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PSICANÁLISE: Do Saber ao Estar Sendo

INTRODUÇÃO

Boa parte das ideias originais desenvolvidas e publicadas nos primeiros


trabalhos de Sigmund Freud (1856 – 1939), médico austríaco e fundador da
psicanálise, sofreu consideráveis transformações e hoje o que chamamos
psicanálise é, sem dúvida, bem diferente do que nos tempos primitivos da
proposta original. Contudo, formulações centrais como as da primeira tópica e
segunda tópica, ainda representam um excelente instrumento na concepção de
aparelho psíquico, criando assim uma possibilidade de mapeamento do
aparelho mental, revelando-se um modelo invariante na construção do que
temos como psicanálise contemporânea. O intuito deste trabalho é olhar mais
atentamente e, de alguma forma, realizar os elementos básicos que compõem
o sistema teórico organizado por Freud. Por outro lado, esse trabalho traz a
oportunidade de expansão desta ferramenta chamada psicanálise, indo para
além da sua configuração atual.
O conteúdo deste trabalho tem certa característica marcante quanto à
subjetividade, porque sugere ideias inerentes tanto à origem do material quanto
à proposta do surgimento de novas situações que possam confirmá-las e
ampliá-las. Dessa forma, existe uma chance de juntar novos conceitos (nome)
às novas intuições (experiência), como propõe Immanuel Kant (1724 – 1804),
filósofo alemão muito citado na obra freudiana. Isso reafirma a preciosa
contribuição de Wilfred Bion (1897-1979) a respeito dos “pensamentos em
busca de pensador”, onde propõe na Quarta Conferência de New York, sobre
“um pensamento errante em busca de algum pensador para se alojar nele”
(Bion,1978/1992). Tratamos assim de formulações que foram agrupadas e
sistematizadas por Freud, mas que a muito já se encontravam sendo cogitados
pelo pensamento humano e que, no entanto, continuam se expandindo em
novos pensadores. Quanto a isso, o próprio Freud faz referência à Arthur
Schopenhauer (1788 - 1860) atribuindo a esse importante filósofo o prenuncio
do pensamento que originou a criação da psicanálise.
“Já faz um bom tempo que o filósofo Arthur Schopenhauer mostrou aos
homens em que medida seus feitos e interesses são determinados por
aspirações sexuais – o sentido corriqueiro da expressão -, e parece incrível que
todo um mundo de leitores tenha conseguido banir de sua mente, de maneira
tão completa, uma advertência tão impressionante!” (Freud em TRÊS
ENSAIOS SOBRE A TEORIA DA SEXUALIDADE, 1905)
O pensamento que antecedeu a psicanálise já se revelava muito antes e
de maneira muito clara na ideia filosófica de Sócrates, expressa por Platão
(428/27 – 347 a.C), quando descreveu o Mito da Caverna, útil metáfora para o
aparelho psíquico, onde a dualidade na percepção do ser humano em viver no
mundo das ilusões, guiado pelas sobras ou entrar em acordo com a realidade,
com o reconhecimento da verdade.
Bion usava o termo Establishment para descrever aquilo que é
estabelecido como ordem ideológica, econômica, política ou de legalidade que
constitui um sistema. Para Bion o Establishment necessita encontrar e fornecer
substituto para o gênio que, venha trazer idéias novas para o funcionamento do
sistema. Isso serve na psicanálise, para anunciar normas que beneficiam os
que não estejam capazes de viver experiências na prática da psicanalítica.
Assim como ocorre em outros sistemas, religioso, ou científico, ou ainda
artístico. Assim passa a ser possível, obter conhecimento da psicanálise e
também compartilhá-lo. Mesmo que isso não seja o suficiente para que possa
praticá-la em sua forma integra, o que careceria de viver a experiência da
prática.
O gênio, para Bion, é aquele que cria o que é estabelecido, no entanto,
para Bion o termo gênio não resolve essa função, já que ele não acarreta
atributos necessários. Portanto, Bion propõe usar o termo “místico”, que parece
possuir características geralmente associadas ao “gênio” e que também pode
ser descrita, com a mesma propriedade, pelo termo “messias”. “O místico é
tanto criativo como destrutivo. Faço uma distinção entre dois extremos
que coexistem na mesma pessoa.” (Bion, 1970) O desempenho do
místico é tanto de ser criativo, como de ser destrutivo, sendo que os
dois extremos devem coexistir na mesma pessoa. “Entendo que esses
termos sejam usados apenas quando existir notável criatividade ou
destrutividade, e ostermos "místico", "gênio", "messias" possam
serintercambiáveis.” (Bion, 1970)

Bion mostra em ATENÇÃO E INTERPRETAÇÃO que alguns


elementos da psicanálise não são de forma alguma novos e muito
menos exclusivos da psicanálise. Esses elementos são na verdade,
próprios da relação existente entre o místico e o grupo. Freud, sem
qualquer interdição, é um sujeito desses dos quais poderíamos atribuir a
função de místico. “Faltando os gênios — é claro que esses podem não se
materializar por um período muito longo —, é necessário que o grupo tenha
suas regras e uma estrutura para preservá-los.” (Bion, 1970).

Freud descobriu e instituiu a psicanálise, contudo para que esse sistema


continue vivo hoje, é necessário o surgimento ininterrupto de “gênios”, o que
não se pode ter com frequência. Nisso, aquilo que foi estabelecido revela sua
importância. Enquanto a cota de gênio cria e a parte messias mantém, o tanto
de místico chega para destruir. Isso parece ser uma atribuição do
funcionamento da vida, onde deve haver um ininterrupto processo de criação,
manutenção e destruição, para surgir o novo.

BREVE BIOGRAFIA DE SIGMUND FREUD

Ainda que aquilo que tenha ocorridopossa ter sido registrado por
instrumentos altamente tecnológicos, com amplo poder de apreensão e grande
potencial de definição, ainda assim, grande parte dos aspectos, se não a maior
parte deles, ficará ausente do registro e impossíveis de serem trazidos à tona.
“A fotografia da fonte da verdade talvez seja muito boa, mas, da fonte após
turvada pelo fotógrafo e sua máquina; mesmo assim, continua o problema de
interpretar a fotografia.”. (Bion, 1962). Apesar disso, por mais que nenhum
registro do passado possa ser fiel ao que realmente ocorreu, mesmo assim, a
biografia de um autor, de alguma forma, deve justificar sua obra. Isso ocorre
tanto com os avanços na expansão do pensamento, quanto na revelação de
limitações obstrutoras das possibilidades de ampliação reflexiva. A proposta
teórica sempre estará subordinada às limitações do seu autor.
Sigmund Schlomo Freud nasceu numa família judia, em 6 de maio de
1856, na pequena cidade de Freiberg, na antiga Moravia, atualmente República
Tcheca. O registro civil original de Freud consta como Segismundo Schlomo
Freud, em que mudou seu nome para Sigmund em 1878. Com dois anos de
idade, mudou-se com a família para Lípsia na Alemanha e em 1860, por
motivos financeiros sua família é forçada a se mudar para Viena, centro cultural
e político, e capital da Áustria. Cidade aonde aquele que viria a ser o pai da
psicanálise recebeu sua educação e passou a maior parte de sua vida. Freud
só saiu de Viena com 82 anos, por conta da invasão da Áustria pela Alemanha
nazista de Adolf Hitler (1889 - 1945).
Primeiro entre oito filhos, do casamento de seu pai, Jacob Freud, com
Amalie Nathansohn Freud, Sigmund Freud, muito cedo, se mostra interessado
pelas questões da alma, assim como pela história da Bíblia. Em 1873, ingressa
na universidade e, em 1881, como ele próprio observa em seu ESTUDO
AUTOBIOGRÁFICO (1925), um tanto tardiamente, recebe o grau de Doutor em
Medicina. Neurologia era sua especialidade, porém, sempre fora um
questionador sobre onde realmente estaria a origem da dor do ser humano, se
no corpo ou na alma. Freud se mostrava cada vez mais interessando
justamente por aquele paciente que se queixava de padecer sem que
encontrasse origem física na moléstia. Depois de alguns estudos malsucedidos
sobre o uso da cocaína, Freud passa a estudar as doenças da alma e a
escrever uma coleção de obras, o que hoje é um tesouro para o pensamento
da psicologia universal.
Em 14 de setembro de 1886 Freud casou-se com Martha Bernays (1861
- 1951) e tiveram seis filhos. Entre eles a caçula Anna Freud (1895 - 1982),
também destacada psicanalista. No ano de 1923, descobriu um pequeno tumor
no seu palato direito que o leva a sofrer 33 cirurgias. Essa sequência de
cirurgias o fez perder o maxilar superior, tendo de instalar aí uma prótese para
que fosse possível movimentar a boca. Nesse mesmo ano acontece a primeira
difusão das obras de Freud em espanhol na América Latina.
Em março de 1938, acontece a invasão da Áustria pelas tropas alemãs
de Hitler que, tomado por sua intensa perseguição ao povo judeu, então,
mandou queimar qualquer livro que possuísse a assinatura do pai da
psicanálise. As forças do nazismo ainda invadiram a sua residência, forçando a
partida de Freud para Londres, Inglaterra. Contando com a intervenção do
diplomata americano William Bullitt (1891 - 1967) e tendo o resgate pago por
Marie Bonaparte (1882 - 1962), sobrinha bisneta de Napoleão que, além de
ajudar muito Freud, com sua fortuna também ajudou a popularizar a
psicanálise. Assim, Freud pôde deixar Viena com sua família. Em Londres,
estabeleceu-se em uma bela casa em Maresfield Gardes, onde no futuro se
instalaria o Freud Museum. Freud escreveu ali, sua última obra, MOISÉS E O
MONOTEÍSMO (1939).
No ano seguinte, depois de dois dias em coma, Sigmund Freud,
bastante debilitado, faleceu em 23 de setembro de 1939, às três horas da
madrugada. Não suportando mais o sofrimento decorrente do câncer, do qual
era vítima há treze anos, morreu tranquilamente por meio de injeções de
morfina. A seu pedido, e com o consentimento de Anna Freud, recebeu do
médico e amigo, que cuidou de seus últimos dias, Max Schur (1897 - 1969),
três injeções de três centigramas de morfina. Seu corpo foi cremado em
Golders Green. Freud morrera em sua forma material, no entanto, continua vivo
e crescendo em pensamento, e esse trabalho é amostra plena desse fato.
Vale lembrar que a época de Freud e, em especial, no lado do mundo
em que viveu, houve intensa produção de pensamento na arte, ciência e
filosofia. Personalidades como os físicos Albert Einstein (1879 - 1955) e Max
Karl Ernst Ludwig Planck (1858 — 1947), o pai da física quântica, o pintor
Gustav Klimt (1862 - 1918), os compositores de música erudita Johann Strauss
(1804 —1849) e Arnold F. Walter Schönberg (1874 — 1951) e o filósofo
Friedrich Nietzsche (1844 - 1900), produziram grandes obras
contemporaneamente.

A QUEBRA DE NARCISISMO

Muito se discute sobre ser ou não a psicanálise uma ciência e as


controvérsias nesse tema têm como fundamental o fato de que aquilo que o
psicanalista se ocupa não está disponível a decodificações possíveis aos
órgãos dos sentidos. Ainda assim, a psicanálise é um recurso de se reconhecer
a verdade e restringir ciência ao campo sensorial é privá-la do acesso à
verdade da vida que abrange para além desse domínio. Portanto, o fato não é
destituir psicanálise daesfera científica, mas expandir as possibilidades da
ciência para além do nível sensorial.
“Isso não significa que o método psicanalítico não é científico, mas sim que o
termo ‘ciência’, como tem sido comumente usado até agora para descrever
uma atitude para com os objetos dos sentidos, não é adequado para
representar uma abordagem daquelas realidades com as quais a “ciência
psicanalítica” tem que lidar.”. (Bion, 1970).
Sendo assim, o fato psicanalítico deve ser apreendido através de outro
conduto que não seja os dos cinco órgãos dos sentidos. Bion, em sua obra
ATENÇÃO E INTERPRETAÇÃO, propõe a intuição como canal essencial de
captação, diferenciando sua atividade do conhecimento, que está ligado aos
órgãos físico-sensoriais. Quanto a isso, os estudos da física quântica têm
ampliado muito a concepção, inclusive nas possibilidades de aproximação
ciência e espiritualidade e quanto a esse aspecto os cientistas materialistas se
opõem veementemente. Enquanto o cientista materialista mantém a convicção
de que a matéria é o princípio elementar da realidade, a mecânica quântica
revela que o verdadeiro fundamento de tudo aquilo que podemos perceber e
que reconhecemos é a consciência cósmica não local. Essa dimensão da
consciência é admitida como algo transcendental que se encontra fora do
espaço-tempo e essa formulação parece se aproximar da concepção
psicanalítica, ou ainda da realidade última (“O” da experiência), proposta por
Bion. Essa ideia já se encontra sendo cogitada por místicos, nas experiências
“Satori” (despertar), do Zen Budismo, e também no Taoísmo. A realidade assim
como existe, independente do conhecimento humano.
“O que demonstro é a necessidade de virar a ciência materialista de cabeça
para baixo. A física quântica exige que a ciência se baseie no primado da
consciência. Assim sendo, a consciência é a base de toda existência, uma
existência que os místicos chamam Mente de Deus. Que os materialistas
percebam que a matéria é o epifenômeno, não a consciência.” (Goswami,
2008).
Sendo a psicanálise uma ciência que transcende a materialidade das
coisas, o modelo é instrumento de grande utilidade em suas formulações. O
modelo é ponte que conduz na tarefa de comunicar o elemento apreendido
pela intuição. Na construção da teoria psicanalítica Freud se utilizou de
inúmeras referências ornamentais dos processos do funcionamento da mente,
e a mitologia grega foi uma fonte muito rica nessa tarefa de ilustração. O mito
de Narciso, que diz a lenda morrera apaixonado pela sua própria imagem, é um
desses personagens fundamentais para o pensamento psicanalítico.
Em seu texto UMA DIFICULDADE NO CAMINHO DA PSICANÁLISE,
datado de 1917, escreve sobre três feridas narcísicas da humanidade. Quando
desenvolve a metapsicologia, demonstra que o ser humano não é totalmente
dono de si mesmo, ou seja, não escolhe aquilo que deseja. Despertou, com
isso, grande oposição, pois essa ideia tira o homem de certa onipotência do
domínio de sua própria vontade. Uma ideia da qual Schopenhauer (1819), já
cogitara e que então passa a fundamentar a psicanálise, em que a vontade do
humano é inconsciente. No texto Freud coloca a psicanálise entre as três
feridas, como um pensamento que vem quebrar o que chamou de ilusão
narcisista. O primeiro golpe narcísico enumerado por Freud está no nível do
cosmos e da ciência astronômica, onde Nicolau Copérnico (1473 - 1543),
corajosamente introduz a ideia do heliocentrismo - mais tarde, a base da teoria
de Galileu Galilei, (1564 - 1642) - de que o sol seria o centro do universo e não
a terra, como sepensava até então. A segunda ferida narcísica, segundo Freud,
foi provocada pelo darwinismo, no âmbito da biologia, quando propõe a teoria
da evolução, em que o homem não está no topo da evolução biológica, sendo
um animal entre os outros. Grande admirador de Charles Darwin (1809 - 1882),
e de sua proposta teórica, Freud o tem como referência em grande parte de
sua obra, e o elege como participante dessa tríade de quebra narcísica.
Descrevendo as pesquisas de Charles Robert Darwin, propõe que: “O homem
não é um ser diferente dos animais, ou superior a eles; ele próprio tem
ascendência animal, relacionando-se mais estreitamente com algumas
espécies, e mais distanciadamente com outras.” (Freud, 1917)
Freud, por sua vez, propõe a psicanálise como a terceira ferida narcísica
e inaugura com isso certo conflito com o pensamento científico vigente em sua
época, já que os olhares da psicologia se voltavam para o ponto de vista de
escolas de pensamento experimental, como a do fisiologista alemão Wilhelm
Wundt (1832 – 1920). Na realidade, falar de quebra de narcisismo é falar da
maior proposta da própria psicanálise, seja ela aplicada na psicoterapêutica ou
em qualquer que seja a prática dessa teoria: a tentativa de reconhecer a
existência do que Freud chamou de inconsciente. Experiência que não deve
acontecer de forma simples, pois cada nova verdade que passamos a admitir
coloca em risco todas as outras que tínhamos até então. Isso corre tanto nas
transformações intimas de cada sujeito, na ampliação do conhecimento assim
como da maturidade emocional, quanto no âmbito da humanidade, no que se
refere à ampliação na ciência e ainda da consciência humana. Assim como “na
nossa concepção, o indivíduo progride do narcisismo para o amor objetal.”
(Freud, 1917). Segundo propõe Freud, da mesma forma que existe a
necessidade de se abrir mão de certo narcisismo, na ilusão do sujeito de ser
ele o centro do universo, para que possa se ligar ao outro, num amor
verdadeiro, o pensamento humano também deve evoluir, quebrando seu
narcisismo do que “seria mais conveniente que fosse” para que seja possível
reconhecer a realidade como realmente é.
Nessa mesma perspectiva, mais tarde o psicanalista WilfredBion propõe
o que chamou de “mudança catastrófica”, capaz de gerar fortes sentimentos.
“Esses sentimentos relacionam-se a um sistema moral que foi violentado; a
força desses sentimentos deriva do risco de ocorrer mudança na psique.”
(Bion, 1970). Bion propõe que essa mudança ocorre sempre que um sistema é
abalado pela entrada da verdade. “Evolução ou crescimento mental é algo
catastrófico e atemporal.” (Bion, 1970). A maturidade emocional, que se dá
através de desilusões,quando possam ser acolhidas, ocorre no dar-se conta da
realidade como ela é; justamente a mudança catastrófica.
Assim sendo, sem a predisposição corajosa de abrir mão das ilusões
que possam reger a percepção da realidade, não existe a possibilidade de se
apreender o objetivo da psicanálise. Tratamos aqui da quebra do narcisismo,
sendo que o mito de Narciso é fruto de um estupro. Diz o conto do mito que, a
ninfa Liríope, mãe de Narciso, é violentada pelo rio Cefiso e assim concebendo
a bela criança. Quando Liríope consulta Tirésias, o oráculo de Delfos tem a
notícia de que Narciso seria muito feliz e viveria muitos anos, porém com a
condição de nunca olhar pra si mesmo, ou se reconhecer. Um dia ele olha para
sua imagem na margem do rio e se apaixona por si mesmo. Ficando ali,
definha ate a morte. Onde seu corpo ficou nasceu uma flor bela, porém estéril.
A origem da palavra “narcótico” parte do nome de Narciso: “Narkissos” ou
“narkes”, entorpecido, topor.

DA HISTERIA

O tema da histeria coincide com o intuito da própria criação de


Freud, já que a busca por compreender os sintomas da histeria era também,
para Freud, reconhecer a cadeia de sinais que ele próprio apresentava. Uma
grande descoberta no mundo externo só pode ocorrer a partir de um grande
reconhecimento interno.
Dr. Joseph Breuer (1842 - 1925) era um dos médicos mais
respeitados de Viena, colega por quem Freud tinha uma grande afeição e
respeito, implementa com ele um estudo dos fenômenos da mente.Em1885,
Freud, encantado com as descobertas que fizera nos estudos junto com
Breuer, recebe uma bolsa e viaja a França para estudar a histeria com Jean-
Martin Charcot (1825 - 1893), de quem já tinha conhecimento como brilhante
estudioso das doenças da mente, e que lhe despertara intensa admiração.
Nohospital psiquiátrico Saltpêtrière, Freud pode aprender muito com
Charcotque fazia uso da hipnose no método da “cura” das moléstias psíquicas.
Em 1893, Freud publica junto com Breuer uma obra intitulada
SOBRE O MECANISMO PSÍQUICO DOS FENÔMENOS HISTÉRICOS:
Comunicação preliminar. Na primeira fase dos estudos sobre a mente
apoiavam-se na teoria chamada “doble conscience”, onde se acreditava existir
duas consciências disputando a mesma personalidade. Com isso, desenvolve-
se uma visão horizontal do funcionamento mental. Num eixo no tempo
cronológico, em um momento certa personalidade atuava e em outro uma outra
comandava. A técnica da clínica de Breuer e Freud era baseada na sugestão,
ou seja, através da hipnose o paciente, em estado de transe, teria investigada
sua mente em seus resíduos de ocorrências traumáticas, onde se suspeitava
originar a patologia mental. Assim, quando descoberta a causa, esta era
revelada ao paciente, em momento oportuno, tentando-se revivê-la. Dr. Breuer
acreditava no que se denominou “estados hipnóides da mente” e então,
desenvolve o método da catarse no tratamento desta enfermidade do
psiquismo. Nas palavras de Freud, em sua obra UMA BREVE DESCRIÇÃO DA
PSICANÁLISE:
“Nos casos de histeria, segundo essa teoria, o afeto passava para uma
inervação somática fora do comum (‘conversão’), mas se lhe podia dar uma
outra direção e ver-se livre dele (‘ab-reagido’) se a experiência fosse revivida
sob hipnose. Os autores davam a esse procedimento o nome de ‘catarse’
(purgar, liberar um afeto estrangulado).” (Freud, 1924)

Nessa época, Dr. Breuer atendeu uma paciente de vinte e um anos


de idade, que apresentava sintomas indicativos de histeria. Ao tomar
conhecimento do caso, Freud se interessa muito e se envolve com o projeto de
pesquisa do colega e amigo. A paciente, senhorita Bertha Pappenheim (1859 -
1936), ganha, nos estudos de Freud e Breuer, o pseudônimo de ‘Anna O’ (caso
que seria publicado só 13 anos mais tarde). Numa noite em que Freud e Breuer
foram ao teatro, encontraram na ópera DON GIOVANNI, de Mozart (1756 -
1791), a inspiração para o apelido da primeira paciente tratada pela
Psicanálise. Este fora o primeiro caso publicado por Freud.
Partindo do radical grego “histeros” (útero), nasce o termo histeria,
que designaria um estado patológico que, a princípio, seria descrito ocorrendo
apenas em mulheres. Nas palavras de Freud, em seu texto intitulado
HISTERIA:“O nome ‘histeria’ tem sua origem nos primórdios da Medicina e
resulta do preconceito, superado somente nos dias atuais, que vincula as
neuroses às doenças do aparelho sexual feminino”.(Freud, 1888)Sigmund
Freud teve sua formação médica em neurologia, no entanto desenvolveu a
psicanálise a partir da percepção de que grande parte dos pacientes que ele
atendia não apresentava a origem de suas doenças no corpo, ainda que se
manifestassem ali. Exames clínicos não chegavam a diagnósticos fisiológicos
pois o organismo, em suas funções, mantinha-se funcionando adequadamente.
Ainda assim, existia certo desconforto físico presente na queixa do paciente.

