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ANDRE GIDE (1869-1951)


“UM HÍBRIDO DE BANCANTE E ESPÍRITO SANTO”
Olga Maria MC Souza Soubbotnik

O escritor André Gide não se submeteu a uma análise continuada, pois abandonou a tentativa após
apenas seis sessões com uma psicanalista polonesa, Eugénie Sokolnicka, uma das primeiras a levar
a novidade freudiana aos franceses. No entanto, eminente figura da inteligenzia francesa dos
começos do século XX, Gide inspirou psicanalistas e psiquiatras do escopo de Jacques Lacan e Jean
Delay e diversos outros, menos conhecidos. Tal interesse não surpreende, pois não faltam razões
para isso. Em primeiro lugar, porque a vasta obra eminentemente autobiográfica é um convite à
elaboração de hipóteses sobre sua estrutura psíquica, oferecendo um rico material tanto para
construções pormenorizadas sobre seus sintomas desde a infância, quanto para o
acompanhamento de seus desdobramentos ao longo da vida. Em segundo lugar, porque Gide, no
cuidado com o qual colaborou com seu biógrafo ao legar-lhe um imenso material de trabalho já
bem organizado, parecia ter interesse em tornar-se objeto desse tipo de estudos. E, em terceiro
lugar, por ter conseguido, partindo de uma infância difícil, chegar a uma vida de realizações, a
ponto declarar a uma amiga muito próxima, conhecida com a Petite Dame, que escreveu sobre ele
um longo testemunho publicado em sete volumes: “Mas, minha cara, tudo que faço dá certo!”
(RYSSELBERGHE, 1973, p. 23). Gide foi um crítico influente além de escritor de sucesso com imenso
reconhecimento ainda em vida. Suas realizações não se limitaram ao domínio profissional,
estendendo-se também à vida pessoal, como mostra este comentário, também testemunhado pela
Petite Dame: “É extraordinária a dificuldade que tenho de não ser feliz! ” (Ibid, p. 31)
Millot (1996) comenta que “Gide foi um vivo desmentido ao lugar comum que afirma que não se
pode ter tudo: ele conheceu o amor com sua mulher, as alegrias da paternidade com outra, o prazer
com os garotos” e que conseguiu tornar-se “um objeto de veneração quase unânime”. O que não
deixa de ser surpreendente, no caso de um homem cujo gosto sexual, conhecido como pedofilia,
não só é mal visto por uma imensa maioria, como é passível de condenação segundo o código
penal. Durante a vida, Gide usufruiu de “fortuna, saúde, amizades, honra”, e quando recebeu o
prêmio Nobel em 1947, foi até saudado como “emancipador de espíritos” e “liberador de
costumes”.
Como entender essa aparente complacência social?
“Talvez seja característico da nossa modernidade que uma sociedade seja levada a prestar
homenagem àquele que renega publicamente seus valores oficiais. Gide seria assim o
primeiro de nossos contemporâneos, ele que foi o primeiro a reivindicar o direito a uma
sexualidade abertamente fora das normas e que deveu a esta audácia a amplitude de sua
fama. ” (MILLOT, 1996, p. 20)
Lacan, explorando as complexas reações da sociedade nesse tipo de situação, na mesma época em
que se dedicou a elaborações sobre a perversão e a homossexualidade a partir de sua releitura do
Édipo, concluiu o seminário 6 com um certo “elogio da perversão” (expressão usada por Miller na

