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Estamos encaminhando o Resumo 

do trabalho “Bion
↔Thomas Mann, um breve comunicado” de Orlando
Hardt Junior. Esse trabalho será apresentado em
Reunião Científica da SBPSP, dia 30/11/2006 (quinta-
feira) às 21:00, Sala Lygia Alcântara do Amaral. Av. Dr.
Cardoso de Melo, 1450/9º andar. Terá como
Comentador Leopold Nosek.

"BION ↔ THOMAS MANN, UM BREVE COMUNICADO"

Orlando Hardt Junior

RESUMO

O autor parte de uma relação entre dois romances escritos pelo literato Thomas Mann e
a teoria do pensamento de Bion. Tendo como referências os mitos da busca do conhecimento
proibido dos quais tanto Bion como Mann se utilizaram, e a familiaridade de Bion com a
literatura, são tecidas algumas analogias entre a teoria do pensamento de Bion e a obra A
gênese do doutor Fausto: romance sobre um romance, um making of  literário de Thomas
Mann.

1
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

BION e THOMAS MANN, UM BREVE COMUNICADO*

Orlando Hardt Jr.**

*
Este trabalho será apresentado em Reunião Científica da SBPSP , no dia 30 de novembro de 2006 (quinta-feira) às
21:00h, Av. Dr. Cardoso de Melo, 1450/9º andar – Sala Lygia Alcântara do Amaral. Terá como comentador: Leopold
Nosek.
**
Membro Associado da SBPSP.

2
BION e THOMAS MANN, UM BREVE COMUNICADO

Orlando Hardt Jr.

Introdução

Este texto aproxima, de maneira intuitiva, um ponto em comum no trabalho destes


dois homens: um making of literário de Thomas Mann, prêmio Nobel de Literatura, em
associação com conceitos teóricos de Bion.
Inicialmente, aponto uma similitude entre os antigos mitos de busca do saber: Édipo,
torre de Babel, cemitério de Uhr, Éden, estudados em psicanálise respectivamente por Freud
e Bion, e o mito literário de Fausto 1, utilizado pelo romancista Thomas Mann em seu livro
Doutor Fausto. A partir deste ponto, proponho dois conceitos da teoria bioniana, a busca de
K e o tornar-se 0, também ligando-os aos dois romances citados.
Examinando alguns trechos do making of literário de Thomas Mann, Romance sobre
um Romance, a respeito de sua obra anterior, Doutor Fausto, surgem mais alguns elementos
da teoria do pensamento de Bion, da qual privilegio o estudo da categoria que está na linha C
da grade bioniana.2

Literatura e Psicanálise

Presumo que o mito de Fausto tenha sido ideal para Thomas Mann expressar
verdades, assim como fazem todos os mitos, por meio da apresentação de um personagem
que carrega em si o sofrimento de uma época. Tecnicamente utilizado pelo literato, este mito
foi a “ferramenta para encontrar fatos” na política, na música, na realidade e na ficção, para
descrever, assim, tanto uma condição pessoal, como também o ambiente mundial em que
estava mergulhado naquele momento, do final da Segunda Guerra e da rendição eminente da
Alemanha.
Através da criatividade dá se a aproximação entre duas categorias do pensar, a
literatura e a psicanálise. Ou, será que não podemos entender a literatura, tanto quanto a

