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UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS


CURSO DE LICENCIATURA EM FILOSOFIA

PATRICK COIMBRA DE OLIVEIRA DIAS

JEAN-JACQUES ROUSSEAU: A LIBERDADE E A IGUALDADE DO ESTADO DE


NATUREZA AO CONTRATO SOCIAL

SEROPÉDICA
2018
2

PATRICK COIMBRA DE OLIVEIRA DIAS

JEAN-JACQUES ROUSSEAU: A LIBERDADE E A IGUALDADE DO ESTADO DE


NATUREZA AO CONTRATO SOCIAL

Monografia apresentada ao Curso de Licenciatura em Filosofia da


Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, como pré-requisito à
obtenção do título de Licenciatura em Filosofia.
Orientador: Prof. Dr. Walter Valdevino Oliveira Silva

SEROPÉDICA
2018
3

RESUMO

Tendo como objetivo de análise o Discurso sobre a origem da desigualdade entre os


homens e o Contrato Social, proponho explicitar nesses trabalhos de Jean-Jacques
Rousseau os conceitos de liberdade e igualdade, tratando esses conceitos de acordo com
sua teoria do estado de natureza, sua filosofia da história e do progresso da civilização e
seu ideal republicano de uma sociedade pautada na soberania popular. Buscarei ver se
Rousseau entra em contradição com seus princípios, sendo ambas as obras dessemelhantes
quanto aos fins, ou se elas se complementam.
Palavras-chave: jusnaturalismo; contrato social; natureza humana; liberdade;
igualdade.
4

ABSTRACT

With the objective of analyzing the Discourse on the Origin of Inequality and the Social
Contract, I propose to explain in these works of Jean-Jacques Rousseau the concepts of
freedom and equality, treating these concepts according to their theory of the state of
nature, their philosophy of history and the progress of civilization and their republican
ideal of a society based on popular sovereignty. I will try to see whether Rousseau
contradicts his principles, both works being dissimilar to ends, or whether they
complement each other.
Keywords: jusnaturalism; social contract; human nature; freedom; equality.
5

SUMÁRIO

1. Introdução.........................................................................................................................6
2. O homem no estado de natureza.......................................................................................8
2.1. Liberdade e bondade....................................................................................................10
2.2. Igualdade e falsas doutrinas do direito natural.............................................................12
3. Surgimento e progresso da desigualdade........................................................................15
3.1. Primeira fase: hordas anárquicas sem permanência.....................................................16
3.2. Segunda fase: sociedade patriarcal..............................................................................16
3.3. Terceira fase: economia de produção, surgimento da agricultura e da metalurgia......17
3.4. Quarta fase: o contrato social como fundamento da sociedade civil...........................19
4. O modelo republicano da vontade soberana orientada ao bem comum..........................21
4.1. Liberdade e igualdade derivadas do pacto social.........................................................23
4.2. Soberania e vontade geral............................................................................................25
Conclusão............................................................................................................................27
BIBLIOGRAFIA................................................................................................................29
6

1. Introdução

Liberdade, igualdade e fraternidade. O lema da Revolução Francesa nos remete a


três conceitos fundamentais na obra de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), filósofo nascido
em Genebra e posteriormente um dos fundadores e críticos do movimento Iluminista. Tal
como a Revolução Francesa é compreendida tanto pelo seu aspecto positivo (abolição da
sociedade monárquica, Declaração dos direitos do homem e do cidadão, etc.), como pelo seu
aspecto negativo (os anos do terror, a barbárie da guilhotina), tal analogia pode ser feita com
Rousseau.
Devido a esse aspecto dualista, muitos acabam interpretando exageradamente sua
filosofia: seja taxando suas ideias políticas como distópicas, com o indivíduo sendo anulado
pelas instituições e pelo Estado, ou como utópicas, com o indivíduo habitando um modelo de
sociedade tão afastado da realidade que sua realização chega a ser impossível e incondizente
com a natureza humana. Por seus ideais políticos e humanistas serem expostos de diversas
maneiras em sua obra filosófica, muitos comentadores enxergaram algum tipo de contradição
filosófica permeando suas ideias:

Ele foi alternadamente chamado de racionalista e irracionalista; sua


economia, descrita como socialista ou como fundada na santidade da
propriedade privada; sua religião, tomada como deísta, católica ou
protestante; seus ensinamentos morais foram ora tachados de puritanos, ora
de excessivamente emocionais e permissivos. (GAY, 1999 apud
CASSIRER, 1999, p. 10)

Outros comentadores como Jean Starobinski (1920), Ernst Cassirer (1874-1945) e


John Rawls (1921-2002) defendem que, se há contradições, elas são apenas aparentes, dadas
pela maneira estilística do autor e pelo seu apelo à subjetividade. Meu objetivo é desenhar,
com base nesses autores citados e outros mais, a espinha dorsal que interliga o Discurso sobre
a origem da desigualdade entre os homens com O contrato social, duas obras que abrangem
uma gama de interpretações e influências bastante variadas, seja o pensamento anarquista ou
o liberalismo político, mas que, apesar disso, possuem uma correspondência conceitual que
estabelece uma unidade entre ambas: a ideia de que a liberdade e a igualdade fazem parte da
natureza humana, e uma sociedade que se estabeleça com base nesses direitos é, portanto,
possível e necessária; e essa possibilidade se dá pelo homem, –– precedente às circunstâncias
históricas que alteraram sua constituição e engendraram os males sociais ––, ter uma natureza
boa.
7

No primeiro capítulo, procurarei definir, com base na primeira parte do Discurso


sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens,1 o que é o homem no
estado de natureza ilustrado por Rousseau, o que ele possui de igual com os outros animais e
como o conceito de liberdade o distingue da restante fauna. Buscarei mostrar também como
Rousseau refuta as falsas doutrinas que atribuem à desigualdade entre os homens uma
legitimação com base no direito natural para provar que, pelo contrário, no estado primitivo
todos os homens são iguais perante a natureza.
No segundo capítulo, tratarei a descrição feita por Rousseau sobre o processo pelo
qual o homem se torna um ser civilizado através do desenvolvimento de suas faculdades
mentais (surgimento de novos afetos, capacidade de comunicação e raciocínio), e do seu
progresso técnico-cultural (modelo de economia, organização social), organizado em quatro
etapas históricas que culminam no surgimento da sociedade civil e na institucionalização da
propriedade privada. Avaliarei se, segundo o autor, esse processo foi melhor ou pior para a
humanidade, e se dele pode se derivar um fundamento legítimo para a sociedade civil.
Por último, no terceiro capítulo, tratarei de como, através da alienação, o homem
adquire uma moralidade dentro de um quadro social pautado pela liberdade civil e igualdade
de direitos, de como se forma uma soberania e o que é a vontade geral e no que consiste para
tornar legítimo o poder soberano.

2. O homem em estado de natureza

Em 1750, a Academia de Dijon, na França, propôs como tema de um concurso a


seguinte questão: teriam as ciências e as artes contribuído para melhorar os costumes? O
ganhador do concurso foi Jean-Jacques Rousseau, cujo Discurso sobre as ciências e as artes
respondia negativamente à pergunta, criticando não só o progresso intelectual como
insatisfatório para a criação de bons cidadãos, mas como prejudicial ao Estado. A queda das
grandes civilizações como Egito, Roma, Grécia, –– etc. ––, teria sido consequência do
florescimento da cultura erudita, que afrouxou as virtudes militares, propagou o luxo entre os
homens e desuniu os cidadãos em credos religiosos e filosóficos. Rousseau descreve cada
ciência como oriunda de um vício: “a astronomia nasceu da superstição; a eloquência, da


