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Dostoiévski: fascismo e redenção
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Emily Dickinson: imagem, ritmo, pensamento
O humor da serpente
A poesia de todo dia
Formação filosófica
Em 1924, aprovada com distinção na Universidade de Berlim, estuda grego
e latim, assim como teologia. Decidida a buscar tudo que fosse importante
no âmbito dos estudos da filosofia na época, parte para a Universidade de
Marburg, onde conhece o filósofo Martin Heidegger, com quem, além de ter
aulas, viveu um romance que a marcaria pela vida toda. Esse romance foi
duramente criticado em razão das posições próximas do nazismo de
Heidegger e da pretensa falta de condenação dessa postura por parte de
Arendt. Na verdade, ela não deixou de criticá-lo em cartas a amigos,
conforme registra a sua extensa correspondência, mas visitou-o no pós-
guerra diversas vezes, além de defender e difundir seu pensamento nos
Estados Unidos.
Com ele, Hannah Arendt aprende o que passaria a ser seu método
principal: o “pensar apaixonado”, isto é, a possibilidade de uma síntese entre
o pensar e o estar vivo. Pensar não é pensar sobre alguma coisa, mas pensar
alguma coisa. Não existiria neste pensar oposição entre razão e paixão, ou
entre o espírito e a vida. Dos tempos passados com Heidegger levaria, além
do pensar apaixonado, o amor pela poesia, mas também uma visão crítica em
relação a uma filosofia voltada para o indivíduo em isolamento. Essa seria,
posteriormente, uma de suas principais preocupações em relação à
modernidade: a tentação do ser humano para a interiorização e a
consequente perda do espaço público ou do que ela chamou de “dignidade
da política”.
Preparando sua tese de doutorado, O conceito de amor em Santo
Agostinho, por recomendação de Heidegger parte para a cidade de
Heidelberg para estudar com Karl Jaspers, de quem se tornaria amiga e
discípula até o final da vida. Arendt herda de Santo Agostinho o conceito de
comunidade. Para Santo Agostinho, amamos uns aos outros pois
pertencemos à mesma comunidade: todos nós descendemos de Adão (daí a
ideia de gênero humano) e todos compartilhamos do mesmo destino: a
morte. No entanto, é preciso observar que a morte, nesse contexto, não
significa o fim. A morte, para Santo Agostinho, remete necessariamente ao
nascimento. Assim, nosso destino comum nos faz lembrar do início, do
milagre do início, do novo começo, ou da “natalidade”, como diria Arendt,
termo que passaria a ser uma categoria central de seu pensamento.
Refugiada
Em 1933, porém, Arendt e seu primeiro marido, Günther Stern, um colega
de faculdade especialista em filosofia da música, são forçados a sair da
Alemanha rumo à França, em consequência da intensificação das
perseguições aos judeus. Ela já havia sido detida e interrogada diversas
vezes, em razão de seu trabalho para a Organização Sionista Alemã, com a
qual romperia em 1944, por discordar da posição do sionismo em relação à
Palestina. Permanece em Paris até 1941, onde continua a desenvolver seus
trabalhos tanto intelectuais como políticos, torna-se amiga de Walter
Benjamin, separa-se do primeiro marido, casa-se com o segundo, o
anarquista Henrich Blücher, que conhecera em 1936. Depois de ser presa
num campo de concentração perto da fronteira espanhola (Gurs), por
algumas semanas, decide fugir mais uma vez e parte para Nova York, onde
permanecerá o resto de sua vida.
Nessa época, Arendt já estaria marcada por três vertentes ou formas de
pensar: a primeira seria a utilização do mundo clássico como base para a
verificação de proposições morais e políticas; a segunda seria a filosofia
cristã baseada em Santo Agostinho, em especial a questão da
responsabilidade pessoal, e a filosofia cosmopolita de Kant; em terceiro
lugar, os filósofos da tradição do existencialismo: Kierkegaard, Husserl e
Heidegger.
Durante muitos anos após sua fuga da Alemanha, Arendt tornar-se-ia
apátrida, isto é, sem nacionalidade alguma. E isso não é um detalhe, pois
influenciaria suas reflexões acerca do chamado “direito a ter direitos”, ou
seja, da cidadania, na garantia dos direitos humanos. Somente em 1951
consegue a cidadania norte-americana. Esse ano também seria o de sua
consagração. A publicação de sua obra Origens do totalitarismo é saudada,
nos EUA, como grande acontecimento e ela passa a receber o
reconhecimento público de seu pensamento. Nessa obra, Arendt descreve o
processo pelo qual, depois dos Tratados de Paz que puseram fim à 1ª Guerra
Mundial, os direitos do homem herdados da tradição das Revoluções
passaram por uma prova de fogo. Considerados inexistentes para uma
categoria de pessoas tidas como “sem direitos” por serem apátridas, os
direitos do homem demonstraram sua ineficácia quando desvinculados da
cidadania.
Essa era também a situação das pessoas pertencentes às minorias
nacionais de muitos países, que por força da guerra, haviam sido
transformadas em refugiadas, sem encontrar um lugar no mundo. Eram os
chamados “indesejáveis da Europa”, como dizia Arendt: “Uma vez fora do
país de origem, permaneciam sem lar, quando deixavam seu Estado,
tornavam-se apátridas: quando perdiam seus direitos humanos, perdiam
todos os direitos, eram o refugo da terra”.
A crítica que Arendt efetua da questão dos direitos do homem diz
respeito à sua abstração, que se tornaria manifesta no momento em que não
tivessem mais apoio na cidadania: “Os direitos do homem, afinal, haviam
sido definidos como inalienáveis porque se supunha serem independentes de
todos os governos: mas sucedia que, no momento em que seres humanos
deixavam de ter um governo próprio, não restava nenhuma autoridade para
protegê-los e nenhuma instituição disposta a garanti-los”.
A emergência do totalitarismo, com seus requintes de crueldade em
relação aos seres humanos destituídos de proteção estatal, só veio a ser
possível, segundo Arendt, porque foi precedida por um processo, no entre
guerras, que ela denominou “destituição do humano”. Esse processo se deu
por etapas: primeiro, a destruição jurídica e moral dos indesejáveis, para
chegar então à sua destruição psicológica e física. Não é por acaso que os
nazistas iniciaram a perseguição aos judeus e outras minorias dentro da
Alemanha, privando-os da cidadania. A desnacionalização havia-se tornado
poderosa arma da política totalitária. A “solução final” de Hitler, aponta
Arendt, seria uma eloquente demonstração de como liquidar os problemas
relativos às minorias e aos apátridas. O nazismo ilustraria, de forma
concreta, a vacuidade de princípios humanistas e de direitos abstratos em
relação a pessoas privadas de cidadania.
Conforme aponta Celso Lafer, em A reconstrução dos direitos humanos
– um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt, a reflexão da pensadora
sobre a condição de apátrida permite-lhe concluir que, num mundo como o
do século 20, inteiramente organizado politicamente, perder a cidadania
significava ser expulso da humanidade, de nada valendo os direitos humanos
aos expelidos da trindade Estado/povo/território.
Nem a sacralização do direito natural pelo pensamento humanista,
oriundo do Iluminismo, nem o modelo do Estado-nação ofereceram
garantias para impedir o advento do totalitarismo e a barbárie consecutiva.
“O conceito de direitos humanos, baseado na suposta existência de um ser
humano em si, desmoronou no mesmo instante em que aqueles que diziam
acreditar nele se confrontaram pela primeira vez com seres humanos que
haviam realmente perdido todas as outras qualidades e relações específicas –
exceto que ainda eram humanos. O mundo não viu nada de sagrado na
abstrata nudez de ser unicamente humano” (Origens do totalitarismo).
a condição humana
Origens do totalitarismo (1951), e A condição humana (1958) são as obras
que contêm as ideias mais difundidas de Arendt. Em a Condição humana,
ela procura responder à pergunta: o que estamos fazendo? E a partir de três
categorias de atividades da vida ativa – o labor, o trabalho e a ação – aponta
para a destruição das condições de existência do ser humano no mundo
moderno, operada pela sociedade de massa. Nessa obra, sua proposta
consiste em detectar o que é genérico e o que é específico na condição
humana, por meio do estudo dessas três atividades fundamentais, que
integram o que ela denomina de “vida ativa”.
O labor é uma atividade derivada da necessidade e concomitante
futilidade do processo biológico. Porque é a atividade que os homens
compartilham com os animais, qualifica-a como a do animal laborans.
Segundo ela, “o labor é a atividade que corresponde ao processo biológico
do corpo humano, cujo crescimento espontâneo, metabolismo e eventual
declínio têm a ver com as necessidades vitais produzidas e introduzidas pelo
labor no processo da vida. A condição humana do labor é a própria vida”.
O trabalho, ao contrário do labor, não está contido no processo vital. É
através dele que o homem, neste caso o homo faber, cria coisas, extraídas da
natureza, convertendo o mundo num espaço de objetos partilhado com seus
semelhantes. É a atividade que garante a permanência de um mundo comum,
a durabilidade do mundo. “É esta durabilidade que empresta às coisas do
mundo sua relativa independência dos homens que a produziram, garantindo
a permanência do mundo.”
