Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
RESUMO
Ao longo de sua obra, Hannah Arendt teceu uma imbricada crítica à Modernidade
Ocidental, esta iniciada entre os séculos XVI e XVII. Tal crítica pautou-se sobretudo no
alarme acerca do rompimento de uma certa tradição de pensamento político que desvalorizou
o campo da política. Essa tradição de pensamento político consistia numa submissão da
política à filosofia, ao “mundo das idéias”, onde o saber estava distante da realidade prática.
Para Arendt, essa tradição teve início com Platão, foi valorizada durante o período do Império
romano e da ascensão da Igreja católica, para sofrer ataques a partir das filosofias de Sören
Kierkegaard [1813-1855], de Karl Marx [1818-1883] e de Friedrich Nietzsche [1844-1900],
quando, então, no século XX se rompe completamente frente aos eventos totalitários,
prejudicando a participação das pessoas num espaço público compartilhado, em outros
termos, no espaço da política.
Diante do fim dessa tradição, nada foi colocado em seu lugar, nada que pudesse dar
alguma segurança, algum sentido a ser referenciado. A política, que fora colocada a escanteio
no traçado dessa tradição de pensamento político, não teve ferramentas que possibilitassem
sua ascensão. As conseqüências disso seriam graves à sobrevivência moral e literal da
humanidade. Essa era a preocupação que percorreu toda a obra de Hannah Arendt: o que é
2
possível entendermos e fazermos para evitar que adventos tão absurdos, como o Holocausto,
não fossem possíveis, ou mesmo não fossem repetidos. Era preciso reencontrar-se com esta
história não apenas para evitar que o terror se repetisse, mas principalmente para lhe dar um
sentido. Assim, de fato, poderíamos entrar em contato com nós mesmos, com nossas ações no
mundo e compreender o ocorrido. Era preciso, então, lançar luz sobre esse passado.
Sua análise sobre os diversos temas com os quais trabalhou, partia sempre de uma
situação contemporânea, estampada na realidade vivida, para, em seguida, buscar o quê, de
essencial, estava mobilizando o presente. Apesar de ter utilizado uma diversidade
metodológica, Arendt nunca discutiu as questões metodológicas que envolviam seu trabalho.
Seus escritos continham apenas observações em tópicos e, raramente ela falou explicita e
detalhadamente acerca de seu método de pensar. Em alguns momentos, houve o esforço de
enquadrá-la como uma filósofa política, e seu trabalho foi nomeado como um “method of
political thinking”, cuja preocupação fundamental seria compreender a dimensão política da
ação humana. Para tal, Arendt deixava de lado a problemática metodológica e procurava
avançar no que entendia ser essencial para a compreensão. Para Arendt, as concepções
disponíveis na ciência e na filosofia políticas muitas vezes eram insuficientes para o
entendimento de alguns fenômenos, como foi o caso do totalitarismo que não poderia ser
explicado com o que se tinha até o momento, justamente por se tratar de um fenômeno inédito
e, portanto, jamais pensado.
É notório que Arendt não tinha a intenção de criar teorias explicativas que pudessem
categorizar os fenômenos. Valorizava as narrativas de experiências realizadas por aqueles que
pudessem dar sentidos aos acontecimentos. Abandonou a busca por verdades metafísicas tal
como Martin Heidegger [1889-1976], seu antigo professor, trabalhava. Suas ferramentas
metodológicas não se limitaram às ferramentas da filosofia que buscam o caminho das
essências e dos conceitos puros. Arendt valorizava as histórias pessoais, desde que pudessem
ser vistas com olhos “coletivizados”, desde que não dirigissem a percepção para o interior dos
sentimentos, para um Dasein a ser descoberto, mas para os aspectos morais que, mobilizados
pelos seres humanos, por cada um deles, ficassem explicitados em suas experiências.
que a teoria quer dissolver, uma vez que sua pretensão não é determinar um caminho,
apresentar uma única solução, nem controlar o percurso histórico, mas reter, formar e contar
uma história a partir dos indeterminados acontecimentos humanos. É isso que possibilita uma
efetiva reconciliação entre o pensamento e as coisas humanas. O pensamento “narracional”
não está preocupado com a história do ser, mas, sim, em encontrar significação nas
contingentes ações humanas.
