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SEROPÉDICA
2018
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SEROPÉDICA
2018
3
RESUMO
ABSTRACT
With the objective of analyzing the Discourse on the Origin of Inequality and the Social
Contract, I propose to explain in these works of Jean-Jacques Rousseau the concepts of
freedom and equality, treating these concepts according to their theory of the state of
nature, their philosophy of history and the progress of civilization and their republican
ideal of a society based on popular sovereignty. I will try to see whether Rousseau
contradicts his principles, both works being dissimilar to ends, or whether they
complement each other.
Keywords: jusnaturalism; social contract; human nature; freedom; equality.
5
SUMÁRIO
1. Introdução.........................................................................................................................6
2. O homem no estado de natureza.......................................................................................8
2.1. Liberdade e bondade....................................................................................................10
2.2. Igualdade e falsas doutrinas do direito natural.............................................................12
3. Surgimento e progresso da desigualdade........................................................................15
3.1. Primeira fase: hordas anárquicas sem permanência.....................................................16
3.2. Segunda fase: sociedade patriarcal..............................................................................16
3.3. Terceira fase: economia de produção, surgimento da agricultura e da metalurgia......17
3.4. Quarta fase: o contrato social como fundamento da sociedade civil...........................19
4. O modelo republicano da vontade soberana orientada ao bem comum..........................21
4.1. Liberdade e igualdade derivadas do pacto social.........................................................23
4.2. Soberania e vontade geral............................................................................................25
Conclusão............................................................................................................................27
BIBLIOGRAFIA................................................................................................................29
6
1. Introdução
1
Também mencionado como Segundo Discurso.
8
2
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens;
tradução de Maria Ermantina Galvão; cronologia e introdução de Jacques Roger. – 2ª ed. – São Paulo: Martin
Fontes, 1999, p. 25.
3
WOKLER, Robert. Rousseau; tradução de Denise Bottman. Porto Alegre, RS: L&PM, 2012, p. 35.
4
Não se deve levar ao pé da letra a ideia de “retorno à natureza” presente em seu projeto político-pedagógico.
9
tendo a condição humana atravessada tantos processos, como pode Rousseau elaborar um
discurso sobre a origem da humanidade e separar o homem natural do homem artificial?
Deve-se, portanto, “ignorar os fatos”, pois eles tratam do homem enquanto ser
situado na história, portanto são apenas “fatos históricos” e não condizentes com aquilo que é
propriamente o homem em seu estado originário. Todos os projetos filosóficos anteriores ao
seu Segundo Discurso teriam errado exatamente em confundir o factual com o essencial. O
fato é apenas um momento da aparência que obscurece o verdadeiro arquétipo da estátua de
Glauco, que só pode ser desvelada pelo esforço filosófico. O homem natural, afastado de todo
artifício da sociedade, é uma hipótese necessária que só pode ser formulada pelo pensamento
e deve rejeitar qualquer tentativa de fundamentação empírica. Se Rousseau usa em seu texto
os relatos de viajantes e antropólogos, o faz apenas como complemento, possíveis ilustrações
do quão próximo estão os indígenas do estado natural em comparação ao europeu, mero
acessório teórico. Diz Cassirer que o meio pelo qual o filósofo chega a esse conhecimento é
através da “fonte do autoconhecimento e da auto-reflexão. [...] Cada um traz em si o
verdadeiro arquétipo, mas sem dúvida quase ninguém conseguiu descobri-lo sob o seu
invólucro artificial [...] e trazê-lo à luz”.5
5
CASSIRER, Ernst. A questão Jean-Jacques Rousseau; tradução de Erlon José Paschoal, Jézio Gutierre; revisão
da tradução por Isabel Maria Loureiro. São Paulo: Editora UNESP, 1999, p. 51.
