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ANDRÉ GIDE: DESMISTIFICANDO A PERVERSÃO

Article · August 2020

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Hudson A. R. Bonomo
Universidade Santa Úrsula
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ANDRÉ GIDE: DESMISTIFICANDO A PERVERSÃO
Hudson A. R. Bonomo1

INTRODUÇÃO

Dentre as estruturas da psicopatologia psicanalítica lacaniana, a perversão ocupa um lugar de


difícil compreensão. Discriminada como forma de estar no mundo por ser associada ao mau,
pelo senso comum, ao que é pior no humano, transgressão da norma, o perverso é muitas vezes
alijado do manejo clínico por parte dos psicanalistas que subvertem a ética, a neutralidade e ao
desejo do analista.

Segundo Jorge (2006, p. 34), é comum que os psicanalistas falem que o perverso não procura
análise, porém cita que Freud não garantir isto ao descrever casos clínicos de análise de
perversos. O perverso não procura a análise por sua perversão, mas por um motivo diferente,
relacionado ao que o autor chama de polo amoroso do fantasma perverso. O autor ainda cita
que é procurado para análise por perversos que colocados em solidão como parte muitas vezes
do próprio jogo perverso buscam o analista não para elaborar a solidão, mas pela solidão em si.
Cita um exemplo: “Eu não me ligo a ninguém, não tenho nenhuma relação com ninguém,
porque sei que não vou conseguir. Depois de algum tempo começo a transar com outras
pessoas”. Ao contrário do neurótico, o gozo, do perverso age como uma defesa a um vínculo
de amor. Ele tem um fantasma de completude de gozo, que é a completude pela via do gozo.

Martinho (2011) afirma que Lacan no Seminário 5: As formações do inconsciente diz que ao
contrário do que muitos possam imaginar, a perversão de Gide não se deve pelo fato dele ter
desejos por meninos, de ele ser um pedófilo, mas no fato de que ele constrói a mulher ideal,
não castrada. Gide tenta fazer existir “ Mulher”, sua mãe é “toda para ele” e Madeleine é a
única do amor, mas em seus pesadelos ele enfrenta o horror da castração.

O fantasma neurótico é o mesmo do perverso, tendo como diferença seu uso. Vejamos o que
nos diz Serge André:

1Doutorando em Psicanálise, Saúde e Sociedade na Universidade Veiga de Almeida/RJ. M.Sc. em Engenharia


Mecânica pela COPPE –Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pós-graduado em Clínica Psicanalítica na
Universidade Santa Úrsula/RJ. Psicanalista e participante da Escola Letra Freudiana/RJ. e-Mail:
hudsonletra@gmail.com

1
“A nivel de contenido, se puede decir que todo fantasma es essencialmente perverso. El
escenario imaginario en el que el neurótico conjuga su deseo y su goce no es nada más,
después de todo, que el modo en el que se imagina perverso en secreto. No es por lo tanto el
contenido del fantasma el que permite diferenciar al perverso del neurótico sino, como voy a
mostrar, su uso.” (ANDRÉ, 1999, p.14)

Por isto a inveja das formas de gozo do perverso pelo neurótico, mas o psicanalista precisa fazer
girar a posição em que se coloca o analisante, de um desejo de ser  e passar a desejar ser 
como sugere Lacan (1965-1966) em Kant com Sade, mesmo sustentando uma conexão com o
gozo absoluto (V).

Figura 1. da fantasia perversa à neurótica por um quarto de giro. LACAN (1965-1966c, p. 786 e 790)

No decorrer deste artigo, aborda-se através do olhar de Jacques Lacan sobre André Gide na
busca de desmistificar o que podemos considerar uma continua insistência de fugir a realidade
de uma possível clínica para o perverso por parte de muitos, mas não todos os psicanalistas.

A VIDA E OBRA DE ANDRÉ GIDE

André Paul Guillaume Gide nasceu em 1869 e faleceu em 1951. Importante escritor francês,
Prêmio Nobel de Literatura em 1947 pela obra “O Imoralista”, escrita em 1902, foi o primeiro
a reivindicar (no contemporâneo) o direito a uma sexualidade não normativa ao escrever
“Corydon” em 1924, livro que combate os preconceitos homofóbicos da sociedade de seu
tempo.

Em “Se o grão não morre” de 1926 ele confessa publicamente a sua homossexualidade apesar
da falta de aceitação na época, ainda mais vindo de uma figura pública importante. Vale
ressaltar que ele se expôs no auge da fama mesmo julgando que poderia arruiná-lo. Após a sua
morte o Vaticano inclui suas obras no índice de livros proibidos.

