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A ORIGEM DA DESIGUALDADE E DA HOSTILIDADE ENTRE OS

HOMENS: UMA ANÁLISE DO SEGUNDO DISCURSO DE ROUSSEAU

José de Sá Araújo Neto1

RESUMO

Jean-Jacques Rousseau, filósofo integrante da corrente de pensamento denominada de


contratualismo, apresentou uma interpretação sobre a origem da sociedade com a publicação
do Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, concluído
em 1754. Neste trabalho, pleiteamos abordar e analisar o que Rousseau elencou como
características do homem primitivo, além de discorrermos sobre a passagem do estado de
natureza para o estado de sociedade, com a instituição da propriedade privada. Realçaremos,
outrossim, a diferença entre as posições do pensador francês e de Thomas Hobbes, e como
aquele concebia a razão e as paixões na esfera da natureza humana primitiva e social. Não
obstante o nosso esforço de investigação e de elucidação do pensamento de Rousseau, não
pretendemos abranger toda a sua produção intelectual, mas nos voltarmos analiticamente para
as suas concepções de estado de natureza e sociedade, com suas respectivas idiossincrasias.

Palavras-chave: Estado de natureza – bom selvagem – propriedade – sociedade.

1. Introdução

O século XVIII, como sabemos, é considerado tradicionalmente o Século das Luzes. Nele,
surgiram as enciclopédias e o movimento iluminista despontou como um mergulho nas
ciência, nas artes e nas letras. A França, que há muito já vinha se destacando na promoção do
conhecimento científico, acentuou ainda mais o seu brilho cultural. Por outro lado, a crise
político-social assolava o país da elegância e da cultura, cujos reis, ao longo da história,
figuravam tal como estrelas cadentes: de forte brilho, mas de rápida e decadente passagem. O
então Rei da França, Luís XV, havia decidido instituir uma Câmara Real, em substituição ao
Parlamento de Paris, que havia se tornado mais popular que o Soberano. Além desse fator
político, a seca ocorrida em 1754, ocasionando a queda na distribuição de grãos de trigo,
aprofundou ainda mais a tensão que opunha a opulenta monarquia e o povo. Os sentimentos
de incerteza e revolta pairavam por sobre as tensões sociais e políticas.

1
Discente do curso de Licenciatura Plena em Filosofia pelo Centro de Teologia e Ciências Humanas da
Universidade Católica de Pernambuco. E-mail: josedesanetoofmcap@gmail.com.
Jean-Jacques Rousseau era filho de huguenotes franceses. O seu pai era um relojoeiro de
modos simples, mas honrados. Embora nascido em Genebra, cidade-estado de tradição
calvinista, em 1712, Rousseau vivia desde 1745 em Paris. Sua atividade intelectual passou ao
nível de reconhecimento público quando, por ocasião do concurso literário da Academia das
Ciências, Artes e Belas Letras de Dijon ocorrido em 1749, que formulou uma questão acerca
da possível relação entre o progresso das ciências e das artes e os seus efeitos nos costumes,
Rousseau respondeu com o seu Discurso sobre as ciências e as artes (1750). Como vencedor
do prêmio que a Sociedade havia oferecido para aquele que satisfizesse a crítica dos seus
membros, o pensador ganhou fama, mas renunciou às benesses subsequentes a fim de,
conforme o seu posicionamento filosófico, conservar a liberdade e não se render às
expectativas de uma cultura corruptora.

Este filho de relojoeiro, já pela sua condição social não iria encontrar um
caminho muito fácil pela frente, se quisesse ingressar no mundo das letras,
dominado, na sua maioria, por pensadores como Voltaire, cuja linhagem era
a de uma burguesia bem abastada, que frequentavam os famosos “salões” da
época e não dispensavam uma certa proximidade da corte. Rousseau será
sempre avesso aos salões e às corte. Será um filósofo à margem dos grandes
nomes de seu século, mas nem por isso estaria afastado de polêmicas e
chegou até a contribuir, a convite de Diderot, para a grande Enciclopédia,
com artigos sobre música e economia política (NASCIMENTO, 1997, p.
191).

Em 1753, novamente, a mesma Academia propunha uma nova questão: qual é a origem
da desigualdade entre os homens e será ela autorizada pela lei natural? Como podemos
perceber, o concurso literário, dessa vez, quis traduzir o espírito inquieto que rondava tanto as
ruas assoladas pela fome e pelo inconformismo, quanto os corredores dos nobres, cuja
opulência contrastava com a miséria a que muitos estavam submetidos. Mais uma vez,
Rousseau responde na forma de um discurso: Discurso sobre a origem e os fundamentos da
desigualdade entre os homens (somente concluído em 1754), que foi a sua segunda obra nesse
gênero. Com essa obra, quis o filósofo expor a desigualdade, da qual se considerava uma das
vítimas, fruto da ambição perversa de uns poucos 2. Ao observar a miséria que assolava os
campos e as cidades da França do século XVIII, compreendia que as pessoas às quais faltava
até mesmo o básico para a subsistência eram as que mais se aproximavam de uma inocência
natural. Ele mesmo se via na condição de um simples filho de artesão e cuja busca era tão
somente por alcançar uma condição de vida que lhe pudesse proporcionar o bem-estar.

