disjunção e conjunção.
Refere-se à atribuição dos valores cognitivos, espirituais, etc. O caso da transmissão do saber
ilustra essa forma em que o doador permanece conjunto aos valores que ele comunica.

4.2 Um debate sobre o valor

O carregador, o churrasqueiro e o louco

Em Paris, na churrascaria do Petit Châtelet, em frente ao balcão de


um churrasqueiro, um carregador comia seu pão sobre a fumaça do
churrasco e o pão, assim perfumado, lhe parecia muito saboroso. O
churrasqueiro o deixava à vontade. Enfim, quando todo o pão foi
engolido, o churrasqueiro pegou o carregador pelo colarinho, querendo
que lhe pagasse pela fumaça de seu churrasco. O carregador alegava não
ter consumido nenhuma de suas iguarias, não ter tomado nada de seus
bens, não ser em nada, pois, seu devedor. A fumaça em questão dissipava-
se no ar: de uma forma ou de outra, ela se perderia; não se ouvira jamais
dizer que, em Paris, tivessem vendido fumaça de churrasco na rua. O
churrasqueiro replicava que ele não tinha obrigação de alimentar os
carregadores com a fumaça de seu churrasco e jurava que, se não fosse
pago, ele ficaria com seus ganchos.
O carregador empunha seu bastão e coloca-se na defensiva. A
altercação vai chamando atenção. Esse fofoqueiro povo parisiense acorreu
de todas as partes para presenciar a disputa. Bem a propósito, lá se
encontrava o Senhor Joan, o louco, cidadão parisiense. Percebendo sua
presença, o churrasqueiro perguntou ao carregador: “Você quer, em nossa
contenda, valer-se deste nobre Senhor Joan? – Sim, pelo sangue de
Cristo”, respondeu o carregador.
Assim, o Senhor Joan, após se pôr a par da desavença, solicitou ao
carregador que tirasse de seu talabarte uma moeda de prata. O carregador
162

pôs-lhe nas mãos um tournois-de-Philippe177. O Senhor Joan pegou-o e


colocou-o sobre seu ombro esquerdo como para verificar se tinha peso;
depois, ele o fez soar sobre a palma da mão esquerda, como para ouvir se
era de bom valor; por último, colocou-o junto à pupila de seu olho direito
como para ver se era bem cunhada. Durante toda essa ação, todo o povo
fofoqueiro guardava um grande silêncio, enquanto o churrasqueiro
esperava altivamente e o carregador se desesperava. Enfim, ele fez a
moeda soar sobre o balcão inúmeras vezes. Após tudo isso, com uma
presidencial majestade, empunhando seu bastão como se fosse um cetro e
ajustando sobre a cabeça seu capuz de pele de símio com abas de papel,
costurado a pontos largos, tossindo previamente umas boas duas ou três
vezes, ele disse em voz alta:

a fumaça do churrasco pagou civilmente o churrasqueiro com o som de


seu dinheiro. A dita Corte ordena que cada um se retire para sua casa, sem
custas e com justa razão.
Essa sentença do louco parisiense pareceu tão justa, e até mesmo
admirável, aos doutores supracitados, que eles se perguntam se a sentença
seria mais legalmente proferida caso a demanda fosse resolvida no
Parlamento local ou na Rotta de Roma, ou mesmo pelos areopagitas178.
Vejam, pois, se vocês podem se aconselhar com um louco.

Rabelais, Œuvres complètes. Le Tiers-Livre,


Cap. 37, Paris, Seuil, 1973, p. 506.

O que está em jogo na circulação polêmica ou contratual dos objetos são, portanto,
menos os objetos em si que os valores com os quais os investem os atores envolvidos. Esses
objetos são nada mais que um espaço de fixação variável e instável, relacionado à perspectiva
de cada um deles. Assim a “fumaça” da narrativa de Rabelais adquire, na perspectiva do
churrasqueiro, um estatuto de objeto (vendável, comprável, negociável, etc.) a partir do
momento em que é investido de valor, enquanto que não lhe cabe esse estatuto na perspectiva
do carregador. Toda a argumentação deste último consiste em mostrar, ao contrário, que a
fumaça não corresponde a nenhum critério de definição do valor capaz de investir e construir
objetos: numerosas expressões cristalizadas o atestam (“são fumaças”, “tudo se esvaiu em
fumaça”, “vender ar”); para a moral social comum, definida pelo uso, a fumaça é, por
excelência, um não-objeto porque é um não-valor.

Ora, o que transforma a fumaça em objeto e lhe confere esse estatuto actancial e narrativo no
texto de Rabelais é precisamente o fato de o valor se encontrar contraditoriamente investido

177
Antiga moeda de prata.
178
Membros do famoso tribunal sediado na colina do areópago, em Atenas.
163

nela. Donde o conflito e a busca de um equilíbrio, pelo viés do julgamento de um terceiro,


numa seqüência de sanção em conformidade com o esquema narrativo.

4.2.1 O conflito

Duas avaliações contraditórias encontram-se presentes. A de S1, primeiramente, o


churrasqueiro, cujo argumento é muito forte. Para ele, o valor é construído pelo /fazer/: a
ação de comer pão sob a fumaça do assado foi valorizada pela ação dessa fumaça, pois ela
tornou o alimento “perfumado”, “mais saboroso” ao paladar do homem que comia. S1,
provedor da fumaça, torna-se pois o doador, o atribuidor. Ele exige, de acordo com a correta
lógica narrativa, a contrapartida simétrica de uma relação de troca, o retorno do valor. A
atribuição requer uma retribuição. A avaliação de S2, o carregador, inversa à precedente, não é
menos eficaz. O não-valor é não somente imposto pelo uso (cf. as expressões cristalizadas
mencionadas acima), mas está na própria natureza da fumaça. Não pode, com efeito, haver
nela valor, se não houver circulação controlada e fechada, condição mesma de toda troca. Ora,
a natureza da fumaça é dissipativa. A inevitável desaparição por dissipação aérea não pode em
caso nenhum ser transformada em atribuição. É o que confirma o senso comum: a fumaça
não pode constituir um objeto de valor.

Assim, dois pontos de vista inconciliáveis confrontam-se, porque eles remetem a duas lógicas
contraditórias, individual e cultural no caso do churrasqueiro, natural e coletiva no caso do
carregador.

4.2.2 A sanção

Na realidade, os dois protagonistas confundem, em sua argumentação, o objeto e o


valor. É então que intervém o louco, no papel actancial do Destinador-julgador que lhe foi
conferido em comum pelos atores em conflito, o churrasqueiro e o carregador. Que vai ele
fazer? Vai simplesmente separar objeto e valor e considerar isoladamente os percursos
semânticos das duas noções, a fim de localizar o ponto de aplicação do julgamento. Isso
explica, no texto, uma operação em dois tempos, que correspondem a duas seqüências
discursivas.
Num primeiro momento, o louco encena um simulacro de avaliação de um objeto
reconhecido por todos como valorizado, uma moeda de prata, como para verificar que não se
trata de um calote. Realiza três operações sensoriais, convocando sucessivamente o tato (o
peso da moeda), a audição (a sonoridade do metal) e a visão (a efígie). Essa avaliação pelos
sentidos completa evidentemente a série iniciada pelo odor (a fumaça do assado) e seu
resultante, o gosto (o sabor modificado do pão). Ela se instala na mesma isotopia sensorial,
reforçando assim sua coerência. Ora, essa avaliação é fictícia, absurda, tola: é uma pantomima.
Não há som, a palma da mão não ressoa; não há peso, a moeda não pesa nada sobre o ombro;
não há visão, o objeto está colado ao olho. Essa ausência de resultado é essencial. Porque, na
lógica do louco, não é a conclusão da avaliação que importa, mas o procedimento de
autenticação em si: ele leva a isolar o fenômeno do valor a partir de suas valências e a
distingui-lo do objeto.
164

Num segundo momento, Joan, o louco, tendo assim estabilizado o valor dos valores
em jogo na disputa, pode estabelecer as condições da partilha fiduciária. Ele faz ouvir o som
da moeda contra o balcão. Confrontando os valores, daí em diante isolados, procede agora
por analogia para estabelecer sua equivalência:

A : B : C : D
:
f a so p
umaç ssado noridade rata
a

Ele estabelece um plano de pertinência isotópica entre dois objetos (o assado/a prata) a partir
de dois valores que lhes são associados: o cheiro emanado da fumaça, a sonoridade emanada
da prata (cf. a expressão “pagar de maneira soante e pesante”). Duas emanações do objeto que
entram em suas valências possíveis e fundamentam seu valor. A sonoridade é para a prata
aquilo que o cheiro da fumaça é para o assado: este é portanto retribuído por aquela. Pode-se
compreender que os “doutores supracitados” tenham ficado deslumbrados com a força
persuasiva desse belo exemplo de raciocínio figurativo e analógico, oposto aos raciocínios
lógicos dos dois protagonistas!

A história não diz se o churrasqueiro ficou frustrado, decepcionado ou satisfeito – isso resulta
das paixões do sujeito, da afecção possível de seus estados de alma – nem se o louco devolveu
a moeda ao carregador ou se ficou com ela em troca de seu julgamento... Mas, para o que nos
interessa no caso, vê-se claramente como a análise dessa breve narrativa reúne as diferentes
acepções da noção de valor de onde partimos.

A acepção lingüística e, mais precisamente, semântica, encontra-se na análise sêmica a que


procedeu o louco, lançando-se à procura de um sema isotópico, suscetível de ligar o assado ao
dinheiro. O discurso que os põe em cena realiza o progressivo desnudamento de um sema
comum às duas unidades lexicais, garantindo sua isotopia (pela sensorialidade).

A acepção econômica, transposta aos termos da gramática semionarrativa, examina o


funcionamento e as regulamentações da circulação dos valores e dos bens no interior da troca,
fundamentados sobre o estabelecimento de uma equivalência fiduciária. Os dois atores,
enquanto agentes econômicos, passam assim da lógica do conflito à do contrato.

A acepção axiológica, enfim, relaciona-se nesse caso ao domínio jurídico. Ela associa a justeza
do raciocínio de Joan, o louco, que soube destacar o lugar preciso das valências, ao sentimento
de justiça sob o ponto de vista das regulamentações sociais. O povo parisiense está lá para
testemunhar essa justeza e essa justiça.

5. O Destinador e o sujeito
165

5.1 Os percursos do Destinador

5.1.1 O Destinador estabelecido

Geralmente a posição do Destinador nas narrativas etnoliterárias (mitos, contos, rituais, etc.) é
a tal ponto caracterizada pela estabilidade, que não se imagina que ele possa escapar às
obrigações programadas de seu papel. Emoldurando o relato, situa-se nos dois extremos da
cadeia narrativa: é ele que atribui uma missão ao herói no momento do contrato, é ele que
reconhece e avalia a ação concluída no momento da sanção. Papel cristalizado e permanente
no universo do conto, o Destinador é o grande regulador que encarna o pano de fundo
axiológico, definindo o desejável, o temível e o odiável logo de início, e avaliando ao final do
percurso a conformidade das ações realizadas. É Deus, é o Rei e todas as instâncias delegadas
da autoridade, que formam tantos papéis típicos e estereotipados do Destinador (o pai, o
policial, o professor, etc.).

5.1.2 O Destinador instável

Na realidade, isto é, na realidade dos textos (tanto literários, como nos discursos
sociais e políticos), as coisas são muito mais complexas e muito mais ricas do que dá a
entender uma simples abordagem apoiada em contos maravilhosos. Como todos os outros
actantes, o Destinador, no discurso, é antes de tudo uma posição actancial, inscrita em um
percurso, portanto modulável, instável, sujeita a transformações e também exposta ao
reconhecimento de seu estatuto pelos sujeitos. Definido em primeiro lugar por sua
composição modal, de ordem factitiva (do fazer crer ao fazer fazer), o Destinador tem como
condição ser ele próprio reconhecido: seu poder pressupõe o reconhecimento, a aceitação
mantida e constantemente reativada do seu estatuto por parte do sujeito. Donde as numerosas
figuras do Destinador inquieto (cf. por exemplo o rei Artur). Encontramos um exemplo
particularmente notável de meditação sobre o Destinador na obra de La Boétie, A Servidão
voluntária. Contra um, publicada após sua morte por seu amigo Montaigne. La Boétie interroga-
se sobre o mistério político que faz com que todos aceitem obedecer a um só, mesmo sendo
este tão fraco que bastaria, para que desmoronasse, que todos recusassem por um instante essa
obediência...

5.1.3 Uma estrutura modal: a factitividade

A aparente estabilidade do Destinador está ligada a sua primeira definição em semiótica,


derivada do esquema actancial. Vimos que o surgimento e, a seguir, o desenvolvimento da
problemática das modalidades permitiu refinar consideravelmente a abordagem da estrutura
actancial. Encarado em termos modais, todo actante, junto ao qual o /fazer/ ocupe não
apenas a posição de um predicado descritivo, mas também a de um predicado modal, torna-se
candidato ao papel actancial de Destinador. Nesse caso, com efeito, o fazer torna-se a
modalidade de um enunciado factitivo: o Destinador é aquele que /faz fazer/. É
166

fundamentalmente, ainda que formulado em outros termos, o papel do Destinador-


manipulador. Mas essa formulação também abre amplamente o campo da configuração: todo
sujeito que seja, mesmo que por um só momento, portador dessa carga modal factitiva,
encontra-se investido do papel actancial e, inversamente, todo Destinador instituído que se
visse privado dessa competência específica perderia de imediato seu estatuto.

O /fazer fazer/, obviamente, é apenas um estágio da realização do percurso do Destinador


que se virtualizou e se atualizou por meio de outras configurações modais, como a do /fazer
dever/. Numa perspectiva mais ampla, porém, todas as modalidades podem, como vimos,
transformar-se em predicado descritivo (ou modal de segundo grau), modalizado pelo
predicado factitivo. Assim, o Destinador é, inicialmente, a montante, aquele que /faz crer/:
propõe valores e suscita a adesão do sujeito; em seguida, é aquele que /faz querer/, que /faz
saber/, que /faz poder/. Seria possível projetar essas categorias em quadrados semióticos para
desenvolver a diversidade das configurações do Destinador e esquematizar uma tipologia.

fazer
crer fazer
não saber,
dever querer, etc.

querer
não
não
saber fazer saber,
fazer não
etc.
saber, etc.
poder

5.2 Análise modal dos percursos do Destinador

Examinemos agora os percursos do Destinador em um texto que revela, de maneira


simples, seus encadeamentos possíveis.

A partida do pai

Apesar das precauções que tomou, colocando todo seu dinheiro em um lenço, o pai o perdeu. Ele foi
então trabalhar como ceifeiro nos arredores de Fez.

Meu pai nos deixou no dia seguinte de manhãzinha. Ele partiu


levando como bagagem apenas uma sacola de pastor feita de folhas de
palmeira e uma foice nova. Minha mãe lhe fez algumas recomendações e
permaneceu, após sua partida, abatida sobre a cama, o rosto escondido
167

entre as mãos. Eu tive a sensação de que estávamos abandonados, de que


nos tornáramos órfãos...
Para minha mãe e para mim, meu pai representava a força, a
aventura, a segurança, a paz. Nunca havia saído de casa.

Minha mãe olhou à direita, depois à esquerda, como se buscasse reconhecer o lugar onde se encontrava,
e me fixou com olhos espantados.

será uma eternidade.

soube antigamente mas teve de esquecer.


Minha mãe pareceu aturdida por essa reflexão.
ocê está esperando?

nada, porque você é gente grande. Quando eu for um homem, usarei belas
túnicas brancas que serão lavadas todos os dias e terei quarenta gatos que
me obedecerão sempre.
Um sorriso iluminou o semblante de minha mãe.

Ela caiu na gargalhada. Sua súbita alegria devolveu-me toda a


confiança e continuei:
rei e nós não teremos mais fome...
-me ela, enquanto eu for viva, você
nunca passará fome, nem que eu tenha que mendigar.

Ahmed Sefrioui, La Boîte à merveilles, Éditions du Seuil, 1954.

