Você está na página 1de 17

Peter Sloterdijk: subjetividade timótica

1. Intodução.

Em 1992 vivemos o desaparecimento da URSS. Fomos pegos por uma euforia estranha.
Afinal, nós da esquerda, por que no alegrávamos com o “fim do comunismo”. Na verdade,
os bons filósofos, e mesmo a maior parte dos marxistas, já não tinham há tempos
qualquer apreço pelo estado que Ronald Reagan havia chamado de “O Império do Mal”.
Todavia, junto do desmoronamento do bloco soviético, também o eurocomunismo e a
socialdemocracia sofreram um impacto inaudito, e o próprio marxismo acadêmico se viu
atingido. Nessa época, o então jovem filósofo Francis Fukuyama publicou O fim da história
e o último homem, que despontou como best seller mundial em poucas semanas. Tive
esse livro nas mãos. Junto dele vieram duas outras publicações que o comentavam, uma
de Richard Rorty e outra de Jacques Derrida. Foram textos, todos os três, do “calor da
hora”.

Derrida expôs sua leitura de Fukuyama em 1993, em seu livro Espectros de Marx. Tocou
em um assunto importante do texto, a megalothymia, mas acabou por interpretar o livro
injustamente como uma peça relativamente ingênua, encapsulada na ideia de tratar como
um “evangelho”, uma ‘boa nova’, o advento da hegemonia da democracia liberal como um
destino.1 Por sua vez, em um artigo mais ou menos da mesma época, Rorty não tocou no
importante assunto do thymos, mas soube ver a grandeza do livro que, enfim, não estava
falando do fim da história, mas do fim de uma certa filosofia da história, em especial a
elaborada nas fileiras do marxismo-leninismo. 2

Foi necessário passar mais de uma década da publicação de Fukuyama para que um
filósofo fizesse uma leitura focalizando a parte mais rica do livro. Sem dúvida, o autor
dessa leitura, exposta em 2006, é Peter Sloterdijk, com o seu instigante Ira e tempo.3 Ele
não comenta a leitura de Rorty, mas critica a leitura de Derrida. Sua observação é a de que
Fukuyama trouxe para a cena uma “psicologia política” capaz de repor a descrição de nós
mesmos levando em consideração o thymos, ou seja, o ‘órgão’ situado no peito dos heróis
e dos homens da Grécia antiga.

1
Derrida, J. Espectros de Marx. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994
2
Rorty, R. O fim do leninismo, Havel e a esperança social. In: Pragmatismo e política. São
Paulo: Martins Fontes, 2005.
3
Sloterdijk, P. Ira e tempo. São Paulo: Estação Liberdade, 2012, pp. 11-62.
Em O fim da história, Fukuyama descreve o desenvolvimento histórico dos tempos antigos
clássicos até os nossos dias por meio das modificações da megalotimia na direção da
isotimia. Ou seja, o caminho de um homem de orgulho e plenamente capaz de emoções
próprias dessa condição, construtivas ou destrutivas, para o homem domesticado que
vivencia os nossos atuais pequenos orgulhos. Basicamente, a concepção de homem
segundo sua função timótica ganha aí seis fases, como coloco em seguida.4

2. Megalotimia e isotimia

Em Platão e Sócrates as forças timóticas, que obviamente podem resultar na ira, pois o
thymos, sendo sede do brio, é responsável de certo modo pela identidade, são postas
como objeto da educação. Esta, então, deve se responsabilizar por trazer o thymos para
próximo da razão, afastando-o dos apetites, de modo a aproveitar o homem timótico na
cidade, especialmente como soldado, como o seu protetor.

Essa concepção, que leva à tentativa de educação do thymos, tem longa duração. O quase
moderno Maquiavel ainda está às voltas com ela, mas sua opção diante da ira articulada
ao orgulho guerreiro dos príncipes é o de deixar funcionar a “república mista”, em que as
forças timóticas dos poucos se confrontam com as forças timóticas dos muitos. Todavia, na
passagem da Renascença para a modernidade clássica, Locke e Hobbes preferem
descrever o homem já sem o thymos. A alma humana passa a conter razão e paixão, e um
local específico dos sentimentos desaparece. Tenta-se deslegitimar o que poderia ser o
local natural da ira.

Nesse quadro moderno a megalotimia perde pontos. Mas, então, a função timótica posta
porta afora cobra direitos infiltrando-se pela janela. Os Pais Fundadores da democracia
liberal americana, os autores da Constituição Americana, trazem as forças do brio e do
orgulho, sempre requisitantes de reconhecimento para quem as possui, para o campo da
política democrática. Nesta, os homens podem ainda continuar vencendo uns aos outros
consagrando o orgulho de um reconhecimento do outro também pela sua superioridade,
não só por sua igualdade. Esses americanos vislumbraram a importância da democracia
não somente pela possibilidade do seu objetivo final, ou seja, o de alcançar decisões
consensuais, vistas como melhores, mas principalmente como um processo capaz de
alimentar o que não poderia ser barrado, mas somente domesticado, a força timótica.

Por sua vez, Hegel incorporou a força timótica na sua “luta por reconhecimento”.
Nietzsche notou bem a legitimidade do thymos, e denunciou sua domesticação. Mas,

4
Fukuyama, F. The end of history and the last man. Nova York e Toronto: The Free Press,
1992, pp. 181-192.
assim fez como habitante da soleira da porta da sociedade liberal democrática regrada
pelos valores do trabalho. No campo dessa sociedade, a chamada “sociedade do trabalho”
acoplada à “sociedade de mercado”, o orgulho se fez valer pela conquista de pequenos e
variados reconhecimentos. Nesse caso, tudo que vem de um esforço e ganha dignidade
capaz de colocar o homem como um igual, satisfaz seu orgulho. A recompensa no
emprego se aproxima daquela de sua própria casa, que pode ser vista no elogio ao pai de
família ou à mãe dedicada, mas também no desempenho sexual. Pequenos orgulhos
coadunados a grandes pacificações.