1
Em 1530 foi publicado em Frankfurt, o livro “História do Doutor Fausto, o Jovem, Astrônomo, segundo em
Hidromancia, Philosophus Philosophorum, Semideus de Heidelberg, que fez arranjos com feiticeiros e
necromantes”. Inúmeros autores produziram peças teatrais, livros e óperas a respeito de Fausto. Na Europa, o
mito de Fausto tornou-se tão popular que, no final do século XVI, surgiram representações teatrais freqüentes
sobre a história desse homem, meio homem-meio mago, meio alquimista, meio charlatão. Depois, C Marlowe
foi o primeiro dramaturgo a dar nova dimensão a esse herói empenhado na luta para compreender o misterioso
sentido da existência. Goethe tinha pouco mais de vinte anos, ao escrever sobre a história de Fausto. De 1797 a
1832 entregou-se à tarefa de escrever o seu Fausto. Em Goethe, Fausto não queria dominar o conhecimento, mas
entender os limites da compreensão humana até o ponto de abarcar o universo inteiro. Acima de tudo, aspira
viver a felicidade. Tão remota lhe parece, essa possibilidade, que ele se dispõe a entregar a alma ao demônio, em
troca do atendimento desse desejo.
2
Pensar o pensamento é um fenômeno do qual vários filósofos já trataram e Bion, numa tentativa de abordar a
gênese da psique, em seu livro “Learning from Experience” (1962), descreve a maneira como o pensamento
evolui para a abstração e a complexidade, a partir de fontes experimentais rudimentares. O pensamento é o seu
objeto de estudo, e para isto conceitua a função α , de início uma misteriosa expressão designadora de função
simbólica, essencial para o registro, a comunicação e a elaboração das experiências do desenvolver do pensar.
Mais para frente, avançou em um novo método de notação científica para os fenômenos mentais, criando um
sistema abstrato que aguçaria a capacidade de observação e esclarecimento do trabalho analítico, que designou
Grade.

3
psicanálise, como decorrência de um pensar sobre si mesmo, de um apresentar-se apresentar
a natureza humana e o universo?
A Literatura também poderia ser entendida como decorrência de uma mente
pensando a respeito de si mesma, e também se apresentando? Apresentando também, a si
mesmo, a natureza humana e o universo?

Bion e Mann

Para Bion, a literatura era algo muito familiar. Durante dois anos, tratou de Samuel
Beckett, então futuro prêmio Nobel de Literatura (1969), numa experiência enriquecedora
para ambos. Segundo alguns autores (Bléandanu, 1990), Bion e Beckett teriam personificado
gêmeos imaginários, um do outro. Anzieu supôs que Beckett “transpôs boa parte da sua
vivência psicoterápica para a sua obra romanesca”.
Assim, supõe-se que Bion estivesse a par tanto de colapsos com mecanismos
psicóticos como do colapso que é a criatividade na literatura. Bion retornou aos primórdios
da Psicanálise, estabelecendo um elo entre psicanálise e arte, fazendo a descrição literária do
caso Dora; logo, a integração de componentes psicológicos ao gênero literário era-lhe algo
familiar.
Em 1965, Bion passa a examinar detalhadamente as possibilidades de comunicações
em psicanálise. Descreve sua contribuição em “cercar a verdade” por intermédio da teoria
das transformações; criou o termo vínculo K, para aprofundar os processos do conhecimento.
Ele procurou um sentido, através desta teoria, para as situações em que um colapso
psicológico fosse analiticamente controlado, como em um paciente grave.
Foi no exílio, enquanto a Alemanha agonizava que Thomas Mann escreveu seu livro
relatando a vida de um artista genial calcado no mito de Fausto. Seu personagem alimenta
ambições imensas de obter o poder criador e escrever a nova música dodecafônica; para
tanto, fez um pacto diabólico, que lhe garantiria este saber. Logo após, em julho de 1948, o
escritor Thomas Mann principiou mais um livro, A gênese do Doutor Fausto - Romance
sobre um romance.
Sob este título, o autor reconstitui o processo de elaboração e esmiúça a história de
seu livro Doutor Fausto, revelando a participação do pensamento na arquitetura do romance,
sua carga autobiográfica e seu próprio cotidiano enquanto concebia sua obra da maturidade.
Nesse livro, além de retratar suas pesquisas, comenta amplamente o processo de criação, fato
de interesse para o escopo deste trabalho. O personagem é sua mente trabalhando.
Segundo o escritor, nesse seu livro haveria uma “confissão direta”; entretanto,
suponho que pode ser muito mais do que isto: um literato está revelando a singularidade de
uma experiência produtiva, que contém elementos que o levarão à conjectura sobre o mito
que utilizou.
No Romance sobre um Romance, a Gênese do Doutor Fausto, a teoria bioniana das
transformações pode ser percebida com relação ao colapso psicológico ocorrido no processo
criativo de uma escrita; nele, o autor descreveu as invariantes que precederam sua catástrofe
criativa, dominado por objetos internos superexcitados; tomado de sintomas hipocondríacos;
fez anotações cuidadosas a respeito do período em que escreveu o livro anterior e as usou
para escrever, posteriormente, Romance sobre um Romance. Tal como nós, analistas,
costumeiramente fazemos anotações a respeito dos nossos casos clínicos, úteis para enunciar
problemas e delinear soluções, em busca de uma expansão do pensamento, de definições e
de registro. Assim também ocorreu com as anotações desse escritor enquanto pesquisava os
elementos para escrever Doutor Fausto; em ambas as situações, a teoria das transformações

