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Storytelling nas práticas do psicólogo social:


sugestão metodológica a partir da obra de Hannah Arendt

Dayse de Marie Oliveira


Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia Social da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro
dayse_pesquisa_aneps@yahoo.com.br

Eixo temático: Histórias, teorias e metodologias

RESUMO

Este trabalho investiga a metodologia de trabalho da filósofa Hannah Arendt [1906-


1975], especialmente o que ela denominou como “my old-fashioned storytelling”, ou “meu
modo antigo de contar histórias”. Idéia que significaria, em primeiro lugar, um modus
operanti de recusa em se juntar às tendências que emergiam dos esforços dos teóricos
políticos de inícios do século XX, em se mostrarem corretamente científicos. E, ao mesmo
tempo, o storyteller seria um tipo de narrador cuja preocupação estava na transmissão do
conhecimento, e este seria entendido como a capacidade de se criar contato com o mundo ao
qual pertencemos.

Ao longo de sua obra, Hannah Arendt teceu uma imbricada crítica à Modernidade
Ocidental, esta iniciada entre os séculos XVI e XVII. Tal crítica pautou-se sobretudo no
alarme acerca do rompimento de uma certa tradição de pensamento político que desvalorizou
o campo da política. Essa tradição de pensamento político consistia numa submissão da
política à filosofia, ao “mundo das idéias”, onde o saber estava distante da realidade prática.
Para Arendt, essa tradição teve início com Platão, foi valorizada durante o período do Império
romano e da ascensão da Igreja católica, para sofrer ataques a partir das filosofias de Sören
Kierkegaard [1813-1855], de Karl Marx [1818-1883] e de Friedrich Nietzsche [1844-1900],
quando, então, no século XX se rompe completamente frente aos eventos totalitários,
prejudicando a participação das pessoas num espaço público compartilhado, em outros
termos, no espaço da política.

Diante do fim dessa tradição, nada foi colocado em seu lugar, nada que pudesse dar
alguma segurança, algum sentido a ser referenciado. A política, que fora colocada a escanteio
no traçado dessa tradição de pensamento político, não teve ferramentas que possibilitassem
sua ascensão. As conseqüências disso seriam graves à sobrevivência moral e literal da
humanidade. Essa era a preocupação que percorreu toda a obra de Hannah Arendt: o que é
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possível entendermos e fazermos para evitar que adventos tão absurdos, como o Holocausto,
não fossem possíveis, ou mesmo não fossem repetidos. Era preciso reencontrar-se com esta
história não apenas para evitar que o terror se repetisse, mas principalmente para lhe dar um
sentido. Assim, de fato, poderíamos entrar em contato com nós mesmos, com nossas ações no
mundo e compreender o ocorrido. Era preciso, então, lançar luz sobre esse passado.

Sua análise sobre os diversos temas com os quais trabalhou, partia sempre de uma
situação contemporânea, estampada na realidade vivida, para, em seguida, buscar o quê, de
essencial, estava mobilizando o presente. Apesar de ter utilizado uma diversidade
metodológica, Arendt nunca discutiu as questões metodológicas que envolviam seu trabalho.
Seus escritos continham apenas observações em tópicos e, raramente ela falou explicita e
detalhadamente acerca de seu método de pensar. Em alguns momentos, houve o esforço de
enquadrá-la como uma filósofa política, e seu trabalho foi nomeado como um “method of
political thinking”, cuja preocupação fundamental seria compreender a dimensão política da
ação humana. Para tal, Arendt deixava de lado a problemática metodológica e procurava
avançar no que entendia ser essencial para a compreensão. Para Arendt, as concepções
disponíveis na ciência e na filosofia políticas muitas vezes eram insuficientes para o
entendimento de alguns fenômenos, como foi o caso do totalitarismo que não poderia ser
explicado com o que se tinha até o momento, justamente por se tratar de um fenômeno inédito
e, portanto, jamais pensado.