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contracapa). Ele estende ao campo da cultura e da sociedade suas conclusões sobre o caráter
indestrutível do desejo no sujeito individual e sobre sua função na criatividade:
“O que se apresenta na sociedade como cultura – e que entrou, a títulos diversos, em um
certo número de circuitos de trocas no interior do grupo – instaura aí um movimento, uma
dialética onde fica aberta a mesma hiância que aquela em cujo interior situamos a função do
desejo.
Neste sentido podemos dizer que aquilo que se produz como perversão reflete no nível do
sujeito lógico, o protesto daquilo que que o sujeito sofreu a nível da identificação, na medida
em que ela é a relação que instaura e ordena as normas de estabilização social de diferentes
funções. ” (LACAN, 2013, p.569.)
No sujeito uma regulação, a nível das identificações decorrentes do Édipo, “instaura e ordena as
normas de estabilização social de diferentes funções” que corresponde, na cultura, aos circuitos de
troca reguladas. Assim como no sujeito o desejo escapa ao processo de identificação e à regulação,
ressurgindo na forma de sintomas, também a nível social existe o que escapa à regulação, ponto
em relação ao qual Lacan situa, lado a lado, a perversão e a sublimação.
“ Poderíamos dizer, em suma, que algo se instaura como um circuito girando entre, de um
lado, o conformismo, ou as formas socialmente conformes, da atividade cultural – expressão
que se torna excelente para definir tudo aquilo que da cultura se contabiliza e se aliena na
sociedade – e, por outro lado, a perversão, na medida em que ela representa ao nível do
sujeito lógico e por uma série de gradações, o protesto que se levanta, frente à
conformização, na dimensão do desejo, na medida em que o desejo é relação do sujeito com
seu ser.
É aqui que se inscreve essa famosa sublimação [...]” (ibid, p.570.)
É interessante notar que o percurso de origem eminentemente clínica da argumentação de Lacan
que o conduziu a essas considerações a respeito do social pela equiparação entre aquilo que
acontece a nível do sujeito e o que acontece ao nível da cultura. Em ambos Lacan ressalta um “mal-
estar”, senão da civilização, pelo menos do desejo. E é do lado do desejo que, nesse momento do
seu ensino, de forma privilegiada, situa-se a relação com o ser que deve orientar a intervenção do
analista. Formas de protesto do desejo, do ser, que escapam às identificações, à normalização,
retornam tanto no nível do indivíduo quanto da cultura. Lacan detectou “protestos do desejo” em
situações clínicas retiradas de casos publicados na literatura psicanalítica da época e desenvolveu
uma crítica acirrada aos pós-freudianos, no que diz respeito à direção do tratamento adotada então
como uma “adaptação à realidade”. Como Freud, em seus últimos trabalhos, tinha indicado que nas
neuroses e nas perversões a constituição do campo da realidade está comprometida, alguns
analistas da época entenderam que o objetivo do trabalho psicanalítico deveria ser corrigir, retificar
a percepção da realidade distorcida pela invasão da subjetividade. Como é hoje bastante difundida
a crítica de Lacan a esse tipo de condução do tratamento, denunciado como desvio grave da prática
criada por Freud com o nome de psicanálise, não desenvolveremos aqui esse ponto, remetendo os
leitores interessados em aprofundá-lo aos seminários da época. Lacan apoiou-se em casos
recolhidos na literatura psicanalítica conduzidos segundo aquele entendimento da direção do
tratamento e apontou, como consequência possível desse tipo de intervenção, o surgimento de
perversões transitórias induzidas pela própria análise quando conduzida nessa direção. Sintomas

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perversos podem surgir, então, como “neo-formações” (a expressão é de Lacan) em tratamentos


conduzidos de maneira a negligenciar o desejo, que insiste em surgir na análise e o faz,
predominantemente, mediante esse tipo de sintomas. É o caso, por exemplo, de Yve, paciente de
Ruth Lebovici (LEBOVICI, 1999, p.164) e é“ [...] assim que reage a dimensão própria ao sujeito [isto
é, o desejo] cada vez que a intervenção tenta colapsá-la, comprimi-la numa pura e simples redução
aos dados que se chamam objetivos embora não sejam senão coerentes com os preconceitos do
analista.” (LACAN, 2013, p.569.)
A sublimação, que Lacan define então como “trabalho criativo na ordem dos logos” e a perversão,
“entendida sob sua forma mais geral como aquilo que no ser humano resiste a toda normalização”,
encontram o mesmo ponto de origem. O elogio da perversão se deve, pois, ao fato de que
reconduz ou sinaliza as trilhas do desejo ao analista extraviado ou às sociedades negligentes quanto
a ele: “Daí vêm mais ou menos inserir-se na sociedade, encontrar lugar no nível social, as atividades
culturais, com todas as incidências e todos os riscos que comportam, até mesmo e inclusive de
remanejamento dos conformismos anteriormente instaurados, podendo chegar a sua explosão. ”
(ibid, p. 571)
Assim, a cultura pode fazer algumas concessões aos artistas que a despertam do sono das normas
com questões sobre desejo e essa poderia ser uma explicação da glória aparentemente paradoxal
de Gide. Entretanto, a importância dessa obra e a extensão de sua influência não podem ser
reduzidas, evidentemente, a tendências sexuais fora das normas no autor. Embora essas tendências
tenham importância, na medida em que a defesa da pederastia representa um papel central, isso é
apenas um aspecto do complexo e sedutor personagem Gide que se reflete numa multifacetada
obra, cujas características tentaremos, a seguir, delinear.
André Gide nasceu em Paris em uma família da alta burguesia protestante. Seu pai, jurista e
professor na Escola de Direito em Paris, morreu cedo, quando ele tinha apenas onze anos de idade,
deixando o menino “de repente, totalmente envolto nesse amor que se fecharia sobre ele” (GIDE
apud LACAN,1998, p. 749), filho único inteiramente aos cuidados de uma mãe autoritária e
controladora. Ela era rica herdeira de uma família da Normandia. Casou-se tarde e era considerada
uma mulher pouco atraente, assim como “pouco receptiva aos pretendentes quanto às gentilezas, e
que das núpcias que tardam a vir, consola o vazio com uma paixão por sua preceptora [...]” (LACAN,
1998, p. 760).