4
esteve presente como uma forma de iluminar o pensar, uma forma de pensar sobre o
pensamento.

Mito, “noite de trevas” ou transformação K => 0

Os mitos, tanto para Freud quanto para Bion, foram modos de abordagem do
conteúdo do pensamento. Se a importância do mito de Édipo fundamenta a Psicanálise, Bion
enfatizou no entendimento deste mito, algo que perseverava por detrás do crime edípico: a
busca intelectual que levou Édipo à desgraça.
Bion estudou vários mitos e afirmou que a produção mítica é uma função de α3.
Encontrou modelos comuns e primitivos para a explicação da busca do
desenvolvimento mental, tanto no mito edipiano quanto nos mitos de Babel, no mito do
cemitério real de Uhr, nos mitos de Éden e de Prometeu, pois quando o conhecimento
buscado é proibido, terá que ser decifrado, descoberto e para isto, nestes mitos, o homem
tenta entrar nos céus, roubar o fogo, comer a maçã, saquear de maneira obstinada,
desconsiderando interdições e punições.
Bion também encontrou nestes temas, os subsídios para continuar a pensar as teorias
psicanalíticas. Observou que uma entidade tida como alguma deidade pertencente à uma
ordem moral superior se oporia à obtenção do conhecimento aspirado pelo homem, e a
apropriação do saber resultaria sempre em expulsão, exclusão ou perda; como conseqüência,
estimularia desejos interditos. Mais tarde, o psicanalista passa a interpretar o mito da Torre
de Babel, “usando essa história do mesmo modo que um cientista poderia usar uma formula
matemática disponível”.
Bion, na grade em que ordena as categorias do pensar, dispõe o domínio mítico numa
noção temporal C, que acolheria os pensamentos oníricos, os sonhos e os mitos.
“Deve haver muitos mitos como este, que não foram reconhecidos de modo algum,
que deixam de lado alguma historia improvável ou uma história na qual o ouvinte não
deseja acreditar como se fosse um ‘mito. No momento não podemos dizer como os mitos
começaram, nem somos capazes de observar o processo de formação do mito operando
dentro de nós, caso exista algum. Se um indivíduo, algum gênio anônimo, inventou um mito,
então podemos supor que o processo caracteriza-se pelos seguintes passos: o indivíduo tem
uma experiência emocional, ela é transformada por α; ela é publicada.” (Cogitações p 234,
5)
Encontramos estes mesmos componentes, capazes de refletir elementos próprios da
psicanálise, no mito literário de Fausto.
Assim como Bion propôs que estes mitos antigos faziam parte da nossa herança
humana, permitindo-nos tomar contato com os nossos ancestrais, neste caso, através de um
mito literário, um escritor demonstrou que elementos dispersos, uma vez agregados,
reconstruiriam a compreensão possível de uma das mais turbulentas e fascinantes épocas da
humanidade, tanto na concepção de idéias filosóficas, científicas, artísticas, quanto em
perseguições sociais, que mudaram o curso da história.
Segundo Bion, teríamos em nós um mito particular, uma versão pessoal que
permitiria tomarmos contato com nossa origem; há outros mitos que poderiam ser agrupados
em uma escala ascendente, que seriam mitos de significância nacional, até mitos universais,
3
Uma impressão sensorial é transformada através da função α para ser adequada ao pensamento onírico e, assim,
utilizada na produção do mito.