As análises sobre a obra que lhe deu notoriedade, As origens do totalitarismo,


publicada nos Estados Unidos em 1951, sugeriram algumas caracterizações ao trabalho de
Arendt que vinham desde a atribuição de um grande trabalho historiográfico, onde as duas
primeiras partes do trabalho (o anti-semitismo e o imperialismo) são apanhadas de uma
realidade ocorrida anteriormente e que puderam servir como explicações ao que se desdobra
nos governos totalitários do século XX (tratada na terceira parte da obra), até uma tentativa,
segundo alguns críticos, equivocada, que colocou numa mesma perspectiva (de dominação
humana), governos distintos como foram o governo de Adolf Hitler, na Alemanha e o de
Josef Stalin, na União Soviética. Seus críticos apontavam que o seu pensamento não poderia
ser considerado como uma construção científica séria. Um entendimento diferente apontava
que os elementos analisados no livro serviram não para justificar, enquanto causas, os
governos totalitários que se desenvolveram posteriormente, o que importava à Arendt era a
possibilidade de narrar determinadas experiências políticas do passado de modo que pudesse
transformá-las em cristalizações que revelassem os sentidos das manifestações políticas
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cruciais do presente, encontrando assim correspondências sintomáticas entre o passado e o


presente. Elucidar o presente, para Hannah Arendt era uma forma de enfatizar a força do
passado sem que se caia no perigo de um saudosismo insípido e imobilizador.

O que dificulta aproximar-se da posição dela é a tentativa de colocar seu trabalho


dentro de categorias conhecidas das escolas tradicionais e de tendências da teoria política. E,
por isso, Hannah Arendt é descrita como alguém que propõe uma atitude normativa, como
uma neo-aristotélica, como alguém que concorda com velhas doutrinas de direito natural. Ou,
de modo simplificado, como uma mera ensaísta política, como uma comentadora de eventos
ou ainda como uma historiadora sem treino metodológico.

É notório que Arendt não tinha a intenção de criar teorias explicativas que pudessem
categorizar os fenômenos. Valorizava as narrativas de experiências realizadas por aqueles que
pudessem dar sentidos aos acontecimentos. Abandonou a busca por verdades metafísicas tal
como Martin Heidegger [1889-1976], seu antigo professor, trabalhava. Suas ferramentas
metodológicas não se limitaram às ferramentas da filosofia que buscam o caminho das
essências e dos conceitos puros. Arendt valorizava as histórias pessoais, desde que pudessem
ser vistas com olhos “coletivizados”, desde que não dirigissem a percepção para o interior dos
sentimentos, para um Dasein a ser descoberto, mas para os aspectos morais que, mobilizados
pelos seres humanos, por cada um deles, ficassem explicitados em suas experiências.

Assim, acompanho a sugestão de alguns de seus comentadores ao indicar que Arendt


trabalhava como uma storyteller, como já foi citado, uma narradora cuja preocupação estava
na transmissão do conhecimento, e este seria entendido como a capacidade de se criar contato
com o mundo ao qual pertencemos. Esse tipo de entendimento se aproxima claramente ao
modo como Walter Benjamin [1892-1940] descreveu a relação que a narração possui com
algum tipo de autoridade que valorize a idéia de tradição. Para Benjamin “o saber que vinha
de longe” dispunha de uma autoridade que era válida mesmo que não fosse controlável pela
experiência. Como comenta a filósofa Sheyla Benhabib, em artigo que trata da obra de
Hannah Arendt, toda a escrita histórica é implicitamente uma história do presente e do
passado, e isto é uma particular cristalização de elementos inseridos num presente como um
todo que é metodologicamente guiado pelo seu sentido de passado. Situação que não ocorre
com a informação, que aspira a uma verificação imediata. Com o advento da Internet, temos a
sensação de que tudo pode ser, imediatamente, verificado. Sem dúvida, essa sensação nos
afasta de nosso poder imaginativo, pois, onde tudo está pronto, não precisamos imaginar ou
criar sentidos em busca de respostas. Através da imaginação, o storyteller consegue manter o
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que a teoria quer dissolver, uma vez que sua pretensão não é determinar um caminho,
apresentar uma única solução, nem controlar o percurso histórico, mas reter, formar e contar
uma história a partir dos indeterminados acontecimentos humanos. É isso que possibilita uma
efetiva reconciliação entre o pensamento e as coisas humanas. O pensamento “narracional”
não está preocupado com a história do ser, mas, sim, em encontrar significação nas
contingentes ações humanas.