Esse quadro de desenvolvimento timótico, exposto aqui a partir de Fukuyama, tem por
base a sua adoção de Hegel, em especial na parte em que este fala da “luta por
reconhecimento”, e na sua visão de “homem primeiro” ou “homem primitivo” segundo o
esquema do desenvolvimento do espírito. Nesse caso, não podemos esquecer: a
consciência só se torna consciência de si por conta de reconhecer o outro e de ser
reconhecida pelo outro. O processo todo, em termos da filosofia política, antes que
antropológico e metafísico, é descrito por Fukuyama a partir de um nosso estranhamento
com o “reconhecimento”. Ele avalia que “o ‘desejo por reconhecimento’ soa como um
conceito estranho e de certo modo artificial, ainda mais quando é visto como o motor
primário da direção da história humana”. De vez em quando a palavra “reconhecimento”,
diz ele, entra para o nosso vocabulário, por exemplo, “quando um de nossos colegas se
aposenta e lhe é dado um relógio ‘em reconhecimento pelos anos de serviço’”. 5 Mas, em
geral, não pensamos a respeito da vida política como uma ‘luta por reconhecimento’.
Vemos a luta política, quando a tomamos em geral, como uma competição de poder
baseada em interesses econômicos, ou seja, uma disputa pela divisão de riquezas e que
outras boas coisas da vida. Diz Fukuyama:

“O subjacente conceito ‘reconhecimento’ não foi inventado por Hegel. É


tão velho quanto a filosofia política do Ocidente, e refere-se a uma
peculiar parte da personalidade humana. No decorrer do milênio, não
havia existido nenhuma palavra consistente usada para se referir ao
fenômeno psicológico do ‘desejo de reconhecimento’: Platão falou do
thymos, ou ‘spiritedness’, Maquiavel falou do desejo do homem por
glória, Hobbes apontou para orgulho ou vanglória, Rousseau contou com
amour-propre, Alexandre Hamilton falou de amor da fama e James
Madison de ambição, Hegel de reconhecimento, e Nietzsche do homem
como a “besta com bochechas vermelhas”. Todos esses termos se
referem àquela parte do homem que sente a necessidade de situar o

5
Idem, ibidem, p. 162.
valor das coisas – dele próprio em primeira instância, e então, em torno
de sim mesmo, de pessoas, ações ou coisas. É a parte da personalidade
que é fundamental fonte das emoções de orgulho, raiva e vergonha, e
não é reduzível ao desejo ou à razão. O desejo de reconhecimento é a
mais específica parte política da personalidade humana porque é ele que
dirige os homens a quererem afirmar-se sobre os outros homens,
portanto em ser a condição da “sociabilidade insociável” de Kant.”6

Ele conclui esse parágrafo lembrando que a democracia liberal e moderna, que nada é
senão o campo da condição humana propícia para a domesticação do elemento timótico,
tem lá o seu êxito nessa sua façanha. A lição implícita aí é que sociedades que falham
nesse afã de canalização de energias, podem não obter êxito em sua continuidade.

Que se lembre, juntamente com essa passagem citada acima, que Fukuyama insiste na
versão de Hegel a respeito do homem primitivo, que difere do homem “em estado de
natureza” dos jusnaturalistas. Hegel vê no reconhecimento o que é especificamente
humano, ou seja, o querer sair de qualquer programação biológica e, então, ganhar a
condição de livre – livre da natureza. A liberdade aparece como elemento essencial da vida
humana exatamente nesse sentido, uma vez que é também pelo reconhecimento que o
espírito sai da consciência para a consciência de si. Mas a liberdade em Hegel, que se
associa à requisição de reconhecimento, que passa então pela energia timótica, é a
liberdade de ultrapassar o instinto de conservação. Este, segundo Hegel, faz parte da
natureza (Nietzsche nega algo assim, pois até mesmo na natureza, ou melhor, exatamente
nela, manifesta-se a “vontade de poder”), que conduz sempre à regra do querer se
preservar, mas o homem, ainda que elemento da natureza, a transcende, e assim faz na
busca de reconhecimento. Torna-se então o único dos habitantes da terra que arrisca a sua
vida, ou mesmo morre, para obter dignidade ou para se colocar ao serviço de uma
bandeira ou símbolo em prol de exigir o olhar do outro, ou, no caso de megalotimia, exigir
que o outro o veja como seu superior.

Fukuyama cuidadosamente retoma Platão, na República, para mostrar que o thymos tem a
ver com a dignidade. E então, quando o homem não é reconhecido naquilo que valoriza,
ou em si mesmo enquanto se valoriza, ele fica indignado e reclama pela dignidade, e eis
que o thymos se revela como o órgão da justiça. Quem não se vê reconhecido, é claro, tem
o que valora diminuído e chama uma ação desse tipo de injusta. Ora, se a República é o
tratado que busca a cidade justa, eis aí a razão pela qual neste livro há uma engrenagem
educacional para se lidar com o thymos, a engrenagem pela qual a ira de alguns é
aproveitada para coloca-los como soldados. É desse contexto que Sloterdijk retoma
6
Idem, ibidem, p. 162-3.
Fukuyama, para fins de construção de sua “psicologia política”. Nesse aproveitamento de
Fukuyama, ele cita o thymos na sua função de aprovação e de auto-aprovação ou auto-
reprovação, no trabalho de governo de si. Essas suas observações o conduzem então a
afirmações curiosas, a de como essa capacidade de autorreprovação tem a ver com a “fala
interior”. Ele diz:

