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FEMINISMO ANTIPREDICATIVO?
RESUMO
PALAVRAS-CHAVE:
KEYWORDS:
1
Bacharela em História pela USP (2012), Mestra em Humanidades, Direitos e outras legitimidades pelo
Diversitas/USP (2016) e Doutoranda pela mesma instituição. Dissertação de Mestrado disponível em:
http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8161/tde-21112016-151109/pt-br.php E-mail para contato:
lariguetokunaga@gmail.com
INTRODUÇÃO
Uma leitura inicial dos ensaios produzidos por Emma Goldman tende a ser permeada
por uma admiração e, concomitantemente, por um questionamento. Enquanto sua eloquência
parresiasta se torna patente à medida em que se toma contato com sua retórica argumentativa,
a interrogação acerca do porquê da ausência de termos como “feminista”/”feminismo” em sua
obra vai surgindo paulatinamente, sobretudo porque nossa atualidade está marcada por palavras
de ordem como o “empoderamento” das mulheres. Seus discursos altissonantes não apresentam
autoafirmações peremptórias de alguma bandeira, de modo que perscrutar as vias
“revolucionárias” defendidas pela autora implica em uma desconstrução do próprio ideário
embutido na palavra “revolução”. Leitora de Bakunin (1814-1876), conviva de Kropotkin
(1842-1921), contemporânea da Revolta de Haymarket (1886) e da Revolução Russa (1917),
Goldman não descurava das lutas sociais contra a iniquidade presente nas relações de trabalho.
Contudo, como La Boétie (1530-1563), lhe interessava também saber como resistir à “servidão
voluntária” dos sujeitos. Ou seja, o desafio de lutar contra os “tiranos internos”2 do próprio eu
está no escopo da autora, o que revela um prisma de “revolução” que conjuga indivíduo e
sociedade de forma inextricável.
Alguns estudos norte-americanos sobre a obra de Goldman já versaram sobre a
capacidade desta de articular foro privado e público em uma mesma esfera de demandas por
autonomia. Como exemplo fulcral dessas investigações, pode-se citar a acurada obra Tongue of
Fire, de Donna Kowal3. Trata-se de uma análise hermenêutica dos ensaios da anarquista, com
viés em estudos da comunicação. A análise reconhece o desprendimento da militante em relação
a identidades antagonistas de sexo. Contudo, não se verificou um adensamento dos estudos
existentes em direção à problemática da subjetividade antipredicativa desenvolvida pela autora.
E por “antipredicativa”4, leia-se uma superação dos binarismos, das identidades, uma abertura
das subjetividades ao devir, ao ser-em-processo. Acredita-se, pois, que uma abordagem
2
Expressão empregada por Emma Goldman no ensaio “A Tragédia da Emancipação Feminina”. In: Mother Earth,
1906.
3
KOWAL, Donna. Tongue of Fire: Emma Goldman, Public Womanhood, and the Sex Question. Albany: State
University of New York Press, 2016.
4
Conceito inspirado na obra do filósofo Vladimir Safatle. Vide: O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo
e o fim do indivíduo. 2ª ed. São Paulo: Autêntica Editora, 2016.
interdisciplinar que busque conjugar os diálogos filosóficos, históricos e psicanalíticos pode
contribuir para uma compreensão menos unilateral das proposições da militante.
Como não basta atestar que a questão do sexo feminino, para Goldman, não é uma
essência, torna-se imperativo ir além, isto é, se faz necessário perquirir como ela concebe a
própria subjetividade humana. E, nesse sentido, a abordagem hermenêutica não basta.
Considera-se importante cotejar a obra da anarquista com outros referenciais, tais como o
pensamento de filósofos críticos da modernidade, arcabouços teóricos desenvolvidos pela
historiadora Margareth Rago5 – sempre atenta às subjetivações feministas –, aparatos
conceituais forjados por Freud6, conformando-se, pois, um prisma holístico de interpretação.
A fim de que se compreenda essa concepção de autonomia subjetivante que Goldman
parece sustentar, realizar-se-á no presente artigo um cotejo entre a concepção de
individualidade – que a autora esboça no bojo do ensaio Sufrágio feminino (1911) – e a de
“único”, delineada em O Único e sua propriedade (1844), de Max Stirner (1806-1856). Este
último filósofo, cuja esteira foi seguida em alguma medida pela militante, tem uma proposição
de autonomia que rechaça qualquer tipo de mediação, atribuindo unicamente ao indivíduo a
prerrogativa inerente do egoísmo. Leia-se “egoísmo” não no sentido de narcisismo, mas sob o
viés de um sujeito indelegável. Rompendo, pois, com identidades hipostasiadas, os autores
apostam em uma imanência que não anula a individualidade nem anui a modelos externos.
