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m A Prática da

Psicoterapia VOZES

Existencial
JOSÉ CARLOS VITOR GOMES

&
sentido da vida
é um chamamento
interno que

aponta para um
destino e a
vida se apresenta

como uma missão.


Tal sentido
parece funcionar

como uma bússola


interna cuja
orientação está

sujeita à consciência
de que a criatura tem
de sua responsabilidade.
A vida de
VIKTOR EMIL FRANKL
A. poucos m etros do Prater, o m aior e mais bonito parque
de diversões de Viena, encontramos a Czerningasse, uma
pequena rua cujo passeio nos leva ao canal d o Danúbio.

Foi nesta rua, na casa número 6, interior 25, que a fa­


m ília recebeu Viktor, no dia 26 de m arço de 1905. Nascido
em uma fam ília calma e tranqüila, encontrou um clima
acolhedor indispensável ao crescimento humano e espiri­
tual, em uma Viena que havia se transform ado no berço
artístico e cultural da Europa e do mundo.

O senhor Frankl, pai de Viktor, era judeu e ocupava


um cargo im portante no M inistério da Educação, onde fo i
apreciado vários anos pela sua honrosa atuação no papel
de secretário.

A senhora Frankl, polonesa de origem, era m uito tra-


balhadeira, dedicada e serena; boa parceira do velho Frankl
de ar senhorial. Assim, as prim eiras recordações de V iktor
parecem ter sido envolvidas por uma experiência intensa
de paz e de harmonia. Relem bra com doçura dos dias em
que acordava e via seu pai sentado ao pé da cama olhando
calmamente a sua face.

O clima social e político da Europa caminhava para


um conflito e a humanidade seria testemunha da Prim eira
e da Segunda Guerras Mundiais. N a Segunda, o Im pério
Austro-Húngaro fo i invadido por H itler.

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Enquanto a Prim eira Guerra surgia no horizonte, V iktor
Frankl, um menino, continuava a crescer em fam ília, fo r­
mando-se como pessoa livre e, desde cedo, mostrando-se
independente, com idéias próprias e responsável.

Desde m uito jovem , começou a ler com interesse os


escritos de Freud que, naquela ocasião, ganhava im portân­
cia em todo mundo. Contando apenas 16 anos, Frankl, com
receio, dirigiu-lhe uma carta. Pensava que não iria merecer
resposta, mas, para sua surpresa, Freud incentiva-o a es­
crever. Aos 19 anos, Frankl envia a Freud um pequeno arti­
go sobre a m ím ica da afirm ação e da negação que, em
menos de dois anos, seria publicado pela Revista In tern a ­
cional ãe Psicanálise. Tal publicação confirm aria a atenção
do M estre para com o estudante e soava com o um convite
para que o jovem Frankl viesse a interessar-se de maneira
séria e definitiva pela Psicologia.

Continuava Frankl a estudar com atenção os trabalhos


de Freud, dele discordando em alguns pontos, embora não
tivesse consciência ou form ação para saber se tais discor-
dâncias decorriam de sua falta de form ação específica.
Entretanto, achava que o pensamento de Freud era muito
determinista, excluindo a capacidade do hom em de m odi­
ficar ou interferir, por sua própria vontade, na realidade.

A crença na liberdade humana fo i a prim eira marca


registrada do pensamento de Frankl e, ainda que suas idéias
não estivessem devidamente estruturadas, ele contestava a
visão mecanicista do homem. Tanto era assim que certa
vez, quando assistia a uma aula de ciências naturais, o
professor explicando quase toda a vida como sendo um
processo de oxidação e combustão, ele se levantou, assus­
tando colegas e professor com a seguinte pergunta: “ Se é
assim, então qual o sentido da vida?”

A inquietação com o sentido missionário da vida fo i a


segunda m arca registrada do pensamento frarikliano.

Acreditando que' a vida fosse bem mais do que um


simples processo de oxidação e de combustão, Frankl acaba
deixando Freud e ingressa no reduzido grupo de estudos
criado em Viena por A lfred Adler. Parecia-lhe que a Psico­
logia Individual de Adler oferecia melhores elementos para
a compreensão da pessoa humana quando comparada à
Psicanálise.

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N o dia 22 de m arço de 1926, Frankl fez uma conferên­
cia em Viena na Associação Internacional de Psicologia In ­
dividual, apresentando suas idéias sobre o sentido da vida.
E m 27 de setem bro do m esmo ano, participou do I I I Con­
gresso Internacional de Psicologia Individual, realizado em
Düsseldorf, onde profere outra conferência: “ A neurose
como expressão do m eio” . Muito em bora esta conferência
não tratasse de defender a neurose como expressão do meio,
infelizm ente suas idéias não foram do agrado de Adler,
que decidiu então pela não publicação da mesma nos anais
do congresso.

Começavam a ficar abaladas as relações entre Frankl e


Adler; o rom pim ento era iminente entre eles. Mas Frankl
continuou a lutar pelo que acreditava. Em 1927, funda e
dirige a revista D er Mensch im Alltag. Z eitsch rift sur
Verbreitung unã Anwenãung d er Individual Psychologie.
Logo depois, seguindo uma sugestão de Hugo Sauer, arqui­
vista do Dresdner Barik de Berlim , Frankl funda, próxim o
de Viena, vários centros de consultas para jovens carentes
de ajuda psíquica e m oral.

A juventude vienense intranqüila era vítim a de inúme­


ras doenças mentais, depressões, tentativas de suicídio etc.
Dr. Frankl, buscando chamar a atenção das autoridades da
época para a gravidade do problema, organizou uma gran­
de lista, relatando uma variedade de casos. Imediatamente
conseguiu a adesão de Oswald Schwarz e de Rudolf Allers,
discípulos de Adler, e que chamaram a atenção de Frankl
para a im portância de sua iniciativa.

De qualquer form a, Frankl não hesitou em abrir o p ri­


m eiro centro, anunciando-o em sua própria revista. A no­
tícia espalhou-se por toda a cidade em jornais e revistas,
ou através de cartazes nas portas dos colégios. Toda a
equipe, inclusive Adler e Allers, davam horas de consultas
gratuitas em uma cruzada em benefício da saúde mental
dos jovens.