5
como o mito de Édipo, torre de Babel, que atingiriam áreas muito amplas do pensamento da
humanidade, repetindo-se através dos tempos. O indivíduo capaz de, graças à função α,
transformar tal experiência emocional em material passível de armazenamento, comunicação
e publicação, deve pertencer à categoria que chamamos de gênio. Isto se aplica a T. Mann,
que pôde usar o mito de Fausto como ferramenta para representar a história do nazismo e
depois a derrota e a rendição de uma nação tida como marco do Ocidente.
De início, o mito descreve o personagem tentando harmonizar se consigo mesmo por
meio de transformações que lhe permitem novas expansões mentais. Isto pode ser traduzido
na teoria bioniana por reconciliação ou at one ment4.
Este romance descreve uma minuciosa transformação no personagem que deseja a
imortalidade da fama através da nova teoria musical por ele preconizada. É mais claro
quando dito pelo personagem “que os vestígios de meus dias, na terra passados, nem em
milênios fossem apagados.”
Ao final, este conhecimento configura-se como algo estruturalmente
dramático do personagem. Em cada ato descrito, ele quer ser a verdade última, ser “0”. Este
processo de mudança adviria de um desejo narcísico inconsciente de encarnar “0”, uma
estrutura já mencionada nos antigos mitos descritos e utilizados por Bion, no mito de Babel,
por exemplo.
Foi com uma grande pertinácia que Bion sugeriu a inacessibilidade de “0” em defesa
da verdade, ou seja, como reconhecimento das limitações da própria Humanidade. Assim,
desenvolve-se perante a frustração e na ausência do seio o paradoxo do personagem humano
que na gênese dos pensamentos se sente como um deus, tendendo a desejar ser tudo,
inclusive o próprio seio, decorrendo daí, a culpa, a desgraça. (Matte Blanco, 1975.).
Vir a tornar-se “0”, é uma mudança “catastrófica” associada a um estado emocional
descrito exemplarmente no romance de Thomas Mann como próximo ao terror. Terror este
que para Bion provém da verdade com a qual se tem que lidar quando da aproximação de
“0”., na medida que um pacto se cumpre com o demônio.
Este mito corrobora, de forma magistral e universal, através deste literato, à
semelhança de Bion, que o pensamento, em suas origens, é uma experiência de natureza
estruturalmente catastrófica, e, também é verdade que sua tarefa é de organizar, transformar
e desdobrar no espaço-tempo finito a catástrofe infinita.

Um CURIOSO “MAKING OF”

.
Para Freud um analista deve ser um cuidadoso arqueólogo em busca das riquezas
simbólicas em meio aos escombros psíquicos; Thomas Mann também o foi ao investigar
suas próprias idéias e apontamentos em seus diários quando escrevia esta obra da sua
maturidade. Havia um fascínio pela origem de seu próprio pensamento que o intrigava,
decerto queria conhecer as razões que o fizeram escrever Doutor Fausto; havia ali uma
profunda reflexão sobre a própria subjetividade. Seu romance sobre o romance continha um
grande interesse em descobrir o enigma do primeiro e, talvez a gênese de seu próprio pensar.
Um making of é uma descrição dos bastidores da fatura de uma obra, filme, ou
produção artística humana, e, sempre é curiosa e instigante por ser reveladora de um
processo criativo da mesma forma que um sonho ou uma sessão psicanalítica também seriam
um making of do processo do pensar.

Este termo guarda implicações de compaixão, restauração, sentimentos presentes na posição depressiva.
4