Ademais, a incursão no arcabouço teórico propiciado por Michel Foucault em A
Hermenêutica do sujeito (1981-1982) será profícua, emprestando conceitos como o “cuidado
de si” para o diálogo transversal com essa individualidade antipredicativa propugnada por
Goldman e Stirner.
DESSACRALIZANDO AS MEDIAÇÕES
De antemão, torna-se necessário destacar que o substrato comum aos autores cujas obras
aqui são confrontadas pode ser entrevisto como antimoderno, uma vez que as críticas de ambos
5
Cf. RAGO, Margareth. Anarquismo e feminismo no Brasil. Rio de Janeiro: Achiamé, 2007. RAGO, Margareth.
“Mujeres Libres: anarco- feminismo e subjetividade na Revolução espanhola”. In: Revista Verve, nº 7, 2005, pp.
132-152.
6
FREUD, Sigmund. O mal-estar na cultura (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de
Sigmund Freud, Vol. 21). Rio de Janeiro: Imago, 1996. Disponível em: http://conexoesclinicas.com.br/wp-
content/uploads/2015/01/freud-sigmund-obras-completas-imago-vol-21-1927-1931.pdf Acesso em 05 de
setembro de 2018 (Originalmente publicado em 1929).
apontam para a falência do projeto moderno de secularização que estaria entranhado no ideário
de progresso e racionalização do mundo ocidental. A dominação do sujeito estaria atrelada,
pois, a categorias de matriz religiosa que seriam hipostasiadas. Goldman não se furta, no âmbito
do ensaio “O Sufrágio Feminino”, a ironizar a instituição do sufrágio como uma divindade.
Segundo ela:
Orgulhamo-nos desta era de avanço, de ciência e de progresso. Desta forma,
não é estranho que ainda acreditemos no culto do fetiche [sic]? É verdade que
os nossos fetiches têm uma forma e substância diferentes mas, ainda assim,
no poder que têm sobre a mente humana eles continuam a ser tão desastrosos
quanto os antigos.
O nosso fetiche moderno é o sufrágio universal. Quem ainda não alcançou
esse objetivo trava batalhas sangrentas para o obter, enquanto quem já gozou
dos seus prazeres leva enormes sacrifícios ao altar desta divindade
omnipotente. Cuidado, herege que se atreva a questionar esta divindade!
(GOLDMAN, 1911, p. 117)
A história das atividades políticas dos homens prova que estas não lhe deram
absolutamente nada que eles não teriam conseguido alcançar de uma forma
mais direta, menos custosa e mais duradoura. Na verdade, cada centímetro de
terra que eles conseguiram foi através de um combate constante, uma luta sem
fim pela autoafirmação, e não através do sufrágio. (GOLDMAN, 1911, p. 127)
Note-se, aí, que, mais uma vez, a autora se refere indistintamente a homens e mulheres
a partir do sentido genérico de humanidade, atribuído a “homens”. O niilismo de Goldman,
inspirado inclusive em Nietzsche, também citado nesse artigo, tem como alvo o ideal de política
alçado a um patamar de idolatria. Ou seja, ela tenciona refutar os modelos de instituição
sacralizados e essencializados pelo poder, dentre os quais o padrão de individualismo alienado.
Não à toa, o modelo de cidadão norte-americano, pautado em uma jactada liberdade
ideologicamente aferrada às instituições, seria posto em xeque pela militante. Ou seja, de nada
adiantaria às mulheres a tentativa de emular os homens no direito ao voto.
Nesse sentido, Emma Goldman assevera: “não acredito que as mulheres farão da política
algo melhor ou pior” (GOLDMAN, 1911, p.127). Ceticismo, este, que estaria no cerne do
egoísmo do “único” ensaiado por Stirner. Para o filósofo, os sujeitos se anulariam a partir da
subsunção de suas vontades a abstrações, de modo que a subtração da liberdade seria uma
consequência direta dessa delegação consentida dos poderes individuais. Haja vista que a
militante propugna justamente a não-identificação das mulheres a algum padrão, bem como a
não-adaptação delas a alguma norma pré-existente, o “nada” de Stirner incita a pensar nessa
autodeterminação proposta. Segundo o autor, “o nada que eu sou não o é no sentido da vacuidade,
mas antes o nada criador, o nada a partir do qual eu próprio, como criador, tudo crio. ”
(STIRNER, 2004, p.10) Tratar-se-ia de uma individualidade antipredicativa que Goldman sugere
que as mulheres adotem, de modo a não se submeterem a expectativas socialmente vigentes.