10
É pela distinção entre vontade e instinto que consiste a diferença entre os homens e
os animais, apesar de o homem em estado de natureza não perceber ainda essa diferença. O
instinto é o resultado das funções fisiológicas, que regem toda vida animal através do
impulso,7 enquanto a vontade resulta de uma consciência que pode aceitar ou rejeitar o
impulso. É por ser agente livre que o homem também possui o atributo da perfectibilidade. É
pela capacidade de se aperfeiçoar que o homem entra no processo civilizatório e toma imensa
distância dos outros animais. Criar, usar e aperfeiçoar ferramentas para interferir na natureza é
uma característica propriamente humana.
Rousseau não defende que a piedade tenha se apagado completamente do homem
civilizado. Esse sentimento permanece na religião, nas relações familiares e na amizade e é
dele que deriva a moral.8 Porém, o homem em estado de natureza era incapaz de reconhecer
intelectualmente essa “lei natural” que o impelia a fazer o bem; ele agia por dever devido à
simples ignorância das paixões. Desse modo, os homens podem ser bons em um mundo
6
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens;
1999, p. 189.
7
A intenção de Rousseau é opor-se ao materialismo mecanicista do século XVIII que limitava a natureza a um
ciclo causal de ações e reações, dentro do qual o homem não teria saída e Deus não existiria.
8
A moral, conjunto de regras de conduta de determinado indivíduo ou sociedade, ainda é mais fraca que o
impulso da piedade presente no homem natural.
11
amoral, diferente do que Thomas Hobbes defendia: a ignorância das virtudes era a razão do
homem ser mau por natureza. Mesmo que Rousseau concorde com o filósofo inglês que o
homem não é um animal sociável, sendo a sociabilidade algo aprendido com a cultura ––
visto que no estado de natureza o homem não necessita de outro para a satisfação imediata
dos seus desejos simples (ou apenas para a reprodução e criação dos filhos até que eles
consigam subsistir por si próprios) ––, ele discorda que devido a essa característica o homem
vá ferir o próximo, pois: a) se o homem no estado de natureza não possui nenhuma
propriedade, não há, portanto, espoliação, b) não existe um desejo intrínseco de espoliar que
faça parte da natureza humana, c) na ausência de uma lei civil, o homem possui como lei
interna o sentimento de piedade.
Também não se deve afirmar que, pela ausência de sociabilidade, o mero impulso da
piedade sirva para atribuir a característica de “bom” ao homem natural. A mera razão do
sentimento de piedade ser mais forte no selvagem –– por ele estar imune às paixões que
desviam os homens civilizados da “lei natural” –– não basta para aplicar esse atributo ético:
9
A terminologia kantiana usada é influência da interpretação de Cassirer sobre a obra de Rousseau.
10
FORTES, Luis Roberto Salinas. Rousseau: da teoria á prática. São Paulo: Ática, 1976, p. 63.
13
autoridade seria justificada com base no direito natural de autoridade que o pai exerce sobre
os filhos, sendo o governante a figura que teria autoridade absoluta no corpo político, da
mesma forma que o patriarca no corpo familiar.
Ao contrário do que Pufendorf entendia por família, Rousseau a divide em dois tipos:
a natural e a convencional. No estado de natureza, o vínculo entre pais e filhos se encerra no
momento em que os filhos ganham a capacidade de cuidarem de si próprios sem auxílio
alheio. A família convencional é a que se encontra em estado de sociedade, na qual os laços
de parentesco se transmitem entre avós, pais, filhos, primos etc., e os filhos continuam
mantendo contato com os pais por toda a vida. Tal como Aristóteles, o filósofo genebrino
diferencia o corpo familiar do corpo político; para ele, enquanto o rei governa tendo em vista
seus interesses e não os do povo, o pai tem em vista o interesse dos filhos.
Quanto à escravidão, seus grandes defensores são o jurista Hugo Grócio (1583-1645)
e o filósofo Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.). O filósofo grego legitima a escravidão através de
uma separação biológica entre homens dotados de autonomia e capacidade de previsão (os
que podem ser cidadãos na polis), e homens dependentes de uma vontade alheia e sem
capacidade de previsão (escravos por natureza):
O jurista Grócio, por outro lado, defende a escravidão com base no direito do
vencedor na guerra se apropriar do corpo do perdedor, pois, se o vencedor tem o direito de
matar seu inimigo vencido, é justo que lhe poupe a vida com a condição dele se entregar
como posse do vencedor.