1
Também mencionado como Segundo Discurso.
8

ambição, do ódio, da adulação, da mentira; a geometria, da avareza; a física, de uma vã


curiosidade; e até mesmo a moral, do orgulho humano”.2
Apesar de ser a obra menos filosófica de Rousseau –– parecendo mais um exercício
de retórica do que uma argumentação filosófica formulada em conceitos rígidos ––,
considerada pelo próprio autor como “o pior entre seus principais escritos”,3 mostra teses
centrais que repercutiram em toda sua obra filosófica posterior: a) civilizações ligadas à
natureza eram mais virtuosas, felizes e saudáveis; b) o progresso civilizatório fez o homem
desejar coisas supérfluas e o tornou infeliz; c) o modo como deve ser conduzida a ação
humana é um saber a priori que todos carregam e do qual se tem plena lucidez quando se está
livre das paixões; d) é preciso um retorno à natureza4 por meios políticos-pedagógicos a fim
de que o conhecimento herdado seja um meio para a felicidade e não mero acúmulo
insignificante.
Se as ciências e as artes foram geradas nos vícios e nas paixões, e eles não afetam
tanto as sociedades que estão mais próximas do estado de natureza, como se deu esse
processo de mudança do natural para o artificial? O que faz com que o homem próximo à
natureza seja melhor que o homem civilizado? Rousseau irá responder a essas questões em
seu Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens, novamente como resposta a
um concurso da Academia de Dijon, proposto em 1755, e cuja tese a ser defendida era a causa
dos homens serem desiguais entre si e se essa desigualdade seria legitimada por uma lei
natural.
A desigualdade natural entre os homens, segundo Rousseau, –– seja a diferença de
talentos ou de força física ––, teria sua causa na própria natureza, enquanto a desigualdade
social teria o fundamento em uma convenção entre os homens, sendo puramente artificial. O
homem natural e pré-civilizado possui uma igualdade e uma liberdade que se justificam no
próprio direito natural. Poderia ele descrever esse homem no estado de natureza baseado em
conhecimentos historiográficos, etnográficos e antropológicos, que somente abordam o
homem enquanto ser situado em uma civilização? Até mesmo o indígena se encontra em um
tipo de microssociedade patriarcal (terceiro estágio da humanidade, como mostrarei no
próximo capítulo) e possui uma linguagem, portanto ele já está “desnaturado”. Além disso,


2
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens;
tradução de Maria Ermantina Galvão; cronologia e introdução de Jacques Roger. – 2ª ed. – São Paulo: Martin
Fontes, 1999, p. 25.
3
WOKLER, Robert. Rousseau; tradução de Denise Bottman. Porto Alegre, RS: L&PM, 2012, p. 35.
4
Não se deve levar ao pé da letra a ideia de “retorno à natureza” presente em seu projeto político-pedagógico.
9

tendo a condição humana atravessada tantos processos, como pode Rousseau elaborar um
discurso sobre a origem da humanidade e separar o homem natural do homem artificial?

Tal como a estátua de Glauco que o tempo, o mar e as tempestades haviam


desfigurado tanto que se parecia menos com um deus do que um animal
feroz, a alma humana, alterada no seio da sociedade por mil causas
incessantemente renascentes, pela aquisição de um grande número de
conhecimentos e de erros, pelas mudanças ocorridas à constituição dos
corpos e pelo choque contínuo das paixões, mudou, por assim dizer, de
aparência a ponto de ficar quase irreconhecível... (ROUSSEAU, 1999, pp.
149-150)

Deve-se, portanto, “ignorar os fatos”, pois eles tratam do homem enquanto ser
situado na história, portanto são apenas “fatos históricos” e não condizentes com aquilo que é
propriamente o homem em seu estado originário. Todos os projetos filosóficos anteriores ao
seu Segundo Discurso teriam errado exatamente em confundir o factual com o essencial. O
fato é apenas um momento da aparência que obscurece o verdadeiro arquétipo da estátua de
Glauco, que só pode ser desvelada pelo esforço filosófico. O homem natural, afastado de todo
artifício da sociedade, é uma hipótese necessária que só pode ser formulada pelo pensamento
e deve rejeitar qualquer tentativa de fundamentação empírica. Se Rousseau usa em seu texto
os relatos de viajantes e antropólogos, o faz apenas como complemento, possíveis ilustrações
do quão próximo estão os indígenas do estado natural em comparação ao europeu, mero
acessório teórico. Diz Cassirer que o meio pelo qual o filósofo chega a esse conhecimento é
através da “fonte do autoconhecimento e da auto-reflexão. [...] Cada um traz em si o
verdadeiro arquétipo, mas sem dúvida quase ninguém conseguiu descobri-lo sob o seu
invólucro artificial [...] e trazê-lo à luz”.5

2.1. Liberdade e bondade

Por um experimento de pensamento, separam-se do homem todas as paixões: o


selvagem não sente inveja, já que não há posse alguma no estado de natureza, nem orgulho,
pois ele não se vê diferente dos outros animais ou da natureza em geral, nem ciúmes, pois não
há vínculo amoroso. Elimina-se tudo o que proveio da cultura e da educação: a política,
técnicas e ferramentas de caça e cultivo, artes, linguagem e racionalidade, visto que, para se
elaborar raciocínios, se requer uma linguagem.


5
CASSIRER, Ernst. A questão Jean-Jacques Rousseau; tradução de Erlon José Paschoal, Jézio Gutierre; revisão
da tradução por Isabel Maria Loureiro. São Paulo: Editora UNESP, 1999, p. 51.
10

O que sobra quando se retiram do homem todos os sentimentos criados no convívio


social? O amor de si e a piedade. O primeiro sentimento determina no homem a conservação
da própria vida, o segundo “tempera o ardor que ele tem por seu bem-estar com uma
repugnância inata em ver sofrer seu semelhante”.6 A piedade, portanto, consiste em: a) não
querer o mal de nenhum ser sensível desde que seja necessário para sobreviver (se alimentar
ou se proteger); b) um impulso que visa proteger a felicidade de qualquer ser sensível que
esteja sofrendo.
No entanto, se esses atributos também pertencem aos animais, em que o homem se
distingue deles? Para Rousseau, enquanto o homem possui a liberdade, os restantes animais
agem inteiramente por instinto:

Um escolhe ou rejeita por instinto e o outro, por um ato de liberdade; é por


isso que o animal não pode afastar-se da regra que lhe é prescrita, mesmo
quando lhe for vantajoso fazê-lo, e o homem afasta-se dela amiúde para seu
prejuízo. [...] Portanto, não é tanto o entendimento quanto a sua qualidade de
agente livre que confere ao homem sua distinção específica entre os animais.
A natureza manda em todos os animais, e o bicho obedece. O homem sente a
mesma impressão, mas se reconhece livre para aquiescer ou resistir, sendo,
sobretudo na consciência dessa liberdade que se mostra a espiritualidade de
sua alma, [...] (ROUSSEAU, 1999, pp. 172-173).

É pela distinção entre vontade e instinto que consiste a diferença entre os homens e
os animais, apesar de o homem em estado de natureza não perceber ainda essa diferença. O
instinto é o resultado das funções fisiológicas, que regem toda vida animal através do
impulso,7 enquanto a vontade resulta de uma consciência que pode aceitar ou rejeitar o
impulso. É por ser agente livre que o homem também possui o atributo da perfectibilidade. É
pela capacidade de se aperfeiçoar que o homem entra no processo civilizatório e toma imensa
distância dos outros animais. Criar, usar e aperfeiçoar ferramentas para interferir na natureza é
uma característica propriamente humana.
Rousseau não defende que a piedade tenha se apagado completamente do homem
civilizado. Esse sentimento permanece na religião, nas relações familiares e na amizade e é
dele que deriva a moral.8 Porém, o homem em estado de natureza era incapaz de reconhecer
intelectualmente essa “lei natural” que o impelia a fazer o bem; ele agia por dever devido à
simples ignorância das paixões. Desse modo, os homens podem ser bons em um mundo

