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RESUMO
1. Introdução
O século XVIII, como sabemos, é considerado tradicionalmente o Século das Luzes. Nele,
surgiram as enciclopédias e o movimento iluminista despontou como um mergulho nas
ciência, nas artes e nas letras. A França, que há muito já vinha se destacando na promoção do
conhecimento científico, acentuou ainda mais o seu brilho cultural. Por outro lado, a crise
político-social assolava o país da elegância e da cultura, cujos reis, ao longo da história,
figuravam tal como estrelas cadentes: de forte brilho, mas de rápida e decadente passagem. O
então Rei da França, Luís XV, havia decidido instituir uma Câmara Real, em substituição ao
Parlamento de Paris, que havia se tornado mais popular que o Soberano. Além desse fator
político, a seca ocorrida em 1754, ocasionando a queda na distribuição de grãos de trigo,
aprofundou ainda mais a tensão que opunha a opulenta monarquia e o povo. Os sentimentos
de incerteza e revolta pairavam por sobre as tensões sociais e políticas.
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Discente do curso de Licenciatura Plena em Filosofia pelo Centro de Teologia e Ciências Humanas da
Universidade Católica de Pernambuco. E-mail: josedesanetoofmcap@gmail.com.
Jean-Jacques Rousseau era filho de huguenotes franceses. O seu pai era um relojoeiro de
modos simples, mas honrados. Embora nascido em Genebra, cidade-estado de tradição
calvinista, em 1712, Rousseau vivia desde 1745 em Paris. Sua atividade intelectual passou ao
nível de reconhecimento público quando, por ocasião do concurso literário da Academia das
Ciências, Artes e Belas Letras de Dijon ocorrido em 1749, que formulou uma questão acerca
da possível relação entre o progresso das ciências e das artes e os seus efeitos nos costumes,
Rousseau respondeu com o seu Discurso sobre as ciências e as artes (1750). Como vencedor
do prêmio que a Sociedade havia oferecido para aquele que satisfizesse a crítica dos seus
membros, o pensador ganhou fama, mas renunciou às benesses subsequentes a fim de,
conforme o seu posicionamento filosófico, conservar a liberdade e não se render às
expectativas de uma cultura corruptora.
Este filho de relojoeiro, já pela sua condição social não iria encontrar um
caminho muito fácil pela frente, se quisesse ingressar no mundo das letras,
dominado, na sua maioria, por pensadores como Voltaire, cuja linhagem era
a de uma burguesia bem abastada, que frequentavam os famosos “salões” da
época e não dispensavam uma certa proximidade da corte. Rousseau será
sempre avesso aos salões e às corte. Será um filósofo à margem dos grandes
nomes de seu século, mas nem por isso estaria afastado de polêmicas e
chegou até a contribuir, a convite de Diderot, para a grande Enciclopédia,
com artigos sobre música e economia política (NASCIMENTO, 1997, p.
191).
Em 1753, novamente, a mesma Academia propunha uma nova questão: qual é a origem
da desigualdade entre os homens e será ela autorizada pela lei natural? Como podemos
perceber, o concurso literário, dessa vez, quis traduzir o espírito inquieto que rondava tanto as
ruas assoladas pela fome e pelo inconformismo, quanto os corredores dos nobres, cuja
opulência contrastava com a miséria a que muitos estavam submetidos. Mais uma vez,
Rousseau responde na forma de um discurso: Discurso sobre a origem e os fundamentos da
desigualdade entre os homens (somente concluído em 1754), que foi a sua segunda obra nesse
gênero. Com essa obra, quis o filósofo expor a desigualdade, da qual se considerava uma das
vítimas, fruto da ambição perversa de uns poucos 2. Ao observar a miséria que assolava os
campos e as cidades da França do século XVIII, compreendia que as pessoas às quais faltava
até mesmo o básico para a subsistência eram as que mais se aproximavam de uma inocência
natural. Ele mesmo se via na condição de um simples filho de artesão e cuja busca era tão
somente por alcançar uma condição de vida que lhe pudesse proporcionar o bem-estar.
