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EDUCAÇÃO POLÍTICA EM MAQUIAVEL

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Somos filhos da época
e a época é política.

Todas as tuas, nossas, vossas coisas


diurnas e noturnas,
são coisas políticas.

Querendo ou não querendo,


teus genes têm um passado político,
tua pele, um matiz político,
teus olhos, um aspecto político.

O que você diz tem ressonância,


o que silencia tem um eco
de um jeito ou de outro político.

Até caminhando e cantando a canção


você dá passos políticos
sobre um solo político.

Versos apolíticos também são políticos,


e no alto a lua ilumina
com um brilho já pouco lunar.
Ser ou não ser, eis a questão.

Qual questão, me dirão.


Uma questão política.

Não precisa nem mesmo ser gente


para ter significado político.
Basta ser petróleo bruto,
ração concentrada ou matéria reciclável.
Ou mesa de conferência cuja forma
se discutia por meses a fio:
deve-se arbitrar sobre a vida e a morte
numa mesa redonda ou quadrada.

Enquanto isso matavam-se os homens,


morriam os animais,
ardiam as casas,
ficavam ermos os campos,
como em épocas passadas
e menos políticas.
(SZYNBORSKA, Wislawa. Poemas. Seleção, tradução e prefácio de Regina Przybycien. São
Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 77-78.)

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RESUMO

Nesse trabalho temos por objetivo explicitar a concepção de educação na teoria


política de Nicolau Maquiavel. Para tanto, procura-se elucidar as influências e os
propósitos dessa concepção e, assim, apontar a importância do termo educação para a
teoria política desse autor. Perpassando, por suas influências humanistas e pelas
experiências políticas, para compreender a educação no sentido de uma educação
política, de ação ativa. Tendo esse trabalho dividido em três momentos. A primeira
parte trata da contextualização da teoria política de Maquiavel, destacando o ideal de
liberdade que direciona a política no marco da renascença, bem como a compreensão
de Maquiavel sobre o bom governo. A segunda parte apresenta o tema da educação
no pensamento de Maquiavel, inicialmente, localizando-o no interior do movimento
de educação humanista no século XV e, em seguida, expondo oito referências em que
ele menciona explicitamente o termo educação. Nessa parte, em vista de uma
compreensão geral, intenta-se apontar o sentido da educação segundo Maquiavel,
enquanto mediação para o bom funcionamento da república. A terceira parte traz a
correlação do tema da educação em Maquiavel com alguns conceitos importantes
para o autor, a saber, os conceitos de natureza, desejo, fortuna, poder e virtù. Essa
especulação nos permite explanar de melhor forma o papel da educação em suas
obras e como essa estaria, ainda que de maneira sutil, interligada à sua teoria, onde
acreditamos identificar uma educação política que garantiria os princípios da
liberdade.

Palavras-chave: Maquiavel. Educação. Política. Humanismo.

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ABSTRACTI

In this work we aim to make explicit the conception of education in Nicolau


Machiavelli's political theory. In order to do so, it is sought to elucidate the influences
and purposes of this conception and, thus, to point out the importance of the term
education to the author's political theory. Going through his humanist influences and
Machiavelli's political experiences, to understand education in the sense of a political
education, active action. Having this work divided into three moments. The first part
deals with the contextualization of Machiavelli's political theory, highlighting the
ideal of freedom that directs politics within the framework of the Renaissance, as
well as Machiavelli's understanding of good government. The second part presents
the theme of education in Machiavelli's thought, initially locating it within the
movement of humanistic education in the fifteenth century and then exposing eight
references in which he explicitly mentions the term education. In this part, in view of
a general understanding, it is tried to point the sense of education according to
Machiavelli, as mediation for the good functioning of the republic. The third part
brings the correlation of the theme of education in Machiavelli with some important
concepts for the author, namely, the concepts of nature, desire, fortune, power and
virtù. This speculation allows us to better explain the role of education in his works
and how this would be, albeit subtly, intertwined with his theory, where we believe
we identify a political education that would guarantee the principles of freedom

Keywords: Machiavelli, education, politics, humanism.

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Sumário
1. Introdução ___________________________________________________ 7
2. Contextualização da trajetória política de Maquiavel ________________ 9
2.1 A compreensão da política no marco da renascença____________ 17
2.2 Os ensinamentos políticos de Maquiavel ______________________ 22
2.3 A república ______________________________________________ 29
2.4 O bom governo __________________________________________ 37
3. Referências explícitas ao tema da educação no pensamento político de
Maquiavel ______________________________________________________ 40
3.1 O movimento de educação humanista no século XV _____________ 40
3.2 O lugar da educação na filosofia de Maquiavel _________________ 43
3.3 Por uma compreensão geral de educação em Maquiavel _________ 49
4. Possíveis correlações indicativas acerca da importância da educação no
pensamento político de Maquiavel _________________________________ 53
4.1 Educação, Natureza e Desejo _______________________________ 53
4.2 Educação, Poder e Fortuna _________________________________ 58
4.3 Educação e Virtú _________________________________________ 61
Considerações finais _____________________________________________ 64
Referências ____________________________________________________ 67

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1. Introdução

O objetivo deste trabalho é explicitar a concepção de educação na


teoria política de Nicolau Maquiavel (1469-1527). Para tanto, procura-se
elucidar as influências e os propósitos dessa concepção e, assim, apontar a
importância do termo educação para a teoria política desse autor. Observamos
Maquiavel como um outsider em relação à educação, já que não parece à
primeira vista haver uma robustez de conteúdo pertinente e direto acerca da
temática. E constatando a escassa literatura acerca da temática, percebemos uma
necessidade de contribuir para um campo que ainda pode ser mais investigado.
Quanto ao direcionamento metodológico desse trabalho, utiliza-se da
pesquisa bibliográfica nas obras de Maquiavel, destacadamente, Comentários
sobre a primeira década de Tito Lívio (1531), Da arte da guerra (1521), O
Príncipe (1532) e Capítulo – Da Ambição (1783), assim como de obras de
comentadores. O inventário e a análise das referências diretas ao termo educação
encontradas nesses textos delineiam o núcleo desse trabalho. Não obstante,
nesse caminho, busca-se aqui também marcar a importância da educação
política no pensamento de Maquiavel, tendo em conta que a educação estabelece
correlação com conceitos fundamentais – tais como, natureza, desejo, poder,
fortuna, virtú – de sua teoria política.
Esse trabalho se estrutura em três partes. A primeira parte trata da
contextualização da teoria política de Maquiavel, destacando o ideal de
liberdade que direciona a política no marco da renascença, bem como a
compreensão de Maquiavel sobre o bom governo tendo por base o
republicanismo. A segunda parte apresenta o tema da educação no pensamento
de Maquiavel, inicialmente, localizando-o no interior do movimento de
educação humanista no século XV e, em seguida, expondo as oito referências
em que ele menciona explicitamente o termo educação. Nessa parte, em vista de
uma compreensão geral, intenta-se apontar o sentido da educação segundo
Maquiavel, enquanto mediação para o bom funcionamento da república.
Em um esforço especulativo, a terceira parte traz a correlação do tema
da educação em Maquiavel com alguns conceitos importantes para este autor, a
saber, os conceitos de natureza, desejo, fortuna, poder e virtù. Supondo que a
abordagem colateral do tema da educação legada por Maquiavel não reflete a
importância que a educação política guarda em seu pensamento político, aqui se
empreende esse esforço de compreendê-la de forma mais ampla, a saber: a
educação como uma força reguladora da natureza e do desejo; um meio para
lidar com a fortuna e atingir o poder; e uma ferramenta importante para o estudo
da história, possibilitando assim alcançar a virtù. Essa especulação nos permite
explanar de melhor forma o papel da educação em suas obras e como essa
estaria, ainda que de maneira sutil, interligada a sua teoria.
Enfim, espera-se que esta empreitada sirva de base para futuras
pesquisas que tematizam as influências humanistas na educação e a educação
política em Maquiavel.

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2. Contextualização da trajetória política de Maquiavel

Buscamos apresentar nesse momento a trajetória percorrida por


Maquiavel no tocante à política, em que cenário o filósofo estava inserido e
como as suas experiências contribuíram para a elaboração de sua teoria política,
visto que, Maquiavel menciona esses exemplos para explicar as propostas
apontadas em suas obras de modo a validar suas ideias e também nos permite
contextualizar o período, afim de compreender melhor a teoria desenvolvida por
Maquiavel.
As cidades italianas, em meados do século XIII, vinham de uma
constante troca de poder, ora pelas famílias reais, ora pelo papado e, por vezes,
numa tentativa republicana, por líderes eleitos. Contudo, todos esses modos
apresentavam suas limitações, principalmente porque os príncipes e a igreja
impunham seus desejos sobre o governo e com isso, privavam o povo da
liberdade. Ademais, por sua vez, os regimes republicanos se apresentavam
fracos diante das empreitadas estrangeiras de conquista (SKINNER, 1996, p. 34-
38). Os cidadãos viam-se divididos e incertos sobre qual seria o regime ideal
para suas cidades, um que pudesse lhes garantir a liberdade, mas que também os
assegurassem sobre a investida de dominação estrangeira.
Diante desse cenário, Maquiavel desenvolve seu pensamento político,
levando em consideração as necessidades pertinentes à época e suas projeções
do que deve ser feito para solucionar os dilemas políticos que a Itália se
deparava. Maquiavel analisa fatos políticos e aborda de forma concisa a
realidade. Distante de vislumbrar estados ideais e assim se perder em
divagações, o filósofo florentino trabalha com um conteúdo quase que palpável
de tão próximo à realidade. O autor busca soluções para a política e as apresenta
de forma direta, sendo preciso, admitindo a existência de situações
insolucionáveis. E esse posicionamento é expresso por uma passagem nos
Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio em que Maquiavel afirma:
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Não sei se já se viu tal prodígio, ou mesmo se ele é possível. Se
acontecesse de uma cidade arruinada pela corrupção se recuperar da
sua queda, este benefício só poderia ser atribuído a virtude de um
homem, e não a vontade geral que o povo pudesse ter em favor das
boas instituições. E mal a morte abatesse este reformador, a massa
retornaria aos seus antigos costumes. Com efeito, não há homem cuja
vida seja longa o bastante para poder reformar um governo há muito
tempo desorganizado; e se tal reforma não for feita por um príncipe
longevo, ou durante dois reinados igualmente virtuosos, o Estado
tombará necessariamente num abismo do qual só poderão sair às
custas de muito esforço e de sangue derramado. A corrupção e a
inaptidão para a vida em liberdade provem da desigualdade que se
introduziu no Estado; para nivelar essa desigualdade, é preciso
recorrer a meios extraordinários, que poucos homens sabem ou
querem usar (MAQUIAVEL, 2008, p.74).

