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Em busca do objeto perdido:

ensaio sobre literatura e psicanálise


GEOVANE MELO JUNIOR*

Resumo
Este artigo pretende discutir alguns trechos do primeiro volume da obra literária de
Marcel Proust Em busca do tempo perdido: no caminho de Swann, relacionando-os
à psicanálise. Lembremos que tanto Proust como Freud deram uma atenção especial
ao adormecer, ao devaneio, e, de certa forma, inauguraram um novo modo de
escrita. Quiçá possamos dizer que, enquanto Proust buscava uma gramática da
existência, Freud trabalhava em uma gramática do inconsciente. Como
fundamentação teórica deste artigo, utilizaremos principalmente o escritor e
psicanalista Phillipe Willemart.
Palavras-chave: Proust; Freud; memória involuntária; inconsciente
Abstract
This paper aims to relate to the psychoanalysis some passages from the first volume
of Marcel Proust’s In Search of Lost Time: Swann’s Way. Both Proust and Freud
gave especial attention to sleep, to dream, and in a way inaugurated a new manner
of writing. Maybe we could say that, while Proust was searching for a grammar of
existence, Freud was working in a grammar of the unconscious. As a theoretical
foundation for this paper, we will mainly use the writer and psychoanalyst Phillipe
Willemart.
Key words: Proust; Freud; involuntary memory; the unconscious.

*
GEOVANE MELO JUNIOR é Psicólogo graduado pela Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais; Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal de Uberlândia; Licenciatura em Letras
(em andamento) também pela Universidade Federal de Uberlândia e atualmente é Assistente em
Administração na Universidade Federal de Uberlândia.

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“Um homem que dorme
mantém em círculo em torno de si
o fio das horas, a ordem dos anos
e dos mundos.”
Marcel Proust (2006, p. 17)

O escritor francês Valentin Louis Georges época. Podemos nos arriscar a dizer que
Eugène Marcel Proust nasceu em 1871, sua escrita nos lembra o método freudiano
quinze anos após o fundador da da associação livre, empregada com fins
psicanálise, o austríaco Sigmund Schlomo artísticos, de estilo. A título de exemplo,
Freud. O primeiro, entre outros escritos, é na conhecida cena em que Proust
o autor da afamada obra Em busca do mergulha a Madeleine em seu chá e
tempo perdido, escrita em sete tomos e involuntariamente é levado a memórias
publicada entre 1913 e 1927, sendo os três outras, impelido até sua infância na
últimos postumamente. Especificamente pequena Combray, não estaria em cena
no Brasil, seus primeiros quatros volumes uma associação livre?
foram traduzidos por Mario Quintana, o Por sua vez, Freud nasceu no antigo
quinto volume coube a Manuel Bandeira, Império Austríaco, em 1856, em uma
o sexto a Carlos Drummond de Andrade e família judia. Ele iniciou sua carreira
o sétimo e último a Lúcia Miguel Pereira. como médico neurologista e, a partir de
Com o tempo, após suas reedições, um estágio na França, com o médico
paulatinamente foram surgindo sucessivas Charcot, começou seu interesse pela
análises da obra por diversos críticos histeria, pela neurose. Foi autor de
literários. O autor foi “redescoberto” pelos diversos ensaios psicanalíticos que
intelectuais brasileiros. escandalizaram a sociedade da época, tais
Este é um romance que rompe com a como: Três ensaios sobre a teoria da
estrutura da escrita em voga em sua sexualidade e a obra pilar da teoria do