6
Embora este artigo aparente tratar de literatura, não o faz, pois aproveitamos
do escritor, este ser curioso que nos surpreende, como disse Freud, para empreender um
trabalho de reflexão sobre a origem do pensamento, primeiramente sobre a aplicação e uso
de um mito para entender e descrever uma realidade interna e depois o uso do making of para
pensar o próprio pensamento.
Este segundo livro de Thomas Mann, mostra com relevância o que acontece
em uma criação; uma mudança, na qual, de um estado informe, imagens e idéias dispersas ou
caóticas, passam para um estado no qual a coerência fica manifesta e há uma nova
compreensão para o autor. Talvez tenhamos observado uma genial síntese de Ps <=>D que
este literato nos legou. Esse movimento em descendência na grade é descrito literariamente
através de uniões de pré-concepções que se tornam concepção, resultando daí numa nova
pré-concepção.
Utilizamos deste livro para intentar revelar um processo de continuidade que
impulsiona uma ruptura, e diante dela o leitor tem uma dupla perspectiva: a que precede a
cesura e a outra que a sucede, Recorreremos à Psicanálise, como reflexão, não como um
método de investigação de um cientista; não se pode garantir a verdade das interpretações,
isto nunca ocorre na psicanálise, apenas fazemos um trabalho de reflexão para promover o
sentido da experiência.
Pensar o pensamento não é um fenômeno tão recente, vários filósofos
já trataram a conceituação deste assunto, mas Bion em seu projeto epistemológico descreve
uma tentativa de abordar a gênese da psique. Em seu livro “Learning from Experience”
(1962), descreve a maneira como o pensamento evolui para a abstração e a complexidade a
partir de fontes experimentais rudimentares. O pensamento acaba sendo um objeto de
estudo; para tanto, utilizou uma ferramenta denominada a função α, de início uma misteriosa
expressão designadora de função simbólica essencial para o registro, a comunicação e a
elaboração das experiências do crescimento. Mais para frente avançou em um novo método
de notação científica para os fenômenos mentais, criando um abstrato sistema que aguçaria a
capacidade de observação e clarificação uma reflexão para o trabalho analítico.
É possível que contido no segundo romance, versando sobre o anterior, existam
exemplos de transformações que comprovariam estes fatos acima. Existe um método de
comunicação que liga um romance com o seguinte além das aparências sensorialmente
percebidas; os limites do conhecimento são descritos assim como também são descritas as
frustrações e seus limites. Acreditamos que os livros do late Bion ofereçam não somente um
método psicanalítico de validação das interpretações, mas, também um aperfeiçoamento que
ainda não foi devidamente observado e utilizado. Assim como faz o psicanalista, um escritor
tenta vencer as dificuldades inerentes à observação de experiências independentes dos
sentidos. Para reformular estes percalços, tanto um como o outro recorrem às palavras e
construções de frases, que se prestam ainda a uma outra tarefa, pois segundo Bion, a
linguagem pode ser feita para dissimular, como também para encontrar a verdade e
compartilhá-la com o paciente ou leitor.
A teoria do pensamento de Bion foi concebida em 1962, e considera os
“pensamentos” epistemologicamente anteriores à “atividade do pensar”. Ressalva que a
capacidade de pensar permite ao homem protelar a ação, suportando a espera ante o
momento em que surge o desejo e o momento apropriado de agir para satisfazê-lo. A remota
origem do pensamento nesta atividade livra a psique do acúmulo de excitação. Desta forma,
seria possível, temporariamente, cindir partes indesejadas da personalidade e dispô-las em
outro espaço; Bion considerava que a psique é obrigada a pensar, pois se deparava com
pensamentos que antecedem a própria existência dela.
Thomas Mann constrói uma grade bioniana neste livro sobre Doutor Fausto.
Classifica seus pensamentos segundo um desenvolvimento cronológico, deixa claro um