2
Outra obra importante para o contexto deste artigo é a “Porta estreita” de 1909 onde Gide relata
a história de um personagem que se apaixona pela prima, como de fato aconteceu com ele e sua
prima Madeleine. Lacan vai citar em seu artigo “A ciência e a verdade” a porta estrita como um
momento único de experiência de gozo (repetição na experiência do cogito) a partir do que
Gide escreve em seu livro, inscrevendo assim a ciência, como momento, na perversão.

“[...] um certo momento do sujeito que considero ser um correlato essencial da ciência [...]
rigorosamente passível de repetição na experiência [...] que é o cogito. Este correlato, como
momento, é o desfilamento de um rechaço de todo saber, mas por isso pretende fundar para o
sujeito um certo ancoramento no ser, o qual sustentamos constituir o sujeito da ciência em sua
definição, devendo este termo ser tomado no sentido de porta estrita.” (LACAN, 1965-1966a,
p.870).

Posteriormente Lacan irá em seu Seminário Livro 15: O ato analítico fazer a inversão do cogito
do “eu penso logo sou” para iniciar a posição inversa da perversão (a da neurose) em seu modelo
para uma análise com “ou eu não penso, ou eu não sou”.

Figura 2. Grafo do ato analítico (LACAN, 1967-1968).

O ARTISTA PRECEDE...

Lacan iniciou o estudo da medicina em 1920 e especializou-se em psiquiatria a partir de 1926.


Durante este período, ele participou do movimentado mundo parisiense de escritores, artistas e
intelectuais que compunham o movimento surrealista. Frequentou a livraria de Adrienne

3
Monnier junto com artistas como André Gide e Paul Claudel e, aos dezessete anos conheceu
James Joyce. Três anos depois, Lacan estava presente na leitura pública da obra de Joyce
“Ulysses” nesta lendária livraria: Shakespeare & Co. Lacan dava a devida atenção e
importância a literatura como forma de expressão do não dito do discurso social. É dele a
célebre frase, a partir e com Freud, que o artista precede o psicanalista.

“Freud e Lacan ensinaram sobre a arte: ‘O artista sempre precede o analista’. De fato, André
Gide foi o primeiro a “abrir a via” da estrutura perversa, quando publicou os seus romances O
Imoralista (1902), A porta estreita (1909), Os moedeiros falsos (1925), e Se o grão não morre
(1926) – antes mesmo de Freud ter destacado, em 1927, a perversão das outras categorias
clínicas.” (MARTINHO, 2011, p. 21)

E é fato que André Gide precede Freud ao revelar detalhes do uso do gozo na estrutura perversa.

“... a única vantagem que um psicanalista tem o direito de tirar de sua posição, sendo-lhe esta
reconhecida como tal, é a de se lembrar, com Freud, que em sua matéria o artista sempre o
precede [o psicanalista], ele não tem que bancar o psicólogo quando o artista lhe desbrava o
caminho”. (LACAN, 1965-1966/2003, p. 200)

Lacan escreve para a Revista Critique em abril de 1958 o artigo “Juventude de Gide ou a letra
e o desejo” que foi posteriormente incluído nos Escritos (1965-1966d). Gide havia entregado
para Delay (1956) um imenso material não publicado (cartas, diários, caderno de leituras) com
o objetivo de que escrevesse sobre ele após sua morte.

“Gide não ignorava que Delay sabia escrever[...]. Mas sabia ainda que Delay era um psiquiatra
eminente e que, numa palavra, era o psicobiógrafo que suas notinhas encontrariam sua
destinação de sempre” (LACAN, 1965-1966d, p. 754)

Segundo Martinho (2011, p.171), Lacan esclarece que o livro de Delay não se trata de uma
psicanálise aplicada, porque a psicanálise só se aplica como tratamento. Fora desse caso “só
pode tratar-se de método psicanalítico, aquele que procede a decifração dos significantes, sem
considerar nenhuma forma de existência pressuposta de significado” (LACAN, 1966/1998, p.
758). Lacan indica, segundo a autora, com precisão o modo como o material literário deve ser
lido por um psicanalista: exatamente da maneira como foi lido por Delay, ou seja,
“encontrando-se na ordenação de sua própria narrativa a própria estrutura do sujeito que a
psicanálise designa” (ibidem). Foi deste mesmo modo que Freud leu as Memórias de um doente
dos nervos (1903) e o próprio Lacan leu James Joyce.
4
GIDE, UM SUJEITO BARRADO ()