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inconsciente, A interpretação dos sonhos. Acreditamos ser importante fazer uma
Ademais, foi o primeiro a afirmar ressalva neste momento: o intento capital
categoricamente a importância dos desta investigação é fomentar
eventos inconscientes em nossas vidas, conversações entre trechos da obra
alegando que o Eu [ego] não é senhor em proustiana e a psicanálise. Logo, em
sua própria casa. Vejamos: “ele (o Eu) é momento algum esta leitura pretende
não apenas o auxiliar do Id, mas também reduzir o pensamento de Proust em um
o seu escravo submisso, que roga pelo mero sub-discurso freudiano ou fazer uma
amor do amo” (FREUD, 2011b, p. 70). psicanálise selvagem da obra. Portanto, tal
Ressaltou que o conceito de inconsciente como nos aponta Phillipe Willemart
ultrapassa o de Id, assim como o de (2000, p. 42), “ao fazer tal aproximação,
consciente está além do termo Ego. não estou reduzindo o romance a um
Édipo, tentação do psicanalista que
Isso, mais tarde, nomeará de a terceira confunde obra literária e discurso do
ferida narcísica da humanidade, sendo a analisando [...]”.
primeira desferida por Nicolau Copérnico
Assim sendo, a partir desse percurso
– nós não somos o centro do universo – e
traçado, este artigo propõe trabalhar nas
a segunda por Charles Robert Darwin –
próximas páginas as possíveis relações,
nós não somos sequer um ser especial, a
podemos dizer de estilo e temáticas, entre
par dos demais neste planeta. Por outro
a psicanálise e o primeiro volume da obra
lado, o escritor e psicanalista francês
proustiana. Diálogos estes que não devem
Philippe Willemart disserta sobre as
causar estranheza, afinal Freud
seguintes feridas: “[...] outra derrota do
influenciou e foi influenciado
homem depois da de sua expulsão do
sobremaneira pela literatura universal. Ele
centro do Universo (Copérnico), do centro
percebeu que seus maiores apoiadores não
da estrutura psíquica (Freud), do centro da
eram médicos, mas sim escritores,
economia (Marx) e da linguagem (Lacan)
artistas: “na França, o interesse na
[...]” (WILLEMART, 2002, p. 92).
psicanálise partiu dos homens das belas-
letras” (FREUD, [1925] 2011, p. 151).
Apesar de terem sido contemporâneos, Com o livro A Interpretação dos sonhos a
tudo leva a crer que esses dois artífices da psicanálise ultrapassou os limites de um
letra nunca se encontraram: “nenhum dos assunto puramente médico.
personagens-médicos parece utilizar a
teoria freudiana, o que nos leva a crer que Nesse sentido, lembremo-nos da carta
Proust não a conhecesse, confirmando enviada de Freud ao escritor alemão
assim a opinião de muitos críticos” Wilhelm Jensen, na qual o psicanalista faz
(WILLEMART, 2002, p. 99). Todavia, uma sucinta e profunda observação acerca
mesmo com esse distanciamento de dos diálogos entre psicanálise e literatura;
idiomas, idade e trabalho, ambos “nós (o escritor e o analista)
escreveram, à sua forma – Proust por provavelmente bebemos da mesma fonte,
meio do romance, da literatura; já Freud, trabalhamos o mesmo objeto, cada qual
através de casos clínicos “romanceados”, com um método diferente” (FREUD apud
pela psicanálise e filosofia –, sobre o GAY, 2012, p. 325). Complementa
pathos da alma humana, isto é, o amor, o Willemart:
sonho, a sexualidade e a memória.
Enquanto Proust buscava uma gramática A literatura, plural por excelência,
da existência, Freud trabalhava em uma contém todos os outros discursos, do
político ao filosófico, passando pelo
gramática do inconsciente.
psicanalítico e o histórico e revela um

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saber sobre o ser falante que as outras Não por acaso, seu primeiro tomo tem,
ciências levaram muito tempo para como frase inicial: “durante muito tempo,
descobrir ou teorizar (WILLEMART, costumava deitar-me cedo. Às vezes, mal
2000, p. 19). apagava a vela, meus olhos se fechavam
A propósito, observemos que, enquanto tão depressa que eu nem tinha tempo de
várias mentes brilhantes dos séculos XIX pensar: Adormeço” (PROUST, 2006, p.
e XX estavam buscando uma ciência da 16). A partir de Proust e Freud, o
“vida real”, da “vida desperta”, Freud alça adormecer, os sonhos, o devaneio e suas
voo aos recônditos obscuros do sonho e vicissitudes entram definitivamente em
Proust singra rumo aos mares abstrusos do cena nas mais diversas investigações
devaneio, do sono. acerca do homem.
Do corpus teórico ao romance