“A descoberta platônica reside na referência à significação moral da


autorreprovação violenta. Essa autorreprovação manifesta-se
duplamente – por um lado, na vergonha, como uma atmosfera afetiva
total que penetra o sujeito até o seu ponto mais íntimo, e, por outro
lado, na autorrepreensão dotada de um acento irado que assume a
forma de uma fala interior consigo mesmo”.7

Estamos aqui, então, na articulação do thymos com o próprio pensamento que, segundo
Platão, é a “fala silenciosa consigo mesmo”, em uma definição tão apreciada e repetida
exaustivamente por Hannah Arendt, na sua caracterização do homem como o dois-em-
um, o duplo que somos todos nós (ou que deveríamos ser), ou seja, seres reflexivos.
Todavia, nesse caso, estamos seguindo o fio condutor da noção de indivíduo autônomo.
Sloterdijk articula o governo de si e a autorrecusa, a dominação de si mesmo pelo seu
autodomínio do thymos, como o início do que chama de “a aventura da autonomia”. Para
a nossa investigação da subjetividade em Sloterdijk, esse fio condutor é essencial.

3. Homero e Safo

A maneira como Sloterdijk segue sua análise do thymos, desde o início tem a ver com a
noção de indivíduo e, mesmo, de sujeito. Ele anuncia isso ao lembrar seu aprendizado a
respeito dos primórdios da “descoberta do espírito”, por meio de livro clássico com este
mesmo nome, escrito por Bruno Snell. Sloterdijk exibe seu apreço pelo modo como Snell
analisa a Ilíada e a Odisseia, e deixa claro sobre como que a sua compreensão das
características da subjetividade antiga e moderna seguem este autor:

“(...) faltam aos personagens épico da mais antiga época literária do


Ocidente as características marcantes da subjetividade compreendida em
termos clássicos, em particular a interioridade reflexiva, o monólogo
íntimo, o empenho dirigido pela consciência moral e o controle dos
afetos. (...) De longe, o herói da primeira Antiguidade de fato nos faz
pensar numa ‘múltipla personalidade’. Ainda não parece haver nele
nenhum princípio interno hegemônico, nenhum ‘eu’ coerente que venha
7
Sloterdijk, P. Op. cit., pp 36-7.
à tona para a unidade e a auto-apreensão do campo psíquico. A ‘pessoa’
mostra-se muito mais como um ponto de encontro de afetos ou energias
parciais que aparecem em seu anfitrião, o indivíduo de vivência e ação,
como um visitante que vem de longe a fim de usá-lo para os seus
interesses.”8

A exposição dessa tese, em Snell, se faz a partir de uma interessante contraposição entre o
mundo de Homero e o mundo platônico, passando pelo intermediário mundo responsável
pelo início de formação individual, onde se destaca a poetiza Safo.

Snell não vê o homem homérico como pensando o corpo como uma unidade, como esta
se expressa depois, bem mais tarde, em Platão, que utiliza a palavra soma. O corpo seria
visto pela articulação de membros. Assim, também a alma não seria algo tão distinto do
corpo, mas como alguma coisa física, expressa por três palavras: psiqué (ψυχή),
thymósθυμόςenóos Sobre a primeira palavra, Homero diz que se trata de
algo que abandona o homem em sua morte, como um tipo de órgão vital, um sopro. As
outras duas palavras podem querer dizer “espírito”, mas enquanto thymós tem a ver com a
suscitação de emoções, nóos em geral se refere à produção de imagens. Assim, o thymos
aparece como “a sede da alegria, do prazer, do amor, da compaixão, da ira, e assim por
diante, portanto, de todos os movimentos do ânimo”, mas também é o lugar de um tipo
de conhecimento, algo que se diz quando o que se sabe é “por instinto”, por “simpatia
fraterna”.9

Snell alerta que não existe ainda, em Homero, algo como as partes divididas da alma,
como bem mais tarde ocorre em Platão. Ele chega a insinuar que uma tal divisão platônica
é fruto antes a um recurso didático do filósofo que propriamente uma distinção rigorosa. A
concepção de alma que Platão utiliza é herdeira da formulada por Heráclito. Ora, os
primórdios da individualidade, para Snell, é algo mais observável na lírica. No que há de
intermediário entre Homero e Platão, salta aos seus olhos a poetiza Safo, que fala de Eros
como doce-amargo, portanto, aludindo para um sentimento dúbio ou duplo, contraditório.
Mas Homero – e nisso Snell insiste – nunca usou algo assim, dúbio ou contraditório em si
mesmo. “Homero não podia dizer ‘queria e não queria’, em vez disso, diz (...) algo como
‘querente, mas com o não querente’”. Ou seja, não se está em um “dissídio
interno”, mas em um “contraste entre o homem e seu órgão, como se disséssemos, por
exemplo: minha mão estendeu-se para agarrar, mas eu a retraí”. 10
8
Sloterdijk, P. Op. cit., p. 22.
9
Snell, B. A cultura grega e as origens do pensamento europeu. São Paulo: Perspectiva,
2009, pp. 12-3.
10
Idem, ibidem, p. 19.
Toda vez que o homem faz algo que diríamos que seria de decisão pessoal, lembra Snell,
Homero faz surgir nele uma intervenção divina. Como ele nota, “é o verdadeiro e
autêntico ato da decisão humana que Homero ignora; daí porque, mesmo nas cenas em
que o homem reflete, a intervenção dos deuses sempre tem uma parte importante”. 11
Órgãos como o thymos ou o nóos são efetivamente simples órgãos, que recebem
intervenções divinas, não são a origem das emoções. Quando Safo começa a trajetória de
lidar com alguma individualidade, em momento algum ela elimina os deuses para que se
possa falar de algo bem pessoal como é o amor que ela sente por determinada jovem,
embora ela traga para si o sentimento de desamor. O êxito vem dos deuses, mas a
individualidade nascente arca com o fracasso. O desânimo sentido pelo abandono do
amor é, sim, sentido por ela mesma, Safo. O amor vem dos deuses para o peito do homem
e o faz mover-se; já o amor-próprio danificado, diferentemente, é produto do homem, e a
isso podemos chamar de individualidade nascente, encontrada nos fragmentos da poetiza
de Lesbos. Homero até parece dar um passo sobre isso, quando fala do ‘coração que
rosna’, na clássica referência a Ulisses. É na ira que a individualidade emerge, no ódio, no
desprazer. A tese de Snell é assim resumida: “Em Homero, o que o homem realiza de
particular não nasce de seu caráter individual ou de seu particular talento, mas invade-o
como força divina. Querendo exprimir esse pensamento com uma fórmula, poder-se-ia
dizer: existem destinos individuais, mas não ações individuais”. 12 E mais uma vez a
comparação entre Homero e Safo é a linha seguida por Snell, e que deixa transparecer
também como ela está longe ainda de Platão e da Grécia Clássica. No âmbito da lírica de
Safo, o “amor não é um sentimento que brota do íntimo, mas um dom de Afrodite e de
Eros”. “Próprio do indivíduo é apenas o dissídio do sentimento de amor obstado”. 13