2
“Do que precisamente se trata, portanto, neste Discurso? De identificar no progresso das coisas o momento
em que, sucedendo à violência o direito, a natureza foi submetida à lei, e de explicar por que encadeamento de
prodígios o forte pode decidir-se a servir o fraco, e o povo a comprar um repouso ilusório ao preço de uma
felicidade real” (ROUSSEAL, 2015, p. 56)
2. O estado de natureza segundo Rousseau: o bom selvagem

No segundo discurso, Rousseau se propõe a investigar a origem das desigualdades entre


os homens e, para isso, afasta-se do turbulento ambiente urbano, começando a escrever a sua
nova obra, em forma de discurso, na floresta de Saint-Germain. O pensador genebrino adota
como ponto de partida a condição humana presente e, mediante um passo de volta à sociedade
que a produziu e, mais ainda, à forma como esta se originou, almeja chegar à compreensão
dos fundamentos das desigualdades e das hostilidades entre os homens. Para iniciar essa
investigação, ele concebe um momento hipotético em que os homens passaram da situação de
isolados (selvagens) para em sociedade (civis), ou seja, do estado de natureza para o estado de
domínio da razão. Nessa conjectura, o filósofo buscou argumentar persuasivamente aquilo
que afirmava, mas distanciando-se da construção de uma “linha histórica”, em favor de uma
anterioridade fundada naquilo que considerava o estágio originário do gênero humano. O que
pode chamar atenção em sua pesquisa acerca da “gênese humana” é que houve uma
autoanálise do próprio Rousseau, isto é, ele também buscou em sua subjetividade as
evidências de uma natureza primitiva.

Admito que, podendo os eventos que tenho a descrever, ter acontecido de


várias maneiras, não pude decidir-me sobre a escolha a não ser por
conjecturas. Mas, além de tais conjecturas tornarem-se razões quando são as
mais prováveis que se possam extrair da natureza das coisas e os únicos
meios que se possam ter para descobrir a verdade, as consequências que
quero deduzir das minhas não serão, por esse motivo, conjecturais, pois, com
base nos princípios que acabo de estabelecer, não se poderia formar nenhum
outro sistema que me fornecesse os mesmo resultados e do qual pudesse
extrair as mesmas conclusões (ROUSSEAU, 2015, p. 92).

Se o mais importante de todos os conhecimentos é aquele que nos permite uma sondagem
profunda do gênero humano, a filosofia deve voltar todos os seus esforços para bem percorrer
esse caminho. Tal empreendimento é imprescindível para o objetivo de nosso pensador, o que
o leva a pôr, logo no prefácio do seu segundo discurso, o questionamento com o qual inicia as
suas investigações: “como conhecer a fonte da desigualdade entre os homens, sem antes
começar por conhecer a eles próprios ?” (ROUSSEAU, 2015, p. 43). Para ele, a alma humana,
que houvera saído das mãos do Criador guiada por princípios retos e imutáveis, no decorrer
das mudanças sofridas com a fundação da sociedade civil, desfigurou-se devido ao contraste
entre as paixões desordenadas e o empoderamento desmedido da razão.

A primeira origem das desigualdades, de acordo com a exposição geral do pensador,


pressupõe que, primitivamente, todos os seres humanos eram iguais em tudo. Entretanto,
graças a mudanças e a eventos fortuitos, a constituição humana foi sofrendo alterações
irremediáveis; vale ressaltar que uns indivíduos se aprimoraram mais do que outros, tendo
estes permanecido mais tempo na condição primitiva do que aqueles, dando origem, assim,
aos primeiros traços de desigualdade.

O homem em seu estado de natureza possuía poucas paixões, bastando e amando a si


mesmo, somente detinha os sentimentos primitivos e conhecia as necessidades mais
originárias e verdadeiras3; sua inteligência não progredia além do que sua visão e experiência
alcançavam, não compartilhava as suas descobertas e nem reconhecia os próprios filhos. Diz-
nos Rousseau: “satisfeita a necessidade, os dois sexos não se reconheciam mais e até mesmo o
filho nada mais significava para a mãe, tão logo pudesse privar-se dela” (2015, p. 69). Enfim,
para o nosso filósofo, o homem primitivo não progredia, continuando a ser sempre como uma
criança. Segundo essa concepção, considerada absurda pelos intelectuais da época, inclusive
por Voltaire4, a natureza primitiva do homem era dominada pelas paixões - e não pela razão -
pois, deixada a seu livre movimento, ela (a natureza humana) leva ao triunfo dos sentimentos
e dos instintos.

Rousseau, gradativamente, distanciava-se da posição privilegiada que o entendimento


gozava entre os iluministas: apesar de todo o elogio à razão realizado por estes, defendia o
nosso filósofo que o entendimento deve muito às paixões e vice-versa. É por meio das paixões
que a razão se aprimora: “procuramos conhecer apenas porque desejamos gozar e não é
possível conceber o motivo pelo qual aquele desprovido de desejos ou de temores iria se dar
ao trabalho de raciocinar” (ROUSSEAL, 205, p. 70). Caso nos questionemos sobre a origem
das paixões, seguindo as considerações de Rousseau, não teríamos outra resposta a encontrar
senão que nascem todas das necessidades do homem, bem como progridem a partir dos
conhecimentos adquiridos, uma vez que só podemos desejar ou temer aquilo de que temos
alguma ideia ou, no caso do homem primitivo, a que nos impulsiona a natureza. Os desejos