É sobre esses meios extraordinários que Maquiavel irá detalhar suas


obras e ser igualmente questionado ao longo da história. Sugere que o
governante deve estar disposto a fazer o que for necessário para o bem do
Estado e para saber o que é ou não necessário, esse deve estar preparado e ser
virtuoso para que possa lidar com a Fortuna. Segundo Ménissier, em seu texto,
Vocabulário de Maquiavel (2012 p. 18), meios extraordinários são aqueles que
fogem ao comum, podendo ser classificados de ordem violenta. Ou seja, trata-se
de medidas diretas, que por vezes se distanciam da moral social, do que
comumente é tido como correto, mas esses meios extraordinários se aproximam
da moral política, de fazer o que é preciso para o bem do Estado. Dentre esses
meios, é possível encontrar ações tidas como violentas, mas para Maquiavel, na
dosagem correta elas são salutares para o Estado, contudo, nem todos os
indivíduos estão dispostos a executá-las.
Ao desenvolver suas obras, Maquiavel conta com vasta experiência
política e grande inspiração dos clássicos. Em 1469, assumiu o cargo de segundo
chanceler, com apenas 29 anos. Ele é o mais jovem a alcançar esse lugar no
governo florentino até então. Uma das atribuições de seu cargo era auxiliar o
Conselho dos Dez. Com esse Conselho era designado para lidar com as relações
diplomáticas, Maquiavel é enviado a diversas missões exteriores para
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representar Florença. Ele fica, alguns anos envolvido por essas missões e por
isso teve a oportunidade de observar de perto a corte de Luís XII da França. Em
1500, Maquiavel estava incumbido de dar explicações sobre uma derrota
vergonhosa que Florença sofrera naquele ano ao sitiar Pisa, empreitada esta que
contou com o apoio francês, mas que agora via o governo florentino como
responsável pela falha. Maquiavel deveria convencer Luís XII de que o erro não
era de Florença e que esperavam ainda ter o apoio francês. Iniciada a
negociação, Luís XII queria uma contrapartida por parte do governo de
Florença, algo que não cabia a Maquiavel responder, este então solicitou que
Florença apresentasse quais termos ele poderia levar ao rei francês, porém, o
governo florentino foi demasiadamente demorado e hesitante em dar a resposta,
Maquiavel teve de permanecer seis meses na corte francesa até que algo pudesse
se resolver e antes de voltar ficou claro para ele que, na visão dos franceses, o
governo de Florença era fraco e vacilante. Dessa experiência ele tira uma de
suas principais lições, a saber, a de que um governo deve sempre agir rápido,
nunca procrastinar e tomar suas decisões com segurança. (Skinner, 2012, p. 16-
18).
Em 1502, ao cumprir as funções de segundo chanceler, Maquiavel tem
a oportunidade de observar mais um grande nome da época, o duque César
Bórgia. Esta observação, considerada por Maquiavel como muito proveitosa
durou 4 meses. Maquiavel exalta a enorme coragem de Bórgia e o modo, para o
duque, era possível alcançar tudo que bem quisesse. Bórgia era igualmente
rigoroso e tomava suas decisões com determinação e eficácia. No entender de
Maquiavel, ele estabelecia raízes sólidas para governar ao (Maquiavel, 1991, p.
29-34). Contudo, Maquiavel nota como preocupante este excesso de confiança e
inapropriado o duque confiar todo seu sucesso apenas na sua boa Fortuna. Essas
preocupações vieram a se concretizar em 1503, quando Bórgia acreditou nas
promessas do cardeal Rovere e o apoiou na eleição papal, eleição que ganhou e
assumiu o nome de Júlio II. Todavia, o novo papa não cumpriu suas promessas e
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deixou César Bórgia sem nenhum apoio. O duque que sempre contou com a
sorte, não estava preparado para esta virada da Fortuna e agora via o fracasso
como iminente, ao perder o apoio de homens poderosos e o respeito de seu
exército (Skinner, 2012, p. 19-23).
Posteriormente, nos anos de 1506 e 1510, Maquiavel pode
acompanhar mais de perto a desenvoltura do novo papa Júlio II, constatou uma
grande ânsia de poder e uma ferocidade descabida de limites, “Júlio realizou,
portanto, com sua atitude impetuosa o que nenhum outro pontífice poderia
realizar” (Maquiavel, 1991, p. 105). Mas nota Maquiavel que isso se deu em
razão de sua boa sorte e que se em algum momento fosse exigido de Júlio II ser
prudente, este falharia. “A brevidade do seu reinado não lhe fez experimentar
reveses; se chegasse o tempo de proceder com circunspecção, ter-se-ia
verificado a sua ruína, pois que ele nunca se desviaria do rumo para o qual o
impelia a natureza.” (Maquiavel, 1991, p. 105). Por fim, dado este aprendizado,
Maquiavel conclui que “modificando-se a sorte, e mantendo os homens,
obstinadamente, o seu modo de agir, são felizes enquanto esse modo de agir e às
particularidades dos tempos concordarem. Não concordando, são infelizes.”
(Maquiavel, 1991, p. 105).
Maquiavel também obtiver grande aprendizado em sua estadia na
corte de Maximiliano, o Sacro Imperador Romano, como detalha Skinner (2012,
p. 25-26). Maximiliano desejava marchar sobre a Itália e ser coroado, entretanto,
ele não dispunha de fundos monetários para tal empreitada. Para tanto solicitou
então o apoio de Florença para suprir esta necessidade. Como os florentinos
precisavam ter uma segurança diante desse investimento, enviaram Francesco
Vettori, incumbindo-o de verificar se com tal ajuda Maximiliano iria de fato vir
para a Itália. Por sua vez, o informe que Vettori encaminha aos florentinos é tão
confuso que decidem enviar Maquiavel, afim de obter respostas mais claras. De
início Maquiavel percebe que Maximiliano é muito volúvel e pouco confiante
em si, deixando-se levar demasiadamente pelos conselhos recebidos, sendo
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assim, nunca segue sua própria decisão, podendo a qualquer instante mudar de
opinião. “Na ocasião de por em prática as suas decisões, os desígnios começam
a ser conhecidos e manifestos, e, pois, a ser contraditos pelos que lhe estão em
torno, e compreende-se então facilmente que o imperador se afasta do que tinha
resolvido.” (Maquiavel, 1991, p. 100). Torna-se assim difícil prever a
verdadeira vontade de Maximiliano, “[...] resulta que as coisas que faz num dia
destrói no outro, e que não saiba nunca o que ele quer, e ninguém pode prever as
suas deliberações.” (Maquiavel, 1991, p. 100). É dada a esta experiência que
podemos encontrar nas obras de Maquiavel observações sobre a importância de
um príncipe ouvir bons conselhos, saber quando deve ouvi-los e o mais
fundamental, tomar as decisões com convicção, apresentando assim uma postura
sólida e determinada, sendo pouco influenciável.
Colecionando essas experiências, Maquiavel pode não somente refletir
sobre o contexto político de sua época, mas também apontá-los, sejam bons ou
maus exemplos. É fator primordial para tornar sua teoria ainda mais realista,
dada a possibilidade de exemplificá-la para que minimize as dúvidas sobre sua
veracidade. Desta forma, fica claro a Maquiavel que o principal ponto fraco dos
príncipes de sua época é seu enorme desejo de moldar a história conforme sua
vontade e não compreendem que são eles quem precisam se adaptar conforme as
mudanças da Fortuna. Skinner (2012, p. 27) resume bem as constatações de
Maquiavel acerca destas experiências. “César Borgia sempre foi demasiado
arrogante em sua autoconfiança; Maximiliano sempre cauteloso e demasiado
hesitante; Júlio sempre foi impetuoso e demasiado precipitado.”
A trajetória política de Maquiavel sofre um revés com a ascensão dos
Médici ao poder em 1512, a república florentina é tomada pelos Médici e todos
aqueles que tinham cargos na república são afastados, alguns dias depois,
Maquiavel é acusado de conspirar contra os Médici, torturado e preso. No ano
de 1513, Maquiavel é solto, agora já com idade avançada, sem trabalho, poucos
bens e sob um governo que o via com maus olhos. Ele é obrigado a ficar recluso
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em uma pequena casa herdada. Ali ele começa a refletir sobre como recuperar
seu cargo. Em cartas trocadas com seu amigo Francesco Vettori, Maquiavel
reclama do enorme tempo ocioso e que buscaria ocupar-se com a leitura dos
clássicos “‘entrando nas antigas cortes dos antigos homens da antiguidade’ para
‘conversar com ele e lhes indagar sobre as razões de suas ações’”. (Maquiavel,
apud Skinner, 2012 p. 35). Ele caracteriza esse percurso como trânsito no
antigos, nos quais buscava experiências e inspirações.
Nesse período de reclusão Maquiavel pode dedicar-se inteiramente a
escrever sua obra O Príncipe, buscou desenvolver toda sua teoria política, com
base nas suas experiências e suas reflexões sobre os textos políticos clássicos. O
Príncipe é uma primorosa obra política, sendo possível encontrar diversos
aspectos interessantes, como o ato de governar, como manter um Estado e o
detalhamento sobre as diferentes formas de principado. Contudo, seu fim último,
o inerente e astucioso motivo pelo qual Maquiavel tanto se dedicou nesta obra,
foi para que os Médici, agora no governo de Florença, pudessem lhe dar um
cargo na corte, possibilitando assim que ele se sentisse útil e que pudesse
também sair da humilde residência em que estava, com recursos limitados.
Contudo, como nota Skinner (2012, p. 35-36), esse desejo em ser notado pelos
Médici pôde em alguns momentos ter prejudicado sua reflexão em prol de ser
aceito na corte. “Os príncipes, e principalmente os recentes, têm encontrado
mais fé e maiores utilidades nos homens que no início do seu governo lhe eram
suspeitos, do que naqueles que, naquela ocasião, lhe haviam inspirado
confiança.” (Maquiavel, 1991, p. 89), porém, Maquiavel, mais tarde nos
Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio, contradiz esse pensamento:
“Não se deve jamais confiar uma função de importância no governo a quem
tenha sofrido uma ofensa grave.” (Maquiavel, 2008, p. 357). Como pudemos
notar nessas passagens, primeiramente Maquiavel sugere confiar em aqueles que
a princípio eram suspeitos pelo príncipe, posteriormente em outra obra, afirma
que não se deve confiar em um indivíduo que tenha sido ofendido pelo governo,
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como mencionado anteriormente, Maquiavel foi um suspeito pelos Médici,
torturado e ofendido por eles, o que distingue essa passagem nas duas obras é o
contexto de Maquiavel, na primeira, buscando um cargo na corte, já na segunda
obra não tinha mais essas pretensões. Por fim, Skinner nos chama a atenção
para outro ponto importante em O Príncipe. Maquiavel escreve em sua obra
sobre a importância dos conselhos de um especialista em política,
principalmente nos governos novos obtidos pela Fortuna e com o auxílio de
armas estrangeiras, dado que naquele momento “ [...] os Médici tinham acabado
de reconquistar sua antiga ascendência sobre Florença em decorrência de um
assombroso golpe de boa Fortuna, somado à força invencível das armas
estrangeiras fornecidas por Fernando de Espanha.” (Skinner, 2012, p. 38). A
argumentação de Maquiavel não pode ser descartada por ter um direcionamento
específico, mas vale a atenção para o fato de que O Príncipe tem “a atenção num
tempo e num lugar específico. O lugar era Florença; o tempo era o momento em
que se redigia O Príncipe.” (Skinner, 2012, p. 38). Nesta constante troca de
cartas entre Maquiavel e Vettori, ele deixa ainda mais evidente seu propósito
com o príncipe. “O que me leva a dedicar o meu opúsculo a Juliano é a
necessidade que me aflige, porque me consumo e não posso continuar por muito
tempo assim sem que a pobreza faça de mim um indivíduo desprezível; e,
depois, eu gostaria que os Médici me dessem um emprego” (Maquiavel, apud,
Larivaille, 1979, p. 150), Entretanto, Larivaille salienta a importância de
compreender a adequação das necessidades com o propósito, ainda que
Maquiavel desejasse muito este trabalho, ao escrever O Príncipe ele mantém o
foco em seu propósito, um propósito de vida por assim dizer, de analisar a
política e demonstrar todo seu conhecimento e sua capacidade de observação no
campo da política.
Prova de sua fidelidade com seus propósitos é o que decorre da sua
tarefa de escrever a obra Histórias florentinas. Em 1520 Maquiavel é contratado
pelos Médici para escrever essa obra, afim de detalhar historicamente os fatos
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políticos ocorridos em Florença. Maquiavel usa de todo conhecimento que
adquiriu até então para relatar os tempos antigos, contudo, em dado momento,
inevitavelmente ele se depara com a tarefa de relatar sobre o governo dos
Médici em Florença. A família que destituiu a república e buscava a todo custo
estabelecer raízes sólidas de um principado, a mesma também que o torturou,
exilou e lhe cobrou uma enorme multa, fazendo com que ele se encontrasse em
situação de pobreza, desempregado e de humildes bens. Mas é importante
lembrar que agora foram os Médici que lhe deram um emprego e lhe
incumbiram de escrever esta obra, ainda que Maquiavel pudesse ser contrário às
ações dos Médici, ele tinha firmado um acordo e seu salário provinha deles. Ele
se encontrava então sob um dilema, como falar a verdade sem perder o
emprego? Mas como um último ato de honra, Maquiavel abandona estes
escritos, defrontado a esse dilema, prefere não dar continuidade à obra e falhar
com seus compromissos ou com seus propósitos. Dois anos depois, em 1527,
Maquiavel morre, sem nunca ter retomado este texto.
Nota-se que a vida de Maquiavel, assim como todas as suas
atividades e produções foram permeadas pela política, a qual serviu de matéria
prima, assim como ele próprio buscou lapidá-la e contribuir para a forma como
se compreendia política nos Quatrocentos, estando todo seu contexto e suas
influências intimamente ligadas com as suas produções. Diversos fatos ocorridos
na época foram observados por Maquiavel e fizeram parte da constituição de sua
teoria, dado ao tamanho lastro e a especificidade que alguns mereçam ser
abordados. Iremos detalhar mais no decorrer do trabalho, contribuindo para que
a compreensão do contexto de sua teoria possa ficar melhor elucidada.

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2.1 A compreensão da política no marco da renascença

No início dos Trezentos, em Arezzo e Pádua, surge o movimento


literário humanista, que preza pelo ensino da retórica e estudo dos clássicos.
Esse movimento serve de inspiração para a escrita e reflexão política da época.
Nos Quatrocentos, o movimento humanista é impulsionado pela expansão
mercantil e o acesso a novas cidades, que facultam aos humanistas o acesso a
novas bibliotecas e aos textos de autores clássicos, entre eles, Cícero, Tácito,
Tucídides, Plutarco, Quintiliano e Lucrécio (Skinner, 1996, p. 105-106).
Skinner apresenta um marco importante na história italiana. É neste
período dos Quatrocentos, ao ter contato com textos clássicos de autores do
império romano que os humanistas notam a ruptura existente entre a Itália dos
Quatrocentos e o então, agora reconhecido, antigo Império Romano.
Compreender que os clássicos escreviam para uma determinada sociedade, a
qual os humanistas já não mais se identificavam, permite que gradualmente
esses humanistas possam “adotar uma nova atitude em face do mundo antigo”
(Skinner, 1996, p. 106). Para compreender isso, Erwin Panofsky (1960, p. 159),
historiador alemão, expressa o sentimento existente nessa ruptura: “Pela
primeira vez, era o passado clássico olhando como uma totalidade separada do
presente e, consequentemente, como um ideal a que se aspira em vez de uma
realidade simultaneamente utilizada e temida.”. O autor alemão demonstra como
se deu essa ruptura e suas consequências, principalmente no campo da arte. O
mesmo ocorre na política, ao perceberem que já não mais se identificavam com
aquela sociedade que viveu tempos de glória. Os humanistas introduzem a
necessidade de buscar antigos ideais, como o de liberdade e Virtu. Inspiravam-se
nos clássicos e buscavam imitá-los, não como um espelhamento, mas adequando
da melhor forma os ensinamentos.

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Foi preciso estabelecer novos contornos para se compreender o cenário
italiano no fim dos Trezentos. posteriormente, não só era importante
desenvolver essa identidade própria, como também de valorizar a identidade do
império romano. Weiss (apud Skinner,1996, p.107) descreve como o espaço
físico teve grande significado para este processo. Na Itália do medievo era
comum a retirada de mármore das antigas construções do império romano, mas
ao constar a tamanha importância destes espaços físicos para a preservação
cultural e histórica, tais ações foram coibidas e esses espaços preservados.

A visão instaurada neste período entre estas duas realidades pôde, por
vezes, parecer confusa, visto as distinções e semelhanças ainda existentes. Tal
cenário é ilustrado por Panofsky quando este escreve que podemos comparar o
período do renascimento com o antigo império romano da mesma forma da
distância entre o olho e o objeto. Ele ainda salienta a relação desse modo de ver
com uma invenção do período renascentista, trata-se da perspectiva: “como
nesta, essa distância impedia um contato direto, mas permitia uma visão total e
racionalizada.” (1960, p. 153). Contudo, assim como quem lê um livro, é preciso
se atentar a esta perspectiva e a interpretação, adequando o que lhe apetece.
Desta forma, os antigos serviram de inspiração no período que se inicia o
renascimento, mas somente em relação ao que acreditavam ser mais adequado:

Do mesmo modo, existia por um lado, um sentimento de continuidade


ininterrupta com a Antiguidade Clássica que uniu o – Santo Império
Romano da Idade Média – a César e a Augusto, a música medieval a
Pitágoras, a filosofia medieval a Platão e Aristóteles, a gramática
medieval a Donato – e, por outro lado, uma consciência do fosso
intransponível que separava o presente cristão do passado pagão [de
tal maneira que, por exemplo no caso de Aristóteles, se fazia, ou ao
menos tentava fazer-se, uma clara distinção entre os escritos
admissíveis e os condenáveis]. O mundo clássico era abordado não
historicamente, mas pragmaticamente, como algo longínquo, mas
ainda ativo, e, por isso, a um tempo potencialmente útil e
potencialmente perigoso. Não deixa de ser significativo que os poetas
e filósofos clássicos fossem frequentemente representados com a
mesma indumentária oriental que os profetas judeus, e que o século
18
treze falasse dos romanos, dos seus monumentos e dos seus deuses
como sarrazin ou sarrazinais, utilizando o mesmo termo para os
pagãos do passado e para os infiéis do seu tempo (PANOFSK, 1960,
p. 156).

A principal referência tida pelos humanistas é Cicero, após


descobrirem em seus textos a valorização da Virtù, da liberdade, da filosofia e
da arte da retórica. Os mesmos se tornam defensores dos ideais ciceronianos. “O
resultado foi uma transformação das concepções vigentes não apenas no tocante
aos objetivos e conteúdos adequados da educação, mas também à natureza do
homem, à extensão de suas capacidades e aos objetivos adequados da vida.”
(Skinner, 1996, p. 109). Com base nas obras de Cícero, os humanistas
demonstram pelos pressupostos ciceronianos que era possível aos indivíduos
alcançar o máximo de seu desenvolvimento, de sua excelência, outro importante
pressuposto é de que para se alcançar a excelência era preciso uma educação de
qualidade e, por fim, lembra Skinner (1996, p.109) “o conteúdo de tal educação
deve concentrar-se num estudo interligado da filosofia antiga e da retórica.”
No século XV todos se viam diante de uma Itália dividida e
conflituosa. Todos que se avizinhavam eram potenciais inimigos da cidade.
Cada qual buscava a melhor estrutura política para defender a sua liberdade.
Dentre estas, a cidade de Florença se destaca por sua incansável defesa do
republicanismo e é esta cidade que dita os moldes políticos do renascimento.
Florença durante todo o século XIII assegurou seu modelo republicano e
inspirou o seu povo a garantir a liberdade. O motivo que se tem para
compreender o desenvolvimento político de Florença é a necessária defesa da
liberdade em meio aos conflitos na Itália em que príncipes e o papado travavam
uma incessante disputa de poder. Distantes de aceitaram serem dominados por
outrem, os humanistas florentinos acreditavam numa independência e um
autogoverno. Prezavam pela liberdade a todo custo, compreendendo inclusive
que esta defesa teria de partir dos próprios cidadãos e não de tropas e
19
mercenários estrangeiros, visto que com experiência, estes não eram confiáveis.
Assim, o espírito florentino é caracterizado pela resistência e zelo de sua
liberdade. (Skinner, 1996, p. 97-98).
Este espírito livre é uma das principais características do movimento
republicano na Itália. A república se baseia na participação de todos - inspirada
no modelo da Grécia antiga da participação popular e num consistente sistema
de leis - que usa como base as Institutas de Justiniano, levando em consideração
suas evoluções. O modelo republicano continha uma participação direta
numerosa, mas que ainda consistia em uma minoria da população. Em um
conselho constituído por oitenta homens da cidade de Florença (Masters, 1999,
p. 62), esses indivíduos participavam e decidiam os rumos de sua cidade;
podiam opinar, questionar, criticar, influenciar e até manipular em prol de suas
causas. Eram de fato homens influentes na sociedade florentina, dado isso, estes
cidadãos fariam o que fosse necessário para defender sua república, para
defender o interesse desses grupos de poderem participar do governo, em tese,
defender o modelo republicano era defender a liberdade.
Este desejo em manter a república e defender a liberdade também é
ligado a admiração existente pela Roma antiga, assim lembra Celso Lafer, “A
contraposição entre Monarquia e República remonta aos romanos que, depois da
exclusão dos reis, substituíram o regnum – governo de um só – pelo governo de
um corpo coletivo.” (1989, p. 215). Desta forma, manter a república significa
manter a esperança de que tempos de glória voltem a reinar sobre o território
italiano.
Ainda usando como base o passado italiano, este desenvolvimento
nacionalista existente em Florença se fundamenta nos ensinamentos
ciceronianos. Este corpo coletivo na república não poderia ser um coletivo
qualquer, mas sim um grupo que estivesse associado pelos mesmos direitos e
que tivesse como prioridade a garantia do bem comum. Assim como Maquiavel,
os florentinos defensores da república têm por prioridade uma cidade livre da
20
corrupção, com um povo virtuoso e que tivessem por ambição servir à pátria
(Lafer, 1989, p. 215-217). Para que se tenha uma cidade livre da corrupção é
preciso indivíduos virtuosos. Como bem aponta Montesquieu (2000, p. 32-40), o
despotismo depende do medo, a monarquia da honra e a república da virtude. “A
virtude republicana é para Montesquieu, que se inspira na tradição romana, uma
virtude política, um sentimento que passa pelo respeito às leis e pela devoção do
indivíduo à coletividade”, por fim “a igualdade republicana, na lição aggiornata
de Montesquieu, é uma igualdade na virtude.” (Lafer, 1989, p. 217).
Em 1454, Florença e Milão entram em um acordo e assim se
estabelece a paz por toda a Itália. Entretanto, este período de paz duraria apenas
até 1494, ano em que o exército francês invade a Itália e incita diversas
disseções. Cidades como Florença e Roma se viram diante de longos conflitos
entre aqueles que defendiam o republicanismo e assim a sua liberdade e aqueles
que queria práticas de governo mais severas, acusadas de tirânicas. Maquiavel
faz uma análise deste conflito. Salientando que o desfecho sob o poder de Júlio
II que “alcançou êxito em todas as suas empresas” (Maquiavel, 1996 p. 76), e
por fim o papado se converte em principado despótico. De forma semelhante,
vê-se o desfecho de Florença em que, em 1512 a república é tomada pelos
Médici e passa a ser governada de igual forma despótica. (Skinner, 1996, p. 134-
136).
No fim dos Quatrocentos uma forma diferente de escrita política
ganha seu espaço, diferente dos humanistas antigos que escreviam para um
público diverso, sem restrições. Agora autores como Patrizi e Maquiavel, ainda
que tenham clara a defesa pela república, passam a dedicar seus escritos aos
príncipes, de forma a lhes ditar um caminho que asseguraria um bom governo
(Skinner, 1996, p. 137-139). Acreditamos que esta forma de discurso seja uma
tentativa de influenciar os príncipes, ainda que não fosse o modelo que os
autores acreditavam ser o ideal. Não hesitavam em instruir os governantes, para
que assim pudessem ter um governo menos prejudicial, um bom governo se
21
possível, de modo a instaurar as bases necessárias para um futuro modelo
republicano.
Desta forma, com um discurso cadenciado aos príncipes, é retomado o
valor da virtù e depositada pelos humanistas a esperança do vir virtùs, o homem
virtuoso, este seria capaz de trazer a paz de volta à Itália, como sugere
Maquiavel, reunificando-a. Sendo ela rica e sob um bom governo, protegeria
suas riquezas.

2.2 Os ensinamentos políticos de Maquiavel

Maquiavel relata em O Príncipe uma importante constatação, dizendo


que é “mais conveniente procurar a verdade pelo efeito das coisas, do que pelo
que delas se possa imaginar.” (Maquiavel, 1996, p. 63). O filósofo florentino
sugere que a melhor forma de analisar a política é pelos fatos em si, de um modo
resoluto e não se perdendo em divagações de um Estado ideal.
O autor visa um príncipe que tenha virtù e que seja capaz de defender
sua cidade contra-ataques vizinhos. Ademais, que governe de forma sábia e
tenha pulsos firmes para lidar com a Fortuna. Na obra O Príncipe, Maquiavel
desenha a um perfil deste príncipe e quais os cuidados que o mesmo deve ter
para manter o Estado e, por conseguinte, ser considerado um bom príncipe.
Ainda que durante anos a principal obra de Maquiavel, O Príncipe,
tenha sido lida como um manual para aquele que pretende governar, nela, ele
procura fazer uma exposição teórica sobre a política. Maquiavel deixa clara
também sua intenção prática e imediata de buscar a unificação da Itália,
incumbindo desta tarefa o príncipe virtuoso que seguisse os ensinamentos de sua
obra. Esta empreita é evidenciada na conclusão dessa obra ao citar Petrarca
(Maquiavel, 1996 p.110): “Virtù contro a furore prenderà l’arme; e fia il
comebatter corto; ché l’antico valore nelli italici cor non è ancor morto” (A

22
virtude tomará armas contra o furor e será breve o combate, pois o antigo valor
ainda não está morto nos corações italianos). Compreendendo sua intenção
exposta ao final da obra, toda sua decorrência agora pode ser apreciada e
compreendida de modo mais fluente. Os ensinamentos de Maquiavel visam um
propósito, quando esse escreve princípios sobre as formas de acender ao poder,
os meios de ação e sua hierarquia, as qualidades que um governante deve ter, a
natureza humana frente a virtù e a Fortuna, como também os limites da ação
política. O filósofo florentino não só apresenta princípios para que o príncipe
possa vir a ser um bom governante, mas são princípios práticos que buscam
atender a um fim político, detalhando condutas com base nos ensinamentos dos
antigos.
Contudo, a obra de Maquiavel não deixa de ser um relevante tratado
teórico. Ainda que voltado para o modelo de principado, pode-se estender as
várias formas de governo e de Estados. Porém, o autor afirma que todos os
Estados podem ser divididos em repúblicas ou principados e deixa claro que
somente tratará dos modelos de principados, pois a obra destinada a república se
trata dos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio (Maquiavel, 1996, p.
5-7).
Maquiavel diz haver duas formas básicas de principados: hereditários
e novos. A partir destes pode surgir um terceiro tipo: principados mistos, são
aqueles conquistados e anexados a um antigo. Os principados novos podem ser
adquiridos de quatro formas: 1) pela virtù; estes dispõem de qualidades que
garantirão segurança e longevidade no governo de seu Estado, estão ali por
serem capazes e devem se esforçar para que o povo comungue desta visão; 2)
pela Fortuna; uma obra do acaso, seja pela morte de algum príncipe, seja por
uma sorte do destino, esse príncipe conquistou este local, entretanto, não há
indícios de que esteja preparado para governar e, portanto, terá muitas
dificuldades em provar ao povo que é qualificado; 3) pela violência acelerada;
este se mostrará forte, tomará em armas para conquistar o principado, mas muito
23
facilmente será odiado por seus súditos, porém, se mantida as precauções, deve
desfrutar das vantagens de ser temido; 4) com o consentimento dos cidadãos,
escolhido para o cargo pela necessidade de mudança. Deste decorre três efeitos:
principado, liberdade ou desordem, dependendo se este príncipe possui a virtù
necessária. (Kritsch, 2001, p.182).
O filósofo florentino nos mostra que estas formas de conquistar um
novo principado estão relacionadas com as formas de mantê-los. Os principados
que forem tomados com armas e virtude são mais fáceis de serem mantidos,
ainda que seja mais trabalhoso obtê-los (Maquiavel, 1991, p. 23-25). Os
principados obtidos pela Fortuna ou por uma exagerada violência têm
consequentemente uma maior dificuldade de serem mantidos (Maquiavel, 1991,
p. 27-33). Por fim, quando conquistados pelo crime, o risco de revolta e de não
manter o principado é constante (Maquiavel, 1991, p. 35-38).
Em seguida, Maquiavel mostra que esta crueldade praticada pode ser
dividida em bem ou mal, uma que seria benéfica de forma geral ao Estado e a
outra prejudicial. A crueldade benéfica se trata daquela executada de uma vez,
na dosagem certa para atingir os objetivos certos, em contrapartida, a crueldade
prejudicial é aquela crueldade descabida, usada em excesso e sem uma dosagem
para um fim específico, desprovida de racionalidade e não justificável
(Maquiavel, 1991, p. 37-38).
Maquiavel expõe sobre as formas de governo dentro dos principados.
Aqueles eclesiásticos e os que são governados por um príncipe, com o auxílio de
alguns ministros, esses sem nenhum poder dentro do governo, há também os
principados em que o príncipe divide seu poder com barões, estes possuem seus
próprios domínios. O principal ensinamento estabelecido aqui por Maquiavel é o
cuidado que se deve ter para com quem está ao lado do príncipe no governo do
Estado, é sempre perigoso e mais difícil de se manter o principado quando o
poder está parcelado e não concentrado inteiramente no príncipe, da mesma

24
forma que o príncipe pode ficar sujeito a seus aliados e ser traído pelos mesmos
(Maquiavel, 1991, p. 43-47).
Percebemos a distinta preocupação de Maquiavel em quais seriam as
melhores formas de se manter o Estado, visto que o mesmo diz ser importante
“um príncipe estabelecer sólidos fundamentos”, as principais bases a serem
estabelecidas em um Estado são “boas leis e boas armas. E como não pode
existir boas leis onde não há armas boas, e onde há boas armas convém que
existam boas leis.” Maquiavel então irá sugerir que a força é a base necessária
para se manter o Estado, mas está deve ser usada da forma correta (Maquiavel,
1991, p. 49).
Ao escrever sobre as forças para se assegurar o Estado, o filósofo
florentino discorre sobre as próprias forças ou as mercenárias, auxiliares ou
mistas. Para Maquiavel, as mercenárias e auxiliares são inúteis e perigosas, um
Estado apoiado nestas forças nunca estaria seguro. Para se manter o Estado de
forma segura é necessário que as forças sejam formadas pelos próprios cidadãos.
Só estes morreriam em nome de seu príncipe e não relutariam em entregar-se ao
máximo no campo de batalha, diferente dos mercenários, seu vigor e astúcia são
ditados pelos valores a eles pagos (Maquiavel, 1991, p. 49). Notamos aqui a
forte influência humanista e dos antigos romanos, sendo esta medida já tomada
anteriormente e então defendida pelo humanismo cívico.
É importante que o príncipe esteja à frente destes exércitos, impedindo
que os capitães dos exércitos possam vir a ter mais forças sobre si. Considerando
isso, Maquiavel escreve: “Deve, pois, um príncipe não ter outro objetivo nem
outro pensamento, nem ter qualquer outra coisa como prática a não ser a guerra,
o seu regulamento e sua disciplina, porque essa é a única arte que se espera de
quem comanda.” (Maquiavel, 1991, p. 59). Fica evidente a relevância dada por
Maquiavel para o cuidado com a guerra. Mesmo em tempos de aparente
calmaria é preciso estar preparado. A ideia é que a paz se trata de um intervalo
entre guerras e a política é a extensão da guerra (Kritsch, 2001, p. 184).
25
Outro tema relevante na construção do jogo político proposto por
Maquiavel é o questionamento sobre o que seria melhor, ser amado ou temido.
Logo o autor aponta que o ideal seria ser amado tanto quanto temido. Em face
de a dificuldade em se ter os dois, é preferível ser temido. Maquiavel nos
apresenta a realidade. O primeiro argumento trata sobre o quanto os indivíduos
são ingratos, simuladores e ambiciosos por dinheiro. Ao refletir sobre política,
estes fatos não podem ser deixados de lado (Maquiavel, 1991, p. 70). Em uma
realidade ideal, em que os indivíduos fossem fiéis e generosos, não haveria
problemas em um príncipe preferir ser amado; entretanto os indivíduos,
principalmente no tocante ao jogo político, são traiçoeiros e o príncipe deve
estar preparado.
Maquiavel também atenta, no segundo argumento para o fato de ser
mais fácil trair um príncipe piedoso do que um que seja temido. Ele afirma que:
“enquanto lhes fizeres bem, todos estão contigo”, mas quando o príncipe
necessitar de algo, todos viram as costas e “o Príncipe, se confiou plenamente
em palavras e não tomou outras precauções, está arruinado.” (Maquiavel, 1991,
p. 70). Tendo conhecimento do teor destas afirmações, pois previa que
questionamentos morais surgissem, Maquiavel busca ser ainda mais claro,
demonstrando que não é prudente seguir cegamente preceitos morais e
subestimar o quão traiçoeiros os indivíduos possam vir a ser. “Pois as amizades
conquistadas por interesse, e não por nobreza e grandeza de caráter, são
compradas, mas não se pode contar com elas no momento necessário”.
(Maquiavel, 1991, p. 70). Isso se deve, segundo Maquiavel, ao fato de que o
sentimento de amor pode facilmente se perder, entretanto, o temor de ser
castigado, este jamais abandona o sujeito.
Tendo compreendido a necessidade de se prezar em ser temido do que
ser amado, Maquiavel salienta que ser temido não é o mesmo que ser odiado.
Para ele é preferível que se seja temido sem ser odiado. Este estado não é difícil
de ser alcançado. Diz ele que “se abstenha de se apoderar dos bens e das
26
mulheres dos seus cidadãos e dos seus súditos, e, mesmo sendo obrigado a
derramar sangue de alguém, poderá fazê-lo quando houver justificativa
conveniente e causa manifesta.” (Maquiavel, 1991, p. 70). Ainda que ao longo
da história Maquiavel tenha sido caracterizado de forma negativa, fica aqui
evidente o teor de seu realismo. Não se trata de um uso descabido da violência.
Isso seria uma atitude tirânica. Mas o bom príncipe deve derramar sangue
apenas quando houver justificativa para tal. A violência exercida, para
Maquiavel, deve ser na dosagem correta, de diferente forma o príncipe passará a
ser odiado e ficará cercado por pessoas que desejam sua morte, tal como assinala
Kritsch (2001, p. 184) “Decisiva, portanto, na argumentação de Maquiavel é a
ideia de que a ordem equivale a violência administrada. É por isso que se pode
dizer ser a violência a condição limite para a vida política.”
Maquiavel identifica dois modos de se combater e um príncipe deve
saber lidar com ambos os modos. O primeiro é próprio do homem, o modo das
leis; o segundo é pela força, característica animal. O modo das leis diz respeito a
astúcia, a inteligência, A persuasão, conhecer seus inimigos e estar preparado a
esquivar-se sabiamente de qualquer armadilha. Por outro lado, o modo da força,
trata-se da força bruta, da coragem, de ser aguerrido e saber se impor diante dos
inimigos, é espalhar o temor com apenas um rugido. Assim Maquiavel (1991, p.
73) compara o modo da força a um leão e o das leis a uma raposa, dizendo:
“precisa, pois, ser raposa para conhecer os laços e leão para aterrorizar os
lobos.”, contudo, o autor lembra que é importante ser leão apenas quando as
circunstâncias assim exigirem, porém, a raposa deve estar sempre alerta, pois
“os que se fizerem unicamente de leões não serão bem sucedidos.” E a respeito
da raposa, se todos os homens fossem bons, este preceito seria mal, mas alerta
Maquiavel que “poder-se-iam dar inúmeros exemplos modernos, mostrando
quantas convenções e quantas promessas se tornaram írritas e vãs pela
infidelidade dos príncipes.” (Maquiavel, 1991, p. 73-74).

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Ainda que o autor dê exemplos e busque ser claro em suas afirmações,
é previsível que tais considerações não seriam facilmente aceitas, tal é o caso
quando diz que “vai tanta diferença entre o como se vive e o modo por que se
deveria viver, que quem se preocupa com o que se deveria fazer em vez do que
se faz aprende antes a ruína própria, do que o modo de se preservar”.
Exemplificando esta frase. Maquiavel continua: “e um homem que quiser fazer
profissão de bondade é natural que se arruíne entre tantos que são maus.”
(Maquiavel, 1991, p.63). Como já mencionado anteriormente, se todos os
indivíduos fossem bons, ideias como essas poderiam ser condenadas sem que
houvesse dúvidas, mas na realidade, entre tantos que são maus, esses preceitos
devem ser tomados em consideração, ainda mais por um príncipe que deseja ser
virtuoso e deve ser precavido.
Kristsch aponta uma discussão que é muito presente nos autores
posteriores a Maquiavel e em seus comentadores: “o que aparece aqui com
clareza, portanto, é a possibilidade de um conflito entre a ética tradicional do
indivíduo, especialmente a ética cristã, e as exigências da ação política.” (2001,
p. 185). As críticas direcionadas a Maquiavel são baseadas especialmente na
ética cristã, entretanto, o próprio autor afirma que a política tem suas próprias
exigências. Como visto, a política exige determinadas ações em determinados
momentos e locais, cada circunstância pede uma ação diferente. Desta forma,
Maquiavel entende que não cabe a política ser regida por uma ética universal e
valores individuais.
Maquiavel entende que a moralidade existente na política deva ser a
do bem comum. Deve existir uma pureza nas intenções do príncipe, ainda que
este tenha ações violentas; estas devem ser compreendidas se a sua finalidade
for o bem do Estado. Contudo, é importante lembrar que esta violência deve ser
dosada, pois se demasiado sangue for derramado, de nada adiantará as intenções
do príncipe. Pois o povo só terá observado os excessos cometidos. “Todos vêem
o que tu pareces, mas poucos o que és realmente”. (Maquiavel, 1991, p. 75).
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Desta forma Kristsch acrescenta: “para o homem político, portanto, o importante
é alcançar os resultados almejados, desde que não se ultrapasse os limites da
moralidade corrente, isto é, os limites do que a sociedade está disposta a aceitar
como lícito.” (2001, p.186). Para Maquiavel, a política se trata de uma ciência,
tal qual ficou marcado o período renascentista pelo domínio das ciências
naturais. A política caracteriza-se pelo domínio da natureza humana. É preciso
compreender os indivíduos para compreender a política. Em Maquiavel, a
política tem suas próprias exigências, é um jogo de poderes onde os príncipes
estão inseridos, cujo objetivo é buscar o bem e a prosperidade do principado.

2.3 A república

Em uma Itália que parecia reconhecer apenas uma forma de governo,


o modelo de monarquia hereditária, “Tão desejosos de liberdade” viram no
modelo republicano uma forma de governo mais justa. Esta forma de governo
que tinha como líderes cônsules no lugar dos príncipes, líderes estes que eram
trocados anualmente, afim de evitar que se corrompessem e pudesse se preservar
a liberdade (Otto, Apud, Skinner, 1996, p. 25). Movimento esse que inicia em
1085 estende por todo território italiano que no fim do século XII tinha nas
principais cidades o modelo republicano ativo. Contudo, ainda que esse modo de
governo lhes garantisse uma independência, era preciso resistir às investidas dos
imperadores germânicos. Algo difícil uma vez que a Itália se encontrava
dividida em cidades-repúblicas, porém, as cidades não desejavam de modo
algum retornar ao império e assim resistiram por séculos. O ponto fundamental e
em comum entre as cidades-repúblicas era o desejo de se garantir a liberdade,
essa liberdade que era definida de dois modos bem claros e distintos como
observa Skinner: “direito a não sofrer qualquer controle externo de sua própria
vida política – ou seja, a afirmação de sua soberania; a outra era a ideia do

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direito, consequente do primeiro, a se governarem conforme entendessem
melhor – ou seja, a defesa de suas constituições republicanas.” (Skinner, 1996,
p. 26-29).
Contudo, como aponta Skinner (1996, p. 29-31), essa defesa pela
independência e pela liberdade tinha uma grande fraqueza que prejudicava as
cidades-repúblicas. Essa determinante defesa pela liberdade carecia de qualquer
respaldo legal. “Desde que o estudo do direito romano renascera nas
universidades de Ravena e Bolonha, em fins do século XI, o código civil
romano passou a servir como a base em que se enquadravam a teoria e a prática
da lei por todo o Santo Império romano” (Skinner, 1996, p. 29). Dessa forma, o
império usou desse argumento para justificar suas investidas diante das cidades,
principalmente ao serem respaldados pelo Decreto de Roncaglia em novembro
de 1158. Tal decreto surge das reuniões convocadas pelo imperador Frederico
Barbarossa (1122-1190), intituladas Curia Roncagliae. Ali os principais juristas
de Bolonha estiveram reunidos e deram ao imperador totais poderes sobre as
cidades. Skinner traduz que esses juristas definiram o imperador como
“governante supremo, em todos os tempos, sobre todos os seus súditos de toda a
parte” (Skinner, 1996, p. 31). Assim, para garantir a liberdade, é preciso
compreender que a necessidade de não só ter seus líderes e enfrentar o exército
do Império, mas de constituir uma independência também através das leis. Essa
nova perspectiva surge com Bartolo de Saxoferrato no início do século XIV,
com uma importante contribuição, seu trabalho não teve o papel apenas “de dar
início a uma revolução no estudo do direito romano [...], mas também o de
avançar decididamente no rumo da ideia, que caracterizará a modernidade, de
vários Estados soberanos, separados entre si e independentes do Império.”
(Skinner, 1996, p. 31).
Embora bons argumentos para a defesa da independência fossem
elaborados, as cidades-repúblicas enfrentaram diversas dificuldades. Visto, pois,
elas tiveram de resistir aos ataques da igreja que buscava ter o papa como o
30
grande líder da Itália, como também de imperadores que tentavam ter para si os
territórios italianos para uma reestruturação do antigo império romano. Em meio
a essas disputas, esse desejo pela liberdade nas cidades se intensificou ainda
mais. Quanto mais se buscavam tomá-las à força, mais as cidades defendiam sua
independência. Assim aponta Skinner ao mencionar as cidades que se
destacaram por essa defesa na região da lombarda e toscana: “algumas cidades
lombardas e toscanas começaram a elaborar uma ideologia política que fosse
capaz de legitimar suas contestações aos poderes e imunidades que a igreja
então pleiteava”. Em seguida Skinner aponta as cidades que por esse movimento
se destacaram: “isso se deu basicamente em Florença, que se proclamou guardiã
das ‘liberdades toscanas’, e em Pádua, que desde a restauração de seu governo
comunal, em 1256, aparecia como a maior defensora dos valores republicanos
na Lombardia” (Skinner, 1996, p. 37-38).
Temos na história de Florença uma marca muito significativa de um
governo republicano, uma organização que durou por mais de um século até que
os Médici assumissem o poder nos Quatrocentos. Para compreender com
exatidão como era estruturado esse modelo de república florentina, adotamos a
descrição de Paul Larivaille; a hierarquia política que governava Florença era
dividida em três grupos, a senhoria, os gonfaloneiros e os anciães. Todas as
decisões deveriam ser aprovadas pela maioria desses três grupos, que era
composto ao todo, por cento e cinquenta homens anualmente. Cada qual tinha
um tempo muito curto no cargo; os membros da senhoria permaneciam por dois
meses, os gonfaloneiros por quatro meses e os anciães, três meses. A senhoria
que compunha a suprema magistratura, tinha diretamente nove membros, mas
também contava com a assessoria dos outros dois conselhos, dezesseis membros
pelos gonfaloneiros e doze anciães. Esse formato de administração que
distribuía os poderes e mantinha os cargos por um curto período de tempo,
permitia que nenhuma indivíduo pudesse se apoderar do cargo por estar
demasiado tempo nele, tão pouco corriam o risco de caírem em corrupção,
31
contudo, esse modelo administrativo causava, por vezes, uma demora na tomada
de decisões, o que em situações adversas poderia ser prejudicial. Além desses
três principais grupos, ainda existiam uma série de outros conselhos e cargos
isolados que eram subordinados a suprema magistratura. Entre esses diversos
conselhos, compunha uma assembleia eleita constituída por membros das
grandes famílias. Um grupo de seis membros que atuavam como um tribunal de
comércio. Havia também o conselho de guarda, composto por oito membros
responsáveis pela segurança do Estado. Outro grupo de dez membros era
designado para assuntos militares e relações diplomáticas em tempos de guerra.
Um determinado grupo também era responsável pela administração das finanças
de Florença. Ainda existiam os cônsules, que representavam os comerciantes e
artesãos. O podestà era um cargo comumente ocupado por algum estrangeiro
que seria o responsável pela administração da justiça. Por fim, o cargo de
capitão do povo, que era responsável por garantir a defesa dos interesses do
povo junto ao governo.
Após detalhar sobre a forma de administração que a república da
cidade de Florença era constituída, Larivaille descreve a forma que o legislativo
atuava dentro do sistema republicano, suas características e desdobramentos. O
legislativo dependia de duas assembleias eleitas a cada quatro meses, o
Conselho do Povo e o Conselho da Comuna, esses eram responsáveis por
aprovarem os projetos de lei quando obtida a maioria de dois terços. Contudo,
quando fosse necessário, os conselhos poderiam convocar assembleias
extraordinárias para a tomada de decisões urgentes. De todo modo, o sistema
florentino era interligado e os conselhos dependentes entre si, de tal modo que,
era possível haver conflitos entre os membros de diferentes conselhos, mas o
principal objetivo desse sistema republicano, em tese, era atingido, o de garantir
a liberdade republicana com a constante rotatividade dos cargos (Larivaille,
1988, p. 17-18).

32
Em seguida, Larivaille escreve que, ainda que se fale em república,
esse modelo vigente em Florença era pouco democrático. Podemos dividir esse
processo de seleção dos indivíduos que ocupariam esses cargos em três
momentos. Primeiramente, os nomes são indicados pelos gonfaloneiros, em
seguida, dentre esses nomes, era organizada uma eleição, a qual só detinham
direito ao voto homens que estivessem registrados em corporações, portanto,
uma pequena parcela da sociedade. Os nomes que obtivessem maioria de dois
terços eram destacados e passavam por uma triagem, organizada por
funcionários específicos que eliminavam aqueles indivíduos que não se
enquadrassem nos parâmetros já determinados, como idade mínima, dívidas e
parentesco com funcionários das eleições, entre outros. Por fim, após esses
passos, os nomes que restassem eram colocados em bolsas e então ocorria a
etapa final da seleção, um sorteio (Larivaille, 1988, p. 18-20). Contudo, é
imprescindível notar que os três momentos são pouco democráticos, desde a
escolha pessoal do nome por parte do gonfaloneiro que provavelmente era
carregada por interesses, passando por uma eleição com a participação mínima
da sociedade e culminando em um sorteio que na prática os candidatos não
detinham as mesmas chances, visto que os nomes de membros das corporações
mais poderosas eram colocados em bolsas diferentes dos membros de
corporações menores, destinadas aos artesãos.
Percebe-se assim, que todo esse processo deixava de fora o restante da
população. Desse modo, o povo então não ofereceria nenhuma ameaça ao
governo e todo o processo, que era gerido pelos membros das grandes
corporações, sendo possível que estes se organizassem para tramar em seu favor
e atingir objetivos próprios. Não obstante, foi dessa forma que a partir de 1433 a
família Médici consegue retornar ao poder e governa conforme suas próprias
convicções, partindo de uma ação interna nesse sistema de eleição, quando
membros da família dentro do sistema compactuaram para a acessão da família
ao poder de forma despótica. (Larivaille, 1988, p. 18-20).
33
Notamos até aqui parte das dificuldades enfrentadas pela república
florentina, na sua maioria, movida por interesses pessoais de homens desejosos
pelo poder. Contudo, isso foi possível, em grande parte, por ter respaldo de boa
parcela da sociedade, que desconhece os reais motivos daquele que busca o
governo e tão pouco do que é melhor para a cidade, como observa Maquiavel
“um cidadão perverso não pode ter êxito numa república que não esteja
corrompida” (Maquiavel, 2008, p. 331). Sendo assim, ainda que um indivíduo
tente contra a república buscando poder, se essa não for corrupta – isto é, que
cada cidadão sabe do seu papel e reconhece o que é melhor para toda a cidade e
não somente para si, como também busca atender os interesses da cidade –
nenhum mal intencionado teria sucesso em sua empreitada, já que a própria
cidade se aperceberia ameaçada e que aquelas ações preteridas não seriam
benéficas. Entre tantos motivos para a derrocada da república florentina,
podemos dizer que possivelmente, um desses tenha sido a falta de conhecimento
do povo em relação a sua participação e o que seria melhor para a cidade e o
outro se daria pelo excesso de desejos pessoais colocados a frente dos desejos da
cidade nas escolhas dentro do sistema político de Florença, dando espaço para
que insurgissem homens mais desejosos de poder do que da liberdade
republicana. Em resumo, o que se tinha era uma república corrompida, portanto,
a falha desse sistema político não consiste no modelo republicano proposto, mas
na corrupção que ali se instalou pelos indivíduos.
A base fundamental de toda república é a união do povo. Decerto, essa
união também depende de um fim em comum, o bem do povo. Para tanto é
preciso que o povo saiba o que lhe fará bem, precisam de um mínimo de
instrução e aqueles que estão coordenando a república devem ter conhecimento
de que como diz Maquiavel, um povo que permanece unido é forte, por sua vez,
se os indivíduos forem isolados se tornam fracos. “O povo que deseja evitar tais
perigos deve escolher um chefe que o dirija, o mantenha unido, e o defenda. Foi
o que fez a plebe quando abandonou Roma depois da morte de Virgínio,
34
nomeando vinte tribunos para zelar pela segurança.” (Maquiavel, 2008, p. 178).
Seguindo o pensamento de que um governo republicano só é possível pela união
do povo, Maquiavel ainda sustenta que o povo é mais sábio e constante do que
um príncipe e isso seria um dos motivos para o modelo republicano ser mais
indicado do que o monárquico hereditário. O autor salienta que tanto os
príncipes quanto a multidão podem errar, mas não se tem “o direito de criticar o
caráter da multidão, como dos príncipes; todos estão sujeitos aos mesmos erros
quando não há freio que modere as paixões. [...] Acusar ao mesmo tempo uns e
outros é dizer uma meia verdade: mas comete um equívoco quem excetua estes
últimos.” (Maquiavel, 2008, p. 180). Maquiavel segue argumentando sobre a
importância do povo, sendo mais confiável que um príncipe.

Um povo que tem o poder, sob o império de uma boa constituição,


será tão estável, prudente e grato quanto um príncipe. Poderá sê-lo
mais ainda do que o príncipe, reputado pela sabedoria. De outro lado,
um príncipe que se liberou do julgo das leis será mais ingrato,
inconstante e imprudente do que o povo. A diferença que se pode
observar na conduta de um e de outro não vem do caráter –
semelhante em todos os homens, e melhor no povo: provém do
respeito às leis sob as quais vivem, que pode ser mais ou menos
profundo (MAQUAIVEL, 2008, p. 180).

Aqui, vale ressaltar a questão da corrupção na república florentina,


uma vez que os indivíduos que vinham a participar da escolha para os cargos
eram aqueles que de certo modo estavam envolvidos ou possuíam outros cargos
de poder e não o povo propriamente dito, a respeito desse modo de escolha,
Maquiavel é claro:

Também na escolha de magistrados o povo procede melhor do que o


príncipe. Jamais se poderá persuadir o povo a elevar a uma alta
dignidade um homem corrupto e marcado pela infâmia dos seus
costumes – o que se pode levar um príncipe a fazer, por mil modos.
Quando o povo adquire horror a uma instituição, este sentimento

35
perdura séculos – uma constância desconhecida dos príncipes
(MAQUIAVEL, 2008, p. 181).

Na obra Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio,


Maquiavel usa diversas vezes os exemplos do antigo império romano,
principalmente no tocante ao povo, justamente para salientar o modo pelo qual:
“os Estados de governo popular fazem, em bem menos tempo, conquistas mais
extensas do que aqueles governados por um príncipe” (Maquiavel, 2008, p.
181). Maquiavel também apresenta a importância de o povo ter um indivíduo
sábio para liderá-los, algo que não se torna possível para um príncipe. “As
palavras de um homem sábio podem facilmente fazer retornar ao bom caminho
um povo perdido, entregue à desordem; contudo, nenhuma voz ousa elevar-se
para esclarecer um príncipe mau; para ele só existe um remédio – a espada.”
(Maquiavel, 2008, p.182). Por fim, o filósofo florentino encerra seu
enaltecimento do povo ante o príncipe dizendo:

A crueldade da multidão se dirige contra aqueles que se suspeita


quererem usurpar o bem geral; a crueldade do príncipe persegue todos
os que considera inimigos do seu bem particular. Mas a opinião
desfavorável que se faz do povo tem sua raiz na liberdade com que se
fala mal sem temor, quando é o povo que governa. Sobre os príncipes,
ao contrário, só se pode falar correndo mil perigos, cercando-se de mil
cuidados (MAQUIAVEL, 2008, p. 182).

Notamos assim, que o modelo republicano, onde é possível que o


povo governe, detém muito mais segurança e liberdade diante o modelo
monárquico ao qual todos são reféns de um príncipe, esse que pode levar a
cidade pelo caminho da ruína sem que ninguém possa impedi-lo. Entretanto,
esse governo depende primordialmente do seu povo e como buscamos
apresentar nesse trabalho, esse povo deve ser instruído de uma boa educação.
Assim como se acreditava que era preciso preparar os príncipes para que
pudessem governar, é preciso também preparar o povo para que este seja
36
governo de si e esteja constantemente preparado para lidar com as mudanças da
Fortuna. Só assim seria possível se manter um governo republicano, o dito bom
governo. E apesar das referências históricas que remetem a república florentina,
Maquiavel pondera sobre:

Florença é um bom exemplo: Originalmente, foi dependência do


império romano; acostumada a viver sob um senhor, permaneceu
longamente em situação servil, sem se ocupar com sua própria
existência. Tendo chegado mais tarde a independência, desenvolveu
uma constituição própria; mas as novas instituições, misturadas às
antigas, que não valiam nada, não surtiram efeito. Foi assim que,
segundo tradição segura, durante duzentos anos a cidade jamais teve
um governo que lhe fizesse merecer o nome de república.
(MAQUIAVEL, 2008, p. 156).

2.4 O bom governo

Para compreender com precisão a ideia de um bom governo em


Maquiavel, não podemos considerar a obra O Príncipe unicamente, dado ao já
mencionado contexto em que ela é elaborada e os propósitos da mesma, de
modo geral, para agradar a família Médici. Essa família que conduzia Florença
sob um regime monárquico, algo que na sua posterior obra Comentários sobre a
primeira década de Tito Lívio, Maquiavel demonstra não concordar. Ao longo
desta obra, ele defende o modelo republicano de se governar, um governo do
povo; e esse seria, em linhas gerais, o bom governo para Maquiavel. A defesa
feita pelo autor por esse modelo é pelo motivo de ver nele a maior garantia de
liberdade, dado que este é o objetivo do povo. Ele entende que, um povo que
governa a si, governará para a liberdade. “O desejo que sentem os povos de ser
livres raramente prejudica a liberdade, porque nasce da opressão ou do temor de
ser oprimido.” (Maquiavel, 2008, p. 32).
Num bom governo para Maquiavel, ainda podemos sugerir o direito
de expressão, de poder acusar aqueles que atentam contra a liberdade sem serem
censurados, uma medida direta e eficaz para garantir a liberdade. “Não se pode
37
dar aos guardiões da liberdade num Estado direito mais útil e necessário do que
o de poder acusar, perante o povo, ou diante de um magistrado ou tribunal, os
cidadãos que tenham atentado contra esta liberdade.” (Maquiavel, 2008, p. 41).
Contudo, essas acusações deveriam ser embasadas em provas, do contrário,
aquele que acusa sem provas é punido.
Também é imprescindível que a sucessão no poder seja de indivíduos
virtuosos. É preciso escolher os melhores para ocuparem os cargos no governo,
de modo a garantir que este não se corrompa e nem a cidade sinta sua liberdade
ameaçada por más escolhas. “O reinado sucessivo de dois príncipes virtuosos
tem resultados dos mais felizes; e como as repúblicas bem organizadas tem
necessariamente sucessões virtuosas, são grandes os seus êxitos e conquistas.”
(Maquiavel, 2008, p. 81).
Maquiavel, desde O Príncipe, alerta para a importância de a república
ter seu exército próprio, sem precisar recorrer a milícias corruptas e pouco
confiáveis, é preciso que um Estado tenha um exército formado por seus
cidadãos e não existem desculpas para que tal medida não seja tomada:

às repúblicas modernas que não dispõem de soldados próprios, para


ataque ou para a defesa, deveriam corar, vendo no exemplo de Tulo,
que este erro não pode ser atribuído à falta de homens capacitados
para a guerra; a culpa é exclusivamente dos governantes, que não
souberam treinar seus cidadãos como soldados (MAQUIAVEL, 2008,
p. 83).

O exemplo romano que Maquiavel se utiliza é do príncipe Tulo, que


quando subiu ao poder encontrou uma Roma que estivera quarenta anos em paz,
portanto, seus cidadãos não tinham nenhuma experiência com armas. Desejoso
de marchar rumo à guerra, esse não recorreu às milícias, mas preparou seus
cidadãos e dali obteve soldados magníficos e confiáveis. Quando o exército é
composto por cidadãos, no lugar de milícias, eles não irão marchar por dinheiro,
mas pelo amor a seu Estado, para defender sua liberdade e suas famílias.

38
Um dos modos de se combater a corrupção em uma república
apontado por Maquiavel é de recompensar e punir cidadãos independente de
quem sejam e do que possam ter feito em outros momentos, buscando sempre
agir com justiça para cada ação:

Num império bem governado, nunca os serviços prestados por um


cidadão podem apagar um crime. As recompensas se destinam a
premiar boas ações; os castigos, a punir as más. Quando um cidadão é
recompensado, e depois se comporta mal, deve ser punido sem
consideração pelo que fez de bom. Quando esta regra é observada
escrupulosamente, o Estado mantém por muito tempo a liberdade; em
caso contrário, logo se arruína (MAQUIAVEL, 2008, p. 89).

Ainda que Maquiavel apresente certos aspectos que devam ser levados
em consideração para a constituição de um bom governo, o mais importante é
estar preparado para lidar com as dificuldades que encontrarem, com as viradas
da Fortuna. Para isso, é importante conhecer a história, basear-se nos bons e
maus exemplos, de modo que todas as ações apontadas pelo autor serão naturais
para aqueles que as comprovam através da experiência.

O estudo da história ensinará também como se pode fundar um bom


governo, pois todos os imperadores que subiram ao trono por direito
de nascença foram maus, com a exceção de Tito; os adotados como
reis foram todos excelentes, como se pode ver pelos cinco que se
sucederam, de Nerva a Marco Aurélio. Que o leitor os compare com
seus antecessores e sucessores, escolhendo depois aqueles sob quais
preferiria viver como súdito (MAQUIAVEL, 2008, p. 54).

39
3. Referências explícitas ao tema da educação no pensamento
político de Maquiavel

Nesse Capítulo iremos expor oito passagens em que Maquiavel faz


menção direta à educação, contidas nas seguintes obras: Comentários sobre a
primeira década de Tito Lívio, O Príncipe, Da Arte da Guerra e Capítulo – Da
Ambição. De modo geral, quando Maquiavel se refere ao termo educação é na
forma de instrução, de busca literária, pensando na vida pública e em como seria
a melhor forma de mediar as dificuldades dos indivíduos, isso com notável carga
de influência advinda dos humanistas, os quais Maquiavel tecia críticas
direcionadas aqueles que propunha apenas a contemplação e distanciar-se da
prática política, mas esses humanistas também o inspiravam, contribuindo para a
forma como o autor trabalharia suas obras.

3.1 O movimento de educação humanista no século XV

A relação que existiu entre a política na Itália renascentista e os


autores humanistas é muito estreita, visto os escritos principalmente no tocante à
liberdade, eles contribuíram de forma abrangente, tanto no campo da política
como no avanço da literatura. Tamanha influência pode ser observada em
Maquiavel, como Claude Lefort destaca: “não seria possível estudar o problema
republicano em Maquiavel sem levar em consideração que ele encontrou em
seus predecessores a fonte inspiradora de suas reflexões” (Lefort, Apud
Bignotto, 1991, p. 9-10). Para podermos compreender como se pensava a
educação humanista no século XV, é necessário ter em conta como Petrarca
(1304 – 1374) delineava o que ficaria conhecido como humanismo cívico. Como
anteriormente já destacado, na Itália dos Quatrocentos se prezava por um estudo
da filosofia e da retórica, mas Petrarca salientava que “o objetivo final do
processo de educação, porém, não era o de formar um sábio contemplativo, mas
40
um homem capaz de expressar publicamente seu saber.” Ao interpretar Cícero,
Petrarca “também pensava, em oposição ao formalismo dos pensadores de Paris,
que a filosofia moral era essencial ao desenvolvimento da virtude.” (Bignotto,
1991, p. 11).
Como observa Bignotto, os humanistas viam a retórica como uma
ligação entre os clássicos e a ação republicana. Obtinham a experiência dos
clássicos, o aprendizado e executavam uma ação participativa no modelo
republicano pela retórica, no diálogo entre os indivíduos. O processo
republicano, aos moldes gregos, era construído pelo diálogo, sendo esses
estudos uma boa fonte para a elaboração argumentativa, propondo novas
interpretações, Petrarca, “usando dos recursos fornecidos pela gramática e pela
filologia, escrevia cartas a Cícero e propunha novas leituras de seus escritos, ele
não o fazia simplesmente por gosto literário, mas porque essa ‘comunicação’
com o passado era fonte de uma nova visão da vida política.” (Bignotto, 1991, p.
15). Os humanistas fomentaram grandes contribuições para o conhecimento,
entre elas a resolução de uma contradição que se apresentava acerca dos
indivíduos particulares e o conhecimento.

Os humanistas defrontar-se-iam, no entanto, com uma contradição


interessante. Se os homens só existem como seres particulares, eles
falam sempre de um ponto de vista particular. Como forjar, então, um
conhecimento que não seja a pura expressão das individualidades?
Como evitar ao mesmo tempo as tentações do relativismo e o realismo
do pensamento medieval? Eles encontraram a resposta a essa
dificuldade mostrando que a política não se reduzia à retórica que,
sendo a via de acesso ao mundo público, não podia ser reduzida a
ideia de que os homens se comunicam continuamente na cidade.
Conversar com os antigos representava, pois, uma escolha
metodológica e política (BIGNOTTO, 1991, p.16).

A escolha metodológica se caracterizava pela forma que os textos


passaram a ser abordados. Distantes de serem enaltecidos como sagrados ou
objetos de simples contemplação, eles eram agora um conhecimento antigo que
se apresentava e ao qual poderia ser dado continuidade; um conhecimento que
41
iria além da contemplação dos escritos, ganharia voz, novas vestimentas e por
vezes, aprimoramentos. Os humanistas seriam responsáveis por essa tarefa de
dar visibilidade a esses textos e apresentar uma aplicabilidade contemporânea,
trazendo-os à discussão e dando ritmo ao avanço do conhecimento. A escolha
política é puramente pela sua ação, essa ação comunicativa da vida social se
trata de uma ação que se constitui política pela relação com o outro. A partir de
então, a revolução do conhecimento começa a ganhar forma no que marcaria o
contexto renascentista italiano: “o grande salto foi mostrar que esses universais
podiam ser conhecidos em um contexto particular, através de obras particulares,
no contato com homens particulares.” (Bignotto, 1991, p. 16). Em outras
palavras, os indivíduos daquela época passam a adotar a definição de Protágoras
como o homem sendo a medida de todas as coisas. Esse momento do surgimento
do humanismo cívico é assim apresentado por Garin:

Eram homens para os quais o antigo não representava um campo de


pesquisa erudita e curiosa, mas um paradigma. A humanidade clássica
não só havia alcançado uma rara plenitude e harmonia de vida, mas
havia expressado através de obras de arte e de pensamento, perfeitas
quanto a própria vida. Entrar em contato com estas, e por meio delas
com os espíritos que nelas se expressam, significava dar início a um
colóquio ideal com homens completos, aprender com eles o
significado de uma vida completa. Abrir-se humildemente a estas
obras, e, por amor, transformar-se nelas, significava renovar-se a si
mesmo através de uma grande riqueza humana, reconquistando para si
todos os tesouros do espírito (GARIN, Apud BIGNOTTO, 1991, p.
16).

Compreendendo essa formação humanística, podemos encontrar em


autores como Salutati, Bruni e Garin, críticas que reforçam essa caracterização
humanista, da retórica como uma ação política e intimamente ligada com o
conhecimento, não estando retidos apenas a literatura e contemplação, mas um
saber que é preciso expressá-lo e praticá-lo. “É absurdo falar consigo mesmo,
examinar questões na solidão, [...] e depois, no convívio com os outros homens,
calar-se como se nada soubesse; procurar com grande esforço o que é de pouca
42
utilidade e abandonar o coração ligeiro o que é benéfico para muitos.” (Garin,
Apud Bignotto, 1991, p. 19). Compreendemos assim que essa educação para a
ação nega qualquer omissão, é preciso se posicionar, se expressar e assim,
consequentemente, contribuir na vida pública.

3.2 O lugar da educação na filosofia de Maquiavel

Podemos encontrar nas obras de Maquiavel algumas referências


explícitas ao termo educação, tornando possível apresentar as passagens em que
o termo educação aparece e de que modo este conceito era apresentado pelo
autor em suas obras. Para esta análise direta das passagens tomamos as obras
Comentários Sobre a Primeira Década de Tito Lívio, Da Arte da Guerra e
Capítulo – Da Ambição.
Logo na introdução dos Comentários Sobre a Primeira Década de
Tito Lívio Maquiavel observa um severo problema entre os indivíduos nas
cidades, de que para gerir uma cidade, os mesmos não recorrem aos
ensinamentos passados, diferentemente de outras áreas.

Com maior espanto ainda vejo que, nas causas que agitam os cidadãos
e nos males que afetam os homens, sempre se recorre aos conselhos
que agitam os cidadãos e nos males que afetam os homens, sempre se
recorre aos conselhos e remédios dos antigos. As leis, por exemplo,
não são mais do que sentenças dos jurisconsultos pretéritos, as quais,
codificadas, orientam os modernos juristas. A própria Medicina não
passa da experiência dos médicos de outros tempos, que ajudam os
clínicos de hoje a fazer diagnósticos. Contudo, quando se trata de
ordenar uma república, manter um Estado, governar um reino,
comandar exércitos e administrar a guerra, ou de distribuir justiça aos
cidadãos, não se viu ainda um só príncipe, uma só república, um só
capitão, ou cidadão, apoiar-se no exemplo da Antiguidade
(MAQUIAVEL, 2008, p. 17).

Toda a obra Comentários Sobre a Primeira Década de Tito Lívio se


baseia nessa citação, um caminho a ser trilhado para demonstrar a importância

43
da educação em relação a se governar, um estudo da história, aprendendo com a
experiência dos antigos para melhor lidar com as atuais adversidades. E visto
essa dificuldade, Maquiavel comenta que “A causa disto, na minha opinião, está
menos na fraqueza em que a moderna religião fez mergulhar o mundo, e nos
vícios que levaram tantos Estados e cidades da Cristandade a uma forma
orgulhosa de preguiça, do que na ignorância do espirito genuíno da história.” 1
(Maquiavel, 2008, p. 17). O que se entende disso é que não basta a
contemplação dos fatos históricos, é preciso superar esta inércia e praticar um
estudo ativo, apenas com uma preparação poderá se entender realmente o que a
história pode nos ensinar, pois uma fraca educação fara com que surjam
julgamentos imprecisos acerca desses fatos históricos.
Outro trecho importante nos Comentários Sobre a Primeira Década
de Tito Lívio é no capítulo quatro do livro um, ao falar sobre a importância da
desordem dentro de um governo, desordem essa afim de exigir boas leis.
Maquiavel menciona a educação como parte importante da estrutura, “pois os
bons exemplos nascem da boa educação, a boa educação das boas leis, e estas
das desordens” (Maquiavel, 2008, p. 31, grifo nosso). Aqui Maquiavel
apresenta uma correlação entre os termos e como um depende do outro. Assim
como Ames sugere, ocorre uma relação cíclica: “tão importante quanto o
condicionamento recíproco entre educação e lei, é a circularidade entre os quatro
elementos presentes no fragmento acima: exemplos, educação, leis e tumultos.”
(Ames, 2008, p. 146). Dessa forma, a educação se torna uma engrenagem
fundamental para o funcionamento de um bom governo atuando de modo
circular em quatro momentos: a) os cidadãos, através das desordens, buscam as
boas leis; b) surge destas boas leis uma boa educação; c) essa educação forma
bons cidadãos; d) cidadãos esses que darão o bom exemplo exigindo boas leis
por meio das desordens, quando se fizerem necessárias. Essa estrutura é base

1
Aderimos a interpretação contida no artigo de José Ames Maquiavel: a formação do bom cidadão.
2008. Onde na citação a “moderna religião” é compreendida como educação.
44
para a configuração do bom governo na teoria política maquiaveliana, com a
participação popular para constituir a república e tendo seus cidadãos uma
educação para a liberdade, não permitirão que a cidade seja corrompida.
Já no livro segundo capítulo dois dos Comentários Sobre a Primeira
Década de Tito Lívio, Maquiavel observa que:

Quando se considera por que os povos da antiguidade amavam a


liberdade mais do que os da nossa época, parece-me que a razão é a
mesma que explica por que hoje os homens são menos robustos – o
que se relaciona, a meu juízo, com a diferença entre a nossa educação
e a dos antigos, e a diferença, igualmente grande, entre a nossa
religião e a dos antigos (MAQUIAVEL, 2008, p. 199, grifo nosso).

Neste ponto, Maquiavel faz três comparações acerca dos seus


contemporâneos para com os antigos. Na primeira, ao comparar a robustez dos
homens com seu amor à liberdade, Maquiavel se refere a simples questão da
prática, quando se exercita o corpo, o mesmo se torna robusto, de igual forma ao
se exercitar a liberdade, os indivíduos irão valorizá-la, mas como já mencionado,
os indivíduos de seu tempo foram acarretados pela preguiça advinda de uma má
educação, sem a prática da liberdade, não lhe dão o devido valor e a perdem
com facilidade. Na segunda comparação, entre a educação dos antigos vide a de
sua época, em linhas gerais, caracteriza-se pela importância da liberdade, como
aborda Sêneca em Da Clemência, seguindo o que Cícero apresenta nos De
Officiis, a liberdade é tida como uma virtude pelos humanistas clássicos
(Skinner, 2012, p. 53). Por fim, a terceira comparação. Entre as religiões, temos
frente a frente pagãos e cristãos, Maquiavel apresenta no decorrer do livro que
as religiões pagãs incitavam os indivíduos a se superarem, buscarem ser
virtuosos pelas suas honras. Já o cristianismo instaurado naquela época gerava
um certo conformismo, uma má educação que tornava os indivíduos
preguiçosos, aceitando qualquer desagrado trazido pela Fortuna, confiando
unicamente na graça e na esperança de que o melhor lhe viria numa vida após a
45
morte. Isso pode ser observado quando o autor afirma que “nossa religião,
mostrando a verdade e o caminho único para a salvação, diminuiu o valor das
honras deste mundo. Os pagãos, pelo contrário, que perseguiam a glória
[considerada o bem supremo], empenhavam-se com dedicação em tudo que lhes
permitisse alcançá-la.” (Maquiavel, 2008, p. 199). De tal modo, Maquiavel
apresenta como a ação dos indivíduos está diretamente ligada a educação ao
dizer que:

É o que acontecerá com todos os que se comportarem deste modo; a


insolência nos tempos felizes e a baixeza na adversidade se originam
na maneira de viver e na educação recebida; se esta educação for
frívola e não incutir a coragem, produzirá homens deste tipo; se for
diferente, terá resultado diverso: homens que, tendo um conhecimento
mais genuíno deste mundo, não se regozijam tanto com o bem, nem se
deixam vencer facilmente pelo mal (MAQUIAVEL, 2008, p. 394).

Com base na supramencionada passagem, Ames faz uma importante


observação no que se refere a ligação da educação para a formação de um bom
cidadão:

A virtude cívica é intrinsicamente ligada à educação. Não são


qualidades que o homem porta por nascimento, mas são cultivadas
nele através de um processo formativo. A educação pode tanto formar
homens dotados às virtudes imprescindíveis para ser um bom cidadão
quanto pode fazer dele uma pessoa fraca e arrogante. De alguma
maneira os homens são o que a educação fez deles. Ela molda o modo
de ser dos homens (AMES, 2008, p. 143).

O papel dessa educação dentro da teoria política maquiaveliana é bem


resumido pelo próprio Ames, em seu texto ao dizer que “a educação é pensada
por Maquiavel como uma força destinada a controlar a desordem inerente ao
movimento tanto do desejo quanto da natureza impedindo os efeitos deletérios
daquele sobre a vida política.” (Ames, 2008, p. 137). A educação é fundamental
para manter os indivíduos no curso correto das coisas, de modo que através de

46
uma boa educação estarão melhor preparados para buscar as virtudes
imprescindíveis e poderão lidar da melhor forma com as desordens da natureza.
Podemos observar a importância da educação para a manutenção de
um bom governo no livro terceiro capítulo trigésimo dos Comentários Sobre a
Primeira Década de Tito Lívio quando Maquiavel sugere que sem a boa
educação que proporciona aos indivíduos alcançar as virtudes um Estado em
ruína tenderá a permanecer nestas dificuldades, quando ali todos estão
acostumados a viver em corrupção. “onde a educação não lhes deu qualquer
virtude, é impossível que por alguma circunstância abandonem essa inveja; para
alcançar o objetivo dos seus desejos, e satisfazer a perversidade da sua alma,
assistiriam contentes a ruina da própria pátria.” (Maquiavel, 2008, p. 390). Dois
importantes pontos podem ser destacados dessa passagem, o primeiro é que fica
evidente que as virtudes não são inatas, pelo menos não em sua totalidade. Elas
podem e são alcançadas pela boa educação. Segundo que sem uma boa educação
e com indivíduos corrompidos, não é possível reerguer um Estado arruinado. É
através da educação, essa força ordenadora, que se pode superar a corrupção dos
indivíduos e buscar um bom governo.
Por fim, no que se refere as passagens inventariadas nos Comentários
Sobre a Primeira Década de Tito Lívio, no livro terceiro capítulo quadragésimo
sexto, ao escrever sobre as famílias, Maquiavel mostra como a educação tem
influência no tocante a esse tema.

São diferenças que não podem derivar simplesmente do sangue que se


mistura pelos casamentos: resultam das diferenças de educação, de
família para família. Uma criança começa a ouvir, desde os primeiros
anos, que certa coisa é boa ou má, e esta opinião se imprime em seus
espíritos, servindo de guia para orientá-la toda sua vida
(MAQUIAVEL, 2008, p. 429, grifo nosso).

A educação atua como força modeladora direta dos indivíduos, como


diz. “[...] Obviamente Maquiavel pensa in primis nos indivíduos: é a ambição

47
destes que deve ser contida, é o amor à pátria destes que deve ser atiçado, é o
egoísmo destes que deve ser superado, é o interesse pelo bem comum destes que
deve ser despertado” (apud AMES, 2008, p. 148). Percebemos assim que a ação
da educação é individual, mas sua origem e suas consequências são coletivas;
ela parte de grupos como família ou instituições, para a apreensão do indivíduo
que com base nessa educação guiará suas ações dentro do corpo social. “As
diferenças entre os grupos humanos [famílias e povos] são determinadas não por
fatores genéticos [‘de sangue’], mas pelo costume fixado através da educação.”
(Ames, 2008, p. 148).
No livro Da arte da guerra, ao falar sobre as qualidades de um
soldado, Maquiavel reforça a educação como fundamental para a formação.

Deve-se sobretudo estar atento aos bons costumes e ao fato de que


nele haja honestidade e pudor, caso contrário escolhe-se um
instrumento de escândalo e um princípio corruptor, porque não creia
ninguém que, na educação desonesta e no espírito vilão, possa conter
alguma virtù que seja louvável (MAQUIAVEL, 1982, p. 29, grifo
nosso).

Maquiavel defende a utilização de um exército próprio para a defesa


da cidade, isso decorre da confiabilidade, algo difícil de se obter em exércitos
mercenários, visto que não se tem conhecimento acerca de sua educação, já um
exército formado por cidadãos é confiável, pois a própria cidade seria a
responsável e teria conhecimento sobre a educação desses indivíduos como as
virtudes por eles alcançadas.
Por fim a última passagem direta acerca da educação nas obras de
Maquiavel, reforçando a educação como essa forma modeladora. “E se alguém
culpasse a natureza/ porque na Itália, tão aflita e cansada, / não nascem pessoas
tão corajosas e obstinadas, / digo que isto não desculpa e livra/ a nossa covardia,
porque a educazione pode suprir/ onde a natureza falha.” (Maquiavel, apud.
Ames, 2008, p. 149). Maquiavel busca aqui se distanciar de um conformismo,

48
de uma aceitação da natureza, de um simples destino, sugere ele que se existem
problemas, esses são mais por falha de uma má educação do que pela natureza,
pois seria a educação capaz de compensar os erros da natureza.
Maquiavel não buscou elucidar normas educacionais em prol do
ensino em liames pedagógicos. Sua perspectiva da educação está muito mais
ligada a sua crítica aos pensadores, aqui já mencionada, em que os indivíduos
precisam ser muito mais ativos do que apenas contemplativos, mas também não
somente ativos, agindo guiados por seus desejos e impulsos. É preciso um
equilíbrio, um conhecimento e uma aplicação desse conhecimento na vida
pública. Trata-se a educação de uma ação transformadora capaz de ecoar onde o
caos e a desordem predominam e causam a corrupção.

3.3 Por uma compreensão geral de educação em Maquiavel

Para compreender de que forma a educação está presente na teoria


política de Maquiavel, é importante perceber de que forma o autor enxergava os
intelectuais da época, homens letrados, que detinham o conhecimento. Buscando
entender melhor quem são esses intelectuais, percebendo suas linhas teóricas,
recorremos a Paul Larivaille que descreve com maestria o que se pensava na
Itália no tempo de Maquiavel.

A Academia Platônica, fundada por Marsilio Ficino com o


consentimento de Cosme de Médici, elabora com efeito uma doutrina
destinada a uma larga difusão, por longo tempo benéfica à
manutenção da hegemonia cultural florentina, mas da qual os Médici
são os primeiros a tirar vantagem concretamente. O sincretismo
neoplatônico, tendendo para uma harmoniosa síntese do platonismo e
do cristianismo, para uma conciliação dos valores clássicos,
revalorizados pelos primeiros humanistas, e dos valores cristãos
tradicionais, contribui largamente para a atenuação do realismo
racionalista do início do século e para uma retomada progressiva da
religiosidade e do espiritualismo, mais propícios a uma
‘monarquização’ da vida florentina (LARIVAILLE, 1979, p. 161).

49
Larivaille relata ainda que essa forma de pensamento predominante na
renascença, platônica e cristã, instaurada pelos primeiros humanistas, preza pela
contemplação, afastando assim os intelectuais da vida pública, da prática
política, permitindo que os governantes pudessem agir como bem entendessem,
de forma livre. Eugênio Garin tece comentários sobre como os filósofos e
literários da época discutiam apenas entre seus pares, participando de círculos,
como o Orti Oricellari ao qual Maquiavel era membro, mas pouco aplicavam
seus conhecimentos na prática. “No momento em que se afirma os platônicos,
morre o sonho platônico de confiar o governo da cidade aos sábios; e a cidade
platônica não passa de uma academia” (Garin, apud Larivaille, 1979, p. 162).
Não obstante, havia aqueles que se submetiam ao governo vigente,
delimitando seu trabalho ao agrado daqueles que governavam. “De Ficino, o
apreciado filósofo do neoplatonismo, a Ângelo Policiano, o poeta filólogo,
passando por outros menos célebres, todos procuraram adequar a sua produção
ao gosto e à política cultural de Lourenço” (Larivaille, 1979, p. 162). Os
motivos poderiam ser dos mais variados, para evitar a miséria, por ambição de
obter algum favor ou importante cargo no governo, como também um
comodismo, evitando perseguições políticas. No período que o modo
republicano esteve presente em Florença, de 1494 a 1512, houve um sopro de
esperança para a vida prática dos letrados. Assim como Maquiavel, outros
humanistas assumiram cargos no governo. Entretanto, toda essa esperança vem
abaixo com a retomada do governo pelos Médici.
Nos Comentários Sobre a Primeira Década de Tito Lívio, Maquiavel
apresenta uma hierarquia entre os homens, onde aqueles que são letrados
ocupam um lugar especial. “Os mais dignos são os chefes ou fundadores de
religiões. Depois vem os fundadores de repúblicas ou de reinos. Em seguida os
que, à frente de exércitos, (...). Devemos acrescentar os letrados (...) cada um
alcança a glória reservada à categoria que pertence.” (Maquiavel, 2008, p. 53).
Assim, o letrado tem seus méritos, é quem olha para a história buscando
50
conhecimento e deve usar deste conhecimento para que a sociedade possa estar
preparada para as mudanças da Fortuna.

O letrado ideal, tal como Maquiavel concebe, é um mediador, com


charneira, ao mesmo tempo memória, explicador e juiz: mediador
entre experiencia e cultura, presente e passado, presente e futuro
também, pela imagem de seu tempo que ele lega à posterioridade;
memória, intérprete e juiz autorizado do passado e do presente e,
nessa qualidade, conselheiro competente dos príncipes que governam,
ao mesmo tempo bom intermediário entre governantes e governados.
Essa é pelo menos a vocação que sente Maquiavel, a missão eminente
que ele gostaria que lhe fosse reconhecida e que, obra após obra, ele
tenta incansavelmente impor (LARIVAILLE, 1979, p. 153-154).

O indivíduo letrado, aquele que detém o conhecimento, para


Maquiavel, é como se transitasse sobre as esferas da sociedade, sendo mediador,
não pela autoridade, mas pela experiência. Este indivíduo tem a capacidade de
atenuar possíveis erros do governo, buscar corrigir o curso de uma cidade. Por
isso, a educação se torna fundamental quando por meio dela este indivíduo é
capaz de legislar as ações humanas, aprender com o passado, conhecer o
presente e se preparar para o futuro, para a Fortuna. Não apenas como simples
eruditos que guardam a educação para si, mas indivíduos que, pela educação,
puderam ver nas experiências passadas a importância da ação efetiva. Nisso
consiste o conjunto de educação praticada em prol da cidade.
Principalmente nos Comentários Sobre a Primeira Década de Tito
Lívio é evidente a preferência de Maquiavel pelo modelo político de república,
mas entende que é fundamental um processo e uma boa educação para que este
modelo seja consolidado e de qualidade. Entre os comentadores de Maquiavel,
dado a relevância de sua principal obra, muito se escreve sobre um bom
príncipe, um bom governante, mas quando se fala em educação é preciso nos
atentarmos à formação de uma boa república. Parte deste processo está nos pais
fundadores, assim como Roma teve em Rômulo uma figura importante para este
momento que mais tarde viria a se tornar a república romana, mas vale notar que
51
este momento de ter um líder, um fundador no qual organizará os caminhos que
a cidade irá trilhar “deveria ser apenas uma etapa formadora, de educação dos
espíritos, destinada a criar as condições para que as instituições republicanas
existentes após o desaparecimento de seus príncipes fundadores possam
funcionar com autonomia” (Larivaille, 1979, p. 156).
Posto isso, é possível notar que para um bom funcionamento da
república é preciso uma educação dos espíritos, que os cidadãos e o governo
daquela cidade estejam livres da corrupção e preparados para o modo
republicano. Este preparo consiste na consciência individual, saber que se deve
buscar o bem comum antes do bem particular. É preciso pensar e priorizar mais
os lucros da cidade do que de um único indivíduo para que assim, seja possível
garantir os princípios de liberdade.

52
4. Possíveis correlações indicativas acerca da importância da educação
no pensamento político de Maquiavel

Tendo visto os trechos em que Maquiavel se refere diretamente à


educação, buscamos neste capítulo analisar passagem pertinentes a pesquisa.
Ainda que não diretamente, o autor faz alusões no tocante à educação, iremos
analisar e correlacionar essas passagens com demais conceitos importantes da
teoria política de Maquiavel, a saber, Natureza, Povo, Poder, Fortuna e Virtù, de
modo que, seja possível apresentar essas correlações e em que medida a
educação política estaria presente também em demais aspectos das obras do
autor.

4.1 Educação, Natureza e Desejo

Na obra Vocabulário de Maquiavel, Ménissier apresenta a natureza


como uma força inconstante, que pode ser comparada a Deus, estando os
indivíduos intimamente ligados a ela, pois em todas as nossas ações buscamos
imitá-la. Ao caracterizar essa ação da natureza o autor descreve

a lógica natural que sustenta o devir cósmico parece obedecer, mais


precisamente, a uma teleologia cega: está orientada numa direção e
manifesta até uma intenção que concerne à espécie humana, mas essa
direção permanece incompreensível e a intenção não é favorável ao
desenvolvimento harmônico das atividades dos homens
(MÉNISSIER, 2012, p. 41).

No que concerne ao desejo, Ménssier, descreve com uma relação


próxima à natureza ao dizer que “por um lado, o desejo, realidade natural, é,
junto com a necessidade, a mola mais poderosa da ação humana” (Ménissier,
2012, p. 16). e em seguida explana outro ponto sobre os meios e fins ao
considerar que o desejo é “conforme à natureza das coisas, a razão nada ganha
condenando sua expressão. Por isso, essa proposição incita a um programa de

53
reforma do trabalho da razão, já que a análise da relação entre meios e fins
permite otimizar a expressão do desejo” (Ménissier, 2012, p. 16).
Para o autor florentino, todos os fatos que de alguma forma já
ocorreram na história da humanidade, mais especificamente no que se refere ao
governo de cidades, de uma forma igual ou semelhante poderá ocorrer
novamente no futuro. De tal forma que, as dificuldades que algum governante
encontrasse no seu tempo, outro já teria passado por semelhantes dificuldades
em outros tempos. Com base nessa observação de Maquiavel sobre a história
humana, no sentido de ser possível aprender com o passado, seria negligente
aquele que não se utilizasse do estudo da história e aprendesse com os exemplos.
A respeito disso Maquiavel afirma:

Quem estudar a história contemporânea e da antiguidade verá que os


mesmos desejos e as mesmas paixões reinaram ainda em todos os
governos, em todos os povos. Por isso é fácil, para quem estuda com
profundidade os acontecimentos pretéritos, prever o que o futuro
reserva a cada Estado, propondo os remédios já utilizados pelos
antigos ou, caso isto não seja possível, imaginando novos remédios,
baseados na semelhança dos acontecimentos. Porém, como estas
observações são negligenciadas [ou aqueles que estudam não sabem
manifestá-las], disto resulta que as mesmas desordens se renovam em
todas as épocas (MAQUIAVEL, 2008, p. 129).

Maquiavel acredita que além dos vastos conflitos que se possa ter
dentre os governos, exista também, uma moderação entre bem e mal e que isso
se espalha pelos Estados, de modo a distribuir tanto glórias como dificuldades.
“O bem e o mal, contudo, tem passado de um país a outro, como nos indicam as
informações que temos hoje dos reinos antigos – que a variação dos costumes
tornava diferentes uns dos outros, embora o mundo, como um todo,
permanecesse imutável” (Maquiavel, 2008, p. 190). Nota-se assim que esse
estudo do passado se baseia num pensamento de contínuo movimento da
história, mas que carregaria consigo todo bem e mal, toda a experiência,
interagindo com os povos, quase que a cada novo Estado que surja, inicia-se
54
também um novo caminho na mesma história, observando as diferenças dos
costumes.
Maquiavel explica que é natural do indivíduo o desejo, o querer
sempre mais, acumular riquezas e poder. A ambição pode cegar e levar
governantes a tomar atitudes extremas. “Se não lutam por necessidade, lutam
por ambição. É uma paixão que tem neles raízes profundas; não os abandona,
por mais elevada a situação a que cheguem” (Maquiavel, 2008, p. 122), em
seguida o autor explica como se caracteriza esse homem por natureza e como é
difícil se distanciar dessa inclinação.

De fato, a natureza criou os homens com a sede de tudo abraçar e a


impotência de atingir todas as coisas. Como o desejo de possuir é mais
forte do que a faculdade de adquirir, disto resulta um secreto desgosto
pelo que possuem, ao qual se junta o descontentamento por si
próprios. Esta é a origem dos seus variados destinos. Uns querem
possuir mais, outros temem perder o que já ganharam; daí o atrito e a
guerra, que por sua vez provocam a destruição de um império para ser
a elevação de outro (MAQUIAVEL, 2008, p. 122).

O indivíduo seria caracterizado por seus desejos, esses desejos que


seriam incontroláveis. O papel de cada indivíduo é buscar a realização desses
desejos ao longo da vida. Entretanto, sua simples conquista não significa a
satisfação dos desejos humanos, visto que, o indivíduo nunca está satisfeito.
“Nada pode saciar os apetites humanos, pois a natureza nos deu a faculdade de
tudo desejar, mas a sorte não nos deixa senão provar poucas coisas, disto
resultando um descontentamento permanente, e um desgosto pelo que
possuímos” (Maquiavel, 2008, p. 191). Como o autor explica, é por conta desse
insaciável desejo que os povos admiram o passado, condenam o tempo em que
vivem e anseiam pelo futuro. Os desejos são próprios de cada ser humano,
singulares e visam apenas à satisfação pessoal e é isso que distancia os
indivíduos, tal como observa Ames. “Assim, os homens se opõem entre si não
porque são malvados, mas porque são rivais na consumação de seus desejos.”

55
(Ames, 2009, p. 182). É inevitável que para a realização dos desejos de um, em
dado momento, conflite com a realização dos desejos de outrem, não sendo
possível assim que todos os desejos sejam alcançados, fazendo com que os
indivíduos busquem incansavelmente algo que nunca irão alcançar
completamente.
Estando, portanto, os indivíduos em constante discórdia, afastando-os
de uma cooperação, o questionamento que surge é de como se estabeleceria um
consenso no tocante à política numa sociedade. Pensando numa república, como
se governaria para todos e de que forma se tomaria as decisões? Para Maquiavel,
esse consenso está justamente no que os conflitos proporcionam. Para
compreender melhor, Senellart faz uma interessante distinção entre concepções
filosóficas de concórdia e busca reconhecer como Maquiavel se encaixaria
nesses parâmetros.

Reconhece Maquiavel próximo da agnística, de origem heraclitiana


[harmonia como tensão entre contrários], mas não exclui a influência
das posições eunômica, de origem socrática [concórdia como
obediência às leis] e harmonia, que remonta a Pitágoras, mas tem em
Cicero a fonte mais próxima [harmonia do universo como modelo do
Estado bem ordenado] (SENELLART, Apud, AMES, 2009, p. 182).

Ames aponta, que o desejo coletivo não pode ser excluído, pois dentro
de grupos existem desejos que podem ser coletivos. Mais especificamente, os
grupos que Maquiavel define como os Grandes e o Povo, os grandes são a
aristocracia, aqueles que detém bens e buscam governar as cidades. Em
contrapartida, o povo é a classe inferior economicamente e que tem a liberdade
como desejo, buscando não serem dominados. A harmonia para Maquiavel
surge justamente desse conflito, onde, de certo modo, os dois lados devem
cumprir com suas tarefas e assim equilibrar de modo geral as forças,
principalmente no tocante à garantir a liberdade em uma república. Assim, os

56
grandes não desejam perder seu poder e o povo não deseja perder sua liberdade,
ambos para domínios estrangeiros.
Ao analisar, assim como Maquiavel, a importância do povo para se
obter a liberdade e como desempenha papel fundamental também na
manutenção da sua própria independência. Poderá ocorrer questionamentos
sobre a real importância desse povo, principalmente pelos aspectos apresentados
por Maquiavel sobre um povo que se caracteriza pelo conflito. Buscando
evidenciar a relevância do povo nessa constituição política e mais à frente de
como esse deve ser instruído, acreditamos ser relevante para o momento às
palavras de Bignotto acerca do povo:

Se o desejo popular, que é essencialmente desejo de liberdade, fosse


totalmente passivo, não estaria ele desde o início condenado ao
fracasso? Nessas condições, o saber da política, que é sempre um
saber operativo, não seria unicamente aquele da nobreza? A conclusão
não poderia ser mais estranha para um autor que conduz sua análise
sob o signo da potência romana, tomada não como um modelo, mas
como o produto de uma ação continua na ‘polis’. Maquiavel crítica, é
verdade, a indecisão do povo, mas não anula o alcance de sua ação.
Para aprender o sentido de seu texto é preciso recordar que seus
caminhos são sinuosos e que ele nunca desvela todo o sentido de seu
percurso (BIGNOTTO, 1991, p. 107).

A meu ver, podemos considerar que o desejo do povo, esse desejo que
é natural e descabido, se inclina à liberdade. Esse mesmo desejo de liberdade
deve residir em cada cidadão que compõem o povo. Sendo assim, cabe ao povo
garantir a liberdade. Para Bignotto, Maquiavel indica isso em sua obra: “não há
dúvida de que Maquiavel procura demonstrar que o único elemento capaz de
construir uma república potente é o elemento popular” (Bignotto, 1991, p. 108).
Entretanto, ainda que indique isso, Maquiavel escreve em dado momento que
“enganado por uma falsa aparência, o povo muitas vezes deseja sua própria
ruína: é fácil movê-lo com promessas espantosas e grandes esperanças”
(Maquiavel, 2008, p. 165). Essa crítica de Maquiavel ao povo não reside no seu

57
desejo, da mesma forma que não é direcionada a sua natureza, ambas
permanecem as mesmas, com o autor ainda afirmando que é desejo do povo a
liberdade. Esse deve garanti-la, mas como sugere Bignotto, essa crítica se
direciona a “uma falsa interpretação de seu objetivo” (1991, p. 108).
Observando isso, é possível notar que para se garantir a liberdade, é preciso que
o povo tenha clareza de seu objetivo, de modo a não ser persuadido por falsas
promessas. É possível observar nesse momento a educação política como
ferramenta eficaz na formação cívica. Assim como anteriormente mencionado,
Maquiavel sugere o estudo da história, a análise dos exemplos para melhor
compreender o tempo presente, isso inclui os objetivos do povo, através da
educação obteriam uma maior clareza e como, indica Ames em seu artigo, “a
educação é pensada em Maquiavel como uma força destinada a controlar a
desordem inerente ao movimento tanto do desejo quanto da natureza impedindo
os efeitos deletérios daquele sobre a vida política”. (Ames, 2008, p. 137). Ames
pensa que é pela educação que “o homem é capaz de conhecer a ‘natureza das
coisas’, isto é, saber o que as coisas são ‘desde sempre’ e, desta maneira,
antecipar-se ao ‘curso das coisas ordenado pelos céus’” (Ames, 2008, p. 137).

4.2 Educação, Poder e Fortuna

Quando Maquiavel escreve sobre a Fortuna, ele carrega no termo o


sentido de duas tradições, como descreve Ménissier, a primeira remete a
Aristóteles nas suas obras Física e Política. A outra tradição, contemporânea a
Maquiavel, é sobre a Fortuna como capital, quando os comerciantes
acrescentavam valor a determinado produto com base nos riscos que corriam de
perdê-lo no transporte, esse cálculo era popularmente conhecido como fortuna
do mar. (2012, p. 24) Intimamente ligada a forma como Maquiavel apresenta a
natureza, a fortuna é um desdobramento da forma como essa natureza age sobre
os indivíduos, de forma imprevisível, o que Maquiavel nomeia Fortuna é a força
58
da natureza que pode ser favorável ou desfavorável ao indivíduo de forma
aleatória e inconstante.

Como visto, é natural o desejo pelo poder, por comandar. Todavia,


devem os indivíduos estarem atentos à inconstância das coisas, nada poderia ser
dado certamente como permanente, pois “as coisas desse mundo estão sempre
em transição, ora as exaltamos, ora as rebaixamos” (Maquiavel, 2008, p. 189).
Entretanto, ainda que observemos essa inconstância no curso das coisas,
Maquiavel assinala que existe uma permanência e regularidade nas coisas. “Se
mantém no curso que lhes deu providência as coisas que guardam regularidade”,
mas é igualmente importante também notar que “Neste mundo todas as coisas
têm fim: esta é uma verdade perene.” (Maquiavel, 2008, p. 301).
Compreendendo as coisas do mundo dessa forma, Maquiavel define a natureza
em movimento e a relaciona com o social: “a natureza, de fato, lembra os corpos
simples que, quando guardam humores supérfluos, tendem a expeli-los, para
recobrar a saúde. O mesmo acontece com o corpo da sociedade humana.”
(Maquiavel, 2008, p. 210). Mediante a educação, é possível que o indivíduo
conheça a natureza das coisas, como afirma Ames:

Graças a educação, o homem é capaz de conhecer a ‘natureza das


coisas’, isto é, saber o que as coisas são ‘desde sempre’. [...]
Entendendo o movimento das coisas, o sujeito torna-se capaz de se
antecipar ao ‘curso das coisas ordenado pelos céus’. Significa dizer,
pela educação o homem será capaz de manejar a realidade com maior
facilidade para controlá-la e dirigir seus esforços no sentido de obter
êxito. Por fim, a educação possibilita moldar o comportamento dos
indivíduos de tal modo que o curso das coisas se redirecione para uma
ordem coerente com o bem coletivo (AMES, 2008, p. 141).

Através da educação é possível ao indivíduo estar melhor preparado,


habilitá-lo a buscar tomar as melhores decisões frente a Fortuna. A educação é
ferramenta formadora, para que por ela, o indivíduo possa ser um bom
governante, de si e do Estado. Maquiavel acreditava nisso, de tal forma que suas
59
obras são obras de ensino, que buscam iluminar, agregar, possibilitar que quem
as leia aprenda algo, adquira conhecimento e vá além. Não se trata simplesmente
de uma cartilha para decorar um passo a passo, mas de instigar a busca de novos
conhecimentos e poder ver as experiências por outro viés, agora mais analítico e
agregador. É possível perceber brevemente isso na dedicatória da obra O
Príncipe em que Maquiavel assinala do que se trata seu trabalho: “ não lhe posso
fazer maior presente que lhe dar a faculdade de poder em tempo muito breve
aprender tudo aquilo que, em tantos anos e à custa de tantos incômodos e
perigos, hei conhecido.” (Maquiavel, 1991, p.3). Destacamos o objetivo de que
através dessa obra Lorenzo de Médici possa aprender em pouco tempo o
conhecimento que Maquiavel levou anos para adquirir, algo muito próximo dos
objetivos de um livro didático, mas, o autor continua: “não ornei esta obra e nem
enchi de períodos sonoros ou de palavras empoladas e floreios ou de qualquer
outra lisonja [...] porque não quis que coisa alguma seja seu ornato e a faça
agradável senão a verdade da matéria e a gravidade do assunto” (Maquiavel,
1991, p.3). Mais uma vez, observamos preceitos didáticos ao buscar uma
linguagem simples e objetiva, possibilitando ao leitor compreender com clareza
o tema ali trabalhado. Lembramos também do objetivo que Maquiavel apresenta
na introdução ao escrever a obra Comentários sobre a primeira década de Tito
Lívio:

Resolvido a salvar os homens deste erro, achei necessário redigir, a


propósito de cada um dos livros de Tito Lívio que resistiram à injúria
do tempo, uma comparação entre fatos antigos e contemporâneos, de
modo a facilitar-lhes a compreensão. Deste modo, meus leitores
poderão tirar daqueles livros toda a utilidade que se deve buscar no
estudo histórico. É uma empresa difícil que espero, contudo, conduzir
longe o bastante para que fique faltando pouco caminho a quem queira
levá-la a termo (MAQUIAVEL, 2008, p. 18).

Notamos novamente a pretensão do autor em contribuir para o


conhecimento, buscando fazer isso de forma direta e destacando a importância
60
de que deve ser algo continuado, não se trata de apenas decorar, é preciso
praticar e prosseguir com o que se aprende. Assim, aqueles que, por natureza, se
encontram desejosos de poder, poderão ver na educação um grande auxilio a
atingir seus objetivos e lidar com as dificuldades e responsabilidades, como
também, aqueles desejosos pela liberdade, devem usar da educação para
aprender com o passado, sabendo como defendê-la contra aqueles que buscam
usurpá-la e a como conquistá-la diante daqueles que os escravizam. Aquele que
detiver o poder sem educação, em algum momento encontrará a ruína.

4.3 Educação e Virtú

Conforme o Vocabulário de Maquiavel, o termo virtù, seria o mais


importante da teoria de Maquiavel, ele caracterizaria a “capacidade de levar a
bom termo as empresas políticas” (Ménissier, 2012, p.59). Maquiavel detalha a
importância de se estudar os antigos para que o indivíduo possa estar preparado
para o presente, sabendo lidar com a Fortuna, assim Ménissier também define a
virtù “como a faculdade de se confrontar com a fortuna e, mais exatamente, de
se associar a ela, de encontrar nela recursos para alcançar êxito – a virtude,
qualidade que permite triunfar pontualmente sobre a fortuna, é de certo modo o
par humano dela” (2012, p.60). Em seguida o autor relaciona a virtú com o
conhecimento ao assinalar que “será necessário perceber a virtude de preferência
como um conhecimento ou como um esforço? Ela é a um só tempo um e outro,
mas também mais que um e outro” (Ménissier, 2012, p.60, grifo nosso). Nota-se,
por tanto, que uma das características contidas na virtú é esse esforço para o
conhecimento, como também, o conhecimento para o esforço, e assim, ao meu
ver, esse esforço como ação ativa.
A educação dentro das obras de Maquiavel é evidenciada também
pelo cuidado que o autor alerta que deve ter para com o estudo da história. O
filósofo florentino escreve sobre a importância de estudar a história e usar dos
61
exemplos passados para melhor governar o presente, mas igualmente faz um
alerta de como ocorre essa análise do passado. É preciso ter um cuidado para
não cair em equívocos, tão pouco ser levado por narrativas fantasiosas.
Maquiavel afirma que “os homens elogiam o passado e se queixam do presente,
quase sempre sem razão.” (Maquiavel, 2008, p. 189). Isso se deve ao fato destes
homens não terem vivenciado aqueles tempos passados; o que conhecem são
apenas relatos de historiadores, com isso, engrandecem aquele passado em
detrimento do presente. Sobre esses equívocos cometidos ao se estudar história,
Maquiavel faz importantes observações.

Não se pode conhecer toda a verdade sobre os acontecimentos da


antiguidade; muitas vezes se oculta o que poderia trazer desonra aos
tempos passados, enquanto se celebra, e amplia, tudo o que acrescenta
à sua glória. Ocorre também que os escritores, em sua maioria,
seguem a sorte dos vencedores, aumentando o que fizeram de glorioso
para melhor ilustrar suas vitórias, e acrescentando à força dos
inimigos que venceram; de modo que os descendentes de uns e de
outros não podem deixar de admirá-los e de exaltar seu tempo,
fazendo-os objeto de homenagem e admiração (MAQUIAVEL, 2008,
p. 189).

É preciso ter um senso crítico e compreender os fatos históricos dentro


dos limites. Para isso, o indivíduo deve munir-se pela educação, de tudo que
possa contribuir para essa análise dos fatos. Maquiavel também lembra que ao
testemunharmos os fatos pessoalmente, fazemos parte daquele momento
histórico, assim podemos observar todos os seus pormenores, o bem e o mal de
cada fato, levando-nos a acreditar que o momento presente é ruim comparado a
outros e não nos permite ver com bons olhos os feitos de agora.
Ainda que os relatos históricos possam enganar, o autor lembra que
isso nem sempre ocorre e que é importante nos guiarmos pelas evidências, sendo
necessário ter virtude para atingir tal objetivo. Os equívocos cometidos ao
comparar o tempo que testemunhamos com nossos olhos em relação ao passado
“se fundamenta no conhecimento imperfeito do que de fato aconteceu na

62
antiguidade” (Maquiavel, 2008, p. 190). Contudo ele assegura que as diferenças
existentes entre as épocas são demasiadas. Em seguida, o autor escreve sobre
sua pretensão e em tom não comum a ele, aconselha de forma esperançosa os
jovens. Em tese, entendemos assim, que sua obra Comentários sobre a primeira
década de Tito Lívio possivelmente caracteriza-se como uma alusão a
importância da educação para a constituição de um governo republicano:

Ousarei, portanto, expor sem rebuços o que penso daqueles tempos e


do nosso, para avisar os jovens que fujam de uns e imitem os outros,
sempre que tiverem ocasião. É dever do homem honesto apontar o
caminho do bem, que o rigor da época e da sorte não lhe permite
trilhar, na esperança de que, dentre todos os que puderem
compreendê-lo, haja um, favorito dos céus, que siga esse caminho
(MAQUIAVEL, 2008, p. 191).

Notamos nesse trecho uma perspectiva que difere da usualmente


delineada para Maquiavel. Ao passo que ele deixa de lado sua abordagem
realista e analítica dos fatos e caracteriza sua obra como educativa. Como útil,
levantando a esperança na honestidade e de que os jovens percebam o correto
caminho, para quiçá, um indivíduo possa seguir essa trilha. e a meu ver, que o
próprio Maquiavel já tenha se visto dentre esses jovens, dentre esses homens
honestos. Quando elabora sua obra e pretende imitar os bons exemplos,
contornar a Fortuna com o conhecimento e desejoso que alguém pudesse se
servir destes ensinamentos.
De modo semelhante as características apresentadas pelos humanistas
cívicos, Maquiavel aponta a educação como ferramenta que possibilitaria ao
indivíduo atingir a virtù. Um bom governo seria composto de indivíduos
virtuosos, esses cidadãos estariam preparados para evitar a corrupção, conhecer
e aprender com a experiência dos antigos e buscar os desejos comuns antes a
seus desejos individuais. Maquiavel aponta que, para atingir a virtù é necessário
o estudo dos clássicos, ao meu ver, isso demonstra que a única forma de um
indivíduo se tornar virtuoso é através da educação. No que concerne
63
especialmente à política, a educação desempenha o mesmo papel, pois é preciso
que aqueles que constituem o governo, sejam indivíduos virtuosos.

Considerações finais

Nessa pesquisa foi possível traçar a trajetória política de Maquiavel,


evidenciando as experiências adquiridas pelo autor e como se constituiu alguns
de seus princípios em relação a teoria política. Foi possível explanar acerca de
como se apresentava a política no período da renascença italiana,
compreendendo a importância do humanismo cívico para esse momento e
também como esses humanistas foram fundamentais para a elaboração das obras
de Maquiavel. Posteriormente descrevemos de que forma se constituía o modelo
republicano, em especial o modelo florentino, ao qual Maquiavel tinha maior
contato. Pudemos observar como esse sistema se estruturava, seu desejo pela
liberdade, mas também, as falhas que puderam instaurar a corrupção no
governo. Com base nesse modelo republicano, analisamos de que forma se
caracteriza um bom governo nas obras do autor florentino ao utilizar-se dos
exemplos do antigo império romano.
Ao apresentar as referências ao tema da educação nas obras de
Maquiavel, buscamos caracterizar de que modo o tema estaria presente em sua
teoria política. Inicialmente, explanamos acerca da educação humanista,
observando seus liames e identificando a influência exercida sobre Maquiavel.
Assim, ao apontar os oito trechos em que o autor se refere diretamente ao termo
educação, é possível observar em diferentes contextos, como uma necessidade
para os governos e também como uma força mediadora diante a natureza. Pela
análise dessas passagens, é possível observar que a educação é valorizada. Nelas
aparecem a relevância de uma educação política para a garantia da liberdade e a
busca da virtù pelos indivíduos.

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Por fim, buscando apresentar a importância da temática da educação
inserida nas obras de Maquiavel, correlacionando com alguns temas pertinentes
para sua teoria política, de modo a perceber essa interação, analisamos os
conceitos de natureza, desejo, poder, fortuna e virtù. Percebemos que Maquiavel
observa a educação política com estreita relação aos conceitos apontados. Dessa
forma, é possível não só identificar os liames da educação política, mas auxilia
na compreensão dos demais conceitos levantados.
Por meio dessa pesquisa, foi possível observar em Maquiavel, além da
sua teoria política, de que modo a filosofia se evidencia também no aspecto
humano abordado pelo autor. Ao introduzir suas experiências cotidianas na
relação com outros indivíduos, Maquiavel permeia uma análise das ações
humanas e apresenta facetas controversas para a época. Evidenciando a natureza
conflitante do ser humano, o filósofo florentino nos mostra que é preciso um
mínimo de conduta, uma mediação que deve ser obtida por meio da educação,
capacitando os indivíduos para que instituam leis que possam regular a
sociedade e buscar garantir a liberdade de todos.
Maquiavel não nos proporciona uma pedagogia, quando nos referimos
em educação. Nesse caso, tratamos estritamente de uma educação política, mas
não segundo os moldes de uma educação formal. Observamos uma tentativa de
inspiração, comumente utilizando-se dos exemplos do passado para se guiar no
presente e prevenir-se para o futuro. Maquiavel enfatiza a importância de
conhecer a história, de aprender com ela e utilizá-la; incentiva que essa prática
seja adotada e através de suas obras onde ele toma “a decisão de seguir uma
senda ainda não trilhada, movido pelo natural desejo que sempre me levou sem
receios aos empreendimentos que considero úteis” (Maquiavel, 2008, p. 17). Ele
espera que sua obra, afirmando especificamente nos Comentários sobre a
primeira década de Tito Lívio, sirva pelo menos para abrir caminho, que outros
a partir dela possam levar a cabo seus objetivos, que através da experiência seja
possível adquirir um conhecimento útil para o presente, visto isso, podemos
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acreditar que esse conhecimento das experiências, pode ser compreendido tal
qual uma educação.
Ainda que de modo singelo, nessa pesquisa pudemos observar a forte
influência humanista nos escritos de Maquiavel, igualmente no tocante à
temática da educação. Sendo possível também notar a relevância que essa
educação tem como base do que propõe Maquiavel. Logo, acreditamos ser
difícil projetar uma república sem corrupção ou mesmo um príncipe virtuoso
que mantenha seu Estado, sem que tenha uma boa educação, que os prepare ante
as dificuldades. Pode parecer, à primeira vista, um ato comum que o filósofo, tal
qual Maquiavel, valorize a educação, mas é importante frisarmos essa educação
como ação política e não somente contemplativa, algo que o mesmo recusava. É
uma educação com um fim: de capacitar o indivíduo para as virtudes e assim
buscar um governo sem corrupção e que zele pelos princípios da liberdade.

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