E eis que, tendo Deus descansado no sétimo dia,


os poetas continuaram a obra da Criação.
Mario de Quintana (1998, p. 6)

Em seu ensaio Três ensaios sobre a teoria valida o conceito de psicossexualidade,


da sexualidade, Freud irá nos situar com em Freud, isto é, este não deve ser
relação à infância, pois, até então, reduzido ao sexo [anatômico], e nem a
pensava-se que este momento fosse um psicanálise é uma “terapia sexual”:
estágio desprovido de sexualidade. Em psicanálise, o conceito do que é
Todavia, segundo o autor, “as crianças são sexual abrange bem mais; ele vai mais
capazes de todas as funções sexuais abaixo e também mais acima do que
psíquicas e de muitas das somáticas e que seu sentido popular. Essa extensão se
é errôneo supor que sua vida sexual só justifica geneticamente; nós
comece na puberdade” (FREUD, 1996, p. reconhecemos como pertencentes à
77). O psicanalista dirá que, ao contrário, vida sexual todas as atividades dos
o infante deve ser tido como um perverso sentimentos ternos que têm os
polimorfo, uma vez que obtém prazer das impulsos sexuais primitivos como
mais diversas formas. Esta afirmação fonte, mesmo quando esses impulsos
se tonaram inibidos com relação a seu

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fim sexual original, ou tiveram de complexidade da alma humana. “O poeta
trocar esse fim por outro que não é ou escritor de ficção é admirado por Freud
mais sexual. Por essa razão, como detendo um saber sobre o homem
preferimos falar em muito mais direto que aquele arduamente
psicossexualidade, colocando assim
obtido pelo analista na busca de
ênfase sobre o ponto de que o fator
mental na vida sexual não deve ser
conhecimento [...]” (RIVERA, 2005, p.
desdenhado ou subestimado (FREUD, 8).
1996: p. 137). Ora, no primeiro livro de Proust, a
Desse modo, de certa forma, o sexualidade infantil é tratada por várias
psicanalista vienense irá retirar a infância vezes. Tomemos, por exemplo, os
do âmbito “mágico” e trará esse momento momentos nos quais a personagem
como um estágio vivo, verdadeiramente Gilberte, filha de Swann, faz gestos
“turbulento”, momento este em que a obscenos durante a obra. Além disso, e
criança e o adolescente vivem diversos não menos importante, temos a cena
conflitos, não obstante, tal como mostrado fantástica do beijo tão esperado por parte
acima, com a presença marcante da do autor, vindo de sua mãe. Um
sexualidade. Inclusive, um dos efeitos verdadeiro romance sobre a extrema
dessa sexualidade na criança é o próprio fragilidade humana frente a esse estranho
Complexo de Édipo. Lembremos que, ao sexual. Vejamos abaixo:
forjar esse conceito, Freud busca Quando subia para me deitar, meu
influência nas leituras da tragédia grega único consolo era que mamãe viria
de Sófocles, Édipo Rei, na literatura beijar-me na cama. Mas tão pouco
inglesa de William Shakespeare, Hamlet, durava aquilo, tão depressa descia ela,
e na literatura russa de Fiódor que o momento em que a ouvia subir
Mikhailovich Dostoievski, Os Irmãos a escada e quando passava pelo
Karamazov. O psicanalista percebe as corredor de porta dupla o leve frêmito
várias possibilidades de enriquecimento de seu vestido de jardim, de
mútuo entre a criação literária e a musselina branca, com pequenos
festões de palha trançada, era para
psicanálise.
mim um momento doloroso.
Toda uma série de sugestões se Anunciava aquele que viria depois,
originou para mim do complexo de em que ela me deixaria, voltando para
Édipo, cuja ubiquidade vim baixo. Assim, aquela despedida de
percebendo pouco a pouco. Se a que tanto gostava chegava eu a
escolha ou a criação desse tema desejar que viesse o mais tarde
horrível sempre fora enigmática, possível, para que se prolongasse o
assim como o efeito perturbador de tempo de espera em que mamãe ainda
sua representação poética e a própria não aparecia. Às vezes, quando
natureza de tais tragédias do destino, depois de me haver beijado, abria a
tudo se explicava mediante a porta para partir, desejava dizer-lhe
percepção de que ali fora apreendida “beija-me ainda outra vez”, mas sabia
uma lei geral do funcionamento que logo seu rosto assumiria um ar de
psíquico em toda a sua significação zanga, pois a concessão que fazia a
afetiva (FREUD, 2011a, p. 152). minha tristeza e inquietude, subindo
para levar-me aquele beijo de paz,
Freud intui que o Dichter é capaz de irritava a meu pai, que achava esses
antever o inconsciente por meio da ritos absurdos, e ela, que tanto
Literatura; afinal, embora usem caminhos desejaria fazer-me perder a
diferentes, o poeta e o psicanalista partem necessidade e o hábito daquilo, longe
do mesmo lugar, ou seja, trabalhar a estava de deixar-me adquirir o novo