A singularidade de André Gide vem de sua divisão entre o amor e o desejo. Ele vai perseguir
uma solução para esta divisão do eu que se apresentava pelos extremos. Gide não consegue
encontrar uma solução, ao contrário, os acontecimentos de sua vida ressaltaram ainda mais a
incompletude de cada um dos dois significantes: amor e desejo. Com esta divisão e consequente
desmentido desta, Gide enfrenta a incorporação do sujeito, este perverso, que dá conta no
mundo através de um objeto fetiche como para ele através da escrita de si mesmo e sustentar o
gozo que deixa rastros neste conflito.

“Meu espírito permanecia desesperadamente fechado. Em vão procurei nesse passado algum
fulgor que permitisse entrever fosse o que fosse na criança obtusa que eu era. Em torno de
mim, em mim, nada mais que trevas. [...] Eu era simplesmente estúpido [...] era semelhante ao
que ainda não nasceu” (GIDE, 1926, p.49-51)

Gide (1926) utiliza a palavra schaudern, tomada de Schopenhauer, que pode ser traduzida como
“calafrio” ou “crises de angústia”. Ele relata três episódios de sua infância onde estes momentos
atravessam seu psiquismo.

1. Anúncio da morte de seu primo pequeno: “Um oceano de pesar rebentou no meu peito.
Mamãe pôs-me no colo e procurou acalmar meus soluços: disse-me que todos nós
tínhamos de morrer [...] nada do que ela dizia de consolador causou efeito, porque não
era precisamente a morte de meu priminho que me fazia chorar, mas algo que eu não
sabia, uma angustia indefinível, e não era de admirar que não pudesse explica-lo à minha
mãe, pois ainda hoje não posso explicar melhor [...] Mais tarde, lendo certa passagem
de Schopenhauer, pareceu-me reconhece-lo de súbito [...] o meu primeiro schaudern”
(GIDE, 1926, p.101).
2. Pouco depois da morte de seu pai aos 12 anos: “Como explicar à minha mãe, que não
distinguia, através dos meus soluços, mais do que aquelas palavras confusas que eu
repetia com desespero: Eu não sou igual aos outros! Eu não sou igual aos outros!”
(GIDE, 1926, p.102)
3. Ao imaginar que um de seus colegas corria risco de morte com as prostitutas do Havre2
quando tinha 15 anos: “E de súbito algo enorme, de religioso, de pânico invadiu-me o

2
Havre: Era passagem onde ficavam as prostitutas. O amigo em questão se chamava Bernard Tissaudier. (REID,
Victoria. Andre Gide and Curiosity. New York: Rodopi, 2009, p.207).
5
coração, como na morte do priminho, ou como no dia em que eu me senti separado,
proscrito; sacudido pelos soluços, lancei-me aos joelhos do meu camarada: Bernard!
Oh! Eu te suplico: não entres lá” (GIDE, 1926, p.147)

Estas manifestações do schaudern continuaram ao longo da vida de Gide, mas já não o


assustavam.

MADELEINE E TIA MATHILDE

Segundo Martinho (2011, p. 176), tia Mathilde era uma mulher bela, indolente e sensual.
Passava seus dias estendida sobre algum sofá, às voltas com o tédio ou com alguma crise
nervosa. Ela não escondia seu gosto pelos jovens, escandalizando o meio puritano que pertencia
seu esposo, um homem mais velho que a amava profundamente.

Gide (1909) relata uma experiência com esta tia que toca o seu corpo de uma forma que o
assusta e que se repete na sua vida adulta no seu gosto por tocar os corpos de homenzinhos.

“Vou até a sala buscar um livro. Encontro-a. Já saindo quando Mathilde, que quase não me
parece notar, pergunta: Por que a pressa? Você tem medo de mim? O coração batendo
descompassadamente, aproximo-me; faço um esforço para sorrir-lhe, estender-lhe a mão. Ela
a conserva presa e, com a mão livre, afaga-me o rosto. – Pobrezinho... Como sua mãe o veste
mal!... A gola marinheira deve ser usada muito mais aberta!, diz ela, abrindo-me um botão da
camisa. – Ai está! Veja se não fica melhor assim!. E, tirando o espelhinho, cola o rosto ao meu,
cobrindo-me o pescoço com o braço nu, insinua a mão na abertura de minha camisa, indaga
sorrindo se sinto cócegas, ousa um pouco mais... Recuei tão bruscamente que minha jaqueta
se rasgou, as faces afogueadas, ouço-a exclamar: mas que idiota! Fujo, correndo, até a
extremidade do jardim; mergulho o lenço numa pequena cisterna da horta, levo-o à testa, lavo
e esfrego as faces, o pescoço, todas as partes onde ela tocara” (GIDE, 1909, p.18)