Tais centros foram abertos em lugares estratégicos, na


residência dos consultores e junto aos colégios, e tinha
com o presidente de honra Potzl, grande cientista clínico,
muito querido em Viena. Queria Frankl atuar junto aos
alunos do últim o ano colegial, entre os quais eram muito
constantes os casos de tentativa de suicídio.

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Seu trabalho fo i tão eficiente que a porcentagem de
casos de suicídio em Viena chegou a praticamente zero e,
no dia 13 de julho de 1931, os jornais traziam em manchete
a erradicação total das tentativas de suicídio em Viena.
Seguindo o exemplo de Viena, numerosos outros cen­
tros foram abertos em cidades como Chemnitz, Praga e
Zurique (1928); sucessivamente, em Dresde, Brünn, Teplitz-
Schõnau, Berlim e Frankfurt. Posteriorm ente, em 1930, ati­
vidades semelhantes se iniciaram na Polônia, em Budapeste,
na Iugoslávia e Lituânia. A quantidade de problemas era
tamanha que o projeto fo i um grande socorro prestado
àquela juventude perdida dos anos 30. O próprio Dr. Frankl
publica, em 1935, uma resenha de 900 casos tratados pes­
soalmente por ele, apresentando, em paralelo, algumas pro­
postas de solução. Vasta e variada problemática: conflitos
familiares, dificuldades sexuais, distúrbios físicos e psicos-
somáticos, dificuldades financeiras ou simples pedidos de
orientação.

Oswald Schwarz começou a perceber a genialidade de


Frankl e aconselhou-o a escrever sistematicamente, relatan­
do sua prática psicoterápica, ou sua busca de fundamentos
na filosofia existencial.
As idéias rejeitadas por Adler, desde o Congresso de
1926, continuavam incomodando. Em uma reunião dos m em ­
bros da sociedade adleriana, estes se decidiram pela expul­
são dos “ hereges” . A expulsão incluía Frankl, Schwarz e
Allers. Por razões econômicas, a Casa Editorial H irzel da
Sociedade Adleriana só conseguiu publicar tal expulsão em
1939, em uma revista suíça.
Em conseqüência deste episódio, Frankl fechou a re­
vista D er M ensch im Alltag, que desde 1927 estava sob sua
direção. Prosseguiu seus estudos na Universidade “ Alma
M ater” de Viena, onde se licenciou em medicina em 1930.
N a clínica desta mesma universidade, prestou serviços mé­
dicos sob a supervisão do professor Põtzl, mudando-se pos­
teriorm ente para a Clínica Psiquiátrica de Steinhof.
E m 1936, especializa-se em neurologia e psiquiatria,
passando, em 1940, a dirigir o Departamento de Neurologia
lo Rothschild Hopital, onde trata exclusivamente de pa­
cientes de origem judaica.
H itler sobe ao poder. Ocorre a invasão da Áustria pelos
nazistas; inicia-se a Segunda Guerra Mundial e o terror.
Milhares de judeus começam a ser sistematicamente ani­

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quilados. Cada um tenta escapar com o pode e a fam ília
Frankl estuda seu plano de fuga. Sua irm ã Stella consegue
im igrar para a Austrália, onde viveu seus últimos dias. Seu
irm ão tentou fu gir para a Itália, mas fo i preso e enviado
para o campo de concentração de Auschwitz, juntamente
com sua esposa. V iktor acabou ficando sozinho com seus
pais já muito idosos, oscilando entre fugir e o m edo de
ficar.
Tentou conseguir asilo nos Estados Unidos, onde po­
deria desenvolver seu trabalho. Conseguiu finalmente a li­
cença e presenciou as manifestações de alegria de seus pais,
contentes por vê-lo a salvo no estrangeiro. Entretanto,
V iktor sabia que, logo após sua partida, o casal de velhos
seria levado para algum campo de concentração; isto dei­
xava inquieta sua alma.
Num daqueles dias, Frankl teve um sonho com uma
multidão de psicóticos e pacientes sendo conduzidos para
a câmara de gás. Com um profundo sentimento de com ­
paixão, Frankl pensou em unir-se a eles, emprestando-lhes
sua vida, atuando com o psicoterapeuta no campo de con­
centração. Afinal, esta missão seria muito mais rica em
significado do que a de um psiquiatra nos gabinetes de
Manhattan.
Coberto de dúvidas, vai, certa tarde, a uma Ig re ja ouvir
um concerto de órgão e m editar sobre qual decisão tomar.
Fugiria para longe da tumultuada Viena? Frankl indagava-se
sobre sua carreira, sobre o abandono de seus pais.
Desejando receber uma resposta do céu, V iktor voltou
para casa e surpreendeu-se ao ver, sobre o rádio, um pe­
daço de m árm ore. O pai explicava: “ Este é um pedaço de
m árm ore que encontrei nos escombros de uma sinagoga” .
O m árm ore fizera parte da Tábua dos Mandamentos e, con-
cretamente, naquele pedaço de pedra escura, lia-se parte
do 4° mandamento: “ Honra teu pai e tua mãe, para que se
prolonguem teus dias na face da terra que o Senhor teu
Deus vai te dar” (E x 20,12).
Viktor entendeu aquela mensagem com o sendo a res­
posta que ele esperava do céu. Decidiu então permanecer
na Áustria em companhia de seus pais. Estava traçada a
sorte do m ártir, já casado com a jovem T illy desde os p ri­
m eiros dias de 1942. Ela silenciosamente o ajudou, fo i a
razão de ser de sua vida tumultuada, na condição de prisio­
neiro. Ela visitou seus pensamentos nos momentos de sau­
dade, no barulho incansável da prisão impiedosa e sinistra.

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N o final de 1942, a Gestapo prendeu a fam ília Frankl,
sucessivamente levada à terrível experiência de viver em
diferentes campos: Theresienstad, Turkheim, Kaufering e
Auschwitz. V ik tor deixou de ser o homem, a pessoa, o m é­
dico com tantos serviços prestados, para ser apenas um
dentre tantos prisioneiros designados para escavação de
buracos nas fábricas subterrâneas de projéteis nazistas.

V ik tor Frankl fo i o prisioneiro de n. 119.104 de Au­


schwitz. E m vão tentou conseguir notícias de sua fam ília
até que, certa tarde, viu ao longe, em m eio a um grupo
de mulheres, sua mãe com as mãos em oração, sendo enca­
minhada para a câmara de gás, onde m orreu sem perder
sua fé.