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costume de pedir-lhe, quando já se A eterna busca pelo objeto perdido:
achava com o pé no limiar da porta, sujeito faltoso e desejo
um beijo a mais. E vê-la incomodada
destruía toda a calma que me trouxera
um momento antes, quando havia
inclinado sobre meu leito sua face “[...] agora todas as flores de nosso jardim
amorável, oferecendo-a como uma e as do parque do Sr. Swann,
hóstia para uma comunhão de paz, em e as ninfeias do Vivonne, e a boa gente da
que meus lábios saboreariam sua aldeia
presença real e ganhariam a e suas pequenas moradias
possibilidade de dormir (PROUST, e a igreja e toda a Combray e seus arredores,
2006, p.21). tudo isso que toma forma e solidez,
saiu, cidade e jardins, de minha taça de chá”
Assim sendo, percebemos que, para Marcel Proust (2006, p. 41)
ambos os autores, o inconsciente, ou esse
campo de sensações evocado de maneira A certa altura da leitura do primeiro
involuntária, é circunscrito pela volume de Proust, o leitor atento percebe
sexualidade infantil. “Esse vaivém que há "constatações psicanalíticas" na
tornado possível entre a consciência e um obra. De certo modo, na verdade, Proust,
outro mundo assumirá os mais diferentes podemos dizer que na esteira de
nomes: memória involuntária Nietzsche, antecede conceitos
inconsciência, partes da alma, etc. [...]” psicanalíticos décadas à frente de seu
(WILLEMART, 2000, p. 29). Ora, o beijo tempo; vejamos o porquê.
tão esperado da mãe – lembremos que
Freud nomeará a boca como uma das O psicanalista francês Jacques-Marie
zonas erógenas do corpo, isto é, zonas nas Émile Lacan, em seu quarto seminário,
quais a sexualidade é mais sensível – intitulado A relação de objeto, tratará
“encontra-se à flor da pele”. sobre a falta constituinte do sujeito. Em
seu retorno a Freud, Lacan nos chamará
Portanto, enquanto o vienense Sigmund atenção para o objeto faltoso: “em Freud,
Freud nos falará a respeito da sexualidade fala-se, é claro, de objeto. A última
infantil e seus efeitos no inconsciente, o divisão dos Três ensaios sobre a teoria da
francês Marcel Proust dissertará, em seu sexualidade se chama, precisamente, A
romance, acerca da sexualidade infantil e descoberta do objeto” (LACAN, 1995, p.
seus atravessamentos. Além, claro, de 12).
outras questões que não nos cabe
enumerar neste breve artigo. Além do Tomemos então este trecho do livro
mais, abrimos um “parêntese”, nesse proustiano:
momento da escrita, parra sublinhar que
É assim com o nosso passado.
como dito nas páginas acima, o
Trabalho perdido procurar evocá-lo
enriquecimento entre psicanálise e todos os esforços da nossa
literatura foi farto e mútuo, logo, Proust inteligência permanecem inúteis. Está
não foi o único a ser influenciado e, quiçá, ele oculto, fora do seu domínio e do
influenciar a psicanalise, é nítida a seu alcance, nalgum objeto material
influência entre outros tantos literatos, (na sensação que nos daria esse objeto
filósofos, sociólogos, etc. material) que nós nem suspeitamos.
Esse objeto, só do acaso depende que
o encontremos antes de morrer, ou
que não o encontremos nunca
(PROUST, 1982, p. 31).