Discordando de Aristóteles, Rousseau dirá que os ditos “escravos por natureza” nada
mais são que homens acomodados com sua própria condição, acovardados diante da opressão;
contra Grotius, defenderá que –– sendo a liberdade uma capacidade inata ao ser humano e o
que o distingue ontologicamente ––, se alienar da própria “liberdade é renunciar à sua
qualidade de ser humano, aos direitos da humanidade, mesmo aos seus deveres”.11 Além
11
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social: princípios do direito político. Tradução de Edson Bini. Bauru,
SP: EDIPRO, 2ª ed., 2015, p. 15.
14
disso, ninguém em plena lucidez se privaria da própria liberdade e, se o faz, é por ignorância
ou covardia.
Dentre outros modos de se legitimar o direito de autoridade, um deles é o de dividir
os homens entre fortes e fracos: o mais forte possui o direito sobre o mais fraco. É o modo
pelo qual os déspotas justificam seu próprio status quo. Logicamente, se segue que, se a força
justifica o direito, o ato de tirar o déspota da sua posição de poder através do uso da força é
um ato igualmente legítimo. Além disso, ninguém cede à força por querer, mas por ser
coagido (caso se rebele, põe a vida em risco). As palavras “forte” e “fraco” nada dizem em si
mesmas, só fazem sentido se estiverem se referindo às condições de possuir ou não possuir
riquezas; a força nada mais é que o poder, e o poder quase sempre é derivado da riqueza
material. A obediência deve ser gerada pelo consentimento e pelo dever, e não pela força, essa
é a ideia base da filosofia política de Rousseau.
Portanto, refutadas as falsas doutrinas que postulam um direito natural que legitima a
desigualdade, toda autoridade concedida a um particular só pode ser concebida como um
mero ato de convenção; naturalmente, não existe nenhuma natureza superior em certos
indivíduos que lhes conceda o direito de dominar outros homens. O raciocínio de Calígula nos
diz que “da mesma forma que um pastor possui uma natureza superior à de seu rebanho, os
pastores de homens, que são seus chefes, possuem uma natureza superior à de seus povos”.12
Nada mais falacioso que essa analogia, pois ela não se sustenta racionalmente.
12
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social: princípios do direito político, 2015, p. 15.
13
Estanislau I Leszczynski (1677-1766), Rei da Polônia.
15
16
STAROBINSKI, Jean. Jean Jacques Rousseau: a transparência e o obstáculo; seguido de Sete ensaios sobre
Rousseau; tradução de Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 400.
17
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens,
1999.
17
socialmente que outros não possuem ou possuem em menor escala, do mesmo modo que
percebe que outros possuem maior reconhecimento da comunidade devido a características
distintas, surge em si um sentimento que passa a ser força motriz da ação humana: o amor-
próprio –– que difere do amor de si por ser puramente artificial ––, caracterizado pelo desejo
de se sobressair em relação aos outros, se achar superior e querer ser admirado como tal. Esse
amor próprio se traduz como egoísmo, vaidade e orgulho:
[...] pois não se vê o que, para apropriar-se das coisas que não fez, o homem
pode introduzir-lhe além do seu trabalho. É o trabalho apenas que, dando ao
18
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens,
1999, p. 213.