3
“Sozinho, ocioso e sempre perto do perigo, o homem selvagem deve amar dormir e ter o sono leve, como
os animais que, por pensarem pouco, dormem, por assim dizer, o tempo todo em que não pensam. Sendo a
própria conservação o seu único cuidado, suas faculdades mais exercidas devem ser as que têm por objeto
principal o ataque e a defesa, seja para subjugar a presa, seja para evitar tornar-se a de outro animal”
(ROUSSEAU, 2015, p.67).
4
“Recebi, senhor, vosso novo livro contra o gênero humano, e vos agradeço por isso. Vós agradareis aos
homens, sobre quem fala vossas verdades, e não os emendará. Ninguém poderia pintar um quadro com cores
mais fortes dos horrores da sociedade humana, para os quais nossa ignorância e debilidade tem tanta esperança
de consolo. Ninguém jamais empregou tanta vivacidade em nos tornar novamente animais: pode-se querer andar
com quatro patas, quando lemos vossa obra” (Carta a Rousseau, VOLTAIRE). Disponível em:
http://www.consciencia.org/carta-a-rousseau-voltaire. Acesso em: 28/10/2020.
deste não excedem as suas necessidades físicas (alimento, fêmea e repouso) e os seus temores
são igualmente de caráter físico, a saber, a dor e a fome.

A arte de raciocinar não é absolutamente o mesmo que a razão:


frequentemente é o seu abuso. A razão é a faculdade de ordenar todas as
faculdades de nossa alma de forma adequada à natureza das coisas e a suas
relações conosco. O raciocínio é a arte de comparar as verdades conhecidas
para compor a partir delas outras verdades que ignorávamos e que essa arte
nos faz descobri. Mas ele não nos ensina de modo algum a conhecer as
verdades primitivas que servem de elementos às outras, e quando em seu
lugar colocamos nossas opiniões, nossas paixões, nossos preconceitos, longe
de nos esclarecer, ele nos torna cegos, não edifica a alma, mas exaspera e
corrompe o julgamento que deveria aperfeiçoar (Carta II, ROUSSEAU).

Enquanto Thomas Hobbes, para quem o homem no estado de natureza é mal e egoísta, ou,
em sua palavras, “Todos os homens no estado de natureza têm desejo (desire) e vontade (will)
de ferir” (HOBBES, 1991 apud BRONDANI, 2014, p. 7); Rousseau reconhecia uma bondade
e inocência originárias no gênero humano. Ambos são pensadores identificados com a
corrente contratualista do pensamento político, mas se posicionam nas extremidades dessa
corrente: o estado de natureza para Hobbes era caracterizado pela violência e a guerra de
todos contra todos, e o surgimento do Estado (absolutista) era decorrente de um pacto entre os
homens, os quais entregavam a sua liberdade e direitos naturais a um Soberano a fim de que
ele, pela força de lei, garantisse a ordem e a segurança, pondo fim ao estado de guerra;
Rousseau, assumindo uma postura totalmente contrária a Hobbes, vê na sociedade civil o
estado de guerra que este atribuíra ao estado de natureza, considerando o corpo social o fruto
de um pacto entre os ricos e os pobres, haja vista a propriedade privada ter desequilibrado e
corrompido a ordem natural, fazendo prevalecer uns sobre outros.

A vontade (will) de ferir deste homem [o vaidoso] nasce da vã glória, e da


falsa estima que ele tem de sua própria força; o do outro [daquele que ataca
por causa da igualdade], provém da necessidade de defender a si mesmo, sua
liberdade e seus bens, contra essa violência dos homens (HOBBES, 1991
apud BRONDANI, 2014, p. 8, acréscimo nosso).

E, ainda,

Se agora, para essa tendência natural dos homens a se ferirem uns aos outros,
que eles derivam de suas paixões, mas principalmente de uma vã estima de
si mesmos, somarmos, o direito de todos a tudo, por meio do qual alguém,
com direito, invade, e o outro, com direito, resiste, surgem então contínuos
zelos e suspeitas por todos os lados (HOBBES, 1991 apud BRONDANI,
2014, p. 9).

Rousseau critica o contratualista inglês por ter incluído incontáveis paixões a serem
satisfeitas no cuidado de autoconservação do estado de natureza. Para o genebrino, a
multiplicação e desordem das paixões se deu com a instituição da sociedade e,
consequentemente, exigiu a criação de leis a que todos obedecessem. Hobbes, adverte
Rousseau, “não viu que a mesma causa que impede os selvagens de utilizar-se de sua razão
[...] impede-os, ao mesmo tempo, de abusar de suas faculdades [...] de modo que se poderia
dizer que os selvagens não são maus, precisamente porque não sabem o que é ser bons “
(2015, p. 82).

Conforme o exposto acima, podemos afirmar que, para Rousseau, no estado de natureza,
diferentemente do que pensava Hobbes, o homem é amoral, não sabendo nem o que é bom
nem o que é mal, mas agindo, sobretudo, pelos impulsos naturais, que o levam a garantir a sua
autoconservação, um dos princípios presentes na alma desde os inícios, o que em nada
prejudica a conservação de outrem. Além disso, um outro princípio, também não levado em
consideração pelo filósofo inglês, é a piedade face ao sofrimento de um semelhante, que
suaviza, em certas ocasiões, o desejo de autoconservação, moderando, dessa forma, os
esforços por garantir o seu bem-estar. Logo, esse estado não é de guerra de todos contra todos,
mas de paz.