Para o interesse desse trabalho, longe de tomar partido por aqueles que discordaram
das observações de Arendt ou por aqueles que encontraram muitas certezas em suas
considerações, apresenta-se os meios pelos quais a pensadora lidou com suas inquietações
advindas de questões de seu presente, dos acontecimentos que foram arrebatando sua vida e a
vida de seus contemporâneos. Com esta intenção, presta-se ao exercício de apontar
ferramentas metodológicas para as realidades enfrentadas pelo psicólogo social, entendendo
que a tarefa do storyteller pode ser aproximada à tarefa do psicólogo social em sua pesquisa
acerca das subjetividades de uma época: alguém que descreve uma situação alinhando
criatividade e sensibilidade. A démarche das construções de subjetividades, um dos interesses
do psicólogo social, entrelaça comportamentos sociais às noções de tradição, história, crença,
singularidade e cultura. Deste modo ainda, aposta-se que a atualidade da atividade do
psicólogo social se aproxima das atividades realizadas por Hannah Arendt: ela lançou mão da
investigação histórica, da narrativa biográfica e da descrição jornalística ao longo de suas
décadas de escrita. Em suas aulas e em diversos seminários, Arendt utilizou-se de poetas e
escritores de ficção para ilustrar fenômenos que estivessem mobilizando os diferentes
acontecimentos acerca dos quais suas investigações se ocupavam. Todas essas “referências”
aparecem juntas, sem delimitação de espaços, nas ações das pessoas que compartilham um
mesmo período histórico. O exemplo de Hannah Arendt mostra-se bastante útil para
fundamentar a experiência do psicólogo social que procura entender e não apenas congelar a
realidade em teorias que não avançam no entendimento dos comportamentos e das questões
sociais.

TRABALHO COMPLETO
Hannah Arendt [1906-1975] nasceu em Hanover na Alemanha, mas viveu sua infância
e adolescência em Königsberg. Aos 18 anos de idade, matricula-se na Universidade de
Marburg para estudar com Martin Heidegger [1889-1976]. Participou de suas aulas enquanto
o filósofo preparava sua opera mater, Ser e Tempo, publicada em 1927. Em 1929, na
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Universidade de Heidelberg, sob a orientação do filósofo Karl Jaspers [1883-1969], defende


sua tese de doutoramento, O conceito de amor em Santo Agostinho. Fugindo do perigo
nazista, Arendt segue a Paris em 1933, e em 1941, refugia-se nos Estados Unidos, onde viveu
até seu falecimento, em 1975. Nesse país, Arendt escreveu os trabalhos que a fizeram famosa,
tanto para seus admiradores, quanto para os que rejeitaram seus pensamentos. Seu trabalho foi
amplo, tanto na enorme quantidade de anotações, publicações e temáticas, quanto na
qualidade das discussões com uma grande ousadia no tratamento das temáticas.
Quanto aos aspectos de sua metodologia, Arendt recebeu muitas críticas e pouco
discutiu essas questões que envolviam seu trabalho. Seus escritos continham apenas
observações em tópicos e, raramente ela falou explicita e detalhadamente acerca de seu
método de pensar. A publicação que lhe deu notoriedade, As Origens do Totalitarismo,
formada por três partes que constituem, ao primeiro olhar, explicações para o surgimento e a
constituição dos governos totalitários vivenciados no século XX, é uma obra de referência no
assunto. Análises sobre esse livro sugeriram algumas caracterizações ao trabalho de Arendt
que vinham desde a atribuição de um grande trabalho historiográfico (Benhabib, 1996;
Cavalcante, 2001; Cedronio, 1999; Duarte, 2000 e 2001; Jasmin, 2001; Shklar, 1997; Wolin,
1997), até uma tentativa equivocada que colocou, numa mesma perspectiva, governos tão
distintos como foram o governo de Adolf Hitler [1889-1945], na Alemanha e o de Josef Stalin
[1878-1953], na União Soviética (Aron, 1983). Em As Origens, ambos os governos foram
colocados tendo as mesmas características enquanto formas de organizações burocráticas e
formas de dominação humana.
De fato, o trabalho de Hannah Arendt apresenta a dificuldade de ser caracterizado
numa forma metodológica que possa ser incluída dentre os modelos das ciências humanas que
temos na história ocidental. Apesar de sua sólida formação filosófica, por ter sido aluna
bastante presente de Jaspers e Heidegger, participando de uma tradição filosófica de muita
envergadura, não se pode confirmar que todo o seu percurso metodológico tenha sido
exclusivamente o de uma filósofa em busca de conceitos puros. Muitas vezes, quando seu
trabalho adentrava esse campo, Arendt fazia uma pesquisa acerca das contribuições anteriores
de outros filósofos e apresentava seus avanços e críticas aos trabalhos com os quais
concordava ou discordava.
O que dificulta aproximar-se da posição dela é a tentativa persistente, e
fútil, de colocar seu trabalho dentro de categorias conhecidas das escolas
tradicionais e de tendências da teoria política. E por isso Hannah Arendt é
descrita como alguém que propõe uma atitude normativa, como uma neo-
aristotélica, como alguém que concorda com velhas doutrinas de direito natural,
como uma antropóloga ou filósofa. Ou, para simplificar as coisas, como uma
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ensaísta política pura, como uma comentadora de eventos ou como uma