18
“Para o poeta, o ouro e a prata, mas para o filósofo o ferro e o trigo civilizaram o
homem e perderam o gênero humano”.20 A razão dessa queda, segundo Starobinski, se dá
diante de um novo modelo econômico que, “produzindo além de suas necessidades reais, [os
homens] disputam a posse do supérfluo: não querem mais usufruir, mas possuir; não querem
mais os bens atuais, mas os sinais abstratos dos bens possíveis ou das posses futuras”.21 Esses
sinais abstratos dos bens possíveis são os bens que em si não satisfazem nenhuma necessidade
natural do homem, e sim a necessidade gerada no amor-próprio de ostentar suas riquezas. Os
primeiros sinais de riqueza foram as quantidades de terra e de gado; em seguida, tendo o
homem aprendido a manusear os metais para criar armas e ferramentas, passou a se basear em
outros tipos de posses: ouro, prata, diamantes, escravos etc. A cobiça faz com que os homens
usem da violência para tomar dos outros suas riquezas; o usurpador baseia sua ação na sua
força: se ele consegue tomar dos outros o que lhe pertence, é porque é mais forte, mais capaz
e, portanto, teve o direito a isso.
As guerras foram derivadas do conflito entre esses dois direitos: o direito do primeiro
ocupante e o direito do mais forte. Não se tratam de direitos de fato, pois quanto ao primeiro
não há ainda nesse período da humanidade nenhum poder político que legitime a propriedade
privada e possa assegurar a posse daquele que ocupa um pedaço de terra sem dono. E o direito
do mais forte, como se viu no capítulo anterior, é contrário ao direito. Grosso modo, o
proprietário do solo não possui nenhuma segurança em relação ao pedaço de terra que
considera seu; qualquer um pode usurpar sua propriedade e tomar posse com base na coerção.
É desse ponto, segundo Rousseau, que Hobbes passou a analisar a sociedade e concluiu que
os homens são naturalmente maus e miseráveis, pois passou a representar o homem a partir
desse conflito entre os dois direitos.
19
Deusa da mitologia romana, que equivale a Deméter, na mitologia grega.
20
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens,
1999, p. 213.
21
STAROBINSKI, Jean. Jean Jacques Rousseau: a transparência e o obstáculo; seguido de Sete ensaios sobre
Rousseau, 2011, p. 401.
19
Não é pela força que o rico estabelece a sujeição do miserável, mas pela palavra é
que o convence. Como afirma Bento Prado Jr., “se a continuidade da superfície terrestre é,
desta maneira, recortada por muros, se a heterogeneidade do mundo privado se desenha sobre
a homogeneidade do espaço público, é por meio da mentira”.24 Por meio da mentira, a
desigualdade passa a possuir valor institucional. O primeiro pacto é mentiroso porque profere
ao pobre que ele recebeu a mesma vantagem que o rico; mas o rico sempre terá vantagem
econômica por ser possuidor do maior número de propriedades.
22
STAROBINSKI, Jean. Jean Jacques Rousseau: a transparência e o obstáculo; seguido de Sete ensaios sobre
Rousseau, 2011, p. 401.
23
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social: princípios do direito político, 2015, p. 25.
24
PRADO JÚNIOR, Bento. A Retórica de Rousseau e outros ensaios. Organização e apresentação de Franklin
de Mattos; tradução de Cristina Prado; revisão técnica de Thomaz Kawauche. São Paulo: Cosac Naify, 2008, p.
114.
20
Esse contrato social, apesar de favorecer apenas um lado da moeda, é tido para
Rousseau como o verdadeiro fundamento da sociedade civil.25 Se o homem se aliena da
própria liberdade natural para se submeter às leis, é porque tem em vista que elas irão
favorecer a todos, e não a um indivíduo ou a um grupo em particular, do contrário “seria
difícil demonstrar a validade de um contrato que só obrigasse uma das partes, no qual se
colocasse tudo de um lado e nada do outro e só revertesse no prejuízo daquele que assume seu
compromisso”.26
Os termos do contrato podem ser expressos da seguinte forma:
como fruto da sua vontade particular. Mesmo sob o comando do déspota, o Estado está sujeito
a revoluções que podem tirá-lo do poder e instituir novamente um poder legítimo; no entanto,
como “o corpo político, assim como o corpo humano, já começa a morrer ao nascer e traz em
si mesmo as causas da sua destruição”,29 esse mesmo poder legítimo está fadado a se
corromper.