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Ora, tal como Lacan posteriormente tempo de parar, parece que está
apontará, esse objeto nos assinala a nossa diminuindo a virtude da bebida. É
falta constituinte e, consequentemente, claro que a verdade que procuro não
nossa condição desejante no circuito está nela, mas em mim (PROUST,
pulsional. Proust também indicou essa 1982, p. 44).
condição humana. Desse modo, é exatamente quando a
Ao pegarmos este parágrafo de Proust pulsão se depara num tênue espaço
citado acima, se trocarmos a palavra daquilo que tampona o objeto que se
“oculto” por inconsciente, quiçá, teríamos opera tal ilusão de encontro, isto é, o que
uma descrição psicanalítica sobre a fadada conhecemos por "felicidade":
condição errante do desejo humano. Freud tinha situado a origem do ser
Corrobora com a argumentação deste humano na fusão inicial com a mãe
diálogo o psicanalista Phillipe Willemart: que representa o máximo da
incorporação gozante, em que todos
O narrador tem uma concepção
os poros da pele estão concernidos. A
bastante surpreendente do desejo.
criança aconchegada no útero materno
Representando uma topografia do
é o paradigma. A vida tenta
desejo com uma grande estrada com
reencontrar inconscientemente essa
atalhos, distingue dois tipos de desejo:
sensação primordial de todas as
os desejos gerais, que poderiam
maneiras possíveis. A teoria
equivaler ao desejo do objeto perdido
psicanalítica conceituou esta busca
de Freud, e o desejo particular, que se
como a procura do objeto perdido,
refere a uma pessoa determinada
perdido porque é impossível de ser
(WILLEMART, 2002, p. 139).
atingido. Irreal portanto, e situado no
Para melhor análise, comparemos este registro Imaginário, o gozo
parágrafo, novamente, com uma impossível é descrito por Lacan como
apreciação psicanalítica. Na teoria uma alucinação fundamental.
psicanalítica, a "felicidade" versa na leda (WILLEMART, 2000, p. 114).
ilusão da incidência do objeto com a Destarte, percebamos que, embora este
pulsão. objeto “venha” do passado mítico, nossa
Logo, a imposição basal do princípio do eterna tentativa de reencontro com ele o
prazer de busca da felicidade jamais será recoloca constantemente na esfera de um
plenamente realizada, por mais que o futuro, de um porvir, na cadeia
sujeito utilize seus esforços, pois a significante do sujeito.
felicidade consiste num mero momento Em outras palavras, aponta Proust:
efêmero de satisfação pulsional, sendo
como tal somente uma manifestação Tentamos achar nas coisas, que por
episódica. Notemos estas teorizações à isso nos são preciosas, o reflexo que
nossa alma projetou sobre elas, e
frente de seu tempo na pena do escritor
desiludimo-nos ao verificar que as
francês: coisas parecem desprovidas, na
Senti que (a alegria) estava ligada ao natureza, do encanto que deviam, em
gosto do chá e do bolo, mas que o nosso pensamento [...] (PROUST,
ultrapassava infinitamente, não devia 1982, p. 56).
ser da mesma natureza. De onde
vinha? Que significava? Onde Isso posto, se o objeto sexual primordial
apreendê-la? Bebo um segundo gole foi perdido, toda tentativa de reencontrá-
que me traz um pouco menos que o lo está fadada ao fracasso, não passa de
segundo, um terceiro que me traz um um “teatro de sombras”. Ora, é o que
tanto menos do que o segundo. É Proust parece nos apontar no parágrafo