5.2.1 Considerações prévias

A pertinência da distinção entre actante e ator está aqui manifesta: o texto presentifica
três atores (o pai, o filho, a mãe), mas a narrativa organiza-se em torno de um único actante,
de uma única função actancial, a do Destinador. A posição e o papel vão ser ocupados
sucessivamente por cada um dos três atores: como se faz com o bastão de uma corrida de
revezamento, o pai, depois o filho, depois a mãe vão passar um ao outro a “carga modal” do
Destinador.
168

Lembremo-nos da dupla definição do actante, no caso, Destinador: a definição inter-


actancial primeiramente, que se baseia na relação que o Destinador mantém com o objeto que ele
constitui como valor, e na relação com o sujeito que ele despacha para que este se realize,
adquirindo o objeto valorizado; e a definição intra-actancial, em seguida, que se fundamenta na
composição modal do actante. Essa dupla definição é, de certa forma, pertinente no contexto dessa
narrativa (o pai e a mãe são figuras instituídas do Destinador), mas é a segunda definição, e apenas
ela, que permite analisá-la eficazmente.
Convém notar, por outro lado, que os modos de manifestação textual da rede modal
constitutiva do Destinador, como de qualquer outro actante (poder, saber, fazer dever, fazer
querer, fazer crer, etc.) podem ser diversificados. As modalidades podem ser revestidas por
um grande número de coberturas textuais, morfossintáticas, lexicais, proposicionais, etc.:
realizam-se, assim, por meio de verbos modais (ex: “Sei”), de lexicalizações abstratas (“a força,
a segurança, a paz”), de encadeamentos de programas finalizados (“Estou esperando me
tornar um homem. [...] quando eu for um homem”), de construções factitivas (“eles me
obedecerão”), de objetos figurativos, enfim (as “túnicas brancas” opostas à “sacola de pastor”
e à “foice nova”). A modalidade constitui assim uma isotopia subjacente e regente, que
estrutura uma grande diversidade de efeitos de sentido de nível mais superficial e garante sua
homogeneização.
Por outro lado, os modos de existência* definem, na semiótica, o estatuto variável das
formas semânticas (actantes, modalidades, temporalidade, etc.) no interior do discurso.
Distinguem-se assim três grandes modos de existência: virtualizado (por exemplo, o sujeito do
querer), atualizado (o sujeito do poder), realizado (o sujeito do fazer). Os papéis e os percursos
actanciais flutuam em razão dessa modulação. Podem pois, no discurso, ver seu estatuto
modificar-se em função desse critério geral. Assim, a transmissão da função actancial entre os
três atores, no texto de Sefrioui, assenta sobre a variação de seus modos de existência. O pai,
Destinador real no início da narrativa, encontra-se em seguida virtualizado; o filho, Destinador
virtual, atualiza-se antes de se virtualizar de novo; e a mãe, não Destinador nas seqüências
iniciais, vem ocupar in fine essa posição actancial, sendo a única a realizá-la. É portanto a
própria estruturação modal, modulada pelos três modos de existência semiótica, que justifica a
segmentação do texto em três percursos distintos do Destinador: o desaparecimento do
Destinador real (o pai), a formação do Destinador virtual (o filho), a realização do Destinador
atual (a mãe).

5.2.2 Análise modal

Fica mais fácil, a partir dessas considerações, seguir os diferentes percursos.


Comecemos pelo caso do pai.
● A constituição do Destinador. Vários elementos no início do texto o constituem como
Destinador, primeiro positivamente, negativamente em seguida. A primeira marca que o
instala de maneira positiva nesse papel é, na verdade, sua denominação. Os sememas de “pai”
implicam a autoridade no contexto sociocultural do discurso de referência. Vem em seguida o
enunciado das competências modais de que ele é o sujeito, pelas lexicalizações abstratas: força,
aventura, segurança, paz. O termo 'aventura' pode surpreender dentro da série de termos
isotópicos em que se inscreve, mas sua presença se justifica facilmente desde que se reconheça
nesse inventário de valores um micro-esquema narrativo condensado, que vai do enunciado da
competência (a força: /poder fazer/) ao da performance (a aventura: o /fazer/) e desta à
sanção positiva final (segurança e paz: /poder/ e /saber ser/). Mas o estatuto modal do pai
169

também é definido negativamente. Com efeito, a perda de todas as competências do sujeito


(mãe + filho), que coincide com sua partida, pressupõe a factitividade correspondente: a perda
do querer (a abulia do “abatimento”) pressupõe um /fazer querer/, a perda do poder fazer (o
abandono, o tornar-se órfão) supõe um /fazer poder/, a perda até mesmo da competência
perceptiva (a ordem do sentido no sensível deteriora-se, a mãe olha “à direita, depois à
esquerda, como se procurasse reconhecer o lugar onde se encontrava”) pressupõe logicamente
um Destinador cognitivo do /fazer ver/, capaz de ordenar o sentido do mundo visível e de
constituí-lo como valor.
● O apagamento do Destinador. Esse papel estabelecido apaga-se, entretanto, de três
maneiras. Primeiramente por seu fracasso na ação (perdeu seu dinheiro). O estado de falta
inicial da narrativa corresponde a uma sanção negativa do próprio Destinador, por uma força
destituinte (o acaso? o destino?). Em seguida, apaga-se pelo desaparecimento de toda
modalização intencional de seu fazer. Como sua partida é apresentada sem nenhuma marca de
/querer/ ou de /dever/, sua definição modal é necessariamente negativa: ela comporta o
caráter inelutável de um /não poder não fazer/, a partida é interpretada pela mãe e pelo filho
como um abandono, e os objetos figurativos que a qualificam nesse momento são marcas do
/não-poder/ no universo cultural de referência: a sacola de folha de palmeira e a foice nova
“por toda bagagem”. O papel do Destinador é aniquilado, em segundo lugar, pela inversão das
relações hierárquicas entre os actantes: o pai torna-se simples sujeito e a mãe, que lhe faz
“recomendações”, vem momentaneamente ocupar o papel do Destinador. Esse fato marca,
sobretudo, a instabilidade da função actancial.
Passemos agora ao segundo percurso, o da formação do Destinador virtual: o filho.
● A constituição do Destinador. Do ponto de vista da enunciação, o filho ocupa uma
posição crucial: na qualidade de narrador, ele é o centro de responsabilidade e de controle do
discurso. É ele que lhe orienta as perspectivas. Como actante narrativo, é igualmente o
elemento dinâmico da narrativa, porque é ele que a faz retomar sua marcha. Rompendo a
abulia, o filho se enuncia logo de início como sujeito de busca, modalizado pelo querer e pela
força intencional. Coloca a questão, deixando clara sua vontade de saber: “Mamãe, é muito
tempo um mês?” Mas, sobretudo, afirma sua competência como sujeito de direito: “Sei
esperar”, e o enunciado de sanção cognitiva que segue imediatamente: “Você não sabe ainda,
ou melhor, você o soube antigamente mas teve de esquecer” lhe confere o papel do
Destinador-julgador. E não é só isso. Ele assegura a programação ordenada e hierarquizada do
futuro, com o enunciado de seu programa de base (“ser um homem”) e dos programas de uso
(usar “túnicas brancas”, ter “quarenta gatos”) que permitirão seu cumprimento. Instala-se ao
mesmo tempo como sujeito factitivo, afirmando a obediência de seu rebanho e a ordem de
sua casa (a forma passiva, nas “belas túnicas brancas que serão lavadas todos os dias” o coloca
como sujeito do /fazer fazer/). Ele determina o sentido da vida apresentando-se como um
sujeito ao mesmo tempo prospectivo e retrospectivo, isto é, inserido em uma história e
definido por essa inserção no tempo da antecipação e da memória (em oposição à personagem
de Charles Cros).
● O desmoronamento do Destinador. Mas esse Destinador não tarda a retornar ao estado
virtual que lhe era próprio. O estatuto de filho, aparentemente tão consolidado, mantinha-se
apenas pela sintaxe (narrativa). Sua falha é semântica: falta-lhe o controle da axiologia de
referência, o conhecimento do sistema de valores sociais. A competência que ele afirma é ao
mesmo tempo incompleta e errônea, manifestando uma ignorância dos valores e um
desconhecimento da hierarquia dos programas. Ignorância dos valores econômicos, pois
“rebanho de gatos”, como uma espécie de oxímoro narrativo, mostra uma incompatibilidade
entre os valores de uso (o “rebanho” serve a um outro fim que não a si mesmo, exprime um
170

valor comercial) e os valores de base (os “gatos” são por si mesmos seu próprio fim,
exprimem valores lúdicos e estéticos) que o sintagma associa. E mais ainda, desconhecimento
dos valores sexuais: a mãe é projetada como esposa. O narrador não domina o tabu do
incesto.

Essa incompetência semiótica do filho é desvendada pela mãe, desorientada no mundo


sensível, mas mantenedora das regras do mundo axiológico. Assumindo assim a sucessão de
seu filho, é ela que vai se manifestar como Destinador real.
● Emergência do Destinador: a mãe, filha de seu filho. Diferentemente do percurso cognitivo
e pragmático do narrador, o percurso da mãe desenvolve-se na dimensão patêmica. Ele é
escandido por um desenvolvimento passional e apresenta-se como uma seqüência modulada
de estados de intensidade crescente, que a transformam gradualmente, fazendo-a passar da
disforia à euforia: abatimento – espanto – estonteamento – sorriso – gargalhada. Essa
conversão progressiva deve-se às propostas do filho, que a mãe ouve, depois escuta, ocupando
a posição de observador. No plano narrativo, podemos falar de engendramento da mãe pelo
filho: é ele que provoca nela o retorno do sentido e da vida. O percurso interpretativo da mãe
consolida-se gradativamente: as significações são analisadas e os valores são compreendidos.
Ela se realiza finalmente como sujeito do saber e do poder: “Sossegue, filhinho. Enquanto eu
for viva, você nunca passará fome.”

Em conclusão, o texto de Sefrioui apresenta-se como um conjunto fechado, um todo de


significação. Esse fechamento está estruturalmente fundamentado na circularidade de um
papel actancial. Para além da coerência ligada à linearidade da narrativa e aos encadeamentos
do diálogo, desenha-se uma outra ordem subjacente: a do paradigma actancial do Destinador
que, como vimos, assume em diferentes níveis cada um dos elementos de significação do texto
(enunciação, atores, programas, figuratividade) e lhes confere estreita coesão. Talvez esteja aí
uma explicação de sua dimensão estética.
O texto constitui-se como um objeto relativamente autônomo em razão da
redundância actancial que pode assegurar-lhe o fechamento, produzindo uma rede de
referências internas que funcionam como rimas semânticas. Já foi ressaltado em diversas
ocasiões o estatuto particular da redundância (quer se trate de rimas de assonância no plano de
expressão poético, ou de redundâncias do conteúdo como neste caso), nos textos classificados
como “literários”: ela participa de sua especificidade, garantindo seu fechamento e instituindo-
os como objetos. A função dessa redundância é, no caso, bem diferente da da comunicação
oral corriqueira, em que ela tem um estatuto essencialmente “fático” de manutenção do
contato. Podemos citar a esse respeito um excerto de Greimas que nos parece poder
esclarecer, ainda hoje, nossa reflexão sobre seu famoso, e muito discutido, “fechamento” do
discurso: “A comunicação lingüística compreende, de um modo geral, uma forte redundância
que se pode considerar do ponto de vista da informação como uma “falta a obter”. A
originalidade dos objetos “literários” (o termo é absolutamente impróprio) parece poder
definir-se por outra particularidade da comunicação: o enfraquecimento progressivo da
informação, correlativo ao desenvolvimento do discurso. Este fenômeno geral é sistematizado
pelo fechamento do discurso: a suspensão do fluxo de informações dá nova significação à
redundância, que, em vez de constituir uma perda de informação, valoriza os conteúdos
selecionados e fechados. O fechamento portanto transforma o discurso em objeto estrutural e
a história em permanência.”179

179
A. J. Greimas, Sobre o sentido: ensaios semióticos, Petrópolis, Vozes, 1975, p. 255-6.
171

SÍNTESE

PERCURSOS ACTANCIAIS E SINTAXE MODAL

A definição estrutural dos actantes é interactancial: definem-se uns em relação aos outros, no âmbito de relações
sintáxicas. Essa definição esclarece o estatuto do ator (ou a tradicional “personagem”) que se situa na junção da
sintaxe narrativa (é um actante, dotado de programas narrativos) e da semântica discursiva (possui um ou
diversos papéis temáticos geralmente humanos e socializados, e manifesta-se sob uma forma figurativa - cf. os
“retratos”) Construído, dessa forma, por critérios semânticos e sintáxicos, o conceito de ator evita a psicologia
dos temperamentos que se prende à noção fluida e subjetiva de “personagem”.

Mas uma abordagem interna da estrutura do actante inverte a perspectiva


e lhe sugere uma nova definição: ele passa a resultar então da composição modal
que lhe estabelece o estatuto a cada momento do texto, permitindo uma
abordagem ao mesmo tempo mais flexível e mais próxima da realidade do
discurso.
A modalidade é um predicado que modifica outro predicado. Essa
definição geral, compartilhada pelas diferentes disciplinas que estudam o campo
das modalidades (lógica, lingüística, semiótica) está especificada na semiótica.
Distinguindo-se ao mesmo tempo da modalização lingüística (que caracteriza a
relação que o sujeito enunciador mantém com seu enunciado, segundo seus
graus de certeza por exemplo) e da modalização lógica (que considera a
modalidade no cálculo proposicional, fora da realidade cultural do discurso), a
semiótica considera que a modalidade forma, tanto no nível da enunciação como
no interior dos enunciados, o “suporte constante do discurso” (J. -C. Coquet).
Falamos então em valor modal. Os enunciados elementares (enunciados de
estado e enunciados de fazer) podem funcionar como enunciados modais,
desnudando assim a estrutura interna do esquema narrativo: a manipulação é o
fazer de um sujeito que modaliza o crer, o querer, o saber... e finalmente o fazer
de um outro sujeito (factitividade); a competência é o ser modalizando a
possibilidade de fazer; a performance é o fazer que modaliza o ser (“fazer ser”
define o ato); a sanção é o ser que modaliza o ser ou o parecer (o julgamento de
veridicção). Definindo o estatuto do próprio actante, a modalidade pode ser
manifestada por verbos modais (querer, dever, crer, saber, poder), mas também
por formantes figurativos (um automóvel, por exemplo, pode modalizar seu
proprietário pelo /poder/). A estrutura do actante é analisável ao mesmo tempo
em termos de paradigma modal (um sujeito pode ao mesmo tempo querer fazer,
poder fazer e dever não fazer), segundo uma combinatória eventualmente
complexa e em termos de sintagmática modal (seu estatuto é evolutivo ao longo
do discurso).
O modo de existência define o estatuto variável das formas de presença
sob as quais os objetos semióticos se manifestam no discurso (actantes,
172

modalidades, temporalidade, etc.). A tradição saussuriana distinguia a existência


virtual (o sistema da língua) e a existência atual (sua realização na fala).
Ampliando seu campo de aplicação, a semiótica adicionou à virtualização e à
atualização um terceiro modo de existência, a realização. Assim, o contrato ou a
manipulação virtualizam o sujeito, a competência o atualiza, a ação e o
reconhecimento o realizam: as modalidades do crer, do querer ou do dever
engendram um sujeito virtual, o saber e o poder um sujeito atualizado, o fazer
um sujeito realizado. Podemos considerar, pois, que os modos de existência
referem-se à modulação das formas de presença do sentido no interior do
discurso; assim, por exemplo, no caso das figuras de retórica como a metáfora, a
coexistência eventualmente tensa e contraditória entre os diferentes planos de
significação convocados pela figura é regida por seus modos de existência: um
pode ser virtualizado, outro atualizado, um terceiro potencializado, um quarto
realizado. Podemos assim dar conta, tão perfeitamente quanto possível, de sua
realidade flutuante, das modulações do sentido.
Esses elementos de análise permitem precisar o funcionamento das
principais relações actanciais entre sujeito e objeto, entre objeto e valor, entre
destinador e sujeito, e delinear seus respectivos percursos.
173

CAPÍTULO 11
Semiótica das paixões
1 A localização do espaço passional

A semiótica das paixões se origina diretamente das hipóteses teóricas e dos procedimentos
metodológicos da semiótica geral. Assim, o estudo das dimensões pragmática e cognitiva dos
discursos deixava na sombra, como um vazio a preencher, a dimensão dos sentimentos, das
emoções e das paixões que ocupam, no entanto, um lugar essencial nos discursos, sejam eles
literários ou não. A introdução dessa dimensão patêmica* se fez progressiva e prudentemente,
situação em que o engajamento da subjetividade nas paixões convida espontaneamente a análise a
acompanhar a psicologia e a sair assim de seu campo de pertinência. Ora, trata-se, na verdade, aqui
de construir uma semântica da dimensão passional nos discursos, isto é, considerar a paixão não
naquilo em que ela afeta o ser efetivo dos sujeitos “reais”, mas enquanto efeito de sentido inscrito e
codificado na linguagem. Esta contribui, por sua vez, pelas configurações culturais que inscreve no
discurso, para moldar nosso imaginário passional, valorizar esta ou aquela paixão, desvalorizar uma
outra, fazer da paixão o motor do trágico ou, ao contrário, estabelecer um dever, poderíamos quase
dizer uma virtude social.
Podemos distinguir, em linhas gerais, duas abordagens semióticas da
problemática das paixões, que sustentam um confronto: a primeira faz emergir a
dimensão passional, a partir da semiótica da ação, tomando de empréstimo seus
modelos e considerando-a fundamentalmente em sua dimensão sintáxica (no
sentido semionarrativo do termo). Essa abordagem é ilustrada principalmente na
obra de A. J. Greimas e J. Fontanille: Semiótica das paixões. Dos estados de coisas aos
estados de alma (1993)180. A segunda estabelece a dimensão passional a partir do
estatuto particular do sujeito da paixão, oponível ao sujeito do julgamento.
Centrada nas formas da identidade subjetiva, essa abordagem reativa a categoria
tópica paixão/razão cuja descrição ela renova, enraizando-a na atividade de
discurso. Ela é ilustrada por J.-C. Coquet, na sua obra La quête du sens. Le langage
en question (1997).