O Segundo Discurso é uma obra com final pessimista. Se há algo de positivo que
Rousseau visualiza, é a ideia de contrato social como única teoria cabível para se legitimar a
sociedade civil30: “é incontestável, e constitui a máxima fundamental de todo o direito
político, que os povos aceitaram ter chefes para que estes defendessem sua liberdade e não
para que os escravizassem”.31 Todo início da sociedade é legítimo, mesmo que ela tenha
propensão a se degenerar.
Pode existir um modelo de sociedade que se afaste desse ciclo de escravidão e
violência? Há sempre três modelos de República que Rousseau reverencia em sua obra
filosófica: Esparta, Roma e Genebra. No que elas parecem agradar ao filósofo? A oligarquia
espartana possui um modelo de organização militar que se opõe ao luxo e aos vícios da
democracia ateniense, possuindo uma Constituição que molda a virtude no espírito de seus
homens, deixando-os viris e saudáveis similarmente ao homem natural. A Constituição de
Esparta estabeleceu as bases cívicas da sociedade após “limpar a área e descartar todos os
materiais velhos”32 que corrompem o poder. Já na República Romana, através de uma nova
legislação gravada em doze tábuas, criou-se uma política que harmonizava as classes dos
plebeus e dos patrícios em uma igualdade civil.
Quanto à República de Genebra, Rousseau trata dela mais detalhadamente no seu
prefácio ao Segundo Discurso.33 Dentre as muitas qualidades que ele destaca, estão:
29
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social: princípios do direito político, 2015, p. 81.
30
Do contrário, a sociedade civil teria como base o poder arbitrário, e qualquer possibilidade de uma sociedade
ideal seria nula, pois onde reina o poder arbitrário não há justiça.
31
Idem. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, 1999, p. 226.
32
Ibidem, p. 225.
33
Ibidem. pp. 135, 147.
22
Desse modo, Rousseau já antecipa em seu prefácio um ideal republicano que será
tratado minuciosamente no Contrato Social. A diferença do Segundo Discurso para o
Contrato Social consiste na diferença entre a forma fenomenológica das sociedades e seu
modelo ideal: Rousseau “diferencia de maneira categórica a forma empírica da sociedade da
forma ideal – o que ela é sob as condições presentes do que ela pode e deve ser no futuro”.34
Pelo homem ser naturalmente bom e livre –– mas ser corrompido pelas instituições ––, é
razoável cogitar de boa fé uma sociedade mais próxima possível da sua essência, na qual as
instituições não sejam corruptoras, e tomem “os seres humanos tais como eles são e as leis
tais como parecem ser”.35 Tomar os seres humanos tais como eles são é tomá-los
precisamente em sua essência –– bons, iguais e livres ––, em oposição a como eles aparecem
na história: desiguais, maus e escravos.
Rousseau resume o objetivo contratualista como “uma forma de associação que
defenda e proteja de toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado e pela qual
cada um se unindo a todos obedeça, todavia, a si mesmo e permaneça tão livre como antes”.36
O meio para que se chegue a esse tipo de associação é a alienação total da liberdade natural,
tendo em troca a liberdade civil, carregada de direitos e deveres. Essa forma de associação
não vai contra a crítica que Rousseau faz a Pufendorf sobre a inalienabilidade da liberdade?
Não seria essa uma forma disfarçada de servidão? Pelo contrário:
37
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social: princípios do direito político, 2015, p. 24.
38
Ibidem, p. 21.
24
poder comprar um outro e nenhum tão pobre a ponto de achar forçado a vender-se”,39
estabelece-se uma condição formal de igualdade de condições e igualdade de direitos.
John Rawls estipula três razões para Rousseau estabelecer esse sistema:
39
Ibidem, p. 50.