Entre 1892 e 1899, Freud desenvolveu uma serie de ensaios que


juntos formam as PRIMEIRAS CONTRIBUIÇÕES À TEORIA DAS
NEUROSES, onde propôs a ordem patológica que percebia em seus
pacientes, dando-lhe o nome de neurose e nesse caso, mais especificamente,
histeria de conversão. Algo da dimensão do psíquico que se manifestava no
corpo. Uma guerra que se trava de forma interna, mas que ameaça transbordar
os limites emocionais do eu psíquico e manifestar-se no corpo físico.
Naturalmente, certo conflito entre um medo e um desejo. Uma ordem de
conflitos que pode promover severas perturbações no funcionamento mental.
Isso pelo fato de que o medo é filho do desejo. Por medo das excitações
sexuais manifestas nos seus desejos a paciente tentando evitá-las forma uma
série de sintomas histéricos. Em seu ESBOÇO DE PSICANÁLISE, Freud
escreve:
“Os sintomas das neuroses, poder-se-ia dizer, são, sem exceção, ou uma
satisfação substitutiva de algum impulso sexual ou medidas para impedir tal
satisfação, e, via de regra, são conciliações entre as duas, do tipo que ocorre
em consonância com as leis que operam entre contrários, no inconsciente.”
(Freud, 1940)
No entanto, o método catártico, apoiado no recurso da hipnose que
fundamentara o início da proposta psicanalítica começa a ser ameaçado por
inúmeros motivos demandando assim de uma reforma na metodologia.

UM NOVO MÉTODO

Freud usara da hipnose no método catártico no inicio da psicanálise,


mas logo começa a perceber que esse procedimento não apresentava
aplicabilidade em todos os pacientes e ainda, mesmo aqueles pacientes
sugestionáveis à hipnose não se encontravam todas às vezes disponíveis a
serem submetidos a esse processo. Percebe que a psicanálise não poderia
continuar dependentede um método tão trabalhoso e cheio de restrições como
era o caso da hipnose. Mesmo porque, percebe que mesmo sem ser
submetido à hipnose, o paciente revelava seus conflitos psíquicos no conteúdo
que trazia em sua fala durante as conversas informais. Além disso, saber o
motivo original do trauma não ajuda em nada na tarefa de elaboração do
elemento psíquico. Compreender por que a água não vem, não diminui a sede.
Assim como na analogia que Freud usa em seu trabalho ANÁLISE
TERMINÁVEL E INTERMINÁVEL, dessa forma “não fez mais do que faria o
Corpo de Bombeiros se, chamado para socorrer a uma casa que se incendiara
por causa de uma lâmpada a óleo emborcada, se contentasse em retirar a
lâmpada do quarto em que o fogo começara.” (Freud, 1937). O processo não
deve se restringir no trabalho de investigar e revelar causas, mas no processo
de aprender a lidar com as consequências.
Deste modo, Freud passa a desenvolver e utilizar-se de um novo
método que chamou de associação livre de ideias. Em 1891, Freud publica
CONTRIBUIÇÕES À CONCEPÇÃO DAS AFASIAS, livro que assina,
definitivamente, o rompimento das teorias sobre os “estados hipnóides” e o
método catártico proposto por Breuer.O novo método conta com o que Freud
chamou de “regra fundamental”, o que consistiria em pedir ao paciente que
prometesse falar livremente tudo o que lhe viesse à mente, mesmo que lhe
parecesse incoerente ou sem nexo. A partir do discurso do paciente, o analista
desenvolveria interpretações, a fim de revelar conteúdos reprimidos em sua
mente. Nafala do paciente, apresenta-se dois tipos de conteúdo:
a) manifesto: o “o que”, representado nas questões explícitas, naquilo
que o paciente verbaliza, descrevendo fatos ocorrentes em sua vida cotidiana.
Aquilo que o paciente tem conhecimento.
b) latente: o “como”, contido nas questões localizadas no ponto cego da
mente, fatos relacionados a frustrações e, por conta da intolerância, com
tendência a serem evitados. Aquilo que o paciente não consegue verbalizar,
mas ainda assim revela indiretamente. Isso por estarem inconscientes para o
sujeito.
Enquanto o paciente falava para Freud, tudo que surgia em sua mente,
contando sobre seu dia à dia, ou qualquer que fosse o assunto que tratasse
(conteúdo manifesto),ia também revelando, sem perceber, fatos sobre ele que
ele próprio não tinha conhecimento (conteúdo latente), mas que continha
informações fundamentais sobre seu estado adoecido de neurose.

OS PROCESSOS E OS PRINCÍPIOS DO FUNCIONAMENTO MENTAL

Em 1911, Freud chamou a atenção, com o texto FORMULAÇÕES


SOBRE OS DOIS PRINCÍPIOS DO FUNCIONAMENTO MENTAL, para as
possíveis formas de processos mentais em funcionamento no psiquismo.
Nesse importante texto Freud propõe que no nível inconsciente a mente
funciona através do que chamou de processo primário, onde impera certa
condição em que o “eu” coincide com o “tudo”. Não se admite nessa ordem de
funcionamento mental a existência do outro. O princípio do prazer é que
governa esse processo, que não admite noções como as de tempo e espaço.
Dentro deste funcionamento a lógica se estabelece por meio dos mecanismos
de condensação e deslocamento. Condensam-se e deslocam-se dados
sensoriais em nome de afastar desconfortos e angariar satisfação imediata
assim que ocorra qualquer excitação. Isso gera uma forma desvirtuada de se
reconhecer a realidade, diferente da forma de reconhecimento possível através
do sistema conscienteeviável de ser compartilhada entre sujeitos.
Contudo, na missão de afastar desconfortos, o aparelho psíquico
acaba por reconhecer o mundo externo, onde está o “outro”;aquele que na
realidade é quem poderá satisfazer as necessidades do aparelho psíquico.
Então, regido por Eros, o aparelho psíquico descobre outro processo e com ele
outra forma de funcionar. O processo secundário começa se instalar no
aparelho psíquico a partir do reconhecimento da realidade externa. Agora o
“eu” e o “tudo” já não se confundem mais e o outro não é apenas reconhecido
como outro, mas vem com a realidade de que o “eu” depende
fundamentalmente dele. Se no processo primário a lei partia do afastamento do
desconforto e a busca pela satisfação à qualquer custo e independente da
realidade, agora, no processo secundário, o referencial é justamente a
realidade e os esforços são em função de se adaptar a ela. Esse novo
funcionamento, onde o outro é fundamental é regido pelo princípio de
realidade. Essa é a introdução da consciência, instância superior da mente, da
qual teremos chance de estudar com mais cuidado em capítulos seguintes.
Sobre isso, Freud escreve que: “O pensar foi dotado de características que
tornaram possível para o aparelho mental tolerar uma tensão intensificada de
estímulo, enquanto o processo de descarga era adiado.” (Freud, 1911)
O pensamento, então, é desenvolvido a serviço da realidade e,
primariamente, como meio de adiar a satisfação, sustentando a tensão gerada
pela excitação. Mas uma parte deste processo ficou reservada, sem contato
com a realidade, e, no mesmo artigo, Freud conclui que: “Com a introdução do
princípio da realidade, uma espécie de atividade do pensamento foi expelida
(split off); foi mantida livre do teste da realidade e permaneceu subordinada
apenas ao princípio do prazer. Essa atividade é o fantasiar.”(Freud, 1911).No
funcionamento inconsciente o que se produz são fantasias que são
dependentes do princípio do prazer/desprazer e servem para adiar ou afastar
desconfortos, em nome de um bom funcionamento mental. Entretanto, a
origem do pensamento, que é da ordem do processo secundário, se encontra
na capacidade de testar a fantasia frente à realidade. Não é um simples
contraste, mas uma derivação. O pensamento seria uma antiga fantasia que se
submeteu ao princípio de realidade, que, por sua vez, é o princípio do prazer
modificado pela realidade.

Esta configuração interna é sempre regida por um alto grau de


onipotência e onisciência, que tende a se dissolver quando emerge para
camadas mais altas do aparelho mental. Assim, as ilusões passam por aquilo
que Freud denominou de teste de realidade, e chegam à consciência em forma
de pensamento. Apesar de a função mais evoluída dos processos mentais, o
processo secundário, ser parte do sistema consciente, é apenas uma parte do
aparelho psíquico que funciona assim. Na maioria do tempo, o aparelho
psíquico funciona pelo processo primário, em que o pensamento mágico
impera. Essa é justamente a forma de pensar que está disponível a um bebê
em seus primeiros anos de vida. De qualquer forma, quando Freud propõe a
substituição de um princípio pelo outro, não apóia a destituição do primeiro pelo
segundo, mas o adiamento de uma satisfação imediata por outra, posterior
mais garantida.

A LIBIDO E A TEORIA DAS PULSÕES

Para compreendermos o funcionamento de certo aparelho, temos


que pesquisar antes, sobre a energia que movimenta esse aparelho. No caso
do aparelho mental, falamos então de energia psíquica ou sexual, e libido foi
como Freud conceituou esse elemento. A libido é a energia psíquica
responsável pelas ligações entre as partes psíquicas internas ou externas. A
pulsão sexual na necessidade sexual presente no animal, também no ser
humano, não é diferente. “Segue-se nisso a analogia com a pulsão de nutrição:
a fome. Falta à linguagem vulgar [no caso da pulsão sexual] uma designação
equivalente à palavra ‘fome’; a ciência vale-se, para isso, de ‘libido’.” (Freud,
1905)A libido é a responsável pela proliferação da espécie através do instinto
sexual. É o que aproxima dois espécimes da mesma espécie, gerando assim
uma nova vida. Bem, assim como afirma Bion na transcrição de suas falas
intitulado CONVERSANDO COM BION: “A unidade biológica é o casal.” (Bion,
1977). Para Freud, a manifestação da libido se apresentaria em duas formas
básicas:
a) Eros (na mitologia grega), ou o Cupido (na mitologia romana), é
retratado como o deus do amor, aquele que une, liga. Na psicanálise
aparece esse nome como indicativo de pulsão de vida, ou movimento de
libido (substrato da pulsão) do interior para o exterior. É a manifestação
do movimento que parte de dentro e eclode para fora, a expressão do
movimento em direção à ligação com o mundo (ao objeto), assim como
na integração das partes do eu.
b) Na ausência da libido, quem atua é a pulsão de morte, Thânatos - na
mitologia grega, filho de Nyx (a Noite), irmão gêmeo de Hipnos (deus do
sono). Enquanto Hades reina sobre os mortos, Thânatos é a própria
personificação da morte, que vive paralelamente com Eros e cujo
objetivo é conduzir a inquietação da vida para a estabilidade no estado
inorgânico. Como num corpo sem vida que tende a se decompor, a
ausência da libido provoca a fragmentação das partes. A energia que
em um momento é projetada para fora do aparelho psíquico com o
intuito de união, num outro momento é desligada, direcionada para o
mundo interno e na persistência desse estado inicia um processo de
divisão do eu. A pulsão de morte é caracterizada pela fragmentação do
eu e do mundo, como um todo, gerando ações repetitivas que parecem
retornar a um estágio anterior do desenvolvimento. Um movimento que
tende à desvinculação das partes, na insuficiência da irrigação da libido.
Duas tendências inatas que trabalham nas convergências de desintegração
e integração.
“Com base em considerações teóricas, apoiadas pela biologia, apresentamos a
hipótese de uma pulsão de morte, cuja tarefa é conduzir a vida orgânica de
volta ao estado inanimado; por outro lado, imaginamos que Eros, por ocasionar
uma combinação de consequências cada vez mais amplas das partículas em
que a substância viva se acha dispersa, visa a complicar a vida e, ao mesmo
tempo, naturalmente, a preservá-la.” (Freud, em O EGO E O ID, 1923)
O funcionamento mental com a introdução do conceito de pulsão de
morte passa a ter para Freud, uma conotação dualista: por um lado uma
tendência leva o psiquismo a buscar a inércia, enquanto por outro lado, a libido
(pulsão de vida), introduz no psiquismo uma dose de excitação e impulsiona no
sentido da busca de um objeto a se ligar. Quando a pulsão de morte é
projetada no mundo externo, ela se manifesta como pulsão de destruição. No
entanto, por mais que a ideia da libido pareça ser dualista, ainda assim, uma
tendência age complementarmente com a outra, onde uma não coloca a outra
fora de ação. Agem mutuamente, ainda que desordens possam ocorrer por
conta de algum conflito entre as duas.
O conceito de libido ainda aparece na obra freudiana em outra situação
que também pode parecer dualista em primeiro momento, mas que também
são complementares. Freud descreve duas direções possíveis para a libido:
“libido do ego” e “libido objetal”. Feud propõe que a libido objetal é a cota de
interesse dirigida ao objeto externo e por outro lado a libido do ego é a cota
direcionada à si próprio. E por mais que Freud afirme em seu texto SOBRE O
NARCISISMO: UMA INTRODUÇÃO, que “quanto mais uma é empregada,
mais a outra se esvazia”, no mesmo texto afirma que “um verdadeiro amor feliz
corresponde à condição primeira na qual a libido objetal e a libido do ego não
podem ser distinguidas.” (Freud, 1914).
A teoria das pulsões, assim como todo o aparato teórico chamado psicanálise
deve ser utilizada tão somente para restaurar o sentido concreto na prática
clínica, que em muitos momentos pode perder-se em abstrações. Entretanto,
nunca deve se render num modelo saturado, acabado, como sendo a descrição
fiel do que realmente ocorre no âmbito mental, que nunca poderá ser
apreendida em sua totalidade pelo conhecimento. Por conta disso, abre-se a
necessidade de constante evolução no desenvolvimento desse instrumento
chamado psicanálise.

CONTRIBUIÇÕES DE MELANIE KLEIN

Melaine Klein (1882 – 1960) importante pensadora, contribuiu


enormemente para a expansão da psicanálise, considerada por várias escolas
como o segundo nome mais importante depois de Freud. Foi analisada por dois
grandes discípulos de Freud; Sandor Ferenczi (1873 — 1933) e Karl Abraham
(1877 – 1925). Klein foi responsável pela formação de Wilfred Ruprecht Bion,
da qual foi analista e orientadora por vários anos. Melanie Klein iniciou seus
estudos e publicou seu primeiro trabalho na década de vinte, quando a
psicanálise já se fazia uma teoria importante no panorama mundial, e
alcançava certo respeito em sua prática clínica. Nessa época, o nome de Freud
já havia conquistado reconhecimento e prestígio pelo mundo todo. Essa
pensadora inglesa desenvolve o método da ludoterapia no tratamento e análise
de crianças.
Em sua trajetória, Klein enfrenta inúmeras dificuldades como a “rivalidade
teórica” com Anna Freud, filha de Freud, que, nessa época, desenvolvera
também um método de psicoterapia infantil. Klein diverge de Freud,
principalmente quanto à precocidade do desenvolvimento mental da criança e
introduz à psicanálise importantes conceitos, como o de identificação projetiva,
mecanismo do aparelho psíquico. M. Klein também contribuiu na psicanálise
com sua teoria das posições (esquizoparanóide e depressiva) e proporcionou
grande avanço no que diz respeito ao conceito de símbolo na formação e
desenvolvimento do ego.
Além de Klein, a psicanálise inspirou muitos outros pensadores e
continua produzindo-os incessantemente, como C. Gustav Jung (1875 - 1961),
discípulo muito importante de Freud, o pediatra inglês Donald Woods Winnicott
(1896 - 1971), Bion, discípulo de Klein, e no Brasil, Walter Trinca e Antônio de
Muniz Rezende. São pensadores que trazem ideias de enormes proporções
para a Psicanálise. Ora, assim como o próprio Freud escrevera, “outros virão”.

A Teoria das Posições

Melanie Klein propôs a teoria das posições no processo de divisão e


integração da mente e consequentemente do objeto primitivo, em seio bom e
seio mau, até alcançar o objeto total. Essa contribuição kleiniana teve início
fundamentalmente a partir da publicação das obras CONTRIBUIÇÕES À
PSICOGÊNESE DOS ESTADOS MANÍACO-DEPRESSIVOS de 1935, e
complementada mais tarde pelo LUTO E SUA RELAÇÃO COM ESTADOS
MANÍACO-DEPRESSIVOS, de 1943. A pensadora parte das ideias de
Sigmund Freud quanto aos processos primário e secundário da mente. Klein,
além disso, é fortemente influenciada pelo modelo introduzido por Freud, no
texto de 1917, LUTO E MELANCOLIA, expandindo essa proposta permitindo
um novo olhar para as nuances funcionais da mente. Quando Klein propõe
essa teoria, leva em conta certa experiência vivida pelo bebê que representa o
protótipo de funcionamento mental que é perpetuado pela vida toda, num ciclo
mental.
Desde o início da vida mental do bebê existe certa tendência à
integração, e, como já vimos nesse trabalho, Freud chamou isso de Eros
(pulsão de vida). Contudo, existe também a influência de Thânatos (pulsão de
morte) que promove a desintegração. Além desse duelo dos mitos no interior
dos processos psíquicos, implica-se também o impacto da realidade externa
que nessa fase da vida coincide com a própria mãe. O ego primitivo sendo
frágil, lábil e variante em sua integração, depende da mãe para proporcionar
noções de contenção, como as de amparo, constância e equilíbrio. Em sua
formação inicial, varia quanto ao grau de integração e desintegração e a tensão
que é gerada no interior do psiquismo tende a ser projetado no mundo externo.
Parte da pulsão de morte é projetada e outra cota permanece direcionada para
o interior do aparelho psíquico. A projeção da pulsão de morte (pulsão de
destruição) se faz numa tentativa de evitar a ansiedade gerada ao conter essa
espécie de pulsão. Já a projeção da pulsão de vida vem como tentativa de criar
um objeto que irá satisfazer suas necessidades. Assim, o seio se divide em
seio idealizado e seio persecutório.
Isso acontece com as fantasias do seio bom ou idealizado, fundindo-
se com a experiência gratificante do amor da mãe e a satisfação da
alimentação; já a fantasia de seio mau e perseguidor funde-se com a privação
dessas satisfações. Na imaturidade emocional a impossibilidade de perceber a
mãe como “outro”, ou seja, como alguém total, faz com que o bebê, em seus
estágios iniciais da vida, perceba a mãe fragmentada, como objetos parciais.
Isso quer dizer que cada aspecto dela é separado do todo. Assim, também
aspectos desprazerosos são isolados dos aspectos prazerosos. Essa maneira
de funcionar é descrita por Klein como posição esquizoparanoide (esquizo =
dividido, paranoide = perseguidor). O objetivo desse funcionamento mental é
separar o bom do ruim, assim como manter um afastado do outro. Contudo,
cada movimento de projeção dessa espécie carrega também uma
consequência interna. Ao projetar o ruim como se estivesse no outro, implica
em que o outro seja o inimigo perseguidor, entretanto, manter o ruim dentro de
si, acarreta a sensação de abandono e definhamento. Isso corroborado pelo
fato de que projetando uma parte do eu o sujeito fica deficitário, incompleto,
faltante, portanto, fragilizado. A partir das ideias kleinianas, o ponto de fixação
das psicoses se encontra nessa posição, que de forma natural é vivida na tenra
infância. Assim, percebemos que muitas vezes a personalidade se desintegra
para se defender e dessa mesma forma podemos sugerir a manifestação de
certo instinto de autopreservação.
Na mesma medida em que as projeções peculiares dessa posição
puderem ser recebidas pelo objeto e subsequentemente de volta introjetadas
de maneira tranquila, o bebê vai se tornando mais capaz de reconhecer o
objeto externo (mãe). Wilfred Bion chamou atenção para essa capacidade
materna, de receber projeções do bebê e devolver a ele de forma que possa se
integrar aos elementos do mundo interno, ao mesmo tempo promover
integração emocionalmente e com isso preparar a capacidade de pensar. Bion
deu o nome de função alfa para essa capacidade da mãe que conta com o
fator rêveri (sonhar) como base para essa experiência. A partir desse processo,
conforme a integração do ego, num ego total, também os objetos parciais
podem ser integrados, tomando a forma de objeto total e o reconhecimento da
mãe passa a ser possível. A essa posição Klein deu o nome de depressiva,
que se estabelece quando se é capaz de suportar a culpa de ter odiado aquele
que ama tanto. A capacidade de reconhecer que o seio mau, odiado por privar
da satisfação, é o mesmo seio bom, nutridor e que traz conforto. “Ao dar esse
passo, o ego atinge nova posição, que serve de base para a situação chamada
de perda do objeto amado. Só quando o objeto é amado como um todo é que
sua perda pode ser sentida como um todo.” (KLEIN, 1935). Na medida em que
a incidência das experiências bem sucedidas com o seio sobreponham as
frustrações e com isso a capacidade de tolerar se amplie, “o seio bom é
tomado para dentro e torna-se parte do ego, e o bebê, que antes estava dentro
da mãe, tem agora a mãe dentro de si” (KLEIN, 1957)
Poder experimentar da posição depressiva é ter a capacidade de
recordar da satisfação durante a privação, contudo também ser consciente da
privação durante a satisfação. Nessa posição, a principal ansiedade parte da
fantasia de que os impulsos em forma de ideias destrutivas e hostis tenham
danificado o objeto amado. Ao descobrir que o objeto não é uma criação sua, o
bebê então quer possuir esse objeto. É como se, por não ‘ser’ o objeto, o bebê
quer, então, ‘ter’ o objeto. O impulso é de manter o objeto dentro de si e, em
última instância, protegê-lo de sua própria hostilidade. Um impulso de proteger
e tentar reparar toda moléstia que sente ter causado à mãe. “Uma vez que o
impulso para reparar ou proteger o objeto danificado prepara o caminho para
relações de objeto mais satisfatórias e para sublimações, ele também
incrementa a síntese e contribui para a integração do ego” (KLEIN, 1946).
Na realidade estamos refletindo sobre a forma como o bebê se manifesta
emocionalmente na ausência da mãe e como o adulto, em algum grau, tende a
se manifestar na iminência das perdas da vida adulta. Esse modelo de
transição das posições na vida adulta ainda acontece, ou seja, quando Melanie
Klein propõe esse modelo de funcionamento mental, ela fala de algo que está
presente, em alguma medida, na vida emocional. Isso independente da época
da vida ou do grau de maturidade emocional. Na realidade nossa vida é feita
desse constante exercício de desintegração em eleger o que é bom ou ruim pra
nós, assim como na necessidade da integração desses dois aspectos na
tentativa de um funcionamento mental saudável.