A longa vida de Gide (que morreu com mais de 80 anos) constitui um exemplo do que se chama, na
linguagem coloquial, de uma existência realizada. No entanto, essa vida finalmente bem-sucedida
não começou muito bem. Seguir e entender o movimento de transformação de uma infância
limitada por sintomas à plenitude da maturidade apresenta-se, ao escrutínio dos estudiosos “psi”
como um enigma a ser elucidado mediante um trabalho que conta, como facilitador, com as
próprias características da obra. Sua infância difícil, solitária e mal-humorada (rechignée), um “vale
da sombra da morte”, (GIDE, 1954, p. 570), encontra-se relatada com franqueza na obra
autobiográfica Se o grão não morrer.
Em sua abordagem do caso Gide, chamou a atenção de Lacan o aspecto sem graça, rabugento,
feioso, que ele apresentara em criança, perceptível numa foto famosa por despertar a mesma
impressão em diferentes pessoas que tiveram ocasião de observa-la e de revelar na aparência as

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sombras do mal-estar infantil. O modo como Gide descreve sua infância é condizente com as
impressões despertadas pela fotografia. Algumas frases indicativas, retiradas também da principal
obra autobiográfica, são suficientes para ilustra-lo: “A espessa noite em que minha puerilidade se
prolongava”, “o estado larvário em que eu me arrastava” ou ainda “as trevas nas quais minha
infância aguardava”.
O aspecto a tal ponto desgracioso da criança é atribuído ao nível mais primário da relação com a
mãe. Cito Lacan: “Não apreender aí nada senão esse algo de abissal que se constitui na relação
primária do sujeito com sua mãe”. Buscando nas características da mãe de Gide pistas sobre o que
teria se constituído, ou deixado de constituir-se, na relação com a criança, Lacan resume “[...]
sabemos, ao mesmo tempo, que tinha altíssimas e notabilíssimas qualidades, e um não-sei-quê de
totalmente elidido em sua sexualidade, em sua vida feminina. ” A consequência disso sobre o filho
foi “certamente [deixar] o menino, no momento de seus primeiros anos de vida, numa posição
totalmente não situada. ” (LACAN,1999, p. 269)
Lacan se refere à identificação ao falo como crucial nos primórdios da constituição do sujeito, pois
dá acesso ao sentimento da vida. Essa identificação primordial depende da relação da própria mãe
com o falo, podendo a situação da criança ser dificultada por certas posições dela a respeito. Foi
esse o caso de Gide, em quem criou-se esse “vazio que o menino povoou com os monstros cuja
fauna conhecemos, desde que uma arúspice de olhos de menina, tripeira inspirada, deles nos fez o
catálogo, fitando-os na entranha da mãe nutriz.” (LACAN, 1998, p. 761). Com essa frase enigmática
Lacan se refere a Melanie Klein, psicanalista de crianças que muito explorou essa relação primordial
com a mãe e os fantasmas que a criança atribui ao interior do corpo materno, os chamados objetos
internos. Encontramos os fantasmas infantis de Gide relatados em passagens da autobiografia:
a) nos pesadelos infantis recorrentes de ser devorado pela Croque-mitaine, personagem
equivalente ao nosso bicho-papão.
b) nas fantasias curiosas e atípicas que acompanhavam a masturbação compulsiva infantil,
algumas inspiradas na literatura1, cujos temas não estão ligados a relações com outro ser
humano, mas, ao contrário, à decomposição ou perda da forma da forma humana, ou ao
despedaçamento, estrago ou dano a um objeto amado .
“Os temas de excitação sexual eram muito outros. No mais das vezes uma profusão de cores
ou de sons extraordinariamente agudos e suaves; também, em outras ocasiões a ideia de
algum ato importante que eu deveria fazer, que é tido como importante, que esperam de
mim mas que não faço, e em lugar disso imagino; e era também muito próxima a ideia de
distúrbio, sob a forma de algum brinquedo estimado que eu estragava; de resto nenhum
desejo real, nenhuma procura de contato. Quem se admira disso não entende de tal: sem
exemplo e sem objetivo, o que seria a volúpia?” (GIDE apud SOUZA, 2004, p. 190).
c) há ainda três momentos destacados no curso da história pessoal, três experiências
marcantes relatadas sob a denominação de Schaudern, “[...] sobressaltos que sacudiram o
meu ser [...] o abalo de todo o meu ser [...] em contato com a realidade invisível.” (GIDE,
1982, p. 100-1)
A nomeação Schaudern só veio a ocorrer muito mais tarde e trouxe com ela efeitos não
negligenciáveis. Essas experiências foram marcadas, no momento em que ocorreram, por forte
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Vide SOUZA, O.M.C. André Gide e a função da escrita, p. 190.