25
Diziam que o imperador mongol Genghis Khan (1162 – 1227), para defender sua
dominação entre os povos asiáticos, tinha como máxima: “[a]ssim como só há um sol no céu,
só pode haver um senhor na Terra”. De modo semelhante, para Thomas Hobbes, a soberania é
como a figura desse senhor: fonte de toda justiça do Estado, indivisível, único e dissociado do
povo. O poder do Estado, sendo soberano, seja uma aristocracia ou um monarca, possui poder
centralizador e absoluto sobre os súditos:
soberania. Sendo inalienável, não pode ser divisível: se a soberania segue a vontade de um
particular ou de uma potência estrangeira, e não a vontade geral, o Estado se torna dois, e não
um. O poder executivo e legislativo não são divisões da soberania, mas suas emanações de
força e vontade.41
O que é a soberania senão uma convenção baseada em um princípio equitativo de
igualdade de condições e de direitos? Assim como os membros do homem (braços, pernas,
cabeça...) formam o homem por inteiro, a associação livre entre as pessoas derivadas do pacto
formam o corpo do soberano. Portanto, essa convenção é legítima, equitativa, útil e sólida, e
estabelece os limites do poder soberano:
41
Ibidem, p. 29.
42
RAWLS, John. Conferências sobre a história da filosofia política. Tradução de Fabio M. Said. São Paulo:
Editora Martins Fontes, 2012, p. 243.
43
Ibidem, p. 243.
27
houvesse interesses fundamentais que ligassem as pessoas apesar das divergências envolvidas
pelos interesses particulares, a própria natureza do pacto não faria sentido. Esses interesses
fundamentais consistem na vontade de todos assegurarem “as condições sociais necessárias à
realização de tais interesses [particulares], através da cooperação social e em termos dos quais
se possam consentir”.44 Para Rawls, os interesses fundamentais
Ao encerrar a votação e a decisão for tomada pelo poder legislativo, a vontade geral
é declarada, sendo considerada um ato de soberania, e vira lei. Nesse processo de tomada de
decisão e consciência do que o povo em si toma como sendo o bem comum, a lei se torna seu
44
RAWLS, John. Conferências sobre a história da filosofia política. Tradução de Fabio M. Said. São Paulo:
Editora Martins Fontes, 2012, p. 249.
45
Rousseau não supõe apenas um cidadão tomado de um espírito público de optar pelo que é melhor para todos,
mas tomado das informações corretas para poder deliberar corretamente.
28
“princípio constitutivo [...], pretende dominar os cidadãos à medida que, em cada ato
individual, ao mesmo tempo os torna cidadãos e os educa para serem cidadãos”.46
Conclusão
Do mesmo modo, Rousseau sai com vantagem quando vemos que há soberanias que
conseguem ser prósperas sem se desviar de pautas orientadas por liberdades individuais e
direitos iguais para todos.
Em suma, a questão Jean-Jacques Rousseau é sobre como podemos aproximar nossa
perfectibilidade –– potência humana que, apesar do grau de desenvolvimento que nos levou,
desde o século XX, nos deixa próximos de catástrofes mundiais –– com um ideal de
preservação da dignidade humana que antecede qualquer período histórico. Para preservarmos
essa dignidade é preciso um esforço consciente de manutenção das instituições sociais a fim
de que o corpo político persista atendendo às condições necessárias para a realização de nossa
auto-preservação e desenvolvimento de nossas faculdades.
30
BIBLIOGRAFIA
GAY, Peter. Introdução. Prefácio. In: CASSIRER, Ernst. A questão Jean-Jacques Rousseau;
tradução de Erlon José Paschoal, Jézio Gutierre; revisão da tradução por Isabel Maria
Loureiro. São Paulo: Editora UNESP, 1999.
CASSIRER, Ernst. A questão Jean-Jacques Rousseau; tradução de Erlon José Paschoal, Jézio
Gutierre; revisão da tradução por Isabel Maria Loureiro. São Paulo: Editora UNESP, 1999.
FORTES, Luis Roberto Salinas. Rousseau: da teoria á prática. São Paulo: Ática, 1976.
RAWLS, John. Conferências sobre a história da filosofia política; tradução de Fabio M. Said.
– São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012.
WOKLER, Robert. Rousseau; tradução de Denise Bottman. Porto Alegre, RS: L&PM, 2012.
31