2
“Do que precisamente se trata, portanto, neste Discurso? De identificar no progresso das coisas o momento
em que, sucedendo à violência o direito, a natureza foi submetida à lei, e de explicar por que encadeamento de
prodígios o forte pode decidir-se a servir o fraco, e o povo a comprar um repouso ilusório ao preço de uma
felicidade real” (ROUSSEAL, 2015, p. 56)
2. O estado de natureza segundo Rousseau: o bom selvagem
Se o mais importante de todos os conhecimentos é aquele que nos permite uma sondagem
profunda do gênero humano, a filosofia deve voltar todos os seus esforços para bem percorrer
esse caminho. Tal empreendimento é imprescindível para o objetivo de nosso pensador, o que
o leva a pôr, logo no prefácio do seu segundo discurso, o questionamento com o qual inicia as
suas investigações: “como conhecer a fonte da desigualdade entre os homens, sem antes
começar por conhecer a eles próprios ?” (ROUSSEAU, 2015, p. 43). Para ele, a alma humana,
que houvera saído das mãos do Criador guiada por princípios retos e imutáveis, no decorrer
das mudanças sofridas com a fundação da sociedade civil, desfigurou-se devido ao contraste
entre as paixões desordenadas e o empoderamento desmedido da razão.
3
“Sozinho, ocioso e sempre perto do perigo, o homem selvagem deve amar dormir e ter o sono leve, como
os animais que, por pensarem pouco, dormem, por assim dizer, o tempo todo em que não pensam. Sendo a
própria conservação o seu único cuidado, suas faculdades mais exercidas devem ser as que têm por objeto
principal o ataque e a defesa, seja para subjugar a presa, seja para evitar tornar-se a de outro animal”
(ROUSSEAU, 2015, p.67).
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“Recebi, senhor, vosso novo livro contra o gênero humano, e vos agradeço por isso. Vós agradareis aos
homens, sobre quem fala vossas verdades, e não os emendará. Ninguém poderia pintar um quadro com cores
mais fortes dos horrores da sociedade humana, para os quais nossa ignorância e debilidade tem tanta esperança
de consolo. Ninguém jamais empregou tanta vivacidade em nos tornar novamente animais: pode-se querer andar
com quatro patas, quando lemos vossa obra” (Carta a Rousseau, VOLTAIRE). Disponível em:
http://www.consciencia.org/carta-a-rousseau-voltaire. Acesso em: 28/10/2020.
deste não excedem as suas necessidades físicas (alimento, fêmea e repouso) e os seus temores
são igualmente de caráter físico, a saber, a dor e a fome.
Enquanto Thomas Hobbes, para quem o homem no estado de natureza é mal e egoísta, ou,
em sua palavras, “Todos os homens no estado de natureza têm desejo (desire) e vontade (will)
de ferir” (HOBBES, 1991 apud BRONDANI, 2014, p. 7); Rousseau reconhecia uma bondade
e inocência originárias no gênero humano. Ambos são pensadores identificados com a
corrente contratualista do pensamento político, mas se posicionam nas extremidades dessa
corrente: o estado de natureza para Hobbes era caracterizado pela violência e a guerra de
todos contra todos, e o surgimento do Estado (absolutista) era decorrente de um pacto entre os
homens, os quais entregavam a sua liberdade e direitos naturais a um Soberano a fim de que
ele, pela força de lei, garantisse a ordem e a segurança, pondo fim ao estado de guerra;
Rousseau, assumindo uma postura totalmente contrária a Hobbes, vê na sociedade civil o
estado de guerra que este atribuíra ao estado de natureza, considerando o corpo social o fruto
de um pacto entre os ricos e os pobres, haja vista a propriedade privada ter desequilibrado e
corrompido a ordem natural, fazendo prevalecer uns sobre outros.
E, ainda,
Se agora, para essa tendência natural dos homens a se ferirem uns aos outros,
que eles derivam de suas paixões, mas principalmente de uma vã estima de
si mesmos, somarmos, o direito de todos a tudo, por meio do qual alguém,
com direito, invade, e o outro, com direito, resiste, surgem então contínuos
zelos e suspeitas por todos os lados (HOBBES, 1991 apud BRONDANI,
2014, p. 9).
Rousseau critica o contratualista inglês por ter incluído incontáveis paixões a serem
satisfeitas no cuidado de autoconservação do estado de natureza. Para o genebrino, a
multiplicação e desordem das paixões se deu com a instituição da sociedade e,
consequentemente, exigiu a criação de leis a que todos obedecessem. Hobbes, adverte
Rousseau, “não viu que a mesma causa que impede os selvagens de utilizar-se de sua razão
[...] impede-os, ao mesmo tempo, de abusar de suas faculdades [...] de modo que se poderia
dizer que os selvagens não são maus, precisamente porque não sabem o que é ser bons “
(2015, p. 82).