3. A piedade e o amor de si, como princípios inatos, e a perfectibilidade, qualidade


específica dos homens

Se falamos em estado de natureza, somos levados a defender a existência dos direitos


naturais, fundados sobre a piedade (única virtude inata) e o amor de si (autoconservação).
Diante do sofrimento de um semelhante, afirma o nosso filósofo, o homem primitivo, movido
pela piedade, identificava-se com aquele que estava acometido por alguma dor. Nessas
condições, éramos indiferentes, ou melhor, desconhecíamos a distinção entre o bem e o mal.
Logo, se éramos bons, isso se devia, não à intenção da ação praticada, mas à pureza de nosso
estado, ainda livre das ambições e das inclinações más, que adviriam com a instituição da
sociedade civil.

Abandonando, portanto, todos os livros científicos que nos ensinam apenas a


ver os homens tais como fizeram a si mesmo, e meditando sobre as primeiras
e mais simples operações da alma humana, creio perceber nela dois
princípios anteriores à razão, dos quais um nos interessa fortemente para o
nosso bem-estar e para a nossa própria conservação [o amor de si] e o outro
nos inspira uma repugnância natural em vermos perecer ou sofrer qualquer
ser sensível e, principalmente, nossos semelhantes [piedade ou comiseração].
É do concurso e da combinação que nosso espírito é capaz de promover
desses dois princípios, sem que seja necessário introduzir a sociabilidade,
que decorrem, ao que me parece, todas as regras do direito natural.
[...] e, enquanto não resistir ao impulso interior da comiseração, jamais fará
mal a outro homem, ou mesmo a um ser sensível, exceção feita ao caso
legítimo em que se vê obrigado, no interesse de sua conservação, a dar
preferência a si próprio [...] julgar-se-á que também devem [os animais]
participarem do direito natural e que o homem se submete, para com eles, a
deveres de alguma espécie. Parece, com efeito, que, se sou obrigado a não
fazer mal algum ao meu semelhante, é menos por constituir um ser razoável
do que por constituir um ser sensível [qualidade comum entre o homem e o
animal] (ROUSSEAU, 2015, p. 47-48, acréscimo nosso).

O pensador genebrino afirma que, como todos os animais possuem sentidos,


consequentemente, possuem ideias e até mesmo lhes é possível combiná-las, diferindo dos
homens apenas em grau e complexidade. Com esse argumento, nosso filósofo almeja
defender que “não é tanto o entendimento que constitui, entre os animais, a distinção
específica do homem, mas a sua capacidade de agente livre” (ROUSSEAU, 2015, p. 68).
Dessa forma, dada a animalidade da fundamental disposição humana, a qualidade específica
que nos diferenciava dos outros animais, não era a razão (como acima expusemos), mas a
perfectibilidade, pois, embora isolados, poderíamos descobrir, via experiência, por exemplo,
novas formas de alimentação.

A faculdade de aperfeiçoamento é a que torna possível ao homem o desenvolvimento de


todas as suas outras capacidades. Outrossim, é a perfectibilidade que nos possibilita dar uma
explicação acerca da aquisição das qualidades e dos defeitos no decorrer dos séculos.
Contrariamente, um animal, ao longo de uns meses. assume as características que portará e
com as quais será identificado por toda a vida; por extensão, também uma espécie, ao fim de
mil anos, continua sendo aquilo que foi desde o início.

Dito isso, podemos entender o que Rousseau quer dizer quando afirma, no Ensaio sobre a
origem das línguas, que foram as paixões e as necessidades morais que fizeram surgir as
primeiras formas de comunicação (gestos e vozes). As línguas se originaram do amor, do
ódio, da piedade, da cólera, ou seja, das paixões, as quais aproximam os homens. No decorrer
do processo histórico é que a linguagem antiga dos primeiros homens, que Rousseau situa
entre as línguas orientais, foi sendo transformada no que ele chama de “línguas de
geômetras”, isto é, de poéticas, apaixonadas e cantáveis passaram a ser simples e melódicas,
medidas e calcadas. Em seu segundo discurso, ainda na primeira parte, nosso filósofo afirma
que a forma primitiva de linguagem, aquela de que teve necessidade o homem selvagem,
emergiu como “um grito de natureza”, ou seja, surgiu da combinação entre as necessidades
originárias (por exemplo, as situações de perigo e o alívio das dores) e a reposta dos instintos.
Quando, por eventos fortuitos, as ideias dos homens passaram a multiplicar-se e a
estender-se, estreitando-se a comunicação entre eles, começaram a procurar sinais mais
numerosos e uma linguagem que pudesse corresponder a essa nova amplidão de ideias. Os
sons mais primitivos, os gemidos e as variações da voz, juntaram-se aos gestos para serem
mais expressivos. Nesse período, cada objeto recebia um nome particular, não eram
conhecidas as espécies, os gêneros e as classes; em geral, as coisas eram julgadas em seu
primeiro aspecto. Vale ressaltar que o nosso filósofo reconhece a grande dificuldade que há
em empreender esforços para explicar o surgimento da primeira forma de linguagem entre os
seres humanos. No entanto, apesar dessas dificuldades, podemos concluir que, a natureza, ela
mesma, em muito pouco dispôs os homens a constituírem a sociabilidade. Diz-nos Rousseau:

Quanto a mim, assustado com as dificuldades que se multiplicam e


convencido da impossibilidade quase demonstrada de que as línguas tenham
podido nascer e estabelecer-se por meios puramente humanos, deixo a quem
desejar empreendê-la, a discussão desse difícil problema: entre a sociedade
já formada quando da instituição das línguas e as línguas já inventadas
quando do estabelecimento da sociedade, o que foi mais necessário?
Sejam quais forem essas origens, vê-se, ao menos, pelo pouco cuidado que
teve a natureza em aproximar os homens por meio de necessidades mútuas e
em facilitar-lhes o uso da palavra, o quão pouco ela preparou a sua
sociabilidade e o quão pouco colocou de si mesma em tudo o que fizeram
para estabelecer-lhes os laços (2015, p.79-80).