1.1 Ação e paixão


1.1.1 O agir e o sofrer

A história da semiótica textual é, como vimos, amplamente ligada à narratividade cujos


modelos parecem moldar a estrutura constante do discurso. A prioridade inicial concedida
à narrativa, a formalização da sintaxe narrativa e, mais tarde, a generalização de uma
dimensão semionarrativa capaz de formar a arquitetura de todo tipo de discurso, quer ele
seja do âmbito da narrativa ou não (discurso científico, filosófico, etc.), contribuíram para
dar à narratividade um lugar central na teoria semiótica.

180
[N. dos T.] O original francês data de 1991.
174

O modelo da pesquisa tornou-se, então, uma forma não exclusiva mas


canônica. Ele está centrado nas relações entre o sujeito e o objeto, enquadrado
pelos percursos do destinador (mandante e julgador), polemicamente estruturado
pelo percurso do anti-sujeito, inscrito enfim no quadro geral do esquema
narrativo. E, mais precisamente, o núcleo da gramática narrativa, o programa,
ilustra a maneira pela qual se realiza em discurso a transformação dos estados de
coisas, fundada sobre a discretização dos enunciados de estado, por meio de uma
sintaxe elementar de aquisição, de privação ou de partilha dos valores inscritos
nos objetos desejáveis: dom, luta, troca, contra-dom, etc. Os enunciados de
junção (conjunção, disjunção e seus contraditórios) formam a operação de base
dessa sintaxe fundada sobre a descontinuidade dos estados, cuja transformação é
assegurada pelos enunciados de fazer.
Ora, se essa análise representa eficazmente a ação e a transação, ela tende
a fazer das posições actanciais lugares fixos que, embora compostos de um feixe
de modalidades variáveis, são, todavia, sempre considerados por sua visão
transformadora, seu fazer. O actante é um simples operador. Por conseguinte, a
análise não leva em conta a modulação dos estados do sujeito, agitado, instável,
flutuante, em seu face a face com a ação. Essa modulação se desdobra, como
uma variação contínua, em torno da junção: anterior ou posteriormente. O
espaço passional se desenha: é o da relação entre o sujeito e a junção,
focalizando o dinamismo interno, poderíamos dizer íntimo, dos estados. As
definições dos lexemas afetivos que o dicionário propõe permitem situar
claramente o problema. Assim o Petit Robert define “afeto” como “estado afetivo
elementar”, “afeição” como “estado psíquico acompanhado de prazer ou dor”,
“afetividade” como “tendência a ser afetado de prazer ou de dor” e “paixão”
como “todo estado ou fenômeno afetivo”, ou mais precisamente como “estado
afetivo e intelectual muito forte, capaz de dominar a vida do espírito, pela
intensidade de seus efeitos, ou pela permanência de sua ação.”

1.1.2 O espaço da junção

Estendendo essa pesquisa ao léxico passional, podemos dar-nos conta de


tudo que se representa em torno da relação juntiva, isto é, dos “estados”. Desse
modo, a impaciência, “incapacidade habitual de se conter, de ter paciência”, remete
à definição da paciência que é uma “disposição de espírito de uma pessoa que
sabe esperar, mantendo sua calma.” Transposta para a metalinguagem semiótica,
a impaciência exprime, portanto, o estado iterativo de um sujeito disjunto que
virtualiza, sobre o modo da intensidade, sua conjunção com um objeto desejado.
A impaciência é uma modalidade intensiva do querer. A cólera, que exprime a
frustração de um sujeito em relação a um objeto do qual ele está privado e ao
qual ele “crê ter direito”, intensifica, em relação a ela, o estado de disjunção. O
175

entusiasmo, ao contrário, intensifica a conjunção, quer ela seja ou não realizada; a


nostalgia marca a persistência, na memória do sujeito, de uma conjunção
terminada; a avareza associa a intensidade de uma conjunção (adquirir e
acumular) com a da não-disjunção (reter)...
Essas poucas observações não esgotam, de maneira alguma, a
significação das configurações passionais, mas permitem localizar sua descrição
semiótica: no centro do programa narrativo, o que nomeamos o “passional”
focaliza a relação juntiva, cujo espaço ele dilata, marcando, desse modo, uma
parada no desenvolvimento dos programas de ação, mas depreendendo um novo
universo de significações que a abordagem estritamente narrativa tendera a
mascarar. O espaço passional, feito de tensões e aspectualizações cujo estatuto
deverá ser precisado é, pois, da ordem do contínuo e se dispõe “em torno” das
transformações narrativas. É desse modo que a semiótica do agir permite
identificar o lugar, reconhecível no discurso, de uma semiótica do sofrer. A
problemática da paixão se define em relação à da ação.

1.2 Razão e paixão

Já tínhamos evocado, quando de nosso estudo da enunciação (cf.


anteriormente, cap. 3, {p.??? – 64 do original}, as principais teses da teoria do
discurso que
J. -C. Coquet elaborara, com uma grande persistência, ao longo de suas obras:
Sémiotique littéraire (1972), Le discours et son sujet (1984-1985) e La quête du sens
(1997).
Voltemo-nos a suas grandes linhas para situar a introdução da paixão e
de seu sujeito. Considerando que a atividade do discurso não pode ser separada
da experiência concreta e vivida da realidade, J. -C. Coquet dá prioridade
absoluta ao discurso em ato, responsável pelo modo de presença do sujeito no
mundo e fundador de sua identidade. A semiótica que ele desenvolve pode,
portanto, ser definida como uma fenomenologia discursiva.
Relacionado a um sujeito que é simultânea e indissociavelmente,
poderíamos dizer, sujeito de fala e sujeito de percepção, o universo da
significação é regido por um dispositivo de actantes. Definidos, como vimos, por
seu modo de junção predicativa, esses actantes são evolutivos e moduláveis a
todo instante no discurso. Em razão dos modos flutuantes da predicação, eles
não comportam uma morfologia estável e apresentam, por isso, em cada ato de
fala, uma faceta de identidade. Compreendemos que a análise das modulações
que os afetam permitirá caracterizá-los e fixar-lhes uma tipologia, em cujo
interior se posicionará, entre outros, o sujeito da paixão.
176

Lembremo-nos de que esses actantes-tipo são três, cuja natureza


posicional indica que eles podem transitar de um lugar para outro: o “primeiro
actante”, cindido em duas instâncias, o não-sujeito (ou actante funcional, cuja
atividade é a predicação sem assunção de seu ato) e o sujeito (ou actante pessoal,
cuja atividade é a asserção assumida, implicando o julgamento); o “segundo
actante” (ou objeto); o “terceiro actante”, instância de autoridade dotada de um
“poder”, conceito próximo do de Destinador. Dotada desses instrumentos, a
análise pode circunscrever as modulações da atividade enunciativa e delimitar as
transformações, às vezes ínfimas, que determinam a posição e o papel do sujeito.
O primeiro actante, com suas duas divisões, está no centro da problemática,
porque é ele que define, em primeiro lugar, os modos de “presença” do sujeito
do discurso. É nele e mais precisamente na instância do não-sujeito, que recai a
função de abrigar a teoria da paixão.
Ao evocar “o poder da fenomenologia” no Prefácio de La quête du sens,
J.-C. Coquet afirma a importância da materialidade sensível do significante que
leva a reconhecer a irredutível implicação do próprio corpo no acontecimento de
linguagem e a depreender, ao lado de uma estrutura do julgamento que o sujeito
do discurso assume, uma “estrutura da paixão” que ele não assume. Esta
determina a ordem do discurso, com seu regime de invasão mais do que de
domínio do sentido. A paixão é, portanto, relacionada à instância do não-sujeito.
O ato de julgamento, isto é, de domínio pela instância sujeito, só intervém “em
uma seqüência posterior ao momento da experiência” passional.181 As duas
partes dessa estrutura, que constitui o “esquema de base da análise
fenomenológica do discurso”182, indicam, portanto, que o estatuto do não-sujeito
é central, nas relações dialéticas que ele entretém com o sujeito: este último,
sujeito da asserção, não pode existir sem o não-sujeito da predicação que
manifesta mais fundamentalmente “nossa inserção no mundo”. Encontram-se,
assim, associadas a identidade fenomenológica de Merleau-Ponty, enraizada no
irrefletido da presença sensível no mundo, e a identidade enunciativa de
Benveniste, fundada sobre a afirmação do ego. Esta vem, de algum modo,
assumir aquela que condiciona, por sua vez, o modo de existência da primeira. O
domínio do sujeito, escreve J. -C. Coquet, é o “lugar em que ‘o irrefletido é
compreendido e conquistado pela reflexão’, melhor dizendo, pelo ego”.183
Resumamos. O duplo estatuto da instância enunciante, simultaneamente
fenomenológica e lingüística, se analisa no nível mais abstrato dos actantes.
Entre eles, a relação entre não-sujeito e sujeito é crucial. Ora, o estatuto do não-
sujeito é ambíguo na medida em que ele se desdobra em duas funções
claramente distintas. De fato, “classe actancial construída sobre a exclusão do
julgamento” (p.248), o não-sujeito designa primeiramente o actante que “só

181
La quête du sens. op. cit., p.14.
182
Ibid, p.8.
183
Ibid, p.250.
177

executa aquilo para o que foi programado”, aquele que “é assimilável a sua
função” (p.154), aquele que “só sabe sua lição” (pp.41 e 207). Mas ele caracteriza
igualmente, como vimos, a instância do sujeito passional, privado ele também do
exercício do julgamento assumido. Na primeira acepção, três critérios o definem:
a ausência de julgamento, a ausência de história, o número limitado dos
processos de que pode ser o agente. O lobo da fábula é, desse modo, analisado
como um não-sujeito que, submetido à programação mecânica de sua natureza
predadora, tenta em vão se ajustar a seu estatuto actancial. Tais critérios são
aplicáveis ao sujeito passional? O apaixonado é, no mesmo sentido, um não-
sujeito? O sujeito patêmico não pode destacar-se de sua própria inerência,
inserido, fundido nos imperativos sensíveis do próprio corpo, “parte opaca” de
seu ser no mundo. O corpo é a instância do não-sujeito (p.12). Essa análise é
confirmada pelas proposições sobre o devir, tempo contínuo da presença, cuja
experiência é remetida, pela mediação do corpo, à mesma instância do não-
sujeito. Portanto, a ambigüidade aparece claramente; assim, o comentário de uma
citação de Sarrasine (“‘Ser amado por ela ou morrer!’ tal foi a paralisação que
Sarrasine se impôs”) indica que Balzac “apresenta o jovem escultor como um
sujeito apaixonado, mas um sujeito”, antes de indicar, no enunciado que segue, a
perda do julgamento e sua “transformação brutal em não-sujeito” (p.248). Esse
paradoxo das duas variedades de não-sujeito, funcional e passional, aparece
vivamente na análise da paixão, porque aí é “o corpo, a instância não-sujeito, que
representa melhor o bastião da autonomia, portanto, da liberdade” (p. 12, grifo
nosso), no momento em que o não-sujeito funcional é prisioneiro de sua
programação. Nas “supremas delícias do não-sujeito (p. 29) se reuniriam, então,
Teresa d’Ávila, cujos textos místicos são emblemáticos do discurso apaixonado,
e o lobo da fábula? Percebemos claramente a força da ligação – a própria
inerência, a corporeidade e a implantação no mundo sensível – mas como fazer a
separação entre as duas formas de não-sujeito?
De qualquer modo, no segundo plano dessa análise que coloca o
passional – ou o emocional – como alicerce permanente e condição inevitável do
discurso dominado, desenha-se uma dicotomia fundamental entre paixão e
julgamento, entre paixão e razão. A assunção do discurso que se estabelece na
plenitude do julgamento se depreende das condições passionais pregnantes do
não-sujeito, de sua euforia e de seu sofrimento.
As duas abordagens semióticas da paixão são, desse modo, muito
distintas. Elas nos parecem, na verdade, mais complementares do que
antagônicas, apoiando-se ambas em dois grandes topoi clássicos: ação/paixão,
razão/paixão. Desenvolveremos, entretanto, aqui o procedimento que funda a
análise das paixões sobre sua objetivação na linguagem, a partir dos modelos
(actanciais, modais e aspectuais) que permitiram a análise da ação. O horizonte
desse procedimento, com efeito, não é o da exclusiva subjetividade negociando
sua ancoragem no real e sua desancoragem pelo discurso assumido. Esse
178

horizonte é, de agora em diante, o de uma subjetividade cujos estados individuais


(estados de alma) são moldados pelas formas de expressão que a história cultural
depositou na linguagem, dando lugar a configurações passionais mais ou menos
estáveis, diferentemente categorizadas e valorizadas segundo as culturas e as
épocas, e abrindo, assim, mais largamente, a análise da paixão à dimensão
histórica, social, estética e antropológica que a caracteriza.184

2 Elementos de análise das paixões


2.1 A modalização dos estados

O estudo semiótico das paixões assenta-se sobre as modalidades que definem


reciprocamente o estatuto do sujeito e do objeto. A paixão, nessa perspectiva, aparece
como um excesso, um excedente em relação a uma estrutura modal. Antes de precisar
esse ponto, lembremo-nos da concepção semiótica da modalidade. Esses elementos de
reflexão completam o que já foi examinado a esse respeito (cf. a quarta parte:
“Narratividade”).

2.1.1 Extensão do campo da modalidade

A modalização do fazer define a competência do sujeito; ela dá conta das


relações intencionais. Essa competência modal do sujeito, convém lembrar, pode
ser apreendida como uma organização paradigmática e/ou sintagmática. Do
ponto de vista paradigmático, o sujeito é dotado de uma carga modal mais ou
menos complexa, constituída por modalidades compatíveis, contrárias ou
contraditórias que o definem a cada instante de seu percurso. Compatíveis, elas
definirão, por exemplo, a coerência do sujeito positivo e contratual da ação:
/dever/, /querer/ e /poder fazer/; incompatíveis, elas definirão, por exemplo,
um sujeito conflitual da transgressão: /dever não fazer/, /querer fazer/ e /poder
fazer/. Do ponto de vista sintagmático, a carga modal é apresentada,
simultaneamente, como hierarquizada e evolutiva. Uma modalidade dominante
define o sujeito, pondo as outras sob sua dependência: por exemplo, o /querer/
regerá, ao longo do percurso, o saber e o poder fazer, formando um “sujeito de
desejo”, ou será o /saber/ que formará a modalidade diretriz, dominando o
querer e o poder fazer, para formar um “sujeito de direito”. (J. -C. Coquet). A
organização sintagmática das modalidades pode conduzir à elaboração de uma
tipologia dos sujeitos. Ela permite igualmente compreender como um sujeito
narrativo pode ver sua estrutura modal evoluir e se modificar ao longo do
discurso que o põe em cena (é o que a análise do texto de A. Sefrioui mostrou).