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estranhamento e deixaram perplexos tanto aquele que as viveu como aqueles que o cercavam. O
encontro a posteriori com essa palavra específica possibilitou que essas experiências insólitas se
encadeassem e se inserissem na história de Gide e, bem mais que isso, sendo reconhecidas como
integrantes do patrimônio cultural comum, que funcionassem como um elo entre sua experiência
individual e a humanidade e sua história. Isso viabilizou a transformação do afeto que a
acompanhava em algo diferente do originalmente vivido.
A mais precoce dessas experiências, cuja data ele não consegue precisar, ocorreu ainda antes da
morte do pai e sobreveio de repente, quando o casal estava à mesa acompanhando do menino. Ao
tomar conhecimento da morte de um primo, Gide foi tomado por sentimentos penosos e
inconsoláveis: “Mamãe pôs-me no colo e procurou acalmar meus soluços [...] nada causou efeito
[...]”. (GIDE apud SOUZA, 2004, p. 194)
A segunda experiência aconteceu um pouco mais tarde, já depois da morte do pai.
“A cena se passou novamente à mesa, durante uma refeição matinal; mas, desta vez, minha
mãe e eu estávamos sós. Nessa manhã, eu tinha ido ao colégio. Que me acontecera? Nada,
talvez.... Então, por que eu de repente me decompus e, nos braços de mamãe, soluçando,
convulso, senti de novo aquela angústia inexplicável, exatamente a mesma de quando
morrera meu priminho? Dir-se-ia que de súbito se abriam as comportas particulares de não
sei que mar interior desconhecido, cujas ondas tumultuavam desmesuradamente meu
coração; eu estava mais espantado do que triste, mas como explicar isso a minha mãe, que
não distinguia através de meus soluços mais do que aquelas palavras confusas que eu
repetia com desespero:
- Eu não sou igual aos outros! Eu não sou igual aos outros!” (GIDE apud SOUZA, 2004, p.
195)
A terceira das experiências denominadas Schaudern não pertence mais à infância. Gide estava com
quinze anos de idade quando aconteceu, durante um diálogo com um colega. O assunto era um
certo local em Paris, a passagem do Havre, considerado “mal frequentado” porque nela
encontravam-se prostitutas fazendo trottoir. Advertido pela mãe a não passar pelo lugar, um dia ele
teve a curiosidade de saber como se conduzia seu amigo Bernard Tissaudier a respeito.
“Eu continuava, aos quinze anos, incrivelmente ignorante dos arredores da devassidão , [...]
minhas conjeturas carregavam igualmente as cores do indecente, do encantador e do
horrível – sobretudo o horrível [...] via, por exemplo, o pobre Tissaudier orgiasticamente
dilacerado pelas hetairas.”
[...] E de súbito, algo enorme, de religioso, de pânico, invadiu-me o coração, como na morte
do pequeno Raoul, ou como no dia em que me senti separado, proscrito; sacudido pelos
soluços, lancei-me aos joelhos de meu camarada:
- Bernard, Eu te suplico: não entres lá!” (GIDE apud SOUZA, 2004, p. 196)
Gide conta que a resposta do amigo, de que conhecia “a coisa” e de que Gide não precisava temer
por ele, muito o surpreendeu revelando, por contraste, a particularidade de sua própria condição.
As três ocorrências correspondem a momentos e a situações bastante diferentes: na primeira, ele
era ainda bem pequeno quando toma conhecimento da morte, através da perda do primo. Na