4. A passagem do estado de natureza para o estado social

Ao iniciar a segunda parte de seu discurso sobre a desigualdade, Rousseau afirma de


forma categórica: “O primeiro que, após cercar um terreno, atreveu-se a dizer isto é meu
encontrou pessoas tão simples o suficiente para crê-lo e foi o verdadeiro fundador da
sociedade civil [...] essa ideia de propriedade [...] não se formou de repente no espírito
humano” (ROUSSEAU, 2015, p. 95). Ou seja, foi graças a muitos progressos e diversos
eventos ocorridos por acaso, após a aquisição de uma variedade de novos conhecimentos, que
o estado de natureza despencou e encontrou o seu termo. Com o passar do tempo, as
experiências foram manifestando a cada homem que o cuidado com o bem-estar é o único e
verdadeiro motivo das ações humanas. Dessa forma, os primitivos e isolados selvagens
passaram a discernir quais as situações, por mais passageiras que fossem, em que a associação
livre beneficiava um interesse comum, bem como quais eram as ocasiões em que a
concorrência os levava a desconfiar dos seus semelhantes. No entanto, adverte o filósofo:

Eis como puderam os homens adquirir insensivelmente alguma ideia


grosseira das obrigações mútuas e das vantagens em cumpri-las, mas
somente tanto quanto podia exigir o interesse presente e sensível, pois a
previdência nada era para eles e, longe de ocupar-se de um futuro distante,
sequer pensavam no dia seguinte (ROUSSEAU, 2015, p. 98 destaque
nosso).

Esses foram os primeiros “avanços” que possibilitaram ao homem ampliar os seus


aprimoramentos com maior celeridade. A primeira revolução consistiu na construção de
moradias e no agrupamento de famílias. Se por um lado, o estabelecimento dessas primeiras
habitações, já um primeiro e importante passo em direção à propriedade privada, provocou
querelas; por outro, tais conflitos não foram tão intensos quanto os que viriam ulteriormente,
pois era mais seguro para os fracos imitar os mais fortes, que foram os primeiros a construir
para si moradias, do que tentar tomá-las e expor-se contra aquela família.

A partir dessa primeira convivência entre um homem, uma mulher e o filho, iniciando a
tradição patriarcal em uma sociedade nascente, surgiu o amor paterno e conjugal. Dessa
pequena sociedade, como denomina Rousseau, “se estabeleceu a primeira diferença no modo
de viver dos dois sexos, que até então só conheciam um. As mulheres se tornaram mais
sedentárias e se acostumaram a guardar a cabana e os filhos, enquanto o homem ia procurar a
subsistência comum” (2015, p. 100). Esse novo estilo de vida, ocasionou também o
surgimento de comodidades, sendo este o primeiro mal que, sem saberem, causavam a si
mesmos e a sua posteridade, pois, ao perderem-nas, tornavam-se infelizes e, ainda as
possuindo, não se sentiam suficientemente felizes.

Com o passar dos séculos, os homens, por terem se fixado, começaram uma lenta e
gradual aproximação, reunindo-se em bandos cada vez maiores, compartilhando costumes, e
formando, por fim, as primeiras e particulares nações. É inegável que a descrição de Rousseau
é temperada por alguma medida de dramaticidade: ele é capaz de “fazer-nos ver” os primeiros
encontros entre a famílias, o surgimento de um sentimento terno, que já carrega consigo o
germe da violência e da traição; os elementos morais do amor também despontam e “podemos
ver” que também o ciúme e o sentimento de posse passam a rondar os amantes; os homens
passaram a estimar e a desejar expor suas qualidades para serem louvados, assim, instalou-se
a desigualdade entre o mais estimado, belo, habilidoso, eloquente e os pouco providos dessas
qualidades. Enfim, segundo o nosso filósofo, a doçura das paixões é salpicada de sangue
humano derramado violentamente. Todas essas mudanças vieram acompanhadas dos vícios,
tais como a soberba, a vaidade, o desprezo e outras paixões atiçadas pelo fogo das vantagens e
privilégios. Os progressos posteriores, embora para muitos aparentem um aperfeiçoamento do
homem, na verdade, conduzi-o à decadência.
Começando a moralidade a introduzir-se nas ações humanas e sendo cada
um, diante das leis, juiz e vingador único das ofensas recebidas, a bondade
conveniente ao estado puro de natureza não era mais a que convinha à
sociedade nascente. Era necessário que as punições se tornassem mais
severas à medida que as ocasiões de ofender se tornavam mais frequentes e
cabia ao terror das vinganças fazer as vezes de freio das leis [...] esse período
de desenvolvimento das faculdades humanas, mantendo um justo meio entre
a indolência do estado primitivo e a atividade petulante do nosso amor-
próprio, deve ter sido a época mais feliz e duradoura [...] a verdadeira
juventude do mundo (ROUSSEAU, 2015, p. 103-104).