A terceira atividade, a ação, segundo ela, é a única que se exerce
diretamente entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria, e tem
como atributo criar a possibilidade para o exercício da liberdade e,
consequentemente, a instauração do novo. No entanto, a ação desencadeia
um processo irreversível e imprevisível. Preocupada com a “fragilidade dos
assuntos humanos” em que os atos são irreversíveis e imprevisíveis, e com a
garantia do espaço público, Arendt apresenta, como possível solução, o
emprego de duas potencialidades da própria ação: o perdão e a promessa. “A
única solução possível para o problema da irreversibilidade – a
impossibilidade de se desfazer o que se fez, embora não soubessem ou não
pudessem saber o que se fazia – é a faculdade de perdoar.”
Para Arendt, existem, contudo, duas ressalvas a serem feitas em relação
ao perdão. A primeira diz respeito ao que ela denomina, na esteira de Kant, o
imperdoável ou o “mal radical”, cujo exemplo mais próximo eram os crimes
contra a humanidade cometidos pelos nazistas na 2ª Guerra Mundial, em
relação aos quais não haveria a possibilidade de perdão. A outra ressalva
consiste na ideia de que o que se perdoa não é o ato e, sim, o agente. O
perdão é dirigido a alguém que cometeu algo. É, portanto, um ato de amor.
Quanto à possibilidade de um substrato divino do perdão, Jacques Derrida,
que também se dedicou profundamente ao tema (Foi et Savoir), ao falar de
Arendt lembra-nos que, para ela, o perdão é uma experiência puramente
humana, mesmo no caso de Cristo, que ela, para lembrar suas raízes
terrestres, chama sempre de Jesus de Nazaré.
Sendo as ações humanas, além de irreversíveis, imprevisíveis, Arendt
observa que a “solução para o problema da imprevisibilidade, da caótica
incerteza do futuro, está contida na faculdade de prometer e cumprir
promessas”, e chama a atenção para o fato de que, contrariamente ao perdão,
que sempre foi considerado irrealista e inadmissível na esfera pública, a
promessa sempre esteve presente, desde os romanos, por meio da ideia da
inviolabilidade dos pactos. A promessa instala “ilhas de previsibilidade” no
oceano de incertezas dos assuntos humanos.
Como podemos ver, Arendt passaria a dedicar-se à política de forma
integral. Em entrevista à televisão alemã, em 1964, afirmou: “Não sou
filósofa. Minha profissão – se pode ser chamada assim – é a teoria política.
Eu me despedi irreversivelmente da filosofia. Estudei filosofia, mas isso não
quer dizer que permaneci nela. A razão, por si mesma, a faculdade de pensar
que possuo, tem necessidade de atualizar-se”. A preocupação com a política
permeia toda sua obra, quer pela análise de regimes ou sistemas de governo,
como o totalitarismo, ou de temas correlatos, como autoridade, liberdade,
revolução, violência e desobediência civil, em livros como Entre o passado e
o futuro, Crises da república e Da dignidade da política. A seu ver, o
exercício do pensamento político consiste em mover-se na lacuna entre o
passado e o futuro, tomando os acontecimentos do presente, da experiência
viva, dos quais o pensamento pode emergir.
a banalidade do mal
Em 1961, um acontecimento seria determinante no percurso intelectual de
Arendt. Enviada a Jerusalém para assistir e cobrir, para a revista New Yorker,
o julgamento do criminoso nazista Eichmann, essa experiência resultará na
redação posterior do livro Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a
banalidade do mal. Foi no seio da comunidade judaica, estendendo-se
posteriormente a outros meios, que se desenvolveu a mais famosa polêmica
gerada pelo livro. Gershom Scholem foi implacável por ela ter relatado as
condições da cooperação das lideranças judaicas, através dos Conselhos
Judaicos, durante o estágio de deportação da “máquina de extermínio”
nazista. “Para um judeu, o papel desempenhado pelos líderes judeus na
destruição de seu próprio povo é, sem nenhuma dúvida, o capítulo mais
sombrio de toda uma história de sombras”, dizia Arendt. Sendo acusada, por
Scholem, de lhe faltar “amor ao povo judeu” (Ahabath Israel), responde que
sempre considerou a sua judaicidade como algo dado que ela jamais quis
mudar ou repudiar, mas que nunca amou povos ou coletividades – como o
povo alemão, francês ou americano, ou a classe operária. Na mesma
resposta, afirma ainda que tinha grande confiança na capacidade de cada um
pensar por conta própria. O “pensar por conta própria” é um legado de
Lessing, uma das figuras intelectuais biografadas por ela em Homens em
tempos sombrios.
A expressão banalidade do mal foi outro foco de discórdia por ter sido
vista como trivialização do ocorrido. Para alguns, Arendt havia traído a ideia
do “mal radical” defendida anteriormente, passando a considerá-lo apenas
como banal. Ocorre que Arendt nunca abandonou a ideia do “mal radical”,
mas o que presenciou em Jerusalém não se enquadrava na definição. A
“banalidade do mal” estava ligada à incapacidade de pensar e à execução
automática de tarefas do burocrata moderno.
Segundo Arendt, Eichmann não era um monstro, mas era difícil não
desconfiar que fosse um palhaço. Até suas últimas palavras foram frases
feitas. Diante dessas palavras, Hannah Arendt explica por que teria sido
levada a adotar a expressão “banalidade do mal”. “Foi como se naqueles
últimos minutos estivesse resumindo a lição que este longo curso de
maldade humana nos ensinou – a lição da temível banalidade do mal, que
desafia as palavras e os pensamentos.” Apesar de concordar com a pena de
morte aplicada, ela nos deixa um alerta: “Faz parte da própria natureza das
coisas humanas que cada ato cometido e registrado pela história da
humanidade fique com a humanidade como uma potencialidade muito
depois da sua efetividade ter-se tornado coisa do passado. Nenhum castigo
jamais possuiu poder suficiente para impedir a perpetração de crimes”.
o retorno À filosofia
Já no final da vida, a partir do início dos anos 1970, ela retorna à filosofia.
Ainda sob o impacto de seu relato do julgamento de Eichmann, em que se
deparou com a incapacidade de pensar como uma dificuldade do juízo
(Eichmann não pensava no que estava fazendo, por isso não tinha a
capacidade de identificar sua conduta como criminosa), ela começa a
escrever A vida do espírito, obra que ficaria inacabada com sua morte em 4
de dezembro de 1975, e que seria dividida em três partes: o pensamento, a
vontade e o juízo. Uma das perguntas desse livro seria: o que estamos
fazendo quando estamos pensando? Sua preocupação consistia em indagar
como podemos, sem nos afastar do mundo ou transcender a ele, retirar-nos
apenas o bastante, ou seja, ter a distância necessária para chegar à
compreensão. Outra pergunta daí resultaria: é a capacidade de pensar que
nos faz distinguir entre o bem e o mal?
A compreensão é a base do pensamento de Arendt. Ela dizia que não
queria educar ou convencer, mas apenas compreender. Pedia ainda que não
nos esforçássemos para concordar com ela, mas apenas pensássemos no que
ela estava dizendo. Pensadora controvertida, manteve-se sempre afastada das
escolas acadêmicas, partidos políticos e linhas ideológicas. Daí decorre a
relutância de alguns meios em aceitar sua obra, pois, como ela mesma dizia,
“de certa forma, eu não me enquadro”. No que se refere à sua visão do
mundo, podemos dizer que seu pensamento é realista, sem, no entanto, cair
no pessimismo estéril. Após o julgamento de Eichmann, ela diria: “As
razões particulares que falam pela possibilidade de repetição dos crimes
cometidos pelos nazistas são ainda mais plausíveis. A assustadora
coincidência da explosão populacional moderna com a descoberta de
aparelhos técnicos que, graças à automação, tornarão ‘supérfluos’ vastos
setores da população, até mesmo em termos de trabalho, e que, graças à
energia nuclear, possibilitam lidar com essa dupla ameaça com o uso de
instrumentos ao lado dos quais as instalações de gás de Hitler pareceriam
brinquedos de uma criança maldosa – tudo isso deve bastar para nos fazer
tremer”.
Os principais temas tratados por Arendt (refugiados, direitos humanos,
crimes contra a humanidade, automação e trabalho, mentira na política e
crises da cultura, da autoridade e da educação) são, infelizmente de grande
atualidade. Devemos, no entanto, lembrar, a partir de seu pensamento, que
nos cabe “examinar e suportar conscientemente o fardo que nosso século
colocou sobre nós sem negar sua existência, nem vergar humildemente ao
seu peso. Compreender significa, em suma, encarar a realidade sem
preconceitos e com atenção, e resistir a ela qualquer que seja”.
Na figura do Rei Lear, Hannah Arendt retrata uma das principais inferências
a respeito de questões éticas e morais: conceitos morais não podem subjugar
nem superar a supremacia de nossas experiências. “Um senso vivo e
duradouro de dever filial é incutido com mais eficácia num filho ou numa
filha pela leitura de Rei Lear do que por todos aqueles volumes áridos de
ética e divindade que já foram escritos.” Em matéria de ética, representa a
supremacia da fidelidade à experiência em detrimento de conceitos e códigos
morais. A abordagem ético-moral de Arendt se dá em dois acontecimentos
significativos para a autora: o fenômeno do totalitarismo como um todo e,
especificamente, o julgamento de Adolfo Eichmann. A partir da reflexão
sobre regimes totalitários em 1951, Arendt expõe o que chama de colapso da
tradição moral ocidental, e descreve o vácuo moral causado pelo
totalitarismo, de modo a requerer uma nova simbologia ético-política. Sua
discussão acerca do mal radical revela o significado das experiências
totalitárias na obliteração da capacidade de compreender o desmantelamento
moral de tais eventos, por carência de categorias conceituais compatíveis a
esse novo fenômeno político. Contudo, a preocupação tardia de Arendt para
com o que denominou de as atividades da vida do espírito, relativas à ação, à
ética e à política, toma forma consistente após o julgamento de Eichmann.
Após confrontar-se com a banalidade do mal na incapacidade de pensar de
Eichmann, Arendt daria início a um tipo de investigação sobre a moralidade
que não havia se dado de forma direta em nenhum momento de sua obra
anterior a Eichmann em Jerusalém. Passa a analisar as implicações de uma
forma de mal na política perpetrado por uma massa burocrática de
indivíduos normais, embora incapazes de submeter os acontecimentos a um
julgamento reflexivo.
Ainda que Hannah Arendt nunca tenha proposto de forma direta um
sistema ético, seus escritos tardios problematizam uma dimensão ética
própria da lacuna moral deixada nas sociedades pós-totalitárias. Essa ética
está sobretudo baseada no relato das faculdades da vita contemplativa:
pensar, querer e julgar. O espaço no qual o homem de ação – o Aquiles de A
condição humana – cria e age politicamente e o tempo em que o ELE
kafkiano, de A vida do espírito, se interpela e ajuíza, se entremeiam no
espaço-entre do domínio público arendtiano. A esse espaço-entre nomeio de
espaço ético da aparência. Em direção contrária a vários intérpretes da obra
de Arendt, que asseveram uma cisão no pensamento da autora entre A vida
do espírito e as noções de ética, ação e responsabilidade, desenvolvidas em
A condição humana, há uma dimensão ética fundamental na produção
intelectual de Hannah Arendt pós-1960, estreitamente articulada a seus
escritos políticos das décadas anteriores.
É bem verdade que a pluralidade ontológica arendtiana ecoa em toda
sua obra. Partindo da premissa de que “somos do mundo, e não apenas
estamos nele”, em que necessariamente vemos e somos vistos, Arendt
assevera que “neste mundo em que chegamos e aparecemos vindo de lugar
nenhum, e do qual desaparecemos em lugar nenhum, Ser e aparecer
coincidem”. O domínio das opiniões e dos juízos políticos se realiza no
âmbito público, no qual sempre aparecemos como cidadãos em meio a
outros, e nos lançamos na chamada aventura do espaço público. “O palco é
comum a todos os que estão vivos, mas parece diferente para cada espécie e
também para cada indivíduo da espécie. Parecer – o parece-me, dokei mo – é
o modo – talvez o único possível – pelo qual um mundo que aparece é
reconhecido e percebido.” Promulgar uma opinião em público significa
expor-se ao teste dos outros. O contínuo teste de alteridade, a chamada
mentalidade alargada, capaz de criar um espaço potencialmente político.
Todavia, no relato um tanto pessimista, particularmente em A condição
humana, Arendt explora o diagnóstico do atrofiamento da nossa capacidade
de imaginar aquilo que nos afeta, nos interpela, apenas como membros de
uma comunidade política. A tendência de equacionar sentimentos e afetos
ora com objetivos ou triunfos pessoais ora com satisfação material ofertada
pelas sociedades de consumo é prova não só do empobrecimento do
imaginário público, mas também de uma certa contração da capacidade de
sentir satisfação com demandas políticas comuns. Nas últimas décadas, a
esfera da interioridade (do self e da vida privada) gradualmente se superpõe
à esfera pública com interesses privados, idiossincrasias individuais e
satisfações pessoais dos sujeitos devedores e consumidores do século 20.
Acompanhada por uma constrição daqueles espaços que nos dizem respeito
apenas como membros de uma coletividade. Esse processo de inversão do
público em privado tem ocorrido não apenas no que a autora chama de
“espaço-entre objetivo,” o domínio da fabricação, a poiēsis do mundo
propriamente dito e de seus objetos, mas substancialmente no “espaço-entre
subjetivo”, a esfera da praxis e da interação política, responsável tanto pela
subjetivação de novos atores políticos, quanto por estabelecer uma espécie
de imaginário comum da coisa pública. A preocupação moderna com o self,
iniciada por Descartes, impulsionada por Kierkegaard e que culminou no
existencialismo, já demonstrava um robustecimento epistemológico das
categorias da interioridade. Os catastróficos eventos políticos do século 20, o
Holocausto com suas “imagens de inferno na terra”, refletem o que Hannah
Arendt chamou de os perigos da desmundialização (worldlessness) e da
superfluidade do humano da nossa época. Paradoxalmente, restou como
refúgio derradeiro a experiência “verdadeira e autêntica” da interioridade.
No prólogo de A condição humana, Arendt estabelece um paralelo
substantivo entre as conquistas do homo faber, o lançamento do primeiro
satélite artificial em 1957 e o concomitante processo de alienação do mundo,
ao deslocar o ponto arquimediano de confiança e credibilidade para uma
localidade desprovida de qualquer topos, qualquer espacialidade, a saber, a
interioridade não partilhada do self .
Precisamente para se posicionar contra tal tendência, ainda no mesmo
prólogo, ela deixa claro que a pergunta central do livro é pensar “o que
estamos fazendo” e atestar a preocupação que perpassa toda sua obra: a
distinção do agir político comum. Tanto na preservação e na continuidade
como na criação e na espontaneidade, faz uso de expressões descritivas que
privilegiam a localização de eventos humanos: o espaço das aparências, os
domínios públicos e privados, a rede de relacionamentos, a polis. Na vita
activa a espacialidade é, portanto, uma dimensão vital. É o espaço no qual o
sujeito trabalha, fabrica e age politicamente. De fato, A condição humana
dignifica filosoficamente o agir humano, o mundo comum, a ação política e
o espaço público em particular. Já em A vida do espírito, a autora nos desafia
a uma fenomenologização da vida contemplativa, cujo ângulo privilegiado é
a visibilidade dos atos e da linguagem. Redireciona o pensar, o querer, e o
julgar ao âmbito da aparência – uma transposição fundamental para a
formulação de uma ética da responsabilidade.
Em antagonismo à sobrestima contemporânea da imagem corporal, na
qual até certo ponto ser e aparecer também coincidem, aqui o que está em
jogo na ética é a visibilidade do espaço público arendtiano de modo a ofertar
um fórum para a liberdade humana, entendido não como um horizonte da
experiência interior, mas como espaço para o exercício da virtude pública.
Endosso a descrição de domínio público proposta por Honig. A autora
descreve o espaço público em Arendt “[…] como uma metáfora para a
variedade de espaços, topográficos e conceituais, que podem ocasionar uma
ação. Podemos ficar com a noção de que a ação seja um evento, um
‘milagre’, uma interrupção da sequência ordinária das coisas, um local de
resistência ao irresistível, um desafio às regras normalizadoras que procuram
constituir, governar e controlar comportamentos”. A fenomenologia de
Arendt de ser “do mundo” e não meramente “no mundo” visa a um novo
simbolismo cultural que interpela alteridade, visibilidade e mundo comum.
Em vez de tomar a estética, o juízo do gosto e o comprazimento (delight)
como referências individualistas em contraposição à universalização da
razão na ética, Hannah Arendt faz uma apropriação da estética de Kant para
destacar a capacidade humana de sentir satisfação naquilo que “interessa
apenas em sociedade”.
É fundamental pôr em evidência de que forma as atividades do espírito,
tal como descritas pela pensadora, não conduzem a juízos determinantes, à
boa vontade racional, a acordos consensuais, ou a meras decisões individuais
autônomas. A ética da responsabilidade não remete a uma ética normativa ou
prescritiva, baseada na ideia de um sujeito razoável ou moralmente bom. Ao
contrário, uma ética de responsabilidade pessoal está ligada à visibilidade de
nossas ações e nossas opiniões articuladas publicamente, que, por sua vez,
estão associadas ao cultivo de um ethos público. O critério final é quem
somos na esfera pública da aparência. Sem querer evitar a indagação
kantiana, “Como devo agir?”, em que pese seu caráter solipsista, minha
preocupação é apontar que as atividades do espírito arendtianas, ainda que
“invisíveis”, articulam as mesmas categorias relevantes para o espaço da
aparência, tais como publicidade, alteridade, juízo e ação política.
Lançando mão do vocabulário kantiano empregado por Arendt em suas
Lições sobre a filosofia política de Kant, A vida do espírito pode ser descrita
como uma obra na qual as atividades do self estão a serviço do mundo
comum. Os sujeitos são “[...] criaturas limitadas à Terra, vivendo em
comunidades [...] cada qual precisando da companhia do outro mesmo para o
pensamento [...]”. As inscrições do self nas reflexões de Arendt acerca das
atividades de pensar, querer e julgar não reproduzem as mesmas
representações do self próprias às teorias do indivíduo autônomo moral e
sujeito às leis da razão prática. O ponto crucial para uma práxis ética da
visibilidade é como o sujeito se singulariza na comunidade política. Fornece
o critério de acordo com o qual a distintividade de cada um de nós está
relacionada ao domínio da responsabilidade.
Vale a pena pôr em evidência uma interrogação original promovida por
Arendt que perpassa grande parte das matrizes discutidas em meados dos
anos de 1960: “a questão de com quem desejamos ou suportamos estar
juntos”. Ainda não tomada devidamente a sério por parte substancial de seus
comentadores, essa reiterada indagação da autora nos confronta com o
constante pleito acerca da escolha de nossa “[...] companhia entre sujeitos,
entre coisas e entre pensamentos, tanto no presente como no passado”. Nos
três níveis distintos de A vida do espírito, as capacidades de pensar, querer e
julgar, está formulada justamente a indagativa ética que nos remete
necessariamente à alteridade, ao(s) outro(s) com quem desejamos ou
suportamos viver, de forma a conduzir à conexão entre vita contemplativa e
responsabilidade pessoal. Significa traçar um pathos da continuidade que
passa pela revelação da opinião (doxa) de cada sujeito à pluralidade do
espaço público. No pensamento, no juízo e na vontade, essa escolha que
envolve o outro com quem viver leva em conta, ao menos, três dimensões
que pretendo destacar ao longo deste artigo: o self, os outros e o mundo. Por
consequência, torna possível identificar, em seus escritos em torno da vita
contemplativa, três níveis de responsabilidade pessoal: a responsabilidade de
pensar, de escolher a si mesmo; a responsabilidade de julgar e de escolher
nossos exemplos; e a responsabilidade para com a durabilidade do mundo
expressa por meio da consistência de nossas ações.
A responsabilidade de escolher a si mesmo está implicada na atividade
de pensar. O pensamento, ao fim e ao cabo, implica a suposição de que
estamos condenados a viver com nós mesmos. O juízo está relacionado à
responsabilidade pessoal, no ponto em que assumimos responsabilidade por
nossas escolhas políticas. A atividade de julgar também promove
responsabilidade pessoal na medida em que nos responsabilizamos pelas
escolhas de exemplos para orientar nossas ações. A responsabilidade pessoal
para com a durabilidade do mundo, finalmente, está ligada à noção de
consistência, uma vez que, ao invés de depender de qualquer condição
interna da verdade, o critério para “[...] o sucesso e o fracasso da iniciativa
de autoapresentação dependem da consistência e da duração da imagem
assim apresentada ao mundo”. A responsabilidade pessoal no que diz
respeito ao mundo comum está ainda relacionada ao que Arendt nomeia de
Amor Mundi, e particularmente à capacidade de prometer. Distinta da
atividade de pensar, no querer “o critério já não é o eu [self] e o que ele pode
ou não pode suportar, aquilo com que pode conviver, mas a execução e as
consequências da ação em geral”. Na atividade de querer, a afirmação do
outro – Amo: volo ut sis, (Eu quero que você seja) – está implícita no Amor
Mundi. Marca “[...] o ponto em que decidimos se amamos o mundo o
bastante para assumirmos a responsabilidade por ele”. O Amor Mundi de
Arendt significa não apenas uma promessa que une seres humanos, mas
sobretudo um imperativo à ação.
A responsabilidade pessoal por quem somos, pelos outros e pela
durabilidade do mundo, confluem no espaço-entre de Arendt (Zwischen-
Raum). Essa relação ética entre a ação e as atividades do espírito de modo
algum significa uma relação de causa e efeito. O espaço-entre pode ser visto
como um espaço ético que não se situa nem na pura esfera privada da
interioridade (inwardness), nem na esfera genuinamente performática de
uma exterioridade desprovida de reflexão e crítica. As atividades de pensar,
julgar e querer desempenham um papel decisivo na constituição de quem
somos, de como agimos e de como decidimos assumir responsabilidade
pelos outros e pelo mundo. Sendo assim, minha preocupação é articular, a
partir da obra de Hannah Arendt, uma dimensão ética cuja base remeta à
visibilidade de nossas palavras e atos, em que, a despeito das nossas
melhores intenções, sobreleva a relevância ética da ação e da experiência.
Um sujeito comprometido com uma ética da responsabilidade pessoal deve
ser capaz de “Logon didonai ‘prestar contas’ – não provar, mas estar apto a
dizer como chegamos a uma opinião e por que razões a formamos [...]. O
próprio termo é político em sua origem: a prestação de contas é o que os
cidadãos atenienses cobravam de seus políticos, não apenas em questões
financeiras, mas também questões políticas”. A luminosidade do espaço
público é crucial para uma ética da aparência, uma ética da responsabilidade
pessoal. Convoca-nos a uma constante “prestação de contas”, para com nós
mesmo, os outros e o mundo. Essa ética da visibilidade abre a possibilidade
de reproblematizar o pathos entre o self e o mundo comum, entre
consciência e experiência – os pilares à inspiração de uma nova simbologia
ética na política.
Não é novidade que a filosofia moderna empreendeu uma tarefa longa e
contínua de produção de dois planos incomunicáveis, a compreensão e o
afeto, protagonizada pelo próprio Kant. Em se tratando de ética, a validade
normativa de regras gerais é mais relevante do que o que sentimos com/pelo
o outro. Entretanto, minha hipótese aqui é a de que, se na inscrição dos
juízos éticos se levar a sério essa virada epistemológica dos afetos atribuída
à representação empreendida por Arendt a partir da estética kantiana, não só
é possível subsumir que atribuição de sentido e afeto mantém uma
implicação epistemológica direta. Ou seja, assumir que uma das bases na
decisão de como compreendemos, atribuímos sentidos e juízos, reside nos
afetos, mas também, e por consequência, que os afetos passam a
desempenhar um papel protagonista na forma como julgamos e agimos. Daí,
pode-se afirmar que a ética é também do domínio dos afetos, ou melhor, os
afetos também se ocupam da ética. Em uma passagem de Responsabilidade
e julgamento, Arendt menciona a necessidade de um “sentimento de
legalidade” capaz de, quando necessário, contradizer as leis do Estado. Cito
novamente a passagem: “o que realmente exigimos deles é um ‘sentimento
de legalidade’ profundo dentro de si próprio, para contradizer a lei do país e
o conhecimento que dela possuem”. Aqui, por analogia, para ser fiel ao
sentido atribuído por Arendt ao juízo político, pode-se apelidar de
“sentimento de injustiça”. Em termos de julgamento, descrito também como
um sentimento, as experiências de injustiça afetam nossa experiência ética, e
nos compelem à ação. Na gramática dos afetos comuns, a experiência de
juízo crítico nos afeta com indignação, com pulsão de vida, com pulsão de
ação, de ação política. Ser afetado por um sentimento de injustiça, acredito, é
uma das formas mais fortes da passagem do escopo da generalidade do
julgamento para a sua experiência particular mais factual. O juízo crítico nos
afeta na experiência da injustiça. A partilha comum das injustiças nos
impulsiona à contestação política. Aqui a constituição do sujeito e a ação
política operam uma espécie de simetria ontológica.
A figura do espectador no juízo arendtiano não se molda à
caracterização de um tipo de imparcialidade desconectada, não padece da
liberdade da imparcialidade, tal qual no julgamento determinante. Ao
contrário de ter como objetivo a verdade (no modelo lógico de representação
do objeto), próprio do julgamento determinante, o objetivo no julgamento
reflexivo arendtiano é o significado, o sentido. Por isso a representação no
formato do juízo determinante não pode “representar” um afeto, uma
indignação. A intensidade com que nos deixamos afetar pelas injustiças, a
intensidade de nossa indignação, de fato, não carece de estabelecer
proporção necessária com o conhecimento das propriedades da
representação formal da justiça. Dito de outra forma, minha hipótese é de
que a teoria do juízo político arendtiano, a partir do juízo estético kantiano,
nos habilita a uma teoria crítica do juízo na qual aquilo que nos afeta nas
formas mais variadas de injustiça é decorrência de um juízo político dos
afetos comuns. Quando Arendt recupera a premissa de que o juízo
discriminatório de “isso me agrada ou me desagrada” implica um segundo
momento, ou seja, nos afeta na forma de um sentimento de aprovação ou
reprovação, é como se nosso juízo crítico fosse capaz de produzir um estado
de ânimo (Gemüt), um sentido, que se declara publicamente. No caso mais
emblemático do sentimento de injustiça, a declaração pública do sentimento
de desagrado, de indignação, se encarna na comunicabilidade. Essa
descrição da forma como nos engajamos em algo de relevância pública
escapa ao discurso do razoável ou do consenso normativo. O tipo de
conceptualização de juízo normativo, ao ter muito mais em conta a
promoção da estabilidade política, não nos instrumentaliza com uma teoria
crítica do juízo político que ultrapasse a esfera da aplicação de regras de
validade, e por consequência, não nos vincula diretamente às experiências
fáticas de injustiça.
Pensamento em diálogo
André Duarte
A prova de vitalidade de um pensamento não reside apenas na avaliação dos
efeitos que foi capaz de produzir enquanto o pensador se encontrava vivo,
mas se confirma em vista de sua capacidade de continuar a produzir efeitos
no pensamento de outros, muito tempo depois da morte do pensador em
questão. Hannah Arendt faleceu há quarenta anos e desde então seu
pensamento vem recebendo claras provas de consagração, prosseguindo
vivo, forte e vibrante tanto no Brasil quanto em diversos outros países, como
o atesta a crescente literatura dedicada à exploração e explicação de aspectos
importantes da obra arendtiana. O pensamento que perdura é aquele cuja
riqueza conceitual permite que outros pensadores possam dele se apropriar
até o ponto de renová-lo e revigorá-lo. Ora, é justamente isto o que vem
acontecendo com a reflexão arendtiana, sobre a qual Judith Butler tem
manifestado claro interesse em livros recentes, como Notes toward a
Performative Theory of Assembly, de 2015.
De fato, desde já algum tempo ela tem ressaltado e valorizado duas
ideias centrais do pensamento arendtiano: a noção de pluralidade, da qual
Butler deriva sua concepção da coabitação e sua crítica às políticas estatais
de caráter genocida, bem como a ideia arendtiana acerca do caráter
performativo do agir e discursar coletivos, os quais instauram novos espaços
e novas realidades políticas entre os agentes para além das fronteiras
institucionais da esfera pública formalmente constituída nos limites da
representação.
Assim, em reflexão de 2011 sobre o movimento Occupy Wall Street,
Butler afirmava que a reflexão de Arendt seria dotada de forte potencial
performativo, especialmente em função de sua concepção de que “ao agir
trazemos o espaço da política ao ser, entendido como o espaço da
aparência”, ideia introduzida em A condição humana, de 1958. Valendo-se
dessa noção arendtiana, Butler discute o processo político pelo qual ruas e
praças se transformam em lugares privilegiados de ação e discussão,
ganhando outro relevo no centro das grandes cidades ao atrair a atenção da
mídia e de pessoas que até então jamais haviam se interessado ou mesmo
sequer participado de reuniões políticas. Nesse contexto Butler reflete sobre
a dimensão performativa das manifestações políticas coletivas e alarga sua
concepção a respeito dos atos de linguagem, assim como, movendo-se agora
para além do pensamento arendtiano, reflete ainda sobre o lugar e a
importância do corpo nas dinâmicas políticas dos mais recentes movimentos
sociais. Neles, boa parte do que realmente importa politicamente diz respeito
à experiência de compartilhamento de um espaço público “ocupado”, no
qual os agentes vivem coletivamente durante certo tempo.
Por certo, já desde Who Sings the Nation (2007) Arendt fornecia a
Butler uma ideia central quanto às potencialidades performativas e
inovadoras do agir político em concerto, a noção do “direito a ter direitos”,
introduzida em Origens do totalitarismo, de 1951. Butler formula sua noção
de performatividade política em diálogo com a noção arendtiana do “direito
a ter direitos”, entendendo-a, a meu ver corretamente, não como enunciado
metafísico ou princípio normativo relativo a um conceito abstrato de
Humanidade, como o faz Seyla Benhabib em The Rights of Others, nem
como instituto jurídico pertencente ao indivíduo isolado enquanto tal. Pelo
contrário, Butler pensa o direito a ter direitos arendtiano como princípio
político performativo, cuja ação própria seria a de promover efeitos
surpreendentes e imprevistos na cena pública, produzindo instantaneamente
aquilo que as regras formais da cidadania tão frequentemente negam a
milhões de seres humanos, isto é, igualdade política e cidadania enquanto
capacidade de ação política coletiva.
Butler relê Arendt por ocasião das manifestações de imigrantes ilegais
de origem latina na Califórnia, ocorridas em meados dos anos 2000, cujo
ápice performático residia em cantar o hino nacional norte-americano em
espanhol, demonstrando assim a complexidade da relação entre a
comunidade latina e os Estados Unidos. Nessas manifestações a comunidade
latina reivindicava publicamente direitos dos quais se encontrava legalmente
privada, gerando assim efeitos políticos inesperados e mesmo paradoxais,
pois a ação política concertada e pública daqueles agentes instaurava em ato
e naquele instante justamente a cidadania e a liberdade política de que eles
se encontravam formalmente privados. Ao manifestarem-se à luz do dia,
expondo-se ao perigo da deportação, tais imigrantes ilegais mostravam
simultaneamente os limites da cidadania formal e a potencialidade política
implicada no agir coletivo fundado em bases de igualdade: “Exercer a
liberdade e afirmar a igualdade precisamente em relação a uma autoridade
que as obstrui é mostrar como a liberdade e a igualdade podem e devem
mover-se para além de suas articulações positivas. [...] O chamado para este
exercício da liberdade que vem com a cidadania é o exercício daquela
liberdade numa forma incipiente: ela começa por exercer aquilo que
reivindica”.
Com o auxílio de Arendt, pois, Butler transpôs sua concepção de
performatividade de gênero para o campo da política, suprindo assim o que
poderia ser pensado como uma lacuna de seu pensamento inicial, no qual a
noção de performatividade de gênero oferecia-se mais como instância de
diagnóstico crítico sobre a produção das identidades de gênero do que como
referencial para pensar os movimentos políticos de resistência. Afinal, o
aspecto importante aqui é a consideração dos efeitos políticos performativos
derivados do agir e do reivindicar discursivamente direitos por parte
justamente daqueles que deles se encontram privados.
Arendt também auxiliou Butler a formular suas críticas às políticas
estatais contemporâneas de caráter genocida, as quais pretendem definir o
que ninguém pode definir, isto é, com quem queremos dividir a vida na
Terra, negando-se assim a pluralidade como condição inescapável da vida
política, tal como se nota em Parting ways. Jewishness and the Critique of
Zionism, de 2012. Butler constrói esse argumento dialogando com Eichmann
em Jerusalém, obra de 1963 em que Arendt discute o processo e condenação
de Adolf Eichmann, o responsável pela engenharia de transportes e
deportações que tornou possível a solução final nos campos de morte do
nazismo. Para Arendt, a conduta de Eichmann ilustra o absurdo do genocídio
enquanto decisão sobre aquilo que ninguém pode decidir, isto é, com quem
queremos compartilhar a vida na Terra, definindo-se assim qual porção da
humanidade pode viver e qual deve perecer. O genocídio rompe o princípio
ético-político e existencial da pluralidade, em vista do qual não podemos
escolher com quem queremos compartilhar a Terra na qual vivemos junto a
outros que são diferentes de nós mesmos e com os quais estamos obrigados a
viver: “O caráter não escolhido da coabitação é para Arendt a condição de
nossa própria existência ético-política”.
A partir do preceito normativo ético-político da coabitação, Butler
sugere que devamos extrair um programa político visando orientar a ação em
nosso tempo: “Devemos conceber instituições e políticas que afirmem e
preservem o caráter não escolhido da coabitação plural e sem fim. Não
apenas vivemos com aqueles que nunca teremos escolhido e para com os
quais não temos um sentido imediato de pertencimento social, mas também
estamos obrigados a preservar aquelas vidas e a pluralidade aberta que é a
população global”. Na reflexão de Butler sobre as relações entre vida,
política e filosofia, portanto, as demandas ético-políticas brotam da “própria
vida corporal, a qual nem sempre é humana de maneira clara e não ambígua.
Afinal, a vida que se deve preservar e resguardar, que deve ser protegida do
assassinato (Levinas) e do genocídio (Arendt), conecta-se com e é
dependente da vida não humana segundo modos essenciais”. Como se nota,
é no âmbito de um diálogo com o pensamento arendtiano que Butler
aprofunda sua reflexão sobre a viabilidade da vida, cujas vulnerabilidade e
precariedade constituem marcos ontológicos e normativos a partir dos quais
se impõe a tarefa de repensar a ética e a política.
Por certo, Butler também critica Arendt por entender que a autora não
teria articulado as dimensões da liberdade e da necessidade, do público e do
privado. De fato, por vezes Arendt parece traçar distinções rígidas entre os
planos político e pré-político. No entanto, uma leitura atenta de sua obra
também nos permite questionar tais limites a partir de indicações da própria
autora. Assim, certa vez Arendt afirmou que “a vida muda constantemente e
sempre há constantemente coisas sobre as quais se quer falar. Em todas as
épocas as pessoas que vivem coletivamente terão assuntos que pertencem ao
espaço público – coisas ‘que são dignas de ser discutidas em público’. O que
são esses assuntos em cada momento histórico é provavelmente totalmente
diferente. [...] Então o que se torna público em cada período dado parece ser
para mim totalmente diferente”. Essas considerações permitem pensar que
distinguir questões sociais e privadas de questões público-políticas não é o
mesmo que ignorar ou recusar o fato de que questões que anteriormente
foram vistas como privadas ou sociais venham a se tornar problemas
políticos de primeira relevância: basta que sejam trazidas à esfera pública
por um conjunto plural de atores políticos. Seja como for, uma política
aberta à novidade, como pensada por Arendt, é aquela que se origina do livre
agir coletivo, que se exerce por meio da capacidade de discordar, de dizer
não e de agir para interromper um determinado estado de coisas.
coluna
O corpo abjeto
marcia tiburi
A história do corpo começa com os motivos de sua abjeção e segue com a
assepsia gradativa em que procedimentos tecnológicos e plásticos garantem
uma espécie de superação dele. Do corpo abjeto ao corpo plástico, passando
pelo corpo máquina, da experiência da finitude à sua prova maior que é a
morte, tudo passa pelo corpo, tudo se dá no corpo. O fato inquietante da
putrefação penaliza o corpo, resto cultural não simbolizado com o qual
temos que nos resolver na vida. Simbolizamos tudo, mas não o corpo, que
escapa em última instância aos esforços de compreensão.
E, no entanto, tudo vem do corpo. Fonte, portanto, das mais complexas
inquietações, prova da morte, fato da vida, o corpo é alguma coisa que seria
melhor não possuir. Em termos diretos, por seu peso, melhor seria não ser,
não existir.
Diante do corpo abjeto em si mesmo, as tecnologias tornam-se a
salvação teológica. É o novo ser da cultura descorporificada e desencarnada,
mas não mais em nome de uma alma que pudesse nos fazer transcender, e
sim em nome do plástico, nossa mais nova metafísica que, nos livrando da
carne, torna-se a nova matéria de que somos feitos.
As tecnologias substituem o corpo justamente onde ele deixa de ser útil
e torna-se um problema, um resto. Se hoje a condição de ciborgue é cada vez
mais comum quando somos de algum modo implantados, transplantados,
quando nos tornamos usuários de próteses corporais as mais diversas, ou à
medida que somos siliconizados, plastificados – no limite, contra a morte –,
nada impede que, no futuro, venhamos a nos tornar robôs. Se a alma não era
mais do que o nome para a nossa função simbolizante, uma função da
linguagem, nada impede que ela seja transformada em “chip” e que, no
futuro, possamos defini-la como um mínimo de informações referentes às
nossas identidades (DNA, gostos, preferências e padrões estéticos e de
comportamento no contexto de projetos de eugenia liberal).
Se na antiguidade a alma foi o centro de um dispositivo do poder que
servia para tirar o corpo fora, se na modernidade foi o sexo que assumiu esse
lugar sendo posto como mistério, que tornava o corpo fora de questão diante
de um sexo a ser buscado metafisicamente, em nossa época, renovam-se tais
núcleos em torno do dispositivo de todos os dispositivos, que é o da
linguagem. Vivemos na época da exposição radical dos quatro braços
tentaculares que produzem a ontologia de nossa cultura, nosso modo de ser:
se falamos em sociedade administrada (Adorno e Horkheimer), o núcleo do
dispositivo é a racionalidade burocrática; se pensamos em sociedade do
espetáculo (Debord), temos que o núcleo do dispositivo é a imagem; se
falamos em sociedade do conhecimento (Negroponte) vemos que seu núcleo
é a informação; se falamos em uma sociedade excitada (Türcke), então nos
referimos ao lugar essencial das sensações em nossa cultura. Todas essas
fórmulas mostram os arranjos do poder por meio da linguagem – e dos
meios que administram a linguagem – em relação ao corpo que se torna o
suporte negado e humilhado quando perde sua utilidade. O lugar das
máquinas, dos instrumentos e dos aparelhos técnicos, está assegurado. Des-
lugar do corpo, em sentido distópico e não utópico.
A moldagem dos corpos, que definem plasticidades, que funcionam nos
medindo e definindo em termos de um grande consenso visual orquestrado, é
um novo modo de morrer sem que a morte esteja presente. Sísifos
tecnológicos, carregamos a pedra que vai cair sobre nossos corpos mesmo
quando não se puder mais falar neles. Para trás, fica algo antigo como o
corpo que ainda remete à morte – sem a qual, está provado, não existe vida.
retrato do artista
A palavra em movimento
Claudio Daniel
narrativa de viagem
Todos os nomes de Lisboa
welington andrade
Destino de Odisseu
Uma cidade cujo nome tem origem incerta (seria a povoação de Olissipo, ou
Olissipona, dos gregos ou o “porto seguro”, allis ubbo, dos fenícios?) vive
uma condição assertiva: o misto de tradição e modernidade que vibra em
suas ruas e que também pauta a programação cultural de muitas de suas
instituições é capaz de propor uma potente interlocução com a esfera da
cultura-mundo nos dias de hoje. A CULT esteve na capital portuguesa, na
semana de 28 de outubro a 1º de novembro último, a convite da Associação
Turismo de Lisboa, e conheceu o panorama artístico e cultural que uma das
mais antigas cidades europeias oferece não somente aos seus habitantes, mas
também ao crescente contingente de turistas que a têm visitado nos últimos
anos.
Uma Lisboa concreta – vivendo os impasses políticos e econômicos
inerentes às demais capitais das nações que participam da Zona do Euro –
constantemente é suplantada por uma Lisboa idílica, suspensa no tempo e no
espaço, às voltas com os mitos e os prodígios que há séculos procuram
converter as lendas de que se cerca a fundação da cidade em inventivas
realidades. Enquanto o poeta Luís de Camões, em 1572, ano da publicação
de Os lusíadas, mencionava com bastante sobriedade, na quinta estrofe do
oitavo canto de seu poema épico, a filiação da capital do império português
ao imaginário heroico grego (“Ulisses é, o que faz a santa casa/ À Deusa que
lhe dá língua facunda/ Que, se lá na Ásia Tróia insigne abrasa,/ Cá na
Europa Lisboa ingente funda.”); algumas décadas depois, outro entusiasta da
ascendência homérica de Portugal – Frei Bernardo de Brito, historiador que
deu à luz, em 1597 e 1609, respectivamente, a primeira e a segunda partes da
Monarquia lusitana – foi mais longe, assegurando que o protagonista da
Odisseia encontrou tamanha felicidade nas terras lusas que acabou por
olvidar, embora não para todo o sempre, sua Ítaca natal: “Foi tão grande o
contentamento que Ulisses teve desta povoação, que esquecida a felicidade e
quietação do seu reino punha todas as suas forças em prosperar e
engrandecer o que de novo fundara e refazendo as embarcações destroçadas
que se ocupavam de pescar no Tejo a variedade de grandes e saborosos
peixes que em si cria de modo que quanto mais estavam na terra tanto menos
causas se achavam para se lembrar da sua...”.
Anfitriões homônimos
Curiosamente, na cidade de batismo difuso, berço de Fernando Pessoa, o
poeta dos heterônimos, e abrigo de José Saramago, o romancista de Todos os
nomes, um único prenome – Ricardo – desdobrado em três diferentes
indivíduos, recebeu a CULT nas visitas aqui destacadas.
cosmópolis de pessoa
O jornalista e escritor Ricardo Belo de Morais é membro da equipe da Casa
Fernando Pessoa desde 2012 e há dois anos edita nas redes sociais o projeto
“O Meu Pessoa”. Autor da biografia romanceada O quarto alugado: a vida
de Fernando Pessoa revisitada por um velho amigo, Ricardo é um dos
anfitriões do velho sobrado no Campo de Ourique onde o poeta morou nos
últimos quinze anos da sua vida (1920-35), hoje transformado em centro
cultural. Alguns móveis originais que faziam parte do quarto do escritor,
certos objetos pessoais seus (como a máquina de escrever que pertenceu a
um dos escritórios onde ele trabalhou como tradutor) e o famoso Retrato de
Fernando Pessoa pintado por José de Almada Negreiros em 1954 para o
café Os Irmãos Unidos certamente fazem valer a ida à casa em que Pessoa
viveu, mas é o lançamento da edição fac-similada dos dois únicos números
da “revista trimestral de literatura” Orpheu, em homenagem ao centenário
que a publicação está completando em 2015, que transforma a visita em uma
viagem ao modernismo português.
Contam António José Saraiva e Óscar Lopes na História da literatura
portuguesa que, reunidos por início da Primeira Guerra Mundial, Fernando
Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros e Santa-Rita Pintor
constituíram um movimento estético pós-simbolista em Lisboa, produzindo
em conjunto “a maior renovação poética portuguesa” do século 20. Nada
havia de definidamente programático no primeiro grupo modernista, a rigor,
de Portugal, lembram os historiadores, ressaltando que seus integrantes
“com a irreverência iconoclástica, que utiliza todas as formas possíveis de
publicidade, mesmo as mais cabotinas, alternam apenas certas formas de um
sebastianismo delirante, o gosto das ciências ocultas, da metapsíquica, da
astrologia e uma religiosidade heterodoxa e esotérica. Em vez do escândalo
político à Gomes Leal, é o escândalo dos costumes e do senso comum que
traz a notoriedade”.
O primeiro número de Orpheu revelou ao público não somente os
poemas “Opiário” e “Ode triunfal”, de Álvaro de Campos, como também a
raríssima incursão de Fernando Pessoa pelo gênero teatral, o drama estático
em um quadro O marinheiro, que ecoa o simbolismo cênico do escritor
belga de língua francesa Maurice Maeterlinck, autor de Pelléas et
Mélisande. Já o segundo e último número da revista estampou a “Ode
marítima” de Álvaro de Campos e a “Chuva oblíqua” do ortônimo. Em
Orpheu, Pessoa levou adiante o projeto de dilatar os horizontes portugueses
ao nível da internacionalização, conforme defendeu em Sensacionismo e
outros ismos: “O que é preciso ter é, além de cultura, uma noção do meio
internacional, de não ter a alma (ainda que obscuramente) limitada pela
nacionalidade. Cultura não basta. É preciso ter a alma na Europa”.
Universo de Saramago
O paulista Ricardo Viel vive na Europa desde 2011. Graduado em Direito,
mas atuando no jornalismo, ele é assessor de comunicação da Fundação José
Saramago, constituída pelo próprio escritor e atualmente instalada na Casa
dos Bicos. Ao receber a CULT, Ricardo estava às voltas com o lançamento,
no dia seguinte ao da nossa visita ao local, do mais recente projeto da
Fundação, a apresentação da proposta de Declaração Universal dos Deveres
Humanos.
No discurso pronunciado no banquete do Prêmio Nobel de Literatura,
em 10 de dezembro de 1998, data em que se comemorava o cinquentenário
da assinatura da Declaração Universal dos Direitos do Homem, José
Saramago lembrou que o documento “não cria obrigações legais aos
Estados, salvo se as respectivas Constituições estabelecem que os direitos
fundamentais e as liberdades nela reconhecidos serão interpretados de
acordo com a Declaração”, advertindo que o reconhecimentos de tais
direitos acaba sempre “desvirtuado ou mesmo denegado na ação política, na
gestão econômica e na realidade social”. Depois de nomear devidamente
uma parte do problema – “Alguém não anda a cumprir o seu dever. Não
andam a cumpri-lo os governos, seja porque não sabem, seja porque não
podem, seja porque não querem” –, Saramago lançou um apelo: “Tomemos
então, nós, cidadãos comuns, a palavra e a iniciativa. Com a mesma
veemência e a mesma força com que reivindicarmos os nossos direitos,
reivindiquemos também o dever dos nossos deveres. Talvez o mundo possa
começar a tornar-se um pouco melhor”.
Quase duas décadas após o anúncio desta proposição, a UNAM
(Universidade Autónoma do México) e a Fundação José Saramago (FJS)
convocaram pensadores de todo o mundo para discutir em junho deste ano,
na Cidade do México, uma proposta de Declaração Universal dos Deveres
Humanos, a ser futuramente encaminhada à Organização das Nações Unidas.
No último dia 16 de novembro, data de nascimento do autor de Ensaio sobre
a cegueira, um ato realizado no auditório da Casa dos Bicos apresentou o
primeiro resultado do trabalho, reunindo os redatores ibéricos do documento
desenvolvido no México: Ángel Gabilondo, Francisco Louçã, António
Sampaio da Nóvoa, Sami Naïr e José António Pinto Ribeiro.
Vale observar que a atividade integrou a programação dos Dias do
Desassossego, série de ações culturais desenvolvidas em conjunto pela Casa
Fernando Pessoa e a Fundação José Saramago, entre 16 e 30 de novembro
último. Com trajetórias políticas e ideológicas tão distintas, ao menos aqui o
poeta e o ficcionista se encontraram irmanados pelas mesmas inquietudes e
aflições.
Reino de Ricardo
No imponente Teatro Nacional Dona Maria II, construído entre 1842 e 1846,
na Praça do Rossio, com projeto do arquiteto italiano Fortunato Lodi, o
terceiro Ricardo nos recebeu, cercado de sua verdade ficcional e com a
devida cota de ironia trágica. Dois anos após a descoberta, na cidade inglesa
de Leicester, dos ossos de Ricardo III, o antigo rei da Inglaterra, morto em
1485 na Batalha de Bosworth Field, o encenador Tónan Quito, convidado
pelo TNDM, acreditou tratar-se do “momento perfeito para fazer desenterrar
a peça homônima de William Shakespeare, datada de 1592, que relata a mais
maquiavélica subida ao trono que há memória”.
A encenação de Ricardo III pela companhia integra o Projeto
Shakespeare, resultado de um protocolo estabelecido entre os membros do
grupo de investigação Shakespeare e o Cânone Inglês, do CETAPS – Centre
for English, Translation and Anglo-Portuguese Studies (polo da Faculdade
de Letras da Universidade do Porto), e a editora Relógio D’Água, cujo
objetivo é produzir não somente traduções da obra do bardo inglês que sejam
compreensíveis aos olhos do século 21 como também textos críticos que
ofereçam a devida fundamentação cultural e histórica das peças. O trabalho
da tradução de Ricardo III foi assumido por Rui Carvalho Homem.
A encenação de Tónan Quito oscila entre o desprezo e o fascínio por
uma figura dramática que encarna a exacerbação da própria singularidade
como poucos na ampla galeria dos personagens shakespearianos: “Ricardo
ama Ricardo, ou seja, eu sou eu”. O espetáculo tem início com uma bola
vermelha que é arremessada de lá para cá por três crianças que ocupam o
palco, enquanto a plateia se acomoda nas cadeiras. Os demais atores entram
em cena e a bola, então, se transforma no símbolo da corcunda de Ricardo.
O intérprete que a detiver nas mãos passa, a partir daquele momento, a
desempenhar o papel do monarca. Assim, todos os atores, um a um, ao longo
da representação encarnam o protagonista. A esse respeito, no texto do
programa do espetáculo, esclarece o encenador: “Há sempre essa dualidade,
essa ambiguidade, não é propriamente entre o bem e o mal, mas de tu
próprio seres Ricardo também. E é como se cada morte deixasse um lugar
vago, como se houvesse a possibilidade de um novo Ricardo ascender, de
alguém querer reivindicar o seu papel”.
A densidade do material sintético esfarelado e enegrecido que recobre o
vasto palco da sala Garret do teatro, os instrumentos musicais – bateria e
trompete –, que constituem os únicos elementos cênicos da montagem, e os
figurinos estilizados apontam para o acento dark, ou punk, da encenação,
cuja maior preocupação parece, a rigor, revelar a modernidade metateatral de
William Shakespeare. “A peça é mesmo sobre teatro”, afirma Tónan Quito,
apontando para a importância do conceito de “representação” na obra. “E
agora vamos contar aqui uma história, querem ver? Agora matei este, e
ainda vou fazer isto. É muito contemporâneo, pós-dramático”, conclui o
diretor.
A política não precisa ser pensada apenas como reflexão estruturada sobre as
formas das identidades coletivas em sua pretensa autonomia. Se a
psicanálise tem consequência para o pensamento político é por ela trazer
uma concepção nova de conflito, de diferença e de singularidade com
implicações sobre a economia de relações entre sujeito e sociedade. Pois
desde seu início, a psicanálise nunca se contentou em ser apenas uma clínica
do sofrimento psíquico. Já a teoria social freudiana trazia elementos ainda
não inteiramente explicitados quanto à economia libidinal da experiência
política das sociedades modernas. Seja através da procura em revelar a
dinâmica pulsional do poder, a natureza das identificações que nos vinculam
à autoridade, a fonte política do vínculo transferencial, as fantasias que
garantem a coesão social e o mal-estar que nasce como saldo do processo
civilizatório, a psicanálise freudiana deixava claro como só seria possível
pensar o sujeito lançando luzes na dimensão social de seu sofrimento e de
suas expectativas de criação social. Não por acaso, Freud assinalava que a
linha que separa a psicologia do indivíduo da psicologia social é uma linha
tênue.
Esse caminho aberto por Freud será uma constante na experiência
filosófica a partir de então. As reflexões da Escola de Frankfurt a respeito da
estrutura pulsional da regressão política, as discussões de Deleuze e Guattari
sobre as relações entre desejo e capitalismo, de Lyotard sobre a economia
libidinal e mesmo a sensibilidade de Michel Foucault aos dispositivos
disciplinares de nossa época e da consolidação da biopolítica neoliberal são
incompreensíveis sem recuperarmos o campo aberto pela reflexão freudiana,
por mais que vários de tais autores tenham uma relação tensa, porém
decisiva, com a psicanálise. Pode-se transpor o mesmo raciocínio para a
atualidade: como pensar autores decisivos no debate político contemporâneo
– como Judith Butler, Ernesto Laclau, Slavoj Žižek, Alain Badiou, Jacques
Rancière, entre outros – sem vinculá-los, de uma maneira ou de outra, ao
corte operado pela psicanálise?
Especial importância deve ser dada à construção freudiana da categoria
de mal-estar e suas incidências na reflexão sobre a crítica social, assim como
sua relevância para a construção de sensibilidades para a especificidade das
formas de sofrimento no século 20. Vale ainda lembrar como a perspectiva
aberta pela psicanálise nunca foi apenas crítica e profilática. Em vários
momentos, ela deu ensejo a uma reflexão sobre as potencialidades de
pensarmos formas renovadas do político e de seus vínculos.
É possível que estejamos atualmente em um momento no qual
dimensões da crítica social filosoficamente orientada podem ser abordadas
em seu diálogo tenso com a psicanálise. Desde os anos cinquenta, a filosofia
social se depara com a reflexão sobre a natureza do capitalismo e de seus
regimes de racionalidades. Em vários desses momentos nos quais crítica da
razão e crítica social se articularam, a psicanálise fora convocada, seja para
impulsionar a crítica, seja para ser vista como mais uma forma disciplinar de
perpetuação das formas de vida hegemônicas no capitalismo. Isso sempre
produziu um diálogo difícil entre psicanálise e filosofia social que, agora,
pode ser retomado em outro patamar.
Um dos objetivos deste dossiê é discutir a atualidade da psicanálise
para uma discussão sobre as formas do político, atentando para o que ela
pode inserir de singular no seio das organizações coletivas. Mas não apenas
isso. Os quatro artigos que compõem o dossiê são uma amostra de diferentes
perspectivas e questões postas no interior do quadro acima esboçado.
No artigo que abre o dossiê, o psicanalista Antônio Teixeira aborda a
“parrésia freudiana”. Seu ponto de partida é a demonstração de que toda
produção de saber deriva necessariamente de uma relação patológica de
força, sofrimento e dominação. Sua hipótese de trabalho é a de que a
psicanálise postularia uma modalidade de jogo entre saber e verdade que se
desprende de uma teoria geral do poder. No segundo artigo, Christian Ingo
Lenz Dunker aborda o perspectivismo ameríndio de Viveiros de Castro e
ensaia algo que poderia servir como uma espécie de “prolegômenos a uma
fundamentação perspectivista da psicanálise”. O que ele pretende é resolver
uma série de impasses oriundos de uma certa apropriação do pensamento
estrutural por Jacques Lacan através de um astucioso desvio por uma
renovada maneira de pensar as relações entre natureza e cultura.
A necessidade de criticar o neurótico-centrismo da psicanálise, já havia
sido percebida, por vias bastante diferentes, por nomes como Frantz Fanon e
Gilles Deleuze. É o que mostra Guillaume Sibertin-Blanc em seu artigo, que
se insere no que poderíamos chamar de arqueologia de uma psicanálise pós-
colonial. Ao colocar a categoria psiquiátrica de “psicose reativa” à prova da
situação concreta da Guerra da Argélia, o autor mostra como o vocabulário
psicopatológico europeu, longe de ser um sistema de nomenclatura
epistemicamente neutro, é devedor de relações políticas naturalizadas. Em
texto exclusivo para o site da CULT, Guilherme Massara Rocha, num
vertiginoso recurso cruzado a Laclau e Lacan, estuda os paradoxos da
emancipação, propondo a complexidade de se pensar formas políticas que
sejam permeáveis à diferença irredutível, mas ao mesmo tempo capazes de
bloquear seu excedente intrínseco que não raramente derrapa em demanda
de exceção.
A parrésia freudiana
Antônio Teixeira
Perspectivismo e psicanálise
Christian Ingo Lenz Dunker
entrevista
Dostoiévski: fascismo e redenção
Flávio Ricardo Vassoler
poesia
Emily Dickinson: imagem, ritmo, pensamento
Adalberto Müller
[A slash of Blue]
Um tantinho de Azul –
Um pouco de Gris –
De escarlate – um triz –
Compõem um Céu Vespertino.
De púrpura – uma gota –
Uns Fiapos de Rubi –
Uma Onda de Ouro –
Do Dia – o matiz –
Basta pro Céu Matutino.
J204 [F233B]
O humor da serpente
HEITOR FERRAZ MELLO
“Black book”
Nascido na pernambucana Timbaúba, em 1935, passou sua infância e
juventude em Recife, quando pôde participar da vida intelectual e cultural da
cidade que se transformava radicalmente no começo dos anos 1960. Foi lá
que se formou em Direito e Filosofia. Com o golpe de 1964, percebendo que
o horizonte começara a se estreitar demais, com cobranças políticas e com
pouca possibilidade de desprovincianização mental, mudou-se para o Rio de
Janeiro, numa saída estratégica e de sobrevivência.
Sua poesia, que evitou sempre a efusão lírica, qualquer forma de
transbordamento sentimental, manteve-se crítica, no sentido em que toda
poesia na modernidade toma partido e apresenta suas armas. Falar sobre a
cronologia de suas obras é um capítulo à parte, já que dois livros passaram
muitos anos na gaveta: seu primeiro livro saiu em 1960, pela Gráfico
Amador, quando ele ainda morava em Recife. Dez sonetos sem matéria,
como lembra o poeta e crítico Frederico Barbosa, que faz o prefácio dessa
nova edição, eram de “inspiração confessadamente valéryana”. São poemas
solenes sobre o tempo, o silêncio e uma “consciência do mundo sensitiva”.
Ele passou quase vinte anos sem publicar nenhum outro livro: foi quando
tomou contato com as experiências da poesia concreta. Ele mesmo lembrou,
numa entrevista, que foi “uma espécie de choque cultural”. Chegou a fazer
alguns experimentos, mas não os publicou. Sabia que sua natureza era outra,
mas que aquela poesia representava, para ele, uma ampliação de horizontes.
“Não queria fazer uma imitação do que os Campos e Décio Pignatari
estavam fazendo, mesmo porque minha formação era completamente
diferente”, disse à Revista 34 Letras, em 1990.
Em 1979, ele publicaria, então, seu “black book”, como escreveu no
poema “Duas visitas”. O livrinho, que trazia na folha de rosto uma foto em
preto e branco de Béla Lugosi, em Drácula (1931), trazia uma
“transformação substancial” da poesia de Sebastião, que lembraria seu
colega de geração e crítico João Alexandre Barbosa, em ensaio publicado em
“A espreita”, também, reproduzido nesta nova edição. Nele, apropriando-se
do coloquialismo, que era uma corrente na poesia dos anos 1970, e da
montagem cinematográfica, sem perder seus referenciais poéticos, mas os
ampliando, Sebastião põe para funcionar seu humor mal-humorado, baseado
num materialismo que evita o derramamento lírico do sentimental e se
coloca em campo como quem cria um espaço de questionamento dos
discursos correntes. A começar pela epígrafe, montada a partir de versos de
“Epitáfio”, de Tristan Corbière. A morte, como ele mesmo chegou a lembrar,
estava no centro de seu interesse: “Eu acho que consegui mais ou menos
passar a ideia, gaiatamente, da morte como sendo uma coisa mais
interessante do que a vida”.
Se Corbière escrevia “mélange adultère de tout”, verso que aparece na
epígrafe do livro, Sebastião toma essa ideia para si e para sua obra, onde
encontramos a “mistura adúltera de tudo”. Uma proposição estética que
visava ampliar seu repertório de assuntos, mas sem deixar de ter no centro
nervoso a própria linguagem poética, sempre questionada por sua “fome de
corrosão”. Como ele ainda escreveu na série de poemas curtos “Take off”:
“há quem faça obras/ eu apenas/ solto as minhas cobras”. Não faltarão
venenos nesse livrinho. Há mesmo uma incrível sequência chamada
“Pequenos venenos (em cinco pacotinhos)” e também alguns outros poemas
ofídicos, ou como ele mesmo dirá, em “Matassombro”, “minha língua é
ofídica”.
Os livros escondidos
Em 1982, viria Isso não é aquilo, dando prosseguimento a sua poética
ofídica, mas agora incluindo outras de suas grandes paixões: o cinema,
principalmente filme de detetives, e a história em quadrinhos. Da capa preta
do livro anterior saltamos para uma capa azulada com um desenho tirado do
“Capitão América”. Como diz Frederico Barbosa, ele assume “um gosto que
antes parecia escondido”: “Fala, assim, mais de si e das suas predileções não
‘eruditas’, colocando no mesmo plano Baudelaire e a violência carioca”.
Esse universo também reaparecerá no livro Cortes/Toques, que abre a sua
reunião Obra em dobras, pela Coleção Claro Enigma, de 1988, e que trazia
poemas em que esse universo cinematográfico e literário comparece
alimentando uma espécie de ficção poética baseada no corte e na montagem
dos versos. Sem deixar de lado, claro, o veneno. “Não é possível/ a verdade/
exceto como veneno”, dirá em “Outro esboço”. É deste livro dois poemas
em prosa, em que o olhar do crítico (atividade que também exerceu ao longo
de sua vida, ao lado da de tradutor) se mistura com a do poeta lírico, como
em “Ela, pantera”, sobre o filme Cat people “Espelho obscuro”, sobre Dark
mirror, e “As relações perigosas”, sobre Black window. Neles, o duplo – o
avesso e o direito do homem, ou “a ambivalência básica”, o “reverso
perverso”, “a limpidez das águas e a insinuosidade da serpente” – são
tratados a partir de situações dos filmes.
Foi também em “Obra em dobras” que o poeta retirou da gaveta dois
livros intermediários entre a obra de estreia, de 1960, e Antilogia: Dez
exercícios numa mesa sobre o tempo e o espaço e Signos/Gnosis e outros,
obras que ele guardou durante anos e que testemunham a sua transformação
poética, a procura dessa voz irônica e corrosiva que ele colocou de fato em
prática no livro de 1979.
Nos anos 1990, surgiram mais três coletâneas fundamentais: A uma
incógnita (1991), A ficção vida (1993) e A espreita (2000). Com A regra
secreta, de 2002, esses livros formam a última fase de sua poesia, agora
marcada pela doença e pela morte, mas sempre com a alavanca do humor
materialista, como se pode perceber no belo poema “Certa luz”: “Ela
inclinou-se junto a mim/ -Todo em fios- / E disse: ‘O que o salvou/ Foi uma
luz/ Dentro de você’./ Touché! Sorri pérfido/ ‘Desconfio dessa luz”/ Com a
língua bífida.” Seria impossível resumir em poucas linhas o significado
desses livros para a geração de poetas que surgia naqueles anos 1990. O seu
veneno, que fazia desconfiar da linguagem e das construções fáceis, e sua
inventividade, que tirava imagens impressionantes de cenas de ruas, foram
fundamentais para um reposicionamento do pensamento poético e
principalmente lírico. Certamente, as poesia de Sebastião Uchoa Leite e
Francisco Alvim, mesmo sendo tão diferentes, souberam questionar o
lirismo sem deixar inteiramente de praticá-lo, mas sempre expondo a cobra
que estava ali escondida.