Essas noções são a base para Sloterdijk dizer que a Grécia arcaica está dominada pela
“psicologia do recipiente”. O thymos é um órgão que recebe e guarda determinações de
forças divinas, de modo que o herói que ganha o impulso dessas forças atua quase que
como um profeta “ao qual cabe a tarefa de tornar imediatamente verdadeira a mensagem
de sua força”. Assim, “a força do herói o acompanha do mesmo modo que um gênio
acompanha a pessoa que foi entregue à sua confiança”. “Se a força se torna atual, seu
protegido precisa seguir com ela".14

4. A partir de Leo Strauss

11
Idem, ibidem, pp. 20-1.
12
Idem, ibidem, p. 71.
13
Idem, ibidem, p. 75.
14
Sloterdijk, P. Op. cit., p. 23
Essa força timótica que arrebata o indivíduo, para Sloterdijk, é diferente da força erótica,
ou, ao menos, fenomenologicamente é algo que deve ser observado a partir de uma visão
que separa uma análise timótica de uma análise erótica. Eros é uma força de desejo, de
querer o que não se tem, de posse. Por sua vez, o thymos é buscado pelos deuses para
receber uma força que implica não no ter, mas no aparecer, no que se pode colocar contra
si mesmo em grau correto de modo a não se perder a autoestima.

A partir da análise timótica pode-se chegar a compreender a produção da personalidade


fascista, mas também ver em que medida tais forças podem ser conduzidas a uma
economia da doação. Sloterdijk percorre esse duplo caminho no traçado da temática da
individualização e da formação da personalidade, gerando assim um capítulo importante
de sua abordagem da subjetividade. No que segue, discorrerei sobre a personalidade
fascista e o ressentimento, para então passar para a questão da economia timótica, a
economia do excesso.

O ressentimento pode não virar ódio. A inveja pode não virar ódio. Mas os exemplos
históricos de manifestação social de ódio, mesmo os que aparentemente estão incrustados
nas entranhas do xenofobismo e do racismo, contêm sim um componente que tem a ver
com ressentimento e inveja.

Talvez esse tenha sido o erro fatal de Lênin. Desviou-se completamente de Marx quando
disse, claramente, que confiava no ódio dos mais pobres contra os mais ricos e poderosos
para levar adiante os projetos revolucionários socialistas. Para Marx, a “luta de classes”
nunca significou o envolvimento de ódio ou amor. Ele criou a expressão quase que como
um conceito filosófico que deveria cobrir inúmeras manifestações sociais de divergência
de interesses setoriais, mas nunca quis abarcar qualquer “sentimento” individual ou
coletivo nesse conceito. Mas os desinformados às vezes atribuem a Marx o fomento do
ódio do qual falou Lênin.

Marx tinha um profundo desgosto com qualquer tipo de ódio. Aliás, em suas análises
sobre revoluções, ele descobriu que os setores movidos pelo ressentimento e inveja, e que
produziam o ódio como motor de ação, nunca eram aproveitados para transformações,
mas única e exclusivamente para reações aos atos progressistas. Ele localizou esses
sentimentos “baixos” no lumpemproletariat, o conjunto dos parasitas sociais vindos de
certo tipo de pobreza, prontos para se unirem a parasitas sociais vindos de camadas da
burguesia ou da nobreza empobrecidas, ou então de camadas da pequena burguesia com
medo de se proletarizar. Esse lumpemproletariat foi visto por Marx como, não raro,
servindo aos governos como bucha de canhão para a reação diante de qualquer revolução.
Hitler e outros personagens fascistas, de Mussolini a Pinochet passando por Franco e
Salazar, nunca precisaram ler Marx para saber das funções do lumpemproletariat. Eles
mesmos se conheciam como membros desses setores inadaptados socialmente, gente
que, em seu tempo, acreditava que merecia mais do que tinha, em todos os sentidos.
Todavia, essas pessoas tinham somente o fracasso frente à modernização das relações e o
advento de uma cultura mais sofisticada que eles eram incapazes de compreender. Sabe-
se como que Hitler se achava um gênio artístico rejeitado pela Escola de Artes, e como ele
não compreendia a arte senão por meio de um arremedo da atividade do copista de
figuras clássicas. O partido nazista sempre colheu seus adeptos entre jovens incapazes de
compreender as modificações da urbanização e a sofisticação intelectual de grandes
artistas que, não raro, eram judeus. Grupos de infelizes e personalidades mais ou menos
parecidas com as do próprio Hitler, além de uma massa de figuras completamente imbecis,
vieram para o partido Nazista. Através de golpes, assassinatos e atos ilegais foram se
infiltrando na máquina de governo, antes e depois do comando do governo estar
completamente nas mãos de Hitler.

