UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA – CURSO DE FILOSOFIA
Professor: Arlei de Espíndola
Aluno: Vinícius de Souza Nacamura
TEXTO PARA A DISCIPLINA DE NÚCLEO TEÓRICO-PRÁTICO DE ÉTICA
O IDEAL HUMANO NA RELAÇÃO ROUSSEAU E CASSIRER
A relação que pretendo estabelecer entre Ernst Cassirer e Jean-Jacques Rousseau é
sobre a visão que ambos possuem de construção do próprio homem. Ambos são expoentes e herdeiros do Iluminismo, com todas as ressalvas e críticas possíveis ao movimento, porém com uma influência fundamental deste para o desenvolvimento de ambos os pensadores. Enquanto Rousseau possui uma ampla obra versando sobre ética, política e educação, carregados com a argúcia literária do autor para construir seus conceitos, Cassirer na contramão possui uma linguagem mais amena, clara e sistemática, que se preocupa principalmente com questões epistemológicas que depois desembocam em sua filosofia da cultura.
Em seu ensaio “A Questão Jean-Jacques Rousseau”, Cassirer pretende interpretar
Rousseau à luz de uma unidade sistemática que permearia toda a sua obra, baseando-se numa passagem do próprio nas suas Confissões. O filósofo alemão interpreta que entre os Discursos iniciais e O Contrato Social, não existe um elemento contraditório entre individualismo e coletivismo, mas um desenvolvimento do pensamento de Rousseau que leva em conta os dois aspectos em conjunto. No Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens, há uma clara condenação dos vícios que atingiram o homem em seu estado de natureza, visto que neste o homem era dotado de uma certa pureza sentimental e era regido apenas pelo princípio de conservação (amor de si) e piedade (amor pelo outro). Portanto, Rousseau critica como o desenvolvimento da sociedade acabou por corromper o homem, minando suas virtudes e recaindo nas mundanidades características da multidão, por isto seria tão difícil conceber o estado natural do homem, posto que este está muito distante para concebermos com total clareza.
Ao descortinarmos um pouco o pensamento de Rousseau, alguns interpretam no
Discurso sobre a Desigualdade um apelo ao indivíduo, que nega o Estado por este ser a principal causa de sua corrupção, do controle de seu pensamento. Tal concepção entraria em contradição com o preconizado no Contrato Social, onde a vontade geral é soberana e deve ser respeitada por todos na medida que é uma lei aceita por todos sem restrição. Enquanto alguns veem nestas afirmações um pretexto para julgar Rousseau como totalitário, Cassirer vai dar outra conotação a esses aspectos, dizendo que a mudança do indivíduo e o melhoramento para a sua dignidade moral depende de uma mudança radical da organização política, reivindicando um imbricamento entre construção do Estado e do homem moral.
Tendo isso em vista, devemos vislumbrar a filosofia de Cassirer e estabelecer um
paralelo da visão de ambos do ser humano enquanto um animal construtivo, que pode ser moldável para a própria bem-aventurança. Sua filosofia é representativa pelos desenvolvimentos no campo da epistemologia, da filosofia da ciência, e outros elementos para construir a sua filosofia da cultura. Em sua obra “Ensaio sobre o Homem”, o ser humano é definido de acordo com o seu valor funcional, ou seja, por aquilo que produz enquanto animal que objetiva o mundo de formas distintas. Nesse sentido, Cassirer diz que a compreensão aristotélica do homem enquanto animal racional abarca apenas uma das facetas do ser humano, não o tomando em toda sua amplitude compreensiva.
A atitude filosófica de Cassirer nos leva a uma compreensão do homem enquanto
formador e construtor de si mesmo, na medida em que a sua espontaneidade simbólica dá origem a diferentes “estratos” do mundo, que alçam a universalidade e irredutibilidade de cada área específica. Desse modo, há um desenvolvimento progressivo daquilo que Cassirer chama de formas simbólicas, que são as diferentes “enformações” expressas nos campos da linguagem, do mito, da arte, da ciência, da história, etc. Portanto, o filósofo alemão concebe o ser humano não a partir de uma essência metafísica, mas pela sua capacidade produtiva, por aquilo que ele realiza de propriamente humano. Posto que todas as nossas relações com o mundo são mediadas simbolicamente, nós damos aos dados sensíveis determinados estratos de ser, então o humano sempre será responsável por seu próprio destino porque ele é o seu criador.
Essas considerações sobre a filosofia antropológica de Cassirer associada com sua
obra sistemática abre um panorama de comparação com a visão que Rousseau tinha do homem. A possibilidade de uma total transfiguração do modo como as sociedades civis se organizam, visando sempre a garantia da dignidade do homem perante uma lei que é aceita por todos, expressa na vontade geral, é uma forma que Rousseau encontra para dizer que podemos dar à volta à corrupção resultado das influências da sociedade civil, de sua profunda desigualdade e injustiça. Nesse sentido, não podemos simplesmente fazer o caminho de volta até o estado de natureza, onde residiria o selvagem com todas as suas potências, sentimentos e paixões puramente preservadas. Devemos contornar essa situação do homem a partir de uma mudança na própria forma como nos organizamos politicamente, na compreensão de que a coletividade forma o indivíduo da mesma forma que este deve ter sua dignidade moral e jurídica preservada. Nesta espécie de antropologia da transmutação, da dialética entre diferentes forças que resultam na múltipla riqueza do ser humano enquanto animal criador, e enquanto ser criador de cultura e de toda forma de objetivação (Cassirer), também pode repensar o âmbito político para a elevação deste próprio homem, longe das injustiças cometidas pelos grupos dominantes e pelo Estado, mas em que cada pessoa seria contemplada e universalmente garantida em seus direitos (Rousseau).
Em suma, a relação estabelecida fornece algumas indicações antropológicas de ambos
os autores, de modo que compreende o homem como criador de toda significação do mundo, portanto, também das organizações políticas. Desse modo, podemos reformular as nossas instituições visando um ganho para toda a sociedade civil, a capacidade simbólica originária do homem dá espaço e fundamentação para uma outra visão de mundo, que repense o contexto e a realidade, fundamentando formas diversas de organização política sempre nessa busca da realização do ser humano.
Bibliografia
CASSIRER, E. Antropologia Filosófica, Ensaio sobre o homem: Introdução a uma filosofia
da cultura humana. 2. ed. São Paulo: Mestre Jou, 1977. CASSIRER, E. A Questão Jean-Jacques Rousseau. São Paulo: UNESP, 1999. CASSIRER, E. A Filosofia das Formas Simbólicas I - A Linguagem. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. ROUSSEAU, J.-J. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desilgualdade entre os homens. São Paulo: Nova Cultural, 1999. ROUSSEAU, J.-J. Do contrato social. São Paulo: Nova Cultural, 1999.