historiadora sem treino metodológico (Vollrath, 1997, p.160).
Outro aspecto bastante discutido acerca de sua obra, foi a sua participação no campo
da ciência e da filosofia política. Em nenhum momento, Arendt foi considerada uma cientista
política apesar de participar de discussões que, classicamente, aconteciam nessa área. Em
alguns momentos houve o esforço de enquadrá-la como uma filósofa política, e seu trabalho
foi nomeado como um “method of political thinking” (Bernstein, 2002; Canovan, 1990; Crick,
1997; Jonas, 1997; Kohn, 1990 e 2002; Laqueur, 2001; Sternberger, 1997; Taminiaux, 2002;
Tsao, 2002; Vollrath, 1997; Young-Bruehl, 2002), cuja preocupação fundamental seria
compreender a dimensão política da ação humana. Para tal, Arendt deixava de lado a
problemática metodológica e procurava avançar no que entendia ser essencial para a
compreensão. Dentre os ensaios de Entre o Passado e o Futuro, Arendt apontou que as
ciências sociais e a filosofia política eram carentes de instrumentos que dessem atenção ao
processo, ao passado das situações ocorridas no presente e isso a afastava desses campos de
conhecimento no que diz respeito às suas estratégias de análise. Além disso, apontou que as
concepções disponíveis na ciência e na filosofia políticas muitas vezes eram insuficientes para
o entendimento de alguns fenômenos, como foi o caso do totalitarismo que não poderia ser
explicado com o que se tinha até o momento, justamente por se tratar de um fenômeno inédito
e, portanto, jamais pensado.
Suas inquietações vieram pelas questões de seu presente, pelos acontecimentos que
foram arrebatando sua vida e a vida de seus contemporâneos. Além da filosofia, Arendt
lançou mão da investigação histórica, da narrativa biográfica 1 e da descrição jornalística2 ao
longo de suas décadas de escrita, de aulas e seminários presenciais. E ainda utilizou-se de
poetas e escritores de ficção para ilustrar fenômenos que estivessem mobilizando os diferentes
acontecimentos acerca dos quais suas investigações se ocupavam.

Storytelling: a narrativa possibilitando a singularidade metodológica


Uma posição tomada por muitos de seus comentadores (Aguiar, 2001 e 2002;
Benhabib, 1990; Bilsky, 2001; Cassin, 2002; Disch, 1993; Draenos, 1979; Heller, 1997;
Kateb, 2002; Luban, 1983; Mattos, 2001; Muñoz, 2003; Starling, 2001; Wilkinson, 2004;

1
Em 1932, Arendt inicia seu primeiro livro, a biografia de Rahel Varnhagen, que finaliza em 1939, mas só vem
a ser publicada em 1958.
2
Como correspondente da Revista New Yorker, Arendt escreveu uma série de reportagens sobre o julgamento do
nazista Adolf Eichmann, ocorrido em Jerusalém no ano de 1961. Anos depois, Arendt reuniu os ensaios num
livro intitulado Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Esse livro abriu uma longa série
de críticas ao seu trabalho. Não apenas acerca da metodologia, mas por ter produzido algo que caminhava na
direção contrária do que estava sendo produzido pelo julgamento e pela história do Holocausto.
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Young-Bruehl, 1997) é a sugestão de que a metodologia de Hannah Arendt pode ser