De seu pai, nunca mais teve notícias, mas, segundo


Viktor, isto não chegou a preocupá-lo, porque a ligação es­
piritual entre os dois e a fam ília era tão viva que, na ver­
dade, eles continuavam juntos.

Entre os prejuízos de V ik tor Frankl, nesta época, fi ­


gura a perda do manuscrito de seu livro, o prim eiro sobre
Logoterapia do mundo, a prim eira versão de E l hom bre en
busca de sentido, editado pela Editora H erder e, naquela
época, destruído pelos SS. Daí em diante, passaria três lon­
gos anos entre multidões de prisioneiros, nos limites da
resistência humana, com a perda total da dignidade e con­
vivendo com a possibilidade da m orte na estreiteza da im ­
potência cotidiana.
Apenas 1 entre 29 prisioneiros poderia contar com algu­
ma chance de sobrevivência. A sedução da m orte convidava
o prisioneiro a optar entre saltar contra a cerca eletrificada
ou seguir para a câmara de gás. Como prosseguir susten­
tando a vida por um fio, apesar de tudo? E ra comum anun­
ciarem o banho; quando as filas entravam pelos grandes
“ banheiros” coletivos, abertas as torneiras, ao invés de água
jorravam gases venenosos: a m orte se consumava nos fo r­
nos crematórios.

Apesar disto, muitos lutavam por m anter a esperança


da frágil existência em troca de poder encontrar um dia
algum rosto fam iliar. Esperavam viver para chegar ao en­
contro m arcado ao final do pesadelo, dar continuidade a
um p rojeto tem porariam ente parado, um grande amor ou
alguma missão. Um alento de vida ganhava sentido. A vida
começava a ter a im portância de um projeto missionário
que precisava continuar.

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V iktor Frankl confirmaria, nos campos de concentra­
ção, que a pessoa humana não está neste mundo apenas
em busca de coisas materialmente concretas, nem do pra­
zer, nem da superioridade augusta, conform e pretendiam
Freud ou Adler. Pouco im portava a auto-realização, da form a
como a entendem M aslow ou Rogers. Na verdade, o homem
estava à procura de um sentido para a vida, sentido este
que era balizado pela liberdade pessoal e direcionado para
os valores de cada criatura humana.

Aos poucos, Frankl ia percebendo que o hom em seria


capaz de passar pelo mais intenso sofrim ento quando tinha
uma razão pela qual viver. Mais do que isto, o que levaria
o prisioneiro a ter vontade de sobreviver seria a existência
de alguma missão incompleta no mundo “ lá fo ra ” , soando
com o um desafio e aguardando o missionário, para dar-lhe
continuidade.

Percebeu Frankl este valor m issionário da vida humana,


seu caráter de missão intransferível, pessoal e única que
só tem valor para uma determinada criatura. A vida como
missão, m esmo de cumprimento dos atos mais simples e
cotidianos, é tarefa de uma pessoa determinada e de nin­
guém mais. Assim, Frankl percebeu que o homem sem uma
missão na vida não tem sentido vital, não consegue supor­
tar o sofrim ento e, no desespero, encontra sua m orte.

Esta idéia acabaria sendo o fundamento da Logoterapia,


o centro do pensamento frankliano, segundo o qual a cria­
tura humana carece de encontrar um Sentido para sua
Vida. Sem tal sentido, depois de perder tudo, desde a fa ­
m ília até a dignidade humana, os prisioneiros optavam pela
morte.

O sentido vital, por outro lado, era o esterco da espe­


rança latejante presente na alma e tinha o poder mágico
de resgatar o brilho de cada olhar fam into persistindo com
a vida. Tal sentido fazia brotar um sentimento de fé, a
esperança de term inar a missão interrom pida pelo acaso
da guerra; cada obra inacabada era um desafio. A recons­
trução do hom em em si era um lamento da alma de cada
um. Transcendendo a missão concreta das tarefas materiais,
a edificação humana ganhava importância.

De qualquer form a, a vida parecia ter um valor em si


mesma, um prazer em si mesma que parecia nascer das
profundezas da impotência e da fragilidade. De repente, um

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pôr-do-sol começava a ter um intenso e diferente signifi­
cado, uma vez que poderia ser o último de uma vida. Não
era possível ter-se a mais pálida idéia do que iria aconte­
cer até a próxim a aurora. Bem poderia ser aquela a última
oportunidade de viver!
Interno do campo de concentração, Frankl tinha duas
opções: a primeira, encontrar a própria m orte; a segunda,
ajudar os SS a aniquilarem cinicamente os irmãos judeus.
N o entanto, ele recusa as duas alternativas e prefere ficar
como escravo do trabalho e psicólogo dos companheiros
de infortúnio. Foi ele um psicoterapeuta a serviço dos cole­
gas de prisão. O único no mundo a passar por esta expe­
riência e sair com vida.
Praticava uma form a de psicoterapia completamente
nova e diferente de qualquer outra conhecida: ele próprio
compartilhava clara e diretamente da dor de seus compa­
nheiros, sem a mínima condição de escape. Não era possí­
vel a “ neutralidade” em uma situação onde sua probabi­
lidade de m orrer era igual à de seus companheiros (mais
de 90%). Suas intervenções eram apelativas e as sessões,
isentas de qualquer form alidade, eram feitas na mais com ­
pleta escuridão da noite, em m eio aos gemidos da fom e e
ao desespero de quem, como escravo, abrira valetas desde
a manhã até a noite.
Naturalmente não se fazia nenhuma referência ao pas­
sado, nem havia clima para preocupações com a form ali­
dade de uma psicoterapia de gabinete. Em m eio ao deses­
pero, às vezes simplesmente se reuniam para refletir sobre
a m iserável condição presente, buscando forças para supor­
tar mais um dia. Certa noite, Frankl simplesmente decla­
mou versos de um poeta que pareciam refletir o sentimento
daquele m om ento e acrescentou: “ O que nós estamos viven-
ciando nenhum poder do mundo pode roubar. O que já
realizamos na plenitude de nossa vida passada, com toda
sua riqueza de experiências, ninguém pode arrebatar a nós.
Não apenas o temos vivenciado, mas também o temos pen­
sado e s o frid o .. . Todas estas coisas são propriedades nossas
para sem pre” . Logo depois, assim que a luz se acendeu,
Frankl pôde ver a im portância de suas palavras. Entre per­
nas trançadas e corpos esqueléticos, seus amigos, com os
olhos cheios de lágrimas, caminhavam em sua direção para
dizer-lhe “ m uito obrigado” .
V ik tor procurava resgatar do íntimo da alma de seus
companheiros o sentido de suas vidas, o sentido da liber­
dade possível, o sentido da dor e da responsabilidade de