Essa personalidade típica do militante fascista, que agrupa a inveja e o ressentimento à


mediocridade e à incapacidade de pensamento sofisticado, esteve presente nos chefes
nazistas, e isso alimentou o ódio social porque eles próprios não sabiam exibir uma outra
fonte de motivação para si mesmos senão a explicitação desse ódio. Cansados de
tentarem se machucar por dentro para conter esse ódio, eles viram no fascismo a
libertação de si mesmos para poderem machucar os que viveram as modificações da
modernidade sem sofrimento interior.

No campo da filosofia as análises mais comuns a respeito da formação da personalidade


de gente assim, predisposta aos atos de caráter fascista, são as da Escola de Frankfurt e as
de Hannah Arendt, ambas extremamente pertinentes e conhecidas. Os membros da Escola
de Frankfurt, grosso modo mostraram os fascistas como fruto de problemas econômicos
que inviabilizaram grupos sociais quanto à tarefa de manter algum nível de bem estar. 15
Por sua vez, Hannah Arendt notou as características burocráticas e de incapacidade de
pensamento (no sentido da reflexão e da consciência) em lideranças nazi-fascistas. 16
Todavia, Peter Sloterdijk, em Ira e tempo, brinda-nos com novas chances de reflexão sobre
o assunto, indo além do que vulgarmente fazemos ao falar em fascismo atual.17

Sejamos justos: o mérito de Sloterdijk é grande, mas ele não deixa de lembrar que seu
aprendizado em parte vem de um professor de filosofia que foi, segundo ele mesmo, mal
15
Ver: Ghiraldelli, P. O que é “Dialética do Iluminismo”. Barueri-SP: Editora Manole, 2010.
16
Ver: Arendt, H. A vida do espírito. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
17
Sloterdijk, P. Ira e tempo. São Paulo: Estação Liberdade, 2012.
aproveitado à medida que foi absorvido pelos setores conservadores americanos: Leo
Strauss, professor de Fukuyama. Dou razão à Sloterdijk, pois de fato no Plato’s
Symposioum de Leo Strauss há uma utilíssima visão sobre a distinção entre eros e thymos
que se ajusta bem ao que se faz necessário para uma noção melhor da política e suas
relações com o que, aqui, aproveitarei para falar do ódio social.

Leo Strauss faz uma distinção entre duas obras de Platão, A República e o Banquete,18
dizendo que o primeiro trata mais propriamente da política e o segundo do que não é
político.

A explicação toda começa no retorno à fala de Diotima, no Banquete, na qual ela distingue
três formas de eros, ou seja, três formas do amor ou desejo. Há o desejo de imortalidade
por meio da procriação de filhos. Nisso se revela o amor heterossexual. Há o desejo de
imortalidade por meio da fama e, por fim, o amor ou desejo do belo. O desejo de
imortalidade pela procriação – os pais que querem se preservar por meio dos filhos –
mostra-se como amor de si próprio ou auto-preservação, e aqui se revela o campo da
heterossexualidade. O desejo de imortalidade por meio da fama, alcançada por feitos e
façanhas, e do que se pode produzir para oferecer o belo a quem é belo, o amado, se
revela como uma fase da pederastia, em que há a melhoria das almas. Por fim, o desejo do
belo inclui pederastia, ou seja, cuidado, tanto da alma quanto do corpo, e que culmina na
visão do belo em si, onde o amor corporal se eleva para o amor das Formas, e o desejo se
revela como desejo do saber, a própria filosofia.19

Indo para a República, Leo Strauss lembra a divisão triparte da alma, composta então por
desejo, espírito (brio) e razão. Ora, o espírito nesse caso tem a ver com o thymos, com o
brio ou a coragem, que se relaciona também com indignação, e tem a ver com a justiça e o
direito. O brio (ou um tipo de orgulho) está diretamente envolvido com a propensão em
repelir o hostil e o que é estranho ou estrangeiro. A partir dessa perspectiva, nota-se que o
brio ou o orgulho relaciona-se com o amor-próprio. Mas o amor-próprio (ou a
autoestima), no Banquete, não é valorizado. Neste, o amor tem de caminhar no sentido do
belo, e há aí uma transcendência em relação a si próprio. Assim, nos mais altos estágios de
eros, apresentado no Banquete e não na República, não há vez para o thymos ou o brio ou
a coragem como parceiro. Em outras palavras: no Banquete, em que se fala da filosofia,
que é o que se atinge na escalada para o belo, não há lugar para o thymos, enquanto que

18
Strauss, L. On Plato’s Symposium. Chicago: University Chicago Press, 2011, pp. 240-45.
19
Ver: Ghiraldelli. P. A filosofia como medicina da alma. Barueri-SP: Editora Manole, 2011 e
Ghiraldelli, P. Sócrates: pensador e educador. São Paulo: Cortez, 2015.
na República, ele encontra seu lugar, principalmente entre os homens que o desenvolvem
e, então, irão proteger a cidade, os soldados.20