6
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens;
1999, p. 189.
7
A intenção de Rousseau é opor-se ao materialismo mecanicista do século XVIII que limitava a natureza a um
ciclo causal de ações e reações, dentro do qual o homem não teria saída e Deus não existiria.
8
A moral, conjunto de regras de conduta de determinado indivíduo ou sociedade, ainda é mais fraca que o
impulso da piedade presente no homem natural.
11

amoral, diferente do que Thomas Hobbes defendia: a ignorância das virtudes era a razão do
homem ser mau por natureza. Mesmo que Rousseau concorde com o filósofo inglês que o
homem não é um animal sociável, sendo a sociabilidade algo aprendido com a cultura ––
visto que no estado de natureza o homem não necessita de outro para a satisfação imediata
dos seus desejos simples (ou apenas para a reprodução e criação dos filhos até que eles
consigam subsistir por si próprios) ––, ele discorda que devido a essa característica o homem
vá ferir o próximo, pois: a) se o homem no estado de natureza não possui nenhuma
propriedade, não há, portanto, espoliação, b) não existe um desejo intrínseco de espoliar que
faça parte da natureza humana, c) na ausência de uma lei civil, o homem possui como lei
interna o sentimento de piedade.
Também não se deve afirmar que, pela ausência de sociabilidade, o mero impulso da
piedade sirva para atribuir a característica de “bom” ao homem natural. A mera razão do
sentimento de piedade ser mais forte no selvagem –– por ele estar imune às paixões que
desviam os homens civilizados da “lei natural” –– não basta para aplicar esse atributo ético:

[...] a “bondade” do homem, afirmada e sempre defendida por ele


[Rousseau], não é uma qualidade primitiva do sentimento, mas uma direção
e uma determinação básica de sua vontade. Essa bondade não se funda numa
propensão instintiva qualquer da simpatia, mas na capacidade de
autodeterminação. Portanto, a sua verdadeira prova não se encontra nos
impulsos de benevolência natural, mas no reconhecimento de uma lei moral
à qual a vontade individual se submete espontaneamente. (CASSIRER,
1999, p. 100)

A liberdade do homem, portanto, consiste em um ato da livre-vontade de se


autodeterminar pelo impulso da piedade natural ou de negar esse impulso; a escolha entre
aceitar e negar é a escolha ética entre o bem e o mal. O homem em estado de natureza não
pode fazer o mal porque o mal só passa a existir na história. Foi necessário que uma série de
contingências se inserisse para que a condição humana se transformasse em devir e ficasse
irreconhecível tal como a estátua de Glauco. No entanto, se não é possível fazer com que a
estátua volte a ser como era antes, é possível, por um esforço político-pedagógico, tirar-lhe a
ferrugem e a sujeira e deixá-la mais parecida com sua forma original. Isso não implica que os
homens devam voltar a andar sobre quatro patas, como ridicularizava Voltaire, mas manter
uma aproximação moral do seu estado originário:

O mal é véu e velamento, é máscara, tem acordo com o factício, e não


existiria se o homem não tivesse a perigosa liberdade de negar, pelo artifício,
o dado natural. É entre as mãos do homem, e não em seu coração, que tudo
12

degenera. Suas mãos trabalham, mudam a natureza, fazem a história,


ordenam o mundo exterior e produzem, com o tempo, a diferença entre as
épocas, a luta entre os povos, a desigualdade entre os “particulares”.
(STAROBINSKI, 2011, p. 35)

As arbitrariedades ocorreram somente no exterior, enquanto no interior ainda há a


capacidade de se autodeterminar por uma lei moral,9 visto que o homem é livre por natureza e
não deve existir nenhum particular a que deva submeter sua vontade. É nesse sentido que o
filósofo genebrino entende a liberdade: aquilo que caracteriza essencialmente o homem e o
distingue dos outros animais (diferente da tradição filosófica que o separava pela
racionalidade, atributo que o homem não possui no estado de natureza). Possuindo o homem
livre a “possibilidade de não-obediência às ordens da Natureza”,10 ele pôde seguir um
caminho não-natural: o caminho do progresso civilizatório.

2.2. Igualdade e falsas doutrinas do direito natural

Tendo explicado o conceito de liberdade, cabe agora explicar como o conceito de


igualdade se vincula ao direito natural na obra rousseauniana. Tanto no segundo Discurso
quanto na obra posterior intitulada O Contrato Social, o filósofo genebrino procura refutar
duas teorias que fundamentam a desigualdade em uma lei natural. Para ele, não há nada que
determine que um homem possua uma diferença quantitativa de direitos com relação a outro
homem, que não a mera convenção. No entanto, um problema se apresenta: diferente da
liberdade –– do qual se percebe sua existência tanto intuitivamente a partir de si, quanto
fenomenicamente na civilização ––, a igualdade não se encontra de modo absoluto em parte
alguma. Em todas as sociedades, a desigualdade se faz presente, seja em menor ou maior
grau, seja pela diferença material envolvendo propriedades e riquezas, seja pela diferença
legal, envolvendo a exclusão de direitos a uma parcela da população e privilegiando outra.
Há duas teorias da esfera do Direito e da filosofia política que legitimam a
desigualdade social e que Rousseau busca refutar: a autoridade paterna como fundamento da
autoridade política e o direito de escravidão.
Quanto ao paternalismo, essa tese tem como seu principal defensor o jurista Samuel
Pufendorf (1632-1694), que defendia que o corpo político era uma extensão do corpo
familiar: o pai estaria para os filhos assim como o rei estaria para seus soberanos. A


9
A terminologia kantiana usada é influência da interpretação de Cassirer sobre a obra de Rousseau.
10
FORTES, Luis Roberto Salinas. Rousseau: da teoria á prática. São Paulo: Ática, 1976, p. 63.
13

autoridade seria justificada com base no direito natural de autoridade que o pai exerce sobre
os filhos, sendo o governante a figura que teria autoridade absoluta no corpo político, da
mesma forma que o patriarca no corpo familiar.
Ao contrário do que Pufendorf entendia por família, Rousseau a divide em dois tipos:
a natural e a convencional. No estado de natureza, o vínculo entre pais e filhos se encerra no
momento em que os filhos ganham a capacidade de cuidarem de si próprios sem auxílio
alheio. A família convencional é a que se encontra em estado de sociedade, na qual os laços
de parentesco se transmitem entre avós, pais, filhos, primos etc., e os filhos continuam
mantendo contato com os pais por toda a vida. Tal como Aristóteles, o filósofo genebrino
diferencia o corpo familiar do corpo político; para ele, enquanto o rei governa tendo em vista
seus interesses e não os do povo, o pai tem em vista o interesse dos filhos.
Quanto à escravidão, seus grandes defensores são o jurista Hugo Grócio (1583-1645)
e o filósofo Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.). O filósofo grego legitima a escravidão através de
uma separação biológica entre homens dotados de autonomia e capacidade de previsão (os
que podem ser cidadãos na polis), e homens dependentes de uma vontade alheia e sem
capacidade de previsão (escravos por natureza):

Há na espécie humana indivíduos tão inferiores a outros como o corpo o é


em relação à alma, ou a fera ao homem; são os homens nos quais o emprego
da força física é o melhor que deles se obtêm. Partindo dos nossos
princípios, tais indivíduos são destinados, por natureza, à escravidão; porque,
para eles, nada é mais fácil que obedecer. Tal é o escravo por instinto, pode
obedecer a outrem (também lhe pertence ele de fato), e não possuir razão
além do necessário para dela experimentar um sentimento vago; não possui a
plenitude da razão. (ARISTÓTELES, 1969, p. 24

O jurista Grócio, por outro lado, defende a escravidão com base no direito do
vencedor na guerra se apropriar do corpo do perdedor, pois, se o vencedor tem o direito de
matar seu inimigo vencido, é justo que lhe poupe a vida com a condição dele se entregar
como posse do vencedor.
Discordando de Aristóteles, Rousseau dirá que os ditos “escravos por natureza” nada
mais são que homens acomodados com sua própria condição, acovardados diante da opressão;
contra Grotius, defenderá que –– sendo a liberdade uma capacidade inata ao ser humano e o
que o distingue ontologicamente ––, se alienar da própria “liberdade é renunciar à sua
qualidade de ser humano, aos direitos da humanidade, mesmo aos seus deveres”.11 Além