INSTÂNCIAS DA MENTE

Através dos estudos sobre histeria na pesquisa sobre o funcionamento


da cadeia de sintomas que este estado psicológico provoca no sujeito, foi
possível a Freud a descoberta da instancia mental do inconsciente e a partir de
então reconhecer a mente através de um processo especial. Processo esse
que ocorre em um “aparelho”, compreendendo certa organização psíquica,
onde se apresenta sistemas que trabalham em instâncias com funções
específicas funcionando interdependentes entre si. Assim, Freud desenvolve a
teoria da metapsicologia, que ocorre para além do conhecimento do sujeito.
Freud delineia um modelo de psicologia denominada Psicologia Profunda, que
abarca todas as nossas percepções, ideias, lembranças, sentimentos e atos –
todos fazem parte do que é psíquico, sendo ou não compreendido no nível da
percepção sensorial (órgãos dos sentidos).
Buscando no radical grego “topos”, que significa ‘lugar’, Freud determina
o que seria “Primeira Tópica”, em sua teoria: a topografia da mente. Na
geologia topográfica, por exemplo, se utiliza do termo para descrever a
dimensão que permite reconhecer as regiões mais profundas e as mais
elevadas do terreno. Desta mesma forma, nesse primeiro modelo, a psicanálise
se utilizou desse conceito para mapear e descrever a mente. Dentro desse
modelo, Freud percebeu a mente dividida em três instâncias: Inconsciente, Pré-
consciente e Consciente.Entanto, por mais que muitos cientistas tentem
encontrar essas instancias no corpo físico, Freud descreve o aparelho mental,
alertando sobre sua subjetividade e no sétimo capítulo de sua célebre obra A
INTERPRETAÇÃO DOS SONHOS, onde trata da psicologia dos processos
oníricos afirma que:
“Podemos evitar qualquer possível abuso desse método de figuração
lembrando que as representações, os pensamentos e as estruturas psíquicas
em geral nunca devem ser encarados como localizados em elementos
orgânicos do sistema nervoso, mas antes, por assim dizer, entre eles, onde as
resistências e facilitações fornecem os correlatos correspondentes.” (Freud,
1900)
Segundo o modelo topográfico freudiano, no aparelho psíquico, a
perspectiva passa da antiga visão horizontal, onde uma consciência disputaria
lugar com a outra, para um vértice vertical, revelando uma conotação de
profundidade, o que poderíamos chamar de mapeamento mental.

O INCONSCIENTE - Ics.
Termo usado pela psiquiatria para definir episódio de perda da razão, ou
momento onde o indivíduo fica sem o controle de seus atos, o conceito de
inconsciente é, sem dúvida, a maior descoberta de Freud e a pedra angular de
toda psicanálise. Essa descoberta serviu, e nos serve até hoje, como esteio
para toda teoria psicanalítica. Freud descreve o inconsciente como sendo a
base geral do psiquismo humano, em que tudo que chega à consciência do
indivíduo passa primeiro pelo inconsciente.
É a parte do “eu” que o próprio “eu” desconhece. O local de onde parte a
libido inicialmente em forma de pulsão. Do ponto de vista topográfico, o
inconsciente localiza-se na camada inferior do aparelho psíquico, nas áreas
mais profundas do psiquismo. Representando dinamicamente, é tudo aquilo
que não pode passar pela censura dos sistemas pré-consciente (que
estudaremos melhor adiante) para que finalmente, possa emergir a
consciência. No inconsciente a lógica é muito diferente das outras instâncias
mentais, não atuam ali noções presentes no consciente, como a de tempo e
espaço e definição de objeto, atribuídas só com a experiência com a realidade
externa, isto é, qualidade conferidas só a partir do nível pré-consciente. O
inconsciente é o lugar do desconhecido onde não cabe referencias regionais.
“Não há, nesse sistema, lugar para negação, dúvida ou quaisquer graus de
certeza: tudo isso só é introduzido pelo trabalho da censura entre o Ics. e o
Pcs.” (Freud, em O INCONSCIENTE,1915)
Podemos sugerir que o inconsciente denote as seguintes peculiaridades em
seus conteúdos:
– Aquilo que se sente, mas não se sabe.
– Conteúdos originados das pulsões, é do inconsciente de onde parte a libido.
– Não compreendem aspectos referentes à temporalidade, noções espaciais
tão pouco referencias pessoais (definição objetal).
– Não tem representante definido na realidade.
– Elementos referentes ao processo primário (condensação e deslocamento);
regido pelo princípio do prazer.
– Procuram emergir à consciência (realidade externa) por meio da ação,
(atuação).
– Geralmente, são submetidos à censura quando emergem.
– Podem ser representados nos sonhos, nos atos falhos (parapraxias), chistes
(anedotas e gracejos), nos sintomas mentais, na vida mental primitiva, tanto da
criança quanto na dos nossos ancestrais.
Nada que está no domínio do inconsciente pode ser conhecido. Podemos
reconhecer a existência do inconsciente, mas jamais conhecer isso, já que
quando conhecemos seu conteúdo, isso já não se encontra mais nesse nível,
mas passa a ser consciente. Na realidade, mesmo a capacidade de perceber e
reconhecer os conteúdos do inconsciente ainda é muito primitiva em nossa
espécie.A grande relevância implicada na descoberta do inconsciente está no
fato de que, apesar de todas a evidências sobre os elementos inconscientes,
tudo que se sabe sobre esse nível do psiquismo está na ordem da
possibilidade e nunca na certeza., No terceiro capitulo do sua obra ATENÇÃO
E INTERPRETAÇÃO, onde trata da realidade sensorial e da realidade
psíquica, Bion propõe que para estarmos de acordo com a realidade ultima, o
que nos dá acesso ao conteúdo inconsciente (pelo “estar sendo” e não pelo
“saber sobre”) é imperioso renunciarmos a maior cota possível de nosso
desejos, assim como dos conteúdos armazenados na memória, já que estão
subordinados ao aparato sensorial e por tanto, são obstrutores do fluxo no
funcionamento mental.
“Pode-se perguntar qual seria o estado de mente bem-vindo, já que memórias
e desejos não o são. Um termo que expressaria de modo aproximado o que
necessito expressar é "fé" - fé de que existe uma realidade última e verdade - o
"infinito desprovido de forma", desconhecido, incognoscível.” (Bion, 1970)
Com a suspensão do desejo e da memória, o ato de fé depende da capacidade
de tolerar nossa ignorância frente à própria realidade. O que nos permite saber
sobre algo é a possibilidade de atribuir a isso noções de tempo e espaço,
justamente o que está ausente nos processos inconscientes. Sendo assim,
abre-se a necessidade de se lidar com um novo princípio dentro das
formulações psicológicas: o princípio da incerteza. Esse princípio presente na
psicanálise representado na ideia do inconsciente tem um correlato na física
quântica,através do enunciado do físico alemão Werner Karl Heisenberg (1901
– 1976), onde propõequenão é possível definir precisamente e ao mesmo
tempo a posição e o momento de uma partícula.
Essa idéia, assustadora e insuportável para grande parte de nós, requer uma
grande capacidade de tolerância à frustração para que possa ser concebida.
Assim como propõe Bion, em sua obra TRANSFORMAÇÕES, resgatando a
idéia do matemático, físico, inventor, filósofo e teólogo católico francês Blaise
Pascal (1623 —1662): “O pensamento de Pascal "Le silence éternel de ces
espaces infinis m'effraie" vale com expressão de intolerância e pavor pelo
"desconhecido" e, portanto, do inconsciente na acepção não-descoberto ou
não-evolvido.” (Bion, 1965). *O silêncio eterno desses espaços infinitos me
assusta. De qualquer forma,o sistema inconsciente como nossa mais
verdadeira e profunda realidade psíquica e, portanto, sempre evitada por meio
das resistências. Dessa maneira, à prática clínica da psicanálise deve sempre
ter a premissa da tolerância quanto ao desconforto de estarmos frente ao
desconhecido, onde o único fato que podemos estar certos é sobre nossa
ignorância.

O PRÉ-CONSCIENTE - Pcs.

O conceito de pré-consciente, tão utilizado por Freud parece ter sido


de alguma forma abandonado pela psicanálise contemporânea, onde
dificilmente é encontrado em obras de pensadores como M. Klein e Bion, por
exemplo. Ainda assim, penso ser esse um conceito central nas formulações
psicanalíticas.O pré-consciente (Pcs.)é a instância transicional do aparelho
psíquico. Um ambiente mental de passagem. A partir do contato com a
realidade o aparelho psíquico conhece um funcionamento diferente daquele
usualmente frequente no inconsciente. Como pudemos estudar em capítulos
anteriores, o contato com a realidade externa força a mente ao processo
secundário, onde do princípio de realidade passa-se a se funcionar pelo
princípio do prazer/desprazer. Esse é justamente o procedimento que dirige a
libido ao consciente. Contudo, essa passagem nunca é feita de maneira
simples. Logo acima do sistema inconsciente, localiza-se o pré-consciente.
Freud escreve que “O conteúdo do sistema Pcs. (ou Cs.) deriva, em parte, da
vida instintual (por intermédio do Ics.) e, em parte, da percepção”.
(Freud,1915). Localizado, topograficamente acima do Ics. e abaixo do Cs., o
sistema pré-consciente, tem a função dinâmica de trabalhar elementos da
memória que não se sustentam íntegros, quando representados no nível
consciente. Economicamente, os elementos não permanecem por muito tempo
nesse nível, flutuando por entre ele umas vezes mais inconsciente, outras mais
conscientes.

No trabalho clínico-psicanalítico, um ato psíquico só pode emergir à


consciência se aceito pela censura pré-consciente. Quando não, aparece como
uma atuação (acting out), algo que não pôde ser pensado e, posteriormente,
elaborado, surge como uma ação não pensada, num ato motor ou um
comportamento (não congruente com a ocasião). De algum modo, este
comportamento é caracterizado por uma forma repetida (repetição) de lidar
com conflitos. Conteúdos que estejam no sistema pré-consciente podem
emergir e retornar ao nível profundo do inconsciente se necessário for, por
medidas defensivas. A configuração ambiental tem grande influência sobre
essa experiência, sendo que um ambiente livre de ameaças de julgamento é
propício para a emersão desses elementos. Assim, do ponto de vista
econômico, pode ter investimentos maiores e menores de catexias libidinais e,
dependendo do critério da censura, pode aparecer para a consciência ou
mergulhar no desconhecido. Os elementos contidos no sistema pré-consciente
podem ser exemplificados, em parte, por tudo aquilo que lembramos, mas que,
de alguma forma, não conseguimos trazer à consciência. Isso nos sugere um
tipo de critério de seleção baseado em uma censura que barra estes conteúdos
de se tornarem conscientes. É como se disséssemos: “eu sei, mas não consigo
dizer ao outro”. Nesse estágio do processo mental, aquilo que, até então, se
mantivera como conteúdo primitivo e inconsciente, agora ganha atributos e
definições pré-conscientes como a temporalidade, noção espacial e maior
noção objetal, sendo mais específica. Só assim pode-se emergir a um estágio
superior do aparelho mental e, em um novo estágio, se desenvolver até que
chegue à consciência, podendo, assim, ser comunicado ao outro e sendo
efetivado para si mesmo. Freud coloca uma condição para que os conteúdos
emerjam para as camadas superiores do aparelho psíquico quando escreve em
seu texto INSTINTOS E SUAS VICISSITUDES que “Um instinto jamais pode se
tornar um objeto da consciência – comente a ideia que representa o instinto é
que pode.” (Freud,1915).

O sonhar
Os sonhos foram, para Freud, um caminho indicativo na descoberta dos
elementos oníricos e da existência do inconsciente. Proposto como a via régia
para instâncias profundas do aparelho psíquico, sendo que o sonhoemseus
conteúdos oníricos traz consigo muito dos conteúdos sintomáticos, presentes
nas neuroses e outras patologias da mente. Freud propõe que “o sonho é uma
realização (disfarçada) de um desejo (reprimido).”(Freud, 1924), no seu texto
UMA BREVE DESCRIÇÃO DA PSICANÁLISE. Por conta disso a censura dos
níveis superiores da mente ocasiona certa dificuldade de se encontrar uma
lógica e muitas vezes de recordar do conteúdo do sonho. Formam-se então
resistências que na verdade não ocorrem só na interpretação dos sonhos,mas
em qualquer que seja a tentativa de tomada de consciência.
Portanto, o sonho estaria para a psicanálise como uma janela reveladora de
conteúdos inconscientes que não puderam ser educados pela doutrina
civilizatória e assim, não consegue emergir para níveis mentalmente
superiores. Foram reprimidos e arremessados de volta para níveis mais
profundos da mente. Portanto, o sonho é uma combinação dos conteúdos
conscientes e inconscientes, situando-se no pré-consciente. Como que uma
ponte ligando o consciente e inconsciente. Conteúdos que ainda não puderam
ser pensados, carregados de resquícios da memória daquilo que foi vivido
enquanto se esteve acordado. No entanto, ainda que o processo do sonhar
seja normalmente relacionado ao sono, na verdade o processo onírico ocorre o
tempo todo, mesmo quando acordados. Contudo, por conta da demanda do
mundo externo cobrar atenção, desvia-se a percepção dessa ordem de
funcionamento.
Wilfred Bion propõe em sua publicação póstuma, intitulada COGITAÇÕES,
(uma coletânea de manuscritos) que assim, como o processo de digestão tem
sua função no funcionamento biológico, no corpo físico, o sonhar tem função
análoga para o aparelho mental. A partir dessa ideia penso que os dados
coletados pelos órgãos dos sentidos, enquanto acordados são processados,
em que parte é incorporada como simbolização e parte é evacuada como ação
não pensada (atuação). Bion (1962) expande essa formulação e propõe a ideia
de que a personalidade se estrutura por pensamentos que já existiam e
buscam pensadores que possam pensá-los. Pensamentos que vagam
flutuando buscando aquele que os pense. Sendo assim, grande parte da
personalidade de um sujeito já tem seu protótipo antes dele nascer. O futuro de
uma criança está subordinado a aquilo que os pais sonham para ela.
Aprendemos a sonhar por termos sido sonhados pelo outro. Aquele que não
teve um sonho que o antecedeu, deverá contar com a sorte de encontrar
alguém que o acolha para que aprenda a sonhar.

O Reprimido

Segundo Freud, “reprimido” é aquele elemento que um dia foi


inconsciente, emergiu à realidade externa, mas não suportou manter-se
consciente. Um impulso que não conseguiu encontrar um objeto no mundo
externo que pudesse acolhê-lo adequadamente e que, além disso, sofreu uma
rejeição. A repressão é o mecanismo de defesa gerador de inúmeros outros
mecanismos. É o principal mecanismo da neurose e Freud percebeu isso nos
seu estudo sobre a histeria, onde os pacientes se portavam como se aquilo que
causava o conflito emocional simplesmente não existisse. Uma força pressiona
para emergir e alguma experiência impede essa emersão coagindo
inversamente uma repressão. Freud afirma que “a repressão constitui essen-
cialmente um processo que afeta as ideias na fronteira entre os sistemas Ics. e
Pcs. (Cs.).” (Freud, 1915).

Aquilo que fora reprimido é obrigado a se manter fora da consciência


por não suportar o teste proposto pelos outros sistemas mais superiores no
aparelho psíquico; censuras que geram desconforto e sensação de
inadequação. No entanto, deve manter-se flutuante entre o inconsciente e o
pré-consciente e amiúde buscam escapar e emergir como ação não pensada
(atuação). Assim como aquele sujeito que se libertou dos grilhões e escapou
da caverna, no mito de Platão, quando retorna ao seu lugar de origem, não
consegue mais se conformar nessa posição. São, em geral, impulsos
frustrados em sua satisfação, carregando o peso do fracasso, repletos de
vergonha, sentimento de inferioridade, menosprezo e, sobretudo e em primeira
instância, representam algum tipo de ameaça. Amiúde ganham força se
associando a elementos selvagens que partem dos instintos de onde um dia
também foi oriundo. Freud propõe em seu texto O INCONSCIENTE que, “em
geral, um ato psíquico passa por duas fases quanto a seu estado, entre as
quais se interpõe uma espécie de teste (censura).” Freud prossegue apoiando
que, “Na primeira fase, o ato psíquico é inconsciente e pertence ao sistema Ics;
se, no teste, for rejeitado pela censura, não terá permissão para passar à
segunda fase; diz-se então que foi ‘reprimido’, devendo permanecer
inconsciente.” (Freud, 1915) No entanto, uma vez que o conteúdo tenha tido
um contato, mesmo que breve com o mundo externo, não pode mais ser
chamado de inconsciente, pois já recebeu influência das noções de tempo e
espaço.

Em 1914, Freud publica RECORDAR, REPETIR E ELABORAR


(NOVAS RECOMENDAÇÕES SOBRE A TÉCNICA DA PSICANÁLISE II) e
neste texto, reflete sobre a compulsão à repetição que acomete o neurótico,
sobretudo durante o período de análise. Freud propõe que o sujeito repita para
não se lembrar, ou seja, repita em ação aquilo que não consegue resgatar em
sua memória. Essa repetição seria o mesmo sintoma do reprimido que tenta a
erupção das profundas camadas do psiquismo para o plano consciente em
forma de atuação, ou seja, ação não pensada. Mais tarde, Freud retoma o
tema e escreve sobre as resistências que surgiriam nas vicissitudes do
reprimido até a consciência. Nessa perspectiva Freud escreve sobre as
tentativas para que essa repetição não ocorra, sendo que o reprimido não
apresenta resistência alguma ao processo psicoterapêutico. “Na verdade, ele
próprio não se esforça para outra coisa que não seja irromper através da
pressão que sobre ele pesa, e abrir seu caminho à consciência ou a uma
descarga por meio de uma ação real.” (Freud, 1920).As resistências partem
das censuras que barram a tomada de consciência.