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viver. Aqueles que tinham a graça de perceber tal senti­
do, a bênção de viver pelo simples fato de viver e enten­
diam o valor da vida em si mesma, encontravam uma
estranha força para continuar vivendo. Em outras palavras,
a dor parecia diminuir, crescia a capacidade de tolerar o
sofrimento.

Surgia em cada prisioneiro uma energia quase mágica,


brotada da alma, das profundezas da m iséria pessoal, uma
chama que mantinha acesa a força vital por mais um dia.

Por outro lado, aquele que o acaso conduzia à morte,


caminhava orgulhosamente para seu holocausto. Oferecia-se
em sacrifício, com o alguém que entrega sua alma a Deus,
às vezes seguindo de mãos postas, cantando Salmos, em
direção à câmara de gás.

Esta experiência determina os pilares da Logoterapia,


a Terceira Escola Vienense de Psicoterapia. Seu pressuposto
fundamental é a crença na liberdade do homem e na sua
capacidade de suportar o sofrim ento quando sua vida é
rica de significados. E mais, por força da dimensão espiri­
tual imaculada da pessoa humana, assume-se a responsabi­
lidade frente à existência rumo à descoberta do sentido
da vida. Entretanto, a busca de sentido não é um tropism o
inato, nem decorrência do instinto de sobrevivência, muito
menos dos arquétipos tradicionais da cultura. Esta graça
ou este fenômeno é exclusivo do homem como um ser livre
e consciente de sua vida, de sua morte, da im portância de
preservar-se e da responsabilidade.

Em verdade, o sentido da vida é um chamamento in­


terno que aponta para um destino e a vida se apresenta
como missão. Uma missão que exige cuidado e responsa­
bilidade em cada tomada de decisão. Tal sentido parece
funcionar como uma bússola interna, cuja orientação está
sujeita à consciência de que a criatura humana tem de sua
responsabilidade. Assemelha-se ao mapa de uma floresta
desconhecida sem caminhos, os quais terão de ser defini­
dos pelo bom senso de cada um. A única certeza é a de
que somos transeuntes, que precisamos de caminhos e que
todos eles terão que ser descobertos na missão de viver.

A vida é aventura intransferível. Como nosso tem po é


finito, a tarefa de cada um de nós não pode ser adiada
para a incerteza do mom ento seguinte. Em Porto Alegre,
disse Frankl: “ Existe uma parte do sofrim ento humano que
é absolutamente inevitável. Graças a este sofrimento, o ho­

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mem tem o privilégio de m orrer e a finitude da vida não
parece em si uma coisa ruim. O fato da nossa vida ser
tão passageira faz com que sejamos responsáveis com o
tem po” . Conclui Frankl diante da silenciosa platéia: “ Im a­
ginem se a nossa vida fosse infinita! Certamente estaría-
mos adiando todas as nossas responsabilidades. . . ”

A floresta que cada hom em atravessa possui caminhos


que apenas precisam ser descobertos, da mesma form a que
o escultor descobre uma bela imagem no interior da rocha.
Percebendo a imagem oculta, a missão do artista é des­
cobrir exatamente os lim ites entre a pedra e a escultura,
separando uma da outra. O mesmo ocorre com a arte de
viver e seu artista, procurando emprestar-lhe sentido. Parti­
mos em busca dele, sem a segurança do encontro; im porta
a procura, independentemente da graça do encontro. Segui­
mos nosso destino. Tudo o que fazemos a cada instante da
vida, ainda que não saibamos, tem a intenção de dar-lhe
um sentido. Esta é uma das missões exclusivas de cada
criatura; é certamente intransferível, mas tem os liberdade
para adiar.

Nos últim os meses de campo de concentração, ofere­


ceram a Frankl uma oportunidade para exercer medicina.
Mas o pesadelo chegava ao fim . N o campo de Turkheim,
onde estava Frankl, chegara uma delegação da Cruz V er­
melha Internacional que tomou, sob sua proteção, os p ri­
sioneiros.

Durante a noite, chegou o comando da SS para man­


dar desfazer imediatamente o campo. Os médicos colocaram
os prisioneiros em caminhões próprios da Cruz Vermelha
e os levaram para a Suíça ainda como prisioneiros de
guerra. E ra chegado o dia da liberdade. Frankl fo i o últi­
m o a deixar o campo de Turkheim, depois de colocar no
caminhão os enferm os mais graves. A condução não foi
suficiente para todos e muitos tiveram que ficar. Quinze
dias mais tarde, Frankl ficou sabendo que as SS prenderam
os que lá permaneceram e atearam fogo no galpão.

Frankl fo i libertado no dia 27 de abril de 1945, um mês


após seu aniversário. Estava portanto com 40 anos e sentia,
naquele momento, uma sensação estranha. Olhou para o
céu, ouviu o cantar dos pássaros — indiferentes a tudo
o que havia acontecido. N otou que o céu, ao longe, estava
manchado com poucas nuvens e sentiu o calmo vento frio
tocar seu rosto (segundo seus relatos).

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Naquele m om ento de nua existência, lá estava ele sd,
anônimo, mas sentia uma alegria infinita. Apesar da sensa­
ção de estar vivo, tudo era como um sonho solitário, como
o é toda experiência do homem neste mundo. Não havia
de fato ninguém com quem conversar. Seus fam iliares pos­
sivelmente estariam todos mortos; sobrava-lhe toda a imen­
sidão azul do céu, os caminhos abertos, sua fragilidade e o
chamamento da vida para começar tudo outra vez. V iktor
olhou para o alto e pôs seus joelhos sobre o chão rústico.
N ão sabia m uito nem de si nem do mundo; provavelmente
não saberia dizer ao certo em que dia da semana se encon­
trava; somente um pensamento envolvia sua mente, trans­
form ado em palavras: “ Em minha angústia gritei para Deus
e ele respondeu e me deu alento” . Durante o tem po em
que ali permaneceu de joelhos, sua mente passeara pelas
negras imagens da prisão, lembrando os companheiros per­
didos, T illy e os pais, mas a vida pedia coragem.