Conforme o exposto acima, podemos afirmar que, para Rousseau, no estado de natureza,
diferentemente do que pensava Hobbes, o homem é amoral, não sabendo nem o que é bom
nem o que é mal, mas agindo, sobretudo, pelos impulsos naturais, que o levam a garantir a sua
autoconservação, um dos princípios presentes na alma desde os inícios, o que em nada
prejudica a conservação de outrem. Além disso, um outro princípio, também não levado em
consideração pelo filósofo inglês, é a piedade face ao sofrimento de um semelhante, que
suaviza, em certas ocasiões, o desejo de autoconservação, moderando, dessa forma, os
esforços por garantir o seu bem-estar. Logo, esse estado não é de guerra de todos contra todos,
mas de paz.
Dito isso, podemos entender o que Rousseau quer dizer quando afirma, no Ensaio sobre a
origem das línguas, que foram as paixões e as necessidades morais que fizeram surgir as
primeiras formas de comunicação (gestos e vozes). As línguas se originaram do amor, do
ódio, da piedade, da cólera, ou seja, das paixões, as quais aproximam os homens. No decorrer
do processo histórico é que a linguagem antiga dos primeiros homens, que Rousseau situa
entre as línguas orientais, foi sendo transformada no que ele chama de “línguas de
geômetras”, isto é, de poéticas, apaixonadas e cantáveis passaram a ser simples e melódicas,
medidas e calcadas. Em seu segundo discurso, ainda na primeira parte, nosso filósofo afirma
que a forma primitiva de linguagem, aquela de que teve necessidade o homem selvagem,
emergiu como “um grito de natureza”, ou seja, surgiu da combinação entre as necessidades
originárias (por exemplo, as situações de perigo e o alívio das dores) e a reposta dos instintos.
Quando, por eventos fortuitos, as ideias dos homens passaram a multiplicar-se e a
estender-se, estreitando-se a comunicação entre eles, começaram a procurar sinais mais
numerosos e uma linguagem que pudesse corresponder a essa nova amplidão de ideias. Os
sons mais primitivos, os gemidos e as variações da voz, juntaram-se aos gestos para serem
mais expressivos. Nesse período, cada objeto recebia um nome particular, não eram
conhecidas as espécies, os gêneros e as classes; em geral, as coisas eram julgadas em seu
primeiro aspecto. Vale ressaltar que o nosso filósofo reconhece a grande dificuldade que há
em empreender esforços para explicar o surgimento da primeira forma de linguagem entre os
seres humanos. No entanto, apesar dessas dificuldades, podemos concluir que, a natureza, ela
mesma, em muito pouco dispôs os homens a constituírem a sociabilidade. Diz-nos Rousseau:
A partir dessa primeira convivência entre um homem, uma mulher e o filho, iniciando a
tradição patriarcal em uma sociedade nascente, surgiu o amor paterno e conjugal. Dessa
pequena sociedade, como denomina Rousseau, “se estabeleceu a primeira diferença no modo
de viver dos dois sexos, que até então só conheciam um. As mulheres se tornaram mais
sedentárias e se acostumaram a guardar a cabana e os filhos, enquanto o homem ia procurar a
subsistência comum” (2015, p. 100). Esse novo estilo de vida, ocasionou também o
surgimento de comodidades, sendo este o primeiro mal que, sem saberem, causavam a si
mesmos e a sua posteridade, pois, ao perderem-nas, tornavam-se infelizes e, ainda as
possuindo, não se sentiam suficientemente felizes.
Com o passar dos séculos, os homens, por terem se fixado, começaram uma lenta e
gradual aproximação, reunindo-se em bandos cada vez maiores, compartilhando costumes, e
formando, por fim, as primeiras e particulares nações. É inegável que a descrição de Rousseau
é temperada por alguma medida de dramaticidade: ele é capaz de “fazer-nos ver” os primeiros
encontros entre a famílias, o surgimento de um sentimento terno, que já carrega consigo o
germe da violência e da traição; os elementos morais do amor também despontam e “podemos
ver” que também o ciúme e o sentimento de posse passam a rondar os amantes; os homens
passaram a estimar e a desejar expor suas qualidades para serem louvados, assim, instalou-se
a desigualdade entre o mais estimado, belo, habilidoso, eloquente e os pouco providos dessas
qualidades. Enfim, segundo o nosso filósofo, a doçura das paixões é salpicada de sangue
humano derramado violentamente. Todas essas mudanças vieram acompanhadas dos vícios,
tais como a soberba, a vaidade, o desprezo e outras paixões atiçadas pelo fogo das vantagens e
privilégios. Os progressos posteriores, embora para muitos aparentem um aperfeiçoamento do
homem, na verdade, conduzi-o à decadência.