5. A descoberta da divisão do trabalho, da agricultura e da metalurgia

A queda mais brusca veio por meio de eventos movidos ao acaso, foram descobertas a
divisão do trabalho, a agricultura e a metalurgia. A produção tornou-se obstinada e a
necessidade cedeu o seu posto ao supérfluo, ocasionando conflitos entre os homens, que
buscavam possuir em abundância. A partir desse momento, um estado de guerra surgiu e, em
sequência, a necessidade de alguma ordem que garantisse a segurança. Ora, com o surgimento
da agricultura e de outras artes que possibilitaram o desenvolvimento daquela, juntamente
com o aperfeiçoamento do trabalho com os metais, o cultivo da terra se expandiu e,
consequentemente, a sua necessária partilha.

A constituição das primeiras propriedades fez surgir a necessidade de leis que pudessem
pôr ordem na nova dinâmica social, garantir segurança e punir os invasores. Foi o trabalho de
cultivar a terra, com os novos conhecimentos trazidos pelas descobertas acima referidas, que
deu ao homem-agricultor o direito sobre os produtos de seu trabalho e sobre o solo, ao menos
durante o período da colheita. Como o cultivo e a colheita se repetiam ano após ano, então,
aquele que detinha a posse sobre os produtos e sobre a terra durante a colheita passou a ter o
direito contínuo de propriedade sobre o solo que cultivava.

A sociedade civil foi instituída com a fundação da propriedade privada, e é justamente


essa fundação que é a origem das desigualdades entre os homens. O que Rousseau está
afirmando em seu Discurso é que, no estado de natureza, tudo era de todos. Contudo, a
invenção da metalurgia e da agricultura levaram os homens à divisão das terras e à criação de
leis para o respeito aos limites de cada propriedade. O proprietário, ao sentir que precisava da
ajuda de outros para cultivar a terra e ao perceber que ter provisões em abundância era
favorável à sobrevivência e ao seu bem-estar, instituiu servos e um salário para o trabalho,
assim, a igualdade desapareceu e as propriedades se tornaram a causa da hostilidade entre os
homens.
Com o trabalho, cada homem passou a medir forças com o outro e a encontrar diferenças
entre eles, ocasionando o desenvolvimento da razão, que até então existia em virtualidade. A
partir desse momento, os homens abandonaram a amoralidade natural, passando a ser sujeitos
morais e históricos; amante de si (autoconservação), passou ao amor-próprio, preferindo a si
mesmo em detrimento de todos, consequentemente, surgiu o ódio em seu coração para com os
outros e o descontentamento consigo mesmo, fonte dos vícios. Eis o despontar dos males.

eis as funestas evidências de que nossos males são, na sua maioria, obra
nossa e de que teríamos evitado quase todos caso tivéssemos conservado a
maneira simples, uniforme e solitária de viver, que nos era prescrita pela
natureza. Se ela nos destinou a sermos sãos, ouso quase assegurar que o
estado de reflexão é um estado contrário à natureza e que o homem que
medita é um animal depravado [...] Evitemos, portanto, confundir o homem
selvagem com os homens que temos diante dos olhos (ROUSSEAU, 2015,
p. 64.65).

Podemos, agora, compreender a resposta de Rousseau à questão proposta pela Academia


de Dijon. Segundo o nosso filósofo, a desigualdade entre os homens pode ser de dois tipos:
natural ou física, que diz respeito às diferenças de idade, saúde, qualidades corporais e
espirituais entre outras; e a que ele denomina de desigualdade moral ou política, uma vez que
requer um pacto entre os homens, ou seja, “diferentes privilégios que alguns gozam em
prejuízo dos outros, tais como ser mais ricos, mais honrados, mais poderosos do que estes, ou
mesmo o de fazerem-se obedecer por eles” (ROUSSEAL, 2015, p. 55).

As desigualdades emergiram da desproporção com que os trabalhos eram realizados, das


vantagens que os mais fortes tinham em relação aos menos dotados de força ou sagacidade;
em geral, enquanto uns sofriam muito para sobreviver, outros gozavam de uma maior
tranquilidade e abundância. As consequência dessa nova conjuntura logo se expressaram na
dependência ou mesmo escravidão, até mesmo por parte do senhor das terras, pois, sem os
servos, nada ele poderia produzir em sua propriedade. A relação entre os homens passou a ser
vista sob a óptica da relação proprietário-servos, na qual aquele é levado, por necessidade, a
convencer estes a trabalharem em sua propriedade. Seja pela persuasão, seja pelo temor ou
outra estratégia, o proprietário se liga aos seus servos por necessitar dos esforços empregados
para os fins que lhe beneficiem.

Podemos perceber que a ambição passa a permear as relações entre os homens, e a busca
por fortuna a ditar os comportamentos de uns para com os outros; a superioridade é a
qualidade de quem tem mais e, por isso, é o mais forte, usando de todos os meios para
permanecer nessa posição, mesmo que seja preciso prejudicar os seus semelhantes. Explica-
nos Rousseau: “dessa forma, veem-se concorrência e rivalidade, de um lado, oposição de
interesses, de outro, e sempre, o desejo oculto de tirar proveito à custa de outrem; todos esses
males são o primeiro efeito da propriedade e o cortejo inseparável da desigualdade nascente”
(2015, p.109).