comparada ao trabalho de um narrador — um storyteller 3 — alguém que descreve uma
situação de um modo bastante singular alinhando criatividade e sensibilidade. Essa sugestão é
bastante relevante quando nos debruçamos sobre seu trabalho, Arendt apresentava os
resultados de suas tarefas investigativas de maneira bastante especial, oferecendo uma
discussão inovadora e singular e, por conta disso, também bastante discutível. Arendt
procurava compreender os fenômenos do mundo, criando sentidos a eles.
Sua recusa deliberada por se juntar às tendências da moda que emergiam
dos esforços desesperados dos teóricos políticos da época em se mostrarem como
corretamente ‘científicos’ fez com que ela ironicamente caracterizasse seu
trabalho como ‘my old-fashioned storytelling’ 4 . Como conseqüência, as
reivindicações alardearam que o seu pensamento não poderia ser considerado
como uma construção científica séria, e ela aceitaria essas críticas jocosamente,
convencida que todo esse rigor científico era largamente inspirado por uma
inocência política (Vollrath, 1997, p.160).
Arendt não se preocupava exclusivamente em explicar cientificamente o que estava
estudando e pesquisando, mas se esforçava a dar sentido aos produtos de seus
questionamentos. Não montava verdades incontestáveis, mas buscava memórias particulares,
kinds of truth. Buscava reconciliação entre significação e aparência, generalidade e
particularidade, filosofia e política, pensamento e contingência. Isso era mais que uma
metodologia de trabalho, também servia como instrumento de vida. Para Arendt, uma vida
sem sentido era um tipo de vida morta (2003b, p.57).
Nada poderia ter mais sentido que uma história narrada. “Nem a filosofia, nem a
análise, nem os aforismos podem ser tão profundos quando comparados com a intensidade e a
riqueza de sentidos que possui uma história verdadeiramente narrada” (Arendt, 1987, p.24).
Hannah Arendt foi uma storyteller, pois não tratava uma situação complexa reduzindo-a a um
conceito. Ao contrário disso, tratava as situações abrindo um leque de novos aspectos que
pudessem ser repensados em novas articulações e enriquecidos por novas aproximações
discursivas. “O storyteller apresenta os dilemas e paradoxos e leva os outros a tomar posição
por conta própria” (Aguiar, 2001, p.220).
Aquilo que o contador de histórias pretende narrar deve necessariamente
permanecer oculto para o ator, pelo menos enquanto este último estiver
empenhado no ato ou em suas conseqüências, pois, para o ator, o sentido do ato
não está na história que dele decorre (Arendt, 2003a, p.205).

3
O termo storyteller é apresentado no original para configurar, de maneira muito específica, o trabalho de
Hannah Arendt. Mesmo os comentadores que escreveram em português, utilizam o termo no original em inglês.
Poderia ser traduzido como narradora, mas o sentido que toma na metodologia de Hannah Arendt não está ligado
apenas ao contexto literário e, por isso, pode ser entendido de forma mais ampla.
4
Arendt, Hannah. Action and Pursuit of happiness”, paper apresentado no encontro anual da Associação
Americana de Ciência Política. Setembro de 1960. Citado em Vollrath, 1997.
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Pensava em ambos os sentidos, no narrador que transmite a história e no leitor ou


ouvinte que dá seu sentido singular ao que está sendo contado, e que pode recontar e
retransmitir. Arendt escrevia para intercambiar entendimentos, disponibilizava suas
experiências e suas capacidades investigativas e de criação de sentidos aos fenômenos de um
mundo compartilhado. Não estava em busca de uma verdade dos fenômenos, e sim de uma
relação mais responsável pelo mundo, onde os entendimentos dos fenômenos eram
imprescindíveis. Sua metodologia ao narrar os aspectos do totalitarismo veio de sua
sensibilidade de entender o que havia acontecido à civilização após a existência de lugares
como Auschwitz. Contar a história do totalitarismo foi uma maneira de refletir acerca das
dimensões morais e políticas desse fenômeno. “A linguagem da narração pode marcar a
qualidade moral do objeto narrado. Obviamente, tal habilidade de narrar faz do teórico um
storyteller, mas isto não é dado a todo teórico que procura a linguagem de um verdadeiro
storyteller” (Benhabib, 1990, p.186).
Esse tipo de narração se aproxima claramente ao modo como Walter Benjamin [1892-
1940] descreveu a relação que a narração possui com algum tipo de autoridade que valorize a
idéia de tradição. Diferente dos tempos modernos, onde a informação, sem vínculo com
história, toma todo o espaço do discurso. “(...) O saber, que vinha de longe, dispunha de uma
autoridade que era válida mesmo que não fosse controlável pela experiência. Mas a
informação aspira a uma verificação imediata” (Benjamin, 1985a, p.203). Nos últimos anos,
com o advento da Internet, temos a sensação de que tudo pode ser, imediatamente, verificado.
Sem dúvida, essa sensação nos afasta de nosso poder imaginativo, pois onde tudo está pronto
não precisamos imaginar, criar sentidos em busca de respostas.
Através da imaginação, o storyteller consegue manter o que a teoria quer
dissolver, uma vez que sua pretensão não é determinar um caminho, apresentar
uma única solução, nem controlar o percurso histórico, mas reter, formar e contar
uma história a partir dos indeterminados acontecimentos humanos. É isso que
possibilita uma efetiva reconciliação entre o pensamento e as coisas humanas. O
pensamento ‘narracional’ não está preocupado com a história do ser, mas, sim,
em encontrar significação nas contingentes ações humanas (Aguiar, 2001, p.221).