11
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social: princípios do direito político. Tradução de Edson Bini. Bauru,
SP: EDIPRO, 2ª ed., 2015, p. 15.
14

disso, ninguém em plena lucidez se privaria da própria liberdade e, se o faz, é por ignorância
ou covardia.
Dentre outros modos de se legitimar o direito de autoridade, um deles é o de dividir
os homens entre fortes e fracos: o mais forte possui o direito sobre o mais fraco. É o modo
pelo qual os déspotas justificam seu próprio status quo. Logicamente, se segue que, se a força
justifica o direito, o ato de tirar o déspota da sua posição de poder através do uso da força é
um ato igualmente legítimo. Além disso, ninguém cede à força por querer, mas por ser
coagido (caso se rebele, põe a vida em risco). As palavras “forte” e “fraco” nada dizem em si
mesmas, só fazem sentido se estiverem se referindo às condições de possuir ou não possuir
riquezas; a força nada mais é que o poder, e o poder quase sempre é derivado da riqueza
material. A obediência deve ser gerada pelo consentimento e pelo dever, e não pela força, essa
é a ideia base da filosofia política de Rousseau.
Portanto, refutadas as falsas doutrinas que postulam um direito natural que legitima a
desigualdade, toda autoridade concedida a um particular só pode ser concebida como um
mero ato de convenção; naturalmente, não existe nenhuma natureza superior em certos
indivíduos que lhes conceda o direito de dominar outros homens. O raciocínio de Calígula nos
diz que “da mesma forma que um pastor possui uma natureza superior à de seu rebanho, os
pastores de homens, que são seus chefes, possuem uma natureza superior à de seus povos”.12
Nada mais falacioso que essa analogia, pois ela não se sustenta racionalmente.

3. Surgimento e progresso da desigualdade

Como o homem, antes ignorante, autônomo, limitado a desejos estritamente


necessários e simples de serem satisfeitos e a um modo de vida pacífico se tornou um animal
de múltiplas faculdades mentais, carente da ajuda de outros para a manutenção da própria
subsistência, escravo de paixões que engendram desejos que nunca são satisfeitos e um modo
de vida oposto à natureza e em conflito com os outros homens?
Tendo o conhecimento da natureza humana em seu estado original, é possível
divagar sobre a sucessão de acontecimentos que desencadearam um estado de desigualdade
entre os homens. Em resposta às criticas que Estanislau13 teceu ao Discurso sobre as ciências



12
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social: princípios do direito político, 2015, p. 15.
13
Estanislau I Leszczynski (1677-1766), Rei da Polônia.
15

e as artes, Rousseau formulou que “a primeira fonte do mal é a desigualdade”.14 O filósofo


distingue dois tipos de desigualdades que existem entre os homens: uma natural e outra
social-política. A primeira tem suas causas determinadas por circunstâncias naturais ––
homens nascem com aptidões e talentos diferentes ––, enquanto a segunda não possui
fundamento natural e é dada segundo as convenções sociais, como já dito no capítulo anterior.
A sociedade civil começa no surgimento da propriedade privada: esta é a primeira
afirmação da segunda parte do Discurso sobre a origem das desigualdades. Mas até esse
ponto, é preciso mostrar o processo que se seguiu do homem em estado de natureza até a
sociedade civil. Por ser o homem um ser livre, capaz de negar o impulso natural, ele possui o
atributo da perfectibilidade: o atributo que dá ao homem a vantagem criativa em relação aos
outros animais de desenvolver e melhorar tecnologicamente sua capacidade de intervenção na
natureza, utilizando-se de ferramentas e armas. Apesar de essa potência estar presente na
natureza humana desde sua fase primitiva, ela só pôde ser impulsionada por uma pressão
externa dada pela própria natureza:

As armas naturais, que são os galhos de árvore e as pedras, logo se


encontraram em sua mão. [...] À medida que aumentou o gênero humano, as
labutas multiplicaram-se com os homens. A diferença dos terrenos, dos
climas, das estações, forçou-os a incluí-la em suas maneiras de viver. Anos
estéreis, invernos longos e rudes, verões escaldantes, que tudo consomem,
exigiram um novo engenho. Ao longo do mar e dos rios, inventaram a linha
e o anzol e tornaram-se pescadores e ictiófagos. Nas florestas, construíram
arcos e flechas e tornaram-se caçadores. (ROUSSEAU, 1999, p. 205)

É possível dividir em quatro fases o período da humanidade que sucede o homem


natural: as três primeiras dizem respeito ao estado de anarquia das primeiras sociedades,
baseadas em regras morais e não possuindo leis, e a quarta trata da fundação da sociedade
civil, que através das leis, institucionaliza as desigualdades sociais.

3.1. Primeira fase: hordas anárquicas sem permanência

Através da vantagem de se adaptar às dificuldades, os homens passaram a se associar


livremente em “hordas anárquicas sem permanência”15 que duravam apenas até o objetivo ser
alcançado; logo após terem as necessidades individuais satisfeitas, o compromisso mútuo é

14
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens,
1999, p. 75.
15
STAROBINSKI, Jean. Jean Jacques Rousseau: a transparência e o obstáculo; seguido de Sete ensaios sobre
Rousseau; tradução de Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 400.
16

encerrado e os homens voltam a se dispersar. A comunicação era baseada em gestos e sons


inarticulados, tal como fazem os outros animais.
Não havia, portanto, um interesse no bem-estar coletivo; os homens eram apenas
impulsionados pelo amor de si a obterem o essencial para a manutenção da vida. Dessas
relações o homem pôde fazer comparações entre ele e os outros seres vivos, e perceber que
alguns são fortes e fracos, rápidos e lentos, grandes e pequenos, e com base nisso estabelecer
uma melhor precaução no modo de agir. Ao trabalhar em grupo para caçar e coletar o
alimento, o homem perde sua plena autossuficiência e passa a depender de outros para realizar
tarefas que antes fazia sozinho.

3.2 Segunda fase: sociedade patriarcal

Logo que os homens se acostumaram a conviverem juntos, estabeleceu-se um


modelo de sociedade voltada em torno da figura do patriarca; o homem mais velho da família
passa a exercer autoridade sobre as esposas e filhos. As mulheres passam a se limitar às
atividades domésticas, levando uma vida sedentária em torno do lar, enquanto os homens
participam das atividades que envolvem a obtenção do alimento. Por seus desejos se
manterem simples, e da atividade em grupo precisar de menor esforço para saciá-los, o
homem cria formas de lazer para passar o tempo: a música, a dança, a pintura, e outras artes
que de início se voltam mais para a necessidade que para o luxo, como a arquitetura.
“Constroem-se aldeias, mas o solo ainda não tem proprietário”.16 Devido ao hábito de
viverem em comunidades e possuírem uma família, geram-se na natureza humana os
sentimentos afetivos de amor conjugal e amor paternal. A linguagem se sofistica e passa a ser
baseada em sons articulados, inventam-se palavras que são memorizadas e transmitidas de
geração para geração. Primeiro, foram inventados substantivos para designar os objetos mais
imediatos às sensações, e tal comunicação serviu para se estabelecer um comércio entre os
homens.
Segundo Rousseau, os sentimentos de preferência se baseiam em ideias de mérito e
beleza, que surgem no homem quando ele passa a se comparar com os outros e pelos outros
ser comparado.17 Ao se perceber como um indivíduo dotado de atributos valorizados


16
STAROBINSKI, Jean. Jean Jacques Rousseau: a transparência e o obstáculo; seguido de Sete ensaios sobre
Rousseau; tradução de Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 400.
17
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens,
1999.
17

socialmente que outros não possuem ou possuem em menor escala, do mesmo modo que
percebe que outros possuem maior reconhecimento da comunidade devido a características
distintas, surge em si um sentimento que passa a ser força motriz da ação humana: o amor-
próprio –– que difere do amor de si por ser puramente artificial ––, caracterizado pelo desejo
de se sobressair em relação aos outros, se achar superior e querer ser admirado como tal. Esse
amor próprio se traduz como egoísmo, vaidade e orgulho:

Assim que os homens começaram a apreciar-se mutuamente e se lhes


formou no espírito a ideia de consideração, cada qual pretendeu ter direito a
ela e não foi mais possível privar ninguém dela impunemente. Provieram daí
os primeiros deveres de civilidade, mesmo entre os selvagens, e a partir daí
qualquer agravo voluntário tornou-se um ultraje porque, com o mal que
resultava da injúria, o ofendido nela via o desprezo de sua pessoa, em geral
mais insuportável do que o próprio mal. (ROUSSEAU, 1999, p. 211)

Apesar de nessa época terem surgido os primeiros casos de violência de um homem


contra outro –– provocados por ciúmes, inveja, orgulho e honra feridos ––, ela é considerada
para Rousseau a época mais feliz da humanidade, pois a disparidade entre natureza e
sociedade era estreita, e sua economia tinha como fim apenas necessidades reais: alimentação
e abrigo. A divisão do trabalho não havia retirado totalmente a autonomia do homem, pois
“enquanto se aplicaram apenas a obras que um homem podia fazer sozinho e as artes que não
precisavam do concurso de várias mãos”,18 ainda não havia se estabelecido uma relação de
senhor e subordinado, e todas as tarefas eram separadas de maneira igualitária.

3.3. Terceira fase: economia de produção, surgimento da agricultura


e da metalurgia

Somente quando o homem percebeu as vantagens da divisão do trabalho, se pôde


transitar de uma economia recoletora para uma economia de produção. Pelo desenvolvimento
da agricultura, o homem viu no trabalho o fator que justifica o direito do primeiro ocupante:
se o agricultor ocupa um pedaço de terra e nele se empenha em produzir, essa terra e o
produto que dela retira são seus por direito:

[...] pois não se vê o que, para apropriar-se das coisas que não fez, o homem
pode introduzir-lhe além do seu trabalho. É o trabalho apenas que, dando ao

18
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens,
1999, p. 213.
18

lavrador o direito sobre o produto da terra que lavrou, dá-lhe,


consequentemente, o direito sobre o solo, pelo menos até a colheita, e assim
de ano em ano, o que vinha a ser uma posse contínua se transforma
facilmente em propriedade. Quando os antigos, diz Grotius, concederam a
Ceres19 o epíteto de legisladora e às festas celebradas em sua honra o nome
de Tesmofórias, com isso deram a entender que a partilha das terras produziu
uma nova espécie de direito, ou seja, o direito de propriedade, diferente
daquele que resulta da lei natural. (ROUSSEAU, 1999, p. 216)

“Para o poeta, o ouro e a prata, mas para o filósofo o ferro e o trigo civilizaram o
homem e perderam o gênero humano”.20 A razão dessa queda, segundo Starobinski, se dá
diante de um novo modelo econômico que, “produzindo além de suas necessidades reais, [os
homens] disputam a posse do supérfluo: não querem mais usufruir, mas possuir; não querem
mais os bens atuais, mas os sinais abstratos dos bens possíveis ou das posses futuras”.21 Esses
sinais abstratos dos bens possíveis são os bens que em si não satisfazem nenhuma necessidade
natural do homem, e sim a necessidade gerada no amor-próprio de ostentar suas riquezas. Os
primeiros sinais de riqueza foram as quantidades de terra e de gado; em seguida, tendo o
homem aprendido a manusear os metais para criar armas e ferramentas, passou a se basear em
outros tipos de posses: ouro, prata, diamantes, escravos etc. A cobiça faz com que os homens
usem da violência para tomar dos outros suas riquezas; o usurpador baseia sua ação na sua
força: se ele consegue tomar dos outros o que lhe pertence, é porque é mais forte, mais capaz
e, portanto, teve o direito a isso.
As guerras foram derivadas do conflito entre esses dois direitos: o direito do primeiro
ocupante e o direito do mais forte. Não se tratam de direitos de fato, pois quanto ao primeiro
não há ainda nesse período da humanidade nenhum poder político que legitime a propriedade
privada e possa assegurar a posse daquele que ocupa um pedaço de terra sem dono. E o direito
do mais forte, como se viu no capítulo anterior, é contrário ao direito. Grosso modo, o
proprietário do solo não possui nenhuma segurança em relação ao pedaço de terra que
considera seu; qualquer um pode usurpar sua propriedade e tomar posse com base na coerção.
É desse ponto, segundo Rousseau, que Hobbes passou a analisar a sociedade e concluiu que
os homens são naturalmente maus e miseráveis, pois passou a representar o homem a partir
desse conflito entre os dois direitos.


19
Deusa da mitologia romana, que equivale a Deméter, na mitologia grega.
20
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens,
1999, p. 213.
21
STAROBINSKI, Jean. Jean Jacques Rousseau: a transparência e o obstáculo; seguido de Sete ensaios sobre
Rousseau, 2011, p. 401.
19

3.4. Quarta fase: o contrato social como fundamento da sociedade


civil

A saída para esse estado caótico da humanidade se dá através da legitimação da


propriedade privada: “se o primeiro ocupante pode proclamar-se o proprietário do solo, ele o
possui ainda sem direito”,22 e esse direito “só se torna um direito verdadeiro após o
estabelecimento do direito de propriedade”.23 Por ser desvantajoso e perigoso para o rico
viver em um estado de completa insegurança em relação a seus bens, no qual qualquer
agressor possa justificar no direito do mais forte a razão para pilhar suas posses, um pacto
social é selado entre o povo; do estado de violência de todos contra todos se avança para uma
harmoniosa sujeição entre senhores e dominados. Rousseau trata esse momento com excesso
de retórica e sentimentalismo:

O primeiro que, tendo cercado um terreno, atreveu-se a dizer: Isto é meu, e


encontrou pessoas simples o suficiente para acreditar nele, foi o verdadeiro
fundador da sociedade civil. [...] “Unamo-nos”, disse-lhes, “para resguardar
os fracos da opressão, conter os ambiciosos e assegurar a cada qual a posse
do que lhe pertence. Instituamos regulamentos de justiça e de paz aos quais
todos sejam obrigados a adequar-se, que não abram exceção a ninguém e
reparem de certo modo os caprichos da fortuna, submetendo igualmente o
poderoso e o fraco a deveres mútuos. Em suma, em vez de voltarmos nossas
forças contra nós mesmos, reunamo-las em um poder supremo que nos
governe segundo leis sábias, que proteja e defenda todos os membros da
associação, rechace os inimigos comuns e nos mantenha numa concórdia
eterna”. (ROUSSEAU, 1999, pp. 203, 221)

Não é pela força que o rico estabelece a sujeição do miserável, mas pela palavra é
que o convence. Como afirma Bento Prado Jr., “se a continuidade da superfície terrestre é,
desta maneira, recortada por muros, se a heterogeneidade do mundo privado se desenha sobre
a homogeneidade do espaço público, é por meio da mentira”.24 Por meio da mentira, a
desigualdade passa a possuir valor institucional. O primeiro pacto é mentiroso porque profere
ao pobre que ele recebeu a mesma vantagem que o rico; mas o rico sempre terá vantagem
econômica por ser possuidor do maior número de propriedades.