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acima. Desse modo, observemos que, se é Referências
que podemos falar de um discurso BENJAMIN, Walter. A imagem de Proust.
proustiano, este faz profícuos diálogos In.______. Magia e técnica, arte e política:
com o discurso psicanalítico; ambos ensaios sobre a literatura e história da cultura.
8.ed. revista. Obras Escolhidas v.1. São Paulo:
trabalham a seu modo as questões do
Brasiliense, 2012.
desconhecido, inconsciente ou memória
involuntária, e também contemplam a FREUD, Sigmund. Autobiografia (1925).
In.______. O Eu e o Id, autobiografia e outros
falta constituinte do ser e sua consequente textos: volume 16. São Paulo. Companhia das
estrutura desejosa. letras, 2011a.
Observemos que o último volume da série ______. O Eu e o Id. (1925). In.______. O Eu e o
de Proust tem como título o tempo Id, autobiografia e outros textos: volume 16. São
redescoberto (também traduzido como Paulo: Companhia das letras, 2011b.
recuperado), que nos remete ao objeto ______. Psicanálise silvestre. (1910). In.______.
faltoso psicanalítico, esse objeto Ed. Standard Brasileira das obras psicológicas
primitivo, contudo, sempre memorável. completas de Sigmund Freud. v. XI. Rio de
Janeiro: Imago, 1996.
Para Benjamin (2012, p. 47), ______. Três ensaios sobre a teoria da
“acompanhar a interação entre sexualidade. (1905). In.______. Ed. Standard
envelhecimento e rememoração significa Brasileira das obras psicológicas completas de
penetrar no coração do mundo proustiano Sigmund Freud. v. VII. Rio de Janeiro: Imago,
[...]”. Há uma filosofia sobre a falta 1996.
inerente à condição humana na GAY, Peter. Freud: uma vida para o nosso tempo.
psicanálise, por sua vez, há na escrita 2.ed. São Paulo: Companhia das letras, 2012.
proustiana um romance trágico acerca da LACAN, Jacques. O Seminário: Livro 4: A
falta. relação de objeto. (1955-56). Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1995.
Dois autores, duas experiências de vida,
PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido:
duas nacionalidades e um caminho repleto no caminho de Swann. 5. ed. Tradução Mário
de incidências. Apesar de aparentemente Quintana. Porto Alegre: Editora Globo, 1982.
os dois gênios nunca terem se encontrado,
PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido:
ambos discursam sobre o “inconsciente”, Volume I: No caminho Swann (1871-1922).
acerca de uma “memória involuntária”. Tradução de Mario Quintana. 3.ed. rev. São Paulo:
Globo, 2006.
Por fim, ressaltemos uma vez mais que
não é intenção desta escrita psicanalisar QUINTANA, Mário. Caderno H. São Paulo:
Proust e muito menos diminuir sua obra a Globo, 1989.
um discurso psicanalisado; porém, fica RIVERA, Tania. Guimarães Rosa e a
tácito que aproximações entre a obra psicanálise: ensaios sobre imagem e escrita. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
proustiana e a psicanálise são passíveis de
serem construídas. Assim como também WILLEMART, Philippe. Educação Sentimental
não é intuito deste artigo afirmar que em Proust. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002.
Proust foi o único a influenciar e ser ______. Proust, Poeta e Psicanalista. São Paulo:
influenciado pela psicanálise, apenas Ateliê Editorial, 2000.
sublinhamos os possíveis diálogos entre
esses dois intelectuais, dentre as várias Recebido em 2016-11-29
perspectivas possíveis. Publicado em 2017-07-06

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