Em relação a Madeleine, segundo a Martinho (2011, p. 177), Gide “[...] admirava a sua
bondade, seu encanto e inteligência, mas aquele dia [...] foi decisivo; ele a amou. Dessa cena
relatada abaixo iria nascer o romance “A porta estreita”.

“Certo dia ele chegou de surpresa à casa do seu tio [...]. A porta do quarto da mulher de seu
tio estava aberta. Ele lançou olhar rápido e entreviu sua tia [...]; a seus pés estavam as duas
filhas caçulas, atrás dela, um homem jovem, com uniforme de tenente. Sua tia dava boas
gargalhadas. O tenente se lançava de joelhos diante dela. Em seguida Gide foi até o quarto de
sua prima mais velha, Madeleine. O quarto estava escuro. Ela estava ajoelhada à cabeceira da
6
cama chorando. Gide não sabia explicar as razões do êxtase que sentiu – daquele êxtase novo
que arrebatou o seu coração – ao se deparar com a prima chorando [...] Foi assim que aos treze
anos de idade, Gide apaixonou-se por sua prima de quinze anos” (MARTINHO, 2011, p. 177)

Madeleine passa a ocupar este espaço dedicado ao amor na vida de Gide, sustentando nela a
separação do desejo que irá se posicionar em outras relações tanto com homens quando com
outra mulher. Madeleine ocupa este espaço de fazer arte, de um propósito, que enriquece a vida
de Gide e vai destacar a importância do laço de amor na estabilização do perverso.

”Minha alma se esvaia. Inebriado de amor, de compaixão, de um sentimento indistinto em que


mesclavam entusiasmo, abnegação e virtude, invocava a Deus todas as forças e me ofertava,
na certeza de que o único propósito de minha vida era proteger aquela criança contra o medo,
contra o mal, contra a vida” (GIDE, 1909, p.23)

Figura 3. Mathilde Roberty e Madeleine Gide (1896).


Por um fotógrafo francês.

Segundo JORGE (2006, p.34), o fim de uma análise, enquanto travessia do fantasma
implicaria no acesso ao perverso à dimensão do amor, da qual ele também se defende. E é
mesmo sem um processo analítico, através do amor a Madeleine que Gide vai dar conta de
sua vida e “fazer arte!”.

7
CADERNOS DE ANDRÉ WALTER

Gide escreve os Cadernos de André Walter (Les cahiers d'André Walter em 1891). No
Caderno Branco, o protagonista permanece puro e aceita a dor do conflito entre a fé e seus
conceitos. Tem um romance com sua prima: amor castro e mesclado de pensamentos religiosos
(místico). Tem medo de ceder a carne e por isto tem um noivado eterno. A alma tem um papel
mais importante que o corpo. Já no Caderno Negro, o protagonista escreve um romance que é
a história dele e de Gide. Luta entre anjo e demônio, alma e carne. Neste caderno a carne cede.

Aos 24 anos, ainda virgem, no decurso de uma viagem à África que Gide assume seu de desejo
por rapazes e, finalmente, emergiu do confinamento masturbatório em que sua sexualidade até
ali havia se encontrado. Sua primeira experiência sexual foi com um árabe muito jovem, de pele
Morena. Pouco tempo depois ele teria pela primeira vez – e praticamente a única – uma
experiência sexual com uma mulher. Sua mãe more em 31 de maio de 1895 e fica noivo de
Madeleine em 17 de junho, se casando em 8 de outubro. Se torna pai de uma menina aos
cinquenta e quatro anos fruto de um relacionamento com Elisabeth van Rysselberghe. Catherine
Gide só foi reconhecida como filha após a morte de Madeleine em 1938.

Com a morte de Madeleine em 1938, Gide não sabia mais qual seria a razão para viver.

Figura 4. André Gide – Retratos.