Freud postulou que, na ocorrência do reprimido, entra em seu lugar


uma “ideia substitutiva” ou, um substituto por deslocamento. Um elemento do
mundo externo é eleito como substituto e depositário do sentimento ou o
conteúdo que deve ser evitado, por ser desconfortável. Esse elemento externo
passa a ser, para a percepção, um indicativo de ameaça e propenso a ser
evitado de maneira fóbica e não mais uma ameaça que parte do impulso
interno. Dessa maneira o reprimido passa a ser uma parte do “eu” que não
pode ser assumida conscientemente como integrante do próprio “eu”. Um fato
psíquico que não consegue encontrar lugar na consciência, um afeto, uma
necessidade ou, simplesmente, um impulso primitivo que não teve a chance de
evoluir ganhando sentido de ideia ou status de característica consciente da
personalidade. O reprimido está condenado, pelas instâncias censoras do “eu”,
a viver nas profundezas da mente. Mas, repetidamente, tenta emergir na
personalidade consciente provocando, assim, os sintomas da neurose. Além do
mais, manter um impulso reprimido exige um dispêndio excessivo e constante
de energia, já que aquilo que foi reprimido não deixa de existir, mas é
sustentado escondido da consciência, assim como a tentativa de se manter um
balão de ar mergulhado na água,que faz pressão constante para insurgir.
Sendo assim, quanto maiores as repressões, maior será a fadiga do sujeito
neurótico. Num trabalho de Thânatos (pulsão de morte) o “eu” se fragmenta e
então evita partes de si mesmo. No entanto, o reprimido é parte do eu, logo o a
personalidade, por estar incompleta se empobrece sem poder integrar as
partes reprimidas.

Segundo Freud, o sintoma da neurose traz consigo um enigma que,


através da interpretação, pode encontrar a elaboração do conflito. Ainda assim,
na psicanálise contemporânea percebeu-se que a partir da estruturação de um
ambiente acolhedor, existe grande possibilidade de esses elementos
insurgirem por si só, no seu tempo, para que, quando estiver amadurecido o
suficiente possa ser acolhido pela dupla analista/paciente. Os conteúdos que
não foram aceitos no consciente ficam retidos entre o inconsciente e pré-
consciente como conteúdo recalcado e que, posteriormente, podem se
disponibilizar como material para a instalação de uma patologia. Mas, Freud,
descreve o inconsciente como algo mais abrangente que um continente de
elementos não aceitos e recalcados, quando apóia que: “Tudo que é reprimido
deve permanecer inconsciente; mas, logo de início, declaremos que o
reprimido não abrange tudo que é inconsciente. O alcance do inconsciente é
mais amplo.” (Freud, 1915).

Conceito De Representação

É no pré-consciente que ocorre a junção de algo que parte de dentro


com algo que está fora (catexia), momento este em que uma emoção (Do latim
ex = “fora” + movere = “mover”) se liga a um objeto externo que ofereça afeto,
ou ainda que o afete (Do latim ad = deslocamento para uma direção + facere =
fazer).Isso forma o que Freud chamou de representação de coisa. Conceito do
qual tratou no primeiro capítulo de sua obra A INTERPRETAÇÃO DAS
AFASIAS de 1891. Quando surgem, do interior do bebê, as primeiras
experiências, estas são de desprazer (fome, frio, cólica, pânico), e, então, ele
percebe alguém ou algo (objeto) que pode trazer alívio (prazer). Talvez isto
seja um protótipo de um modelo ulterior de relação: “Existe alguém que cuida
de mim e é confiável.” No entanto, aquilo que define essa experiência é o afeto,
aonde uma emoção, que vem do interno seja afetada pelo objeto externo.
O oposto ocorre quando não há quem cuide ou quando o período de
espera é longo demais, até que chegue o cuidador, ficando comprometida
então a chance de se criar representação inviabilizando a simbolização da
experiência. Daí por diante, o caminho da libido investida pode tomar o rumo
contrário, como é o caso do mecanismo de repressão (conceito já estudado
anteriormente). A libido que se buscava ligar ao objeto externo e não encontra
um afeto é introvertida em direção ao inconsciente. A representação foi
reprimida, ou ainda, pode nem mesmo ser estabelecida. Com isso, ou perdeu o
seu vínculo com a palavra, ou nunca estabeleceu essa conexão. No caso da
repressão o desfecho é a neurose, na impossibilidade de conexão o que se
configura é a psicose.
Poderíamos, agora, fazer uso de um modelo filosófico para
pensarmos o conceito de símbolo. Imaginemos, então, algo, alguém, algum
lugar, que possamos sentir a presença mesmo não podendo confirmar com os
órgãos dos sentidos. O símbolo se encontra exatamente na ausência real-
sensória do objeto. Simbolizar é a capacidade de sentir a presença mesmo na
ausência física, através de uma imagem internalizada. Teremos chance de
cuidarmos melhor do conceito de símbolo mais a frente, nesse trabalho.
Ora, é no pré-consciente que ocorre a junção da ‘representação de
coisa’ com a ‘representação de palavra’. Freud, talvez orientado por Immanuel
Kant (coisa-em-si), propõe aquilo que chamou de “representação de coisa”
(objeto). Kant propôs que para ser possível conhecer o objeto é necessário a
realização de uma unidade sintética na diversidade da intuição. A partir desta
capacidade de abstração, desenvolve-se a “representação da
palavra”.Arespeito desse conceito, em sua obra O INCONSCIENTE de 1915,
Freud cita o filósofo inglês John Stuart Mill, (1806 - 1873): “Uma palavra,
contudo, adquire seu significado, ligando-se a uma ‘representação do objeto’,
pelo menos, se nos restringirmos a uma consideração de substantivos.” Sendo
que a “representação coisa” se configura através da associação da junção de
apreensões sensoriais como as visuais, acústicas, táteis, sinestésicas... Por
meio dessa formulação, na perspectiva topográfica, a consciência se
configuraria num conjunto de características que uma representação de objeto
pode apresentar associando-se a uma representação de palavra.

O CONSCIENTE - Cs.

A menor parte do aparelho psíquico, do ponto de vista topográfico o


sistema percepção-consciência está situado na periferia, ou seja, na mais alta
camada do aparelho psíquico. Para a psicanálise o consciente se configura
como a região da córnea no globo ocular. Quando falamos do consciente
estamos nos referindo a certa camada do aparelho psíquico que fica em
contato direto com o mundo externo, a forma externa da personalidade. Se
pensarmos num modelo de formação natural ou de estrutura da natureza,
poderíamos aqui sugerir a figura de uma cebola. Onde as cascas mais duras,
secas e sem vida protegem aquilo que está lá dentro, vivo e muito frágil. Sob
esse ponto de vista o consciente é a proteção daquilo que se encontra no
interior, o pré-consciente que também guarda certa cota de propriedade
defensiva da mente e o inconsciente que necessita ser defendido por não
conhecer (ser reconhecido) pela realidade e funcionar de uma forma diferente
do mundo externo. Justamente por ser superficial é que o sistema consciente
guarda características superficiais da personalidade. Quando um sujeito
confessa algo, existe sempre uma parte da qual ele não revela, pois, esconde
por detrás disso um mistério mais profundo, desconhecido dele mesmo.Do
ponto de vista dinâmico, ou funcional, nele, não se inscreve qualquer traço
durável das excitações, muda-se o foco da atenção conforme a necessidade
sensorial. No vértice econômico, caracteriza-se pelo fato de se dispor de uma
energia livremente móvel, não guardado acumulo de libido. O interesse
consciente muda de direção com facilidade e a energia libidinal se desloca
conforme a conveniência. Isso é muito claro no mecanismo de atenção.
Desprendemos de atenção consciente para algo que no próximo momento já
não nos desperta tanto interesse.
Assim, o sistema consciente tem a função de receber informações
das excitações provenientes do exterior e também do interior (do sistema pré-
consciente) que ficam registradas, qualitativamente, de acordo com o prazer
e/ou desprazer que elas causam. Isso sempre com o intuito de equilibrar as
emoções visando o bom funcionamento interno. Entretanto, o consciente não
retém esses registros e representações como depósito ou arquivo deles. Nas
palavras de Freud, “ser consciente não pode ser a essência do que é psíquico”
e já, em 1900, ele descreve a função do sistema consciente como: “Apenas o
de um órgão sensorial para a percepção de qualidades psíquicas. De acordo
com as ideias subjacentes a nosso ensaio de um quadro esquemático, só
podemos encarar a percepção consciente como a função própria de um
determinado sistema e, para este, a abreviação Cs. parece apropriada.”
Se utilizarmos aqui do vértice usado por Wilfred Bion, perceberemos
que, ao estudamos as instâncias da mente, teremos uma visão bem mais clara
se pudermos analisar a relação entre aquilo que é contido, que se encontra em
cada uma das regiões topográficas desse continente que chamamos aqui de
aparelho psíquico. Quero propor que analisar cada instância da mente, deve
incluir olharmos cuidadosamente para as características dos conteúdos
tomando como referencial cada nível desse sistema continente.
As ideias têm, na consciência, um referencial que inclui lógica de
tempo e espaço, isso permite que elas possam ganhar o status coloquial do
‘existir’ e, em sua grande parte, compartilhadas com o outro (externo). Na
semântica temos a origem no Latim CONSCIRE, “estar reciprocamente ciente”,
de COM, “junto, com”, mais SCIRE, “saber, conhecer”. A partir da origem da
palavra temos a ideia de que aquilo que passa a ser consciente é porque pode
ser compartilhado o conhecimento. Um saber compartilhado, onde o sujeito
sabe de algo que o outro passa a saber também. Se isso faz sentido, então
poderíamos criar um quadro esquemático onde o inconsciente é configurado
por aquilo que não sabemos e por conta disso não conseguimos comunicar ao
outro, o pré-consciente, por aquilo que até sabemos, mas não conseguimos
participar ao outro e o consciente é aquilo que sabemos e conseguimos
compartilhar com o outro.
O sistema consciente trabalha no que Freud (1911) chamou, em sua
obra FORMULAÇÕES SOBRE DOIS PRINCÍPIOS DO FUNCIONAMENTO
MENTAL, de processo secundário, e pode ser estudado com mais atenção em
tópicos anteriores, desse trabalho. A nos lembrarmos, funciona na base do
princípio da realidade, ou seja, tem a realidade como referencial para
reconhecer e diferenciar as produções fantasiosas, da percepção da realidade.

ESBOÇO DA SEGUNDA TÓPICA DO APARELHO PSÍQUICO

Trataremos agora do segundo modelo proposto por Freud, como


ideias de mapeamento do aparelho mental. Entretanto, para que se possa
iniciar um estudo sobre a segunda tópica do aparelho psíquico segundo
Sigmund Freud, é necessário que se possa contar com certa compreensão
interna (insight) do modelo sugerido por ele na primeira tópica. Já que um
modelo não substitui o outro, mas depende dele para ter sentido. Através da
perspectiva do primeiro modelo topográfico permitiu-se a inclusão de
instrumentos importantes no mapeamento da mente e o conceito de
inconsciente, que é a base de qualquer que seja a reflexão psicanalítica,
também é fundamental nessa pesquisa. Enquanto no primeiro modelo estamos
tratando do “onde” no segundo tratamos do “o que”. Numa analogia grosseira
poderíamos pensar que na primeira tópica estudamos o solo e na segunda a
planta que nasce e se estrutura ali. Essa perspectiva sugerida até aqui talvez
seja uma das formas de se pensar a base do nosso estudo. A dinâmica do
conteúdo psíquico no interior da mente e sua vinculação com o mundo externo
é o que conduz o estudo da segunda tópica. Freud propõe um modelo que
transcende a visão passiva da topografia presente no primeiro modelo e abre
então uma visão estrutural do psiquismo. Porém, para que possa haver uma
estruturação bem sucedida do aparelho psíquico é indispensável a inclusão da
função paterna, que não tem necessariamente relação com a posição biológica
da paternidade A presença atuante dessa função é o que nos estrutura en-
quanto sujeito, ou seja, “aquele que deseja”. É justamente a introdução dessa
figura que permitirá a representação de uma parte significante dos processos
psíquicos.

O ID
Partindo da ideia do inconsciente, na segunda tópica temos o
conceito de id, que é a base da estrutura mental. Do alemão “Es” que é usado
para representar a abstração do “isso” ou ainda “aquilo”. Freud busca essa
ideia em Georg Groddeck (1866 – 1934), médico e analista alemão que
manteve importantes correspondências com Freud trocando ideias sobre
pesquisas e estudos.Groddeck introduz o conceito de id e no mesmo ano
Freud publica O EGO E O ID (1923), trazendo um olhar dos constituintes
orgânicos no campo somático. Outro pensador que na mesma época também
cogitara a ideia de um modelo parecido foi Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844 -
1900), importante filosofo alemão contemporâneo de Freud, cogitou o “isso”
contido na alma humana. Contudo, o vértice de Nietzsche guarda proporções
limitadas da filosofia literal, distante da aplicabilidade psicoterapêutica proposta
por Freud.Id é a parte do aparelho psíquico estrutural mais primitiva, de onde
parte a Vontade que é desconhecida do sujeito, assim como propõe Arthur
Schopenhauer (1819). Está no id a origem das pulsões, como a parte
indomada do eu, onde brotam os elementos selvagens e desordenados dos
quais, mais tarde, Bion chamou de elementos-beta (1962). Os elementos que
brotam do id são referentes ao que Kant chamava de coisa-em-si, na
materialidade, onde a necessidade é de satisfação imediata e especifica sem
possibilidade de se estabelecer analogias simbólicas, ou seja, quanto ao que
brota do id não há como pensá-lo. Topograficamente totalmente imerso no
inconsciente, logo é comandado pelo princípio do prazer e funciona pelo
processo primário (já mencionados nesse trabalho quanto à primeira tópica).
Por se tratar de um polo psicobiológico, ou seja, muito próximo do corpo, o que
se pode perceber sobre o id são manifestações de pulsões que dali provém. A
posição topográfica do id o coloca muito próximo do campo somático, assim as
manifestações do orgânico amiúde se confundem com as manifestações do
próprio id.
O suíço C. Gustav Jung, um dos discípulos mais importantes de Freud, chama
a atenção para uma substância do inconsciente que chamou de inconsciente
coletivo, o lugar dos arquétipos. Os arquétipos estariam segundo Jung,
esperando que os preenchamos com nossas experiências. A ideia de Jung não
é de um fator hereditário, mas de uma predisposição inata de expectativas, “de
estruturas idênticas, universais, da psique, que mais tarde chamei de
inconsciente coletivo. Dei a estas estruturas o nome de arquétipos.” (JUNG,
1912). De qualquer forma, na dimensão do id somos todos muito parecidos,
nos distinguindo uns dos outros apenas quando submetidos a alguns atributos
conscientes, logo deslocados da própria posição de id. A ideia de id fica, sem
dúvida, mais clara quando se pode pensar em sua relação com a parte da
estrutura mental do qual Freud chamou de ego.

O EGO

A ideia de Freud para o ego (eu) é justamente como sendo uma parte do
id, modificada pelo contato com a realidade. Em SOBRE O NARCISISMO:
UMA INTRODUÇÃO, o pai da psicanálise parece não acreditar que o ego seja
um componente inato da estrutura psíquica. Freud propõe “...que estamos
destinados a supor que uma unidade comparável ao ego não pode existir no
indivíduo desde o começo; o ego tem de ser desenvolvido.” (Freud, 1914) No
entanto, Melanie Klein acreditava que desde o início da vida já existiria um ego,
mesmo que rudimentar e primitivo. Muito provavelmente, pelo fato de Klein ter
vivido a experiência de maternagem, pode ir mais longe com a compreensão
da relação primitiva do bebê. Para a pensadora esse ego primitivo irá se
desenvolvendo conforme experiências bem-sucedidas nos primeiros meses de
idade. Seguindo se ampliando conforme os impulsos advindos do id possam
ser transformados pela ação da maternagem. Por conta da fragilidade do ego
no início da vida, existe incapacidade do uso da repressão, sendo assim,
interage com o mundo externo e se defende através do mecanismo de cisão e
projeção (identificação projetiva).
O ego (Ich) surge como fator de ligação para os processos
psíquicos. Parte do aparelho psíquico que abre mão do princípio do prazer em
nome do princípio da realidade. Dessa maneira cada parte do id que se torna
ego deve então abrir mão de certa cota de satisfação de prazer, logo deve
haver aí certa tolerância ao desprazer. Freud fazia uma analogia da relação
entre ego e id com a figura de um cavaleiro tentando dominar seu cavalo.
Dessa forma o ego parece ser uma instância de organização coerente dentro
dos processos mentais. Freud propõe que o ego é constituído por precipitados
de catexias abandonadas. Ligações objetais que contribuíram com a formação
do ego por meio de modelos. Porém, para que possa haver ligação objetal
esse vínculo deve ter passado por outro processo psíquico num modelo de
ligação mais primitivo chamado identificação. Contudo, se a forma abandonada
de ligação não conseguiu evoluir para ligação objetal e manteve-se como
identificação com o objeto, então o ego não poderá contar com essa
experiência para nutrir-se e expandir em seu processo de desenvolvimento.
Portanto, o ego parece se desenvolver conforme a capacidade da evolução no
vínculo através do modelo da ligação objetal.
Como vimos anteriormente, na proposta de Bion, que fora discípulo
de Klein, do id brotam os elementos beta, o nome que deu para as pulsões
desordenadas que tenderiam por procurar a realidade. Buscando no mundo
externo (num movimento de Eros) um objeto que possa ser capaz de contê-lo e
através de certa função alfa, de transformar elementos beta em elementos alfa,
que dessa forma passam então a fazer parte dos conteúdos oníricos e ficam
assim disponíveis a serem pensados. Dessa forma, através de um modelo
continente/contido agora esses elementos podem integrar-se ao ego e a
personalidade consciente. A partir da função alfa da mãe o bebê vai
aprendendo a fazer isso por si mesmo e então a capacidade de autocontenção
das emoções está localizada no ego. É o centro organizado e organizador do
“aparelho pensador”.
Entretanto, apesar das tentativas de diferenciação entre ego e id, em 1923,
Freud alerta: “O ego não se acha nitidamente separado do id; sua parte inferior
funde-se com ele.” Existe no ego uma parte inconsciente ou pré-consciente de
onde são gerados os mecanismos de defesa do ego. São recursos auto-
defensivos que antes de tudo privam por um bom funcionamento psíquico.
Para Melanie Klein, em sua obra A IMPORTÂNCIA DA FORMAÇÃO DE
SÍMBOLOS NO DESENVOLVIMENTO DO EGO de 1930, a capacidade de
formação de símbolos é o que permite estar ligado a aquilo que não está
disponível ao alcance dos órgãos dos sentidos, portanto, na capacitação do
ego abre-se mão de certa urgência na confirmação dos órgãos dos sentidos. A
partir da estruturação egóica nos tornamos mais capazes de tolerar faltas e
ausências, por conta da ampliação na capacidade de contenção ou
autocontenção. É possível afirmar que o nome popular do ego é autoestima,
sendo que as capacidades de auto-reconhecimento e auto-confiança são
funções do ego. O ego é em última instância, aquilo que estamos sendo e
quando o sujeito está confiando naquilo que ele está sendo é sinal de que sua
autoestima se encontra num bom nível, logo a mente está saudável. Um ego
bem nutrido, integrado e bem estruturado, significa uma boa vinculação
consigo mesmo e isso reflete justamente na capacidade de vincular-se às
coisas do mundo de forma afetuosa e verdadeira. A capacidade que se pode
ter em reconhecer o outro, sem que isso comprometa o reconhecimento de si
mesmo, coincide com a autoestima. Logo, a gratidão é sinal do bom
funcionamento mental.

O Conceito de Símbolo

Na visão de Melanie Klein (1930), o símbolo é o vínculo afetivo com o


real; o que integrará e desenvolverá o ego em sua estrutura e posição
topográfica na mente. Como quando vemos o símbolo de um time de futebol,
por exemplo. Não vemos o time, mas, somos remetidos ao que pudemos obter
de impressões desse time. O símbolo é o que sustenta o vínculo na
impossibilidade da confirmação sensorial. É aquilo que fica em nós, enquanto
não podemos confirmar no real externo através dos órgãos dos sentidos. O que
está na mente antes de chegar, ou depois que já foi no real.A palavra símbolo,
do grego clássico, symbállen (syn = junto e bállein = lançar), significa juntar, ou
lançar pra junto e isso coincide com a cópula propriamente dita. O sim-bólico
está em contra ponto com o dia-bólico do grego diabállein (dia = longe). Onde
um tem a função de unir o outro separa ou lança longe. O símbolo é a única via
segura de confirmação do que é real, pois é uma ligação afetiva com a
realidade. Uma experiência emocional (interna) que encontrou no real (no
outro) um representante que se transforma em símbolo por conta de
experiências bem-sucedidas.
O processo se dá a partir da experiência onde a manifestação de uma
necessidade fisiológica, no bebê (fome, frio...) tem um encontro com a mãe, se
atinge assim uma experiência no real sensorial: a fome (concreta) encontrou
um seio (concreto). Quando essa necessidade fisiológica se manifestar e por
ventura a mãe não esteja prontamente disponível é gerada então uma
imaginação sobre a mãe, ocorre assim uma experiência com a realidade
imaginária envolvendo a necessidade e o objeto que satisfaz. O possível
desdobramento dessa experiência com o imaginário está totalmente
subordinado a qualidade que possa ter havido na experiencia com a realidade
concreta. Conforme o sucesso da experiência com o seio concreto, ficarão
impressões dessa experiência, que povoarão a imaginação sobre o seio em
forma de recordações. Nesse estágio do processo de simbolização, quando for
malsucedida a experiência com o real concreto, ou o sujeito fica preso num
conflito com o imaginário de forma neurótica, ou volta para a realidade no nível
concreto, por conta de a imaginação se tornar insuportavelmente assustadora,
num movimento psicótico. No entanto, quando bem-sucedida a experiência
com a realidade concreta, a imaginação é irrigada de boas recordações e está
aberta para a possibilidade de simbolização da experiência no vínculo.
Tratamos aqui da possibilidade de certa experiência amorosa com a
verdade, sendo que o símbolo coincide com o amor que se possa desenvolver
pela verdade. A verdade que de início se apresenta através de um grande
desconforto passa então a ser a maior aliada do sujeito por meio de um
possível acordo com a realidade. A verdade que não se conhece, mas, mesmo
assim se persegue. Sem a promessa do prazer que nos traz as certezas. A
propósito, o dito popular é coerente, “a verdade dói”. Assim, Immanuel Kant,
nos orienta no uso dela: “verdade sem amor é crueldade”.
O exercício do simbolizar é algo dinâmico, que se transforma constantemente e
se expande a cada reencontro e dessa forma é invariavelmente mutável
enquanto símbolo. O ‘eu’ é construído e constituído através de símbolos e por
eles faz sua manutenção. Assim, somos feitos de símbolos.