Mais uma vez, chamamos atenção para o caráter romântico e dramático da narrativa
interpretativa de nosso filósofo. Após discorrer sobre a fundação da propriedade privada, bem
como do direito do mais forte, ele afirma que um estado persistente de guerra se instalou entre
os homens, acirrando as lutas e provocando eventos violentos que se tornaram constituintes
predominantes da história humana. Segundo Rousseau,

a sociedade nascente deu lugar ao mais horrível estado de guerra; o gênero


humano, aviltado e desolado, não podendo mais voltar atrás, nem renunciar
às aquisições infelizes que havia feito, e trabalhando apenas para a sua
vergonha, abusando das faculdades que o honraram, colocou a si próprio
próximo de sua ruína (2015, 110).

6. O surgimento da primeira entidade política

O nosso pensador, ao descrever o estado de violência e de desconfiança que rondava a


sociedade, permite que os seus leitores formem uma imagem de como se dava a relação entre
os ricos ambiciosos e os pobres revoltosos. Aquele estado de guerra que outrora Hobbes havia
atribuído ao homem primitivo, um pensador do quilate pessimista e romântico como era
Rousseau quer que creiam os seus leitores pertencer ao homem social. Os ricos, imersos como
estavam em um ambiente de risco constante a sua propriedade, conceberam um projeto
astucioso capaz de redirecionar as forças daqueles que os atacavam em favor de seus próprios
interesses, fazendo dos adversários os seus defensores. Movidos pelo medo de perder as suas
riquezas, os que antes só se preocupavam com as suas próprias ambições, uniram-se sob o
pretexto falacioso de garantir a segurança dos fracos e de assegurar a cada um a sua posse.
Dessa união entre os ricos, do redirecionamento de suas forças, que antes estavam
desconfiadamente voltadas umas contra as outras, surgiu um poder supremo, cujo principal
objetivo era o de reprimir os inimigos comuns e oferecer proteção a todos.

Dessa maneira, surgiu o pacto: aquele dentre os mais ricos, visando à consolidação de
suas riquezas, determinou a sua autoridade por sobre toda a multidão dos pobres e
enfraquecidos, que concordaram em obedecer a suas disposições desde que lhes garantisse a
segurança. O direito de propriedade, especialmente dos mais abastados, foi institucionalizado,
contrariando o direito natural de igualdade, e as desigualdades passaram a ser um “lugar
comum” para a nova condição humana; a autoridade surgiu em decorrência de uma
convenção, e esta, da necessidade de alguma instância política que diminuísse os efeitos do
estado de guerra, surgido com o fim do isolamento e o começo da sociabilidade e da
propriedade privada. As vantagens do estabelecimento de uma entidade política, de um
Estado, apresentaram-se entranhadas de abusos e de perversões. Fazia-se necessário sacrificar,
em certa medida, a liberdade para conservar o bem-estar e os direitos de propriedade.

O quadro que acabamos de pintar, mesmo sob o olhar do mais desatento observador,
apresenta com clareza as seguintes cores: os mais fracos foram manipulados e ainda mais
subjugados pela vontade dos mais fortes, os quais conquistaram ainda mais o poder; a
liberdade natural, que já há tempos vinha sendo minada, recebeu o golpe final; a propriedade
passou a ser a guarda das desigualdades; e, em proveito de alguns usurpadores e ambiciosos,
muitos foram convertidos em escravos e miseráveis, tendo de trabalhar muito e receber pouco
ou nada.

Na verdade, em sociedade, seja rico ou pobre, todos são escravos uns dos outros, pois
perderam a mais primitiva independência, gozada no estado de natureza. O homem selvagem
não suportaria uma submissão como a presente nas sociedades, nem tampouco se
banquetearia com tranquilidade, estando na dependência de outrem. Nas palavras do próprio
Rousseau: “vejo multidões de selvagens inteiramente nus desprezarem as volúpias europeias e
desafiar a fome, o fogo, o ferro e a morte, apenas para conservar a sua independência,
percebo que não cabe a escravos raciocinar sobre a liberdade” (2015, p. 117 destaque
nosso).

No que tange às diversas formas de governo, o nosso filósofo também apresenta uma
interpretação: os diferentes graus de desigualdade em cada sociedade as originaram. No
momento em que foram instituídas, as sociedades apresentavam diferenças mais ou menos
profundas entre os seus particulares. Dessa forma, se um homem se destacava pela sua
riqueza e poder no momento em que uma comunidade estava sendo formada, então, somente
ele era eleito como magistrado, ou seja, o Estado constituído era uma Monarquia. No entanto,
se as desigualdades eram menos profundas a ponto de, no período fundacional do corpo
social, muitos homens, mais ou menos nas mesmas condições de riqueza e prestígio,
prevaleciam sobre os demais, então, eram eleitos juntos e formavam uma aristocracia. Ou
mesmo, se a fortuna e os privilégios entre os homens eram menos desproporcionais, tendo
eles se afastado o menos possível do estado de natureza, então, formava-se uma democracia.
Explicitamente, Rousseau não indica qual a melhor forma de governo, embora pareça pender
para essa última (democracia), no entanto, atribui ao tempo o poder de revelar quais governos
se sobressairiam sobre os outros.