Começando a moralidade a introduzir-se nas ações humanas e sendo cada
um, diante das leis, juiz e vingador único das ofensas recebidas, a bondade
conveniente ao estado puro de natureza não era mais a que convinha à
sociedade nascente. Era necessário que as punições se tornassem mais
severas à medida que as ocasiões de ofender se tornavam mais frequentes e
cabia ao terror das vinganças fazer as vezes de freio das leis [...] esse período
de desenvolvimento das faculdades humanas, mantendo um justo meio entre
a indolência do estado primitivo e a atividade petulante do nosso amor-
próprio, deve ter sido a época mais feliz e duradoura [...] a verdadeira
juventude do mundo (ROUSSEAU, 2015, p. 103-104).
A queda mais brusca veio por meio de eventos movidos ao acaso, foram descobertas a
divisão do trabalho, a agricultura e a metalurgia. A produção tornou-se obstinada e a
necessidade cedeu o seu posto ao supérfluo, ocasionando conflitos entre os homens, que
buscavam possuir em abundância. A partir desse momento, um estado de guerra surgiu e, em
sequência, a necessidade de alguma ordem que garantisse a segurança. Ora, com o surgimento
da agricultura e de outras artes que possibilitaram o desenvolvimento daquela, juntamente
com o aperfeiçoamento do trabalho com os metais, o cultivo da terra se expandiu e,
consequentemente, a sua necessária partilha.
A constituição das primeiras propriedades fez surgir a necessidade de leis que pudessem
pôr ordem na nova dinâmica social, garantir segurança e punir os invasores. Foi o trabalho de
cultivar a terra, com os novos conhecimentos trazidos pelas descobertas acima referidas, que
deu ao homem-agricultor o direito sobre os produtos de seu trabalho e sobre o solo, ao menos
durante o período da colheita. Como o cultivo e a colheita se repetiam ano após ano, então,
aquele que detinha a posse sobre os produtos e sobre a terra durante a colheita passou a ter o
direito contínuo de propriedade sobre o solo que cultivava.
eis as funestas evidências de que nossos males são, na sua maioria, obra
nossa e de que teríamos evitado quase todos caso tivéssemos conservado a
maneira simples, uniforme e solitária de viver, que nos era prescrita pela
natureza. Se ela nos destinou a sermos sãos, ouso quase assegurar que o
estado de reflexão é um estado contrário à natureza e que o homem que
medita é um animal depravado [...] Evitemos, portanto, confundir o homem
selvagem com os homens que temos diante dos olhos (ROUSSEAU, 2015,
p. 64.65).
Podemos perceber que a ambição passa a permear as relações entre os homens, e a busca
por fortuna a ditar os comportamentos de uns para com os outros; a superioridade é a
qualidade de quem tem mais e, por isso, é o mais forte, usando de todos os meios para
permanecer nessa posição, mesmo que seja preciso prejudicar os seus semelhantes. Explica-
nos Rousseau: “dessa forma, veem-se concorrência e rivalidade, de um lado, oposição de
interesses, de outro, e sempre, o desejo oculto de tirar proveito à custa de outrem; todos esses
males são o primeiro efeito da propriedade e o cortejo inseparável da desigualdade nascente”
(2015, p.109).
Mais uma vez, chamamos atenção para o caráter romântico e dramático da narrativa
interpretativa de nosso filósofo. Após discorrer sobre a fundação da propriedade privada, bem
como do direito do mais forte, ele afirma que um estado persistente de guerra se instalou entre
os homens, acirrando as lutas e provocando eventos violentos que se tornaram constituintes
predominantes da história humana. Segundo Rousseau,
Dessa maneira, surgiu o pacto: aquele dentre os mais ricos, visando à consolidação de
suas riquezas, determinou a sua autoridade por sobre toda a multidão dos pobres e
enfraquecidos, que concordaram em obedecer a suas disposições desde que lhes garantisse a
segurança. O direito de propriedade, especialmente dos mais abastados, foi institucionalizado,
contrariando o direito natural de igualdade, e as desigualdades passaram a ser um “lugar
comum” para a nova condição humana; a autoridade surgiu em decorrência de uma
convenção, e esta, da necessidade de alguma instância política que diminuísse os efeitos do
estado de guerra, surgido com o fim do isolamento e o começo da sociabilidade e da
propriedade privada. As vantagens do estabelecimento de uma entidade política, de um
Estado, apresentaram-se entranhadas de abusos e de perversões. Fazia-se necessário sacrificar,
em certa medida, a liberdade para conservar o bem-estar e os direitos de propriedade.