Sobre a Identificação

A identificação com o objeto é aspecto muito importante nos


complexos processos de formação e desenvolvimento do ego. “A identificação
é conhecida pela psicanálise como a mais remota expressão de um laço
emocional com outra pessoa.” (Freud, em PSICOLOGIA DE GRUPO E A
ANÁLISE DO EGO, 1921) Para que haja a ligação objetal o vínculo deve ter
passado por outro modelo de ligação mais primitivo chamado identificação. Em
ACHADOS, IDEIAS, PROBLEMAS, quando Freud menciona as manifestações
do ‘ter’ e ‘ser’ nas crianças. “‘Eu sou o objeto’ ‘Ter’ é o mais tardio dos dois;
após a perda do objeto, ele recai para ‘ser’. Exemplo: o seio. ‘O seio é uma
parte de mim, eu sou o seio’ Só mais tarde: ‘Eu o tenho’ — isto é, ‘eu não sou
ele’…” (Freud, 1941 [1938]).
Essa tendência à identificação com objetos com grande investimento
de libido permanece inconscientemente por toda vida, apesar de não ocupar
papel consciente nas relações de objeto em fases posteriores da vida. Se a
identificação persistir como dominante nas relações de objeto, na vida adulta, é
uma evidência de um desenvolvimento deficitário do ego, sugerindo talvez um
quadro patológico, característico da melancolia e presente nas psicoses.
Nesses casos, a personalidade do sujeito fica subordinada às relações com o
objeto numa dependência fusionada. É como se disséssemos: “O outro me
indica o desejo, o que sinto e o que sou”. A partir desta ideia, original de Freud,
Melanie Klein desenvolverá o conceito de identificação projetiva.

O SUPEREGO

Segundo Freud, com a introdução da imagem paterna desenvolve-se


a função de juízo censor e crítico de tudo aquilo que aparece como conteúdo
psíquico. O superego é configurado através de um ideal de eu (o que se
deveria ser) é o terceiro personagem constituinte da segunda tópica. “A essa
instância chamamos de ‘ideal do ego’ e, a título de funções, atribuímos-lhe a
auto-observação, a consciência moral, a censura dos sonhos e a principal
influência na repressão.” (Freud, em PSICOLOGIA DE GRUPO E A ANÁLISE
DO EGO, 1921) Muito influenciado pelos pensamentos do filosofo alemão
Immanuel Kant, Freud desenvolve a ideia do super-eu baseando-se na
proposta do imperativo categórico introduzida por esse importante pensador,
em sua obra CRITICA DA RAZÃO PURA, de 1781. Na "primeira crítica" de
Kant o imperativo categórico corresponde à noção moral do ser humano. O
representante de certo dever que coincide com ser e se comportar da mesma
forma como se deseja que todo ser humano o faça. O superego propõe certa
segurança confortante das certezas, mas com o empobrecimento gerado pela
escassez gritante de possibilidades. A saber, sobre a importância do processo,
a presença das possibilidades é a única maneira de se desenvolver a fé. Dessa
forma, nos domínios superegóicos a exigência é de certezas onde não há lugar
para cultivo da fé.
O superego entra no comando da personalidade sempre que não se
esteja confiando em si mesmo. Ora, quando não se pode acreditar naquilo se
esteja sendo (ego), o que passa a comandar o sujeito é aquilo que ele deveria
ser (ideal de ego). A partir daí o superego pega emprestado da racionalidade
fatos isolados (factóides) e condena o “eu” como se essas partes da realidade
fossem o todo. Destituindo o ego ele assume o comando. Freud atribui ao
superego o título de herdeiro do complexo de Édipo. Sob essa perspectiva, a
força que reprimiu os sentimentos incestuosos nos processos edípicos hoje
atuam na estrutura do eu como superego. Aquilo que barra a realização do
desejo. Dessa forma, Freud oferece um modelo em 1923, onde aquilo que
antes pertencia à escala mais baixa nos processos psíquicos é transformado,
mediante a criação do ideal de ego, na mais alta virtude civilizatória. Existem
dificuldades especiais no caminho para a compreensão interna dos processos
geradores assim como a formação do conceito de superego enquanto
constituinte da estrutura mental. Isso porque sua localização transcende o
modelo topográfico. Freud escreve em O EGO E O ID que “seria vão, contudo,
tentar localizar o ideal de ego, mesmo no sentido que localizamos o ego, ou
encaixá-lo em qualquer analogia com auxilio das quais tentamos representar a
relação entre o ego e o id.” (Freud, 1923) O superego surge como um
representante do id, mas agora se utilizando de fragmentos da realidade
externa em sua tarefa de desqualificar o ego que por sua vez, é um
representante do mundo externo. Deste modo, é configurado o ideal de ego, ou
seja, o que o ego deveria ser e cobrará isso do ego em cada percepção de
suas falhas.
Algumas obras anteriores ao trabalho publicado em O EGO E O ID
são de grande importância na pesquisa sobre a segunda tópica, pois já
revelavam um modelo de pensamento que seria gerador desse aspecto da
estrutura mental. No seu texto ALÉM DO PRINCÍPIO DO PRAZER, de 1920 e
também em 1921, no célebre capitulo de PSICOLOGIA DAS MASSAS E
ANÁLISE DO EGO, que trata do conceito de identificação, o pai da Psicanálise
já havia definido muito claramente o modelo exposto em 1923, contudo, em
SOBRE O NARCISISMO: UMA INTRODUÇÃO, de 1914, Freud mencionara a
ideia de um ideal de eu como um agente auto-observador, que amiúde é
projetado em figuras de autoridade como o professor, o chefe, assim como na
figura da pessoa amada. Essa ideia evoluiu em 1917 quando Freud publicou
LUTO E MELANCOLIA, trazendo o a concepção melancólica de um influente
crítico que recai sobre o ego, na situação da perda do objeto. Já se mostra aí
um esboço do pensamento estrutural onde na perda do objeto do qual se
mantinha uma relação de identificação o superego obriga que o ego “torne se”
esse objeto, no intuito de satisfizer o id. Daí por diante a segunda tópica tornou-
se instrumento fundamental na reflexão psicanalítica. Em 1924 no trabalho O
PROBLEMA ECONOMICO DO MASOQUISMO, Freud já utiliza com habilidade
desse modelo e revela aí dados importantes sobre a atividade do superego no
funcionamento mental, sua relação com o lugar do id e assim o
comprometimento disso com o desenvolvimento do ego.
Melanie Klein publica em 1957, INVEJA E GRATIDÃO, e nesse trabalho
apresenta certo ponto de vista que vai para além do estudo de Freud quanto à
estruturação do aparelho psíquico. Klein propõe um modelo mais precoce do
que o proposto por Freud. Na visão freudiana focalizava-se a importância dos
processos edípicos (logo a formação do um ideal de eu) na fase fálica do
desenvolvimento emocional (por volta dos três anos de idade). Nesse período
Freud chama a atenção para constituição do superego (identificações
originalmente decorridas dos contornos de autoridade dos pais), que passa a
existir como substituto dos desejos edípicos. “O ideal do ego é, portanto, o
herdeiro do complexo de Édipo e assim constitui também a expressão dos mais
poderosos impulsos e das mais importantes vicissitudes libidinais do id.”
(Freud, em A DISSOLUÇÃO DO COMPLEXO DE ÉDIPO, 1924). Klein parte
daí e expande para além, propondo os processos do complexo de Édipo
ocorrendo numa época mais primitiva da vida do bebê. Klein propõe que o
ciúme se fundamenta na desconfiança sobre o pai e na rivalidade que se
estabelece com ele, por haver se apossado do seio e da mãe. “Esta rivalidade
assinala os primeiros estágios do complexo edipiano direto e invertido, que
normalmente surge concomitantemente à posição depressiva no segundo
trimestre do primeiro ano de idade.” (Klein, 1957). Para Melanie Klein o
superego tem uma matriz no mundo interior desde o início da vida e essa ideia
se relaciona de alguma forma com a proposta de inconsciente coletivo proposta
por Jung (1912). Sendo assim, para Klein o superego não teria sua formação
nas interdições parentais, mas sim numa concepção inata que se constitui no
interior do psiquismo. Isso também tem concordância a proposta de
comWilfredBion sobre o pensamento em busca de pensador "È um
pensamento errante em busca de algum pensador para se alojar nele." (Bion,
1992/ 1977) Portanto, Klein propõe um caráter arcaico para o superego, se
estruturando numa fase pré-edipiana relacionado à posição esquizoparanoide e
sendo assim, a princípio teríamos um superego com características de
perseguidor passando então para um superego legislador, assumindo assim o
atributo moral, como propõe Freud. Essa passagem traria o sentimento de
culpa, característica da posição depressiva e que bem irrigada de tolerância, se
converteria em responsabilização reparadora. (Klein, 1934).
Bion, por sua vez, destaca a influência da atuação do superego na
função do sonhar. Além de dividir o superego em duas partes, superego social
e superego individual, Bion propõe em COGITAÇÕES, publicado em 1992, que
a rigidez dessa parte do aparelho psíquico pode impedir a capacidade do
processo onírico, ou seja, a experiência do sonhar, assim comprometendo
severamente o funcionamento mental. Já que segundo a psicanálise, a
formação e expansão da capacidade do ego dependem exclusivamente da
capacidade do pensamento onírico, que antecede a formação de símbolos.
Com suas regras, o superego se instala no interior do aparelho psíquico como
uma instituição mental, e a partir daí passa a ditar seus princípios. Isso se torna
danoso já que, para uma instituição que se mantém através de suas regras
fechadas e incontestáveis, o exercício do sonhar é extremamente prejudicial. O
superego então proporciona a criação de certa casca morta, formada por ideias
saturadas e sem vida. Em CONVERSANDO COM BION, o autor expõe: “De
qualquer forma a gente cria estas cascas – e segue criando. Mas a casca pode
se tornar tão espessa, tão forte, tão poderosa, que a coisa dentro não pode se
desenvolver.” (Bion, 1992/ 1977). Nessa mesma perspectiva Freud, já em
1923, postulava a dificuldade do tratamento psicológico para aquele que se
encontra encapsulado por um modelo de superego rígido e cruel. Aquele que
não é capaz de amar pode usar a culpa para não ser abandonado.

FASES DO DESENVOLVIMENTO LIBIDINAL

Nas etapas do desenvolvimento libidinal do bebê, as primeiras fases


ou fases pré-genitais são de extrema importância, já que estarão se realizando
as primeiras experiências de interação com o mundo. Os recursos ou defesas
para essa interação são extremamente frágeis e os cuidados maternos são, em
primeiro empenho, os recursos com que essa vida que brota pode contar.
Winnicott, além de psicanalista também pediatra, contribuiu enormemente com
o desenvolvimento da psicanálise, e introduziu uma ideia muito importante
quando diz que “um bebê é algo que não existe” (1940), querendo dizer,
naturalmente, que sempre que nos depararmos com um bebê, encontraremos
a maternagem sendo exercida, e que, sem a função da maternagem, não pode
existir bebê algum. O bebê só pode existir em relação à mãe, que em primeiro
momento deve coincidir com o ambiente que possa o receber e acolhê-lo. Um
bebê sem os cuidados da maternágem logo sucumbirá.
O bebê carece de um precedente relativo a uma construção
simbólica feita pelos pais. Assim como nos orienta Bion: somos “pensamento
em busca de um pensador”, ou seja, o pensamento já existia e o pensador
nasce para sê-lo. Segue-se a isso a relação entre continente e contido:
enquanto as paredes do continente são formadas por invariâncias (assim como
a constância do colo da mãe), que acolhem e denotam limites e o conteúdo (o
bebê em franco desenvolvimento) que pode ser pura transformação, na
expansão as segurada pelo acolhimento. Logo, grande parte do que os pais
imaginam e desejam a respeito do filho, virá de alguma forma reclamar lugar na
realidade psíquica deste que chega.

Auto-erotismo e Narcisismo Primário

Se estivermos de acordo, até aqui então tenderemos a pensar que o


bebê viverá a experiência que conduzirá ao reconhecimento do “outro” e
posteriormente a importância dele. Contudo, o bebê só admitirá que existe
alguém além dele mesmo no mundo se estiver se sentindo muito seguro com
esse “outro alguém”, além dele. Passa então a desenvolver o que
chamaríamos de amor narcísico, onde o bebê só aceitará o outro se o outro for
para ele um espelho de suas necessidades. No narcisismo primário, ele se vê
no outro (mãe) e é (deve ser) o desejo da mãe. É como se o bebê pudesse
pensar que “Ela vive para e por mim”, ou ainda “Eu sou a coisa mais importante
para ela”. No entanto, para que se chegue a viver o narcisismo primário é
necessário que se experimente um estágio anterior a esse. O autoerotismo é
caracterizado por um período onde a necessidade de satisfação da libido é
atendida pelo próprio sujeito, mesmo que seja pelo toque da mãe, já que não
existe a capacidade de percebê-la como sendo outro ser. No texto SOBRE O
NARCISISMO: UMA INTRODUÇÃO, Freud propõe que “Os instintos auto-
eróticos, contudo, ali se encontram desde o início, sendo, portanto, necessário
que algo seja adicionado ao autoerotismo – uma nova ação psíquica – a fim de
provocar o narcisismo.” (Freud, 1914). Essa ação psíquica é justamente a
aparecimento e percepção da presença materna que influencia no
funcionamento e deve orientar o bebê no desenvolvimento da relação com o
objeto.

Objeto

Na teoria psicanalítica o termo “objeto” é usado para descrever


qualquer pessoa ou coisa do mundo externo, que tem importância psíquica
(investimento libidinal) para o sujeito, podendo ser animada ou inanimada,
sendo que a atitude do sujeito para com o objeto é designada relações de
objeto. A libido ou energia psíquica, busca no mundo externo algo em que se
ligar e esse algo é o que chamaremos de objeto. Quando acontece um
encontro bem-sucedido com o objeto, aquilo que era simplesmente libido livre
se torna então catexia. Isso quer dizer que essa cota de libido que se
encontrava solta, direcionada a qualquer provável objeto de satisfação, agora
foi cativada por um objeto específico. Nos primórdios da vida, a criança não
consegue distinguir os objetos de si mesmo (identificação), adquirindo essa
capacidade nos próximos meses de desenvolvimento. Porém, a erotização, já
presente, se faz de uma forma designada autoerotismo – como já citada
anteriormente nesse trabalho. Na busca pelo objeto, se dá o desenvolvimento
da libido que se organiza em torno de zonas erógenas, com vivências e
sensações muito específicas. Em cada fase desse desenvolvimento, uma área
peculiar do corpo físico fica especificamente disposta para o contato com o
outro, por conta da hiperexcitação, ou seja, partes do corpo que concentram
um elevado grau de sensibilidade à excitação. Cada fase deste
desenvolvimento é acompanhada de uma orientação libidinal, que parte da
região bucal fundida com a necessidade de nutrição, se desloca para região
anal conforme a função excretora, até que se desenvolva e concentrem-se
predominantemente nos órgãos genitais, para assim se encontrar sob a
influência da função reprodutora.
A predominância das zonas erógenas se modifica ao longo do
desenvolvimento caracterizando fases. A busca de ligação com o outro (objeto)
quenaprimeira infância se restringe aos pais. Inicialmente com a mãe, de quem
se desligou fisicamente há pouco tempo, já que desde o nascimento até o
segundo terço do primeiro ano de vida, o interesse (libido) da criança se
centraliza quase que exclusivamente na mãe, é ela o objeto inicial na vida
emocional do bebê e a qualidade desse vínculo é de importância fundamental.
Mas, as consequências da ausência da função paterna são tão graves quanto.
Fatores como os de provisão, proteção e introdução da noção de limites, são
próprias da função paterna. Não se pode criar uma imagem interna sem um
representante no mundo externo. A presença do pai, a princípio, se faz
importante enquanto ideia no interior da mãe, entretanto essa experiência
simbólica carece do encontro com o “outro concreto”. Ora, é de extrema
importância que, ao se arriscar nesse abismo chamado bebê, a mãe conte com
um alguém (marido/pai) que mantenha a mão seguramente dada. De outra
forma existirá sempre um grande risco de se perder nesse abismo. O bebê não
é capaz de retribuir o amor e a dedicação da mãe, que ainda assim carece de
ser nutrida afetivamente. A mãe e o bebê se confundem emocionalmente, e
essa importante experiência de discriminação entre um e outro só pode ocorrer
com a entrada de mais alguém (o pai) na relação. É daí que ela conseguirá
certa segurança para a manutenção do viver na confirmação da existência:
“Sou amada”, já que o bebê não pode fazê-lo. É nessa relação que encontrará
apoio e amparo para nutrir sua autoestima e assim exercer a função materna
suficientemente bem. Deste modo, a presença da figura paterna é justamente
aquilo que trará a qualidade do vínculo entre o bebê e o objeto (a mãe).
Um modelo muito interessante é o da formação primitiva na
natureza, onde a fêmea prenha busca um local seguro para se aninhar e
receber seu filhote. Nesse momento deve contar com o resguardo do macho
que a protegerá das ameaças externas e proverá recursos para que ela se
ocupe tão somente de assegurar as melhores condições possíveis para o
desenvolvimento deste que nasce. Isso é condição mínima necessária para a
criação de bons espécimes da espécie. Uma fêmea que na possa contar esse
amparo nunca poderá cuidar do que precisa ser cuidado de forma
suficientemente boa e a não ser que se faça vista grossa quanto às
concequências, revelar-se-ão inúmeras implicações por conta de tal privação.
O nascimento de um bebê mexe profundamente na estrutura da
personalidade dos pais, no funcionamento emocional do sujeito, assim como
do casal e da família, no funcionamento dos vínculos. O nascimento de um
bebê traz consigo angústias imensuráveis, muitas vezes manifestas nas ditas
depressões pós-parto e outras vezes veladas sem que se possa perceber
externamente. No entanto, a mãe, mesmo abalada pela situação, deve cuidar e
o pai, quando suficientemente bom, por sua vez, sente e participa da mesma
dor, que inunda esse complexo processo. A função paterna inclui até mesmo
experimentar sentimentos invejosos gerados pela atenção da companheira,
que se desloca dele para a criança.

FASE ORAL

A ideia da sexualidade sempre foi alvo de ataques de pensadores


que criticaram a psicanálise, mas Freud lembra, que essas já haviam sido
propostas na filosofia por um dos pensadores de grande influência no
pensamento freudiano.

“Já faz um bom tempo que o filósofo Arthur Schopenhauer mostrou


aos homens em que medida seus feitos e interesses são determinados por
aspirações sexuais e, parece incrível que todo um mundo de leitores tenha
conseguido banir de sua mente, de maneira tão completa, uma advertência tão
impressionante!” (Freud, 1905)

Importante ressaltar que cada passo dado em direção a maturidade


emocional acompanhará sempre uma ação inversa defensiva, que tende a
manter tudo da mesma forma, o que em psicanálise chamamos de resistência.
A maturação dos elementos psíquicos é um processo doloroso e cheio de
ameaças. Por mais que seja muito usado o termo regressão em psicanálise
(muitas vezes de forma inadequada), não é possível “desamadurecer”. O que
pode acontecer é que, frente a alguma situação ameaçadora, o sujeito
manifeste características de pontos de fixação em fases do desenvolvimento,
que não puderam ser bem elaboradas em seu tempo e seguir o fluxo do
desenvolvimento. Porém, isso não quer dizer que um dia tenha evoluído
nesses pontos e que por algum motivo retroceda.
No início da vida do bebê, toda a atividade psíquica deve se reunir
na busca por satisfação das necessidades das zonas erógenas. No estudo das
fases do desenvolvimento sexual veremos que as duas primeiras fases, as
zonas erógenas ainda não se concentram nos genitais e assim serão
denominadas fases “pré-genitais”. Na primeira etapa da vida, ou seja, do
nascimento até aproximadamente o segundo ano de vida, o bebê não distingue
a necessidade de nutrição do prazer, que se encontram unidos no ato de
mamar. Segundo Freud, uma fusão do instinto de autopreservação com o
instinto sexual. A busca pela satisfação libidinal está fundida com a
autopreservação, se manifestando através do ato de mamar, na necessidade
de nutrição. “O objeto de uma atividade é também o da outra, e o alvo sexual
consiste na incorporação do objeto — modelo do que mais tarde irá
desempenhar, sob a forma da identificação, um papel psíquico tão importante.”
(Freud, 1905) Contudo Freud alerta que o funcionamento fisiológico não deve
ser confundido com aspectos psíquicos.