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segunda, o sentimento de exclusão em relação ao semelhante parece ser a questão central e, na


terceira, está em jogo, de modo reconhecível, o horror à castração feminina. O que têm em
comum essas experiências? O fato de que frente a elas, Gide se sentia inicialmente desamparado,
sem recurso, “forclos” (GIDE, 1954, p. 484), o que se traduziu na impossiblidade em encontrar de
pronto palavras satisfatórias para definir “essa sufocação profunda, acompanhada de lágrimas,
soluços. ” Curioso embaraço em um escritor, um mestre da língua francesa ... indicando o ponto
em que o saber fracassa ao esbarrar num limite de outro registro. Para lidar com ele, necessitou da
ajuda de uma palavra tomada de empréstimo a uma língua estrangeira. Essa palavra lhe permitiu
realizar uma articulação entre a sua experiência pessoal e a de outrem, ou, indo ainda mais longe, a
articula-la a um patrimônio comum da humanidade, da cultura. Tal palavra, única que se lhe
afigurou como adequada a essa função, pertence à língua alemã, e tem um emprego algo especial
em Schopenhauer e em Goethe, no decorrer de cuja leitura Gide a encontrou e recolheu para dela
se apropriar, a seu modo.
Embora a palavra Schaudern tenha correspondente em outras línguas, inclusive na deste escritor,
(em francês, frisson e em português “tremor, estremecimento, calafrio”) Gide não a traduzia. Por
que? Delay vê na escolha de uma palavra estrangeira um indicativo “[...] sem dúvida [d]a impressão
de desterro (depaysement) cuja estranheza ele achou que poderia levar para seu país de origem,
quando aos dezenove anos descobriu o romantismo alemão e Schopenhauer.” (DELAY I, 1956,
p.174) O próprio Gide se explica nos seus diários: “Por ridículo que possa parecer a alguns direi,
contudo, que, mais tarde, lendo certas passagens de Schopenhauer, pareceu-me reconhecê-lo de
súbito. (GIDE, 1982, p. 100-1), mas omite a referência especifica, colocando, em seu lugar, um longo
pontilhado.
Existe uma dupla referência para a palavra Schaudern: Schopenhauer e Goethe. Possivelmente, o
texto de Schopenhauer, cuja omissão nos Diários dificulta a localização exata, se encontre em “O
mundo como vontade e representação”, onde o texto descreve o progresso da consciência como
se fossem raios que atravessam, algumas vezes, o caminho habitualmente escuro do homem:
“Pois que nosso pensamento é assim disperso e fragmentário e que as representações mais
heterogêneas se chocam e se entrecruzam no cérebro, segue-se que não temos na realidade
senão uma semi-consciência e que avançamos tateando no labirinto de nossa vida e nas
trevas de nossas procuras : os momentos de clareza, semelhantes a raios, iluminam às vezes
nosso caminho.” (SCHOPENHAUER, 1912,p. 1477)
Já em Goethe, a ideia de Schaudern encontra-se no ato I do Segundo Fausto, numa cena entre
Mefistófeles e Fausto. Para cumprir sua missão de trazer de volta Helena e Paris, Fausto ouve de
Mefistófeles que terá que atingir a terra das Mães. Ao ouvir falar das Mães, tem um
estremecimento (Schaudern) e diz “As Mães! Isso me penetra sempre como um raio! Qual é essa
palavra que não pude escutar? ” Diante dessa reação, Mefistófeles lhe pergunta: “É você a tal
ponto limitado que uma palavra nova o perturbe? ” Fausto protesta apresentando sua
disponibilidade e responde: “Não procuro minha salvação na indiferença,/ O tremor sagrado
(Schaudern) é a melhor parte da humanidade”[...] “ Quão alto seja o preço que o mundo o faça
pagar pelo sentimento/ Quando emocionando, o homem sente profundamente a imensidão”
(GOETHE, s/d, p. 54). Que a Schaudern valha a pena, que abra àquele que a suporta o reino
desconhecido e fundamental da criação e da beleza, onde o alto e o baixo se tocam, eis o que Gide