7
momento de preconcepção no livro supracitado. Mostra também, desde o início que a
preconcepção encontrando uma realização que dela se aproximou, faz aparecer daí a
concepção. As concepções estão descritas neste livro como ligadas com uma experiência
emocional de satisfação. “Mas é a partir de meus breves apontamentos, diários daquela
época, que vou procurar reconstruir a história do Fausto, inserida que foi no tumulto e na
emergência dos acontecimentos externos para mim e para meus amigos”. 5
Segundo Bion, “a incapacidade para juntar dados sensoriais produziria um estado
mental de debilidade, como se a privação da verdade fosse análoga á privação de
alimento”...
Este segundo livro, um making of do romance Dr. Fausto, desempenharia, portanto
um papel semelhante ao da função α, peça chave, pois, por intermédio dela pode ser descrito
o processo de conhecimento atuando sobre elementos sensoriais, e, sobre todas as emoções
vividas pelo autor. Assim como Bion, Thomas Mann descreveu em si um aparelho hipotético
de transformar os dados sensoriais em pensamentos oníricos, também transformando
pensamentos inconscientes de vigília. Assim como a função α atua sobre impressões
sensoriais e sobre as emoções do autor durante o processo de escrita, essa operação produziu
elementos α que foram armazenados e depois utilizados:
“Que estranha emoção provoca em mim o breve apontamento do dia seguinte”! Ele
indica um novo contato com Trabalhos de Amor perdidos e conservam uma passagem da
comédia, os nefastos versos: “Onde forma confusa faz de forma festa / Perecem vindos à luz
tantas grandes obras” 6
Bion inclui a capacidade de ter imagens visuais entre fatores da função α. Um fator
importante que torna possível um armazenamento, pois as imagens visuais também são
notações. Elementos α agregam-se, separam-se, novamente se agregam em uma forma
dialética e assim infinitamente. Trata-se de uma experiência na qual a coerência e a
separação nunca são notadas. Em dado momento os elementos α são algo e em outro, já não
o são. Como um sonho: pode ou não ser recordado.
T. Mann não conseguia ir mais longe em sua descrição. Essas experiências relatadas
ao longo do livro são, de início, de difícil definição para o autor, pois falta o próprio
processo que as tornará compreensíveis. Nomeadamente ainda a função α estaria a faltar.
Nota-se a apreensão do autor. Havia dentro dele ainda uma massa informe que não podia ser
elaborada, fenômenos não pessoais inanimados (elementos beta), que a função α
transformaria em experiências subjetivas: “meus apontamentos daquela época não revelam o
momento em que decidi utilizar a “amizade” como mediação entre mim e o assunto do
livro...” 7 e “quando comecei a escrever naquela manhã de domingo – mesmo que meus
apontamentos não o indiquem, e mesmo que eu não dispusesse de um esboço escrito
concreto – já deviam estar evidentes e manifestos ante meus olhos o desenrolar do livro
inteiro e seus episódios específicos, já devia ter claro em mente que conseguiria, desde o
princípio, trabalhar no complexo temático in totum, imprimindo, já no início, a
profundidade da perspectiva geral....” 8

5
P.12
6
P. 82
7
P.30
8
P. 34

8
Making of <=> Transformações

Ao escrever “Romance sobre um Romance, a Gênese do Doutor Fausto”, seu autor


desejou a construção de um novo conhecimento sobre seu livro anterior, embora soubesse
que isto poderia não ser atingido, pois o pensar, importante como reflexo da construção de
um mundo que temos desenvolvido internamente, está num processo oscilatório constante,
que nem sempre nos leva ao novo conhecimento. Jamais saberemos o real motivo que levou
o escritor a publicar o segundo romance tornando o primeiro um personagem; talvez
estivesse procedendo como Freud em seu ensaio sobre Moisés, no qual este estava
interessado em descobrir o enigma da escultura, isto é, as intensas emoções de terror e de
admiração que aquela escultura lhe despertava. Thomas Mann, decerto, considerava sua obra
literária como um episódio ainda oculto que também precisaria ser reconstruído, ou se
conduzia como seu personagem, querendo mais saber. Traduzia a sua experiência emocional
em palavras, por desejar descrevê-la para alguém, algum interlocutor.
Vivencia-se, segundo Bion, a sensação de estar com a verdade, se a visão de um dado
objeto, odiado, puder unir-se à visão do mesmo objeto quando amado, e tal conjunção
confirmar que o objeto experimentado sob emoções distintas é o mesmo objeto. Obtém-se
assim, uma correlação, importante função de comunicação. À medida que a comunicação
entre ambos os livros se conserva, e pela combinação de um determinado conjunto de dados
sensoriais eles se conectam e se humanizam, Thomas Mann experimentaria esse senso de
verdade, acima descrito por Bion.
Um fato específico que subitamente possa ter ocorrido ao escritor e que deu sentido
aos elementos díspares anteriormente vividos por ele, foi designado por Bion de fato
selecionado. Antes, uma massa confusa de material de leituras fragmentadas que
inesperadamente... torna-se coerente e compreensível quando o sentido, dado por este fato
selecionado, sobrevém.
Bion utilizou-se de um conceito matemático de Poincaré para propor este conceito:
“... para um novo resultado ter qualquer valor deve ligar elementos há muito conhecidos,
mas até então dispersos e que pareciam estranhos entre si e, subitamente, introduzir ordem
onde reinava a aparência da desordem. Deste modo, permite-nos, com um rápido olhar, ver
cada um destes elementos no lugar que ocupam no conjunto. O novo fato não só é valioso
por si, mas dá valor aos fatos antigos que une. A nossa mente, tal como os nossos sentidos, é
frágil; perder-se-ia na complexidade do mundo se tal complexidade não fosse harmoniosa.
[...] Os únicos fatos merecedores da nossa atenção são aqueles que introduzem ordem nesta
complexidade e a tornam acessível para nós”. 9