22
STAROBINSKI, Jean. Jean Jacques Rousseau: a transparência e o obstáculo; seguido de Sete ensaios sobre
Rousseau, 2011, p. 401.
23
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social: princípios do direito político, 2015, p. 25.
24
PRADO JÚNIOR, Bento. A Retórica de Rousseau e outros ensaios. Organização e apresentação de Franklin
de Mattos; tradução de Cristina Prado; revisão técnica de Thomaz Kawauche. São Paulo: Cosac Naify, 2008, p.
114.
20

Esse contrato social, apesar de favorecer apenas um lado da moeda, é tido para
Rousseau como o verdadeiro fundamento da sociedade civil.25 Se o homem se aliena da
própria liberdade natural para se submeter às leis, é porque tem em vista que elas irão
favorecer a todos, e não a um indivíduo ou a um grupo em particular, do contrário “seria
difícil demonstrar a validade de um contrato que só obrigasse uma das partes, no qual se
colocasse tudo de um lado e nada do outro e só revertesse no prejuízo daquele que assume seu
compromisso”.26
Os termos do contrato podem ser expressos da seguinte forma:

Havendo o povo reunido, a respeito das relações sociais, todas as suas


vontades em uma só, todos os artigos sobre os quais essa vontade se explica
tornam-se outras tantas leis fundamentais que obrigam todos os membros do
Estado sem exceção, regulamentando uma delas a escolha e o poder dos
magistrados encarregados de zelar pela execução das outras. (ROUSSEAU,
1999, p. 231)

Os tipos de governo se seguiram das características presentes nos poderosos. Se


determinado povo não possuía muita desigualdade de talentos entre si, dava origem a uma
democracia. Se apenas um se distinguia de todos, originava-se uma monarquia. Se um grupo
se distinguia de todos, uma aristocracia.
Após o estabelecimento da lei e do direito de propriedade, foram eleitos os
magistrados –– seja com base no mérito, riqueza, ascendência ou idade ––, para que velem
pela utilidade pública. Os magistrados, antes eleitos democraticamente, deixam de ter por
objetivo a utilidade pública para visar aos interesses pessoais, “acostumaram-se a olhar sua
magistratura como um bem de família, a olhar a si mesmos como os proprietários do Estado
do qual de início eram apenas os funcionários, a chamar os seus concidadãos de seus
escravos”.27 A partir desse estado, o poder deixa de ser legítimo para ser despótico.
Eis o ciclo que todo o Estado carrega: o poder legítimo baseado na vontade geral,
visando o bem comum, torna-se poder despótico que visa o bem individual. No Contrato
Social, Rousseau estipula como causa a contração do governo: “quando passa do grande para
o pequeno número, isto é, da democracia para a aristocracia e da aristocracia para a realeza”.28
O déspota é o membro do Estado que usurpa para si separadamente o poder e trata as leis

25
Como visto no primeiro capítulo, as teorias que fundamentam a desigualdade entre os homens e a autoridade
do soberano com base no direito natural são falsas e, portanto, não podem legitimar a fundação da sociedade
civil, restando a Rousseau apenas a ideia de contrato social como racionalmente possível de ser aceita.
26
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens,
1999, p. 228.
27
Ibidem, p. 234.
28
Idem. O contrato social: princípios do direito político, 2015, p. 79.
21

como fruto da sua vontade particular. Mesmo sob o comando do déspota, o Estado está sujeito
a revoluções que podem tirá-lo do poder e instituir novamente um poder legítimo; no entanto,
como “o corpo político, assim como o corpo humano, já começa a morrer ao nascer e traz em
si mesmo as causas da sua destruição”,29 esse mesmo poder legítimo está fadado a se
corromper.

4. O modelo republicano da vontade soberana orientada ao bem


comum

O Segundo Discurso é uma obra com final pessimista. Se há algo de positivo que
Rousseau visualiza, é a ideia de contrato social como única teoria cabível para se legitimar a
sociedade civil30: “é incontestável, e constitui a máxima fundamental de todo o direito
político, que os povos aceitaram ter chefes para que estes defendessem sua liberdade e não
para que os escravizassem”.31 Todo início da sociedade é legítimo, mesmo que ela tenha
propensão a se degenerar.
Pode existir um modelo de sociedade que se afaste desse ciclo de escravidão e
violência? Há sempre três modelos de República que Rousseau reverencia em sua obra
filosófica: Esparta, Roma e Genebra. No que elas parecem agradar ao filósofo? A oligarquia
espartana possui um modelo de organização militar que se opõe ao luxo e aos vícios da
democracia ateniense, possuindo uma Constituição que molda a virtude no espírito de seus
homens, deixando-os viris e saudáveis similarmente ao homem natural. A Constituição de
Esparta estabeleceu as bases cívicas da sociedade após “limpar a área e descartar todos os
materiais velhos”32 que corrompem o poder. Já na República Romana, através de uma nova
legislação gravada em doze tábuas, criou-se uma política que harmonizava as classes dos
plebeus e dos patrícios em uma igualdade civil.
Quanto à República de Genebra, Rousseau trata dela mais detalhadamente no seu
prefácio ao Segundo Discurso.33 Dentre as muitas qualidades que ele destaca, estão:


29
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social: princípios do direito político, 2015, p. 81.
30
Do contrário, a sociedade civil teria como base o poder arbitrário, e qualquer possibilidade de uma sociedade
ideal seria nula, pois onde reina o poder arbitrário não há justiça.
31
Idem. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, 1999, p. 226.
32
Ibidem, p. 225.
33
Ibidem. pp. 135, 147.
22

Ÿ A igualdade entre os cidadãos: o direito de legislar é comum a todos, ninguém está


acima das leis; o nível de desigualdade é tolerável, pois o pobre tem o necessário para
bastar a si próprio e o rico o suficiente para não cair na indolência;
Ÿ A liberdade civil é identificada com a submissão às leis;
Ÿ Soberano e povo visam ao bem comum;
Ÿ Cidadãos possuem autonomia e maior clima de fraternidade: o trabalho que
exercem não é passado a outros numa dinâmica entre senhor e subordinado, e, por se
conhecerem melhor, possuem um julgamento público mais acurado;
Ÿ Boas instituições e um Estado que não se deixa abalar tanto internamente
(conspirações, revoltas) quanto externamente (guerras).

Desse modo, Rousseau já antecipa em seu prefácio um ideal republicano que será
tratado minuciosamente no Contrato Social. A diferença do Segundo Discurso para o
Contrato Social consiste na diferença entre a forma fenomenológica das sociedades e seu
modelo ideal: Rousseau “diferencia de maneira categórica a forma empírica da sociedade da
forma ideal – o que ela é sob as condições presentes do que ela pode e deve ser no futuro”.34
Pelo homem ser naturalmente bom e livre –– mas ser corrompido pelas instituições ––, é
razoável cogitar de boa fé uma sociedade mais próxima possível da sua essência, na qual as
instituições não sejam corruptoras, e tomem “os seres humanos tais como eles são e as leis
tais como parecem ser”.35 Tomar os seres humanos tais como eles são é tomá-los
precisamente em sua essência –– bons, iguais e livres ––, em oposição a como eles aparecem
na história: desiguais, maus e escravos.
Rousseau resume o objetivo contratualista como “uma forma de associação que
defenda e proteja de toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado e pela qual
cada um se unindo a todos obedeça, todavia, a si mesmo e permaneça tão livre como antes”.36
O meio para que se chegue a esse tipo de associação é a alienação total da liberdade natural,
tendo em troca a liberdade civil, carregada de direitos e deveres. Essa forma de associação
não vai contra a crítica que Rousseau faz a Pufendorf sobre a inalienabilidade da liberdade?
Não seria essa uma forma disfarçada de servidão? Pelo contrário:

[...] a alienação sendo realizada sem reservas, a união é a mais próxima


possível da perfeição e nenhum associado terá mais nada a reclamar; se

34
CASSIRER, Ernst. A questão Jean-Jacques Rousseau; 1999, p. 99.
35
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social: princípios do direito político, 2015, p. 10.
36
Ibidem, p. 20.
23

persistissem quaisquer direitos aos particulares, como não haveria nenhum


superior comum que pudesse decidir entre eles e o público, cada um sendo,
de certa maneira, seu próprio juiz, pretenderia de imediato sê-lo de todos, o
estado de natureza substituiria e a associação se tornaria necessariamente
tirânica ou vã.
Enfim, cada um se dando a todos, não se dá a ninguém, e como não há
nenhum associado sobre o qual não se obtém o mesmo direito que se cede,
ganha-se o equivalente de tudo o que se perde e mais força para conservar-se
o que se tem. (ROUSSEAU, 2015, pp. 20-21)

Em suma, se todos se alienassem absolutamente, o Estado não se corromperia, pois o


déspota é aquele que coloca a vontade particular acima das leis; e se ninguém se alienasse,
seria impossível se manter um estado civil, e regrediríamos à fase anárquica do conflito entre
o direito do mais forte e o de primeiro ocupante. Quanto à servidão, ela consiste em seguir a
vontade de um particular, e não “de todos”. Portanto, esse tipo de alienação é diferente da que
Pufendorf defende.