Pouco a pouco, construía uma nova etapa de sua vida.


Reassumiu o Hospital Policlínico de Viena como chefe do
Departamento de Neurologia e, rememorando sua experiên­
cia no campo de concentração, escreveu seu prim eiro livro
Ãrztliche Seelsorge, posteriorm ente traduzido para o inglês
com o The D o cto r and the Soul.

Os prim eiros dias de liberdade foram dedicados à pro­


cura de seus parentes, especialmente de Tilly, nas listas
de desaparecidos afixadas nas paredes de locais públicos.
Pouco depois soube da m orte de sua mulher e, sob forte
emoção, dita para o gravador Um psicólogo no cam po de
concentração, seu segundo livro mais importante.

Em 18 de julho de 1947, casou-se com Eleonore Schwindt,


enferm eira da Policlínica onde trabalhava, de quem nasceu
Gabriela, futuramente psicóloga. Neste m esmo ano, Frarikl
publica D er Psychotherapie in der Praxis, além de Z eit und
V em ntw ortung e Die Existenzanalyse und ãie Problem e der
Zeit. Em 1948, toma-se livre-docente em Neurologia e Psi­
quiatria; no ano seguinte, licencia-se em Filosofia e publica
o livro D er unbewusste Gott. Logo depois, O H om em Incon-
dicionado, seguido de outros.

Em 1952, publicou Die Psychotherapie im Alltag e, em


1956, apresenta uma síntese organizada de seu pensamento
na obra Theorie und Therapie der Neurosen. N o início da
década de 60, publica M an’s Search fo r Meaning ou E l hom-
bre en busca de sentido. E m 1967, edita Psychotherapy and

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Existencialism e, em 1969, The W ill to Meaning, resultado
de uma série de aulas dadas na Southern M ethodist Uni-
versity o f Dallas. Em 1972, é publicada Psychotherapie für
ãen Laien ou Psicoterapia ao alcance de todos, coletânea
de programas radiofônicos de Frankl em Viena, entre 1951
e 1955. Em meados de 1972, aparece D er W ille zum Sinn,
em colaboração com Elizabeth Lukas, e, na mesma linha,
D er Mensch auf der Suche nach Sinn.

Psicoterapia y humanismo fo i publicada em 1978, obra


fundamental para a compreensão da Logoterapia e da An­
tropologia franklianas. Para quem desejar uma leitura orga­
nizada de Frankl, esta obra dá continuidade a uma seqüên­
cia de escritos, iniciada com Psicoterapia y existencialism o
e E l D ios inconsciente. Dr. Frankl ainda vive, vigoroso e
lúcido (1986), pleno de sabedoria, não sendo possível, por­
tanto, falar em Obras Completas. Continua escrevendo seu
últim o livro, editado em 1981: Die Sinnfrage in der Psy­
chotherapie, coletânea de algumas conferências dadas em
Salzburg.

* Dr. Frankl trouxe para a Psicologia uma proposta revo­


lucionária de compreensão humana, introduzindo uma nova
abordagem: o homem, que é um ser espiritual, mas de
espiritualidade reprimida, deve ser reconhecido como uni­
dade bio-psico-sócio-espiritual. Supondo a Logoterapia uma
dimensão espiritual no homem, a Psicologia tom a novos
rumos no que se refere à prática clínica, à form a de en­
carar o homem. Esta mudança resulta na humanização da
Psicoterapia que antes lidava com “ sujeitos” , “ organismos” ,
“ com portam entos” , “ estímulos e respostas” , perdendo de
vista a criatura humana que sofre e procura um sentido
para sua vida ou até para seu sofrimento.

P or esta razão, V iktor Frankl deixa de ser um mero


cientista a inaugurar uma nova escola de Psicoterapia, para
tornar-se uma das mais importantes figuras da Psicologia
mundial, o criador da 3* Escola Vienense de Psicoterapia
— prim eiro m odelo analítico-existencial a propor estratégias
clínicas efetivas para a Psicoterapia, sem perder de vista a
humanidade do homem.

A obra de Frankl é procurada e lida em todas as partes


do mundo. Quase todos os seus livros são sucessos. Alguns,
como E l hom bre en busca de sentido, já esgotaram 80 edi­
ções e permanecem esgotados. Dificilm ente consegue-se hoje
em dia escrever qualquer livro importante sobre Psicote-

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rapia sem citar Frankl. Seus achados clínicos e técnicas
psicoterápicas são assumidos por outras escolas desde a
Psicologia Comportamental, ou a Hipnoterapia de M ilton H.
Erickson, ou as Escolas de Psicoterapia Fam iliar de Paio
Alto e de Milão, até as abordagens estratégicas, multimodais
ou o mais extremado humanismo.

O reconhecimento da importância de Frankl para a


clínica psiquiátrica e psicológica levou-o a inúmeras viagens
por todo o mundo. Frankl fo i professor das Universidades
de Viena, San Diego, Southern Methodist University, Stan-
ford, Duquesne, University of Harvard, entre outras. Como
reconhecimento por seu trabalho científico, recebeu o tí­
tulo de Doutor “ Honoris Causa” pela Loyola University of
Chicago, E d geeiiff College, R ockford College, Universidade
Católica de Porto Alegre, Universidade Católica de Buenos
Aires, Universidade de Mendoza, além do reconhecimento
de instituições e de personalidades como Gordon Allport,
Lazarus, W olpe, etc.

A Logoterapia nasceu das marcas de fogo dos campos


de concentração na alma dos filhos de Israel que pagaram
com a vida uma dívida que jamais contraíram, marcando
com sangue a terra batida de Auschwitz; nasceu no cenário
do m artírio de pessoas com o Tilly, prim eira esposa de
Frankl, m orta em Bergen-Belsen, na Alemanha, em data
desconhecida.

