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Sumário

especial Hannah Arendt


Um pensamento atual
A pluralidade da condição humana
A constituição do sujeito e a ação política
Pensamento em diálogo

coluna
Marcia Tiburi

retrato do artista
A palavra em movimento

narrativa de viagem
Todos os nomes de Lisboa

dossiê A psicanálise e as formas do político


Apresentação
A parrésia freudiana
Perspectivismo e psicanálise
A virada descolonial da psicose: Frantz Fanon, inventor da esquizoanálise

entrevista
Dostoiévski: fascismo e redenção

poesia
Emily Dickinson: imagem, ritmo, pensamento
O humor da serpente
A poesia de todo dia

colaboraram nesta edição


especial Hannah Arendt
Um pensamento atual
Cláudia Perrone-Moisés

Hannah Arendt nasceu em Hannover, na Alemanha, em 14 de outubro de


1906, proveniente de uma família de judeus de classe média que eram
membros do partido social-democrático. Na infância, já era
reconhecidamente brilhante: aos três anos, mostrava-se capaz de falar
corretamente acerca de qualquer assunto. Mas também já tinha a reputação,
comprovada posteriormente, de rebelde e independente: expulsa da escola
por ter liderado um boicote contra um professor que a teria insultado,
preparou-se sozinha para o ingresso na faculdade.

Formação filosófica
Em 1924, aprovada com distinção na Universidade de Berlim, estuda grego
e latim, assim como teologia. Decidida a buscar tudo que fosse importante
no âmbito dos estudos da filosofia na época, parte para a Universidade de
Marburg, onde conhece o filósofo Martin Heidegger, com quem, além de ter
aulas, viveu um romance que a marcaria pela vida toda. Esse romance foi
duramente criticado em razão das posições próximas do nazismo de
Heidegger e da pretensa falta de condenação dessa postura por parte de
Arendt. Na verdade, ela não deixou de criticá-lo em cartas a amigos,
conforme registra a sua extensa correspondência, mas visitou-o no pós-
guerra diversas vezes, além de defender e difundir seu pensamento nos
Estados Unidos.
Com ele, Hannah Arendt aprende o que passaria a ser seu método
principal: o “pensar apaixonado”, isto é, a possibilidade de uma síntese entre
o pensar e o estar vivo. Pensar não é pensar sobre alguma coisa, mas pensar
alguma coisa. Não existiria neste pensar oposição entre razão e paixão, ou
entre o espírito e a vida. Dos tempos passados com Heidegger levaria, além
do pensar apaixonado, o amor pela poesia, mas também uma visão crítica em
relação a uma filosofia voltada para o indivíduo em isolamento. Essa seria,
posteriormente, uma de suas principais preocupações em relação à
modernidade: a tentação do ser humano para a interiorização e a
consequente perda do espaço público ou do que ela chamou de “dignidade
da política”.
Preparando sua tese de doutorado, O conceito de amor em Santo
Agostinho, por recomendação de Heidegger parte para a cidade de
Heidelberg para estudar com Karl Jaspers, de quem se tornaria amiga e
discípula até o final da vida. Arendt herda de Santo Agostinho o conceito de
comunidade. Para Santo Agostinho, amamos uns aos outros pois
pertencemos à mesma comunidade: todos nós descendemos de Adão (daí a
ideia de gênero humano) e todos compartilhamos do mesmo destino: a
morte. No entanto, é preciso observar que a morte, nesse contexto, não
significa o fim. A morte, para Santo Agostinho, remete necessariamente ao
nascimento. Assim, nosso destino comum nos faz lembrar do início, do
milagre do início, do novo começo, ou da “natalidade”, como diria Arendt,
termo que passaria a ser uma categoria central de seu pensamento.

Refugiada
Em 1933, porém, Arendt e seu primeiro marido, Günther Stern, um colega
de faculdade especialista em filosofia da música, são forçados a sair da
Alemanha rumo à França, em consequência da intensificação das
perseguições aos judeus. Ela já havia sido detida e interrogada diversas
vezes, em razão de seu trabalho para a Organização Sionista Alemã, com a
qual romperia em 1944, por discordar da posição do sionismo em relação à
Palestina. Permanece em Paris até 1941, onde continua a desenvolver seus
trabalhos tanto intelectuais como políticos, torna-se amiga de Walter
Benjamin, separa-se do primeiro marido, casa-se com o segundo, o
anarquista Henrich Blücher, que conhecera em 1936. Depois de ser presa
num campo de concentração perto da fronteira espanhola (Gurs), por
algumas semanas, decide fugir mais uma vez e parte para Nova York, onde
permanecerá o resto de sua vida.
Nessa época, Arendt já estaria marcada por três vertentes ou formas de
pensar: a primeira seria a utilização do mundo clássico como base para a
verificação de proposições morais e políticas; a segunda seria a filosofia
cristã baseada em Santo Agostinho, em especial a questão da
responsabilidade pessoal, e a filosofia cosmopolita de Kant; em terceiro
lugar, os filósofos da tradição do existencialismo: Kierkegaard, Husserl e
Heidegger.
Durante muitos anos após sua fuga da Alemanha, Arendt tornar-se-ia
apátrida, isto é, sem nacionalidade alguma. E isso não é um detalhe, pois
influenciaria suas reflexões acerca do chamado “direito a ter direitos”, ou
seja, da cidadania, na garantia dos direitos humanos. Somente em 1951
consegue a cidadania norte-americana. Esse ano também seria o de sua
consagração. A publicação de sua obra Origens do totalitarismo é saudada,
nos EUA, como grande acontecimento e ela passa a receber o
reconhecimento público de seu pensamento. Nessa obra, Arendt descreve o
processo pelo qual, depois dos Tratados de Paz que puseram fim à 1ª Guerra
Mundial, os direitos do homem herdados da tradição das Revoluções
passaram por uma prova de fogo. Considerados inexistentes para uma
categoria de pessoas tidas como “sem direitos” por serem apátridas, os
direitos do homem demonstraram sua ineficácia quando desvinculados da
cidadania.
Essa era também a situação das pessoas pertencentes às minorias
nacionais de muitos países, que por força da guerra, haviam sido
transformadas em refugiadas, sem encontrar um lugar no mundo. Eram os
chamados “indesejáveis da Europa”, como dizia Arendt: “Uma vez fora do
país de origem, permaneciam sem lar, quando deixavam seu Estado,
tornavam-se apátridas: quando perdiam seus direitos humanos, perdiam
todos os direitos, eram o refugo da terra”.
A crítica que Arendt efetua da questão dos direitos do homem diz
respeito à sua abstração, que se tornaria manifesta no momento em que não
tivessem mais apoio na cidadania: “Os direitos do homem, afinal, haviam
sido definidos como inalienáveis porque se supunha serem independentes de
todos os governos: mas sucedia que, no momento em que seres humanos
deixavam de ter um governo próprio, não restava nenhuma autoridade para
protegê-los e nenhuma instituição disposta a garanti-los”.
A emergência do totalitarismo, com seus requintes de crueldade em
relação aos seres humanos destituídos de proteção estatal, só veio a ser
possível, segundo Arendt, porque foi precedida por um processo, no entre
guerras, que ela denominou “destituição do humano”. Esse processo se deu
por etapas: primeiro, a destruição jurídica e moral dos indesejáveis, para
chegar então à sua destruição psicológica e física. Não é por acaso que os
nazistas iniciaram a perseguição aos judeus e outras minorias dentro da
Alemanha, privando-os da cidadania. A desnacionalização havia-se tornado
poderosa arma da política totalitária. A “solução final” de Hitler, aponta
Arendt, seria uma eloquente demonstração de como liquidar os problemas
relativos às minorias e aos apátridas. O nazismo ilustraria, de forma
concreta, a vacuidade de princípios humanistas e de direitos abstratos em
relação a pessoas privadas de cidadania.
Conforme aponta Celso Lafer, em A reconstrução dos direitos humanos
– um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt, a reflexão da pensadora
sobre a condição de apátrida permite-lhe concluir que, num mundo como o
do século 20, inteiramente organizado politicamente, perder a cidadania
significava ser expulso da humanidade, de nada valendo os direitos humanos
aos expelidos da trindade Estado/povo/território.
Nem a sacralização do direito natural pelo pensamento humanista,
oriundo do Iluminismo, nem o modelo do Estado-nação ofereceram
garantias para impedir o advento do totalitarismo e a barbárie consecutiva.
“O conceito de direitos humanos, baseado na suposta existência de um ser
humano em si, desmoronou no mesmo instante em que aqueles que diziam
acreditar nele se confrontaram pela primeira vez com seres humanos que
haviam realmente perdido todas as outras qualidades e relações específicas –
exceto que ainda eram humanos. O mundo não viu nada de sagrado na
abstrata nudez de ser unicamente humano” (Origens do totalitarismo).

a condição humana
Origens do totalitarismo (1951), e A condição humana (1958) são as obras
que contêm as ideias mais difundidas de Arendt. Em a Condição humana,
ela procura responder à pergunta: o que estamos fazendo? E a partir de três
categorias de atividades da vida ativa – o labor, o trabalho e a ação – aponta
para a destruição das condições de existência do ser humano no mundo
moderno, operada pela sociedade de massa. Nessa obra, sua proposta
consiste em detectar o que é genérico e o que é específico na condição
humana, por meio do estudo dessas três atividades fundamentais, que
integram o que ela denomina de “vida ativa”.
O labor é uma atividade derivada da necessidade e concomitante
futilidade do processo biológico. Porque é a atividade que os homens
compartilham com os animais, qualifica-a como a do animal laborans.
Segundo ela, “o labor é a atividade que corresponde ao processo biológico
do corpo humano, cujo crescimento espontâneo, metabolismo e eventual
declínio têm a ver com as necessidades vitais produzidas e introduzidas pelo
labor no processo da vida. A condição humana do labor é a própria vida”.
O trabalho, ao contrário do labor, não está contido no processo vital. É
através dele que o homem, neste caso o homo faber, cria coisas, extraídas da
natureza, convertendo o mundo num espaço de objetos partilhado com seus
semelhantes. É a atividade que garante a permanência de um mundo comum,
a durabilidade do mundo. “É esta durabilidade que empresta às coisas do
mundo sua relativa independência dos homens que a produziram, garantindo
a permanência do mundo.”
A terceira atividade, a ação, segundo ela, é a única que se exerce
diretamente entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria, e tem
como atributo criar a possibilidade para o exercício da liberdade e,
consequentemente, a instauração do novo. No entanto, a ação desencadeia
um processo irreversível e imprevisível. Preocupada com a “fragilidade dos
assuntos humanos” em que os atos são irreversíveis e imprevisíveis, e com a
garantia do espaço público, Arendt apresenta, como possível solução, o
emprego de duas potencialidades da própria ação: o perdão e a promessa. “A
única solução possível para o problema da irreversibilidade – a
impossibilidade de se desfazer o que se fez, embora não soubessem ou não
pudessem saber o que se fazia – é a faculdade de perdoar.”
Para Arendt, existem, contudo, duas ressalvas a serem feitas em relação
ao perdão. A primeira diz respeito ao que ela denomina, na esteira de Kant, o
imperdoável ou o “mal radical”, cujo exemplo mais próximo eram os crimes
contra a humanidade cometidos pelos nazistas na 2ª Guerra Mundial, em
relação aos quais não haveria a possibilidade de perdão. A outra ressalva
consiste na ideia de que o que se perdoa não é o ato e, sim, o agente. O
perdão é dirigido a alguém que cometeu algo. É, portanto, um ato de amor.
Quanto à possibilidade de um substrato divino do perdão, Jacques Derrida,
que também se dedicou profundamente ao tema (Foi et Savoir), ao falar de
Arendt lembra-nos que, para ela, o perdão é uma experiência puramente
humana, mesmo no caso de Cristo, que ela, para lembrar suas raízes
terrestres, chama sempre de Jesus de Nazaré.
Sendo as ações humanas, além de irreversíveis, imprevisíveis, Arendt
observa que a “solução para o problema da imprevisibilidade, da caótica
incerteza do futuro, está contida na faculdade de prometer e cumprir
promessas”, e chama a atenção para o fato de que, contrariamente ao perdão,
que sempre foi considerado irrealista e inadmissível na esfera pública, a
promessa sempre esteve presente, desde os romanos, por meio da ideia da
inviolabilidade dos pactos. A promessa instala “ilhas de previsibilidade” no
oceano de incertezas dos assuntos humanos.
Como podemos ver, Arendt passaria a dedicar-se à política de forma
integral. Em entrevista à televisão alemã, em 1964, afirmou: “Não sou
filósofa. Minha profissão – se pode ser chamada assim – é a teoria política.
Eu me despedi irreversivelmente da filosofia. Estudei filosofia, mas isso não
quer dizer que permaneci nela. A razão, por si mesma, a faculdade de pensar
que possuo, tem necessidade de atualizar-se”. A preocupação com a política
permeia toda sua obra, quer pela análise de regimes ou sistemas de governo,
como o totalitarismo, ou de temas correlatos, como autoridade, liberdade,
revolução, violência e desobediência civil, em livros como Entre o passado e
o futuro, Crises da república e Da dignidade da política. A seu ver, o
exercício do pensamento político consiste em mover-se na lacuna entre o
passado e o futuro, tomando os acontecimentos do presente, da experiência
viva, dos quais o pensamento pode emergir.

a banalidade do mal
Em 1961, um acontecimento seria determinante no percurso intelectual de
Arendt. Enviada a Jerusalém para assistir e cobrir, para a revista New Yorker,
o julgamento do criminoso nazista Eichmann, essa experiência resultará na
redação posterior do livro Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a
banalidade do mal. Foi no seio da comunidade judaica, estendendo-se
posteriormente a outros meios, que se desenvolveu a mais famosa polêmica
gerada pelo livro. Gershom Scholem foi implacável por ela ter relatado as
condições da cooperação das lideranças judaicas, através dos Conselhos
Judaicos, durante o estágio de deportação da “máquina de extermínio”
nazista. “Para um judeu, o papel desempenhado pelos líderes judeus na
destruição de seu próprio povo é, sem nenhuma dúvida, o capítulo mais
sombrio de toda uma história de sombras”, dizia Arendt. Sendo acusada, por
Scholem, de lhe faltar “amor ao povo judeu” (Ahabath Israel), responde que
sempre considerou a sua judaicidade como algo dado que ela jamais quis
mudar ou repudiar, mas que nunca amou povos ou coletividades – como o
povo alemão, francês ou americano, ou a classe operária. Na mesma
resposta, afirma ainda que tinha grande confiança na capacidade de cada um
pensar por conta própria. O “pensar por conta própria” é um legado de
Lessing, uma das figuras intelectuais biografadas por ela em Homens em
tempos sombrios.
A expressão banalidade do mal foi outro foco de discórdia por ter sido
vista como trivialização do ocorrido. Para alguns, Arendt havia traído a ideia
do “mal radical” defendida anteriormente, passando a considerá-lo apenas
como banal. Ocorre que Arendt nunca abandonou a ideia do “mal radical”,
mas o que presenciou em Jerusalém não se enquadrava na definição. A
“banalidade do mal” estava ligada à incapacidade de pensar e à execução
automática de tarefas do burocrata moderno.
Segundo Arendt, Eichmann não era um monstro, mas era difícil não
desconfiar que fosse um palhaço. Até suas últimas palavras foram frases
feitas. Diante dessas palavras, Hannah Arendt explica por que teria sido
levada a adotar a expressão “banalidade do mal”. “Foi como se naqueles
últimos minutos estivesse resumindo a lição que este longo curso de
maldade humana nos ensinou – a lição da temível banalidade do mal, que
desafia as palavras e os pensamentos.” Apesar de concordar com a pena de
morte aplicada, ela nos deixa um alerta: “Faz parte da própria natureza das
coisas humanas que cada ato cometido e registrado pela história da
humanidade fique com a humanidade como uma potencialidade muito
depois da sua efetividade ter-se tornado coisa do passado. Nenhum castigo
jamais possuiu poder suficiente para impedir a perpetração de crimes”.

o retorno À filosofia
Já no final da vida, a partir do início dos anos 1970, ela retorna à filosofia.
Ainda sob o impacto de seu relato do julgamento de Eichmann, em que se
deparou com a incapacidade de pensar como uma dificuldade do juízo
(Eichmann não pensava no que estava fazendo, por isso não tinha a
capacidade de identificar sua conduta como criminosa), ela começa a
escrever A vida do espírito, obra que ficaria inacabada com sua morte em 4
de dezembro de 1975, e que seria dividida em três partes: o pensamento, a
vontade e o juízo. Uma das perguntas desse livro seria: o que estamos
fazendo quando estamos pensando? Sua preocupação consistia em indagar
como podemos, sem nos afastar do mundo ou transcender a ele, retirar-nos
apenas o bastante, ou seja, ter a distância necessária para chegar à
compreensão. Outra pergunta daí resultaria: é a capacidade de pensar que
nos faz distinguir entre o bem e o mal?
A compreensão é a base do pensamento de Arendt. Ela dizia que não
queria educar ou convencer, mas apenas compreender. Pedia ainda que não
nos esforçássemos para concordar com ela, mas apenas pensássemos no que
ela estava dizendo. Pensadora controvertida, manteve-se sempre afastada das
escolas acadêmicas, partidos políticos e linhas ideológicas. Daí decorre a
relutância de alguns meios em aceitar sua obra, pois, como ela mesma dizia,
“de certa forma, eu não me enquadro”. No que se refere à sua visão do
mundo, podemos dizer que seu pensamento é realista, sem, no entanto, cair
no pessimismo estéril. Após o julgamento de Eichmann, ela diria: “As
razões particulares que falam pela possibilidade de repetição dos crimes
cometidos pelos nazistas são ainda mais plausíveis. A assustadora
coincidência da explosão populacional moderna com a descoberta de
aparelhos técnicos que, graças à automação, tornarão ‘supérfluos’ vastos
setores da população, até mesmo em termos de trabalho, e que, graças à
energia nuclear, possibilitam lidar com essa dupla ameaça com o uso de
instrumentos ao lado dos quais as instalações de gás de Hitler pareceriam
brinquedos de uma criança maldosa – tudo isso deve bastar para nos fazer
tremer”.
Os principais temas tratados por Arendt (refugiados, direitos humanos,
crimes contra a humanidade, automação e trabalho, mentira na política e
crises da cultura, da autoridade e da educação) são, infelizmente de grande
atualidade. Devemos, no entanto, lembrar, a partir de seu pensamento, que
nos cabe “examinar e suportar conscientemente o fardo que nosso século
colocou sobre nós sem negar sua existência, nem vergar humildemente ao
seu peso. Compreender significa, em suma, encarar a realidade sem
preconceitos e com atenção, e resistir a ela qualquer que seja”.

A pluralidade da condição humana


renan quinalha

Professor titular aposentado da Faculdade de Direito da Universidade de São


Paulo, ex-ministro das Relações Exteriores do governo Fernando Henrique
Cardoso, ex-embaixador do Brasil em Genebra e membro efetivo da
Academia Brasileira de Letras são algumas das atividades exercidas pelo
jurista Celso Lafer; poucos talvez conheçam uma relevante passagem de sua
biografia: aos 24 anos de idade, ele foi aluno da filósofa alemã Hannah
Arendt no curso de pós-graduação em Ciência Política na Universidade de
Cornell, nos EUA.
Na entrevista a seguir, ele relembra a experiência de conviver com uma
das maiores pensadoras do século 20.
O senhor foi um dos responsáveis pela introdução do pensamento da
Hannah Arendt no Brasil na década de 1970, depois de ter sido aluno
dela nos Estados Unidos.
Eu fui aluno dela nos Estados Unidos em 1965. Ela foi professora visitante
em Cornell, no período em que estudei Ciência Política.
Era um curso de pós-graduação? Com que tema?
Era um seminário de pós-graduação, com poucos alunos, cerca de vinte, e
tínhamos essas aulas em uma sala muito simpática localizada na grande
biblioteca de Cornell. O curso que ela ministrou – “Experiências políticas do
século 20” – era uma espécie de biografia imaginária de alguém que nasceu
no fim do século 19 e passou pelas grandes experiências do século 20 até o
ano em que estávamos: a Revolução Comunista, a Primeira Guerra Mundial,
a Crise de 1929, a ascensão do nazismo, o stalinismo, a Guerra Civil
Espanhola, a bomba atômica, o início do macarthismo nos EUA... E a
maneira como Hannah Arendt dava o curso era fascinante. A ideia que
permeava a reflexão dela era o papel da narrativa: as coisas adquirem sentido
se você consegue contar uma história a respeito delas.
Ela era uma professora que mantinha uma relação próxima dos
estudantes?
Sim, ela era muito atenciosa com seus alunos, muito preocupada em dar a
eles a oportunidade de conhecer, saber as coisas. Ela era uma professora no
sentido pleno da palavra, que aplicava no trato com os alunos a importância
do diálogo. Era uma pessoa muito educada, mais europeia do que qualquer
outra coisa. Falava inglês com absoluta fluência, mas com o alemão
subjacente à fala. Vale uma observação: eu tinha deixado a barba crescer e
era muito cerrada. Um dia, então, ela me falou: “Você precisa dar uma
aparada nessa sua barba porque desse jeito você não está bem”.
Naturalmente, eu fui ao barbeiro assim que pude e fiquei com a aparência
mais apropriada. Em um de seus grandes livros, A vida do espírito, ela
afirma que há uma relação entre ser e aparência, então, eu achei que, se ela
achava que a minha aparência não estava boa, o meu ser também não estava
apropriado.
Ela ministrou esse curso em uma época de efervescência cultural e
política nos EUA e no mundo. Ela tratava propriamente do que
acontecia nos anos 1960?
Ela era muito sensível ao que estava acontecendo e estava atenta à Guerra do
Vietnã, ao movimento estudantil, à desobediência civil. Assuntos que,
depois, integraram alguns de seus livros. Eu acho que uma das grandes
características dela era a capacidade de pensar o sentido geral das coisas a
partir de acontecimentos concretos.
Como ela se colocava diante desses acontecimentos? Ela resistia a
determinadas tentativas de enquadramento da sua produção
intelectual?
Ela afirmou em um colóquio em 1972: “I somehow don’t fit” (Eu não me
enquadro). De fato, ela tinha essa dimensão de rebeldia, digamos,
intelectual, que fazia com que não fosse uma pensadora convencional.
Quando fui aluno da Hannah Arendt, ela já era uma pessoa conhecida por
Origens do totalitarismo, mas controvertida. Havia muita polêmica sobre
sua análise do caso Eichmann e não havia muita clareza sobre como
enquadrar sua obra no âmbito dos conceitos consagrados do conhecimento.
Era uma filósofa, uma historiadora ou uma pessoa dedicada à teoria política?
Para a esquerda, ela era criticada porque havia feito na análise do
totalitarismo a identificação do stalinismo com o nazismo. Para a direita, era
vista como alguém que tinha escrito sobre a revolução e seu significado,
sobre o sentido inaugural de uma mudança fundamental nas coisas políticas,
que também era algo que gerava algum desconforto. Aí, eu me motivei a
tornar a obra dela conhecida no Brasil.
O senhor chegou a conversar com ela a respeito da divulgação de sua
obra no Brasil?
Eu lhe disse: “Quero ajudar a tornar sua obra conhecida. Qual é a sua
sugestão?”. E ela me respondeu: “Sugiro Entre o passado e o futuro, que é
uma coletânea de ensaios, porque, de certa forma, esses exercícios em
pensamento político (como ela qualificou tais trabalhos) dão um sentido de
direção da minha obra.” Na introdução desse livro, ela afirma que, na brecha
entre o passado e o futuro, uma das características do século 20 e de suas
rupturas nessa “era de extremos” era a de ter colocado em questão as
categorias tradicionais do pensamento. E que, por isso mesmo, o pensamento
deve emergir da experiência vivida e estar ligado a esta experiência como
critério de aferição da sua relevância. Há aí muitas discussões sobre o que é
autoridade, o que é liberdade, qual é o significado da história, o que é
verdade factual, o que é a crise da cultura da era contemporânea e assim
sucessivamente. Foi justamente para esse livro que eu preparei uma
introdução que discute a dignidade da política na leitura de Hannah Arendt.
Neste ano, completam-se quarenta anos da morte de Hannah Arendt e
sua obra tornou-se uma referência indiscutível em diversas áreas do
conhecimento. Como explicar a vitalidade dessas reflexões?
Um clássico é um intérprete autêntico do seu tempo. Eu acho,
indiscutivelmente, na medida em que os anos foram passando, que Hannah
Arendt é uma grande intérprete daquilo que foi o século 20, da sua era de
extremos. Segundo ponto de um clássico: é uma autora que instiga contínuas
leituras e releituras, que encontram pistas esclarecedoras de suas dúvidas e
inquietações. Passados esses anos todos de sua morte, a bibliografia
arendtiana tornou-se imensa e cresce, ano a ano, em todos os quadrantes
culturais. Na Europa, sem dúvida alguma – não só na Alemanha, como na
França, Itália e Espanha –, mas também nos Estados Unidos e na América
Latina.
Nota-se também um crescente interesse de pesquisadores dedicados a
explorar diferentes aspectos do rico legado deixado por ela. Quem o
senhor destacaria nessa bibliografia de arendtianos?
Temos inúmeros autores debruçando-se sobre sua obra . E aí eu faço um
pequeno parêntese: Ortega y Gasset dizia que toda geração é a expressão de
uma sensibilidade compartilhada – você identifica uma geração em virtude
dessa sensibilidade. Se você olha a bibliografia arendtiana, verifica que há
gerações de estudiosos. Existem aqueles que foram seus companheiros.
Depois, há os que foram seus alunos – entre os quais me incluo. Eu
mencionaria aí o Jerome Kohn, o último assistente de Hannah Arendt, que
hoje é o responsável por organizar muitos de seus textos esparsos e
interpretá-los; ou a Elisabeth Young-Bruehl, que é autora de uma grande
biografia, clássica, que está traduzida para o português. Depois há as
sucessivas gerações que foram vendo coisas interessantes e procurando lidar
com o que elas traziam para suas inquietações. Por exemplo, há hoje em dia
reflexões sobre o que ela diz a respeito das Relações Internacionais – um
assunto pouco trabalhado na época.
Os textos clássicos do pensamento de Arendt foram publicados em vida.
Depois de sua morte, houve a publicação de muitos inéditos que
ampliaram o corpus de sua obra?
Coisas muito significativas foram publicadas, sim. Uma delas é o diário que
reúne apontamentos de 1950 até praticamente sua morte. Como disseram
alguns especialistas, é uma espécie de ateliê do pensamento dela. Foi escrito
parte em alemão, parte em inglês e parte em francês e é cheio de enormes
citações em grego e latim – que para ela não eram expressões de erudição,
mas aquilo de que estava habituada a se valer em seu processo de reflexão.
Na ampliação do corpus da obra de Hannah Arendt, também se encontram
muitas publicações da correspondência dela, ativa e passiva. Uma das mais
interessantes é a correspondência com Karl Jaspers, que sempre foi uma
referência importante para ela, representando o que havia sobrado da
qualidade da cultura alemã dentro da qual ela foi criada. A correspondência
com Mary McCarthy, uma grande amiga dela, também é excelente.
Exemplar não do feminismo, mas do trato da condição feminina. Ambas
eram mulheres de forte personalidade, grandes intelectuais de vida intensa
que ainda tinham de lidar com casamento, marido, família... Foi Mary
McCarthy, inclusive, que preparou a edição de A vida do espírito.
O senhor poderia voltar à questão específica da condição da mulher em
Hannah Arendt? A demora na recepção da obra dela pela academia
teria relação com o machismo dos círculos acadêmicos?
Eu acho que não havia tal preterição por conta disto, não. Porque, por
exemplo, Simone de Beauvoir circulava. Os livros de Hannah Arendt foram
sendo sucessivamente publicados. Entre o passado e o futuro, Crises da
república, Origens do totalitarismo, A condição humana... Todos livros de
grande envergadura.
Ela tem uma relação bastante singular com o judaísmo e com o
sionismo. Como ela pensava a formação do Estado de Israel e os
conflitos daí decorrentes?
Ela discutiu o que significava esse problema. Participou, inclusive, num
certo momento, do movimento sionista nos anos 1930, baseada na França,
propiciando a ida de jovens judeus para a Palestina. Na década seguinte,
também se envolveu na discussão dos temas do sionismo. Esteve ligada ao
reitor da Universidade de Jerusalém, com quem se identificou a respeito dos
problemas futuros e, seguramente, pressentiu que o tema da relação do
estado de Israel com os países e com a população árabe seria um problema a
ser enfrentado muito mais significativo do que se pensava naquele tempo.
Ela acompanhou – diz isso em cartas – o que foram as guerras de 1967 e de
1973, com uma grande sensibilidade a respeito da ideia de que a
sobrevivência do estado de Israel era uma coisa importante.
Mas ela sempre se posicionou de modo crítico em relação à violência?
Ela faz muito a crítica da violência, acha que a violência destrói e não cria.
A história de Mao Tse-Tung de que o poder está na ponta de uma arma não
era a compreensão dela, que faz a distinção entre força, poder, violência e
autoridade. Força é um pouco o desencadear de forças. Violência é o uso
instrumental que se multiplica com os instrumentos técnicos – as armas
nucleares são exemplo disso. O poder, e este é um ponto importante para ela,
resulta do agir conjunto, da capacidade de os seres humanos se unirem em
torno de um curso comum de ação, por isso ela vê na desobediência civil
uma forma de geração de poder. Já a noção de autoridade dela é muito
interessante. Autoridade vem de autoritas, que significa aumentar,
acrescentar. A partir da experiência romana, ela diz: “O poder está com o
povo, mas a autoridade está com o Senado”. Com isso, ela está querendo
dizer que o papel da autoridade é acrescentar coisas àquilo que foi o
significado da fundação de Roma.
Hannah Arendt critica não apenas os totalitarismos mas também a
democracia liberal. Ela aponta os limites de um governo que só cuida
dos direitos individuais e não se preocupa, por exemplo, com a
participação política – para ela, uma questão fundamental. Como
podemos dialogar com essa crítica hoje, em um momento de crise do
sistema político pela falta de participação mais ampla da sociedade?
O tema da dimensão participativa era sempre uma preocupação constante
dela, como também a história da transparência, do público sendo, ao mesmo
tempo, o comum e o visível, que é a forma pela qual a cidadania toma
conhecimento daquilo que acontece e exerce seu poder de controle. Em A
condição humana, ela discute os conceitos de labor, work e ação. Há uma
grande discussão sobre como traduzir labor e work. A primeira dimensão diz
respeito às coisas exigidas pelo metabolismo da vida; a segunda é a do work,
aquilo que você extrai da natureza e com o qual cria objetos duráveis (esta
mesa, a cadeira ou uma obra de arte). Por fim, existe a ação. Ela diz que são
dois os elementos que permitem lidar com a imprevisibilidade e o
inesperado da ação: um é a promessa e o outro, o perdão. A promessa está
ligada à ideia do contrato, do entendimento e da possibilidade de estruturar
uma comunidade política a partir da promessa recíproca – a noção de
Constituição e de Constituinte se enquadra nessa história. E o perdão, diz
ela, é a única maneira pela qual você pode lidar com fatos irremediáveis que
derivam da ação – perdão judicial, anistia, são exemplos disso.
Como o conceito dela de cidadania enquanto “direito a ter direitos”
pode ser visto, hoje, com o enorme fluxo de refugiados e imigrantes?
Eu acho que ela elaborou a noção do direito a ter direitos a partir da
experiência dos displaced people, dos refugiados. Você só pode pensar no
direito a ter direitos com acesso à ordem jurídica. E aí ela faz a brilhante
análise de que a temática dos direitos humanos surge, basicamente, na linha
do modelo francês – pela declaração francesa dos direitos humanos – e na
ideia de que há uma coincidência entre os direitos dos povos e os direitos
dos seres humanos, modelo da Revolução Francesa. Conjugam-se os direitos
dos integrantes de uma nação por uma declaração de direitos. O padrão de
normalidade dos séculos 18 e 19 são as nacionalidades dentro dos estados
nacionais. Mas isso se transforma com a Primeira Guerra Mundial e com o
fim dos impérios multinacionais. O império czarista foi substituído pela
União Soviética, que afirmou a universalidade do comunismo. A
desagregação da União Soviética fez aflorar todos os problemas das
nacionalidades da região que fazia parte do império czarista. O fim do
império austro-húngaro levou, depois da Primeira Guerra Mundial, à
existência de minorias que não estavam à vontade dentro de estados
organizados em torno do princípio das nacionalidades – daí o sistema
montado pela Liga das Nações da proteção das minorias, que se revelou
incapaz de lidar com vários fenômenos: o primeiro, a cassação em massa da
cidadania promovida na Alemanha por razões raciais, promovida na União
Soviética por motivos políticos. Depois, a crise de 1929 e a existência do
fechamento das fronteiras por razões de economia, mas também por
xenofobia. Então, essas pessoas que não tinham acesso à ordem jurídica, se
tornaram indesejáveis e os indesejáveis se tornaram descartáveis e foram
para os campos de concentração. Hoje, criou-se um alto comissariado de
refugiados que exerce uma espécie de proteção diplomática para aqueles que
não têm status. E vê-se a multiplicação dos refugiados – que, por sua vez, é o
resultado do esfacelamento de Estados-nação, dos failed states. A Síria e o
Iraque são exemplos desse fluxo de pessoas que não estão mais à vontade
dentro de seus estados. Failed states é uma expressão da crise do Estado-
nação. A minha tese é construída em torno da ideia das rupturas, da
reconstrução dos direitos humanos, da ideia de que o direito a ter direitos
representa um acesso à ordem jurídica, e que essa não pode ser apenas a
ordem jurídica nacional, daí a internacionalização dos direitos humanos.
Outros tipos de direitos procedem da reflexão dela – como, por exemplo, o
direito à associação por expressão, ao poder da ação conjunta, à liberdade de
pensamento como forma de lidar com o pluralismo da condição humana...
Como o pensamento de Hannah Arendt nos ajuda a entender o
momento em que vivemos hoje, marcado pela emergência do ódio, de
uma agressividade muito forte nas relações humanas?
Hannah Arendt critica os chamados ódios públicos, porque eles destroem a
pluralidade da condição humana. No entender dela, o que caracteriza
justamente a condição humana é a pluralidade. Se destruímos essa
pluralidade, um pedaço do mundo, consequentemente, será destruído.
colaboração Helder Ferreira

A constituição do sujeito e a ação política


Bethania Assy

Na figura do Rei Lear, Hannah Arendt retrata uma das principais inferências
a respeito de questões éticas e morais: conceitos morais não podem subjugar
nem superar a supremacia de nossas experiências. “Um senso vivo e
duradouro de dever filial é incutido com mais eficácia num filho ou numa
filha pela leitura de Rei Lear do que por todos aqueles volumes áridos de
ética e divindade que já foram escritos.” Em matéria de ética, representa a
supremacia da fidelidade à experiência em detrimento de conceitos e códigos
morais. A abordagem ético-moral de Arendt se dá em dois acontecimentos
significativos para a autora: o fenômeno do totalitarismo como um todo e,
especificamente, o julgamento de Adolfo Eichmann. A partir da reflexão
sobre regimes totalitários em 1951, Arendt expõe o que chama de colapso da
tradição moral ocidental, e descreve o vácuo moral causado pelo
totalitarismo, de modo a requerer uma nova simbologia ético-política. Sua
discussão acerca do mal radical revela o significado das experiências
totalitárias na obliteração da capacidade de compreender o desmantelamento
moral de tais eventos, por carência de categorias conceituais compatíveis a
esse novo fenômeno político. Contudo, a preocupação tardia de Arendt para
com o que denominou de as atividades da vida do espírito, relativas à ação, à
ética e à política, toma forma consistente após o julgamento de Eichmann.
Após confrontar-se com a banalidade do mal na incapacidade de pensar de
Eichmann, Arendt daria início a um tipo de investigação sobre a moralidade
que não havia se dado de forma direta em nenhum momento de sua obra
anterior a Eichmann em Jerusalém. Passa a analisar as implicações de uma
forma de mal na política perpetrado por uma massa burocrática de
indivíduos normais, embora incapazes de submeter os acontecimentos a um
julgamento reflexivo.
Ainda que Hannah Arendt nunca tenha proposto de forma direta um
sistema ético, seus escritos tardios problematizam uma dimensão ética
própria da lacuna moral deixada nas sociedades pós-totalitárias. Essa ética
está sobretudo baseada no relato das faculdades da vita contemplativa:
pensar, querer e julgar. O espaço no qual o homem de ação – o Aquiles de A
condição humana – cria e age politicamente e o tempo em que o ELE
kafkiano, de A vida do espírito, se interpela e ajuíza, se entremeiam no
espaço-entre do domínio público arendtiano. A esse espaço-entre nomeio de
espaço ético da aparência. Em direção contrária a vários intérpretes da obra
de Arendt, que asseveram uma cisão no pensamento da autora entre A vida
do espírito e as noções de ética, ação e responsabilidade, desenvolvidas em
A condição humana, há uma dimensão ética fundamental na produção
intelectual de Hannah Arendt pós-1960, estreitamente articulada a seus
escritos políticos das décadas anteriores.
É bem verdade que a pluralidade ontológica arendtiana ecoa em toda
sua obra. Partindo da premissa de que “somos do mundo, e não apenas
estamos nele”, em que necessariamente vemos e somos vistos, Arendt
assevera que “neste mundo em que chegamos e aparecemos vindo de lugar
nenhum, e do qual desaparecemos em lugar nenhum, Ser e aparecer
coincidem”. O domínio das opiniões e dos juízos políticos se realiza no
âmbito público, no qual sempre aparecemos como cidadãos em meio a
outros, e nos lançamos na chamada aventura do espaço público. “O palco é
comum a todos os que estão vivos, mas parece diferente para cada espécie e
também para cada indivíduo da espécie. Parecer – o parece-me, dokei mo – é
o modo – talvez o único possível – pelo qual um mundo que aparece é
reconhecido e percebido.” Promulgar uma opinião em público significa
expor-se ao teste dos outros. O contínuo teste de alteridade, a chamada
mentalidade alargada, capaz de criar um espaço potencialmente político.
Todavia, no relato um tanto pessimista, particularmente em A condição
humana, Arendt explora o diagnóstico do atrofiamento da nossa capacidade
de imaginar aquilo que nos afeta, nos interpela, apenas como membros de
uma comunidade política. A tendência de equacionar sentimentos e afetos
ora com objetivos ou triunfos pessoais ora com satisfação material ofertada
pelas sociedades de consumo é prova não só do empobrecimento do
imaginário público, mas também de uma certa contração da capacidade de
sentir satisfação com demandas políticas comuns. Nas últimas décadas, a
esfera da interioridade (do self e da vida privada) gradualmente se superpõe
à esfera pública com interesses privados, idiossincrasias individuais e
satisfações pessoais dos sujeitos devedores e consumidores do século 20.
Acompanhada por uma constrição daqueles espaços que nos dizem respeito
apenas como membros de uma coletividade. Esse processo de inversão do
público em privado tem ocorrido não apenas no que a autora chama de
“espaço-entre objetivo,” o domínio da fabricação, a poiēsis do mundo
propriamente dito e de seus objetos, mas substancialmente no “espaço-entre
subjetivo”, a esfera da praxis e da interação política, responsável tanto pela
subjetivação de novos atores políticos, quanto por estabelecer uma espécie
de imaginário comum da coisa pública. A preocupação moderna com o self,
iniciada por Descartes, impulsionada por Kierkegaard e que culminou no
existencialismo, já demonstrava um robustecimento epistemológico das
categorias da interioridade. Os catastróficos eventos políticos do século 20, o
Holocausto com suas “imagens de inferno na terra”, refletem o que Hannah
Arendt chamou de os perigos da desmundialização (worldlessness) e da
superfluidade do humano da nossa época. Paradoxalmente, restou como
refúgio derradeiro a experiência “verdadeira e autêntica” da interioridade.
No prólogo de A condição humana, Arendt estabelece um paralelo
substantivo entre as conquistas do homo faber, o lançamento do primeiro
satélite artificial em 1957 e o concomitante processo de alienação do mundo,
ao deslocar o ponto arquimediano de confiança e credibilidade para uma
localidade desprovida de qualquer topos, qualquer espacialidade, a saber, a
interioridade não partilhada do self .
Precisamente para se posicionar contra tal tendência, ainda no mesmo
prólogo, ela deixa claro que a pergunta central do livro é pensar “o que
estamos fazendo” e atestar a preocupação que perpassa toda sua obra: a
distinção do agir político comum. Tanto na preservação e na continuidade
como na criação e na espontaneidade, faz uso de expressões descritivas que
privilegiam a localização de eventos humanos: o espaço das aparências, os
domínios públicos e privados, a rede de relacionamentos, a polis. Na vita
activa a espacialidade é, portanto, uma dimensão vital. É o espaço no qual o
sujeito trabalha, fabrica e age politicamente. De fato, A condição humana
dignifica filosoficamente o agir humano, o mundo comum, a ação política e
o espaço público em particular. Já em A vida do espírito, a autora nos desafia
a uma fenomenologização da vida contemplativa, cujo ângulo privilegiado é
a visibilidade dos atos e da linguagem. Redireciona o pensar, o querer, e o
julgar ao âmbito da aparência – uma transposição fundamental para a
formulação de uma ética da responsabilidade.
Em antagonismo à sobrestima contemporânea da imagem corporal, na
qual até certo ponto ser e aparecer também coincidem, aqui o que está em
jogo na ética é a visibilidade do espaço público arendtiano de modo a ofertar
um fórum para a liberdade humana, entendido não como um horizonte da
experiência interior, mas como espaço para o exercício da virtude pública.
Endosso a descrição de domínio público proposta por Honig. A autora
descreve o espaço público em Arendt “[…] como uma metáfora para a
variedade de espaços, topográficos e conceituais, que podem ocasionar uma
ação. Podemos ficar com a noção de que a ação seja um evento, um
‘milagre’, uma interrupção da sequência ordinária das coisas, um local de
resistência ao irresistível, um desafio às regras normalizadoras que procuram
constituir, governar e controlar comportamentos”. A fenomenologia de
Arendt de ser “do mundo” e não meramente “no mundo” visa a um novo
simbolismo cultural que interpela alteridade, visibilidade e mundo comum.
Em vez de tomar a estética, o juízo do gosto e o comprazimento (delight)
como referências individualistas em contraposição à universalização da
razão na ética, Hannah Arendt faz uma apropriação da estética de Kant para
destacar a capacidade humana de sentir satisfação naquilo que “interessa
apenas em sociedade”.
É fundamental pôr em evidência de que forma as atividades do espírito,
tal como descritas pela pensadora, não conduzem a juízos determinantes, à
boa vontade racional, a acordos consensuais, ou a meras decisões individuais
autônomas. A ética da responsabilidade não remete a uma ética normativa ou
prescritiva, baseada na ideia de um sujeito razoável ou moralmente bom. Ao
contrário, uma ética de responsabilidade pessoal está ligada à visibilidade de
nossas ações e nossas opiniões articuladas publicamente, que, por sua vez,
estão associadas ao cultivo de um ethos público. O critério final é quem
somos na esfera pública da aparência. Sem querer evitar a indagação
kantiana, “Como devo agir?”, em que pese seu caráter solipsista, minha
preocupação é apontar que as atividades do espírito arendtianas, ainda que
“invisíveis”, articulam as mesmas categorias relevantes para o espaço da
aparência, tais como publicidade, alteridade, juízo e ação política.
Lançando mão do vocabulário kantiano empregado por Arendt em suas
Lições sobre a filosofia política de Kant, A vida do espírito pode ser descrita
como uma obra na qual as atividades do self estão a serviço do mundo
comum. Os sujeitos são “[...] criaturas limitadas à Terra, vivendo em
comunidades [...] cada qual precisando da companhia do outro mesmo para o
pensamento [...]”. As inscrições do self nas reflexões de Arendt acerca das
atividades de pensar, querer e julgar não reproduzem as mesmas
representações do self próprias às teorias do indivíduo autônomo moral e
sujeito às leis da razão prática. O ponto crucial para uma práxis ética da
visibilidade é como o sujeito se singulariza na comunidade política. Fornece
o critério de acordo com o qual a distintividade de cada um de nós está
relacionada ao domínio da responsabilidade.
Vale a pena pôr em evidência uma interrogação original promovida por
Arendt que perpassa grande parte das matrizes discutidas em meados dos
anos de 1960: “a questão de com quem desejamos ou suportamos estar
juntos”. Ainda não tomada devidamente a sério por parte substancial de seus
comentadores, essa reiterada indagação da autora nos confronta com o
constante pleito acerca da escolha de nossa “[...] companhia entre sujeitos,
entre coisas e entre pensamentos, tanto no presente como no passado”. Nos
três níveis distintos de A vida do espírito, as capacidades de pensar, querer e
julgar, está formulada justamente a indagativa ética que nos remete
necessariamente à alteridade, ao(s) outro(s) com quem desejamos ou
suportamos viver, de forma a conduzir à conexão entre vita contemplativa e
responsabilidade pessoal. Significa traçar um pathos da continuidade que
passa pela revelação da opinião (doxa) de cada sujeito à pluralidade do
espaço público. No pensamento, no juízo e na vontade, essa escolha que
envolve o outro com quem viver leva em conta, ao menos, três dimensões
que pretendo destacar ao longo deste artigo: o self, os outros e o mundo. Por
consequência, torna possível identificar, em seus escritos em torno da vita
contemplativa, três níveis de responsabilidade pessoal: a responsabilidade de
pensar, de escolher a si mesmo; a responsabilidade de julgar e de escolher
nossos exemplos; e a responsabilidade para com a durabilidade do mundo
expressa por meio da consistência de nossas ações.
A responsabilidade de escolher a si mesmo está implicada na atividade
de pensar. O pensamento, ao fim e ao cabo, implica a suposição de que
estamos condenados a viver com nós mesmos. O juízo está relacionado à
responsabilidade pessoal, no ponto em que assumimos responsabilidade por
nossas escolhas políticas. A atividade de julgar também promove
responsabilidade pessoal na medida em que nos responsabilizamos pelas
escolhas de exemplos para orientar nossas ações. A responsabilidade pessoal
para com a durabilidade do mundo, finalmente, está ligada à noção de
consistência, uma vez que, ao invés de depender de qualquer condição
interna da verdade, o critério para “[...] o sucesso e o fracasso da iniciativa
de autoapresentação dependem da consistência e da duração da imagem
assim apresentada ao mundo”. A responsabilidade pessoal no que diz
respeito ao mundo comum está ainda relacionada ao que Arendt nomeia de
Amor Mundi, e particularmente à capacidade de prometer. Distinta da
atividade de pensar, no querer “o critério já não é o eu [self] e o que ele pode
ou não pode suportar, aquilo com que pode conviver, mas a execução e as
consequências da ação em geral”. Na atividade de querer, a afirmação do
outro – Amo: volo ut sis, (Eu quero que você seja) – está implícita no Amor
Mundi. Marca “[...] o ponto em que decidimos se amamos o mundo o
bastante para assumirmos a responsabilidade por ele”. O Amor Mundi de
Arendt significa não apenas uma promessa que une seres humanos, mas
sobretudo um imperativo à ação.
A responsabilidade pessoal por quem somos, pelos outros e pela
durabilidade do mundo, confluem no espaço-entre de Arendt (Zwischen-
Raum). Essa relação ética entre a ação e as atividades do espírito de modo
algum significa uma relação de causa e efeito. O espaço-entre pode ser visto
como um espaço ético que não se situa nem na pura esfera privada da
interioridade (inwardness), nem na esfera genuinamente performática de
uma exterioridade desprovida de reflexão e crítica. As atividades de pensar,
julgar e querer desempenham um papel decisivo na constituição de quem
somos, de como agimos e de como decidimos assumir responsabilidade
pelos outros e pelo mundo. Sendo assim, minha preocupação é articular, a
partir da obra de Hannah Arendt, uma dimensão ética cuja base remeta à
visibilidade de nossas palavras e atos, em que, a despeito das nossas
melhores intenções, sobreleva a relevância ética da ação e da experiência.
Um sujeito comprometido com uma ética da responsabilidade pessoal deve
ser capaz de “Logon didonai ‘prestar contas’ – não provar, mas estar apto a
dizer como chegamos a uma opinião e por que razões a formamos [...]. O
próprio termo é político em sua origem: a prestação de contas é o que os
cidadãos atenienses cobravam de seus políticos, não apenas em questões
financeiras, mas também questões políticas”. A luminosidade do espaço
público é crucial para uma ética da aparência, uma ética da responsabilidade
pessoal. Convoca-nos a uma constante “prestação de contas”, para com nós
mesmo, os outros e o mundo. Essa ética da visibilidade abre a possibilidade
de reproblematizar o pathos entre o self e o mundo comum, entre
consciência e experiência – os pilares à inspiração de uma nova simbologia
ética na política.
Não é novidade que a filosofia moderna empreendeu uma tarefa longa e
contínua de produção de dois planos incomunicáveis, a compreensão e o
afeto, protagonizada pelo próprio Kant. Em se tratando de ética, a validade
normativa de regras gerais é mais relevante do que o que sentimos com/pelo
o outro. Entretanto, minha hipótese aqui é a de que, se na inscrição dos
juízos éticos se levar a sério essa virada epistemológica dos afetos atribuída
à representação empreendida por Arendt a partir da estética kantiana, não só
é possível subsumir que atribuição de sentido e afeto mantém uma
implicação epistemológica direta. Ou seja, assumir que uma das bases na
decisão de como compreendemos, atribuímos sentidos e juízos, reside nos
afetos, mas também, e por consequência, que os afetos passam a
desempenhar um papel protagonista na forma como julgamos e agimos. Daí,
pode-se afirmar que a ética é também do domínio dos afetos, ou melhor, os
afetos também se ocupam da ética. Em uma passagem de Responsabilidade
e julgamento, Arendt menciona a necessidade de um “sentimento de
legalidade” capaz de, quando necessário, contradizer as leis do Estado. Cito
novamente a passagem: “o que realmente exigimos deles é um ‘sentimento
de legalidade’ profundo dentro de si próprio, para contradizer a lei do país e
o conhecimento que dela possuem”. Aqui, por analogia, para ser fiel ao
sentido atribuído por Arendt ao juízo político, pode-se apelidar de
“sentimento de injustiça”. Em termos de julgamento, descrito também como
um sentimento, as experiências de injustiça afetam nossa experiência ética, e
nos compelem à ação. Na gramática dos afetos comuns, a experiência de
juízo crítico nos afeta com indignação, com pulsão de vida, com pulsão de
ação, de ação política. Ser afetado por um sentimento de injustiça, acredito, é
uma das formas mais fortes da passagem do escopo da generalidade do
julgamento para a sua experiência particular mais factual. O juízo crítico nos
afeta na experiência da injustiça. A partilha comum das injustiças nos
impulsiona à contestação política. Aqui a constituição do sujeito e a ação
política operam uma espécie de simetria ontológica.
A figura do espectador no juízo arendtiano não se molda à
caracterização de um tipo de imparcialidade desconectada, não padece da
liberdade da imparcialidade, tal qual no julgamento determinante. Ao
contrário de ter como objetivo a verdade (no modelo lógico de representação
do objeto), próprio do julgamento determinante, o objetivo no julgamento
reflexivo arendtiano é o significado, o sentido. Por isso a representação no
formato do juízo determinante não pode “representar” um afeto, uma
indignação. A intensidade com que nos deixamos afetar pelas injustiças, a
intensidade de nossa indignação, de fato, não carece de estabelecer
proporção necessária com o conhecimento das propriedades da
representação formal da justiça. Dito de outra forma, minha hipótese é de
que a teoria do juízo político arendtiano, a partir do juízo estético kantiano,
nos habilita a uma teoria crítica do juízo na qual aquilo que nos afeta nas
formas mais variadas de injustiça é decorrência de um juízo político dos
afetos comuns. Quando Arendt recupera a premissa de que o juízo
discriminatório de “isso me agrada ou me desagrada” implica um segundo
momento, ou seja, nos afeta na forma de um sentimento de aprovação ou
reprovação, é como se nosso juízo crítico fosse capaz de produzir um estado
de ânimo (Gemüt), um sentido, que se declara publicamente. No caso mais
emblemático do sentimento de injustiça, a declaração pública do sentimento
de desagrado, de indignação, se encarna na comunicabilidade. Essa
descrição da forma como nos engajamos em algo de relevância pública
escapa ao discurso do razoável ou do consenso normativo. O tipo de
conceptualização de juízo normativo, ao ter muito mais em conta a
promoção da estabilidade política, não nos instrumentaliza com uma teoria
crítica do juízo político que ultrapasse a esfera da aplicação de regras de
validade, e por consequência, não nos vincula diretamente às experiências
fáticas de injustiça.

Pensamento em diálogo
André Duarte
A prova de vitalidade de um pensamento não reside apenas na avaliação dos
efeitos que foi capaz de produzir enquanto o pensador se encontrava vivo,
mas se confirma em vista de sua capacidade de continuar a produzir efeitos
no pensamento de outros, muito tempo depois da morte do pensador em
questão. Hannah Arendt faleceu há quarenta anos e desde então seu
pensamento vem recebendo claras provas de consagração, prosseguindo
vivo, forte e vibrante tanto no Brasil quanto em diversos outros países, como
o atesta a crescente literatura dedicada à exploração e explicação de aspectos
importantes da obra arendtiana. O pensamento que perdura é aquele cuja
riqueza conceitual permite que outros pensadores possam dele se apropriar
até o ponto de renová-lo e revigorá-lo. Ora, é justamente isto o que vem
acontecendo com a reflexão arendtiana, sobre a qual Judith Butler tem
manifestado claro interesse em livros recentes, como Notes toward a
Performative Theory of Assembly, de 2015.
De fato, desde já algum tempo ela tem ressaltado e valorizado duas
ideias centrais do pensamento arendtiano: a noção de pluralidade, da qual
Butler deriva sua concepção da coabitação e sua crítica às políticas estatais
de caráter genocida, bem como a ideia arendtiana acerca do caráter
performativo do agir e discursar coletivos, os quais instauram novos espaços
e novas realidades políticas entre os agentes para além das fronteiras
institucionais da esfera pública formalmente constituída nos limites da
representação.
Assim, em reflexão de 2011 sobre o movimento Occupy Wall Street,
Butler afirmava que a reflexão de Arendt seria dotada de forte potencial
performativo, especialmente em função de sua concepção de que “ao agir
trazemos o espaço da política ao ser, entendido como o espaço da
aparência”, ideia introduzida em A condição humana, de 1958. Valendo-se
dessa noção arendtiana, Butler discute o processo político pelo qual ruas e
praças se transformam em lugares privilegiados de ação e discussão,
ganhando outro relevo no centro das grandes cidades ao atrair a atenção da
mídia e de pessoas que até então jamais haviam se interessado ou mesmo
sequer participado de reuniões políticas. Nesse contexto Butler reflete sobre
a dimensão performativa das manifestações políticas coletivas e alarga sua
concepção a respeito dos atos de linguagem, assim como, movendo-se agora
para além do pensamento arendtiano, reflete ainda sobre o lugar e a
importância do corpo nas dinâmicas políticas dos mais recentes movimentos
sociais. Neles, boa parte do que realmente importa politicamente diz respeito
à experiência de compartilhamento de um espaço público “ocupado”, no
qual os agentes vivem coletivamente durante certo tempo.
Por certo, já desde Who Sings the Nation (2007) Arendt fornecia a
Butler uma ideia central quanto às potencialidades performativas e
inovadoras do agir político em concerto, a noção do “direito a ter direitos”,
introduzida em Origens do totalitarismo, de 1951. Butler formula sua noção
de performatividade política em diálogo com a noção arendtiana do “direito
a ter direitos”, entendendo-a, a meu ver corretamente, não como enunciado
metafísico ou princípio normativo relativo a um conceito abstrato de
Humanidade, como o faz Seyla Benhabib em The Rights of Others, nem
como instituto jurídico pertencente ao indivíduo isolado enquanto tal. Pelo
contrário, Butler pensa o direito a ter direitos arendtiano como princípio
político performativo, cuja ação própria seria a de promover efeitos
surpreendentes e imprevistos na cena pública, produzindo instantaneamente
aquilo que as regras formais da cidadania tão frequentemente negam a
milhões de seres humanos, isto é, igualdade política e cidadania enquanto
capacidade de ação política coletiva.
Butler relê Arendt por ocasião das manifestações de imigrantes ilegais
de origem latina na Califórnia, ocorridas em meados dos anos 2000, cujo
ápice performático residia em cantar o hino nacional norte-americano em
espanhol, demonstrando assim a complexidade da relação entre a
comunidade latina e os Estados Unidos. Nessas manifestações a comunidade
latina reivindicava publicamente direitos dos quais se encontrava legalmente
privada, gerando assim efeitos políticos inesperados e mesmo paradoxais,
pois a ação política concertada e pública daqueles agentes instaurava em ato
e naquele instante justamente a cidadania e a liberdade política de que eles
se encontravam formalmente privados. Ao manifestarem-se à luz do dia,
expondo-se ao perigo da deportação, tais imigrantes ilegais mostravam
simultaneamente os limites da cidadania formal e a potencialidade política
implicada no agir coletivo fundado em bases de igualdade: “Exercer a
liberdade e afirmar a igualdade precisamente em relação a uma autoridade
que as obstrui é mostrar como a liberdade e a igualdade podem e devem
mover-se para além de suas articulações positivas. [...] O chamado para este
exercício da liberdade que vem com a cidadania é o exercício daquela
liberdade numa forma incipiente: ela começa por exercer aquilo que
reivindica”.
Com o auxílio de Arendt, pois, Butler transpôs sua concepção de
performatividade de gênero para o campo da política, suprindo assim o que
poderia ser pensado como uma lacuna de seu pensamento inicial, no qual a
noção de performatividade de gênero oferecia-se mais como instância de
diagnóstico crítico sobre a produção das identidades de gênero do que como
referencial para pensar os movimentos políticos de resistência. Afinal, o
aspecto importante aqui é a consideração dos efeitos políticos performativos
derivados do agir e do reivindicar discursivamente direitos por parte
justamente daqueles que deles se encontram privados.
Arendt também auxiliou Butler a formular suas críticas às políticas
estatais contemporâneas de caráter genocida, as quais pretendem definir o
que ninguém pode definir, isto é, com quem queremos dividir a vida na
Terra, negando-se assim a pluralidade como condição inescapável da vida
política, tal como se nota em Parting ways. Jewishness and the Critique of
Zionism, de 2012. Butler constrói esse argumento dialogando com Eichmann
em Jerusalém, obra de 1963 em que Arendt discute o processo e condenação
de Adolf Eichmann, o responsável pela engenharia de transportes e
deportações que tornou possível a solução final nos campos de morte do
nazismo. Para Arendt, a conduta de Eichmann ilustra o absurdo do genocídio
enquanto decisão sobre aquilo que ninguém pode decidir, isto é, com quem
queremos compartilhar a vida na Terra, definindo-se assim qual porção da
humanidade pode viver e qual deve perecer. O genocídio rompe o princípio
ético-político e existencial da pluralidade, em vista do qual não podemos
escolher com quem queremos compartilhar a Terra na qual vivemos junto a
outros que são diferentes de nós mesmos e com os quais estamos obrigados a
viver: “O caráter não escolhido da coabitação é para Arendt a condição de
nossa própria existência ético-política”.
A partir do preceito normativo ético-político da coabitação, Butler
sugere que devamos extrair um programa político visando orientar a ação em
nosso tempo: “Devemos conceber instituições e políticas que afirmem e
preservem o caráter não escolhido da coabitação plural e sem fim. Não
apenas vivemos com aqueles que nunca teremos escolhido e para com os
quais não temos um sentido imediato de pertencimento social, mas também
estamos obrigados a preservar aquelas vidas e a pluralidade aberta que é a
população global”. Na reflexão de Butler sobre as relações entre vida,
política e filosofia, portanto, as demandas ético-políticas brotam da “própria
vida corporal, a qual nem sempre é humana de maneira clara e não ambígua.
Afinal, a vida que se deve preservar e resguardar, que deve ser protegida do
assassinato (Levinas) e do genocídio (Arendt), conecta-se com e é
dependente da vida não humana segundo modos essenciais”. Como se nota,
é no âmbito de um diálogo com o pensamento arendtiano que Butler
aprofunda sua reflexão sobre a viabilidade da vida, cujas vulnerabilidade e
precariedade constituem marcos ontológicos e normativos a partir dos quais
se impõe a tarefa de repensar a ética e a política.
Por certo, Butler também critica Arendt por entender que a autora não
teria articulado as dimensões da liberdade e da necessidade, do público e do
privado. De fato, por vezes Arendt parece traçar distinções rígidas entre os
planos político e pré-político. No entanto, uma leitura atenta de sua obra
também nos permite questionar tais limites a partir de indicações da própria
autora. Assim, certa vez Arendt afirmou que “a vida muda constantemente e
sempre há constantemente coisas sobre as quais se quer falar. Em todas as
épocas as pessoas que vivem coletivamente terão assuntos que pertencem ao
espaço público – coisas ‘que são dignas de ser discutidas em público’. O que
são esses assuntos em cada momento histórico é provavelmente totalmente
diferente. [...] Então o que se torna público em cada período dado parece ser
para mim totalmente diferente”. Essas considerações permitem pensar que
distinguir questões sociais e privadas de questões público-políticas não é o
mesmo que ignorar ou recusar o fato de que questões que anteriormente
foram vistas como privadas ou sociais venham a se tornar problemas
políticos de primeira relevância: basta que sejam trazidas à esfera pública
por um conjunto plural de atores políticos. Seja como for, uma política
aberta à novidade, como pensada por Arendt, é aquela que se origina do livre
agir coletivo, que se exerce por meio da capacidade de discordar, de dizer
não e de agir para interromper um determinado estado de coisas.

coluna
O corpo abjeto
marcia tiburi
A história do corpo começa com os motivos de sua abjeção e segue com a
assepsia gradativa em que procedimentos tecnológicos e plásticos garantem
uma espécie de superação dele. Do corpo abjeto ao corpo plástico, passando
pelo corpo máquina, da experiência da finitude à sua prova maior que é a
morte, tudo passa pelo corpo, tudo se dá no corpo. O fato inquietante da
putrefação penaliza o corpo, resto cultural não simbolizado com o qual
temos que nos resolver na vida. Simbolizamos tudo, mas não o corpo, que
escapa em última instância aos esforços de compreensão.
E, no entanto, tudo vem do corpo. Fonte, portanto, das mais complexas
inquietações, prova da morte, fato da vida, o corpo é alguma coisa que seria
melhor não possuir. Em termos diretos, por seu peso, melhor seria não ser,
não existir.
Diante do corpo abjeto em si mesmo, as tecnologias tornam-se a
salvação teológica. É o novo ser da cultura descorporificada e desencarnada,
mas não mais em nome de uma alma que pudesse nos fazer transcender, e
sim em nome do plástico, nossa mais nova metafísica que, nos livrando da
carne, torna-se a nova matéria de que somos feitos.
As tecnologias substituem o corpo justamente onde ele deixa de ser útil
e torna-se um problema, um resto. Se hoje a condição de ciborgue é cada vez
mais comum quando somos de algum modo implantados, transplantados,
quando nos tornamos usuários de próteses corporais as mais diversas, ou à
medida que somos siliconizados, plastificados – no limite, contra a morte –,
nada impede que, no futuro, venhamos a nos tornar robôs. Se a alma não era
mais do que o nome para a nossa função simbolizante, uma função da
linguagem, nada impede que ela seja transformada em “chip” e que, no
futuro, possamos defini-la como um mínimo de informações referentes às
nossas identidades (DNA, gostos, preferências e padrões estéticos e de
comportamento no contexto de projetos de eugenia liberal).
Se na antiguidade a alma foi o centro de um dispositivo do poder que
servia para tirar o corpo fora, se na modernidade foi o sexo que assumiu esse
lugar sendo posto como mistério, que tornava o corpo fora de questão diante
de um sexo a ser buscado metafisicamente, em nossa época, renovam-se tais
núcleos em torno do dispositivo de todos os dispositivos, que é o da
linguagem. Vivemos na época da exposição radical dos quatro braços
tentaculares que produzem a ontologia de nossa cultura, nosso modo de ser:
se falamos em sociedade administrada (Adorno e Horkheimer), o núcleo do
dispositivo é a racionalidade burocrática; se pensamos em sociedade do
espetáculo (Debord), temos que o núcleo do dispositivo é a imagem; se
falamos em sociedade do conhecimento (Negroponte) vemos que seu núcleo
é a informação; se falamos em uma sociedade excitada (Türcke), então nos
referimos ao lugar essencial das sensações em nossa cultura. Todas essas
fórmulas mostram os arranjos do poder por meio da linguagem – e dos
meios que administram a linguagem – em relação ao corpo que se torna o
suporte negado e humilhado quando perde sua utilidade. O lugar das
máquinas, dos instrumentos e dos aparelhos técnicos, está assegurado. Des-
lugar do corpo, em sentido distópico e não utópico.
A moldagem dos corpos, que definem plasticidades, que funcionam nos
medindo e definindo em termos de um grande consenso visual orquestrado, é
um novo modo de morrer sem que a morte esteja presente. Sísifos
tecnológicos, carregamos a pedra que vai cair sobre nossos corpos mesmo
quando não se puder mais falar neles. Para trás, fica algo antigo como o
corpo que ainda remete à morte – sem a qual, está provado, não existe vida.

retrato do artista
A palavra em movimento
Claudio Daniel

A poesia visual de Mário Alex Rosa se apropria de objetos de uso cotidiano,


como talheres, luvas, tesouras e cadeados, que são incorporados em outros
territórios simbólicos, adquirindo novas possibilidades de significação. Os
procedimentos estéticos utilizados pelo poeta mineiro nessa jornada criativa,
como o recorte, montagem e colagem de signos, recordam as técnicas
dadaístas de ready made desenvolvidas nas primeiras décadas do século 20
por poetas e artistas plásticos como Kurt Schwitters e Marcel Duchamp, que
incorporaram detritos da sociedade industrial em suas obras, como cédulas
monetárias, selos ou bilhetes de trem, denunciando a sociedade de consumo
e a perda da “aura” da atividade artística, tal como assinalado pelo filósofo
alemão Walter Benjamin.
A crítica da realidade imediata e dos valores culturais hegemônicos é
inerente a essa perspectiva, ao mesmo tempo criadora e demolidora, que se
realiza de forma eficaz pelo uso do paradoxo, da alegoria e do humor. Em
seus inusitados inutensílios – para usarmos uma palavra do vocabulário de
Manoel de Barros –, o poeta mineiro, nascido em São João Del Rey, não
renuncia à palavra, que é incorporada ao trabalho visual como representação
do pensamento e como elemento plástico: as letras possuem um desenho que
se tornou quase imperceptível na prática rotineira da leitura e cabe ao poeta
justamente recuperar a sua vitalidade, o seu caráter de inscrição, mais
evidente nos antigos alfabetos orientais e ocidentais, como as runas
escandinavas, que privavam de um caráter simbólico e sagrado.
Ao revalorizar a dimensão visual da escrita, Mário Alex Rosa atualiza a
palavra-de-ordem de Mallarmé, para quem era missão do poeta “dar um
sentido mais puro às palavras da tribo”, retirando-as de sua função apenas
utilitária, ditada pelo capitalismo, para que elas fossem valorizadas em seus
aspectos plástico e sonoro. A intersecção entre conceito, ritmo, imagem e
movimento, de evidente caráter lúdico, constrói a ironia desses poemas
visuais e poemas-objeto, que o autor mineiro apresentou na exposição Meus
utensílios, realizada na Galeria de Arte Copasa, em Belo Horizonte, e que
também podem ser vistos em revistas eletrônicas como a Zunái.
Na composição intitulada Trouxeste a chave?, por exemplo, o autor
constrói a palavra Poema a partir da junção de cinco cadeados, cada um com
uma letra afixada em sua superfície, indicando, de maneira metafórica, o
caráter cifrado da poesia; em Uma broca para Brossa, faz um jogo de
imagens e de palavras com o nome do poeta catalão, associado à capacidade
de perfuração de materiais; em Passando o poema a limpo, um ferro de
passar roupa é associado a um conjunto de palavras recortadas em letraset,
sob uma superfície vermelha.
Em todas estas composições, que poderiam ser comparadas aos
inutensílios de outro poeta mineiro, Sebastião Nunes, autor da Antologia
mamaluca, a ênfase está na metalinguagem, na reflexão sobre a própria
atividade criadora do poeta; longe de representar uma atitude escapista,
coloca em xeque alguns dos vetores fundamentais da lógica de mercado,
como valor e função, além de questionar a facilidade da linguagem dos mass
media. A subversão estética e conceitual de Mário Alex Rosa está presente
também em seus livros, como Formigas (2013), elaborado em parceria com
a artista plástica Lilian Teixeira, poema-objeto em que as palavras estão
distribuídas nas páginas acompanhando a ilustração de uma trilha de
formigas que avança em diferentes posições, à esquerda, à direita, acima e
abaixo, conferindo mobilidade à escrita – e também à leitura e à própria
relação entre o leitor e o livro.
Em Ouro Preto (2012), Via férrea (2013) e Deus não me livre (2015),
obras que apresentam poemas em versos livres, a visualidade está presente
também: conforme diz o poeta, “a minha questão é sempre a letra, a forma, a
palavra, o sentido táctil-visual-sonoro que cada palavra carrega, a busca é
sempre a mesma, ou seja, me concentrar na particularidade que cada palavra
possa oferecer. O processo é diferente, mas a tentativa de se chegar ao
sentido crítico é o mesmo. A dor é a mesma”. Em Ouro Preto, é preciso
destacar o diálogo que o poeta estabelece com a paisagem natural, a
arquitetura, a história e a mitologia da cidade que encantou Murilo Mendes.
Não se trata de lírica nativista, melancólica, nem de emulação da atmosfera
barroca: o poeta reinventa a cidade como espaço subjetivo e textual, onde
“cada palavra é cadafalso”.

narrativa de viagem
Todos os nomes de Lisboa
welington andrade

Destino de Odisseu
Uma cidade cujo nome tem origem incerta (seria a povoação de Olissipo, ou
Olissipona, dos gregos ou o “porto seguro”, allis ubbo, dos fenícios?) vive
uma condição assertiva: o misto de tradição e modernidade que vibra em
suas ruas e que também pauta a programação cultural de muitas de suas
instituições é capaz de propor uma potente interlocução com a esfera da
cultura-mundo nos dias de hoje. A CULT esteve na capital portuguesa, na
semana de 28 de outubro a 1º de novembro último, a convite da Associação
Turismo de Lisboa, e conheceu o panorama artístico e cultural que uma das
mais antigas cidades europeias oferece não somente aos seus habitantes, mas
também ao crescente contingente de turistas que a têm visitado nos últimos
anos.
Uma Lisboa concreta – vivendo os impasses políticos e econômicos
inerentes às demais capitais das nações que participam da Zona do Euro –
constantemente é suplantada por uma Lisboa idílica, suspensa no tempo e no
espaço, às voltas com os mitos e os prodígios que há séculos procuram
converter as lendas de que se cerca a fundação da cidade em inventivas
realidades. Enquanto o poeta Luís de Camões, em 1572, ano da publicação
de Os lusíadas, mencionava com bastante sobriedade, na quinta estrofe do
oitavo canto de seu poema épico, a filiação da capital do império português
ao imaginário heroico grego (“Ulisses é, o que faz a santa casa/ À Deusa que
lhe dá língua facunda/ Que, se lá na Ásia Tróia insigne abrasa,/ Cá na
Europa Lisboa ingente funda.”); algumas décadas depois, outro entusiasta da
ascendência homérica de Portugal – Frei Bernardo de Brito, historiador que
deu à luz, em 1597 e 1609, respectivamente, a primeira e a segunda partes da
Monarquia lusitana – foi mais longe, assegurando que o protagonista da
Odisseia encontrou tamanha felicidade nas terras lusas que acabou por
olvidar, embora não para todo o sempre, sua Ítaca natal: “Foi tão grande o
contentamento que Ulisses teve desta povoação, que esquecida a felicidade e
quietação do seu reino punha todas as suas forças em prosperar e
engrandecer o que de novo fundara e refazendo as embarcações destroçadas
que se ocupavam de pescar no Tejo a variedade de grandes e saborosos
peixes que em si cria de modo que quanto mais estavam na terra tanto menos
causas se achavam para se lembrar da sua...”.

Anfitriões homônimos
Curiosamente, na cidade de batismo difuso, berço de Fernando Pessoa, o
poeta dos heterônimos, e abrigo de José Saramago, o romancista de Todos os
nomes, um único prenome – Ricardo – desdobrado em três diferentes
indivíduos, recebeu a CULT nas visitas aqui destacadas.

cosmópolis de pessoa
O jornalista e escritor Ricardo Belo de Morais é membro da equipe da Casa
Fernando Pessoa desde 2012 e há dois anos edita nas redes sociais o projeto
“O Meu Pessoa”. Autor da biografia romanceada O quarto alugado: a vida
de Fernando Pessoa revisitada por um velho amigo, Ricardo é um dos
anfitriões do velho sobrado no Campo de Ourique onde o poeta morou nos
últimos quinze anos da sua vida (1920-35), hoje transformado em centro
cultural. Alguns móveis originais que faziam parte do quarto do escritor,
certos objetos pessoais seus (como a máquina de escrever que pertenceu a
um dos escritórios onde ele trabalhou como tradutor) e o famoso Retrato de
Fernando Pessoa pintado por José de Almada Negreiros em 1954 para o
café Os Irmãos Unidos certamente fazem valer a ida à casa em que Pessoa
viveu, mas é o lançamento da edição fac-similada dos dois únicos números
da “revista trimestral de literatura” Orpheu, em homenagem ao centenário
que a publicação está completando em 2015, que transforma a visita em uma
viagem ao modernismo português.
Contam António José Saraiva e Óscar Lopes na História da literatura
portuguesa que, reunidos por início da Primeira Guerra Mundial, Fernando
Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros e Santa-Rita Pintor
constituíram um movimento estético pós-simbolista em Lisboa, produzindo
em conjunto “a maior renovação poética portuguesa” do século 20. Nada
havia de definidamente programático no primeiro grupo modernista, a rigor,
de Portugal, lembram os historiadores, ressaltando que seus integrantes
“com a irreverência iconoclástica, que utiliza todas as formas possíveis de
publicidade, mesmo as mais cabotinas, alternam apenas certas formas de um
sebastianismo delirante, o gosto das ciências ocultas, da metapsíquica, da
astrologia e uma religiosidade heterodoxa e esotérica. Em vez do escândalo
político à Gomes Leal, é o escândalo dos costumes e do senso comum que
traz a notoriedade”.
O primeiro número de Orpheu revelou ao público não somente os
poemas “Opiário” e “Ode triunfal”, de Álvaro de Campos, como também a
raríssima incursão de Fernando Pessoa pelo gênero teatral, o drama estático
em um quadro O marinheiro, que ecoa o simbolismo cênico do escritor
belga de língua francesa Maurice Maeterlinck, autor de Pelléas et
Mélisande. Já o segundo e último número da revista estampou a “Ode
marítima” de Álvaro de Campos e a “Chuva oblíqua” do ortônimo. Em
Orpheu, Pessoa levou adiante o projeto de dilatar os horizontes portugueses
ao nível da internacionalização, conforme defendeu em Sensacionismo e
outros ismos: “O que é preciso ter é, além de cultura, uma noção do meio
internacional, de não ter a alma (ainda que obscuramente) limitada pela
nacionalidade. Cultura não basta. É preciso ter a alma na Europa”.

Universo de Saramago
O paulista Ricardo Viel vive na Europa desde 2011. Graduado em Direito,
mas atuando no jornalismo, ele é assessor de comunicação da Fundação José
Saramago, constituída pelo próprio escritor e atualmente instalada na Casa
dos Bicos. Ao receber a CULT, Ricardo estava às voltas com o lançamento,
no dia seguinte ao da nossa visita ao local, do mais recente projeto da
Fundação, a apresentação da proposta de Declaração Universal dos Deveres
Humanos.
No discurso pronunciado no banquete do Prêmio Nobel de Literatura,
em 10 de dezembro de 1998, data em que se comemorava o cinquentenário
da assinatura da Declaração Universal dos Direitos do Homem, José
Saramago lembrou que o documento “não cria obrigações legais aos
Estados, salvo se as respectivas Constituições estabelecem que os direitos
fundamentais e as liberdades nela reconhecidos serão interpretados de
acordo com a Declaração”, advertindo que o reconhecimentos de tais
direitos acaba sempre “desvirtuado ou mesmo denegado na ação política, na
gestão econômica e na realidade social”. Depois de nomear devidamente
uma parte do problema – “Alguém não anda a cumprir o seu dever. Não
andam a cumpri-lo os governos, seja porque não sabem, seja porque não
podem, seja porque não querem” –, Saramago lançou um apelo: “Tomemos
então, nós, cidadãos comuns, a palavra e a iniciativa. Com a mesma
veemência e a mesma força com que reivindicarmos os nossos direitos,
reivindiquemos também o dever dos nossos deveres. Talvez o mundo possa
começar a tornar-se um pouco melhor”.
Quase duas décadas após o anúncio desta proposição, a UNAM
(Universidade Autónoma do México) e a Fundação José Saramago (FJS)
convocaram pensadores de todo o mundo para discutir em junho deste ano,
na Cidade do México, uma proposta de Declaração Universal dos Deveres
Humanos, a ser futuramente encaminhada à Organização das Nações Unidas.
No último dia 16 de novembro, data de nascimento do autor de Ensaio sobre
a cegueira, um ato realizado no auditório da Casa dos Bicos apresentou o
primeiro resultado do trabalho, reunindo os redatores ibéricos do documento
desenvolvido no México: Ángel Gabilondo, Francisco Louçã, António
Sampaio da Nóvoa, Sami Naïr e José António Pinto Ribeiro.
Vale observar que a atividade integrou a programação dos Dias do
Desassossego, série de ações culturais desenvolvidas em conjunto pela Casa
Fernando Pessoa e a Fundação José Saramago, entre 16 e 30 de novembro
último. Com trajetórias políticas e ideológicas tão distintas, ao menos aqui o
poeta e o ficcionista se encontraram irmanados pelas mesmas inquietudes e
aflições.
Reino de Ricardo
No imponente Teatro Nacional Dona Maria II, construído entre 1842 e 1846,
na Praça do Rossio, com projeto do arquiteto italiano Fortunato Lodi, o
terceiro Ricardo nos recebeu, cercado de sua verdade ficcional e com a
devida cota de ironia trágica. Dois anos após a descoberta, na cidade inglesa
de Leicester, dos ossos de Ricardo III, o antigo rei da Inglaterra, morto em
1485 na Batalha de Bosworth Field, o encenador Tónan Quito, convidado
pelo TNDM, acreditou tratar-se do “momento perfeito para fazer desenterrar
a peça homônima de William Shakespeare, datada de 1592, que relata a mais
maquiavélica subida ao trono que há memória”.
A encenação de Ricardo III pela companhia integra o Projeto
Shakespeare, resultado de um protocolo estabelecido entre os membros do
grupo de investigação Shakespeare e o Cânone Inglês, do CETAPS – Centre
for English, Translation and Anglo-Portuguese Studies (polo da Faculdade
de Letras da Universidade do Porto), e a editora Relógio D’Água, cujo
objetivo é produzir não somente traduções da obra do bardo inglês que sejam
compreensíveis aos olhos do século 21 como também textos críticos que
ofereçam a devida fundamentação cultural e histórica das peças. O trabalho
da tradução de Ricardo III foi assumido por Rui Carvalho Homem.
A encenação de Tónan Quito oscila entre o desprezo e o fascínio por
uma figura dramática que encarna a exacerbação da própria singularidade
como poucos na ampla galeria dos personagens shakespearianos: “Ricardo
ama Ricardo, ou seja, eu sou eu”. O espetáculo tem início com uma bola
vermelha que é arremessada de lá para cá por três crianças que ocupam o
palco, enquanto a plateia se acomoda nas cadeiras. Os demais atores entram
em cena e a bola, então, se transforma no símbolo da corcunda de Ricardo.
O intérprete que a detiver nas mãos passa, a partir daquele momento, a
desempenhar o papel do monarca. Assim, todos os atores, um a um, ao longo
da representação encarnam o protagonista. A esse respeito, no texto do
programa do espetáculo, esclarece o encenador: “Há sempre essa dualidade,
essa ambiguidade, não é propriamente entre o bem e o mal, mas de tu
próprio seres Ricardo também. E é como se cada morte deixasse um lugar
vago, como se houvesse a possibilidade de um novo Ricardo ascender, de
alguém querer reivindicar o seu papel”.
A densidade do material sintético esfarelado e enegrecido que recobre o
vasto palco da sala Garret do teatro, os instrumentos musicais – bateria e
trompete –, que constituem os únicos elementos cênicos da montagem, e os
figurinos estilizados apontam para o acento dark, ou punk, da encenação,
cuja maior preocupação parece, a rigor, revelar a modernidade metateatral de
William Shakespeare. “A peça é mesmo sobre teatro”, afirma Tónan Quito,
apontando para a importância do conceito de “representação” na obra. “E
agora vamos contar aqui uma história, querem ver? Agora matei este, e
ainda vou fazer isto. É muito contemporâneo, pós-dramático”, conclui o
diretor.

Inominável, fluvial, luminosa


O certo é que, tenha seu surgimento devidamente creditado aos fenícios, aos
gregos, aos tartéssios ou aos romanos, Lisboa deve sua existência ao rio
Tejo, outrora chamado de Lúcio ou Lisso, formas que também ecoam o
radical lykjo, derivado de λυk, de onde surgiu, por sua vez, “luminoso”, um
dos epítetos de Ulisses, ou Odisseu. O patrono ancestral de uma cidade cuja
literatura, teatro e arquitetura continuam cintilantes.

dossiê A psicanálise e as formas do


político
Apresentação
Gilson Iannini e Vladimir Safatle

A política não precisa ser pensada apenas como reflexão estruturada sobre as
formas das identidades coletivas em sua pretensa autonomia. Se a
psicanálise tem consequência para o pensamento político é por ela trazer
uma concepção nova de conflito, de diferença e de singularidade com
implicações sobre a economia de relações entre sujeito e sociedade. Pois
desde seu início, a psicanálise nunca se contentou em ser apenas uma clínica
do sofrimento psíquico. Já a teoria social freudiana trazia elementos ainda
não inteiramente explicitados quanto à economia libidinal da experiência
política das sociedades modernas. Seja através da procura em revelar a
dinâmica pulsional do poder, a natureza das identificações que nos vinculam
à autoridade, a fonte política do vínculo transferencial, as fantasias que
garantem a coesão social e o mal-estar que nasce como saldo do processo
civilizatório, a psicanálise freudiana deixava claro como só seria possível
pensar o sujeito lançando luzes na dimensão social de seu sofrimento e de
suas expectativas de criação social. Não por acaso, Freud assinalava que a
linha que separa a psicologia do indivíduo da psicologia social é uma linha
tênue.
Esse caminho aberto por Freud será uma constante na experiência
filosófica a partir de então. As reflexões da Escola de Frankfurt a respeito da
estrutura pulsional da regressão política, as discussões de Deleuze e Guattari
sobre as relações entre desejo e capitalismo, de Lyotard sobre a economia
libidinal e mesmo a sensibilidade de Michel Foucault aos dispositivos
disciplinares de nossa época e da consolidação da biopolítica neoliberal são
incompreensíveis sem recuperarmos o campo aberto pela reflexão freudiana,
por mais que vários de tais autores tenham uma relação tensa, porém
decisiva, com a psicanálise. Pode-se transpor o mesmo raciocínio para a
atualidade: como pensar autores decisivos no debate político contemporâneo
– como Judith Butler, Ernesto Laclau, Slavoj Žižek, Alain Badiou, Jacques
Rancière, entre outros – sem vinculá-los, de uma maneira ou de outra, ao
corte operado pela psicanálise?
Especial importância deve ser dada à construção freudiana da categoria
de mal-estar e suas incidências na reflexão sobre a crítica social, assim como
sua relevância para a construção de sensibilidades para a especificidade das
formas de sofrimento no século 20. Vale ainda lembrar como a perspectiva
aberta pela psicanálise nunca foi apenas crítica e profilática. Em vários
momentos, ela deu ensejo a uma reflexão sobre as potencialidades de
pensarmos formas renovadas do político e de seus vínculos.
É possível que estejamos atualmente em um momento no qual
dimensões da crítica social filosoficamente orientada podem ser abordadas
em seu diálogo tenso com a psicanálise. Desde os anos cinquenta, a filosofia
social se depara com a reflexão sobre a natureza do capitalismo e de seus
regimes de racionalidades. Em vários desses momentos nos quais crítica da
razão e crítica social se articularam, a psicanálise fora convocada, seja para
impulsionar a crítica, seja para ser vista como mais uma forma disciplinar de
perpetuação das formas de vida hegemônicas no capitalismo. Isso sempre
produziu um diálogo difícil entre psicanálise e filosofia social que, agora,
pode ser retomado em outro patamar.
Um dos objetivos deste dossiê é discutir a atualidade da psicanálise
para uma discussão sobre as formas do político, atentando para o que ela
pode inserir de singular no seio das organizações coletivas. Mas não apenas
isso. Os quatro artigos que compõem o dossiê são uma amostra de diferentes
perspectivas e questões postas no interior do quadro acima esboçado.
No artigo que abre o dossiê, o psicanalista Antônio Teixeira aborda a
“parrésia freudiana”. Seu ponto de partida é a demonstração de que toda
produção de saber deriva necessariamente de uma relação patológica de
força, sofrimento e dominação. Sua hipótese de trabalho é a de que a
psicanálise postularia uma modalidade de jogo entre saber e verdade que se
desprende de uma teoria geral do poder. No segundo artigo, Christian Ingo
Lenz Dunker aborda o perspectivismo ameríndio de Viveiros de Castro e
ensaia algo que poderia servir como uma espécie de “prolegômenos a uma
fundamentação perspectivista da psicanálise”. O que ele pretende é resolver
uma série de impasses oriundos de uma certa apropriação do pensamento
estrutural por Jacques Lacan através de um astucioso desvio por uma
renovada maneira de pensar as relações entre natureza e cultura.
A necessidade de criticar o neurótico-centrismo da psicanálise, já havia
sido percebida, por vias bastante diferentes, por nomes como Frantz Fanon e
Gilles Deleuze. É o que mostra Guillaume Sibertin-Blanc em seu artigo, que
se insere no que poderíamos chamar de arqueologia de uma psicanálise pós-
colonial. Ao colocar a categoria psiquiátrica de “psicose reativa” à prova da
situação concreta da Guerra da Argélia, o autor mostra como o vocabulário
psicopatológico europeu, longe de ser um sistema de nomenclatura
epistemicamente neutro, é devedor de relações políticas naturalizadas. Em
texto exclusivo para o site da CULT, Guilherme Massara Rocha, num
vertiginoso recurso cruzado a Laclau e Lacan, estuda os paradoxos da
emancipação, propondo a complexidade de se pensar formas políticas que
sejam permeáveis à diferença irredutível, mas ao mesmo tempo capazes de
bloquear seu excedente intrínseco que não raramente derrapa em demanda
de exceção.

A parrésia freudiana
Antônio Teixeira

Ao preparar esta intervenção sobre psicanálise e política, ocorre-me lembrar


que, quando se vai ao psicanalista, a última coisa que se deve fazer é
preparar o que se vai dizer. Nada mais contrário ao propósito da experiência
psicanalítica do que a atitude do sujeito que prepara antecipadamente sua
sessão, que se preocupa em determinar de antemão o sentido do que vai
dizer. Para operar clinicamente, não necessitamos impor ao paciente o dever
de planejar o que vai dizer para alcançar a verdade. Propomos-lhe somente
que fale, assegurando-lhe que a verdade irá se dizer por si mesma. Mas ao
examinarmos a estrutura dessa verdade que o surpreende, notamos que ela se
expressa ao modo de uma força que ora deforma, ora perturba, ora contraria
sua intenção expositiva. E é precisamente por considerar a verdade nos
termos de uma relação de forças que a psicanálise requer uma meditação
sobre a política. Para resgatar essa articulação entre a psicanálise e a política,
parece-me particularmente importante retomar uma aliança fundamental
entre o pensamento de Nietzsche e a locução de Freud, a partir da leitura da
“Introdução teorética sobre a verdade e a mentira no sentido extramoral”.
O principal tema que organiza a argumentação de Nietzsche diz
respeito ao devaneio filosófico relativo à existência de uma verdade
expositiva neutra, extramoral, a ser alcançada, em sua origem, por um saber
depurado das relações de força que se determinam como vontade de poder.
O alvo de Nietzsche encontra-se filosoficamente condensado no aforismo
clássico de Espinosa, que todos sabem de cor: não rir, não lamentar-se, não
odiar, mas entender. Para Nietzsche, essa ideia de uma suposta faculdade
neutra do entendimento, isenta do ódio, do riso, da lamúria, é a mentira
humana por excelência, o ápice da dissimulação; ela seria a doença da
metafísica forjada pelo animal humano para produzir a crença numa verdade
estável, separada das relações de força que se manifestam na realidade
gregária, uma vez que se sela provisoriamente a paz e se quer estabilizar o
arranjo que ordena uma determinada situação. Em seu entender, a própria
noção de um sujeito do conhecimento, naturalizada pela ideia de um instinto
epistêmico, é falaciosa. Toda produção de saber, longe de se resolver na
natureza de uma atitude contemplativa neutra, deriva necessariamente de
uma relação patológica de força, sofrimento e dominação.
Para irmos, então, de Nietzsche a Freud, vale lembrar o comentário de
Jacques Rancière a propósito do inconsciente estético, em que ele identifica,
na referência psicanalítica ao mito de Édipo, a testemunha de certa
selvageria do pensamento. Ali igualmente o saber, longe de se reduzir ao
gesto de apreensão neutra de uma idealidade objetiva, aparece antes como
uma patologia do vivente. É o que se vê no terrível diálogo entre Édipo e
Tirésias: ao passo que o primeiro, que quer saber, opõe-se ferozmente ao que
lhe é revelado, o segundo, que sabe, tomado de medo pelo que sabe, exorta o
primeiro a não querer saber daquilo que ainda não sabe e que não deveria
saber. Aos olhos de Rancière, dessa equivalência trágica entre saber e
patologia teria nascido a psicanálise, por ele entendida como uma prática
gestada na confluência em que a filosofia e a medicina se colocam
reciprocamente em causa para fazer do saber uma questão patológica e da
patologia uma questão do saber.
E de fato o que assistimos, com o surgimento da psicanálise, diz
respeito à impossibilidade vivida por Freud de pensar o sofrimento mental
como um dado objetivo, sem levar em conta o problema de uma patologia do
saber. O simples gesto de dar a palavra a seus pacientes e considerar o que
eles tinham a dizer levava Freud a introduzir uma dimensão que o saber
neurológico, do qual ele era um legítimo representante, jamais admitiria. Ao
tomar seu paciente como sujeito, e não como objeto de investigação, Freud
nota, por trás do sofrimento psíquico, a verdade como força psíquica de uma
exigência pulsional sonegada pelo gesto neurótico, o qual a percebe como
um desejo contrário aos modos de satisfação que o discurso que o determina
autoriza. Por não recuar diante dessa contradição, Freud viu-se obrigado a
rever as finalidades de sua prática terapêutica, emancipando-se de sua
posição originária de técnico de um saber expositivo, para se tornar o
ensaísta intelectual que tem verdades a dizer sobre o mal-estar na
civilização.
Notamos, então, que se tanto Freud quanto Nietzsche perturbam por
dizer a verdade, esse dizer-a-verdade perturba justamente por ser algo
distinto de um procedimento de demonstração objetiva de uma realidade
neutra. Essa atitude de dizer-a-verdade adquire antes a forma daquilo que
Foucault propõe chamar de parrésia, termo que evoca, na filosofia antiga, a
fala franca que se distingue da lisonja, da fala de quem visa agradar. Se
existe, para nós, especial interesse em associar a função do dizer-a-verdade
da psicanálise com o termo de parrésia, é na medida em que dela deriva uma
relação entre saber e verdade que se desprende de uma teoria geral do poder.
Assim como para a psicanálise não existe uma pulsão epistêmica – a
ignorância é a paixão fundamental –, para Foucault – leitor atento de
Nietzsche – não existe uma origem natural do saber. No lugar da solenidade
radiante da origem, é no sítio das obscuras relações de poder que se deve
pensar a invenção do saber.
O que está em questão, na parrésia, não é a demonstração de uma
verdade expositiva neutra, alheia ao seu dizer, mas um dever de expressão
que se manifesta no interior de uma relação instituída de poder. Para ilustrá-
la, Foucault se refere a uma passagem de As vidas paralelas, de Plutarco, na
qual o personagem Dion se ergue diante do tirano e lhe diz a verdade que os
outros preferem omitir. Numa situação em que o tirano Dionísio criticava o
governo de Gelon, dizendo que ele era motivo de riso na Sicília, num jogo
de palavras entre Gelon e gelan (“rir” em grego), enquanto os cortesãos se
riam, fingindo admirar as graçolas de Dionísio, Dion o afronta dizendo:
apesar de tudo, você governa graças a Gelon, que inspirava uma confiança
da qual você tirou proveito, mas depois de o ouvir falando, ninguém mais
terá confiança em ninguém!
Como se vê, o que define a parrésia não é o conteúdo da verdade, mas
sua maneira de ser dita, o modo como o sujeito a expressa. Se por um lado a
parrésia não se reduz a uma demonstração, ela tampouco é uma retórica,
uma arte de persuadir: é o engajamento do sujeito com o dizer-a-verdade, e
não com a finalidade de convencer que está em questão. A parrésia também
não se confunde, em sua brutalidade essencial, com a transmissão
pedagógica. Ela não se ensina; ela se lança como uma verdade cortante na
cara daquele a quem se dirige, e por isso acarreta riscos para quem a
pronuncia. Trata-se de um dizer-a-verdade que, ao revelar as relações de
poder que estruturam uma determinada situação, sem nelas estarem
explicitadas, desestabiliza radicalmente essa situação, gerando efeitos
imprevisíveis, não codificados institucionalmente.
Há algo, nesse sentido, que aproxima a parrésia da interpretação
psicanalítica. Se o psicanalista não pode operar na posição de súdito,
tampouco de alguém obrigado a respeitar as cláusulas de algum contrato pré-
determinado, é porque a interpretação necessita poder ser insolente: sua
eficácia depende da possibilidade, que por ela se abre, de se subverter as
regras codificadas pelas relações de poder que prescrevem o funcionamento
social do sujeito. Tal como se dá no caso da parrésia, o dizer interpretativo
determina uma situação aberta, possibilitando o surgimento de efeitos
imprevisíveis, não codificados pelo discurso que nos determina. Assim como
não existe alvará que legitime uma interpretação, o parresiasta não pede
autorização para intervir. Seria, aliás, uma contradição performativa alguém
pedir a palavra dizendo “com o perdão da parrésia”. A parrésia dispensa o
protocolo da permissão, posto que ela determina uma relação verdadeira
entre o que o sujeito diz e o que ele diz, sem garantia de validação externa ao
que é dito.
Mas se a parrésia dispensa a validação do referente externo sobre o qual
se ancora a demonstração filosófica, resta saber de que modo se distingue a
necessidade do seu proferimento dos enunciados sem necessidade, que se
apresentam, por exemplo, no discurso sofista. Como pensar a verdade como
puro efeito do discurso, em sua estrutura ficcional e, ao mesmo tempo,
reconhecer a necessidade de sua imposição? Pois se, por um lado, a atitude
do parresiasta não é fruto de um mero voluntarismo, por outro, a verdade do
que ele enuncia somente existe como efeito de seu próprio discurso. Seria,
então, o caso de dizer que o discurso se impõe algo que ele mesmo cria?
Ao pensarmos, por exemplo, na parrésia lançada por Antígona sobre
Creonte, constatamos que se o dizer-a-verdade a ela se impõe, o ritual
fúnebre de Polinices que sua palavra convoca não existe como algo dado,
mas como necessidade resultante de sua própria exigência discursiva. Dessa
perspectiva deriva que o dizer-a-verdade da parrésia não busca uma verdade
externa ao discurso; é um dizer fundado sobre a suposição de que o próprio
discurso confere a uma verdade sua intensidade existencial. No nível da
parrésia interessa menos desvelar algo que já existe do que criar a existência
de algo por meio de um ato do dizer. Está em questão, como afirma Badiou,
uma polarização discursiva do mundo que confere ao objeto sua intensidade
existencial, fazendo com que elementos até então indistintos numa
determinada configuração possam manifestar um maior grau de existência
em outro, segundo os modos de organização transcendental da identidade e
da diferença regido por relações de poder. Se a função do discurso é, pois, a
de engendrar uma configuração do mundo que confere graus de existência a
seus elementos, o efeito produzido pela parrésia é justamente o de um gesto
que desestabiliza a distribuição das intensidades existenciais. Ao se alterar a
configuração discursiva do mundo, podemos fazer existir maximamente o
que antes não estava reduzido a nada e ao mesmo tempo reduzir a quase
nada o que antes tinha máxima existência. É o que fez Freud com a
psicologia de seu tempo. A consciência que antes tinha intensidade
existencial máxima, na fenomenologia de Husserl e Jaspers, apaga-se na
mesma medida em que Freud vem dar existência ao que não existia,
iluminando o campo das formações do inconsciente.
A parrésia assim se coloca, por se ligar ao ato de fundação de uma nova
relação do sujeito com a verdade, como uma figura da precipitação e do
instante. O problema é que ninguém suporta parresiar permanentemente.
Num primeiro tempo a parrésia aparece como uma figura de irrupção que
atesta a presença do intelectual na mudança sofrida pelo profissional do
saber, quando algo que ganha existência na transformação do discurso o
obriga a assumir o risco de uma posição contrária à autoridade que ordena
sua função. Mas há um segundo momento no qual o saber que abriga a
existência desse algo novo necessita se estabilizar, para permitir justamente
que esse algo que passou a existir tenha permanência. É a ocasião em que o
gesto do pensamento, que se manifesta na irrupção da parrésia, deve se
estabilizar na constituição de uma doutrina. Sua eficácia agora depende não
mais da paixão irruptiva da parrésia, mas do cálculo político relativo à
produção de um modo distinto de configuração que viabilize a presença do
novo saber no interior do contexto modificado pelo seu gesto.
Para esse fim, é indispensável que o texto modifique o contexto, que o
saber vá além da neutralidade da demonstração e intervenha sobre as
relações de força que impediam a emergência desse algo distinto ao qual o
novo discurso confere existência. É necessário, enfim, que o conjunto do
saber assim gestado possa adquirir a forma de obra, pois é somente através
da forma de obra que uma doutrina consegue modificar o contexto cultural
como jogo de forças no qual se prescreve a sua função.Pois a constituição da
obra, nos termos aqui desenvolvidos, é um fenômeno de exceção. A maior
parte do saber gerado num campo discursivo se inscreve no modo habitual
do que chamamos de escrito técnico ou de monografia, a qual diz respeito ao
saber demonstrativo neutro, quando aquele que o produz não interroga as
relações de força geradoras do contexto que determina sua atividade.
Há, contudo, o momento em que é preciso modificar o contexto para
permitir a existência do texto. No caso de Freud, diante da impossibilidade
de conformar sua investigação ao modelo científico de sua época, sem pôr a
perder a verdade que se impunha à sua pesquisa clínica, ele viu-se obrigado
a adotar o desvio pela forma da obra para estabelecer o que a publicação
científica não lhe permitia.
Flectere si nequeo superos acheronta movebo (Se não posso mover os
deuses de cima, moverei o Aqueronte). O famoso sonho da monografia
botânica é paradigmático desse desvio: ao saber que seu colega Koller
recebera a glória pela pesquisa sobre a cocaína que ele próprio já havia
iniciado, Freud pensa, desoladamente, na monografia que deixou de escrever
e na obra que demora a publicar: A interpretação dos sonhos. No dizer de
Jean-Claude Milner, o sonho da monografia botânica soletra a dolorosa
renúncia, por parte de Freud, à ciência normal e à monografia, em razão da
necessidade de recorrer à forma da obra para criar um campo propício ao
novo saber que se inaugura. Havendo partido rumo à conquista da ciência
biomédica (flectere superos) pela via da monografia, sua investigação o
obriga a se colocar fora da ciência normal e substituir a atividade científica
pela via subterrânea da cultura (Acheronta movebo). O resultado, que todos
conhecemos é que a forma da obra venceu a monografia, ainda que a um
altíssimo preço: a horda selvagem com a qual Freud teve que se haver, ele
que tanto sonhara dispor da honesta colaboração científica. Ser-lhe-ia ainda
necessário instituir uma IPA para fazer entender que a permanência do
campo, assim inaugurado, requer que não haja obras para além daquela de
origem. À exceção da obra de Freud, é preciso que só haja monografias.
A despeito, contudo, dessa diretiva original da IPA e do
reconhecimento político que o campo psicanalítico conseguiria alcançar,
uma outra exceção mais tarde se imporia: Lacan se faria obra, introduzindo
um novo enclave: o campo freudiano tornar-se-ia lacaniano.
Não haveria espaço para elucidar aqui o que gerou a necessidade desse
enclave lacaniano; isso demandaria expor uma pesquisa historiográfica que
não cabe no escopo desse artigo. Propomos ressaltar apenas que Lacan,
longe de ser o enfant rebelle que tantos imaginam, soube consentir com a
monografia no período em que seu contexto o permitia. Se ele aceitou
tardiamente o desvio pela obra, com a publicação dos Escritos, em 1966, foi
por considerar que o contexto absorvera a psicanálise, em sua necessidade de
ser acolhida pela sociedade americana, e já não mais deixava lugar para o
texto. A necessidade de um novo enclave se impunha. Uma vez mais será
preciso descer ao Aqueronte.
O que se tornou posteriormente o campo freudiano fundado por Lacan,
no entremeio, sempre variável, de suas determinações políticas e
epistêmicas, é uma história que ainda está por ser coerentemente escrita.
Esperamos que um dia isso se realize fora, quem sabe, das encenações
triviais que tanto marcam as relações entre saber e poder. Mas seja qual for a
trajetória particular desse campo, uma questão premente se coloca no
intervalo entre o texto e contexto. Essa questão diz respeito à possibilidade
de fazermos do nosso campo freudiano um espaço simultaneamente
politizado e autônomo, ou seja, um campo permeável às negociações
políticas, mas ao mesmo tempo ligado a um princípio inegociável de
orientação. Assim como Zola, no caso Dreyfus, exerceu um ato político
como escritor, e não como político, é sobre a base de nossa autonomia como
psicanalistas, e não de nossa capacidade de negociação política, que
devemos intervir no espaço público.

Perspectivismo e psicanálise
Christian Ingo Lenz Dunker

A psicopatologia lacaniana articulou sua teoria das estruturas clínicas como


uma deriva do método estrutural, proposto inicialmente por Lévi-Strauss na
antropologia, combinando-as com as considerações de Hegel sobre a
filosofia da história. As antes chamadas “doenças mentais” não são nem
doenças e nem mentais porque são estruturas análogas aos mitos individuais,
dotadas de dimensões existenciais: Real, Simbólico e Imaginário. Para
definir a neurose, a psicose ou a perversão como estruturas existenciais,
Lacan entendeu que estas eram formas de interpretar a única lei universal
não natural, ou seja, a proibição do incesto. Freud havia proposto, em Totem
e tabu (1914), que o desejo humano repetia, no complexo de Édipo, os
mesmos impasses que originaram a passagem do estado de natureza para o
de cultura: assassinato do pai no estado de horda primeira, incorporação
canibalista de seu corpo, eleição de um totem para representá-lo,
transposição da proibição de ataque ao totem como tabu, aplicação do tabu à
regra que proíbe o incesto em todas as culturas conhecidas.
Nos anos 1940 Kroeber e Malinowsky teceram críticas ao suposto
universalismo do complexo de Édipo, assinalando a existência de culturas
nas quais o incesto não é proibido, pelo menos em alguns aspectos, uma vez
que os conceitos de família nessas culturas são muito diferentes dos nossos.
Freud apoiara-se em dados e ilações propostos por Darwin e Smith que se
mostravam equivocados à luz da antropologia da época. Não é que a
hipótese freudiana estivesse equivocada em todos os seus aspectos, mas ela
simplesmente não é universal.
Na década de 1950, quando Lévi-Strauss reabilitou o totemismo
conferindo-lhe uma nova interpretação, ele percebeu que o importante na lei
do incesto não era o sistema de parentesco específico no qual ele era
praticado, mas a existência mesma de uma regra universal de parentesco,
que regrava os casamentos em geral, levando em conta como as pessoas
eram nomeadas dentro e fora de sua linhagem. Foi essa reformulação que
levou Lacan, nos anos 1960, a falar em função paterna e função materna,
tornando-as relativamente independentes do personagem real que as pratica.
Por exemplo, a função materna pode ser exercida por um homem, e a função
paterna pode ser exercida por um transgênero. Em uma direção semelhante,
Lacan interessou-se pelas variantes do mito de Édipo, mais precisamente a
versão levada a cabo por Sófocles em Antígona. Temos aqui outro conjunto
de impasses e de relações com a lei, que dessa vez tematizam mais
diretamente a lei da cidade contra a lei da família. Temos aqui um Édipo
protagonizado por uma mulher.
A psicanálise, ao longo de sua história, pensou criticamente oposições
que lhe eram constituintes: sonho e razão, loucura e normalidade, infância e
adultescência, primitivos e civilizados, pré-genitais e genitais. Mas, ao que
tudo indica, ainda remanesce a oposição neurose e psicose como ponto no
qual a “desmontagem do centro” não se processou inteiramente. Por
desmontagem do centro entendo a estratégia epistemológica, tão
característica da psicanálise que consiste em criticar a falsa centralidade do
homem, que não é nem o centro do cosmos, nem das espécies e nem centro
de si mesmo. Mas criticar a centralidade não é prescindir dela, e isso só pode
ser feito por uma mudança mesma do conceito de perspectiva.
As novas críticas, recebidas pela psicanálise a partir dos anos 1970,
detiveram-se em sua incorporação estruturalista. A objeção do falocentrismo
(Derrida), o androcentrismo (Teoria Feminista), o logocentrismo
(Nietzscheanos), o etnocentrismo (Teoria Pós-Colonial) e finalmente o
edipianismo (Deleuze e Guattari), convergem para esta espécie de primazia
conferida à estrutura neurótica. Tudo funciona como se o Édipo explicasse a
neurose, e a neurose, a psicose. Como modelo e meta da condição de sujeito,
a neurose adquire frequentemente valor de paradigma normalopático para
processos de simbolização, de articulação de desejo e de laço social com o
outro.
Para incorporar e responder essas críticas e renovar a psicopatologia
psicanalítica seria preciso reler Totem e tabu. Ao enfatizar a distinção básica
entre cultura e natureza, do qual o tabu do incesto fornece a gramática, a
psicanálise abandonou o campo da natureza. Esse abandono cria uma falsa
oposição com a psiquiatria biológica, como se houvesse de um lado uma
psicopatologia da mente e outra do cérebro. A psicanálise jamais advogou
esta partilha, mas se viu obrigada a engoli-la como contrapeso da adoção do
método estrutural. A leitura convencional do totemismo traz consigo a tese
de que existe apenas uma natureza. Ela é fixa para todas as culturas, que são
assim pensadas como variações de interpretação do mesmo substrato natural,
contendo atribuições arbitrárias de sistemas de valor, de língua, de religião
etc.
O ponto problemático em aderir a um relativismo-mononaturalista, é
nos vermos obrigados a defender uma psicopatologia multiculturalista, que
não é, em absoluto, uma posição necessária ou decorrente das teses
lacanianas. Não há nenhum motivo para que a psicanálise defenda a unidade
do campo natural, ao modo da res-extensa cartesiana. Ela não precisa aderir
à tese de que há um ponto de vista, um “metaponto de vista”, que argumenta
que a ontologia é fixa e a epistemologia é variável. Quando Lacan postula
que o Real é isso que é negado para que a realidade se apresente como uma,
plausível e idêntica a si mesma, ele recusa a fixação da ontologia. Quando
ele pleiteia que a relação entre os seres humanos envolve uma espécie de não
relação entre o gozo masculino e o gozo feminino, ele está assumindo um
tipo de perspectivismo onde a única constante são as perspectivas (homens,
mulheres), e o gozo ou o Real a elas associados são depreendidos dessas
perspectivas que, somadas, não formam nem uma unidade, nem uma
identidade, mas uma “não relação”.
Até recentemente essas teses de Lacan careciam de uma sustentação
antropológica, correndo grave risco de se apresentarem apenas como uma
conjectura metafísica, ainda que útil para os clínicos. Isso começou a mudar
nos anos 1990 quando o antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro,
discípulo e continuador de Lévi-Strauss, estabeleceu uma crítica interna do
totemismo, que ele veio a chamar de perspectivismo ameríndio. Trabalhando
com populações do alto Xingu, ele notou a presença de um sistema de
pensamento para o qual o totemismo, e seus subsistemas de sacrifício e
aliança, viam-se suspensos. Em regra, são povos para os quais a diferença
entre “nós” e “eles” dá-se de forma não substancial e definitiva. No encontro
com o Outro não emerge a reação narcísico egoica de afirmação de si, mas
um jogo de determinação mútua da determinação de si pelas perspectivas
criadas no encontro. Isso implicaria a primazia de um sistema não
identitarista de relação com o Outro. Por isso seu canibalismo difere do que
foi pressuposto por Freud (e posteriormente empregado pelos modernistas
brasileiros), pois não se trata de acumular predicados ou traços do outro que
foi devorado, mas de dissolver e indeterminar a natureza do próprio eu. Se
são as perspectivas que prescrevem os mundos, todos eles existentes, surge
como decorrência do perspectivismo a diversidade de naturezas, ou seja, o
multinaturalismo: ‘Perspectivismo’ foi um rótulo que tomei emprestado ao
vocabulário filosófico moderno para qualificar um aspecto muito
característico de várias, senão todas, as cosmologias ameríndias. Trata-se da
noção de que, em primeiro lugar, o mundo é povoado de muitas espécies de
seres (além dos humanos propriamente ditos) dotados de consciência e de
cultura e, em segundo lugar, de que cada uma dessas espécies vê a si mesma
e às demais espécies de modo bastante singular: cada uma se vê como
humana, vendo todas as demais como não-humanas, isto é, como espécies de
animais ou de espíritos” (Viveiro de Castro, A inconstância da alma
selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2001).
O perspectivismo dos Arawetés afirma que o fundo comum entre seres
humanos e animais é a humanidade, e não a animalidade. No universo
totêmico funções dêiticas tal como “ontem” ou “amanhã” são tão
logicamente válidas quanto relações de parentesco como “filho de”,
“sobrinho de” etc. e tão naturais como um pedaço de peixe ou uma canoa.
Esse contexto trivial define a “normalidade administrada” como aptidão
reflexiva: os seres humanos veem os humanos como humanos e os animais
como animais. “Animais” é a função lógica do argumento na qual podemos
substituir toda forma de vida que não partilhe esta lei totêmica.
Historicamente, são os excluídos: loucos, bárbaros, estrangeiros, marginais,
doentes, selvagens, crianças e assim por diante. É neste ponto que o
animismo levanta uma resposta alternativa. Não existem apenas humanos e
animais, há também formas de vida que, como “espíritos”, “pedaços de
corpos”, “zumbis” e “homens feitos às pressas”, podem ser, por exemplo,
“não-todo-humanos” ou “não-mais-animais”. Onde o totemismo reconhece
uma oposição do tipo homem/animal, o animismo percebe um número
indeterminado de formas de vida, todas elas “humanas”, vestidas com as
mais diversas “roupas” não humanas. O perspectivismo ameríndio é um
perspectivismo somático, no qual o corpo é entendido como roupa,
envoltório ou semblante que deve ser continuamente produzido ou fabricado.
A roupa é concebida como produção de um corpo, está mais para um
equipamento de mergulho que instrumentaliza ações, do que para a máscara
de carnaval, que esconde uma identidade essencial. Encontrar-se com tais
formas de vida “desnudas” é um signo seguro de que as condições não são
normais, ou seja, de que a perspectiva não é normal, mas nunca de que o
Outro não é normal.
Podemos pensar, de modo homólogo, que a oposição entre psicose e
neurose, a mais forte oposição estrutural da psicopatologia psicanalítica, é
uma oposição semelhante à que estamos detalhando entre totemismo e
animismo. De fato, do ponto de vista do totemismo, que privilegia a
metáfora como princípio de ordem e classe, o animismo representa um
déficit e pode ser percebido como uma ausência de certas determinações.
Mas do ponto de vista dos povos animistas, que privilegiam a metonímia,
mas em uma relação subversiva entre ordem e classe, são os povos
totemistas que sofrem com excesso de experiências de determinação e que
não conseguem perceber a existência e a importância produtiva das
experiências de indeterminação. Enquanto os totemistas lidam com a
diferença, representada pelo patológico, criando uma multiplicidade de
culturas, os animistas-perspectivistas admitem que só há uma cultura, e são
as natureza individuais que variam.
Portanto, a ultrapassagem do neurótico-centrismo não se faz,
necessariamente, pela admissão do caráter universal da psicose humana,
como pretende a chamada teoria da foraclusão generalizada, mas pode
ocorrer pelas vias da recuperação da categoria de loucura, como patologia do
reconhecimento e do sofrimento social. Também a inversão do
androcentrismo não precisa corresponder à sua substituição pelo simples
oposto, o feminismo generalizado, derivado da noção de gozo feminino. Não
se trata de uma multiplicação de Nomes-do-Pai, mas de uma oscilação entre
a função de nomeação e a produção de identidades. O que nos parece
essencial admitir é a existência de experiências produtivas de
indeterminação, equivalente conceitual da não proporcionalidade entre
gêneros, modalidades de gozo e estruturas clínicas.

A virada descolonial da psicose: Frantz Fanon,


inventor da esquizoanálise
Guillaume Sibertin-Blanc

A obra do psiquiatra e militante Frantz Fanon é reconhecida hoje,


merecidamente, como uma contribuição pioneira à análise do papel
fundamental desempenhado pela dominação colonial na formação do
discurso psicopatalógico europeu. Ela é, ao mesmo tempo, uma reflexão
contínua sobre a parte tomada pelo “saber-poder” psiquiátrico, por meio de
seu misto de positivismo neurobiológico, de “criminologia científica” e da
antropologia naturalizante do “primitivismo”, na racialização do “indígena”;
e de modo mais extenso, sua obra reflete sobre a constituição do racismo
institucional, que garante mutuamente as certezas da Ciência e os interesses
do Estado, coextensivo à era imperialista. Seria possível seguir o caminho de
sua reflexão a partir dos capítulos de Pele negra, máscaras brancas (1952)
sobre o “suposto complexo de dependência do colonizado” e a
psicopatologia do “Negro”, indo até as análises de O quinto ano da
Revolução argelina (1959) sobre a sobredeterminação da relação terapêutica
com a situação colonial, e chegando à desmontagem do estereótipo da
“impulsividade criminal do norte-africano” que conclui as “notas
psiquiátricas” coletadas no último capítulo de Condenados da terra (1961).
Esse último momento de seu trabalho, por investigar a relação entre
psicanálise e política, desperta um interesse específico, que se torna claro de
antemão pela singularidade de seu lugar de enunciação. No duplo epicentro
clínico (o hospital de Blida-Joinville e a Escola de Alger) e político (a
Argélia em guerra) da psiquiatria colonial francesa, não estava mais na hora
de uma “psicanálise interpretativa”, de uma “aplicação” de conceitos
psicanalíticos para interpretar uma situação política. Era a hora de uma
urgência prática, na qual a conjuntura política confronta a clínica com o real
do sintoma como tal. Mas esse real não tem a estrutura de um impossível,
mas de dois: em forma de double bind. É, por um lado, a impossibilidade de
qualquer enunciação clínica que seja na situação colonial, a impossibilidade
de um ponto de vista clínico, do acolhimento da experiência singular que um
sujeito tem de sua doença. A não ser que se perseverasse na “aposta
absurda”, escreve Fanon em sua carta de pedido de demissão dos encargos
de médico-chefe do hospital de Blida-Joinville já em dezembro de 1956, de
querer desalienar indivíduos em um país onde o autóctone é um “alienado
permanente em seu país [e] vive em um estado de despersonalização”, de
querer tornar o indivíduo menos estrangeiro a seu mundo em um mundo que
organiza “uma desumanização sistemática”. Por outro lado, é a tentação,
face a esse campo clínico barrado, de promover sua foraclusão projetando-o
no campo político imediato, onde a preocupação clínica seria pura e
simplesmente suplantada pela luta de liberação. É, além disso, esse fantasma
de uma liquidação política dos sintomas que se quis por vezes ler nos
aportes famosos do primeiro capítulo de Condenados da terra (talvez os
mais imprudentes, em todo caso os mais “dialeticamente” idealisantes) sobre
a transformação de economias psíquicas da violência na passagem a uma
luta ofensiva contra o sistema colonial, tendendo a fazer desaparecer as
formas mais virulentas de autoagressão, de prostração melancólica e de
condutas suicidas.
Mas algo devia vir cortar essa continuidade radicalmente suturada
entre a situação colonial (onde a clínica tende a ser impossível) e a situação
de guerra de descolonização (onde o projeto de uma clínica desalienante
seria, no limite, realizado pelo próprio movimento de liberação nacional): os
“distúrbios mentais nascidos da guerra de liberação nacional que dirige o
povo argelino”, um trabalho do sintoma diretamente articulado à luta
política. É esse jogo politicamente sobredeterminado do sintoma que faz
necessário, então, especificar as incidências da guerra na colônia sobre as
formações sintomáticas com as quais se confronta a clínica, mas que impõe
também medir as implicações da guerra de liberação em uma hermenêutica
clínica que, encontrando-se mobilisada pela luta, vê-se inelutavelmente
politizada em todas as dimensões de seus “saberes” (sintomatológicos,
nosográficos, etiológicos) bem como em suas práticas (psiquiátricas e
transferenciais, institucionais e subjetivas).
Farei uma breve observação voltando ao modo pelo qual Fanon
investiga a especificidade das formas traumáticas do sintoma na Argélia, em
relação àquelas com que se preocupou a clínica europeia na saída de duas
guerras mundiais. Seu ponto de partida toca o sentido que toma na colônia a
categoria de “psicose reacional”, quando se constata que o “evento
disparador” do processo patológico – se pudermos, em alguns casos, assim
identificá-lo –, confunde-se frequentemente com a extrema violência
“atmosférica” que já organizava o regime colonial. As figuras extremas de
esfacelamento e de despersonalização psicóticas, a virulência das formas
melancólicas de culpabilização e de autoagressão, as produções sintomáticas
mortíferas invadindo o real do corpo, o deslocamento do material
sociocultural das elaborações simbólicas, catalisam em uma sintomatologia
traumática um traumatismo que já tecia o pano de fundo da clínica na
colônia, nessa situação de “colonização bem-sucedida” que não era nada
mais que uma situação de guerra materializada, incorporada nas formas da
objetividade social, econômica, jurídica e militar do Estado colonial. Disso
se tira uma primeira consequência dessa análise: a impossibilidade de
assinalar uma clínica diferencial entre a situação de “colonização bem-
sucedida” e a situação de guerra colonial. Exceto se for identificada com
uma clínica diferencial imediatamente política, a saber: esse índice de
resistência à violência e à opressão coloniais no qual Fanon vê com tanta
frequência a marca no coração das sintomatologias dos colonizados, e que é
igualmente um modo de fazer dizer à patologia que a colonização nunca é
completamente “bem-sucedida”.
É preciso, ainda, destacar as implicações para a linguagem da
enunciação clínica. O trabalho realizado por Fanon sobre o conceito
metapsicológico de “mecanismo de defesa” é, nesse ponto, emblemático.
Retomando uma acepção econômica das defesas do eu, para qualificar a
fonte etiológica maior na base de quadros altamente psicotisantes com os
quais se confronta a psiquiatria na colônia, ele ressemantiza a noção em um
registro agonístico e militar. Ou ainda, ele provê uma literalidade política a
noções que a psicopatologia havia metaforizado para integrá-las a sua
conceitualidade (como por exemplo a metáfora da guarnição militar em uma
cidade conquistada por meio da qual Freud dava imagem ao trabalho
“civilizacional” realizado pela instância do Super-Eu). É esse jogo de
condensação clínico-política do conceito de defesa que orienta então o
destaque diferencial das patologias produzidas pela opressão e dos
mecanismos patogênicos da resistência à opressão: “No período de
colonização não contestada pela luta armada, quando a soma de excitações
nocivas ultrapassa um certo umbral, as posições defensivas dos colonizados
desmoronam, e eles se encontram então em soma considerável nos hospitais
psiquiátricos. Há então nesse período calmo de colonização bem-sucedida
uma regular e importante patologia mental produzida diretamente pela
opressão”. Dito de outro modo, essa patologia não é produzida pela
exacerbação dos mecanismos de defesa que poderia assimilá-la ao que a
nosologia europeia identificou como neurose de defesa ou psico-neurose
narcísica. Ela é testemunha, ao contrário, da impossibilidade dessa saída
psicótica, ou da impossibilidade de toda reconstrução narcísica suscetível de
ser um patamar para o desmoronamento das estruturas “egoicas”. Estaríamos
tentados, assim, a qualificar a situação clínica “normal”, naquele momento
sem a sombra da “calma colônia”, como uma situação de traumatismo
permanente, quando as defesas falham até o ponto de tornar impossível uma
entrada na psicose, onde se indicaria, no mínimo, o investimento narcísico
com o qual um sujeito seria ainda capaz de “fazer com” seu sintoma. Que
Fanon lembre que “a colonização, em sua essência, se apresentava já como
uma grande fornecedora de hospitais psiquiátricos”, não quer dizer que ela
cedia lugar para a loucura. Lembramos como, ao se demitir de suas funções
no hospital de Blida, ele respondeu a esse esmagamento de toda acolhida da
loucura como essa última possibilidade da liberdade humana. Mas a
recíproca é tal que a subjetivação da resistência à opressão terá
inevitavelmente a atitude de uma reconstrução de mecanismos de defesa, ou
seja, a reabertura de uma produtividade do sintoma psicótico, fazendo
entender que um vetor de psicotização redobra inevitavelmente, e até suporta
necessariamente a posição de uma consciência anticolonial. Tudo se passa
como se os mecanismos de defesa, no processo patológico que os exacerba,
testemunhassem simultaneamente da reconstrução de uma capacidade
política, ou como uma potencialidade “metapolítica” de adversidade, nas
estruturas do sujeito em sofrimento.
Que a luta de liberação nacional suscite, e talvez passe necessariamente
por modalidades de psicotização da subjetividade, certamente não leva a
minimizar as feridas psíquicas onde elas têm fundo, e a fantasiar uma
supressão do incômodo clínico de se encarregar da luta política pela
liberação. É, ao contrário, nomear um desses momentos no qual a operação
do sintoma em que se sustenta um sujeito, as modalidades de deslocamento
de seu gozo a seu sintoma, e a ação de resistência a uma ordem opressiva, no
limite impossível de ser vivida, que entram em relações de
indiscernibilidade, ou de indecidibilidade, lá onde tanto a clínica quanto a
política contestam que sejam discerníveis. Ao cabo, o termo “resistência” se
presta bem a essa dupla compreensão, borrando a partilha da passividade e
da atividade, do sofrido e do agido, do pático e da agency. Podemos ver aí,
como indiquei em outro lugar, o problema nodal em torno do qual caminham
os autores de O anti-Édipo dez anos mais tarde, e a razão pela qual
retomarão as análises de Fanon, as sintomatologias dos colonizados que
exibem, talvez melhor que toda outra, a dificuldade em determinar onde
começa a resistência, mas também a necessidade de sobre ela se decidir. Pois
trata-se, aqui, não de idealizar os tormentos do corpo e do espírito em
resistência política (a que Fanon psiquiatra se recusava explicitamente), mas
sim de colocar o paradoxo de umbrais ou de modalidades de resistência do
sujeito, “no” sujeito ou “diante/ em torno” dele, que não lhe são contudo
simplesmente inacessíveis: umbrais onde a clínica diferencial de uma
politização da subjetividade e de um impolitizável do sintoma é
absolutamente decisiva, mas irredutivelmente incerta, e ambas ao mesmo
tempo.
Tradução Mario Sagayama

entrevista
Dostoiévski: fascismo e redenção
Flávio Ricardo Vassoler

Cento e trinta e quatro anos após a morte do escritor russo Fiódor


Mikháilovitch Dostoiévski (1821-1881), sua obra polifônica continua a gerar
teses e antíteses em contínuo entrechoque ao redor do mundo. No contexto
de recepção dialeticamente explosiva da obra do autor de Crime e castigo, a
professora e pesquisadora norte-americana Susan McReynolds desponta com
análises originais – e sumamente polêmicas. Docente do Departamento de
Línguas e Literaturas Eslavas da Universidade Northwestern, em Evanston,
cidade ao norte de Chicago; presidente da Sociedade Norte-Americana de
Dostoiévski; secretária executiva da Sociedade Internacional de Dostoiévski
(IDS, em inglês); e membro do conselho editorial da revista Dostoevsky
Studies, periódico anual da IDS que reúne as publicações dos mais
renomados estudiosos da obra de Dostoiévski, Susan McReynolds considera
o escritor russo um autor central para a constituição da intelligentsia fascista
europeia, tendo em vista o intrincado entrelaçamento de cristianismo e
antissemitismo, revolução e reação, nacionalismo messiânico e socialismo a
lançar raízes pelo subsolo dostoievskiano. Na entrevista a seguir,
McReynolds fala de Dostoiévski como um dos mentores do fascismo e um
revolucionário da contrarrevolução, estabelecendo uma discussão crítica
com as correntes que entreveem a (suposta) filosofia da religião ortodoxa
russa como o cerne da obra do escritor.
Leonid Grossman e Boris Schnaiderman afirmam que literatura e
filosofia estão entrelaçadas de tal maneira ao longo das obras de
Dostoiévski que ele poderia ser considerado um “escritor-filósofo por
excelência”. Em sua opinião, quais seriam as correntes intelectuais e
ideológicas que mais influenciaram o autor?
Em primeiro lugar, vale frisar que nós, estudiosos de Dostoiévski,
concordamos com a noção de que o escritor alcançou a maturidade em um
contexto saturado pelas ideias de Kant, Schelling e Hegel, e,
independentemente dos textos que ele leu, as ideias de tais autores permeiam
tanto sua arte quanto seu pensamento. A filosofia alemã chegava a
Dostoiévski frequentemente por meio de suas relações com intelectuais
russos como Vissarion Bielínski, o crítico literário que aclamou
entusiasticamente a primeira obra do escritor, Pobre gente (1846), e que não
só leu como disseminou muitos dos textos originais dos pensadores alemães.
Ademais, também é preciso mencionar o socialismo utópico francês de
Proudhon e Charles Fourier, o socialismo científico de Marx e Engels, o
utilitarismo de John Stuart Mill, a literatura de Honoré de Balzac, da
francesa George Sand e de Charles Dickens como influências decisivas. No
livro Pensadores russos, Isaiah Berlin discorre sobre tal aspecto de modo
sucinto, ao dizer que a Rússia da era posterior a Pedro, o Grande, tornou-se
profundamente dependente em termos intelectuais da Europa Ocidental – e,
antes de Pedro, não havia nada de realmente interessante.
Mas, ora, a história nos reserva surpresas. Assim, os pupilos subjugaram os
mestres, e russos como Dostoiévski não apenas ressignificaram a herança
ocidental como também a retransmitiram, sob formas radicalizadas, de volta
para a Europa. No livro How Russia Shaped the Modern World: From Art to
Anti-Semitism, Ballet to Bolshevism (Como a Rússia configurou o mundo
moderno: Da arte ao antissemitismo, do ballet ao bolchevismo), Steven
Marks, professor da Universidade de Clemson, na Carolina do Sul, nos
fornece uma exposição muito acessível e envolvente sobre esse processo
histórico de retransmissão; eu sempre recomendo os capítulos sobre Tolstói,
Dostoiévski e [o revolucionário anarquista Piotr] Kropotkin para meus
alunos. Em enorme medida, o papel da Rússia como potência mundial
desapareceu da consciência norte-americana – eis uma situação com
consequências potencialmente perigosas.
O novo livro que você está escrevendo pretende estabelecer Dostoiévski
como um autor fundamental para a tradição fascista na Europa. Como
é que o (suposto) revolucionário esquerdista poderia ser um dos pais
fundadores das ideias fascistas? Estaríamos diante de um quadro em
que a coexistência de tendências antitéticas em meio às ideias e obras de
Dostoiévski teria alcançado um limite em que poderíamos falar do autor
como um “revolucionário conservador” ou como um “revolucionário da
contrarrevolução”?
Para responder a essa questão, nós primeiramente precisaríamos discutir a
história das relações e das atitudes do cristianismo com relação ao judaísmo.
Trata-se de uma questão extremamente relevante e contemporânea, mas,
dada a sua vastidão, eu apenas posso iluminá-la aqui de maneira oblíqua e
parcial. A importância de tal relação para o entendimento do fascismo e do
antissemitismo é uma preocupação fundamental do novo livro que eu estou
escrevendo. Basta dizer que a economia cristã da salvação – a redenção por
meio da crucificação – tem sido alinhada com (ou ao menos tem sido
ambivalente sobre) o “antissemitismo” desde as suas origens;
historicamente, não tem havido muito conflito entre a salvação cristã e o
antissemitismo. Eu me refiro ao “antissemitismo” entre aspas, porque se
trata de um termo muito recente, o qual foi inventado em 1879 pelo agitador
e jornalista alemão Wilhelm Marr (1819-1904), e que nem sempre é
completamente preciso para descrever alguns aspectos do ódio cristão aos
judeus em meio à era moderna.
Sua questão também requer que consideremos as relações complexas
entre o fascismo e as designações “esquerda” e “direita”. Trata-se de uma
questão desafiadora tanto por causa da variedade de disfarces que o fascismo
assume em diferentes épocas e lugares quanto por causa da natureza variável
daquilo que constitui a “esquerda” e a “direita” em termos políticos. Os
estudantes universitários nos Estados Unidos, por exemplo, desconhecem,
em enorme medida, a genealogia dos termos “liberal” e “conservador”. Nos
EUA de hoje, o termo “liberal” se refere a valores e a agendas relacionadas
de maneira bem distante com as concepções de John Locke a respeito do
direito natural e da limitação da estrutura governamental, e muitos norte-
americanos “conservadores” contemporâneos fariam o filósofo inglês
Edmund Burke tremer e se eriçar em face de suas demandas pela
transformação radical do status quo. Conforme você enfatizou, Dostoiévski
incorpora a coexistência do que nós hoje poderíamos chamar de elementos
de “esquerda” e de “direita”. Talvez, de forma ainda mais essencial, o
escritor exemplifique o entrelaçamento do fascismo com as heranças liberal,
militante e cristã: em Dostoiévski, simpatias democráticas vêm à tona como
invocações para a soberania popular e a liderança do “povo”; ele entoa odes
ao sangue e à batalha como agentes de “limpeza” e renovação para uma
civilização em decadência; e o autor apresenta tudo isso como uma visão
cristã apocalíptica.
Na Rússia contemporânea sob o comando do presidente Vladimir Putin,
nacionalismo, fé ortodoxa e intervenção militar – temas profundamente
entrelaçados tanto nas obras literárias de Dostoiévski quanto nos textos
jornalísticos que ele publicou no Diário de um escritor – parecem
constituir a base ideológica para reposicionar o país como uma potência
global em meio à Realpolitik. Em diálogo como renascimento ideológico
da Mãe Rússia, o que você diria sobre a recepção russa da obra de
Dostoiévski nos últimos anos? Seria possível afirmar que algumas
leituras contemporâneas reforçam as tendências fascistas presentes na
obra do escritor?
Mutatis mutandis, a Rússia parece estar em meio a um processo que os
nazistas chamariam de Gleichschaltung (algo como “padronização” ou
“sincronização”): todos os aspectos da sociedade e da cultura devem reforçar
uma certa visão sobre a nação, sua história e seu povo. Mencionemos, nesse
sentido, a invocação de Putin há poucos anos para que se eliminasse a
pluralidade alegadamente nociva dos livros de história para as crianças em
favor de um livro base sancionado pelo Estado. E as obras de Dostoiévski
não estão imunes a esse processo. Na Rússia pós-soviética, Dostoiévski
desponta como uma espécie de santo secular, a encarnação da Ortodoxia e
do nacionalismo. Eu tenho aqui comigo um livro publicado na Rússia nos
anos 2000 e que se intitula Dostoiévski e a Ortodoxia, o qual inclui
contribuições de clérigos e críticos literários seculares – tal distinção vem se
tornando cada vez mais nebulosa quando falamos sobre Dostoiévski – e
referências ao escritor como um “profeta” e como o “escolhido de Deus”.
Ironicamente, a cultura intelectual que produziu o formalismo russo está
agora perdendo a visão sobre a especificidade da arte e da linguagem
literária. Um dos tipos mais comuns de estudos sobre Dostoiévski hoje reduz
as obras a explicações ou a glosas de passagens bíblicas; Crime e castigo,
por exemplo, torna-se a reverberação da ressurreição de Lázaro; o texto
literário se vê subordinado ao domínio do texto bíblico. A diversidade de
opiniões e qualquer semelhança com algo como a autonomia entre as
diferentes esferas estão desaparecendo.
Como se dá a recepção contemporânea das obras do escritor nos
Estados Unidos? Considerando-se que nacionalismo, religiosidade e
intervenção militar também desempenham um importante papel na
identidade norte-americana, o que você poderia nos dizer sobre os usos
(e abusos) de Dostoiévski em termos ideológicos nos Estados Unidos?
A esse respeito, nós poderíamos formular uma questão que me parece
importante: por que os intelectuais ocidentais vão para a Rússia, ou para
outras culturas consideradas “exóticas”? Com a expressão “ir para a Rússia”,
eu não me refiro, necessariamente, a viagens físicas ou geográficas, embora
elas também ocorram, mas ao turismo intelectual e ao consumo. Desde o fim
do século 19, intelectuais ocidentais vão à cultura russa em busca daquilo
que poderíamos chamar de “contrabando”: buscam-se formas de fé “pura”
que são incompatíveis com a identidade intelectual ocidental.
Os intelectuais norte-americanos que repudiam as expressões de fé
religiosa dos cristãos evangélicos e que reservam infâmias especiais para as
tentativas dos outros norte-americanos de injetar perspectivas religiosas em
nossa cultura política parecem considerar atraente e até mesmo tocante o
casamento de religião, política e nacionalismo, quando tal “idílio” acontece
nas páginas de Dostoiévski ou na Rússia. Aquilo que nós, norte-americanos,
condenaríamos em nossa própria cultura política soa como algo
inocentemente charmoso no espaço especial da Rússia. Se eu fosse uma
russa que se preocupasse com a liberdade de expressão, a separação entre
Igreja e Estado e a integridade dos indivíduos por meio da garantia de seus
direitos básicos, eu estaria me sentindo abandonada precisamente por todos
aqueles que, no Ocidente, têm algum conhecimento sobre a Rússia e
deveriam pensar de forma muito mais crítica.
Se você tivesse que pensar contra sua própria visão sobre Dostoiévski
como um membro da intelligentsia fascista europeia – como um
“revolucionário conservador” ou como um “revolucionário da
contrarrevolução” –, que aspectos das obras de Dostoiévski você
consideraria que ainda têm elementos de redenção social e espiritual
que poderiam dialogar com a sociedade contemporânea?
Dostoiévski era muito melhor como crítico do que como porta-voz. Ele era
muito bom em identificar o que estava errado com o mundo de então, mas
me parece terrível ao sugerir alternativas – eis um ponto que me faz divergir
de muitos dos meus colegas tanto na Rússia quanto no Ocidente. Eu admiro
Dostoiévski por sua transgressão contra as relações de poder abusivas, por
sua habilidade em discernir tais relações de poder com criticidade tanto no
macrocosmo sociopolítico quanto no microcosmo da família e das relações
eróticas; eu o admiro por sua recusa em aceitar a injustiça econômica como
algo inevitável, por sua insistência em que tentemos corrigir os erros de
todos os tipos e por sua percepção de que os erros da política, da sociedade e
da vida pessoal estão entrelaçados. Dostoiévski às vezes desarmava os
críticos ao definir seus oponentes e ao reivindicar para si próprio as boas
qualidades que o escritor lhes atribuía. No caso do liberalismo, o autor dizia
que ele, Dostoiévski, era um liberal melhor do que aqueles que, na Rússia,
reivindicavam para si tal ideologia, uma vez que o liberalismo, segundo
Dostoiévski, era uma recusa contínua em se sentir satisfeito. “Eu sou o
verdadeiro liberal”, Dostoiévski asseverava, “porque eu não quero me
conformar”. Diante de um cenário contemporâneo em que ainda há muito
por ser feito, a energia e os instintos por justiça em Dostoiévski são
inspiradores. Ainda assim, suas escolhas desastrosas sobre como concretizar
a justiça deveriam ser uma constante admoestação.

poesia
Emily Dickinson: imagem, ritmo, pensamento
Adalberto Müller

Emily Dickinson está entre os poetas mais traduzidos da língua inglesa,


depois de Shakespeare. Na França, por exemplo, é possível encontrar à
venda, nas grandes livrarias, pelo menos três coletâneas assinadas por
diferentes tradutores, além da poesia completa traduzida. Na Espanha, além
das coletâneas, há três edições diferentes de sua poesia completa em
circulação. Em língua portuguesa, ainda não temos nenhuma edição da
poesia completa (como a que estamos fazendo), mas uma quantidade enorme
e variada de traduções, publicadas separadamente ou em livro. Entre os
ilustres tradutores da poesia de Emily Dickinson encontram-se Manuel
Bandeira, Mário Faustino, e, recentemente, Augusto de Campos, que lhe
dedicou um livreto. Em Portugal, foi traduzida por ninguém menos que
Jorge de Sena e por Ana Luísa Amaral, que, em 2014, publicou uma
excelente antologia de duzentos poemas.
A que se deve esse interesse tão variado e insistente em traduzir e
retraduzir Emily Dickinson? Em outros termos, o que faz de Emily
Dickinson uma autora sempre atual? Poder-se ia elencar várias explicações a
essa pergunta, que vão da beleza sintética à riqueza temática (natureza, amor,
metafísica etc.), passando por questões ligadas à modernidade e à escrita
feminina (e, mais recentemente, homoafetiva). Não se deve descartar
também que sua vida singular e enigmática a torna interessantíssima: viveu
sempre na pequena cidade de Amherst (Massachusetts), não se casou, e
jamais quis publicar os 1800 poemas que escreveu, e que gostava de mostrar
a amigos e parentes apenas. Era o antimodelo do que se chama “vida
literária”, e se interessava mais por seu jardim, e pelos pães que fazia, do que
pela poesia. Várias biografias tentam dar conta de coisas que ela fez ou não
fez, das relações amorosas que teve ou não teve (inclusive com a cunhada
Susan). Muitas coisas jamais serão decifradas. Ainda assim, sua poesia
continua sendo ardorosamente discutida e, principalmente lida.
Minha hipótese para tanto e renovado interesse é que os poemas de
Emily Dickinson sintetizam os três elementos fundamentais da poesia, que
tomo emprestados a Ezra Pound: imagem, ritmo e pensamento (fanopeia,
melopeia, logopeia). A imagem apresenta-se, na poesia, de forma direta (um
pássaro cantando, uma abelha se aproximando de uma flor) ou de forma
indireta (linguagem figurativa); ela dá densidade e vida ao poema,
circunscreve uma paisagem, define uma campo de visão, de espaço. A
imagem “solda” o abstrato ao concreto. Se a imagem é espaço, o ritmo é
tempo: insere as imagens num fluxo vivo, num andamento musical, sonoro.
Juntamente com a imagem, o ritmo sustenta a materialidade do poema e de
sua leitura, confere ao poema uma tonalidade afetiva, uma ambiência. Entre
a imagem e o ritmo sustenta-se o bloco de sensações, de afectos e perceptos,
se seguirmos Deleuze.
Os versos e estrofes de Emily Dickinson se sustentam sobre o common
meter, no qual se alternam versos jâmbicos de oito e seis sílabas (algumas
vezes de sete e seis). O uso extensivo do common meter diferencia Emily
Dickinson de quase todos os seus contemporâneos (como Walt Whitman e
Elizabeth Barret Browning), e aproxima muitas vezes sua poesia dos hinos
religiosos e das canções populares (daí minha preferência pelas redondilhas,
na tradução). Por outro lado, Dickinson alterna versos brancos com rimas,
que, na maioria dos poemas (em cerca de 90% deles), ocorre no
antepenúltimo e último versos. Seu jogo com as rimas é também complexo,
inclusive lançando mão de sonoridades típicas do inglês falado na Nova
Inglaterra (o que, também, a quase maioria dos tradutores ignora ou prefere
esquecer).
Por fim, o pensamento. É preciso lembrar que Emily Dickinson foi uma
aluna dedicada (estudou até o segundo ano do college), leu com afinco obras
de filosofia, de ciências (particularmente de botânica), de história e
geografia. Seu nexo filosófico mais claro é com o que se chama de American
Transcendentalism: enraizados no idealismo alemão (Kant, Schleiermacher),
e no Romantismo, mas também em tendências místicas, Emerson,
Longfellow e Thoreau criaram um pensamento genuíno, capaz de conciliar a
estética e a mística a uma forma de “ecologia” avant la lettre. Emerson e
Thoreau estavam entre as leituras preferidas de Emily, e não é à toa que, em
sua poesia, o pensamento gira em torno de uma reflexão sobre a natureza,
sobre a eternidade, e sobre o próprio pensamento.
Enfim, em Emily Dickinson, imagem, ritmo e pensamento se
conciliam, e se encontram com outra característica essencial da poesia, que
Ezra Pound considerava a mais importante: a capacidade de síntese. De fato,
os poemas de Emily Dickinson são, em sua maioria, muito breves, alguns
chegando a dois versos apenas. Mas sua síntese é tão perfeita, que os poemas
se parecem com pequenas esferas prismáticas, que pedem horas de reflexão.
Na história da poesia, alguns poetas chegaram à perfeição, no domínio
dessas três características: Shakespeare e Camões são insuperáveis no
domínio do ritmo; Gôngora e Rimbaud sabiam tecer imagerias complexas
em seus poemas, e sustentá-los apenas sobre uma imagens; Hölderlin, Rilke
e Pessoa criaram uma poesia que é, ao mesmo tempo, uma filosofia, tal a
força do encadeamento das ideias. Mas em Emily Dickinson, a síntese da
imagem, do ritmo e do pensamento chega à apoteose.
As traduções que apresentamos aqui, tentam fazer jus a essa que é a
característica inegável de sua poesia, e para a qual poucos tradutores atentam
(exceção feita a Augusto de Campos e a Ana Luisa Amaral, que encontraram
soluções instigantes, exatamente porque são bastante pessoais). Não se trata
aqui de “transcriar” os poemas, mas de assumir que é preciso reescrevê-los.
Para traduzir, é preciso, antes de mais nada, saber escrever, em condições
análogas. Não é a letra que se deve respeitar. A tradução só é traição quando,
sob o pretexto de “respeito ao original”, ela desconsidera a relação entre
imagem, ritmo e pensamento. Assumo, pois, a persona de Emily Dickinson,
e assino com ela, meu nome. Pois escrever é assinar: uma sign-natura, como
quer Derrida.

[One Sister have I in our house]


Tenho uma Irmã em casa,
E outra, além da cerca.
Só uma tem certidão,
Mas as duas são minhas.
Uma é da mesma estrada –
E usa os meus roupões –
A outra fez um ninho
Pros nossos corações.
É ave de outro canto –
É outro o seu refrão –
Toca para si mesma,
Abelha de verão.
Brincamos na montanha –
Como se fosse a Infância –
Pego na mão dela –
Isso encurta a distância.
E ainda o seu zumbido,
Nesses anos todos,
Engana a Borboleta;
Ainda no seu Olho
Vive a Violeta –
Molda meios e maios –
Derramei o orvalho –
Mas salvei a manhã –
Escolhi a estrela cadente
No infinito da noite –
Susan – eternamente!
J14 [F5B]

[A sepal – petal – and a thorn]


Sépala – pétala – espinho –
Manhã de verão – caminho –
Frasco de Orvalho – uma e outra Abelhas –
A Brisa brinca nas folhas –
E Eu sou uma Rosa!
J19 [F25A]

[For each extatic instant]


Pra cada momento extático
Pagamos com angústia
Pesando desejo e temor
Até o êxtase.
Cada hora de amor
É um milagre – mas –
Juntamos cada centavo –
E pagamos com mil lágrimas.
J125 [F109A]

[A slash of Blue]
Um tantinho de Azul –
Um pouco de Gris –
De escarlate – um triz –
Compõem um Céu Vespertino.
De púrpura – uma gota –
Uns Fiapos de Rubi –
Uma Onda de Ouro –
Do Dia – o matiz –
Basta pro Céu Matutino.
J204 [F233B]

[All the letters I could write]


Posso te escrever mil cartas
Mas nenhuma como esta –
Sílabas de Veludo –
Orações de Pelúcia,
Abismos de Rubi – ingênuo,
Oculto, Lábio, pra Você –
Faz de conta um Beija-Flor –
Chupou-me – o doce.
J334 [F380A]
[Each life converges to some Centre]
Toda Vida busca Centro –
Em parte expressa – ou quieta –
Há na Natureza Humana
Uma Meta –
Pouco aferrada – que seja –
Tão pura –
Que a presunção de Credibilidade
desfigura –
Tomar com cautela – Céu Frágil –
Alcançá-la
Seria ver a renda do Arco-íris
E tocá-la –
Mas perseverando – à Distância –
Ao léu –
Com a diligência lenta dos Santos –
No Céu –
Longe da Ventura da Vida –
De repente
A Eternidade desafia –
novamente –
J680 [F724B]

[I asked no other thing]


Não pedi mais nada –
E nada mais – me foi negado –
Ofereci o Ser – em troca –
Ao Mercador – o Abastado –
Brasil? – o dedo no Botão –
Fingindo que não me via –
“Madame – leva outra coisa
Hoje – este aqui – seria?”
621[F687A]

[It was too late for Man]


Tarde demais – para o Homem –
Mas cedo ainda – para Deus –
A Criação – não ajuda –
Mas a Reza – é conosco –
Quão aprazível o Céu –
Quando à Terra – dá-se adeus –
Agradável – então – o Rosto
Do Velho Vizinho – Deus.
J623 [F689A]

[As if the Sea should part]


Se o Mar se partisse e
Mostrasse outro Mar e esse –
Outro – e após, um Terceiro –
Que fosse mera hipótese,
Um Mar de Mares – e Praias –
Nunca dantes visitadas –
Bordas de Mares sem fim –
A Eternidade – é assim –
J695 [F720A]

[To wait an Hour – is long]


Uma Hora de espera – é tensa –
se o Amor já nasce distante –
a Eternidade – é um instante –
se o Amor é a recompensa –
J781 [F884A]
[Forbidden Fruit a flavor has]
O sabor do Fruto Proibido
O ordeiro Pomar alicia –
Dentro da Vagem do Dever
A Ervilha é uma delícia –
J1377 [F1482A]

[“Faith” is a fine invention]


A “Fé” é fina invenção
Se o Fidalgo toma ciência –
Mais prudente é o Microscópio
Em casos de Emergência!
J185 [FR 202]
Tradução Adalberto Müller

O humor da serpente
HEITOR FERRAZ MELLO

A poesia de Sebastião Uchoa Leite sempre foi um prato cheio para a


discussão sobre o lirismo contemporâneo no Brasil. A crítica soube pinçar
com cuidado na sua obra as questões que o poeta foi destacando ao longo de
sua trajetória, sendo a principal delas o modo de lidar com os escombros do
lirismo e com a figura do poeta no poema. Como já destacava o poeta e
crítico Franklin Alves Dassie, num artigo na revista de poesia Modo de Usar
& Co., era recorrente na poesia de Uchoa Leite os “elementos referentes ao
fazer poético”. E ele listava: escrita, língua, poeta, poética e poesia, sem
contar em figuras de linguagem, como sinédoque, metáfora, silepse e tantas
outras.
Sebastião era quase que um poeta para poetas: ali se elaborava um
horizonte de onde partir, de onde discutir as possibilidades de uma voz e de
uma persona em épocas de reificação do sujeito, de destruição e massacre
cultural por meio da avassaladora indústria imprimindo seu selo de padrão
de qualidade média, desgastando velhas palavras caras ao lirismo de origem
romântica e subjetiva. Foi diante dessa tentacular cidade de palavras gastas e
sentimentos mofados que o poeta procurou armar seu espaço e sua barricada
com um humor de mal-humorado, que era uma das características da persona
que ele foi elaborando em sua poesia.
Talvez por esses motivos, ele nunca tenha alcançado a popularidade de
alguns poetas com quem conviveu nos anos 1970, como Paulo Leminski,
Waly Salomão e Ana Cristina César. Os dois primeiros eram o seu oposto
completo: eram excessivos e públicos, enquanto o magro Sebastião sempre
foi um sujeito mais tímido, menos dado a explosões verbais. Talvez estivesse
mais próximo de Ana, mas com personalidades e personas poéticas bem
diferentes. Ele mesmo se lembraria de um encontro que tivera com ela,
quando levou seu Antilogia, com a capa preta, e a poeta mostrara o layout de
seu livro (talvez A teus pés), no poema “Duas visitas”, de “Cortes/Toques”:
“Cinco anos depois/ foi a vez de ela me visitar./ Enquanto fiz um café/ ficou
de pé/ olhando o canal e o mar/ em silêncio./Isso foi um ano antes do salto”.
Mas se a obra desses três poetas ganhou nos últimos anos uma edição
completa, a de Sebastião continuava pedindo uma reunião que o colocasse
novamente em circulação, principalmente com seu veneno e antídoto para
uma poesia sentimental. A Cosac Naify publica agora Poesia completa,
reunindo toda a sua produção poética de 1960 aos dois poemas inéditos em
livro, escritos e publicados no ano de sua morte, em 2003.

“Black book”
Nascido na pernambucana Timbaúba, em 1935, passou sua infância e
juventude em Recife, quando pôde participar da vida intelectual e cultural da
cidade que se transformava radicalmente no começo dos anos 1960. Foi lá
que se formou em Direito e Filosofia. Com o golpe de 1964, percebendo que
o horizonte começara a se estreitar demais, com cobranças políticas e com
pouca possibilidade de desprovincianização mental, mudou-se para o Rio de
Janeiro, numa saída estratégica e de sobrevivência.
Sua poesia, que evitou sempre a efusão lírica, qualquer forma de
transbordamento sentimental, manteve-se crítica, no sentido em que toda
poesia na modernidade toma partido e apresenta suas armas. Falar sobre a
cronologia de suas obras é um capítulo à parte, já que dois livros passaram
muitos anos na gaveta: seu primeiro livro saiu em 1960, pela Gráfico
Amador, quando ele ainda morava em Recife. Dez sonetos sem matéria,
como lembra o poeta e crítico Frederico Barbosa, que faz o prefácio dessa
nova edição, eram de “inspiração confessadamente valéryana”. São poemas
solenes sobre o tempo, o silêncio e uma “consciência do mundo sensitiva”.
Ele passou quase vinte anos sem publicar nenhum outro livro: foi quando
tomou contato com as experiências da poesia concreta. Ele mesmo lembrou,
numa entrevista, que foi “uma espécie de choque cultural”. Chegou a fazer
alguns experimentos, mas não os publicou. Sabia que sua natureza era outra,
mas que aquela poesia representava, para ele, uma ampliação de horizontes.
“Não queria fazer uma imitação do que os Campos e Décio Pignatari
estavam fazendo, mesmo porque minha formação era completamente
diferente”, disse à Revista 34 Letras, em 1990.
Em 1979, ele publicaria, então, seu “black book”, como escreveu no
poema “Duas visitas”. O livrinho, que trazia na folha de rosto uma foto em
preto e branco de Béla Lugosi, em Drácula (1931), trazia uma
“transformação substancial” da poesia de Sebastião, que lembraria seu
colega de geração e crítico João Alexandre Barbosa, em ensaio publicado em
“A espreita”, também, reproduzido nesta nova edição. Nele, apropriando-se
do coloquialismo, que era uma corrente na poesia dos anos 1970, e da
montagem cinematográfica, sem perder seus referenciais poéticos, mas os
ampliando, Sebastião põe para funcionar seu humor mal-humorado, baseado
num materialismo que evita o derramamento lírico do sentimental e se
coloca em campo como quem cria um espaço de questionamento dos
discursos correntes. A começar pela epígrafe, montada a partir de versos de
“Epitáfio”, de Tristan Corbière. A morte, como ele mesmo chegou a lembrar,
estava no centro de seu interesse: “Eu acho que consegui mais ou menos
passar a ideia, gaiatamente, da morte como sendo uma coisa mais
interessante do que a vida”.
Se Corbière escrevia “mélange adultère de tout”, verso que aparece na
epígrafe do livro, Sebastião toma essa ideia para si e para sua obra, onde
encontramos a “mistura adúltera de tudo”. Uma proposição estética que
visava ampliar seu repertório de assuntos, mas sem deixar de ter no centro
nervoso a própria linguagem poética, sempre questionada por sua “fome de
corrosão”. Como ele ainda escreveu na série de poemas curtos “Take off”:
“há quem faça obras/ eu apenas/ solto as minhas cobras”. Não faltarão
venenos nesse livrinho. Há mesmo uma incrível sequência chamada
“Pequenos venenos (em cinco pacotinhos)” e também alguns outros poemas
ofídicos, ou como ele mesmo dirá, em “Matassombro”, “minha língua é
ofídica”.

Os livros escondidos
Em 1982, viria Isso não é aquilo, dando prosseguimento a sua poética
ofídica, mas agora incluindo outras de suas grandes paixões: o cinema,
principalmente filme de detetives, e a história em quadrinhos. Da capa preta
do livro anterior saltamos para uma capa azulada com um desenho tirado do
“Capitão América”. Como diz Frederico Barbosa, ele assume “um gosto que
antes parecia escondido”: “Fala, assim, mais de si e das suas predileções não
‘eruditas’, colocando no mesmo plano Baudelaire e a violência carioca”.
Esse universo também reaparecerá no livro Cortes/Toques, que abre a sua
reunião Obra em dobras, pela Coleção Claro Enigma, de 1988, e que trazia
poemas em que esse universo cinematográfico e literário comparece
alimentando uma espécie de ficção poética baseada no corte e na montagem
dos versos. Sem deixar de lado, claro, o veneno. “Não é possível/ a verdade/
exceto como veneno”, dirá em “Outro esboço”. É deste livro dois poemas
em prosa, em que o olhar do crítico (atividade que também exerceu ao longo
de sua vida, ao lado da de tradutor) se mistura com a do poeta lírico, como
em “Ela, pantera”, sobre o filme Cat people “Espelho obscuro”, sobre Dark
mirror, e “As relações perigosas”, sobre Black window. Neles, o duplo – o
avesso e o direito do homem, ou “a ambivalência básica”, o “reverso
perverso”, “a limpidez das águas e a insinuosidade da serpente” – são
tratados a partir de situações dos filmes.
Foi também em “Obra em dobras” que o poeta retirou da gaveta dois
livros intermediários entre a obra de estreia, de 1960, e Antilogia: Dez
exercícios numa mesa sobre o tempo e o espaço e Signos/Gnosis e outros,
obras que ele guardou durante anos e que testemunham a sua transformação
poética, a procura dessa voz irônica e corrosiva que ele colocou de fato em
prática no livro de 1979.
Nos anos 1990, surgiram mais três coletâneas fundamentais: A uma
incógnita (1991), A ficção vida (1993) e A espreita (2000). Com A regra
secreta, de 2002, esses livros formam a última fase de sua poesia, agora
marcada pela doença e pela morte, mas sempre com a alavanca do humor
materialista, como se pode perceber no belo poema “Certa luz”: “Ela
inclinou-se junto a mim/ -Todo em fios- / E disse: ‘O que o salvou/ Foi uma
luz/ Dentro de você’./ Touché! Sorri pérfido/ ‘Desconfio dessa luz”/ Com a
língua bífida.” Seria impossível resumir em poucas linhas o significado
desses livros para a geração de poetas que surgia naqueles anos 1990. O seu
veneno, que fazia desconfiar da linguagem e das construções fáceis, e sua
inventividade, que tirava imagens impressionantes de cenas de ruas, foram
fundamentais para um reposicionamento do pensamento poético e
principalmente lírico. Certamente, as poesia de Sebastião Uchoa Leite e
Francisco Alvim, mesmo sendo tão diferentes, souberam questionar o
lirismo sem deixar inteiramente de praticá-lo, mas sempre expondo a cobra
que estava ali escondida.

A poesia de todo dia


HEITOR FERRAZ MELLO

Todo balanço é precário. Parte de um certo recorte, com aparente


objetividade, mas que vai revelando também um certo gosto pessoal. Este
não vai ser diferente. E a precariedade também é assumida como ponto de
partida. Como dar conta de uma produção poética num momento em que há
tantas editoras combativas na área? Basta lembrar da Patuá, do poeta
Eduardo Lacerda; ou da já conhecida 7Letras, com suas coleções, como a
simpática e graficamente impecável Megamíni; ou ainda o trabalho da
Confraria dos Ventos; ou a Jovens Escribas, do Rio Grande do Norte; o
coletivo paulistano Corsário-Satã; ainda as cartoneras, com seus livros com
capa de papelão; ou belos livrinhos da nova editora, a Luna Parque?
Certamente, o recorte não tem como dar conta de tantas editoras,
médias e pequenas, nem mesmo de tantos poetas, sejam ou mais jovens, que
estão chegando agora, ou os mais velhos, que continuam desenvolvendo seus
projetos num ambiente com pouquíssima recepção crítica e também pública.
Aqui, é como se o sistema literário falhasse: há autores, há obras (até mesmo
em profusão), há até mesmo incentivos de fomento, mas o público é sempre
pequeno e quase que formado por especialistas. Talvez esse sistema já tenha
apresentado a sua deficiência há muitos e muitos anos, principalmente num
país em que a leitura não está entre as prioridades da população. Não estou
me referindo àquela que está tentando ultrapassar a linha de pobreza, estou
mesmo me referindo à de classe média. Uma pesquisa feita pela Federação
do Comércio do Rio de Janeiro, apresentada no começo do ano, indicava que
70% dos brasileiros não haviam lido um único livro de 2014. Não podia ser
mais desanimador.
Para este breve e precário balanço da produção poética em 2015,
sabendo de antemão que certamente haverá muita injustiça nas referências,
uma possibilidade é apontar algumas linhas de força dessa poesia – mesmo
conhecendo os limites já apresentados. Algo que já vem chamando a atenção
há algum tempo são os livros com poemas longos, quase narrativos, quando
não inteiramente narrativos. Em abril, por exemplo, saiu Pig Brother, do
poeta Ademir Assunção, uma série de poemas, divididos em sete círculos,
todos infernais, nos quais a vida urbana, filtrada por uma linguagem de
quadrinhos, com personagens como Mister Morfina, Coronel Tempestade
Negra, a Águia de Plumas de Ferro, Lili Maconha, e tantos outros, encenam
um mundo degradado e violento, em que verbos como “espancar”,
“sodomizar”, “espetar” “retalhar”, “violentar” regem a ação dos episódios,
sempre muito críticos – não faltam venenos contra os administradores de
nossa miséria.
Outro livro marcado pela narração é Terra sem Mal: um mistério
bufante deleitoso, do poeta Waldo Motta. O livro é uma espécie de
peregrinação para a Terra Sem Mal, o paraíso perdido. Como chegou a
comentar o próprio poeta, em entrevista a Magali Lima, seu livro “é uma
sucessão de poemas narrativos, descritivos, argumentativos, monólogos,
diálogos, formando um enredo, uma história, que encena a busca e o
descobrimento do paraíso terrestre, isto é, a Terra sem mal dos mitos
indígenas. É um épico-místico, temperado com ironia, humor, escracho”. Ao
tratar desses mitos, nesse tom de escracho, ele vai topando com as desgraças
nacionais, com a destruição do mundo indígena e da natureza. Como ele
escreve em “Aceiloptu: Eucalipto”, num jogo de assonâncias e aliterações:
“o capte o capital/ a patota capetal/ leal ao ioiô capte:/ a alcateia patola/ a
patuleia pateta/ aia cética patau/ e a elite aética/ culta puta e lalau”. A
destrutiva monocultura do eucalipto, no Espírito Santo, se torna o “pau
apocalípto”.
Já em Sermões, de Nuno Ramos, o leitor se depara com um narrador
filósofo em primeira pessoa, que vai costurando sua experiência
desordenada, em pelo menos três lugares emblemáticos: numa igreja do
barroco mineiro, em Ouro Preto, a Igreja do Rosário; num apartamentinho
modernista em São Paulo; e depois na praia do litoral paulista, onde profere
seus sermões. O poema, com mais de duzentas páginas, vai plasmando
várias experiências, mas principalmente a sexual, que acaba se tornando o
centro de sua reflexão sobre a vida e a morte. E acaba por terminar como
muitos dos nossos mitos modernos, que sobem para céu, ou como estrelas
(Macunaíma), ou como uma figura pensativa no alto de uma pedra (como o
João Ternura, de Aníbal Machado). O anti-herói de Ramos acaba sendo
recebido por uma deusa hermafrodita, sua professora de ioga. O pano de
fundo dessa reflexão não deixa de ser o próprio Brasil, desde Anchieta e seus
sermões até o sonho desenvolvimentista do prédio moderninho e sem
função.
Outro importante poema narrativo saiu, na verdade, no final de 2014,
mas não deixa de estar no espírito do ano que logo mais se iniciaria. Trata-se
do livreto Seu Madruga e eu, de Chacal. Ele saiu inicialmente pela coleção
Megamíni, da 7Letras, e depois ganhou uma nova edição, também em
plaquete, pela Jovens Escribas, em 2015. Nele, encontramos o humor do
poeta carioca apostando numa semelhança entre seu rosto e alguma do
personagem Seu Madruga, da série Chaves, embaralhando a sua identidade
numa época de perfis fake e também de redefinições de identidade. Com
seus versos ágeis, entre a prosa e poesia, apropriando-se de vários registros
(até o da desmontagem pós-concretista), o poeta escreve: “mi quei/ mim
quem/ nin guém// (ando assustado. estou cada vez mais parecido com o
arnaldo antunes)./ seu madruga ouve e diz: sai de mim, invasor!/ liberta-me
de ti!”. Em outro momento, lemos: “alguém porta um cartaz:/ se emancipar
de alguém talvez queira ser dar vez/ a alguém que queira ter vez em seu
coração.// recado pra mim?/ recado meu pra ele?/ google me responde/ se
aquele que vai ali/ sou eu ou ele?”.
Numa linha um pouco diferente, mas também com uma poesia
temática, podemos citar O livro das semelhanças, da poeta mineira Ana
Martins Marques. Em seu novo livro, o próprio universo da poesia lírica é
tematizado, num trabalho que se organizou a partir da própria ideia do livro.
Nos últimos tempos, o poema longo, com elementos narrativos, e
também o poema em prosa, acabou se tornando uma forma de lidar com essa
realidade e com a experiência multifacetada do mundo. É o caso de dois
importantes poetas contemporâneos, que lançaram livros neste final de ano:
o carioca Ismar Tirelli Neto e a cearense Júlia Studart, que mora atualmente
no Rio de Janeiro. Tirelli lançou Os ilhados, com cinquenta poemas em
grande variação de estilo, indo do poema em versos ao poema em prosa, da
voz pessoal às várias personas, mas fazendo com que cada poema seja
mesmo uma ilha que nasce de um impulso, de uma observação, um
pensamento, uma memória de infância ou uma situação cotidiana, mas com
a forte marca de aprisionamento. Já em Logomaquia, os poemas de Júlia
Studart parecem construídos com pedaços de uma conversa não finalizada –
há sempre um destinatário, um você, para quem o poema é dirigido. Causa
uma certa estranheza esse discurso em que as palavras criam mal-
entendidos, duelam no espaço da página. Como diz Nuno Ramos, no
prefácio do livro, “Aqui tudo parece familiar, pois dito de forma
extremamente próxima. Reconhecemos a parte mas não o todo, como
pedaços de uma boneca que não conseguimos mais montar. [...] O pólen
poético, aquele grãozinho fatal, salta de modo súbito, como deve ser, mas
depois de mil pausas, perguntas e adiamentos”.
Neste ano, alguns dos principais nomes da poesia dos anos 1990
voltaram a publicar novos livros, como Fábio Weintraub (Treme ainda), Ruy
Proença (Caçambas), Eucanaã Ferraz (Escuta), Arnaldo Antunes (Agora
aqui ninguém precisa de si), Ricardo Aleixo (Impossível como nunca ter tido
um rosto) e Marcos Siscar (Manual de flutuação para amadores). Haveria,
certamente, muito a comentar, já que são poetas em plena maturidade de
seus trabalhos. Mas ainda é preciso ler e reler esses belos livros, que tratam,
cada um a sua maneira, deste tempo precário em que vivemos.
Para fechar este balanço bastante incompleto, um dos fatos marcantes
da poesia de 2015 foi o lançamento de Outro, de Augusto de Campos, poeta
que, aos 84 anos, foi o primeiro brasileiro a ganhar o Prêmio Neruda de
Poesia, no Chile. Nessa nova coletânea, o poeta cria seus quadros
verbivocovisuais, em que a própria poesia está no centro, como nos belos
poemas “desumano”, “osso”, “vazia”, “tvgrama 5” e tantos outros. Não
deixa de ser uma homenagem à própria poesia, que sempre absorveu a
trajetória deste poeta-tradutor.

colaboraram nesta edição


Adalberto Müller é tradutor e professor de Teoria da Literatura da UFF
André Duarte é professor do Departamento de Filosofia da UFPR e autor
de Vidas em risco: crítica do presente em Heidegger, Arendt e Foucault
(Forense Universitária, 2010)
Antônio Teixeira é professor-associado do Departamento de Psicologia da
UFMG
Bethania Assy é professora do Departamento de Direito da PUC-Rio,
pesquisadora do CNPq e autora do recémlançado Ética, responsabilidade e
juízo em Hannah Arendt (Perspectiva)
Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista e professor livre-docente do
Instituto de Psicologia da USP
Cláudia Perrone-Moisés é professora-associada do Departamento de
Direito Internacional e Comparado da USP
Flávio Ricardo Vassoler é doutor em Teoria Literária e Literatura
Comparada pela USP e organizador de Dostoiévski e Bergman: o niilismo da
modernidade (Intermeios, 2012)
Gilson Iannini é psicanalista, professor do Departamento de Filosofia da
UFOP e editor da coleção Obras incompletas de Sigmund Freud (Autêntica
Editora)
Guilherme Massara Rocha é psicanalista e professor-adjunto do
Departamento de Psicologia da UFMG
Guillaume Sibertin-Blanc é professor do Departamento de Filosofia da
Universidade de Toulouse, França
Heitor Ferraz Mello é jornalista e mestre em Literatura Brasileira pela USP
Mario Sagayama é tradutor
Renan Quinalha é advogado e mestre em Sociologia do Direito pela USP
Vladimir Safatle é filósofo e professor livre-docente do Departamento de
Filosofia da USP
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