“A obstinada persistência do bebê em sugar dá prova, em estágio


precoce, de uma necessidade de satisfação que, embora se origine da
ingestão da nutrição e seja por ela instigada, esforça-se, todavia por obter
prazer independentemente da nutrição e, por essa razão, pode e deve ser
denominada de sexual.” (Freud, 1940)

Nessa fase, denominada por Freud de organização sexual pré-genital


canibal, a boca é a primeira via de contato com o mundo externo, que neste
momento se reduz ao seio. É na região bucal que está localizada a área
erógena, nessa fase. Sem a excitação na área bucal a alimentação
provavelmente seria deficitária, colocando a saúde do bebê vulnerável. A cada
contato com o real compreende uma tentativa de comê-lo, incorporá-lo pela
boca.
É pela boca que o bebê fará sua primeira e mais importante descoberta
afetiva. Neste período da vida se dá o alicerce da personalidade, e o
comprometimento no cuidado com o bebê, nesta época, pode acarretar em
fixação gerando patologias de alto dano no psiquismo, que podem persistir pela
vida toda. Isso, pois a capacidade de verbalização ainda não é desenvolvida,
ficando inviável a comunicação de dificuldades que possam concorrer. Casos
patológicos descritos pela psiquiatria como “transtornos alimentares”, que
incluem bulimia e anorexia, são amiúde acompanhados de histórico onde a
relação afetiva com o alimento (o que nutre) é repleta de conflitos e
apresentaram falhas. A relação que a criança faz entre leite (seio) e amor é
algo que orienta o rumo de uma boa alimentação e a transição do leite para o
alimento sólido. Essa experiência transcende o vínculo primário com a mãe
quando é então criado, a partir daí, um modelo de relações afetivas
interpessoais posteriores, na sua vida adulta. Enquanto mama, o bebê não está
simplesmente se alimentando, mas, realizando uma das mais importantes
experiências afetivas de sua vida. Nessa perspectiva, é de fundamental
importância para um desenvolvimento saudável, a atitude amorosa e generosa
da mãe, associada com a presença da função paterna, que deve proporcionar
o reconhecimento dos limites.

Aspectos sádicos orais

Com o surgimento dos primeiros dentes do bebê, as necessidades


de satisfação orais mesclam-se com componentes agressivos (sadismo oral). A
agressão oral pode manifestar-se na ação de morder, mastigar, cuspir ou
chorar está vinculada aos desejos e fantasias primitivas. Esses fatores
implicam em fantasias de hostilidade, destruição do seio e assim como, o
ímpeto de espoliar do objeto. Quando existe uma falha na capacidade da mãe
em receber (conter) estes impulsos sádicos e de certa forma desorganizados
(originários do interior do bebê) e transformá-los em algo compreensível para
ele, o bebê recebe de volta todo sua insatisfação e desespero, com o
agravante da ausência de esperança. O que em um adulto pode ser uma
simples indisposição talvez causada pela fome, em um bebê pode surgir como
a iminência da destruição.
No entanto, uma ação de maternagem suficientemente boa
proporciona a essa nova vida que surge, um ambiente seguro para
desenvolver-se a capacidade de pensamento, permitindo ao bebê que
simbolize cada impulso originado de dentro (vontade ou necessidade), com
ações externas, em forma de acolhimento, proteção e nutrição, advindas da
mãe, primeiro pessoa que ele conhecerá nesse mundo. É como se a mãe
dissesse: “pode sonhar, que do que está a sua volta eu cuido”.O êxito na
resolução da fase oral proporciona uma base na estrutura do caráter para a
capacidade de dar e receber sem excessiva dependência ou inveja; uma
capacidade de confiar no outro, com um sentimento de segurança, confiança
em si mesmo.

Objetos Transicionais: primeira possessão não-eu

Muito importantes foram as contribuições do pediatra e psicanalista


D. W. Winnicott. Entre outros ele introduziu o conceito de objeto transicional,
referindo-se a primeira tentativa de reconhecimento e possessão de algo que
existe além do eu. A experiência da transicionalidade habitualmente começa a
surgir por volta dos quatro ou seis meses de vida, se estendendo até o final do
primeiro ano e início do segundo. No entanto, como toda característica
emocional, também o fenômeno transicional, não pode estar ligado de forma
inflexível à idade cronológica do bebê. Isso por que cada sujeito guarda
particularidades em suas experiências de desenvolvimento. Além disso,
características transicionais permearão as experiências pela vida toda. Para
Winnicott (1971) os fenômenos transicionais estão associados a experiências
auto-eróticas como a de sugar o polegar, enquanto isso com a outra mão, o
bebê leva um objeto externo à boca. A ponta do lençol ou do cobertor, junto
com os dedos.
“Introduzi os termos 'objetos transicionais' e 'fenômenos transicionais' para
designar a área intermediária de experiência, entre o polegar e o ursinho, entre
o erotismo oral e a verdadeira relação de objeto, entre a atividade criativa
primária e a projeção do que já foi introjetado, entre o desconhecimento
primário de dívida e o reconhecimento desta (Diga: "bigado").” (Winnicott,
1971)
O objeto transicional tem a tentativa de ser um substituto para o seio,
uma passagem que vai da ligação simbiótica com a mãe, em direção a
expansão no mundo. Algo que amenize a falta do seio (da mãe), sobretudo na
hora de dormir, ou quando a criança tem que ficar sozinha. Winnicott descreve
os fenômenos transicionais como a base de experiências muito importantes a
caminho da relação com o símbolo. “O objeto é uma das pontes que tornam
possível o contato entre a psique individual e a realidade externa”
(Winnicott,1965/1955) Este objeto especial é dotado de ambivalência, por
simbolizar o objeto parcial. Sendo assim, o objeto transicional não é o seio real,
que ao mesmo tempo tenta representar. “O fato de ele não ser o seio (ou a
mãe), embora real, é tão importante quanto o fato de representar o seio (ou a
mãe).” (Winnicott, 1955/2000) A criança cria grande apego a esse objeto e ao
mesmo tempo projeta todo seu impulso destrutivo nele. Um ensaio que
precede o teste efetivo da realidade. A relação que acriança trava com esse
objeto tem um formato especial, onde ele ganha aos poucos características
dela própria, com seu odor característico. Normalmente um paninho velho ou
um bonequinho de pano danificado. “A mãe permite que fique sujo e até
mesmo malcheiroso, sabendo que, se lavá-lo, introduzirá uma ruptura de
continuidade na experiência do bebê, ruptura que pode destruir o significado e
o valor do objeto para ele.” (Winnicott, 1971) Esse objeto parece guardar
características desprezíveis ao olhar dos outro, onde ninguém irá se interessar,
garantindo assim a posse exclusiva da criança sobre ele.
Winnicott atribui à ausência ou a dificuldade em eleger um objeto
transicional a uma perturbação no desenvolvimento emocional, ou mesmo a
intervenção da mãe, que muitas vezes de forma possessiva e invejosa pode
impedir essa relevante experiência da criança. No entanto, a privação dessa
experiência pode acarretar danos graves à personalidade da criança. “Se
privamos uma criança de objetos transicionais e perturbamos os fenômenos
transicionais estabelecidos, então a criança só tem uma saída, que é uma
cisão da personalidade, com uma metade reagindo, com complacência, ao
mundo objetivo com que entrou em contato.” (Winnicott,1965/1950). Essa cisão
inviabiliza a passagem entre o subjetivo e o objetivo, impedindo a integração da
personalidade, onde a criança fica impossibilitada de funcionar como um ser
total. A experiência transicional proporciona uma forma lúdica de passagem
para o universo adulto na maturidade emocional. Conforme o bebê se
desenvolve, vai havendo uma substituição dos objetos transicionais por
fenômenos de maior abstração como as canções de ninar e ritmos do corpo.
Isso é uma passagem para o simbolismo que traz a possibilidade de distinguir
realidade das fantasias, diferenciar a realidade interna da realidade externa.
Em seu artigo FAMÍLIA E MATURIDADE EMOCIONAL, Winnicott
propõe que a maturidade emocional só pode ser atingida na medida em que a
família proporcione a passagem de transição entre o cuidado dos pais e a vida
social. “E deve-se ter presente que a vida social é em muitos aspectos uma
extensão das funções da família.” (Winnicott, 1960). Da mesma forma, o
processo psicoterapêutico deve ser um ambiente emocional de passagem
numa experiência transicional onde o paciente consiga transcende seu estado
inicial para uma expansão de seu funcionamento.
Quando nomeia a mãe-ambiente, Winnicott propõe um lugar seguro
para cultivar a ilusão e uma forma tranquila e ao seu tempo, se desiludir, logo,
uma experiência de transição. A possibilidade de reconhecimento do si mesmo
sem que antes tenha que se preocupar com o outro. O bebê imagina um seio e
a mãe introduz o seio real nessa imaginação. "A mãe coloca o seio real
exatamente onde o bebê está pronto para criá-lo, e no momento exato"
(Winnicott, 1971/1975). Registra-se a ideia de que existe um correspondente
externo (na realidade) para sua capacidade de criar (fantasias – internas).

FASE ANAL

Em sequência a experiência do desmame a tarefa agora é conter os


impulsos anais. A introdução gradativa de alimentos sólidos faz com que a
consistência das fezes se torne mais compacta e isso corrobora para que
aumentem as percepções na sensibilidade anal, área do corpo físico que se
torna hipersensível, nessa fase. È a segunda fase do desenvolvimento da
libido, segundo Freud, principia (sem rigidez criteriosa) no início do segundo
ano de vida. A zona erógena que se localizava na região oral, passa
lentamente a se manifestar na região anal. Nesse estágio da vida, a criança
experimenta os primeiros ensaios do domínio do corpo (físico) pela ampliação
da capacidade de adiamento da vontade (psíquico). Isso se dá
fisiologicamente, pelo aumento na autonomia do sistema nervoso central, que
se encontra mais maduro e adquire a capacidade de controle neuromuscular
dos esfíncteres. Isso corresponde com o controle voluntário sobre a retenção
ou a expulsão das fezes. Do ponto de vista emocional, na relação com os pais,
surge a primeira grande exigência: “agora você não pode mais fazer xixi nem
cocô nas calças”. Além disso, as implicações emocionais ocorrem, já que a
criança descobre que pode agradar ou desagradar quando retém ou expele e
que pode controlar os pais através das fezes, que são suas primeiras
produções. Portanto, nessa etapa do desenvolvimento a satisfação libidinal
está em reter ou expelir. A aprovação dos pais quanto a aquilo que se produz é
algo marcante dentre as experiências dessa fase. A palavra “obrar” é muito
interessante nesse contexto, já que pelo menos na língua portuguesa, significa
tanto um trabalho, uma ação, quanto evacuar fezes, defecar. O objetivo dessa
fase é o do controle de esfíncter, sem controle excessivo (retenção fecal) ou
perda de controle (sujando-se). Esses esforços estão unidos às tentativas de
autonomia e independência da criança, em meio ao medo no constrangimento
da perda de controle.
Revela-se um valor simbólico das produções anais (fezes) onde a
criança descobre objetos que saem de seu interior e que de certa forma são
parte dela. Assim como em todas as fases, ocorrem sentimentos básicos nessa
fase que perdurarão nas etapas posteriores da vida, aqui, em relação à
adequação ou inadequação, aprovação ou desaprovação do mundo (pais)
quanto a estas produções é o que definirá o sentimento de ajustamento no
mundo. Nesta fase é que se instalam, através da fixação, patologias como é o
caso das neuroses obsessivas que se manifestam através de atitudes
compulsivas. Comumente são neuroses que apresentam sintomas ligados à
obrigação repetitiva de limpeza e organização já que existe, segundo Freud,
um desejo reprimido ligado às fezes. Certo sintoma desenvolvido por conta da
repressão de certa perversão, onde existe a excitação erótica pelo cheiro, visão
ou contato com excrementos humanos, denominado coprofilia. “A limpeza, a
ordem e a fidedignidade dão exatamente a impressão de uma formação reativa
contra um interesse pela imundície perturbadora que não deveria pertencer ao
corpo.”(Freud, em CARÁTER E EROTISMO ANAL,1908). A criança ama e ao
mesmo tempo teme as substâncias que saem de seu corpo. Uma vez que elas
estão condenadas a desaparecerem devido às proibições dos adultos.
A criança busca na água, terra e areia os substitutos permitidos das
fezes e urina, simbologia utilizada por Klein no desenvolvimento da ludoterapia,
técnica de analisar o brincar da criança. A avareza também é uma
característica marcante da fixação nessa fase, já que reter ou soltar é algo que
define a aceitação, aprovação e amor dos pais.Freud faz uma associação
muito próxima entre fezes e dinheiro: “O remanescente mais importante desta
antiga estima é, porém, que todo o interesse que a criança teve nas fezes
transfere-se, no adulto, para outro material, que aprende na vida a colocar
acima de quase tudo o mais – o ouro.” (Freud, em OS SONHOS NO
FOLCLORE,1911)
Freud apelidou esta fase de sádico-anal, já que se estabelece desde
a fase precursora (no surgimento dos dentes) o desvio da pulsão de morte para
o exterior a pulsão de destruição, e ligada à função sexual se apresenta como
sadismo. O ato de evacuar organicamente coincide com a experiência
emocional de evacuar sentimentos desconfortáveis ou desprazerosos. A
projeção do ódio combina com a projeção das fezes. O prazer está ligado ao
controle e o domínio de si mesmo e simultaneamente controlar o outro.
Estabelecem-se padrões de funcionamento mental:
1 – Submeter-se a um tirano.
2 – Tiranizar a um submetido.
3 – Ser respeitado e respeitar como um ser autônomo.

Nessa fase o objetivo maior talvez seja o desenvolvimento de


autonomia pessoal, em reter ou expelir. O caminho da erotização passa agora
do sadismo referente à região anal para regiões genitais. O erotismo uretral, no
entanto, refere-se ao prazer no urinar e ao prazer em reter ou expelir urina,
análoga à fase anal. A perda do controle uretral, como na enurese, pode
frequentemente ter um significado regressivo que reativa os conflitos anais.

FASE FÁLICA

Sem que haja um critério cronológico rígido, por volta dos três anos de
idade, a libido inicia nova organização que em condições favoráveis, se
estenderá até por volta do quinto ano de vida. Agora a erotização passa a ser
dirigida e concentra-se nos genitais, desenvolve-se o interesse infantil pela
genitália e a masturbação torna-se naturalmente frequente. Mas, apesar da
fase fálica se organizar de forma onde os impulsos concentram-se nos órgãos
genitais, a função de reprodução ainda não se encontra desenvolvida de forma
suficiente. “A organização completa só se conclui na puberdade, numa quarta
fase, a genital.” (1905). A atenção é toda voltada ao órgão genital masculino (o
falo), devido à forma interna do órgão sexual feminino. Freud descreve o
quanto oculto ficam aspectos que definem o gênero sexual quando propõe na
conferência sobre a FEMINILIDADE: “Com seu ingresso na fase fálica, as
diferenças entre os sexos são completamente eclipsadas pelas suas
semelhanças. Nisto somos obrigados a reconhecer que a menininha é um
homenzinho” (Freud, 1933) Um homenzinho que imagina ter sido castrado, em
que o órgão não tenha crescido, ou ainda que não tenha sido agraciado com
um falo. Sendo assim, não temos a distinção entre masculino e feminino, mas
simfálicosoucastrados. “Nela, a divisão em opostos que perpassa a vida sexual
já se constituiu, mas eles ainda não podem ser chamados de masculino e
feminino, e sim ativo e passivo.” (Freud, 1905)

Surgem com isso, questões a respeito da diferença entre os órgãos


genitais dos meninos e das meninas, não com habilidade de compreensão,
mas com toda dúvida e ansiedade que é peculiar deste período. Os meninos
percebem as sensações prazerosas no manuseio do pênis, relacionando a
excitação com ideias de relação sexual, em grande parte relacionada aos pais.
Mesmo sendo o órgão sexual masculino de forma externa, e com isso
favorecendo o acesso a masturbação, ainda assim, as menininhas fazem da
mesma maneira, explorando seu corpo e estimulando seu pequeno
clitóris.“Parece que em todas elas a atividade masturbatória é executada nesse
equivalente do pênis e que a vagina verdadeiramente feminina, a essa época,
ainda não foi descoberta por ambos os sexos.” (Freud, 1933). Portanto, quando
essa fase não encontra possibilidade de ser elaborada suficientemente bem,
gera-se certa fixação onde a menina corre o risco de não conseguir ir para
além dessa forma de obtenção do prazer sexual, não conseguindo encontrar
satisfação na penetração, no ato da copula e muitas vezes desenvolvendo
aversão a isso.
O fácil acesso do pênis encontra ainda, no âmbito social, maior
permissividade, ficando claro na situação em que um garoto é por acaso pego
de surpresa se masturbando. Este, normalmente terá menor punição do que
aconteceria com as meninas. É muito comum o orgulho de alguns pais em
exibir aos amigos o órgão genital do seu “filho homem”, por outro lado, quando
o assunto é o órgão genital da menina logo se instala certo constrangimento
geral. Ao menino se permite o que para a menina é proibido. De qualquer
forma, por conta da incompreensão e dificuldade no reconhecimento da
importância do órgão feminino, imaginando que uns “tem” outro “não tem”,
nessa fase a criança desperta fantasias referentes à castração. Freud introduz
os conceitos de “complexo de castração” e da “inveja do pênis”. Nas meninas
ocorre ao verem o genital dos meninos e perceberem a importância que os
adultos atribuem a ele.
“Sentem-se injustiçadas, muitas vezes declaram que querem ‘ter
uma coisa assim, também’, e se tornam vítimas da ‘inveja do pênis’; esta
deixará marcas indeléveis em seu desenvolvimento e na formação de seu
caráter, não sendo superada, sequer nos casos mais favoráveis, sem um
extremo dispêndio de energia psíquica.” (Freud, 1933)

O “complexo de castração” também acomete o menino, já que ao ver a


menina sem o órgão fálico, cria a fantasia de que tenha sido castrada, sendo
assim ele também pode vir a sê-lo, sobretudo referente a punição por alguma
travessura, ou mesmo frente às fantasias incestuosas que povoam suas
masturbações. Ainda nos meninos, por conta das experiências mal-sucedidas
da fase fálica, corre-se o risco de fixar-se num modelo doentio e cristalizado,
quando se aferra nesse modelo, desenvolve certa arrogância fálica. A
rivalidade, estará sempre presente nas relações, transformando o encontro
onde deveria realizar união dos opostos (o que realiza expansão), num
ambiente de competitividade onde no final sobreviverá apenas um: aquele em
que o falo tenha se provado mais potente. Essa questão toma uma proporção
inestimável quando se está inserido numa sociedade onde se educa as
crianças para competir, não para cooperar. A sensação de ser o detentor do
falo, como símbolo de poder, traz fantasias potência, dominação e força para o
homem, ou mesmo à mulher que carregue a ilusão de também possuí-lo,
características masculinas podem ser incorporadas nesta última que, por
ventura tenha se fixado nessa fase e não tenha sido capaz de elaborar a inveja
gerada ao se descobrir sem pênis.
Na fase fálica a culpa acerca da masturbação que tem seu objeto quase
que totalmente limitado no campo incestuoso, é experimentada e com ela a
necessidade de adequação do objeto, cheia de medos e sensações de
constrangimento. Fica mais clara a relação com os pais e que nesse triângulo,
sua exclusão. São então definidos papéis como os de objeto, modelo, aliado
erival. Depara-se com a dúvida sobre o que ocorre com os pais em com
sentimentos ambíguos de crueldade e prazer. É nessa fase que se implementa
a fantasia quanto às relações sexuais, e surgem aí muitas confusões sobre
isso. O que é e como funciona o ato sexual e o que é o ato de violência se
confundem para a criança nessa fase. O fato do domínio maior na capacidade
de argumentação verbal faz com que surjam perguntas, muitas vezes
constrangedoras para os adultos. A curiosidade sobre o ato sexual é intensa,
sobretudo entre seus pais, o que Freud chamou de cena primária (o pai e a
mãe no ato sexual). Onde a criança se vê excluída do triangulo composto por
ela, o papai e a mamãe. A importância de poder tolerar se sentir excluído
dessa posição e assim passar por essa fase, elaborando fantasias inerentes a
ela, de maneira tranquila, é de enorme influência na formação da
personalidade. Essa fase guarda situações de extrema dificuldade, no que se
refere à culpa, já que imaginações sobre traição e sobre questões incestuosas
se movimentam no interior do psiquismo, causando ansiedade peculiar, e
contribuem com o retraimento da fase posterior (período da latência).Quanto à
definição de aspectos constituintes do desenvolvimento, Freud coloca
que:“Nessa fase, portanto, já é possível demonstrar a polaridade sexual e o
objeto alheio, faltando ainda à organização e a subordinação à função
reprodutora.” (Freud, 1905)
Uma questão de grande importância é o tema do reconhecimento. Tema
que, na verdade é relevante em todas as fases, mas na fase fálica pode trazer
alguns desdobramentos peculiares. As experiências bem-sucedidas dessa
fase, assim como das anteriores, têm como fundamental a possibilidade do
olhar reconhecedor e amoroso dos pais, independente de características de
inadequação apresentadas pelos filhos. O fato de a criança ser excluída da
relação intima dos pais, requer um cuidado especial para que ela não se sinta
desimportante em seu papel na família. Ainda, quanto a menina, pode se sentir
inferior por conta de seu órgão de formato interno e sem um dedicado trabalho
de reconhecimento da importância de sua feminilidade pode se instalar um
grande complexo de inferioridade, limitante pela vida toda. A menina que por
acaso nunca tenha se sentido realmente amada, pode atribuir a esse motivo a
razão de sua desventura.