Quanto a Tilly, muito pouco fo i possível saber além de


sua dolorosa partida. Entretanto, algo de surpreendente iria
acontecer nos dias em que Frankl esteve entre nós. Em
25 de abril de 1984, quando desceu em Porto Alegre, fo i
acolhido, no aeroporto, por duas pessoas de extraordinário
significado para sua vida pessoal: a irm ã de T illy e Ferdi-
nando Grosser, pai de Tilly, ex-sogro de Viktor. Fugidos da
guerra, ambos vieram para o Brasil; Ferdinando foi pro­
fessor na Universidade Católica de Porto Alegre.

A emoção daquele encontro parecia incomparável a qual­


quer outra; afinal, notícias mais seguras sobre T illy foram
obtidas: o momento de sua m orte fora acompanhado por
sua cunhada, nos braços de quem repousara em seu últim o
instante. Estes encontros nos ligam ao Dr. Frankl e fizeram
de sua passagem pelo Brasil um evento inesquecível; como
inesquecíveis são suas palavras, seu tom de voz e sua men­
sagem iluminados que dispensam explicações. Seu saber
nasceu de uma vida intensamente engajada, do trabalho e

27
da dedicação científica. Dr. Frarikl é apenas um homem
que acredita na liberdade humana e no sentido da vida
de cada criatura humana, fazendo disto seu credo, a ban­
deira de sua luta e de sua vida.

Os que entram em contato com a Logoterapia pela p ri­


meira vez podem ter a impressão inicial de que se trata
de uma doutrina religiosa. Isto decorre do fato de o m odelo
teórico da Logoterapia lidar também com a dimensão noé-
tica ou espiritual do homem. Esta impressão de estar lidan­
do com o místico, como ao conhecer algumas obras de
Jung, é sinal de que ainda não conhecemos realmente a
proposta de Frarikl. A dimensão noética a que ele se refere
tem de ser compreendida conceitualmente segundo a onto­
logia. A obra de Frarikl precisa ser considerada no seu todo
e entendida segundo os referenciais autênticos do existen-
cialism o religioso de Buber, Gabriel Mareei, Kierkegaard,
etc. Deve-se fugir de uma visão preconceituosa da análise
existencial, como aquela que partiu de alguns colegas de
renome, personagens conhecidos nacionalmente.

28
Parte I
A LOGOTERAPIA
1. O QUE É LO G O TE RA PIA

Dr. Frankl participou de um congresso com inúmeros


psicanalistas, quando um deles lhe pediu que definisse em
uma frase o que vinha a ser a Logoterapia. Respondeu-lhe
Frankl: “ Eu poderia fazê-lo desde que V. Sa. definisse tam­
bém em uma frase o que seria a Psicanálise” . Esta resposta
do pai da Logoterapia dá-nos a idéia da amplitude e da
complexidade do universo logoterápico. Logo, esta obra in­
trodutória não pode ter a pretensão de definir o que seja
a Logoterapia. Com efeito, vamos tentar uma aproximação
do conceito, cientes de que uma compreensão nítida da
Logoterapia im plica na leitura cautelosa, lenta e repetida
dos livros do Dr. Frankl.

A Logoterapia é a 3'* Escola Vienense de Psicoterapia,


posterior à Psicanálise de Freud (a I a) e à Psicologia In di­
vidual de Adler (a 2:i). As três nasceram às margens do
Danúbio e, tal como a valsa, buscam a harmonia perfeita.
N o entanto, a Logoterapia, vista de perto, apresenta inova­
ções que lhe emprestam uma cadência m uito particular.

O prim eiro aspecto im portante da Logoterapia é o fa to —,


de ela ser uma psicoterapia centrada na busca do sentido [
da vida. Não se trata da busca de um, mas da busca do |
sentido. A vida tem um sentido em si mesma e não há
possibilidade de se conceber a existência sem o seu sentido,
da mesma form a que não se pode imaginar a luz sem a
claridade. Acrescenta-se a este outro aspecto muito especial:

31
a Logoterapia não se destina a inventar um sentido. Se­
gundo Frankl, não é possível fabricar “ um para quê” , um
sentido, porque a vida em sua preciosidade natural está
plena de sentido. Por outro lado, uma escola, fundamen­
tada no Existencialismo Judaico-Cristão, tem os elementos
fé e esperança ocupando uma posição privilegiada, além de
supor uma convicção filosófica diferenciada das outras abor­
dagens humanístico-existenciais, cujas plataform as ideold-
gico-filosóficas freqüentemente são o Existencialismo Ateu.
O Existencialismo Ateu, contrariamente ao Judaico-Cris­
tão, é pessimista com respeito às possibilidades futuras da
vida. Tal “ presentism o” se revela em abordagens com o a
Gestalt-terapia, a Psicologia Centrada na Pessoa, a Antipsi-
quiatria, o Neo-Humanismo norte-americano, onde o que
interessa é a experiência presente ou o que preocupa é o
m om ento atual, como única realidade sobre a qual temos
certeza. Há insegurança quanto ao vir-a-ser; o momento
seguinte que só existe no reino da esperança.
A palavra “ Logoterapia” quer dizer Psicoterapia através
do sentido ou Psicoterapia pelo encontro do Logos ou sen­
tido vital. Em outras palavras, Logos significa sentido e
terapia é cuidado ou cura. Um sentido tal que subsiste na
intimidade de cada Santuário Interno apesar do sofrim ento
e da enfermidade, como uma espécie de vocação adormecida
na criatura humana, sempre potencialmente missionária.
Dos recantos deste santuário, emerge uma voz claman­
do por um sentido, nascido das profundezas de cada ser
e alojando uma intenção. A intenção assume uma função
dinâmica, ou seja, o sentido deixa de ser estático e começa
a ser um “ m ovim ento para” . A criatura humana é como a
semente que traz em seu interior um código preservador
de sua identidade e assegurador do crescimento perfeita­
mente organizado. Além desta programação determinada por
códigos genéticos, há, no caso humano, uma característica
peculiar que é a sua capacidade de assumir a direção de
seu destino. Isto acontece por força de sua consciência, da
capacidade de ser livre e assumir responsabilidade, coisa
que proporciona e faculta ao homem uma transcendência
em relação ao Destino aprioristicamente determinado e
faz dele uma criatura sem destino, porém dona de um
sentido pessoal e intransferível, que o eleva acima dos
condicionamentos.
Para Frankl, a pessoa humana é incondicionada. O que
está sujeito ao determinismo, o que é condicionável é a di­
mensão psico-bio-social. Entretanto, no que refere ao ho­