O quadro que acabamos de pintar, mesmo sob o olhar do mais desatento observador,
apresenta com clareza as seguintes cores: os mais fracos foram manipulados e ainda mais
subjugados pela vontade dos mais fortes, os quais conquistaram ainda mais o poder; a
liberdade natural, que já há tempos vinha sendo minada, recebeu o golpe final; a propriedade
passou a ser a guarda das desigualdades; e, em proveito de alguns usurpadores e ambiciosos,
muitos foram convertidos em escravos e miseráveis, tendo de trabalhar muito e receber pouco
ou nada.
Na verdade, em sociedade, seja rico ou pobre, todos são escravos uns dos outros, pois
perderam a mais primitiva independência, gozada no estado de natureza. O homem selvagem
não suportaria uma submissão como a presente nas sociedades, nem tampouco se
banquetearia com tranquilidade, estando na dependência de outrem. Nas palavras do próprio
Rousseau: “vejo multidões de selvagens inteiramente nus desprezarem as volúpias europeias e
desafiar a fome, o fogo, o ferro e a morte, apenas para conservar a sua independência,
percebo que não cabe a escravos raciocinar sobre a liberdade” (2015, p. 117 destaque
nosso).
No que tange às diversas formas de governo, o nosso filósofo também apresenta uma
interpretação: os diferentes graus de desigualdade em cada sociedade as originaram. No
momento em que foram instituídas, as sociedades apresentavam diferenças mais ou menos
profundas entre os seus particulares. Dessa forma, se um homem se destacava pela sua
riqueza e poder no momento em que uma comunidade estava sendo formada, então, somente
ele era eleito como magistrado, ou seja, o Estado constituído era uma Monarquia. No entanto,
se as desigualdades eram menos profundas a ponto de, no período fundacional do corpo
social, muitos homens, mais ou menos nas mesmas condições de riqueza e prestígio,
prevaleciam sobre os demais, então, eram eleitos juntos e formavam uma aristocracia. Ou
mesmo, se a fortuna e os privilégios entre os homens eram menos desproporcionais, tendo
eles se afastado o menos possível do estado de natureza, então, formava-se uma democracia.
Explicitamente, Rousseau não indica qual a melhor forma de governo, embora pareça pender
para essa última (democracia), no entanto, atribui ao tempo o poder de revelar quais governos
se sobressairiam sobre os outros.
Mais uma vez, realçamos a narrativa melancólica, mas provida de beleza e refinamento
intelectual, que o escrito desse discurso compõe e faz-nos vislumbrar. À medida que surgiram
as propriedades, as leis e as sociedades, o estado de natureza decaia de tal maneira que se nos
fosse possível justapor um homem em estado de natureza e um cosmopolita, muito
possivelmente, diríamos que cada um deles pertencia a uma espécie diferente. Dessas
mudanças tão profundas nos homens e nas relações entre si, nasceram as guerras, os
homicídios, a sede de vingança em níveis tão maléficos que chocam a razão. Acerca dessa
imagem do homem “civilizado” podemos encontrar, ainda na primeira parte do Discurso
sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, ao contra-argumentar
Hobbes, uma contundente afirmação de Rousseau, que entra em verdadeiro confronto com as
concepções iluministas da época:
O cenário narrado por Rousseau conduz os leitores até o último estágio da desigualdade,
no qual a cega obediência torna-se a única virtude que ainda resta nos cidadãos, ou melhor,
nos homens tornados escravos pelo corpo social. Nesse estágio, “o ponto extremo que fecha o
círculo e toca no ponto de que partimos; é aqui que todos os particulares voltam a ser iguais,
pois não são nada [...] as noções do bem e os princípios de justiça novamente se esvaecem”
(Rousseau, 2015, p. 128). Toda a realidade é reduzida à lei do mais forte, o centro de rotação
da vida social é a vontade do senhor, os seus interesses.
7. Considerações finais
O abismo que separa o estado de natureza e o estado social reside nas relações do homem
consigo mesmo e com os circunvizinhos. O selvagem vive em si mesmo, desejando apenas
repouso e liberdade, além de desprezar todo objeto que esteja fora de suas verdadeiras
necessidades; o homem sociável, por outro lado, vive sempre fora de si, vive segundo as
expectativas de outrem, mede-se conforme as opiniões, e dos julgamentos alheios extrai o
sentido de sua existência.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS