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ÂNIMA EDUCAÇÃO
Curitiba
2022
GUILHERME FERREIRA KILTER LIRA
Curitiba
2022
AGRADECIMENTOS
Essa monografia tem como objetivo analisar a relação entre o Estado, a política e a
religião no sistema internacional ocidental. Nesse aspecto, a análise tem seu início
em uma breve menção ao fim do Império Romano e início da Era Medieval,
demonstrando a ascensão do cristianismo e sua primeira grande mudança em relação
ao poder político na Europa. A investigação aprofunda-se principalmente na
modernidade, nos eventos da Reforma Protestante, Guerra dos Trinta Anos, Paz de
Westfália e Revolução Francesa, e como a instituição da Igreja Católica exerceu seu
poder político internacional nesse período. Por fim, verifica-se o impacto desses
eventos na teoria das relações internacionais e o reflexo da religião na sua formação
como disciplina, conceituando uma nova religião baseada nos ideais iluministas e
humanistas, a “religião civil”. Nesse sentido, o trabalho demonstra a compreensão da
religião nas relações internacionais como objeto de análise e identifica seu papel e
influência no recorte ocidental da história. Mais especificamente, isso é feito
analisando os impactos da religião no pensamento político internacional, investigando
a profunda influência da religião nas relações internacionais entre 1517 (Reforma
Protestante) e 1789 (Revolução Francesa), e identificando e conceituando o período
de pós-secularização no estudo de relações internacionais.
This monograph aims to analyze the relationship between the State, politics and
religion in the western international system. In this aspect, the analysis begins with a
brief mention of the end of the Roman Empire and the beginning of the Medieval Era,
demonstrating the rise of Christianity and its first major change in relation to political
power in Europe. The investigation delves mainly into modernity, the events of the
Protestant Reformation, the Thirty Years' War, the Peace of Westphalia and the French
Revolution, and how the institution of the Catholic Church exercised its international
political power in this period. Finally, the impact of these events on the theory of
international relations and the reflection of religion in its formation as a discipline is
verified, conceptualizing a new religion based on Enlightenment and humanist ideals,
the "civil religion". In this sense, the work demonstrates the understanding of religion
in international relations as an object of analysis and identifies its role and influence in
the western frame of history. More specifically, this is done by analyzing the impacts
of religion on international political thought, investigating the profound influence of
religion on international relations between 1517 (Protestant Reformation) and 1789
(French Revolution), and identifying and conceptualizing the post-secularization period
in the study of international relations.
1 INTRODUÇÃO ............................................................................................... 4
2 A PRIMEIRA REVIRAVOLTA HISTÓRICA DA RELIGIÃO ........................... 6
2.1 REFORMA PROTESTANTE: A RUPTURA DA IGREJA CATÓLICA E SUAS
IMPLICAÇÕES NA FORMAÇÃO DO ESTADO ........................................................ 10
2.2 O RENASCIMENTO, UMA MUDANÇA DE CULTURA E PODER NA EUROPA .11
2.3 A CONTRARREFORMA: O ESTOPIM PARA A GUERRA RELIGIOSA ............ 13
2.4 A GUERRA DOS TRINTA ANOS, O CLÍMAX DA RELAÇÃO ENTRE IGREJA E
ESTADO.................................................................................................................... 14
2.5 OS TRATADOS DE WESTFÁLIA E O NASCIMENTO DO SISTEMA DE
ESTADOS INDEPENDENTES .................................................................................. 18
3 THOMAS HOBBES, A REVOLUÇÃO FRANCESA E A SECULARIZAÇÃO
DO ESTADO ............................................................................................................. 23
3.1 MAQUIAVEL E BOTERO: AS BASES DA RAZÃO DE ESTADO ....................... 24
3.2 THOMAS HOBBES: O CONTRATUALISTA CRISTÃO ...................................... 23
3.3 JEAN-JACQUES ROUSSEAU E AS BASES SECULARES DO ILUMINISMO ... 27
3.4 OS IMPACTOS DA REVOLUÇÃO FRANCESA NA RELAÇÃO RELIGIÃO-
ESTADO.................................................................................................................... 30
3.5 A RELIGIÃO COMO IMPEDITIVO PARA A REVOLUÇÃO NA GRÃ-
BRETANHA................................................................................................................33
4 O PAPEL DA RELIGIÃO NA ERA PÓS-SECULARISTA ............................ 37
4.1 A RELIGIÃO CIVIL COMO CONSEQUÊNCIA DO ESTADO SECULARIZADO . 39
4.2 NACIONALISMO: O SIMBOLISMO APLICADO AO CULTO DO ESTADO ........ 44
4.3 O ESTADO LAICO COMO FORMADOR DE CIDADÃOS ................................... 47
4.4 AS EVIDÊNCIAS DA RELIGIÃO CIVIL NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS ... 49
5 CONCLUSÃO ............................................................................................... 52
REFERÊNCIAS ............................................................................................ 54
4
1 INTRODUÇÃO
Todo o continente europeu passa por uma era de cristianização, não só nas
esferas de poder com a verticalização da igreja, mas a população, que antes era
devota ao imperador romano, assume a religião cristã como crença e cultura em sua
totalidade.
O poder do Império Romano se perde após os conflitos e guerras com os
bárbaros, sem mais nenhuma capacidade militar ou poder de barganha, a Igreja
Católica, na figura do Papa Gregório I, torna-se o último alicerce remanescente deste
modelo de sociedade, no que seria marcado como o início da Idade Média.
A liderança civil e pública de Gregório, exercida por necessidade, já que toda
estrutura imperial havia ruído, transformou a Igreja Católica no expoente de poder
deste período histórico:
Com o tempo, novos reinados e centros de poder formam-se a partir dos povos
bárbaros, como os francos. A união da autoridade eclesiástica com o poder do rei
franco, Carlos Magno, levou o cristianismo à novos horizontes na Europa. Baseado
na teologia de Agostinho, Carlos Magno desejava governar em três áreas: militar,
espiritual e intelectual. E por muito tempo, ele conseguiu. “O êxito de Carlos Magno
nessas áreas tornou a Europa — a nova ordem política — nominalmente cristã por mil
anos, para o bem ou para o mal.” (BLAINEY, 2012, p. 233).
O governo de Magno sobre essas áreas, no entanto, não durou muito tempo, pois
após a sua morte, seu poder é descentralizado e divido entre seus nobres, dando
origem ao feudalismo, e fazendo com que a Igreja Católica fosse a última instituição
com poder universal centralizado e ordenado em toda a Europa.
Assim, a Igreja oficialmente triunfa sobre o Estado, e o papa passa a ser a principal
figura de autoridade e poder no continente, levando à episódios como às Cruzadas,
por exemplo. Isto, porém, começou a causar uma série de problemas na estrutura
eclesiástica, e alguns – como Wycliffe e Huss – passavam a questionar tamanha
autoridade do papa, e se ela teria de fato embasamento bíblico.
9
lhe proporcionou o quadro para atacar não só o tráfico que o papado efetuava
das indulgências, mas todo um conjunto de atitudes sociais, políticas, assim
como religiosas, que tinham ficado associadas aos ensinamentos da Igreja
católica.” (SKINNER, 1996, p. 285).
[...] uma de suas propostas é que “seria muito bom que todo o direito canônico
fosse revogado por inteiro”, já que “a maior parte dele a nada recende, a não
ser arrogância e ganância”, enquanto a autoridade absoluta do papa sobre a
interpretação do seu conteúdo torna qualquer estudo rigoroso do mesmo
“mera farsa e perda de tempo”. (SKINNER, 1996, p. 295).
Com este movimento reformista a todo vapor, o cenário para a Igreja Católica e
sua manutenção de poder era o pior. Não se deve esquecer que nesta mesma época,
as ideias renascentistas se propagavam por toda a Europa, e mais tarde contribuiriam
para a nova constituição de Estado moderno. Para Watson, “o Renascimento é
importante na história da Europa e do mundo, tanto do ponto de vista geral e cultural
quanto, especialmente, pela evolução do conceito de Estado e da relação entre
Estados.” (WATSON, 2004, p. 217).
Os protestos de Lutero e os reformistas trouxeram à luz e ao debate público as
insatisfações teológicas e eclesiásticas sobre a Igreja, mas seriam os ideais
renascentistas que, somados à tais críticas e protestos, alterariam o paradigma de
poder da Igreja e sua influência nos ideais de Estado.
Como o homem era então a medida das coisas, a beleza e a verdade estavam
especialmente ligadas às proporções do corpo e da mente humanos, tal como
ocorrera na Grécia Clássica. Os humanistas não se importavam se a forma
do corpo e as ideias da mente fossem antiéticas ou indecentes segundo os
padrões cristãos. Na Idade Média, a pergunta fora se uma coisa era certa ou
errada; agora era se uma coisa era verdadeira ou falsa, bela ou feia, eficaz
ou inútil. Um novo espírito de realismo telúrico e novas fórmulas científicas
eram aplicados à pintura e à política, à guerra e à arte do Estado. (WATSON,
2004, p. 219).
A ascensão destas ideias não poderia ser pior para a Igreja, uma vez que suas
práticas abusivas de poder se alastravam, revoltas e questionamentos se
amplificavam internamente, com a Reforma, e externamente, com o Renascimento. A
busca pela verdade se intensificava, e para os renascentistas a Igreja Católica era um
obstáculo, enquanto para os reformistas esta havia se embriagado de poder a ponto
de esquecer os fundamentos bíblicos.
O berço dessas ideias foi a Itália, desfigurada cada vez mais de seu caráter feudal,
onde diversas cidades haviam sido formadas, o poder era centralizado em príncipes,
e a monarquia hereditária estabelecia-se como a principal forma de governo. Essa
configuração, aos poucos, diluía o poder e autoridade da Igreja em Roma:
Tal configuração de poder aliou-se aos novos ideais renascentistas, uma vez que
“o renascimento italiano produziu uma grande concentração de poder nas mãos dos
príncipes.” (WATSON, 2004, p. 222). Até mesmo fora da Itália, os impactos do
Renascimento alastraram-se por toda a Europa, onde “desenvolveram-se novas
relações entre os príncipes, tal como o conceito de uma Europa organizada como um
sistema de Estados soberanos e independentes” (WATSON, 2004, p. 232)
13
De certa forma, era muito difícil que a Igreja permanecesse a mesma em suas
práticas e liturgias após tantas críticas. Portanto, foram reunidas suas maiores
autoridades para revisão e discussão acerca de medidas a serem tomadas. Esta
reunião aconteceu, inicialmente, na cidade de Trento, levando assim o nome de
Concílio de Trento – o principal marco da Contrarreforma. (BLAINEY, 2012).
Diversas decisões e mudanças foram tomadas a partir desta reunião e, de certa
forma, é possível dizer que alguns dos protestos de Lutero foram atendidos, como o
fim da venda de indulgências:
É com este cenário desenhado, que a Guerra dos Trinta Anos toma forma: ideias
humanistas em ascensão, protestantes luteranos e calvinistas se opondo à Igreja
Católica, a Contrarreforma em execução e os príncipes europeus acumulando cada
vez mais poder. A Igreja esforçou-se ao máximo para manter sua autoridade papal e
influência política através da Contrarreforma, posição que manteve durante séculos
no continente, mas que agora estava em declínio.
Nessa guerra, dois lados tomam forma e uma posição religiosa declarada: O bloco
católico, composto pela dinastia Habsburgo, representada pelo imperador do Sacro
Império Romano-Germânico, a Bavária (região católica da Alemanha), a Espanha, e
a Igreja Católica. Já o bloco protestante era composto pelos rebeldes protestantes de
algumas partes da Alemanha, os Países Baixos, a Suécia, a Dinamarca e a Inglaterra.
Na fase final da guerra, mesmo sendo católica, a França iria aderir ao conflito pelo
bloco protestante, uma vez que seus interesses nacionais se sobrepunham às suas
convicções religiosas: “O principal objetivo da França era neutralizar o poderio
espanhol e austríaco, [...] buscando garantir os direitos católicos e protestantes e
descaracterizar a guerra como um conflito religioso.” (MAGNOLI, 2006, p. 176).
Com Calvino e suas teses, a Reforma Protestante já havia tomado um rumo mais
radical, não só se opondo à instituição católica e suas práticas, mas também uma
reforma contra a ideia imperial, baseada na perseguição do Império Romano à Igreja
primitiva e aos apóstolos de Cristo.
Mais uma vez, por motivos religiosos e políticos, a Europa entraria em guerra. Não
era novidade, porém, o desejo católico de instaurar uma “monarquia universal
católica”, uma vez que este percorreu toda a Idade Média, iniciando-se com o
imperador Carlos Magno, coroado pelo papa Leão III, no ano 800. (MAGNOLI, 2004).
O próprio Richelieu, chefe político na França de Luís XIII, demonstrando a
neutralidade francesa acerca dos temas religiosos e reprovação da guerra por estes
motivos, afirmou:
É possível reconhecer que agora havia a liberdade de religião, uma vez que foi
terminada a perseguição católica aos hereges e infiéis de forma oficial e estrutural, os
fantasmas da inquisição tiveram um fim e a morte da busca pela “monarquia universal
católica” significou alívio aos europeus, principalmente entre os príncipes. Watson
enfatiza essa nova relação ao afirmar que:
Estes tratados inauguravam uma nova era para o século XVIII, onde as reformas
de Estado seriam aprofundadas em sua concepção política, através de dois principais
eventos, a Revolução Francesa – analisada no segundo capítulo desta monografia –
e a Independência Americana. Se, até a primeira metade do século XVII, a Igreja
lutava para manter seu domínio e poder político, ao lado dos decadentes Espanha e
Império Romano-Germânico, a paz em 1648 e vitória do bloco protestante determinou
o último veredito das estruturas europeias e internacionais de poder e Estado.
Dessa forma, a Europa – centro do poder internacional naquela época e até
poucos séculos atrás – se viu livre de duas grandes hegemonias, a da Igreja universal
e do império, uma vez que o Sacro Império foi o último a dominar grande parte do
continente de forma unificada, afinal:
1
Texto original: “Though the treaties were signed in Westphalia hundred years after Luther, the core
principles of our modern, secularized international society were articulated here. For Luther Hess
Waring, Martin Luther was not only a prophet or a forerunner, but “the founder of the modern theory of
the state; not that he secularized it, but he declared it to be absolutely separate and distinct from the
church and the sole possessor of coercive authority and sovereign power”
21
Sem dúvidas, Maquiavel com sua obra mundialmente conhecida, “O Príncipe”, foi
o grande sistematizador da razão de Estado, mesmo que não tenha utilizado esse
termo diretamente na obra. Sua inovação foi no sentido de escrever para um principie
sobre o poder em si e como mantê-lo, fazer sua manutenção, independente dos
meios. Como o mesmo afirma em sua obra, “um príncipe tem Estado tão grande e
forte que possa, precisando, manter-se por si mesmo, ou então se tem sempre
necessidade da defesa de outrem” (MAQUIAVEL, 2018, p. 54).
Uma vez que Maquiavel escreve esta obra em 1513, quando príncipes
governavam mas ainda eram submissos ao Império e à Igreja, muito antes da Guerra
dos Trinta Anos, Reforma Protestante e Renascimento, “O Príncipe” torna-se proibido
pela Igreja Católica, já que fere seus ideais universais de governo. Mesmo assim, é
inevitável afirmar que Maquiavel trouxe uma contribuição inovadora para o
pensamento moderno, o que é classificado como “precoce” por Damele:
Mais tarde, em 1589, coube ao jesuíta Giovanni Botero fazer uma antítese à tese
de Maquiavel, cunhando o termo de “razão de Estado” e cristianizando sua essência
a partir dos ideais universais da Igreja e da Contrarreforma. Para Damele, as ideias
de Botero seriam “uma versão menos provocatória, mas também menos sincera, da
defesa da especificidade da política e dos seus problemas” (DAMELE, 2021) em
oposição ao maquiavelismo.
O grande diferencial é que Botero escreve em um contexto de concepção mais
clara sobre o Estado moderno, que ainda se mostrava ausente em “O Príncipe”. Já no
início de sua obra, ele define o conceito de razão de Estado como “conhecimento dos
meios adequados para fundar, conservar e expandir o domínio.” (BOTERO, 2017,
tradução minha)2. Hansen compara essas obras da seguinte forma:
2
Texto original: “knowledge of the means suitable to found, conserve, and expand dominion.”
26
É sobre essa base teórica que Richelieu exerce seu governo secularizado na
França e que Hobbes dá profundidade e sólidas bases ao Estado moderno com sua
obra mais famosa, “O Leviatã”. Ele o faria cunhando o Contratualismo e explicitando
o chamado “estado de natureza” do homem, o que deu embasamento filosófico para
o poder monarquista e absolutista da época.
Com este livro, Hobbes argumenta que o estado de natureza do homem é mau e
egoísta, e se não fosse contido e controlado por algo ou alguém, levaria a destruição
da humanidade. Assim, em algum momento da história, os homens estabeleceram
um contrato entre si, dando poder e autoridade para que algo maior que eles mesmos
estabelecesse limites e leis através da força, este algo seria o “Leviatã”, definido por
Hobbes da seguinte forma:
Porque pela arte é criado aquele grande Leviatã a que se chama Estado, ou
Cidade (em latim Civitas), que não é senão um homem artificial, embora de
maior estatura e força do que o homem natural, para cuja proteção e defesa
foi projetado. (HOBBES, 2013, p. 4).
Isso tudo só foi possível, no entanto, pela base filosófica estabelecida pelos
iluministas, sendo Jean-Jacques Rousseau o primeiro desses. Apenas trinta e três
anos separam a morte de Hobbes e o nascimento de Rousseau, dois grandes nomes
da filosofia contratualista. A principal diferença conceitual entre os dois está no estado
de natureza do homem, e a natureza do Estado em consequência disso. Para Hobbes,
a natureza humana era má e precisava ser contida pelo Estado, por isso o contrato
social era apenas um contrato de submissão. (CASSIRER, 1997, p. 341).
Rousseau, porém, discordava desse princípio, uma vez que “integrou à sua teoria
certos elementos tomados de Hobbes e Grotius, mas criticando com toda liberdade
esses dois pensadores” (CASSIRER, 1997, p. 344). Essa crítica dava-se na psicologia
28
de Hobbes, uma vez que para Rousseau “o homem nasce bom, mas a sociedade o
corrompe”. Cassirer descreve o estado de natureza de Rousseau com mais
profundidade:
A Revolução Francesa não foi apenas mais uma revolução, ou similar a qualquer
outro evento histórico do ocidente, mas talvez o mais importante para a modernidade.
Hobsbawm afirma que “se a economia do mundo do século XIX foi formada
principalmente sob a influência da revolução industrial britânica, sua política e
ideologia foram formadas fundamentalmente pela Revolução Francesa.”
(HOBSBAWM, 2012, p. 97).
Para o autor, uma série de fatores destacam a Revolução Francesa como mais
influente e impactante no mundo, se comparada à Revolução Americana e Russa, por
exemplo. Os principais deles são que (I) ela aconteceu no mais populoso e poderoso
Estado da Europa, (II) foi a primeira revolução social radical em massa e (III) foi a
única ecumênica. (HOBSBAWM, 2012) Levando-o a concluir, portanto, que “a
Revolução francesa é assim a revolução de seu tempo, e não apenas uma, embora a
mais proeminente, do seu tipo.” (HOBSBAWM, 2012, p. 100).
Assim, é notória a influência e importância deste evento histórico na Europa e
para todo o sistema internacional. Porém, não cabe ao objeto de estudo desta tese
aprofundar a descrição do evento em si e seus acontecimentos, mas sim os impactos
sobre a visão de religião no Ocidente e sua influência na formação do Estado. Nesse
sentido, se Rousseau foi um dos primeiros iluministas, talvez tenha sido, entre todos
que o seguiram, o mais cristão – mesmo com todas as críticas das igrejas calvinista e
católica à sua teologia. Como Cassirer nos lembra:
O ódio iluminista aos monarcas absolutistas encontra sua segunda vítima imediata
na fé e na crença cristã que os embasava. Se até então toda construção filosófica e
política acerca de Estado fazia-se de uma base cristã e uma cosmovisão teológica,
daqui em diante substitui-se a fé no Deus do cristianismo pela fé na razão humana. O
Estado deixa sua laicidade, já estabelecida em Westfália, e passa a caminhar em
direção ao ateísmo:
3
Texto original: “For Abraham Kuyper the French Revolution was different from the other great
revolutions before it in the manner it ignored God altogether; refused to ground politics on anything that
went beyond nature, above man itself. What was revolutionary about France was that it conceived a
form of authority that was not only held by men, but as something that proceeded from man: “[T]he
sovereign God is dethroned and man with his free will is placed on the vacant seat” (Kuyper 2007, 88).
On God’s place was then implanted an explicitly nontheist ideal of the will of the people, which was, for
Kuyper, “perfectly identical with atheism” (ibid., 88).”
32
Não faltaram tentativas de substituir a religião cristã e sua moralidade, e por mais
que tenham falhado em substituir completamente a religiosidade na França, os
iluministas tiveram sucesso ao separar as crenças cristãs da moral que a sucedia:
John Charles Ryle, escritor e bispo inglês do século XVIII, nascido pouco depois
do “despertar religioso” liderado por John Wesley no país, descreve este evento da
seguinte forma:
Que uma grande mudança para melhor tenha ocorrido na Inglaterra nos
últimos cem anos é um fato que suponho que nenhuma pessoa bem
informada jamais tentaria negar. [...] Houve uma grande mudança para
melhor. Tanto na religião quanto na moral, o país passou por uma revolução
completa. As pessoas não pensam, nem falam, nem agem como faziam em
1750. É um grande fato, que os filhos deste mundo não podem negar, por
mais que tentem explicá-lo. (RYLE, 1866, p. 13, tradução minha).4
4
Texto original: “That a great change for the better has come over England in the last hundred years
is a fact which I suppose no well-informed person would ever attempt to deny. […] There has been a
vast change for the better. Both in religion and morality the country has gone through a complete
revolution. People neither think, nor talk, nor act as they did in 1750. It is a great fact, which the children
of this world cannot deny, however they may attempt to explain it.”
34
Para o autor, a causa para estes eventos jamais poderia ser de qualquer lei ou
estatuto feito pelo governo, uma vez que pessoas não se tornam religiosas por atos
parlamentares, nem aconteceu por causa da Igreja, pois esta estava enfraquecida e
abandonada por seus líderes. Portanto, este evento só foi possível por meio de
homens miseráveis e humildes, como John Wesley, que foram “tocados por Deus”
(RYLE, 1866).
Este “despertar”, porém, não foi apenas religioso, mas gerou grandes
consequências sociais e morais, como a abolição da escravatura e reformas de
prisões e hospitais (HOBSBAWM, 2012). Algo que a nova “moralidade leiga oficial”
iluminista jamais alcançou de imediato.
Há de se considerar, no entanto, o grande marco que ela deixou para a formação
do Estado moderno e do sistema internacional como conhecemos hoje, a Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão, que deu as bases para a futura Declaração
Universal dos Direitos Humanos. Como Bobbio deixa claro:
A Revolução Francesa foi exaltada e execrada, julgada ora como uma obra
divina, ora como uma obra diabólica. Foi justificada ou não justificada de
diferentes modos: justificada porque, apesar da violência que a acompanhou,
teria transformado profundamente a sociedade européia; não justificada
porque um fim, mesmo bom, não santifica todos os meios, ou pior ainda,
porque o próprio fim não era bom, ou finalmente, porque o fim teria sido bom,
mas não foi alcançado. Mas, qualquer que seja o Juízo sobre aqueles
eventos, a Declaração dos Direitos continua a ser um marco fundamental.
(BOBBIO, 2004, p. 55).
Bobbio chama esta Declaração, oriunda da Revolução Francesa e dos seus ideais
iluministas, de uma “reconciliação do pensamento cristão com uma das mais altas
expressões do pensamento racionalista e laico” (BOBBIO, 2004). Ouso afirmar, no
entanto, após todos os eventos históricos e teses filosóficas aqui analisadas, que esta
não foi uma reconciliação entre as partes, mas a cisão entre as bases do pensamento
cristão e o pensamento laico, que antes deste evento, eram uma coisa só.
35
A partir desse momento, não há bússola que nos guie, nem podemos saber
claramente a que porto rumar. Tomada em seu conjunto, a Europa
indubitavelmente estava em uma condição florescente quando a Revolução
Francesa se completou. Não é fácil dizer o quanto esse estado de
prosperidade se devia ao espírito de nossos velhos costumes e opiniões;
mas, como tais causas não podem ser indiferentes em sua operação,
devemos presumir que, no todo, sua ação foi benéfica. Estamos demasiado
inclinados a considerar as coisas no estado em que as encontramos, sem
ponderar suficientemente sobre as causas pelas quais foram produzidas e
que devem possivelmente preservá-las. Nesse nosso mundo europeu, nada
é mais certo de que nossa civilização, nossos costumes, e todas as boas
coisas que dele decorrem, dependeram durante séculos de dois princípios; e
resultaram, sem dúvida, da combinação de ambos: aludo ao espírito do
cavalheirismo e ao espírito da religião. (BURKE, 2019, p. 92)
religião volta a posição que possuía antes da Idade Média. No entanto, o cristianismo
permanece como a religião com maior número de fiéis pelo mundo, e toda cultura
ocidental se baseia em pilares “judaico-cristãos”, mesmo perdendo sua primazia
política em 1789. Não à toa, Burke chama a Revolução Francesa de “uma revolução
dos sentimentos, dos costumes e das opiniões morais.” (BURKE, 2019, p. 94).
Contudo, não se pode menosprezar a importância da religião, mesmo nessa nova
posição na pós-modernidade. Afinal, ainda que o sistema internacional seja uma
anarquia, esse ainda é regulado por direitos internacionais formados a partir de uma
cultura e moralidade inicialmente religiosa. Mesmo após o estabelecimento de uma
nova ideologia e moral independente da religião, “estatisticamente falando, as
religiões não declinaram; ao contrário, o grau de aderência a sistemas de crenças
religiosas e mesmo a existência de conflitos supostamente motivados por religião
aumentaram substancialmente.” (ESTRADA, In: CARLETTI; FERREIRA, 2016, p. 54).
Nesse sentido, talvez o ideal iluminista tenha falhado ao afirmar que a razão
alcançaria as massas e as “iluminaria” a ponto de deixarem a religiosidade “primitiva”
de lado. Um dos maiores filósofos iluministas, Denis Diderot, formulou teses que
resumiam as reflexões iluministas acerca da religião, como a ideia de que “as massas
estavam em condições infelizes porque ainda estavam amarradas à religião e à Igreja,
e que o progresso do Iluminismo as libertaria daquele estado de ignorância.”
(HIMMELFARB, 2011, p. 207).
De fato, com o passar do tempo, a razão proliferou entre as massas lenta e
progressivamente, e o acesso ao conhecimento e informação foi facilitado. No
entanto, se estatisticamente tanto a razão como a religião cresceram nesse período,
e assim permanecem, levanta-se duas hipóteses: (I) a infelicidade das massas não
estava amarrada à religião, ou (II) o iluminismo não as libertou de seu estado de
ignorância.
Em ambos os casos, a religião não perdeu sua influência, mesmo que o Estado
tenha sido tomado pelo culto à razão, e por ela legitimado. Até mesmo os próprios
filósofos franceses não conseguiram deixar de notar o benefício social e moral da
religião na sociedade política, apesar de negligencia-la:
Também é possível teorizar que foram os religiosos que, pela primeira vez no
ocidente, assumiram a responsabilidade de educar outras classes da sociedade além
dos nobres e clérigos, através das universidades medievais, dos orfanatos
wesleyanos-metodistas ingleses, das escolas jesuítas e das faculdades protestantes
americanas, já que os iluministas se abdicavam da responsabilidade de educar a
população, no máximo, atribuíam-na à terceiros, “pois as instituições de ensino
estavam nas mãos da Igreja, assim, a expansão da educação só iria aumentar a
estupefação e estultificar as pessoas.” (HIMMELFARB, 2011, p. 235).
Para d' Alembert, ele escreveu: “nós nunca pretendemos instruir sapateiros e
criados; esse é o trabalho dos apóstolos”. [...] Se alguns pobres foram de fato
educados na França pré-revolucionária, não o foram por causa dos
philosophes, como aponta o historiador Daniel Roche, mas apesar deles. “A
maioria dos pensadores iluministas se opunha ao ensino da leitura e da
escrita dos camponeses, enquanto a Igreja, e especialmente o baixo clero,
eram favoráveis a isso.” (HIMMELFARB, 2011, p. 235).
Nota-se que a Igreja não apenas formou muitos dos pensadores iluministas, que
em sua maioria frequentaram escola jesuítas, mas também alfabetizou a população
que leria suas obras futuramente, já que foi a Igreja quem assumiu a responsabilidade
pela educação compulsória no século XVIII, elevando as taxas de alfabetização
europeias de 29% para 37% em noventa anos. (HIMMELFARB, 2011).
De fato, para a teologia cristã, não havia a separação de religioso e secular até
meados da modernidade. O próprio apóstolo Paulo escreve em sua carta aos romanos
que “toda alma esteja sujeita às autoridades superiores; porque não há autoridade
que não venha de Deus; e as autoridades existentes foram ordenadas por Deus.”
(ROMANOS 13:1. In: JAMES, 2021, p. 1867). Essa forma cristã de compreender o
mundo demonstrou-se na influência eclesiástica sobre o Império Romano e na ordem
de vida feudal durante a Idade Média, profundamente ligada à Igreja. Nesse período,
era a Filosofia Patrística que imperava entre os principais filósofos e autoridades
políticas, uma vez que as instituições de ensino estavam sob responsabilidade da
Igreja Católica.
Agostinho, um dos nomes mais importantes durante o medievo e para a Filosofia
Patrística, através da sua obra “Cidade de Deus”, foi o primeiro a fazer algum tipo de
separação entre a esfera humana e a divina, sendo altamente influenciado pelos
ideais dualísticos de Platão. No entanto, essa era apenas uma ilustração dentro da
própria teologia cristã, e não uma separação da fé e prática pública como
compreendemos atualmente.
Foi somente durante a modernidade, com as tensões das guerras religiosas por
toda a Europa, altamente influenciados pelas teses de Maquiavel, que alguns autores
começam a fazer uma separação entre religioso e secular na vida pública, algo
inimaginável para os filósofos e teólogos medievais.
Não é segredo que a secularização tem origem dentro da própria teologia, entre
os protestantes principalmente, mas há de se fazer uma distinção entre o pensamento
protestante de secularização e sua transformação pelos filósofos humanistas e
iluministas. Por mais que os protestantes definissem a secularização como “uma
paulatina distinção entre o século e as objectivações dogmáticas e institucionais do
religioso como Igreja” (CATROGA, 2010, p. 21), eles ainda compreendiam que a
política e vida pública estavam debaixo da soberania de Deus, como todo o restante
da vida humana.
Como prova suplementar, mobiliza-se, ainda, o facto de ter sido nas regiões
cristianizadas (e não nas do Islão, nem nas de influência hindu ou budista)
que ocorreram as experiências históricas que tornarão as sociedades
ocidentais mais seculares. (2010, p. 21).
O autor também identifica três razões para que essa secularização tenha
encontrado palco apenas em contextos cristãos, sendo elas: (I) a afirmação da
transcendência de Deus, que implica na autonomia de um mundo natural e político;
(II) a definição de um “Deus móvel”, que intervém na história em ações específicas,
assume o homem como um indivíduo livre e responsável no tempo; (III) as crenças no
Juízo Final e nas leis mosaicas, caracterizavam o Deus cristão como um Deus ético e
justo, levando as consciências cristianizadas a racionalizarem a moral que seria
projetada na história ocidental. (CATROGA, 2010).
Essas razões explicitadas por Catroga explicam, em parte, a dificuldade de os
iluministas dissociarem a moral da religião cristã, e, consequentemente, sua influência
na esfera pública e civil. Estes são os principais pilares da sociedade internacional
ocidental e judaico-cristã que permitiram a existência de um Estado secularizado,
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onde há tolerância civil e, portanto, preservação do bem comum. Por isso, Estrada
chega à conclusão de que “a própria noção de secularização, extensamente debatida
e controversa, não representa a ruptura com o cristianismo, se não sua continuação.”
(In: CARLETTI; FERREIRA, 2016, p. 75).
A alternativa encontrada na modernidade para separar a vida pública dos
conceitos e dogmas religiosos foi empoderar o Estado a ponto de substituir a
divindade do cristianismo pela soberania deste. Não seria possível, filosoficamente,
deixar o homem político regredir ao seu estado de natureza hobbesiano sem que o
Leviatã o limitasse, para preservar o bem comum da tolerância civil. Haynes deixa isso
claro ao afirmar que:
a centração imanentista e secular das raízes do poder ter sido uma vitória
inequívoca, pois os principais conceitos da teologia católica acabarão por ser
transferidos, em boa parte, para o interior da teoria política e jurídica do
Estado moderno. (2010, p. 101).
Racionalmente, já estava tudo definido e formulado para dar vida à religião civil
entre os cidadãos no fim da modernidade. Os contratualistas haviam fornecido a base
ontológica necessária para seu surgimento, e os iluministas legitimavam sua
implementação por meio da razão. No entanto, só isso não era o suficiente para
substituir, no imaginário geral da população, a moralidade cristã pela “moralidade leiga
oficial”, pois “só um sentimento ou paixão de Estado consolidariam a razão de Estado”.
(CATROGA, 2010, p. 125)
No cristianismo, o medo da condenação eterna ao inferno, e desejo pela herança
espiritual do paraíso forneciam os sentimentos que levavam à obediência das leis e
morais bíblicas. Da mesma forma, era através dos cultos no templos e aulas nas
escolas de matriz religiosa que essas leis e moral era ensinada pela Igreja aos fiéis, à
grande massa populacional. Para que a razão de Estado fosse consolidada na
população, era necessário que uma narrativa fosse ensinada de forma recorrente, a
ponto de gerar sentimentos que levassem à submissão ao Estado, surgindo então, o
patriotismo, ou nacionalismo:
Dessa forma, com o ensino nacional e civil substituindo o ensino cristão, foi
possível estabelecer a prática da preservação do bem comum e tolerância civil, ideais
antes apenas universais, mas pouco concretos. A concepção de pátria no imaginário
da população era tão poderosa a ponto de reunir “pessoas em torno do consentimento
comum de se vincularem, com base em memórias históricas compartilhadas”
(KOYZIS, 2021, p. 120), da mesma forma que alguém carregava um sobrenome
familiar, também carregaria sua nacionalidade com o mesmo orgulho e peso
sentimental, mesmo que mais amplo.
Assim, as bandeiras nacionais substituiriam as bandeiras das famílias nobres e
reais, o hino nacional substituiria as cantatas camponesas populares, e a formação
de um exército nacional armado marcava o maior símbolo de força coercitiva do
Estado para preservação do bem comum. Afinal, “para se radicar, fomentar e
reproduzir o amor divino, ter-se-ia de usar a imaginação e a linguagem dos signos,
aliás, como ensinava toda manifestação ritual da sacralidade, ao pressupor o mito e a
sua renovação como liturgia.” (CATROGA, 2010, p. 126).
A partir dessas definições e liturgias da “religião civil”, que as relações
internacionais conheceriam políticas externas baseadas em “interesses nacionais” e
conflitos internacionais justificados por soberania territorial e nacional. Dessa forma,
os conflitos entre Estados independentes e soberanos com interesses e exércitos
próprios passam a substituir as justificativas religiosas, como fez Richelieu com a
França, pela primeira vez, na Guerra dos Trinta Anos. Era natural que isso
acontecesse mediante a implementação do patriotismo, pois “os nacionalistas
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identificam o mal, em última análise, com o domínio de quem é diferente deles, seja
em matéria de raça, cultura, língua ou religião.” (KOYZIS, 2021, p. 128).
Dessa forma, o nacionalismo obteve sucesso ao instaurar a vontade comunitária
do bem-comum, superando o individualismo cristão de busca pela salvação ou
santificação, porém o fazia apenas de forma interna, entre os próprios nacionais, e
falhava em fazê-lo de forma externa e internacional. Isso porque, enquanto o
cristianismo unia os fiéis contra um “inimigo comum” universal do pecado e demônios,
o nacionalismo unia seus cidadãos contra inimigos externos, passando a ver outras
comunidades nacionais como ameaças.
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Texto original: “religion”, far from being squeezed out of the frame of a secularising modernity, re-
emerges within it in new guises. Its legacies are not buried and forgotten, rather they are transmuted in
and by nationalism. For, not only are specific motifs, symbols, and traditions of earlier world religions
taken over and used by nationalists, at the official and popular levels; nationalism itself, through its
conception of the nation as a sacred communion, with its own doctrines, texts, liturgies, ceremonies,
churches, and priests becomes a novel kind of anthropocentric, intra-historical, and political “religion”, a
(rival or allied) functional equivalent of the old, transhistorical religions, but one that like them fulfils many
of the same collective functions through analogous rituals, myths, and symbols. (Smith 2000, 811).
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Nos países católicos do Sul da Europa, termos como sociedade laica, Estado
laico, ensino laico, laicidade, laicismo, laicizar, laicização impuseram-se como
vocábulos que também constituíam instrumentos de luta contra a influência
do clero e da Igreja católica e, nas suas versões mais radicais (agnósticas e
ateias), contra a própria religião. (CATROGA, 2010, p. 297).
A educação laica foi o principal meio usado pelo Estado soberano e independente,
ao longo dos séculos, para formar o povo como cidadãos submissos a este soberano
e com o senso de comunidade criado pela “religião civil”. Nesse sentido, a laicização
quebrou os vínculos entre as instituições do Estado com a religião cristã e a Igreja, o
que era necessário para que se instituísse, por meio de um “sistema de ensino
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obrigatório, gratuito e laico, uma orientação comum a todo o laós, ou melhor, a toda a
Cidade.” (CATROGA, 2010, p. 302).
Por meio desta análise histórica e filosófica, é possível notar que a laicidade do
Estado não denota apenas indiferença ou neutralidade com relação à religião, mas
sim uma sobreposição da “religião civil e secular” acima de qualquer outra no ensino
e formação da população.
Isso fica evidente quando se observa o fato de que “as teorias políticas clássicas
concentraram seu interesse nas relações internas aos Estados, entre o governante e
a sociedade em geral.” (MAGNOLI, 2004, p. 39). Afinal, as primeiras relações de
poder, desenvolvidas na esfera pública laica, seriam entre os governantes e os
cidadãos formados por este mesmo Estado, a quem atribuem autoridade segundo a
filosofia contratualistas de Hobbes e Rousseau. Essa relação do Estado com seus
nacionais permanece até hoje, como destaca Haynes: “Os Estados têm sua política
externa manifestadamente direcionada para alcançar um conjunto de objetivos e
aspirações de interesse nacional” (In: CARLETTI; FERREIRA, 2016, p. 28).
Também é possível notar que, de acordo com Magnoli, as três escolas teóricas
de relações internacionais, baseiam-se em filosofias de pressuposto secular antes de
qualquer ideal religioso ou cristão, como faziam os monarquistas modernos antes da
Revolução. Magnoli descreve três principais escolas de pensamento
internacionalistas: escola idealista, escola realista e escola radical. A primeira baseia-
se no direito natural de Grotius, aplicando-o ao sistema internacional. A segunda
escola, a realista tem como raiz filosófica as teses de Maquiavel e Hobbes,
ressaltando a força e poder dos Estados. Por fim, a escola radical encontra seus
fundamentos na historiografia de Marx, o mais contemporâneo desses pensadores.
(MAGNOLI, 2004).
Por mais que nenhum dos filósofos que embasou as teses dessas escolas
internacionalistas possuísse a mesma concepção do Estado laico que os teóricos
contemporâneos, seus ideais já foram reinterpretados do ponto de vista secular pelos
próprios autores internacionalistas. Por esse motivo, dificilmente encontra-se sequer
alguma menção à religião entre a literatura dessas escolas, o que era muito mais
comum nos textos de Maquiavel, Hobbes e Grotius, por terem sido formados em
instituições religiosas cristãs, e não em escolas laicas estabelecidas após a Revolução
Francesa. Soares explica essa questão ao afirmar:
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segundo Fox (2001, p.54), o círculo das ciências sociais (incluindo o estudo
das relações internacionais) tem sua origem na rejeição da religião, porque a
tradição perpetuou a explicação racional como fonte exclusiva de resposta
aos atos e comportamentos do ser humano. Ou seja, o estudo da religião na
esfera política foi se transformando num fator sem importância no mundo
moderno até a primeira metade do século XX (SOARES, 2016, p. 49).
Nesse sentido, por se basear na religião civil como ontologia, e em Westfália como
marco secularizante da sociedade internacional, a disciplina relações internacionais
tardou em abordar o assunto da religião em sua literatura. Ainda mais em seus
primeiros anos de teoria clássica, uma vez que era dominada pela escola realista e
suas teses de conflito e segurança como prioritárias durante a Guerra Fria:
Foi somente com o paradigma liberalista que a religião ganha algum tipo de
atenção, mas apenas como acessório, influente na formação do interesse nacional ou
influência do soft power de um Estado sobre o outro. Haynes chega a essa conclusão
em sua análise:
Com isso evidente, fica claro que, por mais que os filósofos e pensadores que
embasaram muito da teoria e prática da matéria de relações internacionais fossem
guiados por uma moralidade e religião cristã clara, a “moralidade leiga oficial” e
“religião civil” obtiveram sucesso ao estabelecer uma base ontológica secular e laica
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para o estudo das relações entre os Estados e os mais diversos atores da sociedade
internacional.
Conclui-se, portanto, que a religião teve grandes alternâncias de posição em sua
relação com a política no ocidente. No início do Império Romano, as religiões pagãs
atuavam apenas como legitimadores do Imperador e seu poder político. Com a
submissão dos imperadores à Igreja cristã, no entanto, a religião passa a ocupar uma
posição de formadora do poder político, e assim permaneceria ao longo da Idade
Média e boa parte da modernidade. Porém, com o enfraquecimento institucional da
Igreja por parte de movimentos como o Renascimento e a Reforma, a Revolução
Francesa instaura os ideais iluministas para o surgimento de uma nova religião civil e
secular que ocuparia o lugar do cristianismo de legitimador e formulador da política.
Com isso, o nacionalismo fornece a estrutura ideológica necessária para que essa
mudança de posição ocorresse, e dá poder ao Estado para que eduque seus
nacionais, implantando essa religiosidade civil ao longo dos anos. Dessa forma, a
religião continua influente até hoje na política internacional ocidental, mas sua
principal formuladora já não é mais o cristianismo ou as religiões pagãs, e sim uma
forma nacionalista de religião civil, laica e secular.
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5 CONCLUSÃO
Com essa pesquisa foi possível fazer uma análise aprofundada da relação e
influência da religião com a formação do Estado e, consequentemente, das relações
internacionais. Através do estudo da modernidade, principalmente, por meio de
diversas fontes bibliográficas, ficou claro que a religião deu as bases filosóficas
necessárias para que o Estado westfaliano surgisse nesse período. Isso ocorreu no
sentido de que a Igreja como instituição teve papel fundamental na organização da
sociedade internacional na modernidade e na formação educacional da população
durante muito tempo.
A Reforma Protestante, somada aos paradigmas renascentistas,
enfraqueceram a Igreja em seu poder político, até que, com os ideais iluministas
implementados durante a Revolução Francesa, foi possível a criação de uma
“moralidade leiga oficial”, que iria moldar o futuro da educação pública e a organização
política pós-moderna. Destaca-se também o papel de filósofos e pensadores
modernos como Maquiavel, Richelieu, Hobbes, Botero e Rousseau, que com sua
teoria deram forma à razão de Estado e ao início do processo da secularização,
mesmo que seus textos e literatura não fossem, em essência, seculares, mas
baseados principalmente nos ideais universais cristãos.
Nota-se que o processo de secularização não foi algo rápido ou instantâneo,
mas uma longa mudança de paradigma na Europa e nos países cristãos que levou
anos para ser implementado, por meio do ensino da religião civil e do nacionalismo,
que passaram a terem protagonismo na formação da população em relação à religião.
É justamente nesse contexto que as relações internacionais se desenvolvem, de
forma secularizada, por mais que o sistema de Estados seculares já tivesse sua
gênese em Westfália, foi somente após a Revolução Francesa que os Estados
europeus deixaram os dogmas e ideais da Igreja em segundo plano, priorizando a
formação de cidadãos nacionais antes de fiéis.
Observou-se que houveram dois principais movimentos secularizantes, mas
com fundamentos ideológicos diferentes, e que só um deles prevaleceu ao longo da
história ocidental. O primeiro foi a secularização protestante, que por mais que
compreendesse que o mundo em sua totalidade e todos os homens estavam debaixo
da soberania de um Deus onipotente, os protestantes concluíram que seria benéfico
à sociedade que os dogmas religiosos da Igreja fossem separados da vida pública. Já
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REFERÊNCIAS
BOTERO, G. Botero: The Reason of State. 1. ed. New York, NY: Cambridge
University Press, 2017.
JAMES, K. Bíblia King James 1611 de Estudo Holman - Marrom com Preta. 4aa
edição ed. [s.l.] BV Books, 2021.