Aqui, pode-se em parte concordar com Leo Strauss, que por outras vias afirma aquilo que
Hannah Arendt bem anuncia: na Grécia Antiga dá-se a separação, até hoje não
reconciliada, entre filosofia e política. Em Arendt pode-se falar na morte de Sócrates pela
democracia como o cume dessa situação de ruptura. 21 Em Leo Strauss pode-se falar de
uma separação motivacional, que mostra que não há nenhum ingrediente do thymos, do
espírito ou brio, no campo do propriamente filosófico.22

Voltando a Peter Sloterdijk, podemos notar sua lembrança de que é no livro IV da


República que Platão distingue a doutrina do thymos, e que ali se descobre o que se pode
chamar de autorrecusa, reprovação contra si mesmo. Nisso, ele diz, “inicia-se a aventura
da autonomia”. “Somente quem pode repreender a si mesmo pode governar a si mesmo”.
E continua:

“a concepção socrático-platônica do thymós forma (...) um marco no


caminho que conduz à domesticação moral da ira. Ela se coloca a meio
caminho entre a veneração semidivina da menis homérica e a rejeição
estoica de todos os impulsos irados e abruptos. Graças à doutrina
platônica do thymós, as emoções civis belicosas receberam a permissão
de permanecer na cidade dos filósofos. (...) o thymós civilizado pode ter
alojamento em seus muros como o espírito próprio à capacidade de
defesa”.23

No livro IV de a República, Platão mostra como as funções de cólera se aliam aos desejos
ou à razão, conforme o caso, e então chega à conclusão de que elas são de uma ordem
própria, a ordem da parte intermediária da alma, a do thymos. A temperança ou a
harmonia da alma e a harmonia do comportamento são a sophrosine, e isso é alcançado
se o thymos se vê como companheiro da razão. Então, a coragem ou a cólera ou a ira bem
atuam, quando têm de atuar, pois, afinal, há coisas que não se resolvem sem elas, mas por
meio delas sob o controle racional. A parceria entre o thymos e a razão é o caminho
melhor, e não a articulação entre desejos e thymos. Essa situação só encontra seu caminho
correto, para Platão, nas formas que alentam a boa educação, em oposição à má

20
Strauss, L. Op. cit.,pp. 242-3.
21
Arendt, H. Filosofia e política. In: A dignidade da política. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 2006.
22
Strauss, L. Op. cit., p. 243.
23
Sloterdijk, P. Op. cit., p. 39.
educação. Como de praxe, Platão raramente deixa para outro campo senão a educação a
solução de problemas relativos à cidade.

5. O perdedor

Na conta de Sloterdijk, tudo isso é carregado sob o olhar também moderno. Citando
Hegel, ele lembra como que essa função timótica atina para as necessidades envolvidas na
“luta por reconhecimento”. O thymos é o lugar do brio, de um certo autorreconhecimento
moral, e pode ter a ver, claro, com a identidade social (ou correlatos). Nesse caso, faz parte
das fontes motivacionais de atitudes de reconhecimento que indivíduos e grupos solicitam
de outros indivíduos ou grupos. A emoção timótica, na análise de Sloterdijk, associa-se ao
desejo de ver ratificado o sentimento do valor próprio em ressonância com os outros. É
exatamente essa questão do reconhecimento que se põe como centro de irrealização no
contexto atual, onde o ressentimento, a inveja e o ódio comandam grupos.

A feliz análise de Sloterdijk se faz à medida que ele não localiza tais sentimentos a partir
somente de divisões econômicas e classes sociais estanques, mas simplesmente nota-os
segundo a melhor observação de uma espécie de “psicologia política” de estados
timóticos. O que ele aponta é que não é eros que comanda o ódio atual, pois não se trata
de questões de posses, mas luta por reconhecimento, e nesse sentido é de fato o campo
do thymos que está em jogo e sendo invocado. Há uma “nova economia da ira”, ou seja,
uma nova forma de lidar com o funcionamento da ira.

Em uma situação de relativa paz, com o fim da Guerra Fria, em que o mundo liberal se
torna a regra, “o reconhecimento mútuo de todos por todos como concidadãos de uma
comunidade em que todos possuem os mesmos direitos, permanece, na verdade, por
demais formal e desprovida de especificidade para abrir aos singulares o acesso à
consciência feliz”. Num mundo de liberdades os homens ainda mais aspiram aos
“reconhecimentos específicos que se manifestam no prestígio, no bem-estar, nos
privilégios sexuais e na superioridade intelectual”. Mas, como tudo isso nem sempre é
possível para todos nessa sociedade24, “acumula-se entre os competidores inferiores no
sistema liberal um grande reservatório de inveja e mau humor”. Quanto mais a sociedade
é “apaziguada em seus traços fundamentais, tanto mais rico em cores se mostra o
florescimento da inveja de todos contra todos”. Observamos então que essa “inveja
enreda os candidatos aos melhores lugares em pequenas guerras, que penetram aspectos
conjuntos da vida”.25 “O mundo antigo”, diz Sloterdijk,

24
Idem, ibidem, p. 57.
25
Idem, ibidem, 57-8.
“conhecida os escravos e os homens sem liberdade – eles eram os
portadores da consciência infeliz de seu tempo. Os modernos inventaram
o perdedor. Esta figura, que se encontra a meio caminho entre os
explorados de ontem e os supérfluos de hoje e amanhã, é a grandeza
incompreendida nos jogos de poder das democracias. Nem todos os
perdedores podem ser aquietados com a referência ao seu status
corresponder à sua posição numa competição. Muitos irão contrapor
que nunca tiveram chance de tomar parte no jogo e de se posicionar de
acordo com essa participação”.26

Desse modo, os magoados da terra se indispõem não só contra os que julgam vencedores,
estruturais ou conjunturais, mas também contra as regras do jogo. Devemos bem ficar
atentos porque nessas circunstâncias vale o dito: “no que cessam as batalhas físicas,
irrompem as guerras metafóricas”.27