4.1. Liberdade e igualdade derivadas do pacto social

Através da alienação da liberdade que o homem possui no estado de natureza, o


homem ganha uma nova liberdade, vinculada a direitos e deveres dentro de uma estrutura
política e social. Como dito nos capítulos anteriores, o homem deixa de ser uma criatura
simples para se tornar um ser cuja vontade entra em conflito com a vontade dos outros. Sua
liberdade, antes orientada pelos simples desejos naturais, passa a se utilizar de violência para
atingir certos fins. Esse conflito é resolvido pelo pacto social, através do qual cada ser
humano torna-se um cidadão ao se alienar de sua liberdade natural.
A liberdade humana fica, portanto, subjugada à lei, e se transforma em liberdade
civil: “torna o homem verdadeiramente senhor de si mesmo, pois o impulso do apetite, por si
só, é escravidão e a obediência à lei que se prescreveu, é a liberdade”.37 Ao se alienar de sua
liberdade natural em tal República, cada cidadão não tem de seguir a vontade de um senhor
que lhe determina como agir, como suposto nas consequências finais do Segundo Discurso,
“cada um se dando a todos, não se dá a ninguém”.38
Isso não significa que não haverá diferenças entre ricos e pobres, mas que essas
diferenças não terão qualquer influência nas Assembleias, pois quando todas as desigualdades
econômicas estão niveladas em um ponto que “nenhum cidadão seja tão opulento a ponto de


37
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social: princípios do direito político, 2015, p. 24.
38
Ibidem, p. 21.
24

poder comprar um outro e nenhum tão pobre a ponto de achar forçado a vender-se”,39
estabelece-se uma condição formal de igualdade de condições e igualdade de direitos.
John Rawls estipula três razões para Rousseau estabelecer esse sistema:

(a) Uma dessas razões é para aliviar o sofrimento. Na ausência de


circunstâncias especiais, é errado que apenas uma parte ou grande parte da
sociedade tenha suas necessidades amplamente satisfeitas enquanto alguns,
ou mesmo muitos, são destituídos e sofrem privações, além de doenças
tratáveis e fome. [...]
(b) Uma segunda razão para controlar as desigualdades políticas e
econômicas é para prevenir que uma parte da sociedade domine o resto.
Quando esses dois tipos de desigualdades são muito predominantes, tendem
a andar lado a lado.
(c) Uma terceira razão parece nos aproximar da compreensão do que pode
estar errado com a desigualdade em si. Refiro-me ao fato de as
desigualdades políticas e econômicas significativas estarem associadas
muitas vezes às desigualdades de posição social que podem fazer com que
indivíduos de posição inferior sejam vistos, por si mesmos e pelos outros,
como inferiores. (RAWLS, 2012, pp. 265, 266)

Na primeira razão vemos a corrupção associada ao luxo que Rousseau denuncia


desde o seu Primeiro Discurso: os ricos são opulentos e os pobres miseráveis. O grau de
pobreza que Rousseau enxerga como ideal é um próximo à vida campestre, portanto, natural e
sadio. É no ambiente do campo, longe das cidades, que Emílio será educado. A pobreza da
civilização é baseada na submissão e degrada a humanidade, enquanto a pobreza do campo
torna os homens virtuosos.
Na segunda razão, tal estado de dominação será o do Segundo Discurso: a vontade é
baseada na arbitrariedade, todos são escravos ou do amor-próprio individual ou do amor-
próprio de um senhor.
E por último, na terceira razão, se supõe que uma desigualdade de condições
engendre nas pessoas o erro que Grócio cometeu ao confundir o direito com o fato: concluir
que dos homens serem desiguais, que essa desigualdade tenha fundamento natural e as
pessoas, portanto, devam esperar um tratamento desigual do Estado. Se a disparidade entre
ricos e pobres for elevada, é impossível que ela não corrompa o Estado e as leis. Em dadas
circunstâncias pode ser possível que, quando o rico e o pobre cometam crimes, o rico possa
ser privilegiado pelo Judiciário e ter a pena amenizada, enquanto o pobre deva cumprir uma
pena maior, por vezes tendo cometido um delito menor. Em tal caso a igualdade de direitos e
deveres é puramente formal e não real: o rico possui mais direitos e menos deveres.


39
Ibidem, p. 50.
25

Em um Estado Republicano em que o homem possui uma liberdade moral e


igualdade de condições e de direito perante todos, ele será ao mesmo tempo súdito e soberano,
e não deliberará baseado em sua vontade particular, mas na vontade geral. O que são esses
conceitos para Rousseau?

4.2. Soberania e vontade geral

Diziam que o imperador mongol Genghis Khan (1162 – 1227), para defender sua
dominação entre os povos asiáticos, tinha como máxima: “[a]ssim como só há um sol no céu,
só pode haver um senhor na Terra”. De modo semelhante, para Thomas Hobbes, a soberania é
como a figura desse senhor: fonte de toda justiça do Estado, indivisível, único e dissociado do
povo. O poder do Estado, sendo soberano, seja uma aristocracia ou um monarca, possui poder
centralizador e absoluto sobre os súditos:

A concepção política de Hobbes tende a deixar o leitor insatisfeito, pois o


obriga a escolher entre o absolutismo e a anarquia, isto é, entre um Soberano
com poderes ilimitados e o estado de natureza. Isso porque, conforme insiste
Hobbes: (a) O único modo de escapar ao estado de natureza é estabelecer um
Soberano com poderes tão absolutos quanto possível... (RAWLS, 2012, pp.
93-94)

Para o pensador genebrino, tal concepção de soberano deve necessariamente ser


fonte da justiça do Estado e indivisível, mas não pode ser um particular, visto que a submissão
a uma vontade particular, ainda que em uma sociedade civil, não passa de uma servidão
pacífica. O único modelo de Estado legítimo é o republicano, embora os tipos de governo
(democrático, aristocrático, monárquico) possam ser mais bem adequados de acordo com
determinados tipos de povos.
Um modelo de Estado republicano significa que o povo, sendo soberano, é autor das
próprias leis. Cada homem ao participar da associação está “comprometido sob uma relação
dupla, a saber, como membro do Soberano em relação aos particulares e como membro do
Estado em relação ao Soberano”.40 Essa associação forma um corpo político a que chamamos
de pátria, e esse corpo político produz uma vontade; o homem, enquanto simples particular,
possui uma vontade individual, e enquanto cidadão possui uma vontade geral.
A soberania é inalienável e indivisível. Por inalienável, quer dizer que ela não pode
se submeter à outra soberania ou a uma vontade particular sem, com isso, perder o caráter de

40
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social: princípios do direito político, 2015, p. 22.
26

soberania. Sendo inalienável, não pode ser divisível: se a soberania segue a vontade de um
particular ou de uma potência estrangeira, e não a vontade geral, o Estado se torna dois, e não
um. O poder executivo e legislativo não são divisões da soberania, mas suas emanações de
força e vontade.41
O que é a soberania senão uma convenção baseada em um princípio equitativo de
igualdade de condições e de direitos? Assim como os membros do homem (braços, pernas,
cabeça...) formam o homem por inteiro, a associação livre entre as pessoas derivadas do pacto
formam o corpo do soberano. Portanto, essa convenção é legítima, equitativa, útil e sólida, e
estabelece os limites do poder soberano:

Não é uma convenção do superior com o inferior, mas uma convenção do


corpo com cada um de seus membros – convenção legítima porque tem por
base o contrato social, equitativa porque é comum a todos, útil porque não
pode ter outro objeto senão o bem social, e sólida porque dispõe como
garantia da força pública e do poder supremo. (ROUSSEAU, 2015, p. 34)

Se a vontade da soberania é a vontade geral, o meio de fazer valer a vontade geral é


através das assembleias, pela presença real dos cidadãos e não por representantes. Por essa
razão, Rousseau desprezava o parlamentarismo inglês, pois a vontade geral não pode ser
fragmentada por representantes.
Como se define a vontade geral? Primeiramente, podemos indicar o que a vontade
geral não é. Como já disse, ela não é a vontade de um indivíduo ou de um grupo de
indivíduos, mas “trata-se da vontade de todos os cidadãos como membros da sociedade
política do pacto social”.42 A natureza dessa vontade é caracterizada por ser “uma forma de
razão deliberativa que cada cidadão compartilha com todos os demais por compartilharem
também de uma noção de bem comum”.43
Essa noção de bem comum não é atrelada a um princípio utilitarista de máxima
satisfação das vontades particulares, mas é pautada em condições mínimas para que possamos
satisfazer nossas necessidades em um nível de independência e mútua cooperação, conceitos
que não se excluem dentro do âmbito desse modelo republicano.
Para que se decida sobre o bem comum, é necessário que haja semelhanças entre as
diversas concepções de bem comum que possuem os cidadãos, e essas concepções são dadas
pelas similaridades entre os interesses fundamentais que as pessoas carregam. Se não


41
Ibidem, p. 29.
42
RAWLS, John. Conferências sobre a história da filosofia política. Tradução de Fabio M. Said. São Paulo:
Editora Martins Fontes, 2012, p. 243.
43
Ibidem, p. 243.
27

houvesse interesses fundamentais que ligassem as pessoas apesar das divergências envolvidas
pelos interesses particulares, a própria natureza do pacto não faria sentido. Esses interesses
fundamentais consistem na vontade de todos assegurarem “as condições sociais necessárias à
realização de tais interesses [particulares], através da cooperação social e em termos dos quais
se possam consentir”.44 Para Rawls, os interesses fundamentais

têm prioridade sobre nossos interesses [individuais]: por serem


fundamentais, eles visam às condições essenciais de nossa liberdade e
igualdade, que concretizam as condições de nossas capacidades para o livre-
arbítrio e para a perfectibilidade sem dependência pessoal. Obedecendo às
leis fundamentais devidamente promulgadas em conformidade com a
vontade geral – uma forma de razão deliberativa -, concretizamos nossa
liberdade moral. (RAWLS, 2012, p. 263)

O meio fundamental para a concretização dessa razão deliberativa é o voto. Ao


tomarmos decisões nas assembleias com base nas melhores informações disponíveis,45
passamos nossas concepções de bem comum em uma peneira e tomamos consciência do que
seja o bem comum de fato. Dadas essas condições, a vontade geral será sempre correta, e
mesmo nas piores conjunturas ela é indestrutível, no máximo se encontra ofuscada perante o
predomínio dos interesses individuais.
Concluindo o raciocínio,

Rousseau diz que o grande número de pequenas diferenças – isto é, o grande


número de pequenas influências – muito provavelmente convergirá na
vontade geral. Assim, se o povo for devidamente informado e votar em favor
de sua própria opinião, a votação como um todo muito provavelmente será
correta. O que ele provavelmente quer dizer aqui é que cada voto informado
e consciente pode ser visto como amostra da verdade, e sua probabilidade de
ser correto é consideravelmente maior que 50%. Logo, quanto maior o
número de amostras desse tipo (com mais e mais cidadãos bem informados
votando conscientemente), maior será a probabilidade de que o resultado da
votação convirja em algo que de fato promova o bem comum. (RAWLS,
2012, p. 246)

Ao encerrar a votação e a decisão for tomada pelo poder legislativo, a vontade geral
é declarada, sendo considerada um ato de soberania, e vira lei. Nesse processo de tomada de
decisão e consciência do que o povo em si toma como sendo o bem comum, a lei se torna seu


44
RAWLS, John. Conferências sobre a história da filosofia política. Tradução de Fabio M. Said. São Paulo:
Editora Martins Fontes, 2012, p. 249.
45
Rousseau não supõe apenas um cidadão tomado de um espírito público de optar pelo que é melhor para todos,
mas tomado das informações corretas para poder deliberar corretamente.
28

“princípio constitutivo [...], pretende dominar os cidadãos à medida que, em cada ato
individual, ao mesmo tempo os torna cidadãos e os educa para serem cidadãos”.46

Conclusão

O otimismo humanista de Rousseau supera seu pessimismo histórico com base no


seu projeto de república pautada na reforma das instituições visando à independência do
homem das amarras sociais e à universalidade da dignidade humana, ao mesmo tempo em que
as concilia com nossos laços sociais e deveres cívicos. Com base nessa hermenêutica, não há
em ambas as obras de Rousseau abordadas uma contradição entre o campo da teoria da
natureza humana e sua filosofia política.
Sua obra transita entre a utopia e a realidade: é utópica em pensar uma comunidade
humana na qual todos os cidadãos deliberem publicamente de maneira desinteressada, não
visando interesses pessoais e de grupo, mas a coletividade; e realista no sentido de que essa
comunidade humana é sempre uma possibilidade, e, no olhar romântico de Rousseau, os
genebrinos, espartanos e romanos conseguiram atingir parcialmente essa proeza.
Se, durante sua época, Rousseau já falava que as pessoas haviam esquecido o
significado de “ser cidadão” e “pertencer a uma polis”, que dirá hoje em pleno século XXI,
em que a sensação de distanciamento por parte do homem comum dos acontecimentos
políticos e globais é hegemônica? No pior dos casos, mesmo que o sentido de res publica
tenha se desgastado, e que o objetivo dos magistrados se limite a interesses individuais, o
discurso que eles reverberam é mentiroso tal como o que dá fundamento ao pacto social no
Segundo Discurso. É mentiroso porque mascara interesses pessoais com a ideia de favorecer o
bem comum. Se os políticos fazem questão de mascarar o bem comum com sua concepção de
bem, não é por que ainda haja um consenso de que as pessoas devam agir na vida pública com
base em uma vontade impessoal e desinteressada?
Se analisarmos o embate entre a filosofia política e antropológica de Hobbes e
Rousseau no contexto geopolítico de hoje, Hobbes sempre se mantém vivo em períodos de
possibilidade de crises econômicas e políticas que nos façam temer um estado de guerra, e se
mostra capaz quando potências antidemocráticas e com governo autoritário e centralizador,
como a China, aparecem dominantes no cenário mundial em geração de riqueza e tecnologia.

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CASSIRER, Ernst. A questão Jean-Jacques Rousseau. Tradução de Erlon José Paschoal, Jézio Gutierre;
revisão da tradução por Isabel Maria Loureiro. São Paulo: Editora UNESP, 1999, p. 63.
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Do mesmo modo, Rousseau sai com vantagem quando vemos que há soberanias que
conseguem ser prósperas sem se desviar de pautas orientadas por liberdades individuais e
direitos iguais para todos.
Em suma, a questão Jean-Jacques Rousseau é sobre como podemos aproximar nossa
perfectibilidade –– potência humana que, apesar do grau de desenvolvimento que nos levou,
desde o século XX, nos deixa próximos de catástrofes mundiais –– com um ideal de
preservação da dignidade humana que antecede qualquer período histórico. Para preservarmos
essa dignidade é preciso um esforço consciente de manutenção das instituições sociais a fim
de que o corpo político persista atendendo às condições necessárias para a realização de nossa
auto-preservação e desenvolvimento de nossas faculdades.
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BIBLIOGRAFIA

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Tecnoprint Gráfica, 1969.

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CASSIRER, Ernst. A questão Jean-Jacques Rousseau; tradução de Erlon José Paschoal, Jézio
Gutierre; revisão da tradução por Isabel Maria Loureiro. São Paulo: Editora UNESP, 1999.

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Edson Bini. Bauru, SP: EDIPRO, 2ª ed., 2015.

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Sete ensaios sobre Rousseau; tradução de Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das
Letras, 2011.

WOKLER, Robert. Rousseau; tradução de Denise Bottman. Porto Alegre, RS: L&PM, 2012.
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