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tomou em Goethe como mensagem liberadora cujos efeitos se fizeram notar no âmbito pessoal e
artístico no jovem iniciante.
Lacan considerou o encontro de Gide com a mensagem de Goethe, aos vinte anos de idade, a “peça
essencial” (LACAN, 1998, p. 768) da construção subjetiva. Essa peça funcionou como uma espécie
de prótese da metáfora paterna, vindo suprir o elemento faltante na construção do sujeito, aquele
humanizaria o desejo, tornando-o aceitável. A mudança produzida por essa “imisção” (LACAN,
1998, p. 768) transformou significativamente o modo de vivenciar a experiência do Schaudern que,
como o próprio Gide explica, nunca deixaram de ocorrer, porém não mais produziam o mesmo
sofrimento:
“Descrevi o melhor que pude essa sufocação profunda, acompanhada de lágrimas, soluços, a
que eu era sujeito, e que, nas três primeiras manifestações que tive e narrei, a mim mesmo
tanto surpreendeu. Receio, contudo, que ela continue incompreensível para quem não
conhece nada de semelhante. Demais, os acessos dessa estranha aura, longe de se tornarem
menos frequentes, se aclimataram, porém temperados, dominados, domados por assim
dizer, de maneira que aprendi a não me assustar mais, tanto quanto Sócrates com seu
demônio familiar. Depressa compreendi que a embriaguez sem vinho outra coisa não é que o
estado lírico, e que o instante feliz em que esse delírio me sacudia era aquele em que
Dionísio me visitava. Ai! Para quem conhece o deus, como são enfadonhos e desesperados os
períodos debilitados em que ele não consente em aparecer. ” (GIDE apud SOUZA, p. 198)
O efeito de virada, a mudança do afeto, que transformou momentos de sufocação profunda em
momentos de iluminação da escuridão da infância, o sofrimento de “não ser como os outros” em
possibilidade de ser alguém especial (um escritor iluminado pela inspiração), encontra seu lugar na
construção sucessiva da subjetividade que Lacan destacou na sua leitura do caso Gide.
Assim, para entender essa transformação é preciso mostrar as condições subjetivas sobre as quais
ela incidiu e lembrar que houve, anteriormente, outro momento decisivo e salvador para Gide,
destacado enquanto tal por ele próprio, nos relatos de sua história. Mais antigo e mais pessoal do
que o encontro da mensagem de Goethe, Gide o considerou como “o instante que decidiu a [sua]
vida” (GIDE apud SOUZA, p. 192) e relatou-o na autobiografia, concluído:
“Até aquele dia eu havia errado ao acaso; de repente eu tinha descoberto um novo rumo
para minha existência. Em aparência nada mudou. Prosseguirei como antes na narração dos
miúdos acidentes que me preocupavam; só o que mudou foi isso: eles não me preocupavam
de todo. Eu escondia no fundo do meu coração o segredo do meu destino. Fosse ele menos
contraditório e constrangedor, eu não escreveria essas memórias. ” (GIDE apud SOUZA, p.
193)
Esse momento que definiu a posição sexual de Gide é, na verdade, constituído pela condensação de
duas experiências que, então, se superpuseram. Uma delas aconteceu quando Gide tinha treze
anos e Madeleine quinze, numa tarde em que, retornando sem ser esperado à casa da prima, ele
surpreende a mãe dela com um amante. Seguindo em frente, ele vai ao encontro da prima em seu
quarto e encontra-a em prantos, inconsolável. Tomado de forte emoção, o adolescente decide-se
dedicar sua vida à Madeleine, a “se oferecer, não mais concebendo outro objetivo em sua vida
senão o de proteger essa criança contra o medo, contra a dor, contra a vida” (GIDE apud LACAN,