Conclusão

Na leitura do livro, “Romance sobre um Romance, a gênese do Doutor Fausto”, tem-


se vários e nítidos exemplos do trabalho da função α:
- elementos em bruto são transformados em imagens visuais internas, advindo daí a
sua importância na decifração do Doutor Fausto,
- elementos díspares são colocados em uma seqüência narrativa e conectados
logicamente de modo linear, como fez Euclides com a Geometria.

9
Poincaré, 1952: 30

9
Este comunicado procura mostrar que o fato de escritores e psicanalistas operarem
com mitos, reafirma a produção mítica como uma função de α, pois têm aspectos do senso
comum, e, transforma uma impressão sensorial tornando-a adequada ao pensamento onírico,
sendo assim utilizada e produzindo o entendimento que os mitos possuem por serem
definidos e comunicáveis.
Explorando ainda a similaridade destes itens acima e função α, na construção desse
romance observamos o material sobre o qual ele atua, tornar-se acessível para a mente;
Thomas Mann narrou os estados emocionais vivenciados, mas era incapaz de nomear ou
descrever um material intrusivo e desconfortável em sua mente, não parecia reconhecê-lo de
imediato como pertencente a qualquer categoria de emoção que conhecesse.
Num período anterior ao início do livro Doutor Fausto, o autor ainda estaria
recolhendo um material aparentemente estilhaçado e incompreensível onde existiam
fragmentos de imagens visuais que eram como fragmentos de fatos percebidos pelos
sentidos, lembrados, mas não assimilados. Não eram ainda imagens pictóricas completas: “...
neste entremeio li coisas como o ensaio de Goethe, Israel no deserto, o Moisés de Freud,
Deserto e Terra Prometida, de Auerbach, passagens do Pentateuco... 10Os livros que li para
o trabalho, formando uma pequena biblioteca, permaneceram em suas prateleiras. A mesa e
as gavetas permaneceram vazias. E, um dia depois, a 15 de março para ser exato, aparece
pela primeira vez nos meus relatórios noturnos no diário quase sem contexto, o selo ‘Doutor
Fausto’, ‘ Exames de velhos papéis para o Doutor Fausto’. Que papéis? Eu mal o saberia
dizer. Mas a anotação do dia seguinte menciona cartas ao professor Arlt da Universidade
da Califórnia pedindo o empréstimo de uma antologia popular sobre o Fausto e as cartas de
Hugo Wolf. Tal combinação deixa entrever certo delineamento e uma idéia antiga e muito
nebulosa que eu vinha perseguindo: pelo visto, tratava-se de uma eclosão, diabólica e
destruidora, numa vida de artista ainda indefinida, mas aparentemente complexa, por meio
de intoxicação. Dia 27, -‘de manhã vasculhando velhos cadernos de notas’...”.
Neste artigo fica a constatação, uma testemunha literária, da alternância que se dá no
processo de pensar. Uma passagem de um estado informe, quando imagens esparsas e idéias
caóticas (Ps) passam para um estado onde a coerência se manifesta e surge uma
compreensão nova (D). Isto nos leva a entender que, através de (Ps<=>D), partindo de idéias
dispersas ou fragmentadas, como descreveu este escritor criativo, podemos chegar a um
sentido, a uma compreensão.
Utilizando os dois livros de Tomas Mann também podemos corroborar alguns
conceitos de Bion sobre a teoria do pensamento,. Do primeiro, Fausto, extraímos o mito que
demonstra uma transformação de K=> O, e a sua conseqüência, - o romance em si -; do
outro livro, Romance sobre um romance, utiliza-se a maneira pela qual o escritor tratou os
seus pensamentos enquanto escrevia seu romance.
O fato selecionado é um instrumento essencial do desenvolvimento, um patamar
entre a posição esquizo-paranóide e a posição depressiva. Através dele revelam-se,
instantaneamente, áreas encobertas de elementos esquizóides que não estavam claramente
relacionados até então e seriam ainda insuspeitos. Um fato selecionado evidencia e põe a
descoberto o material consciente que, submetido ao trabalho onírico, torna-se adequado à
seleção e passível de vir a sofrer transformações de uma posição à outra - PS  D -, um
material pré-verbal inconsciente também estaria sendo submetido ao trabalho onírico para o
mesmo objetivo.
Confesso agora que escrevi este trabalho num curto período de tempo, e sob uma
circunstância especial: - estudava Bion e estava encantado pela leitura de Thomas Mann.
Decerto uma leitura tomava conta da outra, algum texto se fazia.