32
mem, há uma dimensão que proporciona a ele uma instru­
mentação destinada precisamente a elim inar as limitações
do psicofísico, conferindo-lhe a condição do ser livre para
fazer sua história e dar um sentido para sua vida.
Por conseguinte, o segundo ponto central do pensa­
m ento de Frankl é o fato de ele reconhecer no homem o
que se convencionou chamar de dimensão noética. Tal di­
mensão reconhece no ser humano a condição de uma cria­
tura que pertence a este mundo e ao mesmo tempo trans­
borda seus lim ites e vai além. Apresenta-o como criatura
dotada de liberdade para criar ou destruir conscientemente
a si mesmo e seu mundo, encontrar um sentido para sua
vida e conceber a possibilidade da m orte, além da existên­
cia de uma Providência incomparavelmente superior, que
faz dele um ser que tem um pé neste mundo e outro além
dele.
A liberdade do condicionamento repousa na espiritua­
lidade do homem, que por conhecer tais condicionamentos
pode até destruí-los. Frankl não seria ingênuo a ponto de
negar a existência dos condicionamentos no plano psicoló­
gico e físico, mas ressalta, como mais preciosa e forte do
que os condicionamentos, a ilim itada resistência do espírito
humano que tem poderes para escolher em liberdade.

2. EVOLUÇÃO DO PE N S A M E N TO F R A N K L IA N O

Dr. V iktor Em il Frankl é considerado o Copérnico da


Psicologia. Sua experiência crucial no campo de concentra­
ção proporcionou-lhe descobertas inéditas sobre a condição
humana e sua contribuição científica emprestou um novo
curso à História da Psicologia. Trouxe novos elementos para
a consideração, com o a Alma, a dimensão espiritual humana
esquecida.
Tendo sido discípulo de Freud, Frankl começa sua car­
reira profissional como psiquiatra de form ação psicanalí-
tica. Desenvolve posteriorm ente uma paixão pela filosofia
existencialista de K arl Jaspers e M artin Heidegger, entre
outros, e pela filosofia dos valores de Max Scheler, a par­
tir dos quais começa a elaborar sua própria filosofia, seu
mapa de compreensão dc homem e a proposta de psico­
terapia existencial.
Pela prim eira vez, em 1938, utilizou o term o “ análise
existencial" e “ Logoterapia” em seus escritos. Com a inten­
ção de evitar confusão entre seus conceitos e os da Aná­

33
lise Existencial de Binswanger, Frankl passou a utilizar o
term o “ Logoterapia” para designar seu enfoque. Entretan­
to, o term o “ análise existencial” continuou sendo em pre­
gado por Frankl apesar de sua teoria e m etodologia terem
características muito particulares e diferenciadas da análise
existencial.
Tweedie, autor que tenta resumir o ponto de vista de
Frankl, afirm a que: “ Estes termos são quase sinônimos e
se referem a duas facetas da mesma moeda. Enquanto a
análise existencial indica sobretudo a direção antropológica
da teoria, Logoterapia é um term o descritivo da teoria tera­
pêutica efetiva e seus m étodos” . Afirm a que a Logoterapia
se derrama do espírito para fo ra e a análise existencial se
dirige ao Espírito, caminhando em sentido oposto.
Tw eedie declara que a Logoterapia pretende trazer, à
luz da consciência, fatores espirituais inconscientes da per­
sonalidade do paciente, enquanto que a análise existencial
tem com o desejo que o paciente seja capaz de ser cons­
ciente de sua responsabilidade. Justifica sua idé^a citando
Frankl: “ Por definição, a análise existencial visa tornar o
homem consciente da própria responsabilidade (Bewusstsein
des Verantwortungshabens)” . Citando um outro parágrafo
de Frankl, continua: “ A tarefa da Logoterapia aparece de­
pois e consiste em estimular o desenvolvimento da possibi­
lidade concreta do indivíduo. Porém, antes que isto seja
possível, é necessário analisar a existência concreta (Dasein)
do ser humano, a existência pessoal do cliente em questão.
Em uma palavra, terá que ser feita a^análise existenc ia l^ .
Fica então a impressão de que por análise existencial
se entende a análise da existência individual, enquanto que
por Logoterapia se entende o tratamento efetivo. N o entan­
to, geralmente, a Logoterapia tem um significado mais am-'
pio e inclui dois aspectos, ou seja: ela é a própria análise
existencial em um prim eiro momento e num segundo m o­
m ento ela se diferencia na m edida em que propõe trata­
m ento efetivo.
Esta é a form a como tenho compreendido a Logotera­
pia e que pretendo usar ao lcngo deste trabalho. Com o
ob jetivo de acentuar este conceito, insisto: a Logoterapia
é inicialmente análise existencial, depois, vai além, propon­
do estratégias concretas de tratamento clínico.
N a Psicoterapia Existencial há três conceitos especial-'
mente importantes: 1) o conceito de neurose existencial
de Frankl: os transtornos emocionais são resultantes da
incapacidade de perceber o sentido da vida e não uma série
de impulsos reprim idos (não confundir com manifestação
de fragilidade egóica, nem fortes preocupações ou stress,
etc., como querem alguns estudiosos); 2) o conceito da re­
lação terapêutica de Frankl: a relação terapêutica deve ser
concebida como um encontro, uma nova relação aberta a
novos horizontes e não uma relação transferenciai que re­
pita o passado; 3) o conceito de Toairós: km rós é o ponto
crítico que assinala o momento em que o paciente já está
melhor preparado para a terapia — neste momento, a mu­
dança e a m elhoria de seu estado interior acontecem com
maior facilidade.

Existencialismo não é uma escola psiquiátrica apenas.'


Mais do que isto, é uma atitude, uma nova form a de apro­
ximar-se da pessoa humana. O Existencialismo não trabalha,
com pressupostos, nem é um sistema terapêutico, embora
tenha contribuído m uito para as terapias. Não é um con­
junto de técnicas, m uito em bora tenha dado origem a algu­
mas delas. O enfoque existencial é apenas um guia para
quem deseja conhecer a pessoa humana bem como sua ma­
neira de experienciar o mundo; tais propósitos, aliás, funda­
mentam suas poucas técnicas de trabalho.