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1998. p. 764). Essa decisão transformou essa menina, sua futura esposa, no amor único e
insubstituível que se concretizou num casamento sem sexo que durou até a morte dela. Ao tentar
conceber o que se passou nesse momento, Lacan o relaciona a uma outra experiência, anterior à
acima descrita, um outro episódio igualmente relatado, não na autobiografia, mas numa obra de
ficção – La porte étroite (GIDE, 1958, p. 493-580) – que o psicanalista não hesitou em validar como
uma cena de sedução, marcante e ao mesmo tempo salvadora, onde o menino sem graça de até
então experimenta ser objeto de desejo de uma mãe, a mãe de Madeleine. Ele foge horrorizado
dessa experiência que não pode integrar simbolicamente. Mas, no momento em que descobre
Madeleine chorando por causa das aventuras maternas, algo de decisivo se produziu: Gide
identifica-se à tia, à mulher desejante, e passa a desejar nos menininhos que teve nos braços
posteriormente, o menininho que ele tinha sido, por um momento, para ela.
Por outro lado, o amor casto por sua esposa testemunha a outra janela da dupla identificação:
Madeleine como objeto de amor é herdeira da mãe dele, Juliette, herdeira do amor sem desejo
confundido como dever. Esse tipo de identificação, que Lacan chama de “double volet”, é
considerado típico do desmentido da castração descrito em “A divisão do ego no processo de
defesa” (FREUD, 1980). Essa divisão caracteriza-se pela coexistência do reconhecimento da
castração (logo, do temor da castração, que se percebe nos episódios de Schaudern) ao lado do
desmentido dela. Acompanhando ao longo da obra os relatos subsequentes do autor, notamos
que tal tipo de identificação definiu permanentemente a posição sexual de Gide, sendo sobre ela
que incidiu o efeito do encontro coma mensagem de Goethe. Embora não tenha modificado a
identificação de base, essa mensagem proporcionou uma saída para o impasse do desejo no qual
encontrava-se o sujeito, preso “entre a morte e o erotismo masturbatório [...] o desejo [ficando],
para ele, confinado ao clandestino. ” (LACAN, 1988, p. 764) Além de abrir o caminho para a
existência literária de Gide e para sua brilhante carreira, esse encontro trouxe também certo
apaziguamento à sua vida pessoal, permitindo-lhe viver, ainda que de maneira cindida, com objetos
diferentes, os polos discordantes do amor e da sexualidade. O efeito apaziguador se fez notar, por
exemplo, nos sintomas infantis que traziam sofrimento: os pesadelos, nas crises de angústia, no
sentimento de exclusão. “Goethe empresta seu selo simbólico à profusão imaginária dos
personagens gidianos.” (MILLER, 1993, p. 36)
A escrita, caminho aberto por essa mensagem, promoveu um trabalho sobre o profundo
dilaceramento produzido como efeito da Verleugnung. A multiplicação ao infinito das imagens, o
angelismo e a recusa de eros, a “segunda realidade”, etc. deixavam Gide na penosa condição da
qual sua obra de juventude, Les cahiers d’André Walter (que termina com o suicídio do herói), traz
uma amostra fiel. Temos neste primeiro personagem uma figura bem diferente do Gide
exuberante que se tornou conhecido nas obras posteriores. O caso Gide, tal como Lacan o abordou
no seu ensino entre 1957 e 1959, é uma ilustração avant la lettre da possibilidade de saídas
diferentes daqueles reguladas pelo Édipo e, nesse sentido, anuncia possibilidades que só bem mais
tarde, no fim dos anos 70, serão mais bem desenvolvidas por Lacan, com a pluralização dos Nomes-
do-pai, a ideia de sinthoma e a escrita borromeana.

BIBLIOGRAFIA

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