184
Remetemos, para essas análises, à obra de A. J. Greimas e J. Fontanille – Semiótica das paixões. Dos
estados de coisas aos estados de alma, op. cit.
179

Esse vasto conjunto de modalidades, mesmo sendo complexo,


permanece exclusivamente centrado nos enunciados do fazer. Ele só se interessa
pelos percursos e avatares da ação, pressupondo a estabilidade dos valores
inscritos nos objetos, a permanência do enfoque do sujeito e, sobretudo, a
ausência de “restos” quando a transformação é realizada. O sujeito da busca não
parece conhecer nem entusiasmo, nem saudades, nem inquietude, nem
ressentimento. A introdução da problemática das paixões convida a examinar,
com mais cuidado, a realidade do discurso, principalmente do discurso literário e,
permanecendo na coerência dessa perspectiva modal, a aprofundar e a
desenvolver-lhe os modelos. O passional pode ser entendido como uma variação
dos estados do sujeito, permitindo depreender uma outra ordem de relações,
aquelas que definem sua “existência modal” por meio da modalização dos
enunciados de estado.

2.1.2 As modalidades do ser

A modalização do ser, segundo grande campo da modalidade, descreve,


pois, o modo de existência do objeto de valor em ligação com o sujeito: ela dá
conta, não mais das relações intencionais, mas das relações existenciais e define,
por decorrência, o estatuto do sujeito de estado. Tal objeto lhe será desejável ou
odiável, almejável ou temível, indispensável ou irrealizável, etc. Seu estado
(“estado de alma”) estará sob a dependência da modalidade investida nos objetos
de seu horizonte axiológico. É possível dar conta da formação dessas estruturas
semióticas, postulando um nível subjacente de articulação do sentido: o da timia.

2.2 Da timia à análise modal das paixões

2.2.1 Gênese conceitual

No nível das estruturas profundas, formulamos a hipótese da “massa”


tímica*. Essa noção, tomada de empréstimo à psicologia (do grego thumos,
“coração, afetividade “: “Humor, disposição afetiva de base”, Petit Robert; cf. o
derivado corrente: “ciclotimia”), é incorporada à semiótica enquanto categoria
semântica profunda, ou seja, como classema. Ela nomeia a relação primitiva que
todo ser vivo mantém com sua ambiência, a maneira como ele se sente em seu
meio, entre atração e repulsão. Sob a denominação mais neutra de “foria” (o
movimento portador), ela pode ser articulada em dois termos contrários: /eu-
foria/ vs /dis-foria/, e um termo neutro: /a-foria/.
180

No nível das estruturas semionarrativas, o espaço fórico encontra sua


correspondência no espaço modal que o articula: aí se realizam as modificações
do estatuto do objeto, e mais precisamente do valor do objeto, na sua relação
com o sujeito de estado. O valor, nesse sentido, é uma estrutura modal que,
afetando uma grandeza semântica qualquer, modifica sua relação existencial com
um sujeito. Compreendemos então que o sujeito possui uma existência modal que
pode ser perturbada, a todo momento, quer pelas modificações que ele mesmo
impõe aos valores dos objetos (que, de desejáveis, por exemplo, tornam-se
subitamente odiáveis: “assim nosso coração muda, na vida, e esta é a pior dor”,
escreve Proust), quer por aquelas que outros atores operam no mesmo ambiente
que ele (como no caso do ciúme).
A existência modal coloca, portanto, o valor em movimento e em jogo.
Ela dá lugar a interrogações inquietantes sobre “o valor comparativo de valores
de inegável valor”, a “tensões de inegável importância”, a conflitos de valor. É
impossível, com efeito, no universo do discurso, haver “sujeitos neutros, estados
indiferentes, competência nula5”.

2.2.2 Tipologia

Já observamos que os sufixos –ável, -ível manifestam, no nível superficial


da lexicalização lingüística, a modalidade investida no objeto, seu poder ser. Eles
são sintomáticos desse tipo de modalização. As modalidades que podem
modificar os enunciados de estado (querer, dever, saber, poder) podem ser
dispostas em um quadrado semiótico que sugere assim uma taxionomia de base
para uma sintaxe modal dos estados:

desejável ( invejável) nocivo (odiável, temível)


querer ser querer não ser

não querer não ser não querer ser


não nocivo não desejável

Sobre o mesmo modelo, podemos articular: o /dever ser/ (indispensável),


o /não dever ser/ (fortuito), o /dever não ser/ (irrealizável), o /não dever não
ser/ (realizável); /o saber ser/ (verdadeiro), o /não saber ser/ (desconhecido), o
/saber não ser/ (ilusório). O /não saber não ser/ (irreconhecível?); o /poder

5
A. J. Greimas, “De la modalisation de l’être”, Du sens II, op. cit. p. 102.
181

ser/ (possível), o /não poder ser/ (impossível), o /poder não ser/ (discutível), o
/não poder não ser/ (indiscutível).
Os fenômenos passionais se traduzem no discurso por uma disposição
complexa de modalidades, muito freqüentemente contraditórias e incompatíveis,
criando um verdadeiro “tumulto modal” do qual, apenas as tipologias,
naturalmente, não dão conta. Para analisar os efeitos de sentido passionais tal
como se manifestam na língua e nos discursos, não podemos, portanto, nos ater
unicamente à modalização dos estados. Com efeito, apenas desse ponto de vista,
nada permitiria perceber o que distingue o “econômico” e o “avaro”: ambos se
definem pelo /querer/ e /dever estar/ conjuntos aos objetos de valor e à
vontade de não estar disjuntos. Devemos tomar o que aparece como um
excesso, uma excrescência da estrutura modal: ao mesmo tempo a
“sensibilização” dos dispositivos modais e sua “moralização”, duas
configurações que enquadram os dispositivos passionais.

2.3 O enquadramento dos dispositivos passionais

2.3.1 Inicialmente, a sensibilização

Do mesmo modo que precedentemente a categoria tímica subtendia, no


nível das estruturas profundas, a modalização do ser, igualmente aqui devemos
postular uma categoria primitiva da “tensividade” (intensivo vs distensivo) que
será analisada, em um nível mais superficial, em aspectualização. O aspecto*,
definido em lingüística como “ponto de vista sobre o processo”, articula, como
sabemos, as categorias do acabado e do não acabado, do incoativo, do durativo,
do iterativo, do terminativo. Parece que a categoria da tensividade,
intuitivamente percebida como uma propriedade das figuras passionais, pode ser
interpretada como uma forma primeira de aspectualização. A dimensão passional
articularia, pois, uma estrutura modal e uma estrutura aspectual que a
sobredetermina.
Assim, a impulsividade pode ser compreendida como o modo de
existência de um sujeito possuído pelo dever ser imperioso de seus objetos
(anterior a todo querer e poder fazer), modalidade que determina em intensidade
o aspecto incoativo (o impulsivo começa) e o aspecto iterativo (ele começa
sempre): “caráter do que age sob a impulsão de movimentos espontâneos,
irrefletidos ou mais fortes que sua vontade” (Petit Robert). A obstinação caracteriza
o sujeito que não somente quer fazer, mas quer ser aquele que faz, sabendo bem
que a conjunção a que ele visa pode não se realizar, ou mesmo pode não ser: ele
quer apesar dos obstáculos, e a própria resistência alimenta sua vontade. O
querer ser aquele que faz se constrói no espaço de um agir sempre diferenciado.
182

Aqui aparece a tensividade aspectual, sobre o modo da duratividade (“aquele que


se apega de maneira duradoura a um modo de agir”, diz o dicionário). Os traços
aspectuais definem a maneira de ser que “sensibiliza” a modalidade e a rege,
atribuindo-lhe valores variáveis.
Os diferentes parassinônimos da obstinação podem assim aparecer
como o mesmo número de graus de intensidade em torno do mesmo sintagma
modal: “constância”, “perseverança”, “insistência”, “tenacidade”, “obstinação”,
“teimosia”, “pertinência”. O léxico, muito rico, nesse aspecto, em francês, parece
sensibilizar segundo uma escala gradual o /querer ser aquele que faz/ da
obstinação. Ora, como vemos, somente a aspectualização não é suficiente para
dar contas das variações observadas. De fato, sobre a base de uma estrutura
modal e aspectual similar, tal termo comportará um traço passional (“teimosia”,
por exemplo), enquanto que tal outro não o comportará (“perseverança”). O que
é que define então, além dos instrumentos já propostos, a especificidade do
estado passional? Esse elemento discriminatório procede de uma avaliação
axiológica, terceiro traço que entra na definição semiótica da paixão: é a
moralização.

2.3.2 Posteriormente, a moralização

A vergonha e o remorso vêm sancionar, prolongando a confissão, o


percurso passional de Fedra: “Ah! Do crime horroroso cuja vergonha me segue/
Jamais meu triste coração recolheu o fruto” (v. 1291-92) e “Eu quis, diante de
vós, expor meu remorso,/ Por um caminho mais lento descer em direção aos
mortos” (v. 1635-36). Paixão moral, a vergonha aparece, assim, como a última
figura passional que inventaria e retroativamente avalia todas aquelas que a
precederam: amor incestuoso, ciúme criminoso, ódio. Um crivo de moralização
torna a paixão nomeável e lhe assegura, de um certo modo, o fechamento. Aqui
o actante social, o Destinador coletivo, vem exercer o papel de regulador. A
configuração passional se encontra, então, inserida no espaço comunitário que
não somente a sanciona e a julga como mal ou bem (pejoração/melhoração), não
somente a avalia qualitativa e quantitativamente (entre a medida e o excesso),
mas mais profundamente a seleciona como tal. O reconhecimento, que é antes
identificação, é, em seguida, somente julgamento axiológico sobre o pano de
fundo das normas que regem a justa circulação, no interior do espaço
comunitário, dos bens e dos valores.
As boas e as más paixões, submetidas a regimes de sensibilização e de
moralização variáveis formam assim taxionomias conotativas que permitem
identificar e distinguir formas culturais (o estatuto da avareza é axiologicamente
diferente na cultura francesa, com O avaro, por exemplo, e na cultura árabe, com
O livro dos avaros, de Djahiz), ou variações históricas no interior de uma mesma
183

cultura (a avareza é uma paixão cômica no século XVII em Molière, uma paixão
trágica no século XIX em Balzac). As taxionomias que modelam as
configurações passionais procedem do uso.
Essa inserção do passional na práxis enunciativa das comunidades lingüísticas e culturais
leva, de um lado, a relativizar o caráter eminentemente subjetivo e individual da paixão
(que podemos igualmente interpretar como uma conotação cultural), e, de outro lado, a
ressaltar o caráter fundamentalmente intersubjetivo das paixões. As que podemos
considerar como paixões de objetos (a avareza, por exemplo) são também submetidas às
regulações intersubjetivas que as identificam e as localizam, sensibilizando-as e
moralizando-as . Não há paixão solitária. As paixões, assim identificadas e compreendidas,
dão lugar a tipos passionais que podem ser interiorizados, favorecendo as regulações por
antecipação da comunicação entre interlocutores. Cada um modula e adapta seu discurso
em função da previsibilidade do esquema passional de seu parceiro. A paixão comanda,
nesse sentido, as estratégias intersubjetivas.

2.3.3 O esquema passional canônico


Assim enquadrado, o percurso passional se desenvolverá em um esquema
que, a exemplo do esquema narrativo canônico, se inscreve em uma coerência formal
e vem associar seu modelo de previsibilidade ao esquematismo da ação: ao percurso
do “fazer” do sujeito se junta, entrelaçando-se a ele, um percurso do “ser”. A uma
semiótica do agir (a narratividade) se integra uma semiótica do sofrer (a dimensão
passional). Esse esquema, longamente discutido por A. J. Greimas e J. Fontanille em
Semiótica das paixões, encadeia quatro seqüências das quais examinamos a segunda
e a última.

disposição  sensibilização  emoção  moralização


(cf.contrato competência ação sanção)

À disposição corresponde o estado inicial, ou seja, a disposição do sujeito para acolher tal
ou tal efeito de sentido passional. A disposição indica o estilo passional do sujeito, seu
“caráter”. À “emoção” corresponde a crise passional que prolonga e atualiza a
sensibilização; é o momento da patemização propriamente dita, que manifesta, por
exemplo, o discurso passional.
Ilustremos brevemente esse modelo por meio de uma “teoria” da
paixão, enunciada por uma educadora, anti-libertina, dos Desatinos do coração e do
espírito de Crébillon.

3. Um dispositivo passional

O amor em um coração virtuoso se mascara por muito tempo [...]: sua primeira
impressão se faz mesmo sem que nos apercebamos disso; não parece inicialmente senão um
gosto simples, e que podemos justificar facilmente. Esse gosto cresce, encontramos razões
184

para desculpar seu progresso. Quando, enfim, provamos sua desordem, ou não há mais tempo
de combatê-lo, ou não queremos mais isso. Nossa alma, já apegada a um erro tão doce,
angustia-se de se ver privada dele; longe de pensar em destruí-lo, nós mesmos nos
empenhamos em aumentá-lo. Parece que tememos que esse sentimento não aja bastante por si
mesmo. Procuramos incessantemente sustentar a desordem de nosso coração e nutri-lo das
quimeras de nossa imaginação. Se, às vezes, a razão quer nos iluminar, isso é somente um
lampejo que se apaga no mesmo instante, que não faz senão nos mostrar o precipício, e não
durou bastante para nos salvar. Envergonhando-nos de nossa fraqueza, ela nos tiraniza,
fortifica-se em nosso coração pelos próprios esforços que fazemos para arrancá-la, apaga nele
todas as paixões ou converte-se em seu princípio. Para nos aturdir ainda mais, temos a vaidade
de crer que não cederemos nunca, que o prazer de amar pode ser sempre inocente. Em vão,
temos o exemplo contra nós: ele não nos resguarda de nossa queda. Vamos de desatinos em
desatinos, sem prevê-los nem senti-los. Perecemos virtuosas ainda, sem estar presentes, por
assim dizer, no momento fatal de nossa derrota; e incorremos na culpa sem saber, não
somente como chegamos a isso, mas freqüentemente ainda antes de pensar que jamais
pudéssemos chegar a tanto.
Crébillon fils. Les égarements du cœur et de l’esprit (1736-1738).
Paris, Flammarion, 1985, p. 108.

Esse texto, em Os desatinos, apresenta-se como uma antítese da


iniciação amorosa que o jovem Meilcour, o narrador, recebe, principalmente, da
parte do libertino Versac. O discurso da Dama se dirige à jovem desconhecida
que Meilcour encontrou na ópera e pela qual ele subitamente se apaixonou.
Trata-se de uma precaução que organiza, de maneira exemplar, o percurso
passional estereotipado. O excerto ilustra, com efeito, de maneira quase
canônica, a seqüencialização da paixão. Ele inscreve seu desfecho nas grandes
unidades de um esquema passional. A estrutura do texto oferece, assim, uma
gradação de intensidade em três tempos. No interior de cada uma delas se
distribuem, de maneira relativamente homogênea, as quatro fases do esquema:
disposição, sensibilização, emoção, moralização.
 Tudo começa pela disposição, a do “coração virtuoso”, concebido como
um dispositivo de acolhida. A sensibilização (“primeira impressão”) opera
em seguida, até a revelação da “desordem”. A fase patêmica da emoção
(emoção 1) continua nos enunciados que acompanham, e cujas estratégias
sustentam, a “desordem de nosso coração”. Quando a “razão” intervém,
uma primeira fase de moralização se estabelece. Sem sucesso.
 O “doce erro”, cujo oxímoro manifesta por si só o efeito de
sensibilização, torna-se o sujeito autônomo de uma segunda fase patêmica
(emoção 2), de uma intensidade mais elevada. Sujeitos e objetos da paixão
desapareceram da cena: o mecanismo autárquico do passional invade toda
a cena narrativa. A paixão torna-se o princípio regulador e predador de
todo o universo do sentido. Aí compreendido o da moralização que se
deixa levar em seu movimento e se transforma mesmo em uma espécie de
programa de uso a serviço da visão passional (moralização 2). Aqui, uma
clara diferença se delineia em relação ao modelo passional de referência, o
da Princesa de Clèves: nessa última, a moralização passional permanece
185

íntegra, mantém-se como instância de controle, nunca é desviada nem


absorvida pelo processo passional.
 Aceleração final, enfim: o vaivém “de desatinos em desatinos” ilustra a
terceira fase, a mais intensiva, do movimento patêmico (emoção 3). Seus
enunciados são expansões da “desordem” inicial. E a moralização final,
“incorremos na culpa” (moralização 3) sanciona todo o percurso.