O Complexo De Édipo

Édipo é personagem da dramatização escrita pelo filósofo grego


Sófocles (497 - 406), onde mata seu pai (rei Laio) e casa-se com a mãe
(Jocasta). Freud empresta o nome do mito para dar nome ao complexo que
ocorre no desenvolvimento da criança e que permeará todo o funcionamento
mental sempre que houver certa configuração triangular. Através da elaboração
deste complexo, Freud chama a atenção para formação de um ideal de eu, na
estruturação do superego (identificações originalmente derivadas das figuras
de autoridade parentais), que surgiria como substituto dos desejos edípicos
(basicamente o incesto e o parricídio). Para Freud, ao longo da fase fálica,
sexualidade presente na tenra infância deve atingir seu ápice onde, a partir de
então, meninos e meninas passam a ter desfechos distintos. “Ambos
começaram a colocar sua atividade intelectual a serviço de pesquisas sexuais;
ambos partem da premissa da presença universal do pênis. Mas agora os
caminhos dos sexos divergem.” (Freud, 1940).
Quando, Freud escreve sobre a sexualidade infantil descreve o fim desta
fase e o início de um novo período, onde “...o complexo de Édipo revela sua
importância como o fenômeno central do período sexual da primeira infância.
Após isso, se efetua sua dissolução, ele sucumbe à regressão, como dizemos,
e é seguido pelo período de latência.” (Freud, 1905) A criança deseja a mãe só
para ela sendo o pai o grande rival obstrutor da realização desse desejo. Isso é
verdade para o menino, mas em seu ensaio sobre A SEXUALIDADE
FEMININA, Freud propõe que na menina, o primeiro objeto do amor também é
a mãe, mas, em certo momento, ela se afasta desta última por conta da
identificação com ela e tende a se aproximar de seu pai como objeto. “De fato,
durante essa fase, o pai de uma menina não é para ela muito mais do que um
rival causador de problemas, embora sua hostilidade para com ele jamais
alcance a intensidade característica dos meninos.” (Freud, 1931)
Já Melanie Klein, propõe as questões edípicas de forma mais precoce e
sugere que fantasias como essas habitariam a mente da criança desde a mais
tenra infância. Explica isso com o auxílio da divisão do objeto (objetos parciais).
A possibilidade de elaboração do conflito edípico de forma harmoniosa e
suficientemente tranquila, no “final” do período fálico, desperta poderosos
recursos internos para a regulação dos impulsos e sua orientação para fins
construtivos.
De qualquer forma, o complexo de Édipo não é uma experiência que se
restringe ao âmbito da sexualidade, mas se expande em cada relação que se
estabeleça o triangulo, onde se configure um sujeito, seu objeto de desejo e um
obstrutor da realização desse desejo. Em 1958 Bion expande essa intuição
freudiana, indo para além do mote sexual, no incesto e no parricídio, sucedida
entre Édipo, sua mãe e seu pai, levantando a questão da forma arrogante
como Édipo se comporta frente à verdade.

PERÍODO DA LATÊNCIA

Freud não inclui esse período como sendo uma fase entre as outras que
descreve, já que não está relacionada a uma área erógena no corpo físico, no
entanto penso ser muito importante reconhecer a relevância das experiências
vividas nesse período que fica entre a fase fálica e a genital. Essa importância
vem, sobretudo dos desdobramentos das possíveis fixações nessa ocasião e
suas prováveis consequências para o desenvolvimento emocional saudável.
Através dos estudos psicanalíticos descobrimos que os germes dos
impulsos sexuais já estão presentes no recém-nascido, continuam a
desenvolver-se durante algum tempo, para então serem dominados por
progressivo processo de supressão, por conta da introdução da educação para
a vida civilizada. O período da latência se estende, em média, dos seis anos de
idade até a puberdade, que inicia por volta dos nove anos de vida, não tendo
tanto rigor dentro dessa noção cronológica. Como já mencionado nesse
trabalho, mas digno de ser repetido tantas vezes quanto necessário, cada caso
apresenta certas possibilidades de experiência. Neste período a criança
demonstra “aparente” diminuição do interesse sexual, o que seria o resultado
dos fortes impulsos genitais, conflitados pelas normas e regras sociais. Digo
aparente, pois,esse interesse continua, mas agora, como num retorno à épocas
de autoerotismo e do narcisismo, a criança se afasta do mundo externo (outro)
e busca a satisfação por si própria, mas ainda com imagens e fantasias que
incluem o outro.
Com a repressão das ideias incestuosas, componentes do complexo de
Édipo, acontece uma reclusão da vida social. A energia da libido fica
temporariamente deslocada de seus objetivos sexuais. A criança é inundada
por sentimentos como asco, vergonha e o constrangimento, tomam conta. As
exigências dos ideais estéticos e morais, são fatores que contribuem com o
afastamento do mundo externo quanto ao aspecto sexual. A partir da
consolidação do superego e a maturidade do ego, o caminho aponta para
vivências posteriores, deslocando-se dos pais para professores, treinadores e
outros adultos, representantes de autoridade. A criança tende a juntar-se em
grupos do mesmo sexo. Faz piadas a respeito dos problemas sexuais.
Na latência são criadas forças psíquicas que têm a função de dar conta
de bloquear o curso do instinto sexual que se pronuncia no mundo externo.
Essas forças irão, então, buscar recursos para assistir a demanda que tem um
fluxo continuo. Como a energia libidinal é permanentemente gerada, não pode
ser simplesmente eliminada, tão pouco suporta eficientemente a repressão,
geram assim grande tensão interna. Boa parte dela é canalizada para outras
finalidades. Assim, ela é direcionada ao que Freud denominou sublimação para
o desenvolvimento intelectual, religioso, artístico e social da criança.
“Os historiadores da cultura parecem unânimes em supor que, mediante esse
desvio das forças pulsionais sexuais das metas sexuais e por sua orientação
para novas metas, num processo que merece o nome de sublimação,
adquirem-se poderosos componentes para todas as realizações culturais.
Acrescentaríamos, portanto, que o mesmo processo entra em jogo no
desenvolvimento de cada indivíduo, e situaríamos seu início no período de
latência sexual da infância.” (Freud, 1905)
O objetivo deste período é o aumento da habilidade para lidar com o mundo
das coisas e pessoas ao redor, sendo que hereditariedade e educação são
corroborantes nesse processo de repressão dos impulsos. “Após o fim deste
período de latência, como é chamado, a vida sexual avança mais uma vez,
com a puberdade; poderíamos dizer que tem uma segunda eflorescência.”
(Freud, 1905)

FASE GENITAL

Esta fase ocorre a partir da etapa da vida que chamamos de


adolescência – dos 11 ou 13 anos, aproximadamente, até que atinja a vida
adulta. Constitui, para a psicanálise freudiana, atingir o pleno desenvolvimento
do sujeito adulto. A zona erógena se concentra nos genitais e a excitação
sexual se coloca em conformidade com a proliferação da espécie. Numa
reflexão expansiva poderíamos pensar que sem a excitação genital a
proliferação da espécie correria grande risco.
Pressupõe-se que a partir da elaboração dessa fase, o sujeito renunciou
ao ímpeto de competir, aprendeu a conviver com o outro, desenvolver-se
intelectual e socialmente, tornou-se capaz de realizações e desenvolveu a
capacidade de amar, num sentido amplo. Ocorrem as primeiras histórias de
amor entre os meninos e meninas. A busca pela sexualidade se reabre depois
do período da latência, mas agora com maior maturidade. Mas, agora, a libido
tende a se concentrar na região genital, e assim também ocorre uma
intensificação dos impulsos, podendo amiúde provocar a emersão de
características de fixação nas fases anteriores. Reaparecem conflitos de
estágios precedentes, oferecendo a oportunidade de elaborar esses conflitos,
agora contando com maior maturidade no contexto de alcançar
amadurecimento sexual da identidade adulta. Com a libido voltada para a
função reprodutora, o desenvolvimento é norteado pela separação da
dependência e do vínculo parental e pelo estabelecimento de relações de
objeto heterossexuais, não-incestuosas e amadurecidas. Consolida-se a
identidade do sujeito que resultará na integração adaptativa na vida social e
nos valores culturais.
Os desvios patológicos e formações de fixações devidas ao fracasso em
elaborar exitosamente esse estágio do desenvolvimento são múltiplos e
complexos. As falhas podem proceder de todo o espectro dos resíduos
psicossexuais, já que a tarefa evolutiva do período adolescente se faz num
sentido de reabertura, revivendo e reintegrando todos esses aspectos do
desenvolvimento. As elaborações anteriores que não puderam ser bem-
sucedidas e as fixações nas várias fases ou aspectos do desenvolvimento
psicossexual produzem falhas e características patológicas na personalidade
adulta, que surge ou a criação de estruturas comprometidas. As repressões
ocorrentes em seu desenvolvimento manifestam-se através de vários tipos de
distúrbio na vida sexual. “Quando é assim, encontramos fixações da libido a
condições de fases anteriores, cujo impulso, que é independente do objetivo
sexual normal, é descrito como perversão.” (Freud, 1940)
Na verdade, a vida sexual nunca deixa de se desenvolver por todo o período
da vida do ser humano e continua passando por experiências consecutivas, da
primeira infância até a velhice. O desenvolvimento da libido parece realmente
atingir seu ápice quando passa a ser possível a predominância do amor
ternura, onde a renuncia do próprio desejo e do adiamento da vontade dá lugar
para o desenvolvimento do amor verdadeiro na cordialidade das relações. Isso
talvez seja a maior expressão do estar vivo.

PERVERSÃO

A criança se satisfaz sexualmente de várias formas antes de a zona


erógena vir a se concentrar na genitália, por conta desse fato, Freud propõe a
disposição perversa polimorfa na criança. A princípio, a satisfação sexual se
concentra na boca, fundindo-se com o instinto de nutrição, depois se centraliza
na região anal, junto da função excretora. Portanto, a criança é naturalmente
perversa polimorfa por se satisfazeratravés de todas as transgressões
possíveis. “Isso mostra que traz em sua disposição a aptidão para elas; por
isso sua execução encontra pouca resistência, já que, conforme a idade da
criança, os diques anímicos contra os excessos sexuais – a vergonha, o asco e
a moral – ainda não foram erigidos ou estão em processo de
construção.”(Freud, 1905). Com isso as fixações em fazes pré-genitais devem
ser pelo menos a priori, adequadamente chamadas perversões.
“As perversões são ou (a) transgressões anatômicas quanto às regiões do
corpo destinadas à união sexual, ou (b) demoras nas relações intermediárias
com o objeto sexual, que normalmente seriam atravessadas com rapidez a
caminho do alvo sexual final.” (Freud, 1905).
No entanto, é importante ressaltar que apesar da definição de perversão
ainda assim, mesmo em ocasiões adequadas, também as pessoas saudáveis
podem substituir durante um bom tempo o objeto de satisfação sexual por
alguma perversão, ou ainda, apresentar-se junto doa ato sexual genital. “Em
nenhuma pessoa sadia falta algum acréscimo ao alvo sexual normal que se
possa chamar de perverso, e essa universalidade basta, por si só, para mostrar
quão imprópria é a utilização reprobatória da palavra perversão.” (Freud, 1905)
Sendo assim, revela-se a dificuldade e o perigo no uso do termo para
descrever certo diagnóstico que tenha perversão como processo patológico.
Freud postula que um critério mais seguro estaria na observação mais atida do
processo. A disposição patológica não estaria na situação onde a perversão
esteja ao lado do objeto como um facilitador do encontro (sexual) com o
mesmo, mas quando surge como substituto deste, em prol do objetivo
perverso. Fatores como exclusividade e fixação no objeto perverso estariam
presentes dentre suas características. Ocorre então a predominância do
impulso, em detrimento da elaboração, ocorrendo a atuação (act-out) da
fantasia que remete a fases anteriores e se mostram manifestações primitivas.
Sentimentos como repugnância e vergonha partem da componente estrutural
do aparelho psíquico denominada por Freud de superego, em conflito com os
impulsos instintivos oriundos da parte mais primitiva, chamada id. Na perversão
o id triunfa neutralizando o efeito do super-eu. Um impulso perverso que seja
reprimido e não consiga ser bem elaborado, ou não consiga alguma
sublimação, deve então desenvolver um sintoma neurótico como substituto
dessa consumação desse impulso perverso. A neurose é entendida então,
como o avesso da perversão. Onde existe uma neurose manifesta, há uma
perversão latente.

Os desvios no amor

... A saber, que o homem não é realmente um só, mas verdadeiramente dois
em um. Digo dois, porque o estado dos meus conhecimentos não vai além
desse ponto. Outros virão, outros me ultrapassarão nessa mesma direção, e
aventuro-me a pensar que o homem será finalmente conhecido como um
simples agregado multiforme de cidadãos incongruentes e independentes uns
dos outros. O Médico e o Monstro, Robert Louis Stevenson (1850 - 1894).
Dr. Jekill deixa uma carta relatando sua experiência, que antes de tudo,
traz a revelação de um momento reflexivo daquele que tivera um insight
(compreensão interna) sobre si mesmo. Alguém que havia descoberto o terrível
fato de que talvez sua maior perversão fosse justamente o que o sustentara
vivo.Talvez em sua busca por ser alguém livre de imperfeições, fora obrigado a
criar, no quarto dos fundos de sua alma, um ser perverso. Alguém que ele
mesmo não conhecia, e quando o pode conhecer, foi o fim. Na obra de
Stevenson, Dr. Jekyll, um dedicado médico que reunira em torno de seu nome
qualidades como as de cavalheirismo, educação e bondade, desenvolve uma
fórmula que permite transformá-lo em Mr. Hyde, um ser frio e nefasto que age
essencialmente por seus impulsos. O uso da poção decompunha a
manifestação da personalidade do médico, que assim se revelava alguém
dividido. Um recurso criado por ele, antes de tudo, para conseguir continuar
vivendo. Justifica-se com o argumento de que, amiúde era tomado por certos
desejos estranhos que ameaçavam o desenvolvimento e até a existência do
médico bem-sucedido. Na verdade, o preparado farmacológico não criava
alguém novo, mas revelava uma parte escondida no interior do gentleman. Ao
beber da poção, o médico era arremessado para a extremidade avessa do
médico, ocupando sua alma da irracionalidade do monstro. O uso da
substância química criava um fenômeno onde era evitada assim a experiência
do conflito, já que delegava a cada parte do eu uma característica. Enquanto
Dr. Jekyll (que carrega a morte em seu nome; kill), abriria mão do desejo
proibido e assim revelava um homem amável e preocupado com o outro; Mr.
Hyde (escondido), de forma inversa, abre mão da realidade e satisfaz o
impulso perversamente, atacando pessoas num ódio mortal pelo ser humano.
Entretanto, o maior oprimido e grande sacrificado pelos atos perversos de Mr.
Hyde seria exatamente Dr. Jekyll.
O que poderia nos permitir cogitar, com propriedade, sobre o que é
perversão, que tipo de argumento poderia nos autorizar diagnosticar ou
designar algo como sendo perverso?A palavra "perversão", se entendida por
um vértice onde é utilizada a linguagem coloquial, ganha logo um formato
malévolo, um representante venenoso da crueldade. No dicionário (Michaelis
2003), encontraremos a palavra como sinônimo de expressões que aparecem
desde contaminação, infecção, até corrupção, ou mesmo depravação. Se
estivermos utilizando um vocabulário coloquial, encontraremos a palavra
perversão como significado de algo que se encontre, quem sabe, no avesso do
que é humano. Na medicina (quiçá a primeira ciência a estudar o termo), a
palavra perversão aparece como classificação de uma enfermidade, ou
descrição de algum tipo de degeneração. Nenhum desses significados atende
os requisitos de nossa reflexão, contudo, se procurarmos a origem da palavra,
encontraremos no latim, PERVERTERE, de PER, “totalmente”, mais
VERTERE, “virar”.
A partir dos estudos da Psicanálise, sobre tudo na obra de Sigmund
Freud, TRÊS ENSAIOS SOBRE A TEORIA DA SEXUALIDADE, a conotação
da perversão ganha alguns importantes ponderadores, apontando para a
mesma direção semântica do radical latim da palavra. Através de um exame
mais cuidadoso, podemos apreciar maduramente a palavra em seu significado
e assim perceberemos certos pontos de vista que permitem deslocar o conceito
da posição fixa, no extremo oposto do bom, do bem, do humano e perceber um
significado mais amplo que poderia abarcar o termo. No segundo tópico do
primeiro capítulo da obra freudiana de 1905, o termo é descrito como uma
espécie de desvio. Mas é importante percebermos que esse desvio ocorre no
caminho em direção ao encontro sexual, ou a cópula em si. Como que um
adiamento temporário no objetivo da cópula, assim como um desvio no
caminho do desenvolvimento sexual, descrito como sadismo, masoquismo,
pedofilia, exibicionismo, voyeurismo, etc. Um atalho que desvia do outro, ou do
objeto, e se direciona à satisfação narcísica. Como se em certo momento a
vontade de buscar o objeto externo convertesse simplesmente em desejo de
satisfação do impulso. A parte da libido que ficou presa à satisfação nos
objetos primitivos (fixação) apresenta-se na vida adulta como perversão. São
pulsões que não conseguem encontrar satisfação no objeto, se desviando
antes do encontro.
Em UMA CRIANÇA É ESPANCADA - UMA CONTRIBUIÇÃO AO
ESTUDO DA ORIGEM DAS PERVERSÕES SEXUAIS, Freud propõe
que:“Uma fantasia dessa natureza, nascida, talvez, de causas acidentais na
primitiva infância, e retida com o propósito de satisfação auto-erótica, só pode,
à luz do nosso conhecimento atual, ser considerada como um traço primário de
perversão.” (Freud, 1919) Porém, é importante percebermos que, apesar de
parte do eu pressionar a totalidade a olhar para outro lado, só pode desviar-se
aquele que segue alguma direção. Freud postulara em 1905 sobre uma
polêmica ideia que ainda hoje nos parece de difícil compreensão, ou no mínimo
pega o leigo de surpresa, com certa sensação (muitas vezes repleta de
restrições em seu reconhecimento) de que sempre sentira algo que ao mesmo
tempo acaba de conhecer.
Logo, perceberemos o fato de que utilizamos muito mal a palavra
perversão, ou pelo menos limitamos muito sua utilização se atribuirmos a ela
um movimento de reprovação. A ideia é que a perversão se apresenta como
componente até mesmo da vida sexual saudável, sendo considerada pelo
sujeito como qualquer outro pensamento secreto. Freud dá um passo imenso
na direção da necessidade de desfazer a fronteira insolúvel entre saúde e
doença, pelo menos no âmbito psicológico, ou seja, quando se estuda a mente
humana.
“As perversões não são bestialidades nem degenerações no sentido patético
dessas palavras. São o desenvolvimento de germes contidos, em sua
totalidade, na disposição sexual indiferenciada da criança, e cuja supressão ou
redirecionamento para objetivos assexuais mais elevados — sua “sublimação”
— destina-se a fornecer a energia para um grande número de nossas
realizações culturais.” (Freud, 1905)
É o que propõe Freud no seu FRAGMENTO DA ANÁLISE DE UM CASO
DE HISTERIA, e se pudermos sustentar a direção desta proposta, verificamos
que reprovar a perversão é reprovar parte do eu. Este afastamento temporário
do objeto externo tem a exclusividade e fixação como constituinte em seu
modelo. O estudo da perversão está diretamente ligado ao reconhecimento dos
estados neuróticos, já que Freud propõe que "a neurose é o negativo da
perversão", ou seja, enquanto o neurótico fantasia, o perverso atua (accting
out). Esse desvio ocorreria por meio de uma fixação decorrente da
impossibilidade de satisfação do desejo sexual na infância durante as fases do
desenvolvimento da libido, o que faria com que no neurótico, a partir da
repressão do impulso, criassem-se sintomas que serviriam ao aparelho
psíquico como substitutos da satisfação sexual. Logo entendemos que a
neurose esconde um desejo perverso, encoberto pelo sintoma. A partir deste
ponto de vista, com auxílio da psicanálise, pudemos reconhecer que todos nós
temos uma coleção de neuroses e, da mesma forma, passamos assim a
perceber a perversão como certa característica que pode ser descoberta até
mesmo no sujeito dito saudável. Mesmo no adulto que, pelo menos a priori,
conquistara o status de maturidade, conserva-se em sua personalidade (em um
lugar secreto) partes infantilizadas que amiúde se revelam em situação de
hiperexcitação, ou mesmo no prenúncio da perda do objeto amado.
Ora, assim como nos orienta o poeta romano Publio Terêncio Afro (195-
185 a.C. - 159 a.C.), em sua obra HEAUTONTIMORUMENOS: “sou homem:
nenhum assunto humano julgo alheio a mim”. Antes de Freud, Terêncio já
havia alertado sobre os meandros da mente humana. Essa busca consiste em
certa expansão para um nível onde cada um de nós guarda uma cota de toda
característica que possa ser atribuída ao ser humano. Se para Freud cada um
de nós guarda uma parte perversa (portanto, também neurótica), em 1957 na
obra, DIFERENCIAÇÃO ENTRE A PERSONALIDADE PSICÓTICA E A
PERSONALIDADE NÃO PSICÓTICA, Wilfred Bion, propõe um vértice de
pensamento que expande essa ideia no nível psicótico, onde ele reconhece
uma certa área psicótica presente na mente de cada sujeito. Sendo que a
possibilidade do analista reconhecer em si mesmo a faceta do psiquismo que
não mantem conexão com a realidade externa, ou seja, a descoberta de certa
parte psicótica em sua própria mente, seria para Bion o que o capacitaria a
receber e acolher pacientes que apresentem a predominância desse
funcionamento mental.
Antes de tudo, a perversão é uma espécie de dificuldade de reconhecer,
integrar-se e interagir com o real. Isso se pensarmos o ato sexual como um
modelo de encontro entre duas partes diversas da realidade onde existe a
possibilidade de criação de uma terceira. Verificamos por esse caminho que,
através de uma escala de evolução, a perversão estaria para o amor como um
primeiro tipo, ou ainda, um modelo menos desenvolvido, entretanto em
desenvolvimento. Um protótipo do amor que tenta bravamente seguir em frente
na tentativa de desenvolver-se, sem a garantia de que o consiga. Por
conseguinte, é o caminho que percorre o bebê até que aprenda a amar. Até
que possa ser capaz de retribuir aquilo que recebeu de seus dedicados
cuidadores e criar assim um modelo que possa servir a cada nova aproximação
amorosa em sua vida. Tento propor que talvez quem hoje ame um dia desejou
perversamente. Eros (deus do amor) é filho de Afrodite (deusa da beleza,
sedução) a geradora do afrodisíaco.
Mas, voltando ao belíssimo romance proposto no início do texto, se o
médico tivesse sido capaz de tolerar a imperfeição contida em seus
pensamentos perversos, teria a chance de integração das partes de sua
personalidade, abrindo assim a oportunidade de viver algo real, logo imperfeito.
Talvez custasse a ele momentos de “monstros”, contudo sob sua
responsabilidade, em detrimento da perfeição do gentil médico bem-sucedido.
Essa integração da personalidade só pode ocorrer quando existe a capacidade
de tolerar o desconforto do encontro com um ser total. Enquanto a
fragmentação é prazerosa por livrar o sujeito das responsabilizações, a
integração é desconfortável por demandar compromisso consigo mesmo.
Seguindo o mesmo caminho, percebemos que, a despeito da formulação
popular, onde o título de perverso é atribuído à descrição do vilão, malvado e
agressor, também o papel de vítima se encaixaria na descrição perversa,
quando cada agressor carrega uma vítima dentro de si, pronta a ser projetada
naquele que possa oferecer um modelo adequado para receber essa
atribuição.
SOBRE O PROCESSO DO LUTO E O ESTADO DA MELANCOLIA