Tanto parece ser assim, que a autora afirmaria:
Tendo em conta que o grande infortúnio das mulheres tem sido o facto de ser
olhada ou como anjo ou como demónio, a sua verdadeira salvação reside na
possibilidade de ser colocada na terra, ou seja, em ser considerada humana
e, portanto, sujeita a todas as loucuras e erros humanos. (GOLDMAN, 1911,
p.119)
INDIVIDUALIDADE HUMANA
7
Cf. GOLDMAN, Emma. Minha Desilusão na Rússia. Nova Iorque: Doubleday, 1923.
esse é o ponto candente de sua crítica a arquétipos femininos pautados no puritanismo, na
instituição do matrimônio, na reivindicação sufragista.
Ao mesmo tempo em que as especificidades de sua época são patentes, a atualidade do
discurso de Goldman é atilada. Não à toa, seu ideário teria sido resgatado pela segunda onda
feminista a partir dos anos 60. Contudo, a individualidade que ela propugna não corresponderia
ao individualismo sancionado pelo Estado e pelo mercado, mas à livre vazão dos afetos. Seu
posicionamento de resistência, assim como o de Pagu8 (1910-1962), foi crivado por uma
consciência dos opróbrios da industrialização, da objetificação da mulher operária, da
importância das expressões artísticas como política contra-hegemônica.
Tendo atuado na área obstétrica, Goldman teria um viés interdisciplinar sobre a questão
da emancipação da mulher. O “cuidado de si” envolveria uma dimensão corporal e psicanalítica
indescurável, o que pode ser verificado pelo emprego constante de termos como: “natureza”,
“corpo”, “alma” no artigo “ O Sufrágio feminino”. Apesar da problemática central do referido
ensaio versar sobre a reivindicação do direito ao voto, a abordagem vai ao encontro de
referenciais inspirados em Freud, sobretudo em virtude das múltiplas referências ao fetiche, aos
ideários introjetados inconscientemente pelas mulheres. E em outros ensaios, a militante
mencionaria os “instintos individuais” como algo inextricável da própria configuração social,
embora os poderes vigentes tencionem reprimi-los constantemente.
A obra “O Mal-estar na Cultura”, de Freud, aludiria justamente à aporia dos sujeitos que
teriam o “princípio do prazer” socialmente represado pelas convenções e autoridades sociais.
Conforme uma passagem emblemática:
8
Cf. trecho do romance de Pagu: “O voto para as mulheres está conseguido! E as operárias? Essas são excluídas
por natureza.” In: GALVÃO, Patrícia. Parque Industrial. 3. ed. Porto Alegre; São Carlos: Mercado Aberto;
EDUFSCar, 1994.
Por conseguinte, facultar a livre expressão dos impulsos vitais seria considerado pela
militante como algo mais significativo do que o alcance do direito ao voto. Para sintetizar a
concepção de autonomia defendida por Goldman, pode-se recorrer a um excerto do ensaio
“Anarquismo: o que realmente significa”? A ideia de individualidade humana nele expressa é
elucidativa:
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FERGUSON, Kathy. “E.G.: Emma Goldman, For example”. In: TAYLOR, Dianna;
VINTGES, Karen. (Orgs.). Feminism and the Final Foucault. Urbana and Chicago:
University of Illinois Press, 2004.
_________________. Ditos e Escritos, vol. III. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na cultura (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud, Vol. 21). Rio de Janeiro: Imago, 1996.
GALVÃO, Patricia. Parque Industrial. 3. ed. Porto Alegre; São Carlos: Mercado Aberto;
EDUFSCar, 1994.
KOWAL, Donna. Tongue of Fire: Emma Goldman, Public Womanhood, and the Sex Question.
Albany: State University of New York Press, 2016.
NEWMAN, Saul. “War on the State: Stirner and Deleuze’s Anarchism”. In: The Anarchist
Library. 2009.