Em conclusão, distinguindo-se das abordagens filosófica e


psicopatológica do passional, a semiótica restringe sua observação à dimensão
linguageira e discursiva do fenômeno. Ela procura inscrever seu objeto nos
princípios de pertinência e de coerência da teoria geral da significação. Ela se
interessa pelas formas culturais dos dispositivos passionais que o discurso
configurou. Aliás, é nesse limite que ela interessa ao especialista em análise
textual.
A abordagem geral do dispositivo passional que apresentamos
brevemente pode ser condensada em quatro grandes operações: (1) a foria que
gera a estrutura modal dos enunciados de estado, (2) a tensividade que gera a
aspectualização e a intensificação, (3) a axiologia reguladora que gera a
moralização, (4) o desenvolvimento sintagmático desse conjunto em um
esquema passional canônico. Esse dispositivo cruza três dimensões concretas
possíveis do objeto de estudo: a das configurações passionais depositadas no
léxico e analisáveis a partir de sua expansão definicional (o ciúme, a cólera, a
ambição, etc.); a dos percursos passionais de sujeitos observáveis em tal ou tal
discurso (principalmente literário); a da enunciação passional e a “gramática” do
discurso que a caracteriza.

Síntese

SEMIÓTICA DAS PAIXÕES

Campo de pesquisa desenvolvido pela semiótica ao longo dos anos 1980-1990, o estudo dos
sentimentos e das paixões é examinado fora de toda abordagem psicológica, no quadro geral da teoria do
discurso. Trata-se de analisar os efeitos de sentido e as configurações passionais tais como o uso as depositou na
língua, desde a lexicalização das paixões e suas taxionomias culturais até a apreensão dos percursos passionais do
sujeito e a enunciação passional da qual as obras literárias são o viveiro e talvez o modelo.
Podemos distinguir duas concepções semióticas da paixão: uma a define em relação à ação, outra por
oposição à razão.
186

 Examinado em relação à ação, portanto sobre o pano de fundo da narratividade, o sofrer é


interpretado como uma modulação dos estados do sujeito, provocados pelas modalidades investidas no objeto
(invejável, odiável, temível, etc.) que definem, problematizando-o, “o ser” do sujeito.
A análise dessas modalidades de estado pressupõe levar em conta a timia, “disposição afetiva de
base”, que determina a relação do corpo sensível com seu ambiente. Transposta para a semântica como uma
categoria classemática, a timia se articula em uma vertente positiva, a eu-foria, em uma vertente negativa, a dis-
foria, em uma vertente neutra, a a-foria, que se convertem em um nível superior em modalidades de estado. Estas
são intensificadas, no caso da paixão, por uma “sensibilização” dos objetos que procede da aspectualidade (cf. as
paixões incoativas como a impulsividade, terminativas como a nostalgia, iterativas como a obstinação, durativas
como a ambição). Enfim, a estrutura passional é “controlada” pela moralização, ou seja, pela regulação social que
determina a medida, entre excesso e insuficiência, da circulação dos valores.
Esse conjunto permite formular a hipótese de um esquema passional canônico, comparável ao esquema
narrativo e transcultural como ele, que inscreve o desenvolvimento passional em um percurso de quatro
seqüências: a disposição, a sensibilização, a emoção e a moralização.
 Examinada do ponto de vista da instância enunciante, a paixão, submetida à inerência do corpo e do
mundo sensível, procede do não-sujeito: o passional predica, mas falta-lhe o julgamento que transforma a
predicação em uma asserção assumida e “refletida”. A paixão se opõe então à razão, ou seja, ao domínio do
sujeito, quando “o irrefletido é compreendido e conquistado pela reflexão”.
O estudo da dimensão patêmica (neologismo formado por meio da raiz pathos e do sufixo -ema, -êmico) do
discurso, complementar das dimensões pragmática e cognitiva, concerne não mais à transformação dos
estados de coisas (domínio da narratividade), mas à variação dos estados do sujeito, seus “estados de alma”.
Essa dimensão é o objeto da semiótica das paixões.
187

Capítulo 12
A enunciação passional

1. O simulacro

A projeção dos simulacros é a característica central da enunciação passional. Ela consiste em


uma espécie de desdobramento imaginário do discurso. Nela o sujeito elabora objetos
repentinamente dotados de qualidades sintáxicas e semânticas inéditas: assim o afeto, elevado
à condição de objeto, tende a tornar-se o parceiro-sujeito do sujeito apaixonado. A
comunicação se estabelece então nesse segundo plano do funcionamento discursivo: na troca
passional, cada um dos interlocutores dirige seus simulacros aos simulacros do outro.
Podemos, em seguida, examinar um exemplo desse funcionamento.

Primeira carta

Considere, meu amor, a que ponto lhe faltou a previdência. Ah! infeliz! Você se enganou e também
me enganou com falsas esperanças. Uma paixão, para a qual você fez tantos projetos de prazer, causa-
lhe agora apenas um desespero mortal, só comparável à crueldade da ausência que o provoca. Como?
Essa ausência, para a qual minha dor, por mais engenhosa, não encontra um nome assaz funesto, há
de privar-me para sempre desses olhos em que eu via tanto amor, que me faziam experimentar
emoções plenas de alegria, que significavam tudo para mim e que, enfim, me bastavam? Ai de mim! os
meus olhos estão privados da única luz que os animava, restam-lhes apenas as lágrimas, e não os
tenho usado senão para chorar incessantemente desde que soube que o senhor se decidiu, enfim, por
um afastamento tão insuportável, que me fará morrer em pouco tempo. No entanto parece até que
sinto algum apego pelos males dos quais o senhor é a única causa: dediquei-lhe a minha vida desde o
momento em que o vi; e sinto ainda algum prazer em sacrificá-la pelo senhor. Mil vezes por dia envio-
lhe meus suspiros, eles o buscam por todos os lugares e só me trazem de volta, como recompensa
para tanta inquietude, uma advertência muito sincera da parte de meu infortúnio, que tem a crueldade
de não suportar que eu me iluda, e que me diz a todo momento: pare, pare, Mariane infeliz, de se
consumir em vão e de procurar um amante que você não verá jamais, que cruzou os mares para fugir
de você, que está na França em meio aos prazeres, que não pensa um só instante em suas dores, e que
a dispensa de todo esse êxtase, que ele nem mesmo reconhece. Mas não, não posso resignar-me a
julgá-lo injuriosamente, e tenho muito interesse em justificá-lo; não quero de maneira alguma imaginar
que o senhor me tenha esquecido.

Lettres de la Religieuse portugaise,

Le Livre de poche, pp. 9-10.185

185
[N. dos T.] Três traduções em língua portuguesa foram consultadas mas, como nenhuma delas fez
diferença entre o tratamento íntimo (tu) e o cerimonioso (vous), que é o ponto fundamental da análise em
questão, optamos por uma adaptação nossa, ressaltando essa distinção do texto.
188

Desde sua publicação, em 1669, as Cartas da Religiosa portuguesa,


reconhecidas de modo geral como um dos monumentos da literatura
passional, apresentam o enigma de sua autenticidade. A interrogação diz
respeito tanto a sua origem nacional – França e Portugal reivindicam-nas,
cada um de seu lado, como patrimônio literário – como a sua origem
enunciativa: quem é, ou quem são os escritores das cartas, compreendendo
sob esse termo tanto os eventuais protagonistas da paixão que nelas se
enuncia, como o autor que simula sua existência? A historiografia literária
francesa pontilha essa busca com suas hipóteses, suas refutações, suas
descobertas. Para citar apenas edições relativamente recentes, podemos
evocar as teses peremptórias e antagonistas de F. Deloffre186, que vê nessas
cartas o exercício mundano de um cavalheiro gascão, secretário de Luís XIV,
o marquês de Guilleragues, e de Y. Florenne187, que contesta com vigor a
opinião do precedente, em nome da lógica interna da obra, sem ter condição
todavia de resolver a questão, isto é, propor um nome de autor plausível...
Antes deles, o itinerário dessa pesquisa foi balizado pelo posicionamento de
escritores ilustres, tais como La Bruyère, Rousseau188, Stendhal189, Sainte-
Beuve, Rilke e muitos outros. O debate, que se tornou universitário, é tão
prolixo a esse respeito, no meio dos especialistas, que parece difícil abordar
hoje em dia as cartas sem tomar posição na controvérsia.
Ora, podemos tentar deslocar o centro dessa questão, na medida
em que ela seja de fato pertinente, situando-nos no interior do próprio
discurso, o mais próximo possível dos objetos aos quais ele dá forma e da
problematização que ele suscita. Mais concretamente, apreendendo o texto
das Cartas e, indiretamente, o comentário que ele engendrou, pelo viés
semiótico do sujeito. Por trás da busca da autenticidade e da verdade
histórica, que atesta sua apreensão do real pela identificação, está na verdade
a questão de um sujeito que se delineia: um sujeito que se expõe nas cartas –
visto que elas não fazem outra coisa senão falar dele e construir sua imagem –
mas que se apaga no anonimato, e que o questionamento tenta reconstituir.
Podemos então, mantendo essa perspectiva, colocar o problema um nível
acima e, em vez de aceitar a legitimidade da questão como uma evidência
filológica e cientificamente objetiva, perguntar o que é que, no texto,

186
F. Deloffre e J. Rougeot (ed.), Lettres portugaises, Valentins et autres œuvres de Guilleragues, Paris,
Garnier, 1962, pp. V-XXIII. Tese adotada por B. Bray e I. Landy-Houillon em sua edição das Lettres
portugaises, et autres romans par lettres, Paris, Flammarion, 1983.
187
Na sua introdução às Lettres de la Religieuse portugaise, Paris, Le Livre de poche, 1979.
188
“As mulheres não saberiam descrever, nem mesmo sentir o amor. [...] Eu apostaria tudo no mundo como
as Cartas portuguesas foram escritas por um homem”, J. -J. Rousseau, “Note” à Lettre à d’Alembert sur les
spectacles, 1758.
189
Stendhal evoca as Cartas Portuguesas no início de De l’Amour como o modelo canônico do “amor-
paixão”.
189

fundamenta, justifica, poderíamos até dizer recomenda uma tal busca de


identificação. A interrogação a respeito da autenticidade não poderia então
ser considerada uma questão primeira; ela pressupõe uma outra que a
determina e a legitima, e que está relacionada com a eficácia veridictória do
texto como objeto semiótico. O comentário resulta de um efeito de
arrebatamento que tem origem no próprio texto; tira sua substância de um
vazio que ele reconhece, de uma falta de significação que ele identifica e se
empenha em preencher. As lacunas do texto atraem e alimentam a plenitude
do comentário e este não cessa de justificá-las, instituindo-as como seu
referente e a elas acrescentando, cada vez mais, razões suplementares para
considerá-lo como uma “obra”. Ora, no caso em foco, essa eficácia baseia-se
em grande parte no desdobramento particularmente complexo, através da
multiplicação de seus simulacros, da figura do sujeito, daquilo que o forma e
o exibe, mas também daquilo que o dissimula e o apaga. Ao optar por
contemplar o texto sob essa luz, nós nos interrogamos a respeito dos modos
de construção sintáxica dos simulacros na enunciação passional.

1.1 O sujeito nas Cartas: dois regimes de inscrição


Entre as diversas perspectivas que se abrem com as pesquisas sobre a
enunciação, há uma que se refere à tipologia das relações actanciais, em que a instância
complexa do sujeito e da rede de suas relações subjetivas instaura-se como resultante,
produto de suas diferentes facetas. É banal dizer que o sujeito, como ator
individualizado ou como instância-fonte da atividade discursiva teoricamente
postulada, na realidade é sempre um conjunto de sujeitos, uma figura sincrética
formada por um entrelaçamento de actantes e de papéis actanciais estreitamente
imbricados que aparecem, ora como dominantes, ora como dominados, nas
configurações do discurso, cada um se estabelecendo por um percurso modal próprio,
os quais a análise distingue e separa em razão de suas respectivas atribuições
funcionais.
É nesse espírito que se situa, no início pelo menos, nossa análise das Cartas da
Religiosa portuguesa: como toma forma o sujeito? Em que percurso ele vai se estabelecer
ou, mais exatamente, se queremos mostrar a preeminência das relações sobre os
termos, quais são os percursos que o estabelecem e que fixam o efeito-sujeito?
Podemos identificar duas grandes configurações subjetivas, em que se articulam e se
organizam, na sua diversidade, o conjunto das manifestações particulares: de um lado o
sujeito epistolar e, de outro, o sujeito passional. Como defini-los? Como relacioná-los um ao
outro?
Estudando as paixões no discurso sob a forma de paixões-lexema – tais como o
“desespero” (J. Fontanille), a “estima” (J. Courtés) ou a “cólera” (A. J. Greimas) - os
semioticistas estão de fato relativamente pouco interessados na enunciação passional
em si mesma ou, em outras palavras, na manifestação discursiva do passional, isto é,
com o modo como ele pode reorganizar, em seu próprio benefício, o conjunto do
processo. A distinção que acabamos de estabelecer entre esses dois conjuntos
subjetivos, um e outro subtendidos por um arcabouço semionarrativo e discursivo
próprio, talvez nos permita avançar nessa direção. Cada um dos dois sujeitos aqui
190

evocados acha-se então construído e diferenciado a partir de percursos específicos. O


sujeito epistolar é um sujeito dialógico. Ele se fundamenta na instalação de uma
isotopia intersubjetiva: estipulando seu co-enunciador como um ator individual
figurativo e investindo-o como tal nesse nível, convoca-o à reciprocidade da troca e
exige dele pelo menos a confirmação mínima da identidade construída pelo próprio
texto da carta. É, no nível mais elementar, o que representa a fórmula administrativa
clássica: “ Em resposta a vossa carta de tanto ...”.
Ora, nas cartas com que nos ocupamos, essa identidade acha-se estabelecida nos
percursos bem mais complicados de um sujeito passional. Este, antes de qualquer troca
intersubjetiva, dirige-se exclusivamente a seu objeto, que é aqui apenas o interlocutor
epistolar: é de fato a figura construída do destinatário da carta, co-enunciador
potencial, que se acha manipulado e transformado em um actante-objeto no solilóquio
passional da religiosa. A competência do sujeito – esse misterioso “cavalheiro de
qualidade, que servia em Portugal190” – é então substituída pela valorização do objeto,
melhor ainda, por um jogo complexo de valorizações convergentes ou contraditórias,
cujo objeto inicial é apenas a referência longínqua, e que vão desenvolver-se, como
veremos, em certos papéis patêmicos investidos nos simulacros. Dessa maneira o
sujeito da paixão cria entre si e seu objeto um espaço modal notavelmente rico e
coerente que, sob a forma reconstrutível de redes actanciais, funda e organiza a
autonomia, poderíamos dizer a autarquia, de seus percursos.
O distanciamento que assim se forma entre as duas figuras subjetivas (a
epistolar e a passional) modifica o estatuto funcional da própria carta: sua sintaxe
intersubjetiva é modificada pelo sujeito passional em seu benefício exclusivo. Tudo se
passa como se este, arranjando um espaço que lhe é próprio, com suas marcas e seus
limites, empurrasse para os confins de seu discurso o sujeito epistolar e provocasse seu
apagamento. O discurso de um ao outro se transforma em discurso para si mesmo, o
que a mediação dos simulacros possibilita pela exploração dos valores dos quais eles
são o suporte e pela atualização sintagmática de suas virtualidades. No presente estudo,
atentaremos para a diferenciação dos sujeitos: inicialmente, pondo em evidência a
clivagem constatada e o modo de desenvolvimento discursivo que ela origina; em
seguida, examinando os elementos de figuratividade esparsos no discurso da religiosa,
visto que o estatuto do figurativo parece esclarecer, de maneira oblíqua, a distinção
estabelecida; prolongando essas considerações, enfim, reconhecemos duas ordens do
cognitivo correspondentes às duas ordens de sujeitos.

