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A LIBERDADE EM DOSTOIÉVSKI E SARTRE: UM OLHAR

EXISTENCIAL SOBRE O DIREITO DE AGIR SEGUNDO O


LIVRE-ARBÍTRIO
BRUNO FURTADO

Resumo: A liberdade é um dos temas de maior discussão na história da filosofia. O objetivo


deste artigo, é a procura da concepção de liberdade na obra do romancista russo Fiódor Dos-
toiévski (1821-1881), e do filósofo francês Jean-Paul Sartre (1905-1980), bem como às res-
pectivas consequências geradas à partir do exercício que se refere ao livre-arbítrio. Em ambos,
a liberdade é uma condição fundamental para os seres humanos, e apesar de que a livre esco-
lha diante de situações possa produzir em nós um certo sentimento de angústia, não podemos
fugir dessa responsabilidade, pois poderemos estar agindo de má-fé, desse modo, perdendo a
autenticidade de nossa própria existência.

Palavras-chave: Dostoiévski. Sartre. Liberdade. Existencialismo. Livre-arbítrio.

Abstract: Freedom is one of the most controversial topics in the history of philosophy. The
aim of this article is the search for the conception of freedom in the work of the Russian nov-
elist Fyodor Dostoevsky (1821-1881), and the French philosopher Jean-Paul Sartre (1905-
1980), as well as to the respective consequences generated from the exercise that refers to free
will. In both, freedom is a fundamental condition for human beings, and although the free
choice of situations gives rise to a sense of anguish, we cannot escape this responsibility, be-
cause we can be acting bad faith losing the authenticity of our very existence.

Keywords: Dostoevsky. Sartre. Freedom. Existentialism. Free Will

1. Introdução

Esse artigo procura encontrar as concepções de liberdade, e as respectivas conse-


quências geradas à partir do exercício que se refere ao livre-arbítrio, dentro da obra do escritor
russo Fiódor Dostoiévski, e do filósofo francês Jean-Paul Sartre.
Iniciaremos a investigação sobre o tema proposto, a partir da exposição de três
obras de Dostoiévski: “Memórias do Subsolo (2009), Crime e Castigo (2016), Os Irmãos
Karamazov (2012). E de dois livros auxiliares, sendo uma biografia do autor “Um Escritor em
Seu Tempo” (FRANK, 2018), e outro, que procura apurar uma unidade filosófica na obra de
Dostoiévski “Dostoiévski: Filosofia, Romance e Experiência Religiosa” (PAREYSON,
2012). Adiante, tentaremos encontrar uma forma de descrever o que o escritor acreditava sig-
nificar o conceito de liberdade, e com ela todas as suas consequências no exercício do livre-
arbítrio na vida do homem. Apesar de que Dostoiévski não nos forneça, exatamente, um sis-
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tema filosófico completo, ele nos traz através de seus contos e romances escritos no século
XIX, várias perspectivas psicológicas e sociais profundas (quase sempre trágicas) de temas
como: a miséria, morte, religião, niilismo, culpa, redenção, e sobretudo a liberdade. Ele utiliza
seus personagens, como formas de personificações de ideias e correntes de pensamento, que
ao longo de suas histórias, passam a viver em um constante movimento, sempre em conflito
umas com as outras, trazendo assim, grandes reflexões em forma dialética, sobre os temas que
Dostoiévski põe ao debate. O russo procurava sempre requerer a singularidade e a existencia-
lidade do homem, apesar de sua devota fé em Deus e na crença em sua religião, acreditava
piamente que o homem é guiado por ele mesmo, sendo criador de sua própria história. Deste
modo, lhe é considerado por vários pensadores, como um dos principais percussores do mo-
vimento filosófico do século XX, chamado de “Existencialismo”, este, que teve como princi-
pal expoente Jean Paul-Sartre.
Em um segundo momento, ainda na busca sobre o conceito de liberdade e as suas con-
sequências, iremos examinar essas questões através de Jean Paul-Sartre, um dos principais
filósofos do século XX. Mais especificadamente, em seu livro “O Existencialismo é huma-
nismo” (2014), resultado de uma palestra proferida por ele em Paris, e da obra “No Café Exis-
tencialista” (2017), da autora Sarah Bakewell, que narra toda a história e as características
filosóficas do movimento Existencialista. Sartre, era um convicto ateu e humanista, acreditava
que a liberdade seria a única forma da condição humana, e que todos nós somos livres, ou me-
lhor dizendo, condenados a sermos livres. Essa capacidade de agir conforme o nosso próprio
livre-arbítrio, acaba por trazer, com efeito, uma enorme responsabilidade diante de nossas es-
colhas, pois somos os únicos responsáveis pela construção de nossa própria existência. E di-
ante desses encargos, o indivíduo acaba por produzir em si mesmo um sentimento de angús-
tia, do qual não é possível eliminá-la. E caso se deseje fugir dela, através de desculpas ou mo-
tivos exteriores como a religião, por exemplo, este indivíduo estaria agindo de má-fé, e dessa
forma, assumindo uma existência falsa, ou não autêntica. A obra de Sartre, devido a essa sua
enorme atenção ao tema da liberdade, acabou por influenciar a literatura, cinema, filosofia, e
movimentos sociais ao longo do século XX, principalmente no período do pós-guerra, onde
esse tema estava no centro de muitas discussões.
O estudo sobre a concepção da ideia de liberdade, tem a sua devida importância, por se
tratar de um tema universal e de grande interesse em nossa cultura. Se faz necessário o enten-
dimento dessa questão, pois trata-se de um conhecimento necessário, para a nossa transforma-
ção em seres mais autênticos.
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2. A necessidade da liberdade segundo Dostoiévski