Segundo Goés (2012), Gide morre em 19 de fevereiro de 1951 e foi enterrado poucos dias
depois no cemitério de Cuverville, ao lado de seu grande amor Madeleine.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Martinho (2011) afirma que Lacan em seu Seminário 5: As formações do inconsciente diz que
ao contrário do que muitos possam imaginar, a perversão de Gide não se deve pelo fato dele ter
desejos por meninos, de ele ser um pedófilo, mas no fato de que ele constrói a mulher ideal,
não castrada. Gide tenta fazer existir A Mulher, sua mãe é “toda para ele” e Madeleine é a única
do amor, mas em seus pesadelos ele enfrenta o horror da castração.

“A perversão de André Gide não se prende tanto ao fato de ele só poder desejar menininhos,
o menininho que ele mesmo fora. A perversão de André Gide consiste em que ele só pode
constituir-se ao expressar perpetuamente, ao se submeter à correspondência que é, para ele, o
cerne de sua obra, ao ser aquele que se impõe no lugar ocupado pela prima, aquele cujos
pensamentos estão voltados para ela, aquele que lhe dá a cada instante, literalmente, tudo
aquilo que não tem, porém nada, além disto – que se constitui como personalidade nela, por
ela e em relação a ela. É isso que o coloca, em relação à prima, numa dependência moral, que
o faz exclamar em algum lugar: - Você não tem como saber o que é o amor de um uranista
[homossexual]. É qualquer coisa como um amor embalsamado (LACAN, 1957-1958, p.
271)”.

Segundo DUNKER (2008), Lacan inova a clínica no que diz respeito a sua técnica,
principalmente no manejo do tempo e das palavras de uma sessão, mas para o contexto deste
artigo, o mais relevante foi sua contribuição para o alcance da psicanálise no tratamento da
psicose e da perversão fazendo uso de uma proposição radical de uma ética da psicanálise.
Segundo o autor, a psicanálise deve ser capaz de inventar uma verdade, deve ser um
acontecimento de verdade na vida de alguém e tem mais a ver com cuidar de si do que conhecer
a si.

Gide foi um exemplo deste cuidar de si? Ou de conhecer a si? Ao ler os seus textos, ele cuida
de si, no laço de amor, escrevendo sobre o fantasma da castração o tempo todo. Não é disto que
se trata a transferência e o ato analítico? Fazer girar a posição perversa de objeto  para um
desejo de ser sujeito divido com pequenos laços de amor, mesmo que sustente o gozo como
suporte do fantasma faz o desafio de uma clínica possível para o perverso, mesmo que no final
o analista, como deveria sempre ser, sair do tratamento como entrou: como .

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRÉ, Serge. La significación de la pedofilia. Trad. Guillermo Rubio. Conferencia en


Lausanee, 8 de junio de 1999. Disponível em <http://www.pasa.cl/wp-
content/uploads/2011/08/La_Significacion_de_la_Pedofilia._Andre_Serge.doc>. Acessado
em 24 jun. 2020.

DELAY, Jean. La jeunesse d´André Gide. Paris: Gallimard, 2 vols., 1956.

DUNKER, Christian Ingo Lenz. Revolução na Clínica. Revista Cult. São Paulo, p.42 - 45,
2008.

GIDE, André. (1909). A porta estreita. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

_____. (1926). Se o grão não morre. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.

GÓES, Ludenbergue. Todos os ganhadores do Prêmio Nobel de Literatura: 1901-2010.


São Paulo: Golbal Editora, 2012.

JORGE, Marco Antônio Coutinho. A travessia da fantasia na neurose e na perversão.


Estudos de Psicanálise, Belo Horizonte, n. 29, p. 29-37, set. 2006. Disponível em
<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-
34372006000100006&lng=pt&nrm=iso>. Acessado em 24 jun. 2020.

LACAN, Jacques (1957-1958). O Seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar, 1999.

_____. O Seminário, Livro 15, O ato analítico (1967-1968). Inédito.

_____. A ciência e a verdade (1965-1966a). In Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

_____. Homenagem a Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol V. Stein (1965-1966b).


In Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

_____. Kant com Sade (1965-1966c). In Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

10
_____. Juventude de Gide ou a letra e o desejo (1965-1966d). In Escritos. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1998.

MARTINHO, Maria Helena Coelho. Tese de Doutorado - Perversão: um fazer gozar. Rio
de Janeiro: UERJ, 2011. Disponível em <https://www.pgpsa.uerj.br/wp-
content/uploads/2016/07/Tese-completa-Maria-Helena.pdf>. Acessado em 24 jun. 2020.

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