10
P. 19

1
Numa manhã de domingo, longe da costa, o veleiro em que estávamos teve o casco
rompido e fazíamos água, - um acidente considerável -, quando descobri, de repente, que
seria muita falta de sorte não ter tempo para escrever aquilo que concluíra naquele instante:
cada indivíduo, segundo Bion, tem que tomar uma decisão crucial: evitar a frustração ou
modificá-la através do pensamento. Thomas Mann usou a segunda opção ao escrever seu
romance sobre o romance, e eu me resgatei duplamente: do mar e do meu pensamento. Pude
escrever o que pensara naquela manhã em que velejava, estando o Diabo a bordo.
Mas Bion, no último período de sua vida, dividia-se entre a psicanálise e a literatura.
Tentava ultrapassar a técnica do romance de Joyce, criar uma linguagem capaz de dar conta
da verdade anterior ao nascimento. Equivalendo-se, portanto, ao compositor Leverkhün, e
sua grandiosa aspiração à teoria musical dodecafônica, numa fantástica postura, como
Fausto.

Sumário

O autor relaciona dois romances escritos por Thomas Mann com a teoria do
pensamento de Bion.
Usando de referências como alguns mitos da busca do conhecimento, trabalhados por
ambos os autores, e da familiaridade de Bion com a Literatura, são tecidas analogias entre a
teoria do pensamento deste autor (Bion), com o Romance sobre um romance, um “making of
” literário, que T. Mann escreve a respeito de seu livro Dr. Fausto.

Referências Bibliográficas

Bion, W.R. Transformações: Do aprendizado ao crescimento, tradução Paulo César


Sandler, 2ª’ ed. Rio de Janeiro: Imago Ed.; 2004.

________ Cogitações: [edição Francesca Bion]; tradução Ester Hadassa Sandler e


Paulo César Sandler; Rio de Janeiro: Imago Ed.; 2000

Brunel, P. Dicionário de Mitos Literários, Rio de Janeiro: Ed. José Olympio Ltda.
1988.

Sandler, P. C. A apreensão da realidade psíquica, volume Quatro: turbulência e


urgência – Rio de Janeiro: Imago 2000; p 135.

Mann, T. Doutor Fausto A vida do compositor alemão ADRIAN LEVERKÜHN


narrado por um amigo, tradução Herbert Karo – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

______ - A gênese do Doutor Fausto - Romance sobre um Romance / tradução


Ricardo Ferreira Henrique. – São Paulo: Mandarim, 2001.

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