Temos aí, pela via de um olhar que apreende a psicologia timótica, e não mais o modelo
de compreensão da vida social e política pela erótica (talvez mais próprias para se notar a
filosofia e não a política), que as questões de posse são secundarizadas pelas questões de
visibilidade social e reconhecimento, e da geração de inveja e ressentimento quando o
reconhecimento não emerge. Essas situações não estão mais presas a classes, típicas da
análise marxista a respeito do lumpemproletariat, nem a grupos de inadaptados, como
quando vemos o ódio nascer de setores aproveitados pelo fascismo, mas simplesmente de
como o sentimento diluído de não reconhecimento perambula por inúmeras pessoas.
Quando notamos isso, vemos de uma maneira melhor o caráter social relativamente
heterogêneo de movimentos de ódio na Internet e em algumas manifestações de rua.
Trata-se de uma verbalização de ódio, e uma tentativa de rebeldia diante das escalas de
leis que querem civilizar esse ódio. O thymos civilizado pedido por Platão pela educação
falhou faz tempo.

Por essa análise, seria errado chamar os que hoje expelem ódio social de “fascistas”.
Fazemos isso, às vezes, porque não temos outro vocabulário jornalístico para tal. Mas, de
um modo rigoroso, não estamos diante do fascismo propriamente dito, nem de
comportamento fascista na sua característica canônica. A retórica se impõe no debate
mais que atos físicos ou mesmo de estratégias de exclusão real. Isso não quer dizer que
não estejamos, no mundo Ocidental, vivendo um momento de violência verbal que é de
fato violência. Conforme o país isso é preponderante na esquerda ou na direta. Quando é
na direita, então mais ainda recorremos ao termo “fascista”. Todavia, o que estamos
26
Idem, ibidem, p. 58
27
Idem, ibidem, 57.
presenciando é um esmerar do ódio social por conta da busca por reconhecimento por
meio do olhar do outro. Além disso, o excesso de espelho na casa de cada um, temos de
lembrar, traz uma visão às vezes clara de que há mesmo o perdedor; há um sentimento
horrível de ser perdedor em uma sociedade que parece prometer que todos podem ser
não ricos, mas vencedores. Uma sociedade que promete pequenos orgulhos pode ser
frustrante quando até o que é pequeno é negado, quando o espaço limitado já está
reservado através de um arquivo que possui a rubrica “perdedor” adrede preparada.

6. Economia do excesso

Em Darwin não há “a sobrevivência do mais apto”, mas do mais adaptável às condições


concretamente oferecidas. Esse tipo de sobrevivência é que incomoda Nietzsche. Aliás,
incomoda-o mesmo é a “sobrevivência”. O termo já indica uma evolução submissa aos
instintos de conservação, marca do tipo “fraco”. Aqui, em certo sentido, Nietzsche se
parece com Hegel. Também este vê no homem a marca de busca da desprogramação
biológica para poder arriscar sua vida. 28 Mas, enquanto isso torna o homem, na visão de
Hegel, um ser da cultura que apresenta tal característica como a sua eterna busca de
liberdade, Nietzsche vê qualquer manifestação de afirmação da vida, e não da mera
sobrevivência no cosmos, como algo transbordante e regido pela vontade de potência. O
exemplo de Nietsche é significativo: ele nos lembra da célula que joga seus pseudópodes
para apanhar uma bolha de água maior que ela e, então, explode. Nietzsche não dá a
mínima para a liberdade porque ele não vê a natureza como a natureza do homem
moderno, mas como physis do grego antigo, e procura interpretar o transbordar como o
que pode saudavelmente ser um retrato de sua cosmologia.

Esse princípio da não-conservação, do louvor do gasto e do dispêndio que não se prende à


pequena lógica, também se encontra em Georges Bataille. Segundo Sloterdijk, Bataille viu
a economia com outros olhos porque soube buscar intuições a partir de sua leitura de
Nietzsche. Bataille é o pensador que, para Sloterdijk, se livra da economia focada no
império da troca de equivalentes. Ele é o teórico da economia do dispêndio, não da troca.

Baseado em Marcel Mauss, Bataille lembra que não devemos focar na troca, mas nos
fenômenos do potlach. Trata-se de algo que parece uma troca, mas efetivamente não é
uma troca por posses. Ao contrário, liga-se a festivais que implicam em rituais de
passagem, em que há o gasto do rico de modo a humilhar o mais pobre, mas de uma
maneira praticamente ilimitada. É como uma “queima” de bens. Mas há formas de potlach
que destoam de qualquer troca ou busca de humilhação do mais pobre, mas
simplesmente é o exercício do gasto em si, do dispêndio. O ideal do potlach é o dar sem
28
Taylor, C. Hegel. Sistema, método e estrutura. São Paulo: Realizações Editora, 2014.
esperar qualquer retorno. Bataille anota os gestos que colocam nossa sociedade como
uma sociedade do dispêndio desmedido: o presentear com uma jóia, a sangria de milhares
homens ou animais em função rituais de sacrifício religioso, os jogos de todo tipo, as
construções e façanhas artísticas. São formas todas que tem lá sua ludicidade, que tendem
a funcionar de modo mais difícil em uma sociedade em que há fortunas que ainda se
acumulam, mas que, uma vez mais estáveis, estão aptas a gerar investidores que nada
pedem em troca. Pois, no limite, a ideia do gasto, no sentido fornecido por Bataille, é sim a
ideia do gasto daquilo que pode se esvair. Em um célebre texto seu, “A noção de gasto”,
ele conclui:

“De fato, de um modo mais universal, isolado ou em grupos, os homens


acham-se constantemente engajados em processos de gasto. Variações
em formas não alteram de modo algum as características fundamentais
desses processos, cujo princípio é a perda. Uma certa excitação, cujo
resumo total é mantido em um plano perceptível constante, anima
coletividades e indivíduos. Em sua forma intensificada, os estados de
excitação, que são comparáveis a estados tóxicos, podem ser definidos
como o ilógico e irresistível impulso de rejeição de bens materiais ou
morais que teriam sido possíveis de utilizar racionalmente (em
conformidade com o balanço de contas). Conectado às perdas que são
realizadas desse modo – no caso da ‘mulher perdida’ tanto quanto no
caso dos gastos militares – está a criação de valores improdutivos; o mais
absurdo desses valores, e um que faz as pessoas mais vorazes, é a glória.
Tornada completa por meio da degradação, glória, aparecendo algumas
vezes em forma sinistra e outras vezes em brilhante forma, nunca
cessaram de dominar a existência social; é impossível tentar fazer
qualquer coisa sem isso quando se está dependente da prática cega da
perda social ou pessoal.”29

Considerando essa perspectiva, Sloterdijk recria então o que chama de uma “economia do
orgulho”, segundo a qual o devedor e o culpado, presos ao mesmo nó do passado, o do
contrato da dívida ou do pagamento de uma falta, são libertados pelo credor e pelo
justiceiro. Dá-se aí aquilo que Hannah Arendt viu no cristianismo como um ponto de
libertação, que é o perdão como elemento que zera contas e pode, então, jogar todos os
participantes para pensar no futuro. Sloterdijk não cita uma tal referência, mas acredita
que a maneira como Bataille faz suas descrições, guarda esse impulso como base de algo
que Nietzsche ensinou em contestação a Anaxágoras: não há restituição. A não existência
29
Bataille, G. The notion of expenditure. In: Visions of excess. Select writings (1927-1939).
Minneapolis: University of Minnesota Press, 1986, pp. 128-29.
da restituição em termos ontológicos é um ataque à visão de que o universo é regido por
uma balança, por um dá-lá-toma-cá crente na apologia da proporcionalidade. Nesse
sentido, segundo Sloterdijk, há em Nietzsche o ‘amor ao distante’. Pode-se então
aproveitar a descrição de Bataille para pensar na “virtude dadivosa”. 30

Caminhando por essa via, Sloterdijk entende como uma virada para uma economia
timótica, não erótica, o que ele descreve como “economia do orgulho”. Ele a vê vigente no
capitalismo, quando este se torna opulento, pois não raro revela aqueles que fazem
doações sem retorno, em favor de causas de bem estar. Não se trata aqui, bem diz
Sloterdijk, de tomar esse modelo como uma posição romântica de quem usaria Bataille
para propor um “comunismo de pessoas ricas”, nem o apontar de um “caminho aristocrata
para a distribuição de bens em termos social-democratas ou socialistas”. 31 Trata-se de ver
uma fenda no capitalismo. Isso não seria estranho a Marx, caso tomado literalmente: o
capitalismo gera situações contra si mesmo. Nesse caso, Sloterdijk lembra como que esse
sistema generoso dentro do capitalismo tem a sua via real na América, sendo já bem mais
difícil na Europa. Acreditando que existam sujeitos históricos que possam representar a
tendência de investidores que acumulam e outros que doam, Sloterdijk comenta: “Onde
homens de negócio de um tipo cotidiano na melhor das hipóteses ampliam a sua própria
fortuna ou a fortuna de seus acionistas, os investidores do outro tipo acrescentam novas
luzes ao brilho do mundo”. De fato, Sloterdijk tem o que comemorar ao lembrar-se de um
empresário tipicamente patrocinador, Andrew Carnegie, que por volta de 1900 disse
‘Quem morre rico envergonha sua vida’. 32

7. Observação final

O que é notável em Sloterdijk é seu esforço, que penso bem sucedido, em elaborar uma
concepção bem diferente de variantes do freudomarxismo. E isso em relação às narrativas
em geral, e especialmente quanto à subjetividade.

A concepção freudo-marxista trabalha com luta de classes, economia da produção, pulsão


de vida e pulsão de morte. Com esses elementos, a civilização se desdobra em luta de
classes e processos de sublimação, um modelo narrativo bem claro na Teoria Crítica.
Sabemos que esse modelo está ligado ao desenho do homem moderno disposto entre
razão e paixão e, enfim, quando sentimentos fundidos de ira-orgulho-doação-gasto
surgem, eles não se encaixam nesse quadro rígido e, então, são postos como paixões, ou
seja, situações irracionais. Essa psicologia moderna redutora não serve para Sloterdijk,

30
Sloterdijk, P. Op. cit., p. 47.
31
Idem, ibidem, p. 48.
32
Idem, ibidem, p. 47
pois ela patologiza tudo aquilo que condena. No paradigma de Sloterdijk os processos
ditos falhos ou desconfortáveis ou não aconselháveis não caem para a rubrica “paixão
irracional”. O thymos permite que sentimentos duplos fundidos se explicitem, e que nós,
considerando isso, possamos entender o que se passa sem apelar para uma visão médica,
digamos. Nem o fascista e nem o doador são casos patológicos, mas pessoas que agem
segundo um desenvolvimento possível das forças timóticas.

Talvez com isso possamos ter pessoas que ajudam causas nobres sem virar anjos, e
pessoas que causam o mal de outras porque são más, de modo a não terem que ser
mortas ou internadas em hospitais para loucos ao final das novelas. Se pudermos escapar
de narrativas assim, talvez possamos ser mais adultos.

Paulo Ghiraldelli, 58, filósofo.

Você também pode gostar