1.2 Uma construção em abismo actancial


Em nenhum outro lugar, como no início da primeira carta, a oposição entre os
dois sujeitos é tão clara, espetacular mesmo. Ela se estabelece claramente, no nível da
manifestação textual, na identificação dos modos de tratamento que regem as
diferentes isotopias subjetivas e fundamentam a delimitação das unidades do texto.
Temos assim, alternativamente, «você», «senhor», em seguida de novo «você»,
«senhor». É fácil constatar que os marcadores pessoais «você» constituem aqui os
embreantes do sujeito passional, enquanto que os «senhor» são os embreantes do
sujeito epistolar. Nesse último caso, eles convocam o destinatário da carta, tematizado

190
Lettres de la Religieuse portugaise, “Au lecteur”, Le Livre de poche, p.7.
191

como um ator individual, e atualizam a relação intersubjetiva pela qual se define


precisamente o discurso epistolar. No primeiro caso, as coisas são um pouco mais
complicadas, pois cada um dos «você» remete a actantes distintos: o primeiro está
inscrito no discurso do “eu” que se dirige ao seu “Amor”, isto é, ao seu “sentimento”,
por isso mesmo actancializado (ou se preferirmos, “personificado”); o segundo, “pare,
pare, Mariane infeliz, de se consumir em vão”, está inscrito no discurso citado do
«infortúnio» que, actancializado como sujeito cognitivo, dirige-se ao sujeito da
enunciação, “Mariane”.
Temos aí dois registros de discursos, fortemente distintos um do outro, que
estabelecem duas ordens de relação. A relação inicial entre o destinador e o destinatário
da carta, tal como são pressupostos pelo próprio discurso epistolar, parece evidente de
um ponto de vista empírico. Mas na verdade essa relação é, ao contrário, “abstrata”,
tanto que o texto, no mesmo instante em que a coloca, se esforça por apagá-la,
deixando o campo livre para uma outra rede de relações: a que o sujeito “passional”
dispõe e ordena, e pela qual ele se define precisamente como tal.
Por deslizamentos progressivos, o discurso efetua de fato uma verdadeira
construção em abismo actancial. Uma análise rápida da primeira frase mostra que
passamos do actante epistolar, que postula a relação inicial, ao valor patêmico com que
o sujeito o investiu e que o transforma em objeto (de busca, ou de desejo). Esse valor
selecionado se acha então isolado e transformado em um actante autônomo, é
precisamente o simulacro. O afeto, denominado “meu Amor”, está daí em diante
dotado de programas próprios: ei-lo transformado em sujeito cognitivo, modalizado
por um saber prospectivo (a “previdência”), valorizado negativamente e aspectualizado
pelo modo do “excesso”: daí resulta o fracasso de seu programa e a vitória de um anti-
sujeito X (“você foi traído”). Em seguida intervém uma nova transformação actancial:
o “Amor” tornou-se adjuvante do anti-sujeito (“e você me traiu por falsas
esperanças”), antes de ser restabelecido na terceira frase como sujeito de um fazer
(“você fez tantos projetos de prazer”), apto a selecionar valores que produzem por sua
vez novos papéis actanciais. A “paixão” passa a valer, assim, como objeto (modalizado
como desejável) que, estabelecido por sua vez numa relação final de disjunção com o
valor “prazer”, instaura o estado do “desespero mortal” cujo sujeito, lembremos, não é
o “eu” enunciador, mas esse ator isolado que é o “Amor”, originando então uma
verdadeira nebulosa actancial. Enfim, pelo viés de um enunciado comparativo, eis que
surge a figura do antidestinador que confirma o encerramento dessa micronarrativa: a
“ausência”.
O texto então se bifurca e, apegando-se a essa nova figura, explora-lhe os
percursos. A “ausência” justifica a emergência de um meta-sujeito, ao mesmo tempo
observador competente e julgador: é a “dor” que, “engenhosa como é, não pode [lhe]
dar um nome tão funesto”. Essa ausência, elemento ativo da carência (ela é o agente da
privação) inscreve também o valor “prazer” num objeto figurativo que a fixa: “esses
olhos”, os quais, por sua vez, figura metonímica do amante, são elevados à condição de
sujeito do fazer, assumindo o percurso da plenitude (“que me enchiam de alegria”,
“que, enfim, me satisfaziam”).
E assim vai a valsa das formações e transformações de simulacros passionais e
modais. Poderíamos associar essa movimentação particularmente densa a uma tentativa
de esgotamento dos possíveis actanciais, como se o sujeito passional se esforçasse por
192

saturar todos os lugares, explorar todos os percursos e, para eliminar os vazios que
mostram as faltas, exaurir as figuras emocionais no momento em que elas surgissem no
seu discurso. Poderíamos reconhecer, nessa tensão sempre reconduzida e sempre
“retomada”, um dos aspectos da estética barroca. Nosso objetivo entretanto não é
seguir nessa direção que põe em jogo a tipologia cultural dos discursos; é, ao contrário,
dar a conhecer e analisar o modo de produção discursiva do sujeito passional.
A distinção estabelecida entre objeto e valor permite descrever a sintaxe dos
simulacros: a existência modal do sujeito de estado (no caso, em estado de disjunção) é
suscetível de gerar percursos sintagmáticos, quebrando a estabilidade desse estado e
dinamizando-o. O valor, concebido como uma estrutura modal elementar, transforma
nessa ocasião o destinatário da carta em objeto passional. Desligado de seu suporte, e
perdendo assim seu estatuto de modalidade, esse valor torna-se inteiramente figura
actancial, em relação por sua vez com os valores que, enquanto sujeito, pode investir
nos objetos; os quais, por sua vez ..., e assim por diante. Todo valor patêmico é assim
capaz de surgir numa estrutura actancial e de proliferar, nos limites da inteligibilidade
definida pela recursividade sintáxica, para constituir uma configuração global, muito
complexa, que define o estatuto do sujeito da enunciação passional.
É então o valor patêmico (nesse caso, o efeito disfórico da ausência) que se
torna o ponto de partida desse “espaço de intimidade”, que o sujeito da paixão encaixa
nos meandros de seu discurso. Ao redor dele multiplicam-se e propagam-se arranjos de
simulacros que empurram, na mesma proporção, para sua periferia a figura inicial,
referencial, do sujeito epistolar ... chegando mesmo, no caso que analisamos, a ponto
de rejeitar a interlocução e aquele que era destinado a ser o seu ator. “Eu estou [...] com
ciúme de minha paixão”, “minha inclinação violenta me seduziu” (Quarta carta), e “ eu
comprovei que o senhor me era menos querido que minha paixão”, escreve a religiosa
(Quinta carta). Em outra parte, uma resposta de seu destinatário tendo rompido a
ordem passional que se tinha constituído, ela o injuria: “Detesto sua boa fé: acaso eu
lhe pedi que me enviasse sinceramente a verdade? Por que não me deixou a sós com
minha paixão? Bastava que o senhor não me escrevesse; eu não queria ser esclarecida”.
(Quinta carta).
A carta, justificada pela ausência e fundamentada nela, torna-se o campo de
exercício e de manifestação do sujeito passional (nisso, lembra o monólogo da tragédia
clássica em sua relação com o diálogo). Ela é sua condição de existência e de expressão
dinâmica: transforma o estado em movimento. A carta, como escreveu Kafka, é “uma
maneira de usufruir de uma intimidade imaginada, escrita, conquistada a duras penas
por todas as forças da alma”. Não surpreende pois que o discurso epistolar da religiosa
quebre a própria ordem do epistolar ou ao menos lhe eslareça uma função inédita.
Construída como uma coação, a relação intersubjetiva chega a retirar da carta sua
função elementar de troca: “eu teria prazer em desculpá-lo por não me escrever,
porque o senhor talvez tenha prazer em não se dignar escrever-me”. (Segunda Carta).
E inversamente, sendo a carta o lugar da instauração subjetiva, ela acha difícil terminá-
la: “Adeus, tenho mais dificuldade em terminar minha carta do que o senhor teve em
me deixar [...]. Escrevo mais para mim mesma do que para o senhor.” (Quarta carta).

1.3 O figurativo e seu uso interpretativo


193

Uma outra dimensão discursiva parece poder reforçar a idéia dessa oposição
entre sujeito epistolar e sujeito passional. Ela diz respeito ao estatuto do figurativo
nas cartas. Não só os elementos figurativos são raros, como também nunca é
instalada nelas uma isotopia figurativa. Ora, por seu enfoque referencial, o
figurativo remete à relação entre os sujeitos epistolares. É nesse nível de
representação semântica que se estabelecem pontos de referência em comum, a
convergência dos pontos de vista, uma certa partilha do mundo: o quarto, o
convento, o jardim, a família, o próprio interlocutor. Com relação a esse último,
como já vimos, o enunciador passional da carta tende a abolir a identidade
descritivo-figurativa que ele suscita. Essa rejeição ao figurativo se estende a todas as
outras formas de sua manifestação. Os elementos descritivos são totalmente
investidos pela dimensão tímica, e essa sobredeterminação é instituída pela religiosa
como a pedra angular de seu sistema axiológico. Tudo o que não é compatível com
seu “esquema tímico” é imperativamente excluído e em primeiro lugar, é claro, as
figuras dotadas de uma forte densidade referencial: “sou perseguida pelo ódio e
desgosto que tenho por todas as coisas: minha família, meus amigos e esse
convento são-me insuportáveis; tudo o que sou obrigada a ver e tudo o que preciso
fazer me é odioso”. (Quarta carta).
A partir dessa observação, podemos distinguir duas ordens do cognitivo,
rearticulando de maneira mais específica suas duas dimensões gerais, persuasiva vs
interpretativa. De um lado, na verdade, o sujeito epistolar é instalado sobre
isotopias figurativas de base, restaurando para o destinatário ausente as
coordenadas espaciais, temporais e actoriais de sua enunciação e assegurando, desse
modo, a legibilidade mínima de seu discurso. Ele é assim caracterizado, de maneira
muito ampla, por um fazer persuasivo, num movimento de abertura intersubjetiva. É
um sujeito “centrífugo”, que invoca (ou convoca) ininterruptamente a confirmação
de seu dizer. Acontece de modo totalmente diferente com o sujeito passional. Nele,
a sobredeterminação tímica dos valores descritivos é geral e absoluta, a ponto de
recusar o reconhecimento de qualquer pertinência à dimensão figurativa. Ora, é
possível compreender o timismo (euforia vs disforia) como um nível elementar da
interpretação, como um fazer interpretativo primário. O estado do sujeito (nos
enunciados que lhe dão forma, bem entendido) é um efeito das modalizações
investidas nos objetos: eles são “desejáveis”, “detestáveis”, “odiosos”, etc. Os
objetos, assim valorizados, são de imediato inscritos, formados nos circuitos da
interpretação que seleciona neles o valor pertinente em função de sua própria
disposição, a qual procede do timismo.
Teríamos assim dois regimes diferentes do fazer interpretativo. De um lado,
o que se dá entre dois sujeitos e que realiza a relação intersubjetiva entre eles pela
mediação do objeto; e do outro, o que faz um caminho mais curto, mas na
realidade igualmente complexo, que vai do objeto ao sujeito. Esse último recebe,
seleciona, valoriza a presença das coisas em função de sua “disposição” e das
categorias tímicas que a regem: é o interpretativo patêmico. Instalando seu discurso
em isotopias dessa ordem, o sujeito passional alimenta sem cessar uma cadeia
interpretativa que cria, bem ou mal, sua sintagmática própria. Aquela, por exemplo,
que resulta da exploração simultânea de valores incompatíveis, gerando os
múltiplos efeitos de contradição que caracterizam nesse ponto o discurso da
194

religiosa: “eu sou dilacerada por mil movimentos contrários”. Podemos então dizer
que o sujeito passional, ao inverso do precedente, define seu fazer interpretativo
num movimento de fechamento subjetivo: é um sujeito “centrípeto”. Sua única
função é fixar e preservar seu espaço patêmico.

Em conclusão, a semiótica das paixões reconheceu a importância das


categorias tímicas na organização do sentido no nível das estruturas profundas. Ela
se encarrega, por meio do conceito de modalização, de encaminhá-las para o nível
das estruturas de superfície. A análise aqui proposta se situa, por sua vez, no nível
da manifestação discursiva e enunciativa: busca mostrar como o “timismo”,
investido num processo que visa, em última análise, sua atualização (sob a forma
dos “sentimentos”, do “amor”, do “ódio”, da “dor”, etc.), afeta a ordem do próprio
discurso e a determina, como se lhe assegurasse a própria geração. São essas
relações elementares (euforia vs disforia) que fixam o tecido das isotopias a partir
das quais os percursos são selecionados. Compreende-se, desse modo, a natureza
particular da função interpretativa e sua hipertrofia, no discurso passional: este
dispõe de um “crivo” tímico capaz de filtrar e de reorientar a totalidade do sentido
de acordo com seus “patemas”. Essa organização do discurso condiciona, como se
pode ver, as relações entre os sujeitos que ele põe em jogo. É assim que, nas Cartas
portuguesas, a emergência e a instalação imperativa do sujeito passional implica ao
mesmo tempo o apagamento do sujeito epistolar.
Na realidade, uma leitura minuciosa e contínua das Cartas mostraria que as
coisas são mais complexas. Se de fato existem duas ordens de sujeito
diferentemente construídas, a preeminência de uma sobre a outra não é jamais
definitiva: o passional se nutre do epistolar, cujo apagamento ele visa; e se este
persiste em suas formas, como o atesta o comentário que faz eco às supostas
repostas do amante francês, então é o passional que, tendo fracassado na
transformação projetada, se fecha em seus jogos sem alteridade (cujo estado limite
seria o “delírio de interpretação”) e finalmente desmorona. O sujeito epistolar
triunfa, assegurando a moralização, tornando-se o responsável pelo desfecho do
discurso e pelo estado final da narrativa: “guardarei cuidadosamente as duas últimas
cartas que o senhor me escreveu e as relerei ainda com maior freqüência do que li
as primeiras, a fim de não recair em minhas fraquezas.” (Quinta carta).
Sejam quais forem os seus diferentes movimentos, sempre retornamos a
esses sujeitos. É que eles são, pela variação de seus simulacros, as instâncias
exclusivas de narrativização do discurso nas Cartas portuguesas. E para além delas,
como que por um efeito de acarretamento, em todos os discursos que elas tenham
suscitado, desde as múltiplas Respostas e Novas Cartas - elas também anônimas – até
os comentários mais recentes, passando pelos pastiches, adaptações, reescritas, etc.
Para tentar compreender e justificar a abundância desse intertexto, podemos então
arriscar uma homologação de estrutura? Poderíamos dizer de um texto que mostra
e apaga desse modo o sujeito, que ele propõe a questão da identidade? A
obstinação em ressuscitar os atores epistolares, em dar-lhes ao mesmo tempo
consistência e um nome, parece na verdade complementar a obstinação que os faz
não desaparecer como assinaturas, mas aparecer e desaparecer como figuras. Sua
“carência de ser”, assim como a riqueza dos motivos passionais de objetos que essa
195

falta estabelece, exige pela organização paradigmática da narratividade que ela seja
liquidada ou resolvida: encontrar os nomes próprios é, aqui, restaurar um equilíbrio
numa episteme da identificação. Num certo sentido, o “mal-estar” provocado pelas
Cartas portuguesas, tal como o ilustra a historiografia a elas vinculada, é do mesmo
tipo que o da carta anônima: resulta do princípio de legibilidade inscrito na carta em
si mesma. Aqui como lá, o apagamento do signatário está ligado ao
desaparecimento de um outro sujeito (o destinatário ameaçado, por exemplo). O
anonimato é corolário da anulação inscrita na própria carta; ele a fundamenta e a
garante. E a inquietude provocada – virtualidade do apagamento, paixão ôntica por
excelência – seduz, exige a busca.