Cogitar sobre os aspectos implicados na experiência dos caminhos


possíveis, quando aquilo que contamos como primordial nos escapa no nível
sensorial é expediente fundamental da psicanálise. Lidar com perdas é uma
dificuldade comum aos humanos e é antes de tudo uma oportunidade de
conflito entre a pulsão de vida e a pulsão de morte. Em ultima instancia a
psicanálise tem a tarefa de auxiliar o sujeito na tarefa do desapego.
A palavra luto serve-nos para descrever o período que se segue depois
da perda de alguém ou algo de grande importância, que de alguma forma é ou
foi alvo de investimento de interesse (libido), ou mesmo, que éramos ligados de
maneira profunda. Além disso, a palavra luto serve para descrever a perda de
uma pessoa amada, uma importante posição social ou ainda, uma desilusão
quanto a uma ideia que se constatou não ser viável na realidade. Sentir o luto
aponta para aquilo que deve ser desligado do contato sensorial num processo
natural da vida. A necessidade de desprendimento de algo que nos sentíamos
ligados até então. O luto bem elaborado é o que propicia o desenvolvimento da
maturidade emocional.
Logo ao nascer já temos que aprender a perder. O próprio momento do
parto é para o bebê o fim de certo período num modelo de vida e o início de
outro: ele passa de um mundo, aquático para um mundo aéreo (respiração
pulmonar) e, de uma alimentação via umbilical para a forma oral. Daí por diante
as experiências de desenvolvimento na maturação do aparato emocional
contará com a capacidade de se desapegar de formas antigas de funcionar
para a configuração de uma forma nova. Sendo assim, um sujeito ganha sua
maturidade emocional na medida em que aprende a perder.
Bem, quando a perda ocorre, é natural que nos recolhamos em a nós
mesmos, em direção de nosso ego (eu) e nos desinteressemos em certa
medida pelas coisas do mundo (externo). O mundo externo perde um tanto de
sentido e nos voltamos para dentro de nós mesmos (interno). Esse mecanismo
é o que poderíamos chamar de depressão. É esse fenômeno psíquico que
acompanha o período do luto que, por sua vez funciona como o processo de
cicatrização de um ferimento no corpo físico. Como na conduta do caracol do
nosso jardim, que se recolhe até que o perigo passe.
Desse modo, assim que elaborado o período de luto, ou seja, quando a
perda que ocorreu no mundo sensorial (externo) foi também apreendida pelo
mundo interno (afetos e emoções), o sujeito inicia um processo de nova
expansão em direção ao mundo externo. Sigmund Freud conceitua essas duas
tendências do interesse de “libido do ego” e “libido objetal”, sendo que,
enquanto a libido objetal é dirigida ao objeto externo a libido do ego é a cota
direcionada para si mesmo. Bem como lá no jardim o caracol, depois de algum
tempo, põe sua cabeça para fora da casca, tentando retomar seu caminho.
De uma forma esquemática poderíamos propor que quando se percebe
o perigo (da perda), admitindo-se o risco, então se recolhe até que retome a
consciência da situação. Um período de reflexão, sobre como será o mundo
sem aquilo que se julgava vital e, só depois disso, o sujeito se vê capaz de
retomar sua busca por novas ligações afetivas. Mas, é fundamental para a
maturação deste processo que o sujeito reconheça o que perdeu, ou seja,
saiba o que se foi e como foi perdido e, também assuma a situação,
reconhecendo as conseqüências dessa perda. Porém, ainda que se interrompa
temporariamente o interesse pelo mundo externo, é importante que isso não
implique em obstruir o fluxo de suas realizações. Isso quer dizer que o ego se
manteve íntegro, mesmo depois da perda, ou, em outras palavras, a
autoestima permaneceu em suas proporções e agora (depois da elaboração do
luto), se vê pronto para buscar novamente algo fora para se ligar.

É justamente através do processo de luto que ocorre a


simbolização. O objeto é simbolizado quando foi possível a formação de uma
imagem internalizada que permita tolerar a ausência no real concreto. O que
morreu no mundo externo passa então a viver nas recordações afetivas.
Porém, para que isso seja possível é imprescindível que tenha havido o
estabelecimento de um vínculo suficientemente saudável entre sujeito e objeto.
Sendo assim, a partir do processo do luto o ego é nutrido e passa a se
organizar e se estruturar.

Contudo, a perda do objeto pode apresentar outro caminho em paralelo.


Ao invés do sujeito viver o processo de luto, pode cair num estado de
melancolia. Neste estado mental, as configurações iniciais ocorrem muito
semelhantes ao do trabalho do luto, porém com algumas ressalvas de crucial
importância. Para que se instale a melancolia, também deve ocorrer à perda;
da mesma forma, o sujeito sofre a depressão, como a perda do interesse pelo
mundo externo (pessoas e coisas), todavia, diferente do luto, o ego mostra-se
empobrecido, como se lhe faltasse um pedaço. Isso por conta de que foi
comprometida a autoestima. Como se disséssemos “sem isto, eu não consigo
viver”. Parte do eu parece morrer junto com aquilo que se perdeu no mundo.
“No Luto é o mundo que se torna pobre e vazio, na melancolia, é o próprio
ego”. (Freud, 1917). A teoria de Klein sobre a forma do bebê se relacionar com
a mãe, assim como no funcionamento psicótico da mente, no que chamou de
identificação projetiva parece ter origem nessa proposta freudiana. A libido que
foi projetada no objeto parece se perder ali e não sofrer a repressão, como no
mecanismo neurótico.

Do ponto de vista topográfico é possível afirmar que o vínculo não pode


chegar à consciência. Arma-se um conflito onde, por um lado uma tendência
leva a separar o interesse do objeto, e outra tenta manter a ligação. Isso ocorre
sem que o sujeito possa ter consciência do que ocorre. “No luto, também, os
esforços para separar a libido são envidados nesse mesmo sistema; mas nele
nada impede que esses processos sigam o caminho normal através do Pcs.
até a consciência.” (Freud, 1917)

No estado melancólico o que parece morrer não é apenas aquilo que se


deseja, mas a capacidade de desejar. No estado de melancolia, o eu se divide,
sendo que uma parte se volta contra a outra, condenando-a pela perda e
também pela incapacidade de viver sem aquilo que se perdeu. Parte do eu se
identifica com aquilo que se perdeu e deve passar a agir em certa medida
como agia o objeto perdido. O sujeito melancólico não deixa morrer, na
fantasia, aquilo que morreu no real sensorial. Desta forma, vive aquilo que se
perdeu de uma forma narcísica, onde só existe para ele. Freud nos orienta em
seu texto LUTO E MELANCOLIA, de 1917, que o modelo de relacionamento
que pode ter o desfecho melancólico, no caso da perda, parece estar
caracterizado de forma narcisista. Em outras palavras, se o vínculo entre
sujeito e objeto não pode evoluir da ligação por identificação para uma ligação
objetal o desfecho ante a perda deve ser a melancolia.

“Mostramos em outro ponto que a identificação é uma etapa preliminar da


escolha objetal, que é a primeira forma – e uma forma expressa de maneira
ambivalente – pela qual o ego escolhe um objeto. O ego deseja incorporar a si
esse objeto, e, em conformidade com a fase oral ou canibalista do
desenvolvimento libidinal em que se acha, deseja fazer isso devorando-o.”
(Freud, 1917)

O vínculo narcisista é caracterizado pela ligação fusionada das


personalidades, onde uma deve controlar o outro, vivendo uma dependência
emocional quase que absoluta. Uma forma imatura de vínculo, pois é desta
maneiraque o bebê se liga à mãe e irá fazer suas ligações com outras coisas e
pessoas, por um bom tempo, ou até mesmo no decorrer de toda a vida, em
certa proporção. O bebê não existe sem a mãe, ou alguém que cuide dele.
Esse objeto de dependência é percebido deforma ambivalente. Por um lado, é
idealizado por estar de posse de fatores inerentes à própria existência do
sujeito; porém, por outro, mantém um ódio gerado pela inveja daquele que
parece ter (ou tem) parte do “eu” (algo que o “eu” parece não viver sem). O
vínculo narcisista que deve levar à melancolia na perda do objeto é mantido de
maneira ambivalente onde no mesmo tempo em que o sujeito sente que não
consegue viver sem o objeto, parece que só conseguirá existir a partir da morte
desse mesmo objeto. Assim, gera-se a culpa por desejar a morte de quem se
depende.

Quando o objeto é perdido, recai sobre o “eu” o peso da falta. Ódio


reprimido gera culpa, remorso, auto-repreensão e autodepreciação. A
dificuldade de se deprimir e entrar em contato com as emoções torna-se uma
prisão melancólica. “Dessa forma, uma perda objetal se transformou numa
perda do ego, e o conflito entre o ego e a pessoa amada, numa separação
entre a atividade crítica do ego e o ego enquanto alterado pela identificação.”
(Freud, 1917) A dependência do objeto somada à culpa por ter desejado a
morte deste para tomar o lugar dominante, agora obriga o sujeito a tornar-se o
objeto, em certa medida, depois da perda. Numa relação narcisista, quando o
objeto perdido se vai a identificação deve emergir. Dessa maneira, a partir do
mecanismo de identificação o sujeito passa a manifestar características do
objeto perdido, no entanto, esses atributos estão caracterizados por aspectos
nocivos e perturbadores. Como se na tentativa de ocupar o domínio da relação,
desejasse se tornar o dominador, logo, ao se tornar o objeto assume toda
característica de padecimento deste. O eu se divide, onde uma das partes se
volta contra a outra, sendo que a parte que hostiliza a outra é aquela que foi
deformada pela introjeção do objeto perdido.
Comumente um sujeito melancólico é um sujeito que não pode ter a
função paterna cumprida de maneira satisfatória. Não houve uma função
paterna que pudesse possibilitar o desenvolvimento da relação por
identificação e levá-lo a desenvolver a relação objetal. Sendo assim, a
ausência da função paterna é um fator presente na configuração melancólica.
A relação mãe/bebê é naturalmente narcisista e isso fica evidente através da
manifestação do narcisismo primário, que precisa ser dissolvido com a entrada
da função paterna. Ora, quando essa função não se faz presente, o vínculo
narcisista deve permanecer. Assim, quando o é objeto perdido, por ventura, ou
tem a iminência da perda, a melancolia se instala. Então, o relacionamento
entre mãe e o pai, precisa ser saudável o suficiente para que a mãe possa
apresentar o pai à criança, para que ela aprenda a confiar nele. É a partir
dessa confiança, que ele vai se afastando da mãe e deixando-a para o pai
espontaneamente. A partir de uma psicosfera saudável, a criança vai abrindo
mão da mãe, por conta da importância que o pai vai tomando na vida dela. O
garoto vai estabelecendo com a mãe uma relação objetal e vai passando a se
identificar com a figura paterna. No caso da menina, a entrada da função
paterna reafirma a identificação com a mãe e faz com que ela estabeleça a
relação objetal com o pai.
Muito boa ilustração da manifestação melancólica está na obra do
cineasta inglês Alfred Hitchcock (1899 – 1980), o clássico PSICOSE de 1960.
No filme, o personagem Norman Bates, interpretado por Anthony Perkins (1932
– 1992) é um gentil cicerone em um motel a beira da estrada. Prestativo rapaz
que reserva grande mistério por trás de sua simpática e bondosa figura
externa. Travestido de sua velha mãe, já falecida, mata com facadas a
personagem Marion Crane, que no filme original é interpretada por Janet Leigh
(1927 – 2004). Uma bela moça que chega ao motel solicitando um quarto,
depois de ter roubado uma boa quantia em dinheiro e decidido fugir. Sem saber
do roubo praticado pela moça, Norman mata (personificado de Norma, sua
mãe) aquela da qual cortejava anteriormente. Herdeiro da perversão da mãe,
hoje ele disputa seu próprio corpo com a alma daquela que um dia o invadiu.

Nesse caso, de cunho melancólico, o sujeito torna-se o objeto, assim


como nos orienta Freud. Essa talvez seja a única forma encontrada pelo
melancólico, para suportar viver a ausência do objeto do qual o sujeito
dependia. O caso toma proporções imensuráveis na medida em que essa
dependência se da justamente na capacidade de desempenhar o próprio
pensar. O funcionamento mental do estado de melancolia se dá por constantes
ataques ao vínculo com a realidade externa. A projeção do ódio no mundo
externo, investido em qualquer que seja o objeto externo que dispute lugar com
o fantasma da mãe (objeto perdido). A perseguição inunda a percepção de
qualquer que seja a figura rival, no que diz respeito à dedicação de interesse,
ou como colocaríamos em psicanálise, qualquer que seja o investimento da
libido.

A lembrança atormentadora da mãe, constantemente alimentada de


culpas, obriga que Norman viva uma clausura em seu mundo interno. Assim,
ele fica impedido de se dedicar a qualquer nova exploração afetiva. A
incapacidade de sonhar com a separação da mãe coage Norman a viver num
pesadelo alucinado. A experiência de dois corpos disputando uma alma tem
como consequência, agora num modelo onde duas almas disputam um só
corpo. O estado de melancolia nos parece então, certa falha na difícil tarefa de
continuar vivendo, mesmo conscientes de tudo que perdemos e percebermos
que perderemos tanto mais.

Fica claro que a incapacidade simbólica obriga o melancólico


materializar o objeto que se foi no nível real sensório, mas isso ocorre em
detrimento do próprio eu. Ora, o símbolo é aquilo que fica no eu, enquanto não
se pode confirmar no mundo real com os órgãos dos sentidos, então assim
como coloca Melanie Klein, em 1930, sendo o ego estruturado através de
símbolos, cada falta da qual o ego toma consciência vive o processo do luto,
expande-se e evolui a capacidade emocional e afetiva.

O ESTAR SENDO DO PSICANALISTA

A tentativa de se descrever o que é psicanálise é sempre uma tarefa


difícil e de escassa definição real. Na verdade, mesmo esse trabalho que o
leitos agora lê deve ser sempre aberto, já que os conceitos constituintes das
formulações psicanalíticas não deve ser saturado, carecendo assim de reflexão
constante. A tarefa de descrever o que é psicanálise deve ter maior chance de
ser bem-sucedida se partirmos daquilo que não é psicanálise. Assim como é
impossível se definir o que é amor, mas, ainda assim, é muito provável se
identificar o que não deve ser amor, também com a psicanálise acontece algo
análogo, tal qual Sigmund Freud (1856 – 1939) afirmou que “a cura é
essencialmente efetuada pelo amor." (Freud, 1906).

Psicanálise não é medicina, pois não se presta a cuidar do corpo físico,


ainda que se acredite que através do cuidado com a mente, também o corpo
deve encontrar recursos para se restabelecer. A psicanálise também não é tão
somente psicologia, já que esse conceito vem da junção das palavras gregas
"psyché", que significa alma ou espírito, com "logos", que quer dizer estudo,
razão, ou ainda compreensão, enquanto a psicanálise deve abranger uma
dimensão que vai para além da compreensão ou da tentativa de se estudar a
mente. Na realidade, a psicanálise transcende o próprio significado da palavra
na acepção original da junção de “psic” mais “análise”. Sendo “psic”, alma ou
espírito, a palavra análise também vem do grego análysis do analýein, junção
de “aná” que quer dizer para cima, mais “lýein” que significa soltar, afrouxar, ou
ainda decompor. Na tentativa de estudo detalhado da mente, a partir de cada
parte do todo. Mesmo assim, a psicanálise deve se prestar muito mais ao
“estar sendo em relação ao outro” do que ao “saber sobre o outro”. “Portanto,
mais importante que dividir para compreender, é acolher com o intuito de
integrar, para que assim seja possível reparar falhas, restabelecer o
funcionamento saudável e expandir as possibilidades.” (Martino, 2018).

Sendo assim, a psicanálise não se configura numa área da ciência, no


sentido comum do termo, mas passa a ser se pudermos atribuir ao conceito de
ciência a experiência de busca pela verdade, que não se encontra tão somente
no nível racional. O cuidado psicanalítico é com certo objeto que não se pode
perceber pelos órgãos dos sentidos, o que é normalmente ignorado por parte
da ciência comum. A psicanálise também não deve se interessar pela busca
por resultados preestabelecidos, já que aquilo que agora imaginamos ser um
bom resultado pode deixar de ser em algum outro momento.

Psicanálise não é uma simples profissão, mas é uma filosofia de vida.


Mais do que isso, deve ser a prática dessa filosofia. Uma filosofia que, assim
como propõe Bion orienta-se pela capacidade negativa. “Bion toma emprestado
este conceito do poeta inglês John Keats (1795-1821), do qual admirava muito
o trabalho. Bion propõe que o terapeuta exercite o desapego dos órgãos dos
sentidos, para maior desenvolvimento da intuição.”. (Martino, 2015).

O desempenho da psicanálise deve estar fundamentado na capacidade


de tolerar a ignorância, que é própria de cada um de nós. Uma busca constante
de tomar consciência da própria ignorância, assim como na celebre frase
atribuída ao filósofo grego Sócrates (469 a.C. - 399 a.C.) “só sei que nada sei”.
Isso propicia condições para que o psicanalista, humildemente, seja um eterno
aprendiz nas experiências que a vida propõe. Para tanto é necessário um
exercício constante de rebaixamento no apoio mantido em dados armazenados
na memória. Renunciando a maior parte possível do que já passou e tenha
ficado registrado. A fixação em dados armazenados na memória obstrui a
percepção e reconhecimento do fato presente. Esse exercício inclui a busca
por desprender-se da maior parte possível do desejo, na expectativa do que se
gostaria que a realidade fosse. O desejo do sujeito tende a contaminar o fluxo
natural das coisas. Quando se deseja algo, contamina-se direta ou
indiretamente a percepção e o reconhecimento da realidade.

Portanto, o psicanalista deve ser um contemplador, que acolhe a


realidade propiciando um ambiente o mais livre possível de julgamento. Sendo
a psicanálise a prática de uma filosofia de vida, não deve ser restrita às
formulações teóricas, ou ainda, ao atendimento dos pacientes na clínica, mas
deve se estender ao cotidiano daquele que se encontra nessa função. O
suposto psicanalista que não estiver se ocupando dessa função o tempo todo
de sua vida, estará fatalmente fingindo ser psicanalista no período que imagina
estar sendo.

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