A informação nos chega, nos arrebata e nos abandona. A narração não se entrega. “Ela
conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é capaz de se desenvolver” (Benjamin,
1985a, p.204). Para Arendt, a filosofia tradicional aprisiona os fenômenos em conceitos e
perde a capacidade de lidar com a ação, que está no campo da política, das relações humanas.
“(...) É essa capacidade do storyteller de reter a ação na sua contingência que o torna central
para se solucionar a cisão entre pensamento e ação na tradição filosófica ocidental” (Aguiar,
2001, p.222).
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O storyteller entre o passado e o presente


Os três elementos apresentados em As origens do totalitarismo, (o imperialismo, o
anti-semintismo e o totalitarismo) serviram, no trabalho de Arendt, não para explicar os
governos totalitários, mas para mostrar como situações puderam se “cristalizar” numa
configuração de terror absoluto e de completa destruição da capacidade humana de agir em
uma coletividade de pessoas, onde cada uma delas representasse uma posição singular e
interessada no mundo compartilhado. Elucidar o presente, para Hannah Arendt era uma forma
de enfatizar a força do passado sem que se caia no perigo do saudosismo insípido e
imobilizante.
“O que importava à Arendt não era o passado enquanto tal, mas a
possibilidade de narrar determinadas experiências políticas do passado de modo
que pudesse transformá-las em cristalizações que revelassem os sentidos das
manifestações políticas cruciais do presente, encontrando assim correspondências
sintomáticas entre o passado e o presente (Duarte, 2001, p.66).
A propósito dessa metodologia histórica de colheita do passado, onde “toda a escrita
histórica é implicitamente uma história do presente e do passado, e isto é uma particular
cristalização de elementos inseridos num presente como um todo, que é metodologicamente
guiado pelo seu sentido de passado” (Benhabib, 1990, p.172), podemos identificar a
aproximação com o que Walter Benjamin apresentou em suas teses Sobre o Conceito de
História. Assim como Benjamin, Arendt nos convida a pensar que nenhum fato, meramente
por ser apontado como causa, é por isso um fato histórico. Ele se transforma em fato histórico
postumamente, graças a acontecimentos que podem estar dele separados por milênios. Além
disso, o reconhecimento das interrupções, a recusa de uma linearidade histórica, o
entendimento do presente como lente imprescindível de se notar o passado, enfim, muito do
que Benjamin colocou acerca do conceito de história, é compartilhado nas formulações que
Arendt teceu em seu livro sobre o totalitarismo.
Num mundo carente de sentidos, e também de experiências, como alertou Benjamin, a
narração permite que tenhamos algum sentido de tradição, pois a narração mantém um
contato com o passado, construindo sentidos ao que não mais existe senão através de
reminiscências. “O enraizamento numa tradição significa nosso pertencimento a pontos de
origem, porque só podemos saber quem somos hoje se reconhecermos o nosso ponto de
partida” (Mattos, 1992, p.152). Conforme os fenômenos da Modernidade foram entrando em
curso, nossas capacidades de ouvir e de narrar os acontecimentos vão perdendo espaço para a
nossa capacidade de consumir o supérfluo e de nos contentar com informações previamente
formatadas.
10

Hannah Arendt seguiu em direção contrária e nos convidou a entrarmos em contato


com nossas responsabilidades acerca de um mundo compartilhado e inacabado. A tarefa do
storyteller pode ser aproximada à tarefa do psicólogo social em sua pesquisa acerca das
subjetividades sociais de uma época. A démarche da construção de subjetividades, um dos
interesses do psicólogo social, entrelaça comportamentos sociais às noções de tradição,
história, crença, singularidade e cultura. Todos esses elementos aparecem de uma maneira
singular nas ações das pessoas que compartilham um mesmo período histórico. O exemplo de
Hannah Arendt mostra-se bastante útil para fundamentar a experiência do psicólogo social
que procura entender e não apenas congelar a realidade em teorias que não avançam no
entendimento dos comportamentos e questões sociais.

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