2. As marcas do “vivenciar”

À margem das paixões que a lexicalização inscreve na língua e desenvolve na


cultura, tais como a cólera, a generosidade, a indiferença ou o entusiasmo, ao lado
igualmente dos impulsos da enunciação passional, podemos, para concluir estas
análises, reservar um lugar às formas mais indiretas e mais disfarçadas da expressão
dos humores.
Greimas evocava às vezes “os textos perfumados por aromas passionais”.
Numa análise do que ela chama de vivenciar, A. Hénault interpreta literalmente essa
problemática191. Ela se situa, a partir daí, a montante das paixões nomeáveis e
nomeadas, à parte também das paixões trabalhadas e glorificadas na literatura, para
tentar desencavar os traços do vivenciar manifestado, à revelia mesmo do enunciador,
mas não representado no discurso. O procedimento tem por objetivo reconhecer, para
além da expressão convencional da paixão, sua expressão implícita, e tornar
observáveis “as marcas insuspeitáveis do vivenciar” que o discurso da ação trai, ao
dissimulá-las.
O texto escolhido para essa busca será o Journal inédit de Robert Arnauld
d’Andilly, pai e irmão dos Arnauld de Port-Royal. Uma crônica seca, impessoal e
despojada, relatando dia a dia as ações do rei Luís XIII, de quem Robert Arnauld é
íntimo, em sua luta contra os Huguenotes de 1622 a 1623. Ora, esse discurso do agir,
convencional e codificado, é perturbado pelo sofrer: ele não menciona um cargo de
secretário de Estado que o rei então propõe ao alto funcionário, mas indiretamente e
mediante pagamento, e que ele, por essa dupla razão, (se) deve recusar. O
imperceptível percurso “fórico” do Journal, que passa da euforia jubilosa à disforia do
desfavor, é comprovado pelo recurso a um outro texto do próprio Arnauld, suas
Mémoires, escritas muito mais tarde e relatando os mesmos fatos, mas desta vez com
detalhamento e emoção. As emoções de um texto iluminam os silêncios do outro e
provocam as suspeitas da sua trama sensível.
Assim consolidada pelo confronto com as Mémoires, a investigação sobre o
Journal pode desenvolver os instrumentos de uma análise discursiva do vivenciar. Os
conceitos de modulação, andamento e intensidade, de timismo e sensibilização
figurativa, as ausências que fazem sentido e o estatuto de um “eu” raríssimo, permitem
elaborar, à partir dos “vazios” do discurso ou de detalhes ínfimos cuja importância

191
A. Hénault, Le Pouvoir comme passion, Paris, PUF, col. «Formes sémiotiques», 1995.
196

significante o outro texto vem confirmar, uma “sintaxe transfrásica passional 192”,
fundada na dimensão fórica e axiológica do vivenciar.
O Journal, que se considerava como uma relação histórica rigorosamente factual,
evidencia-se de um lado a outro atravessado e perturbado pela paixão de seu narrador,
paixão secreta, de uma ambição frustrada. “Paixão clássica” por excelência, como
destaca A. Hénault, a ambição pode ser redefinida a partir das marcas do vivenciar que
se antecipam a qualquer denominação no contexto sócio-cultural do começo do século
XVII: o do ideal heróico em seu término, em que o ardor pela excelência anima o
desejo de participar do poder real, mas ao modo do afeto e não da dominação. O rigor
dos silêncios no Journal expõe o caráter passional da decepção. Esse estudo permite
assim, medindo a distância conotativa entre a “ambição confessável” de então e seus
avatares modernos, apreender a transformação histórica de um tipo de paixão.
De um ponto de vista teórico e metodológico, a análise convida a associar a
abordagem do agir e do sofrer e mostra que os esquemas da ação, feitos de estados
descontínuos, ordenados e finalizados, se apresentam como um instrumento de gestão
eficaz dos “energetismos fóricos”193 que, anteriores à ação e da ordem do contínuo,
deles participam e neles se manifestam, mesmo sendo isoláveis, formalmente, como
configurações autônomas no interior do discurso narrativo. Podemos ver nisso, com
relação à economia geral da teoria semiótica, uma nova maneira de estreitar os vínculos
entre as dimensões pragmática e patêmica do discurso.

Síntese

A enunciação passional

A discursivização da paixão, para além do grito ou do silêncio, para além


igualmente da prosódia ou da parataxe, tem como característica essencial a projeção e a
operacionalização dos simulacros. Por uma espécie de desdobramento imaginário, o
sujeito da enunciação passional transforma as qualidades ou os valores investidos no
objeto focalizado em objetos ou em parceiros de seu próprio discurso. A troca
passional consiste então em uma circulação de simulacros, em que cada um dos
interlocutores dirige os seus aos do outro.

192
Ibid.,p.174.
193
Ibid., p. 179.
197

Essa propriedade pode esclarecer, de um lado, o funcionamento sintáxico


próprio ao discurso passional (a recursividade que se fundamenta numa realimentação
de sentido sempre renovada) e, de outro lado, as formas da comunicação que ele
engendra, entre a troca fusional (quando os simulacros são compartilhados) e o mal-
entendido irreparável (quando eles estão irrevogavelmente disjuntos).
Aquém desses mecanismos explícitos, a dimensão passional da enunciação pode
igualmente se manifestar por um modo de presença indireta e encoberta, no próprio
interior do discurso da ação, sob a forma do “vivenciar”. As dimensões pragmática e
patêmica do discurso, identificadas como formalmente autônomas, ficam então
entrelaçadas e tornam-se o motor uma da outra.
198

Glossário

Actante, actancial: Unidade sintáxica de base da gramática narrativa, o actante define-


se por sua relação predicativa, sua composição modal e sua relação com outros actantes. A
semiótica reconhece três figuras actanciais de base: o Destinador, o Sujeito e o Objeto (as
figuras simétricas e inversas do anti-sujeito e do anti-Destinador determinam a estrutura
polêmico-contratual da narrativa).

Aspecto, aspectualidade: Definido em lingüística como “ponto de vista do sujeito


sobre o processo”, o aspecto modula o conteúdo semântico do predicado, quer seja no
passado, quer seja no presente ou no futuro, conforme seja considerado como acabado (como
o pretérito) ou não-acabado (como o imperfeito), pontual, iterativo ou durativo, incoativo
(considerado no seu começo) ou terminativo (considerado na sua conclusão). Além da
temporalidade, a semiótica estende a noção de aspecto à espacialidade (principalmente em
semiótica visual: percepção dos limiares e da extensão, efeitos da luz e da sombra), à
actorialidade (o comportamento é aspectualizado: a precipitação, por exemplo) e à axiologia (a
relação entre a imperfeição do parecer e o surgimento da perfeição como critério de apreensão
estética). Podem-se, por exemplo, analisar as formas culturais do comportamento ao volante
de um carro, sob o ponto de vista do aspecto: o motorista americano se instala no durativo; já
o francês, obcecado desde a partida pelo final da viagem, “vive” o percurso segundo o aspecto
terminativo. Esse exemplo mostra a ligação entre o aspecto e a apreensão das paixões, que são
fenômenos fortemente aspectualizados (paixões iterativas, incoativas, terminativas, etc.).

Ator: O conceito de ator situa-se na junção da sintaxe narrativa (é um actante dotado


de programas narrativos) com a semântica discursiva (possui um papel temático, em geral
humano e socializado, e manifesta-se sob uma forma figurativa; cf. as seqüências de retratos).
Uma vez definido o processo de actorialização por meio de critérios semióticos, o termo ator é
às vezes utilizado para substituir o termo “personagem”, marcado pela psicologia dos
caracteres.

Axiologia: Teoria ou descrição dos sistemas de valores (morais, éticos, estéticos,


lógicos, etc.). Mediante o investimento da categoria tímica (euforia/disforia) sobre termos
abstratos ou figurativos, formam-se microssistemas de valores.

Cognitivo: A dimensão cognitiva em semiótica designa o universo do saber, na


medida em que ele pode, a exemplo da ação, ser narrativizado. Basta, com efeito, que dois
atores não disponham de um mesmo saber sobre um objeto para que essa modalidade se
torne por sua vez um objeto-valor e conseqüentemente um desafio narrativo (segredo por
preservar ou por descobrir, mentira por desmascarar, ilusão por manter...). A história do
romance demonstra que o motor cognitivo da narratividade suplantou progressivamente o
motor pragmático, em especial a partir do advento do romance moderno (até tornar-se a
199

dimensão exclusiva: cf. os tropismos de N. Sarraute). A utilização semiótica do vocábulo


“cognitivo” deve ser distinguida de seu emprego nas “Ciências cognitivas”, em que designa a
investigação dos processos efetivos do conhecimento humano.

Debreagem: Operação enunciativa pela qual o sujeito da fala projeta “para fora de si”
as categorias semânticas do /não-eu/, /não-aqui/ e /não-agora/, instalando nesse ato as
condições primeiras da atividade simbólica do discurso. Rompendo sua inerência consigo
mesmo, ele instala as categorias objetivantes do “ele”, do “lá” e do “então”. Essa operação é
correlativa à embreagem.

Destinador: Actante que define a ordem dos valores em jogo dentro de uma narrativa.
Figura de autoridade, ele está na fonte do contrato (ele atribui ao sujeito uma missão) e da
sanção, garantindo o enquadramento axiológico da narrativa. Sob o ponto de vista modal, o
destinador é definido pela factitividade (ele faz crer, faz querer, faz saber, faz fazer).

Discurso: Particularmente polissêmico, o termo discurso designa, de uma maneira geral,


a realização do processo semiótico manifestado, por exemplo, sob a forma de texto. Pode-se
considerar que três parâmetros definem o discurso: a enunciação (discursivização), a interação
(dimensão pragmática: ação realizada e efeitos produzidos sobre o enunciatário) e o uso (os
produtos da práxis enunciativa e cultural, sob forma de esquemas canônicos, de gêneros, de
registros, de fraseologia, etc., parte impessoal da enunciação invocada – ou revogada – por um
enunciador individual quando da realização de seu discurso).

Disforia: Termo negativo da categoria tímica, que permite valorizar os universos


semânticos e transformá-los em axiologias. O termo positivo dessa categoria é a euforia (e seu
termo neutro é a aforia).

Embreagem: Operação enunciativa pela qual o sujeito da fala retorna à enunciação, a


partir da debreagem, e identifica o sujeito do enunciado com a instância da enunciação: ele
instala, nesse caso, as categorias pessoais da primeira e segunda pessoas (eu/ele) e os dêiticos
espaciais (aqui, lá) e temporais (agora, ontem...). Essa operação é correlativa à debreagem,
anterior e pressuposta. Numa perspectiva de análise literária, a embreagem dá origem a formas
variadas (embreagem enunciativa, embreagem enunciva, embreagem interna) e permite dar
conta, ao menos parcialmente, da discursivização da “vida interior” (por exemplo, uma série
de acontecimentos passados transforma-se, por embreagem, numa cena figurativa de
“lembranças”).

Enunciação: “Efetivação da língua por um ato individual de utilização” (Benveniste),


a enunciação, de início rejeitada por razões de método da semântica estrutural, foi em seguida
reintegrada no corpo teórico da análise do discurso, como pressuposto lógico do enunciado, e
definida pelas operações da debreagem e da embreagem. Na perspectiva do discurso em ato, a
enunciação tem a primazia e seu sujeito define-se, de maneira indissociável, como sujeito
sensível da percepção e sujeito discursivo da predicação.
200

Esquema narrativo: O crivo cultural de organização narrativa, depositado na


memória coletiva pela tradição sob a forma de “primitivo”, contextualiza o desenvolvimento
dos programas em um esquema canônico de alcance geral que ordena seu percurso e orienta
suas finalidades: eis o esquema narrativo, onde se inscreve uma representação imaginária do
“sentido da vida”. Ao longo de reformulações sucessivas, esse esquema, de início próximo do
universo dos contos populares (sob a forma de três provas: qualificante, decisiva, glorificante)
foi ampliado para quatro seqüências de alcance mais geral (contrato, competência,
performance, reconhecimento) ordenadas segundo uma dupla leitura de sucessão (da esquerda
para a direita) e de pressuposição (da direita para a esquerda). A última formulação desse
modelo em três esferas semióticas (manipulação, ação, sanção) permite, para além dos
universos narrativos, considerá-lo como um esquema da comunicação que apresenta o
dispositivo dos papéis e das interações essenciais, não somente entre os actantes da narrativa,
mas também entre os sujeitos do discurso. Desse modo, torna-se possível enquadrar em tal
esquema os grandes gêneros da tradição retórica (deliberativo – no âmbito da manipulação –,
judiciário e epidítico – no âmbito da sanção); o fazer (a ação) fica assim emoldurado pelas
formas de discurso que lhe dão sentido e valor.

Euforia: Termo positivo da categoria tímica, que permite valorizar os universos


semânticos e transformá-los em axiologias. O termo negativo dessa categoria é a disforia (e o
termo neutro é a aforia).

Figurativo, figuratividade: Todo conteúdo de um sistema de representação (visual,


verbal ou outro) que tem um correspondente no plano da expressão do mundo natural, isto é,
da percepção. As formas de adequação, configuradas pelo uso, entre a semiótica do mundo
natural e a das manifestações discursivas, formam o objeto da semiótica figurativa. Esta se
interessa, pois, pela representação (a mímesis), pelas relações entre figuratividade e abstração,
pelos vínculos entre a atividade sensorial da percepção e as formas de sua discursivização.

Focalização: Procedimento de debreagem cognitiva que determina a posição e o


modo de presença do narrador (ou do observador). G. Genette distingue assim a “focalização
zero” (narrador onisciente, que controla o conjunto da cena narrativa, sabe mais que suas
personagens, entra em sua interioridade), a “focalização interna” (narrador escondido atrás de
suas personagens, delegando-lhes a responsabilidade pela narrativa ou pela descrição, não
sabendo mais do que elas) e a “focalização externa” (narrador exterior à narrativa, não dando a
conhecer a não ser o que sua posição permite).

Isotopia: Recorrência de um elemento semântico no desenvolvimento sintagmático de


um enunciado, que produz um efeito de continuidade e permanência de um efeito de sentido
ao longo da cadeia do discurso. Diferentemente do campo lexical (conjunto de lexemas
ligados a um mesmo universo de experiência) e do campo semântico (conjunto de lexemas
dotados de uma organização estrutural comum), a isotopia não tem por horizonte a palavra,
mas o discurso. Ela pode assim referir-se ao estabelecimento de um universo figurativo
(isotopias de atores, tempo e espaço), mas também à tematização desse universo (isotopias
abstratas, temáticas, axiológicas), e sobretudo à hierarquia entre as isotopias de leitura (por
identificação de um núcleo isotopante que rege as isotopias de nível inferior). Conectando as
isotopias, as figuras de retórica (metáfora, metonímia, etc.) instalam a coexistência extensiva e
201

eventualmente competitiva de dois ou mais planos de significação simultaneamente oferecidos


à interpretação.

Junção: Conceito operatório e não definido da sintaxe narrativa, a junção comanda a


relação de estado entre o actante-sujeito e o actante-objeto. Ela se divide em duas relações
básicas que determinam os enunciados de estado: a conjunção (quando o sujeito está de posse
do objeto) e a disjunção (quando o sujeito está separado ou privado do objeto). A passagem
de um enunciado de conjunção a um enunciado de disjunção, ou inversamente, produz a
transformação (a passagem de um estado a outro), que é promovida por um enunciado de
fazer (e por seu sujeito). O conjunto da operação define o programa narrativo, unidade
sintáxica de base da narratividade.

Modalidade, modalização: Chama-se modal um predicado que modifica outro


predicado. Essa definição geral pode ser partilhada pelas diferentes disciplinas que estudam o
campo da modalidade (lógica, lingüística, semiótica). A abordagem semiótica da modalidade,
diferenciando-se ao mesmo tempo da modalização lingüística (que caracteriza a relação que o
sujeito enunciador mantém com seu enunciado, segundo, por exemplo, seus graus de certeza)
e da modalização lógica (que analisa a modalidade com base no cálculo proposicional, sem
levar em conta a realidade cultural do discurso), considera que a modalidade forma, tanto no
nível da enunciação como no interior dos enunciados, o “suporte constante do discurso” (J. -
C. Coquet). Fala-se, nesse caso, de valor modal. Os enunciados elementares (enunciados de
estado e enunciados de fazer) podem funcionar como enunciados modais, revelando assim a
estrutura interna do esquema narrativo: o contrato é o fazer modalizando o crer, o querer, o
saber... e finalmente o fazer (factitividade); a competência é o ser modalizando a possibilidade
do fazer; a performance, o fazer que modaliza o ser (o “fazer ser” define o ato); a sanção, o ser
que modaliza o ser ou o parecer (a veridicção). Definidora do próprio estatuto do actante, a
modalidade pode ser manifestada pelos verbos modais (querer, dever, crer, saber, poder), mas
também pelos formantes figurativos (um automóvel, por exemplo, pode modalizar seu
proprietário pelo /poder/). A estrutura do actante pode ser analisada ao mesmo tempo em
termos de paradigma modal (um sujeito pode concomitantemente querer fazer, poder fazer e
dever não fazer), conforme uma combinatória eventualmente complexa, e em termos de
sintagmática modal (seu estatuto evolui ao longo do discurso).

Modo de existência: O modo de existência define o estatuto variável das formas de


presença pelas quais os objetos semióticos se manifestam no discurso (actantes, modalidades,
temporalidade, etc.). A tradição saussuriana distinguia a existência virtual (o sistema da língua)
e a existência atual (sua realização na fala). Ampliando seu campo de aplicação, a semiótica
acrescentou à virtualização e à atualização um terceiro modo de existência, a realização. Assim,
o contrato ou a manipulação virtualizam o sujeito, a competência o atualiza, a ação e o
reconhecimento o realizam; as modalidades do crer, do querer ou do dever produzem um
sujeito virtual; o saber e o poder, um sujeito atualizado; o fazer, um sujeito realizado. De
maneira ainda mais geral, pode-se considerar que os modos de existência dizem respeito à
modulação das formas de presença do sentido no discurso: assim, por exemplo, no caso das
figuras tais como a metáfora, a coexistência por vezes tensa e competitiva entre os diferentes
planos de significação evocados pela figura é regida por seus modos de existência: um deles
pode estar virtualizado, um outro atualizado, um terceiro potencializado, um quarto realizado.
Essa abordagem permite dar conta das modulações do sentido, apreendendo tanto quanto
possível sua realidade flutuante.
202

Motivo: Unidade de discurso, fixa e relativamente autônoma (sob forma de seqüência


ou de micronarrativa), caracterizada de um lado por sua estabilidade narrativa e figurativa e de
outro por sua variabilidade temática: o motivo (do casamento, por exemplo) pode receber
diferentes funções segundo sua posição na narrativa (em posição de contrato inicial ou
recompensa final). Assim, tem sido freqüentemente salientado o caráter migratório dos
motivos, que, de um texto a outro ou de uma cultura a outra, formam “blocos pré-fabricados”
de discurso, produtos do uso sociocultural.