Mais uma vez, realçamos a narrativa melancólica, mas provida de beleza e refinamento
intelectual, que o escrito desse discurso compõe e faz-nos vislumbrar. À medida que surgiram
as propriedades, as leis e as sociedades, o estado de natureza decaia de tal maneira que se nos
fosse possível justapor um homem em estado de natureza e um cosmopolita, muito
possivelmente, diríamos que cada um deles pertencia a uma espécie diferente. Dessas
mudanças tão profundas nos homens e nas relações entre si, nasceram as guerras, os
homicídios, a sede de vingança em níveis tão maléficos que chocam a razão. Acerca dessa
imagem do homem “civilizado” podemos encontrar, ainda na primeira parte do Discurso
sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, ao contra-argumentar
Hobbes, uma contundente afirmação de Rousseau, que entra em verdadeiro confronto com as
concepções iluministas da época:

É a razão que gera o amor-próprio e é a reflexão que o fortalece; é ela que


faz o homem voltar-se sobre si mesmo; é ela que o separa de tudo o que o
incomoda e o aflige. É a filosofia que o isola; é por força dela que ele diz em
segredo, à vista de um homem que sofre: “Morre, se quiseres; estou em
segurança”. Somente os perigos da sociedade inteira ainda perturbam o sono
tranquilo do filósofo e o arrancam de seu leito. É possível degolar
impunemente seu semelhante sob a sua janela, bastando-lhe colocar as mãos
sobre as orelhas e argumentar um pouco, para impedir que a natureza, que se
revolta nele, identifique-o com aquele que se assassina. O homem selvagem
não possui esse admirável talento e, na ausência da sabedoria e da razão, é
sempre visto abandonando-se irrefletidamente ao primeiro sentimento de
humanidade (2015, p. 85).

O que leva os cidadãos a se subordinarem aos magistrados ou ao tirano, quais vantagens


poderiam eles tirar disso? Por que não se revoltam? Essas são as inquietações que podem
surgir ao longo da leitura desse discurso. Entretanto, o próprio pensador adverte-nos que os
cidadãos se submetem ao corpo político por serem arrastados pela ambição, não mais
conseguindo conceber uma independência sem que percam as comodidades ou as ilusões que
a sociedade lhes proporciona. As desigualdades de tal modo penetraram no gênero humano
que não há mais como dois homens se encontrarem e não procurarem um no outro alguma
coisa com a qual possam triunfar um sobre o outro. A ânsia por riquezas, reputação e honras
leva-nos a conceber todos os homens como competidores a ponto de se devorarem. Esse
comportamento de a todo momento ter de distinguir-se, segundo Rousseau, cega-nos e
mantêm-nos fora de nós mesmos, e é a ele que devemos nossas virtudes e nossos vícios, o que
há de melhor e de pior entre nós, homens civilizados.

Se vemos um punhado de poderosos e de ricos no fastígio das grandezas e da


fortuna, enquanto a multidão se arrasta na escuridão e na miséria, é porque
os primeiros só prezam as coisas que gozam por estarem os outros privados
delas e que, sem mudar de estado, deixariam de ser felizes, caso o povo
deixasse de ser miserável (ROUSSEAU, 2015, p. 126).

O cenário narrado por Rousseau conduz os leitores até o último estágio da desigualdade,
no qual a cega obediência torna-se a única virtude que ainda resta nos cidadãos, ou melhor,
nos homens tornados escravos pelo corpo social. Nesse estágio, “o ponto extremo que fecha o
círculo e toca no ponto de que partimos; é aqui que todos os particulares voltam a ser iguais,
pois não são nada [...] as noções do bem e os princípios de justiça novamente se esvaecem”
(Rousseau, 2015, p. 128). Toda a realidade é reduzida à lei do mais forte, o centro de rotação
da vida social é a vontade do senhor, os seus interesses.

7. Considerações finais

O abismo que separa o estado de natureza e o estado social reside nas relações do homem
consigo mesmo e com os circunvizinhos. O selvagem vive em si mesmo, desejando apenas
repouso e liberdade, além de desprezar todo objeto que esteja fora de suas verdadeiras
necessidades; o homem sociável, por outro lado, vive sempre fora de si, vive segundo as
expectativas de outrem, mede-se conforme as opiniões, e dos julgamentos alheios extrai o
sentido de sua existência.

Dessa forma, estabelece-se um novo estado de natureza, o qual é o reverso da primitiva


condição do gênero humano, pois este era fundado sobre a pureza, enquanto aquele sobre o
excesso de corrupção. Mais uma vez, se pudéssemos justapor o homem primitivo e o homem
policiado, veríamos que eles difeririam tão profundamente um do outro que a possibilidade de
felicidade de um poderia ser a frustração do outro.

Portanto, a crítica de Rousseau às futilidades e ao modo de vida da França do século


XVIII é aguda e precisa. Segundo o pensador, na sociedade, não importa “o que eu sou”, mas,
sim, “o que pareço ser”, ou seja, a aparência e a simulação dominam os meios sociais; as
virtudes foram convertidas em conveniências e os vícios só são recriminados quando ocorrem
publicamente. Em outras palavras, o homem sociável não é residente em si mesmo, mas tão
somente perambula pelas vielas das formalidades sociais, alimenta um sistema que, na
verdade, devora-o, não vive senão amarrado aos mais arrebatadores vícios e paixões
desordenadas, que não servem às suas necessidades, mas às futilidades que sustentam o seu
estilo de vida. Certamente, afirma o nosso pensador, essas condições não formam o estado
mais natural da vida humana, pelo contrário, corrompem-na. Aquilo que chamamos de
progresso, na verdade, nada mais é do que um cerceamento do que há de mais próprio no
homem.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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