O ponto central da filosofia de Dostoiévski, reside na experiência da liberdade,


sendo uma das experiências mais profundas na vida de um ser humano, de forma com que ela
seja a condição primeira para todas as outras. Dentre as diversas obras em que o russo apro-
fundou sobre o tema, podemos destacar três: Memórias do Subsolo (2009), Crime e Castigo
(2016), e Os Irmãos Karamazov (2012), em que cada uma delas, descreve sob perspectiva di-
ferente sobre os efeitos da liberdade em relação ao ser humano.
Memórias do Subsolo, trata de fragmentos de memórias de um ex-funcionário pú-
blico agora aposentado, um homem que traz em suas lembranças, momentos de sua vida em
que “aparece enredado num conflito entre os aspectos egoístas de seu carácter e os aspectos
solidários e sociáveis que também possui, mas estes últimos são continuamente reprimidos
em favor dos primeiros” (FRANK, 2018, p.502). O protagonista (que não possui nome pró-
prio), possui uma aceitação total do determinismo acerca da vida humana, e de que “o livre-
arbítrio não existe nem pode existir, uma vez que quaisquer ações que o homem atribua à sua
própria iniciativa são, na verdade, resultado das “leis da natureza” (FRANK, 2018, p.504).
Desse modo, a trama segue com o vácuo moral que se origina através dessa condição que o
homem do subsolo acaba acatando. Pois seguindo essa ideia, a culpa e a responsabilidade são
de uma total irracionalidade, e também não possuem algum sentido, visto que os atos realiza-
dos “não são ocasionados” por decisões próprias de cada um, e sim, por relações de casuali-
dades não subjetivas. Porém, mesmo com esse seu entendimento “a consciência e um senso
de dignidade continuam a existir de qualquer modo” (FRANK, 2018, p.505).
Diante desse contexto, o homem do subsolo inicia as suas reflexões, questionando
sobre o que resta do homem, se a liberdade se trata de apenas uma ilusão: “Que é um homem
sem desejos, sem vontades nem caprichos, se não um pedal de órgão?” (DOSTOIÉVSKI,
2009, p.40). Aprofundando ainda mais, começa a relacionar a liberdade como uma necessida-
de inerente do ser humano, mesmo que ela traga efeitos não favoráveis: “O homem precisa
unicamente de uma vontade independente, custe o que custar essa independência e leve aonde
levar.” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p.39). Por fim, ele conclui que a maior vantagem do homem é
a preservação de sua liberdade a todo custo, visto que para isso, ele “pode ser tão arbitrário a
ponto de desejar deliberadamente a infelicidade” (PAREYSON, 2012, p.41).
Em um de seus romances mais famosos, Dostoiévski também aborda o tema da li-
berdade em Crime e Castigo. Na obra, é narrada a história do jovem estudante Raskólnikov, a
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qual, no decorrer da trama, o protagonista acaba apresentando a sua própria tese, que será de-
batida em alguns momentos do romance, onde o mesmo, afirma que:

O “homem extraordinário” tem o direito...ou seja, não o direito oficial, mas ele
mesmo tem o direito de permitir à sua consciência passar... por cima de diferentes
obstáculos, e unicamente no caso em que a execução de sua ideia (às vezes salvado-
ra, talvez, para toda a humanidade) o exija. (DOSTOIÉVSKI, 2016, p.264)

Porém, em um momento de crise, em que ele não possui mais condições de finan-
ciar os seus estudos, e se vê preocupado com o futuro de sua carreira e vida de sua família, ele
“decide livremente matar um ser socialmente daninho e parasita para demonstrar a si próprio
que pertence àquele eleitíssimo número de seres excepcionais aos quais tudo é permitido”
(PAREYSON, 2012, p.45). Dessa forma, o jovem tenta demostrar para si mesmo, a sua pró-
pria liberdade absoluta, e a praticidade de sua tese, acreditando ser ele, um homem extraordi-
nário. Contudo, no momento em que efetuou o assassinato de uma velha agiota, ele acaba por
matar também a sobrinha da primeira vítima, que aparece repentinamente no local do crime.
Após os dois assassinatos, Raskólnikov acaba sentindo uma forte culpa sobre o ato cometido
durante toda a trama, onde se inicia todo um forte tormento psicológico no protagonista. Que
por fim, depois de tanto sofrimento, e de viver com a consciência do crime, acaba se arrepen-
dendo da ação e se entrega à polícia para ser preso.
Já em Os Irmãos Karamazov, que é sem dúvida a obra-prima de Dostoiévski, ro-
mance complexo, que ao longo da narrativa, explora várias questões acerca de temas como a
natureza humana, moral e religião. A trama gira em torno do conflito entre a fé e a razão, e do
famoso questionamento “Se Deus não existe, tudo é permitido?”. Esses temas possuem como
agente principal, o intelectual ateu Ivan Karamazov, que constantemente vive angustiado, de-
vido à perda de sua fé na ordem das coisas e no mundo. Em relação a liberdade, ao longo do
romance, Ivan cita a Lenda do Grande Inquisidor, um poema que situa-se na Espanha do sé-
culo XVI, onde Cristo aparece novamente. Assim que a população reconhece Cristo, o Gran-
de Inquisidor manda prender Cristo, e o visita na prisão para fazer acusações ao mesmo, afir-
mando que o motivo do sofrimento da humanidade, e a fonte de sua miséria, é o peso do livre-
arbítrio defendido por Cristo, e continua dizendo que os homens “nunca poderão ser livres
porque são fracos, pervertidos, insignificantes e rebeldes” (DOSTOIÉVSKI, 2012, p.351). O
Inquisidor continua relatando que o mundo moderno proclamou a liberdade, e dela, resulta-se
a multiplicação das necessidades, com efeito “Para os ricos o isolamento e suicídio espiritual,
para os pobres, a inveja e o assassinato” (DOSTOIÉVSKI, 2012, p.426). Fica claro que para
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Ivan Karamazov, não há nada mais angustiante do que a liberdade, e ao fim do romance, ele
acaba tendo alucinações em que o Diabo, onde o mesmo, fica zombando de suas ideias niilis-
tas.
Como se pode perceber em algumas de suas obras, para Dostoiévski, a liberdade é
uma necessidade moral e psicológica da personalidade humana, mesmo que isso resulte em
efeitos dramáticos, como podemos observar em Raskólnikov e na Lenda do Grande Inquisi-
dor. Para nos aprofundarmos nessa questão, tomaremos a obra “Dostoiévski: Filosofia, Ro-
mance e Experiência Religiosa” de Luigi Pareyson como guia. Esse registro, diz respeito a
um curso ministrado pelo filósofo italiano sobre “O Pensamento Ético de Dostoiévski” em
1967, que se apresenta como um curso de filosofia moral, retratando os principais tópicos do
pensamento dostoievskiano. Desse modo, podemos conceber que para Dostoiévski, a liberda-