Mundo natural: Os semioticistas rejeitam o conceito de referente (o universo extra-


lingüístico). Consideram o “mundo natural” como uma semiótica, na medida em que, na
qualidade de plano da expressão, ele é informado pelo homem e constituído como
significação. A referência torna-se, nesse caso, uma questão de correlação entre duas
semióticas (a de uma língua natural, ou de uma linguagem pictórica com a do mundo natural)
e as adequações entre essas duas semióticas, longe de serem de simples denotação, são
subordinadas a variações profundas (culturais, entre outras). É verdade, todavia, que essa
“informação” do mundo natural pede que se examinem as condições de emergência do
sentido a partir do sensível. Disso decorrem as pesquisas conduzidas atualmente em semiótica
sobre a estesia (a percepção das sensações), a sensorialidade e a plurissensorialidade (a
sinestesia), para se depreender os modos semióticos do sensível (sabor, olfato, etc.) vinculados
à figuratividade do discurso.

Narrador: Instância delegada pelo sujeito da enunciação para assumir a


responsabilidade pelo discurso narrativo. Conforme ele esteja explicitamente instalado na
narrativa ou não, fala-se em narrador intradiegético ou narrador extradiegético (G. Genette).
As noções de perspectiva, de ponto de vista e de focalização especificam as numerosas
atribuições do narrador (por essa razão, costuma-se distingui-lo do observador).

Observador: Sujeito cognitivo, instalado pelo enunciador mediante debreagem,


encarregado de receber informações e de transmiti-las. Seus modos de presença no discurso
são variados: ele pode estar implícito, reconhecível somente pela análise (assim, por exemplo,
um “acontecimento” é uma ação considerada do ponto de vista de um observador), pode estar
manifestado pela indicação de um posto de observação, pode estar assinalado no texto por
uma marca pessoal e um predicado perceptivo, sua atividade pode ser assumida por um ator
inserido no enunciado. As relações entre observador e observado podem ser complexas e
reversíveis (o sujeito que se sabe observado pode procurar modificar, manipular, iludir o
sujeito observador...).

Paixão: Distinguem-se duas concepções semióticas da paixão: uma define a paixão em


relação à ação, a outra por oposição à razão. Examinada sobre o pano de fundo narrativo
(logo, em relação com o agir), a paixão é compreendida como uma modulação dos estados do
sujeito, provocados pelas modalidades investidas no objeto (desejável, detestável, temível, etc.)
que definem, comovendo-o, o “ser” do sujeito. Essas modalidades de estado são subtendidas
pela timia, “disposição afetiva de base”, que determina a relação do corpo sensível com o que
o cerca. Transposta em semântica como uma categoria classemática, a timia se articula em uma
vertente positiva, a eu-foria, em uma vertente negativa, a dis-foria, e em uma vertente neutra, a
a-foria. As modalidades de estado são, além disso, intensificadas, no caso da paixão, pela
203

“sensibilização” dos objetos, que depende da aspectualidade (cf. as paixões incoativas como a
impulsividade, ou terminativas como a nostalgia). Enfim, a estrutura passional é “controlada”
pela moralização, isto é, pela regulação social que estabelece a medida, entre excesso e
insuficiência, da circulação de valores. Considerada do ponto de vista da instância enunciante,
a paixão submetida à inerência do corpo e do mundo sensível é uma forma de não-sujeito: o
passional predica, mas falta-lhe o juízo que transforma a predicação em uma asserção
assumida e “refletida”. A paixão opõe-se, nesse caso, à razão.

Patêmico: Neologismo formado com a raiz pathos e o sufixo -ema, -êmico. Tal sufixo,
que se encontra na lingüística em “fonema”, “sema”, “semema”, etc. (e por extensão, na
antropologia, em “mitema”) designa a unidade mínima de descrição de um fenômeno no
campo de pertinência das ciências da linguagem. O “patema” é assim uma unidade semântica
do domínio passional. Seu emprego evita qualquer confusão com uma abordagem psicológica
do universo afetivo no âmbito do discurso. O estudo da dimensão patêmica do discurso,
complementar às dimensões pragmática e cognitiva, concerne não mais à transformação dos
estados de coisas (fulcro da narratividade), mas à modulação dos estados do sujeito, seus
“estados de alma”. Essa dimensão constitui objeto da semiótica das paixões.

Percurso gerativo: Hipótese metodológica concernente à economia geral da teoria


semiótica. Disposto em diferentes patamares de profundidade, segundo estratos passíveis de
se converterem uns nos outros, simula a “geração” da significação a partir de estruturas gerais
profundas (estrutura elementar do quadrado semiótico ou precondições dessa estrutura) que,
por enriquecimentos progressivos, convertem-se em estruturas semionarrativas (sintaxe modal
e actancial), as quais se convertem, por sua vez, em estruturas discursivas (pela tematização e
pela figurativização, que instala os atores, o espaço e o tempo). Pode-se dizer, por exemplo,
que as relações no quadrado se tornam assim operações sintáxicas (programas narrativos), as
quais se transformam num processo, que por sua vez se converte numa ação narrada,
percebida como um acontecimento. Essa hipótese, fecunda pelas problemáticas que suscitou,
vê-se hoje, em razão de sua rigidez e dos pressupostos que ela implica, bastante contestada.

Perspectiva: À diferença do ponto de vista, que implica um observador, a


perspectivização é da alçada da textualização. Ela consiste na escolha que o enunciador faz,
levando em conta as coerções da linearidade, ao selecionar o percurso narrativo deste ou
daquele ator em detrimento de tal ou tal outro, igualmente presente na cena narrativa. Assim,
no romance policial, a escolha consistirá em colocar o leitor na perspectiva do investigador, do
criminoso ou da vítima...

Ponto de vista: O conjunto dos procedimentos utilizados pelo enunciador para


selecionar os objetos de seu discurso e orientar sua focalização. Essa noção intuitiva (ela
pertence à linguagem corrente, assim como à metalinguagem técnica) deve ser precisada. Ela
se aplica com efeito às diferentes formas de discurso: narrativo, descritivo, argumentativo, e
diz respeito em cada caso ao jogo das posições enunciativas (da debreagem à embreagem), à
relação modal instaurada entre o sujeito (narrador, observador, argumentador) e seu objeto, às
estratégias de estruturação determinadas pelas coerções da textualização (o que vem antes / o
que vem depois, as relações entre as partes e o todo, a passagem do particular ao geral ou
inversamente, etc.). O vasto campo do “ponto de vista” tem sido precisado com o auxílio de
conceitos mais específicos, tais como : “focalização”, “perspectiva”, “observador”.
204

Pragmática: A dimensão pragmática designa o universo da ação propriamente dita,


pondo em cena sujeitos humanos em relação com objetos concretos (tesouros escondidos,
territórios a conquistar, perigos a evitar, etc.). Essa dimensão é invocada nos discursos
etnoliterários (narrativas míticas, conto...), literários (romance, novela...) ou sociais
(jornalísticos, nos relatos de faits divers, publicitários...) O emprego que se faz em semiótica do
termo “pragmática” deve ser distinguido da “Pragmática”, disciplina da teoria da linguagem
que visa à análise da língua em ação, através de sua execução e de seus efeitos sobre o
interlocutor (interação).

Programa narrativo: Operação sintáxica elementar da narratividade, que opera a


transformação de um enunciado de estado (de disjunção, por exemplo) em outro enunciado
de estado (de conjunção) pela mediação de um enunciado de fazer. A estrutura de um texto
narrativo apresenta uma arquitetura complexa de programas, que podem ser repetidos (de
fracasso em fracasso até conduzir ao êxito, ressaltando assim a dificuldade da prova),
alternados (podendo um programa se encontrar suspenso ou desviado pela realização de
outros programas), hierarquizados (a realização de um programa “de base” pode exigir, para
seu cumprimento, a realização de programas intermediários, ditos “de uso”). Enfim, o crivo
cultural de leitura das narrativas contextualiza os programas em um esquema canônico de
alcance geral que ordena seu percurso e orienta suas finalidades: o esquema narrativo.

Quadrado semiótico, estrutura elementar da significação: A estrutura de um


microuniverso semântico desdobra-se sob a forma de uma estrutura elementar (ou quadrado
semiótico). Esse modelo define as relações lógico-semânticas em cujo cruzamento se
constituem as significações. Oriundo do modelo lógico aristotélico, o quadrado articula as
relações de contradição, contrariedade, complementaridade e hierarquia.

Sema: Também chamado figura sêmica, constitui a unidade mínima de significação.


Unidade diferencial, ele é o termo resultante de uma categoria, isto é, de uma estrutura
relacional construída pelas oposições elementares constituintes (liberdade/impotência,
vida/morte, natureza/cultura, etc.) ou pelas diferenças graduais em uma escala polarizada
(frio/morno/quente). Os tipos de semas são variados, levando-se em conta a complexidade
das arquiteturas sêmicas. É costume falar-se em núcleo sêmico (ou sema inerente, ou genérico)
e classema (ou sema contextual, ou aferente).

Semema: Efeito de sentido produzido por um lexema, quando de sua manifestação


em discurso, por meio do conjunto de semas que ele atualiza, núcleo sêmico e semas
contextuais. O semema designa assim as significações realizáveis ou realizadas de uma palavra
em contexto (as acepções).

Sujeito: Actante da enunciação (o sujeito da fala) e actante do enunciado (o sujeito do


fazer e o sujeito do estado), ele se define por sua relação com um predicado (modal ou
descritivo). Peça central da cena actancial, define-se, também, por sua relação com outros
actantes: o objeto (almejado ou temido, por exemplo, com o qual está conjunto ou disjunto), o
Destinador (que determina a orientação de seu percurso) ou o anti-sujeito (que se lhe opõe). J.
-C. Coquet introduziu o conceito de não-sujeito para designar o actante de predicação mas não
de assunção, que não se compromete com os atos que realiza, que se assimila à sua função
agindo “mecanicamente”, que se dissolve naquilo que tem a função de realizar. Nessa
205

perspectiva, o actante da paixão, perdendo o domínio cognitivo de sua ação, pertence à classe
dos não-sujeitos.

Textualização: Disposição de elementos discursivos segundo as coerções decorrentes


da linearidade da manifestação verbal. Assim, duas ações paralelas não podem ser narradas
simultaneamente: sua textualização obriga a colocar uma antes da outra ou a ocultar uma para
que a outra apareça. Essa “programação textual” coercitiva deixa ao mesmo tempo uma
margem estratégica ao enunciador na organização de seu texto. Por ocasião da textualização, a
escolha da perspectiva do herói ou do anti-herói determina a seleção dos valores. O
enunciador pode também, explorando a elasticidade do discurso, jogar com as possibilidades
da condensação (redução, resumo ou até mesmo a simples lexicalização) e da expansão
(amplificação do texto). O desenvolvimento da textualização é assim relativamente autônomo
em relação à programação narrativa.

Temático, tematização: Operação que consiste em reconhecer, a partir de uma ou


de várias isotopias figurativas, uma isotopia mais abstrata, subjacente aos conteúdos
figurativos cuja significação global ela condensa, orientando-a e integrando-lhe valores. Assim,
uma “evasão” espacial ou temporal tematizará um embarque para viagem ou uma evocação da
infância, atualizando nela o valor “liberdade”.

Timia: “Disposição afetiva de base”, determina a relação que um corpo sensível


mantém com seu ambiente: relação positiva ou negativa que, submetida a mudanças
repentinas e repetidas, leva à “ciclotimia”. Transposta em semântica como uma categoria
classemática, a timia articula-se em uma vertente positiva, a eu-foria (cf. o entusiasmo), uma
vertente negativa, a dis-foria (cf. o desespero), e uma vertente neutra, a a-foria (cf. a
indiferença). O exame da massa tímica se encontra nos fundamentos da análise semiótica das
paixões.

Uso: Introduzido por L. Hjelmslev, que com ele substituiu a “fala” na dicotomia
saussuriana língua/fala, o uso designa o conjunto dos hábitos lingüísticos de uma dada
sociedade. Resultantes da práxis enunciativa coletiva, os produtos do uso constituem a parte
impessoal da enunciação e compreendem os esquemas que caracterizam a organização das
grandes formas de discurso (como o esquema narrativo), o estabelecimento e a transformação
dos gêneros, os registros (registro épico, lírico, etc., bem como os níveis de língua), os lugares-
comuns (topoi), a fraseologia cristalizada, os blocos “pré-fabricados” de discursos, etc. Todo
locutor convoca esses produtos do uso no exercício da língua, e a criatividade linguageira
consiste muitas vezes em revogá-los (efeito de estilo, por exemplo). Se tais novas formas
“pegarem”, elas serão por sua vez reintegradas ao senso comum, ficando a partir daí
disponíveis para uso (cf. por exemplo as expressões “na moda”). Ainda que aberto à variação e
à criatividade, o uso está longe de explorar todas as virtualidades de combinatórias oferecidas
pelo sistema (a língua), e por isso fala-se de uma restrição do uso pela história (coerções e
códigos do uso).

Valência: Condição de existência e de aparecimento dos valores. As valências


constituem um preâmbulo à instauração dos valores que definem as axiologias estabelecidas
no discurso (cf. a negociação das equivalências). Elas se referem à sensibilização dos objetos e
formam o fundamento das crenças produzidas pelo discurso. J. Fontanille mostrou, por
206

exemplo, que em Eluard as valências são incoativas: isso significa que as coisas não podem ser
valorizadas a não ser que sejam percebidas no seu começo (aurora, despertar da amante,
nascimento da criança, pássaro alçando vôo, primórdios de um sentimento, etc.).

Valor: A semiótica associa e integra três definições do conceito de valor: lingüística (o


valor como efeito de sentido diferencial), econômica (o valor como aquilo que define o caráter
desejável, negociável ou disputável de um objeto ou de um bem) e axiológica (o valor como
elemento constitutivo de um ponto de vista ético, de normas morais, de um sistema estético).
Assim concebido, o valor pode receber uma definição modal elementar (é, por exemplo, “o
ser desejado” e o “ser temido” do objeto), ser claramente distinguido do objeto em que se
investiu (aquilo que o sujeito visa, negocia ou arranca é o valor atribuído ao objeto, espelho do
próprio sujeito), ser posto em circulação no interior das estruturas narrativas (dádiva,
apropriação, troca, renúncia, conflito, etc.) e personificar o dispositivo axiológico que,
originário do destinador, o selecionou. O processo prévio que condiciona a emergência e a
definição dos valores estabelecidos pertence ao jogo das valências.

Veridicção: Diferentemente de uma definição da verdade baseada, em teoria da


comunicação, na adequação da mensagem a seu referente, a semiótica desenvolve uma análise
da veridicção, isto é, dos jogos da linguagem com a verdade que o discurso instala em seu
interior. Por mais forte que seja a modalização de sua certeza, o crer-verdadeiro do enunciador
não é suficiente: ele deve ser partilhado pelo mesmo crer-verdadeiro do enunciatário. Esse
equilíbrio frágil, mais estável ou menos, proveniente de um entendimento implícito entre os
parceiros da comunicação, é chamado “contrato de veridicção”. Assim deslocada para as
instâncias do enunciador e do enunciatário, a questão da verdade insere-se nas estratégias do
“fazer parecer verdadeiro”, em que podem coincidir o fazer persuasivo de um com o fazer
interpretativo do outro, fazer-crer e crer-verdadeiro. As modalidades veridictórias,
combinando ser e parecer e suas negações, engendram as posições canônicas da verdade
(quando parecer e ser coincidem), da dissimulação e do segredo (ser + não-parecer) da
simulação e da mentira (parecer + não-ser) e, enfim, da falsidade, que marca uma não-
pertinência no interior do discurso considerado (não-ser + não-parecer).

Você também pode gostar