Para o interesse desse trabalho, longe de tomar partido por aqueles que discordaram
das observações de Arendt ou por aqueles que encontraram muitas certezas em suas
considerações, apresenta-se os meios pelos quais a pensadora lidou com suas inquietações
advindas de questões de seu presente, dos acontecimentos que foram arrebatando sua vida e a
vida de seus contemporâneos. Com esta intenção, presta-se ao exercício de apontar
ferramentas metodológicas para as realidades enfrentadas pelo psicólogo social, entendendo
que a tarefa do storyteller pode ser aproximada à tarefa do psicólogo social em sua pesquisa
acerca das subjetividades de uma época: alguém que descreve uma situação alinhando
criatividade e sensibilidade. A démarche das construções de subjetividades, um dos interesses
do psicólogo social, entrelaça comportamentos sociais às noções de tradição, história, crença,
singularidade e cultura. Deste modo ainda, aposta-se que a atualidade da atividade do
psicólogo social se aproxima das atividades realizadas por Hannah Arendt: ela lançou mão da
investigação histórica, da narrativa biográfica e da descrição jornalística ao longo de suas
décadas de escrita. Em suas aulas e em diversos seminários, Arendt utilizou-se de poetas e
escritores de ficção para ilustrar fenômenos que estivessem mobilizando os diferentes
acontecimentos acerca dos quais suas investigações se ocupavam. Todas essas “referências”
aparecem juntas, sem delimitação de espaços, nas ações das pessoas que compartilham um
mesmo período histórico. O exemplo de Hannah Arendt mostra-se bastante útil para
fundamentar a experiência do psicólogo social que procura entender e não apenas congelar a
realidade em teorias que não avançam no entendimento dos comportamentos e das questões
sociais.
TRABALHO COMPLETO
Hannah Arendt [1906-1975] nasceu em Hanover na Alemanha, mas viveu sua infância
e adolescência em Königsberg. Aos 18 anos de idade, matricula-se na Universidade de
Marburg para estudar com Martin Heidegger [1889-1976]. Participou de suas aulas enquanto
o filósofo preparava sua opera mater, Ser e Tempo, publicada em 1927. Em 1929, na
5
1
Em 1932, Arendt inicia seu primeiro livro, a biografia de Rahel Varnhagen, que finaliza em 1939, mas só vem
a ser publicada em 1958.
2
Como correspondente da Revista New Yorker, Arendt escreveu uma série de reportagens sobre o julgamento do
nazista Adolf Eichmann, ocorrido em Jerusalém no ano de 1961. Anos depois, Arendt reuniu os ensaios num
livro intitulado Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Esse livro abriu uma longa série
de críticas ao seu trabalho. Não apenas acerca da metodologia, mas por ter produzido algo que caminhava na
direção contrária do que estava sendo produzido pelo julgamento e pela história do Holocausto.
7
3
O termo storyteller é apresentado no original para configurar, de maneira muito específica, o trabalho de
Hannah Arendt. Mesmo os comentadores que escreveram em português, utilizam o termo no original em inglês.
Poderia ser traduzido como narradora, mas o sentido que toma na metodologia de Hannah Arendt não está ligado
apenas ao contexto literário e, por isso, pode ser entendido de forma mais ampla.
4
Arendt, Hannah. Action and Pursuit of happiness”, paper apresentado no encontro anual da Associação
Americana de Ciência Política. Setembro de 1960. Citado em Vollrath, 1997.
8
A informação nos chega, nos arrebata e nos abandona. A narração não se entrega. “Ela
conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é capaz de se desenvolver” (Benjamin,
1985a, p.204). Para Arendt, a filosofia tradicional aprisiona os fenômenos em conceitos e
perde a capacidade de lidar com a ação, que está no campo da política, das relações humanas.
“(...) É essa capacidade do storyteller de reter a ação na sua contingência que o torna central
para se solucionar a cisão entre pensamento e ação na tradição filosófica ocidental” (Aguiar,
2001, p.222).
9
Referências Bibliográficas