de real, trata-se de uma liberdade fundamental, ou seja, “a liberdade de escolher entre o bem e
o mal, a liberdade de decidir entre a rebelião e a obediência, a liberdade de recusar ou de re-
conhecer o princípio do ser e do bem.” (PAREYSON, 2012, p.133). Podemos encontrar em
Dostoiévski, a divisão da liberdade em dois sentidos, o primeiro, seria a obediência a Deus, e
o segundo, a serviço do demônio, onde “o significado último do destino do homem e da histó-
ria humana está na luta entre Deus e o demônio, entre o bem e o mal, [...], entre a positividade
esperada escatologicamente e a negatividade vivenciada temporalmente. (PAREYSON, 2012,
p.40). E seria nesse embate entre os dois lados, que o homem deveria exercer o seu livre-
arbítrio, nessa “dialética da liberdade, que constitui o eixo central do pensamento de Dostoié-
vski.” (PAREYSON, 2012, p.40).
Apesar de Dostoiévski, avaliar o bem como a melhor propensão a se ter nos mo-
mentos de escolha, para ele, eliminar a possibilidade de escolha entre o bem o mal, mesmo
com a possibilidade de preferir o mal, não seria algo de grande estima, visto que “o bem não é
verdadeiramente tal se é imposto ou se é necessário. O bem é constituído como tal pela possi-
bilidade de acolhê-lo ou recusá-lo.” (PAREYSON, 2012, p. 134). Dessa forma, a imposição
do bem, que ocasiona a eliminação completa da liberdade primária, acaba se tornando algo
tão insatisfatório, quanto a própria escolha do mal. Essa experiência da liberdade, acaba se
tornando a única possibilidade de realização do bem.
Mesmo acreditando que não se deve limitar a liberdade de escolhas afim de impor
o bem, Dostoiévski alerta, que a liberdade utilizada de forma aleatória e ilimitada, acaba acar-
retando para o próprio sujeito, sérias consequências desagradáveis: “A afirmação da liberdade
arbitrária e sem lei traz consigo a indistinção entre bem e o mal, melhor, a equivalência entre
eles: nasce daí a mais absoluta falta de senso moral, o amorismo total, a indiferença por qual-
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quer valor” (PAREYSON, 2012, p.42). Mais adiante, “o amoralismo e a indiferença trazem
consigo a morte da alma, a inércia do coração, a mais fria insensibilidade” (PAREYSON,
2012, p.49). Podemos encontrar essa questão em Crime e Castigo com Raskólnikov, onde o
estudante na intenção de exercer a sua liberdade de forma totalmente exagerada, acaba por
perder a noção do quão condenável é realizar um assassinato de um ser humano, fato esse rea-
lizado, que viria posteriormente se transformar em grande sofrimento e culpa para o mesmo.
Esse sentimento de culpa, tão presente na obra de Dostoiévski, é para o escritor russo, o único
meio de salvação para o homem. Para isso, é necessário que o homem não se sinta culpado
apenas por suas próprias culpas individuais, e sim, que se senta culpado por todas as culpas
individuais de todos os outros homens, onde cada um deverá ser culpado por tudo e por todos.
Pois:

Somente se cada um de nós se reconhecer culpado dos pecados de todos os outros e


aceitar responder por eles, somente se cada um de nós não somente assumir a res-
ponsabilidade por culpas não cometidas, mas também reconhecer-se mais culpado e
mais pecador do que todos os outros, somente então estaremos em condições de
amar os outros não só no bem mas também no mal, [...], De tal modo, realizar-se-á,
no perdão recíproco ou no amor universal, a unidade dos homens entre si: a justiça
será absorvida no amor, a salvação de cada um será indivisível da salvação dos ou-
tros e realizar-se-á, pelo menos em esboço, o reino celeste. (PAREYSON, 2012,
p.42).

Por fim, podemos compreender também em sua obra, que a liberdade é parte es-
sencial do ser humano, sem ela, e sem a responsabilidade do peso das escolhas, o homem per-
de a sua essência, acaba-se despersonalizando e se tornando indigno: “Sem a liberdade huma-
na não existe nem responsabilidade nem culpabilidade humana: o homem não tem dignidade e
o mal não existe. Aqueles que [...] negam a oportunidade da punição lesam a dignidade do
homem e rebaixa-o a simples produto das circunstâncias” (PAREYSON, 2012, p.77).

3. A Condenação do homem segundo Sartre

O filosofo francês Jean-Paul Sartre, teve grande parte de sua obra filosófica e lite-
rária voltada para o tema da liberdade. Sartre é o principal expoente de uma importante cor-
rente de pensamento que surgiu na França no século XX, influenciada por filósofos como
Heidegger, Nietzsche, Kierkegaard, e também pelo próprio Dostoiévski. Essa escola filosófica
é denominada como “Existencialismo”, onde a liberdade é um dos seus principais pilares,
tendo suas investigações, partindo sempre do subjetivo, se interessando especialmente pela
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própria experiência humana concreta e real. O movimento não era em sua totalidade homogê-
neo, apesar de que o ponto central das obras existencialistas serem bastante próximas umas
das outras, os existencialistas basicamente se dividiam em duas categorias:

Os primeiros, que são cristãos, e entre os quais eu listaria Jaspers e Gabriel Marcel,
de confissão católica; e, por outro lado, os existencialistas ateus, entre os quais é
preciso colocar Heidegger, e também os existencialistas franceses e eu próprio. O
que eles têm em comum é simplesmente o fato de considerarem que a existência
precede a essência. (SARTRE, 2014, p.18).

É com base nessa afirmação “A existência precede a essência”, que o Existencia-


lismo vai se debruçar em as suas obras, tanto filosóficas como literárias ao longo do século
XX. Essa formulação definidora, traz consigo uma mudança de paradigma referente a uma
questão ontológica dos seres. Desde a idade antiga, acreditava-se que nós seres humanos, as-
sim como os animais e as coisas, fomos criados com um propósito, onde teríamos uma natu-
reza humana definida desde o nascimento até a nossa morte. Podemos dizer que ela seria a
nossa “essência”, que já estaria assim determinada por toda a nossa vida. O que essa nova
afirmação dita por Sartre nos mostra, é que segundo ele e os filósofos existencialistas, não há
uma natureza humana pré-determinada, e sim, que a nossa “essência”, é criada constantemen-
te pelas nossas próprias ações ao longo da vida, desde o primeiro instante da consciência até o
momento de nossa morte:

O homem existe primeiro, se encontra, surge no mundo, e se define em seguida. Se


o homem na concepção do existencialismo, não é definível, é porque ele não é, ini-
cialmente, nada. Ele apenas será alguma coisa posteriormente, e será aquilo que ele
se tornar. Assim, não há natureza humana, pois não há um Deus para concebê-la.
(SARTRE, 2014, p.19)

Como já exposto acima, Sartre pertencia à divisão dos existencialistas que eram
ateus, estes “Se perguntavam como podemos viver uma vida dotada de sentido na ausência de
Deus. Todos escreviam sobre a angústia e experiência de se sentirem esmagados pela esco-
lha” (BAKEWELL, 2017, p.17). Eles usavam de seus esforços, para tentar encontrar respostas
a esses problemas, do peso da liberdade em nossas escolhas, do desemparado causado pela
falta de fé em Deus, resultado de uma sociedade moderna em que aos poucos foi ficando cada
vez mais distante das religiões, que nortearam toda a civilização ocidental por quase dois mi-
lênios.
Ao longo da nossa vida, somos sempre colocados em uma posição de escolha, li-
vres para decidir o que devemos ou não fazer. Mesmo no momento em que optamos por não
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realizar alguma decisão, estaremos escolhendo de uma forma ou de outra, nessa situação, op-
tando por não decidir. O problema dessa concepção, é de que não há indicativos sobre qual
seria o melhor caminho a escolher, não existe nenhuma regra a priori que sinalize o que de-
vemos fazer diante de certas situações. Mesmo que se acredite que somos guiados por leis
morais, ou pelo nosso perfil psicológico, ou por antigas experiências, todos esses elementos
podem ter alguma influência, porém eles apenas somarão à “situação” em que você se encon-
tra, no qual apenas à partir desse ponto, é que você mesmo decidirá como agir segundo a sua
própria vontade. É diante desse contexto, que se tem a famosa citação de Sartre em que “O
homem está condenado a ser livre”, visto que “Condenado, pois ele não se criou a si mesmo,
e, por outro lado, contudo, é livre, já que, uma vez lançado no mundo, é responsável por tudo
que faz.” (SARTRE, 2014, p.24).
Essa capacidade de assumir escolhas, acaba resultando por consequência, segundo
Sartre, em uma responsabilidade total para a existência de cada ser humano. No momento em
que o homem realiza a sua escolha, a decisão reflete sobre o que ele considera ideal para toda
a humanidade. Desse modo, além de decidir por nós, acabamos por escolher por todos os ho-
mens também, pois:

Não existe um de nossos atos sequer que, criando o homem que queremos ser, não
crie ao mesmo tempo uma imagem do homem conforme julgamos que ele deva ser.
Fazer a escolha por isso ou aquilo equivale a afirmar ao mesmo tempo o valor da-
quilo que escolhemos, pois não podemos nunca escolher o mal; o que escolhemos é
sempre o bem, e nada pode ser bom para nós sem sê-lo para todos. [...]. Assim, nos-
sa responsabilidade é muito maior do que poderíamos supor, pois ela envolve a hu-
manidade com um todo. (SARTRE, 2014, p.20-21)

Essa responsabilidade exacerbada criada através de nossas ações, acaba gerando


um sentimento de angústia, que é acompanhada por um certo desamparo. Pois não temos um
Deus, ou uma natureza humana que nos determine, não há algo em que possamos nos agarrar
diante de nossas escolhas sobre o que desejamos ser, e também por “decidir” sobre o que será
da humanidade. Devemos assumir isto, a partir do momento em que não tomamos pra si essa
responsabilidade, estaremos agindo por má-fé. Todo homem que se esconde atrás de suas pai-
xões, ou do determinismo (assim visto em Memórias do Subsolo), como formas de desculpas
pelas suas ações, está optando por uma vida não autêntica e não sincera consigo mesmo. Dado
que “Se evitarmos essa responsabilidade enganando-nos e fazendo de conta que somos víti-
mas das circunstâncias ou dos maus conselhos de outra pessoa, deixamos de atender às exi-
gências da vida humana e escolhemos uma falsa existência (BAKEWELL, 2017, p.17).
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4. A liberdade como condição fundamental da responsabilidade e dignidade humana

Diante do cenário apresentado sobre a concepção de liberdade entre esses dois


grandes pensadores, podemos observar, que apesar da divergência de ideia em relação a ques-
tão religiosa e de crença entre Dostoiévski e Sartre, ambos possuem uma convergência no que
tange o tema da liberdade, mais precisamente no campo ético. Podemos considerar que a li-
berdade para ambos, é uma condição fundamental para a responsabilidade e a dignidade hu-
mana. Sartre e Dostoiévski, acreditam que somos todos responsáveis não só pelas nossas pró-
prias escolhas, mas também, responsáveis por toda a humanidade. Eles consideram, que esse
enorme peso que recaí sobre o indivíduo, acaba por trazer uma grande angústia, e é nesse pon-
to em que cada um dos dois, nos traz uma forma de confrontar esse problema.
Para Dostoiévski, necessitamos assumir essa enorme responsabilidade e culpa,
tanto dos nossos erros, quanto de todos os homens, pois, só diante disso, que podemos exercer
o perdão sincero, e praticando a justiça com base no amor, do mesmo modo que foi proposto
por Cristo: “O sentimento da culpa universal e da responsabilidade solidária, o dever do per-
dão recíproco e do amor universal são, assim, o único meio de salvação para o homem” (PA-
REYSON, 2012, p.96). Já Sartre, diferente do que acredita Dostoiévski, considera que não é
possível eliminar essa angústia resultante dessa responsabilidade total, precisamos assumir, e
aprender a conviver com ela, pois esse sentimento é intrínseco ao ser humano, e como afirma-
do anteriormente, assim que o homem “Uma vez lançado no mundo, é responsável por tudo
que faz” (SARTRE,2014, p.24).
Por fim, os dois autores consideram que a aceitação dessa responsabilidade, é um
elemento essencial na constituição da dignidade humana. Para Sartre, a rejeição desse peso
em relação ao compromisso com a humanidade, acarreta em uma vida guiada pela má-fé, per-
dendo a autenticidade que faz com que a nossa vida tenha valor, e de uma existência que va-
lha à pena. Em Dostoiévski, a eliminação dessa carga da responsabilidade, e liberdade, mes-
mo quando o indivíduo venha a escolher à praticar más ações, acaba se tornando “Um verda-
deiro insulto à dignidade humana, um desconhecimento do que constitui o próprio coração da
personalidade do homem, a saber, a liberdade” (PAREYSON, 2012, p.76).

Considerações finais
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O presente artigo pretendeu expor e analisar a concepção da liberdade em Dostoi-


évski e Sartre. Verificamos que apesar de ambos os pensadores possuírem visões teológicas
diferentes, eles possuem uma visão muito parecida sobre o tema que foi proposto. A liberdade
seria um fundamento radical na vida humana, e essa condição de todos, de agir segundo o seu
livre-arbítrio, tende a originar com efeito, um forte sentimento de angústia, devido ao peso em
que os indivíduos possuem nas escolhas de suas ações, que acabarão por alterar além de seus
próprios futuros, a posteridade de toda a humanidade. Essa aflição resultante de uma enorme
responsabilidade causada pela total liberdade que cada um de nós possuímos, é algo que faz
parte de nós, e que não é possível eliminá-la. Tanto Sartre, como Dostoiévski, nos passam
formas de confrontar esse problema, cada um, influenciado pela sua forma de crer ou não em
Deus. O que ambos consideram, é de que à partir do momento em que se tenta fugir dessa in-
quietude e responsabilidade, acabamos por cair em uma falsa existência, perdendo a autenti-
cidade e a dignidade, rebaixando o homem a um simples produto das circunstâncias.
O tema da liberdade que já esteve com um grande destaque em tempos passados,
principalmente na era pós-guerra, está voltando a ficar em evidência nos debates e reflexões
atuais. Devido ao atual avanço da tecnologia, que acaba por nos controlar e vigiar em um alto
grau jamais visto, necessitamos desse direto de agir e pensar livremente, conforme as nossas
próprias vontades, para que possamos manifestar o nosso ser de forma independente, na pre-
tensão de viver uma existência digna e autêntica. Para isso, é fundamental refletir e agir com
liberdade, tendo em mente, as responsabilidades que são originadas pelo exercício do livre-
arbítrio, tal como o fizeram Sartre e Dostoiévski.

Referências

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime e Castigo. Tradução de Paulo Bezerra. 7º. ed. SP: Editora
34, 2016.

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Memórias do Subsolo. Tradução de Boris Schnaiderman. 6. ed. SP:


editora 34, 2009.

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os Irmãos Karamázov. Tradução de Paulo Bezerra. 3. ed. SP: edi-
tora 34, 2012.
1

FRANK, Joseph. Um Escritor em Seu Tempo. Tradução de Pedro Maia Soares. 1. ed. SP:
Companhia das Letras, 2018.

PAREYSON, Luigi. Dostoiévski: Filosofia, Romance e Experiência Religiosa. Tradução de


Maria Helena Nery Garcez e Sylvia Mendes Carneiro. 1. ed. SP: Editora da Universidade de
São Paulo, 2012.

SARTRE, Jean-Paul. O Existencialismo É Um Humanismo. Tradução de João Batista


Kreuch. 4. ed. RJ: Vozes, 2014.

BAKEWELL, Sarah. No Café Existencialista. Tradução de Denise Bottman. 1. ed. RJ: Obje-
tiva, 2017.

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