A utilização de técnicas pode fazer com que vejam os


a criatura humana com o um ser de respostas previsíveis, o
que poderia dar a entender que o homem seria passível de
uma programação. Isto poderia inclusive favorecer a equi­
vocada impressão de que o homem seria comparável a um
autômato dirigível, analisável, programável. Um homem
“ paciente” , um hom em despojado do comando de seu des­
tino. Sendo programável, é possível compreender o homem
objeto como alguém que perdeu sua liberdade, sua cons­
ciência e sua responsabilidade.

Além disto, a técnica não serve para ajudar o homem


a compreender seu mundo, uma vez que este próprio ho­
mem é conseqüência de tal compreensão. Acrescente-se que
por trás de cada técnica permanece oculto um desejo de
manipulação, especialmente no caso da clínica, onde técnica
é sinônimo de “ estratégia” , a qual Jay Haley define como
“ manipulação de forças, instrumentos ou idéias com vistas
à consecução de objetivo que nosso cliente desconhece” .
N os dicionários, estratégia é freqüentemente apresentada
como uma arte exclusivamente m ilitar, deixando claro tra­
tar-se de uma manipulação um pouco traiçoeira das pessoas.

35
Por tal razão o terapeuta existencial se apresenta como
um elemento desarmado que não chega a utilizar técnicas.
Este pensamento clínico parece equivocado na medida em
que a Psicoterapia em si mesma, explícita ou implicitamente,
carrega em seu b ojo a intenção de prom over mudanças.
A Não-Intervenção no m odelo lacaniano, a resposta refluxa
de Rogers, o silêncio e a “ neutralidade” do profissional são
condutas estratégicas ou técnicas.

A Psicoterapia desenvolvida por Frankl é resultante de


sua prática clínica durante muitos anos e pôde ser reafir­
mada durante sua passagem pelo campo de concentração.
Mais do que um esquema teórico, seu trabalho é fruto de
sua experiência e de sua vida. Sem esquecer o form alism o
das linhas psicológicas contemporâneas, o envolvimento de
sua experiência pessoal com a Logoterapia humaniza a Psi­
coterapia, devolvendo-lhe a condição de ciência destinada
a “ curar almas” . Sem perder de vista a humanidade do ho­
m em e sem transformá-lo em organismo, ela ainda se torna
a única Psicologia Existencial a propor algumas técnicas
de tratamento clínico. Isto faz da Logoterapia a mais ver­
dadeira form a de Psicoterapia Existencial, ou seja, além de
seu embasamento antropológico-filosófico dentro da Feno-
menologia Existencial, transcende a condição de mera filo ­
sofia para tornar-se uma Psicoterapia Existencial com ins­
trumentos para tal.

3. C O NC EITO DE LO G O TE RA PIA

A vivência de Frarikl nos campos de concentração, a


dor física e psicológica proporcionaram a ele a descoberta
de que a pessoa humana pode conservar sua liberdade es­
piritual. A liberdade, muito mais que a condição de ser
fisicamente livre ou de caminhar pela rua sem algemas, é
um estado interior.

E m outras palavras, o espírito humano, que Frankl


denomina “ dimensão noética” , não é passível de nenhuma
prisão. Mais do que isto, tal dimensão preserva-se eterna­
mente sadia e liberta, protegida contra toda e qualquer
enferm idade ou invasão exterior. Por mais que as grades
sejam fortes ou que a propaganda para as massas tente
a lavagem cerebral, o poder de resistência do espírito per­
manece cristalino.

36
Ainda que vivendo na mais extrema miséria, ainda que
a falta de dignidade seja impiedosa, há sempre a mais com ­
pleta independência espiritual. Estas conclusões de Frankl,
aprendidas de si mesmo e de sua vida nos campos de con­
centração, trazem uma nova e revolucionária visão para
a questão das doenças mentais: por mais louca que seja
uma criatura, ainda resta, nas profundezas de sua alma,
um escudo protetor, uma dimensão imaculada. Por esta
razão, disse Frankl, “ há ocasiões em que um esquizofrênico
agudo tem lam pejos de franca lucidez” .

Observou ele que, em meio à desumanidade dos cam­


pos, apareciam as mais bonitas manifestações de fraterni­
dade, sacrifícios heróicos em benefício dos outros e o
empenho para m anter sua própria integridade. O tipo de
prisioneiro que uma pessoa chegava a ser era muito mais
uma determinação íntim a e inerente à consciência interna
dela do que uma conseqüência de coação e circunstâncias
do campo de concentração. Em uma palavra, o que real­
mente determinava tudo era a manifestação das forças do
espírito de cada indivíduo.

O poder de resistência do espírito nos leva a crer que,


em situações semelhantes, qualquer pessoa continua tendo
condições de decidir a form a de ser no mundo em seu
espírito. Ela pode conservar sua dignidade, lutar por si
mesma, ainda que as condições sejam as mais desfavorá­
veis, com o acontecia nos campos de prisioneiros. Esta
característica é denominada por Frankl de ‘(liberdade espi­
ritual incondicional do hom em ” , im possível de ser violada.
Esta liberdade dá sentido à vida e empresta significado a
cada acontecimento.

Se a vida tem sentido, afirm a Frankl, então o sofri­


mento é rico de significados, pois o sofrim ento e até mesmo
a m orte são partes da vida. Sem o sofrimento, a m orte
seria incompleta e a experiência de m orrer plenamente seria
privilégio de poucos.

Durante a prisão, poucos eram os prisioneiros que per­


diam qualquer oportunidade de preservarem a vida. Poucos
deixavam que as influências degenerativas do campo deter­
minassem suas condutas. Mesmo a falta de uma ilusão ou
de uma esperança futura não deixavam que se perdesse
em cada um o esforço para fazer algo positivo; as circuns­
tâncias externas desagradáveis acabavam dando ao homem
uma oportunidade para crescer espiritualmente.

37
11
Para viabilizar este crescimento, parecia necessário pos­
suir uma grande fé no futuro, espécie de pré-requisito sem
o qual o hom em perderia seu interesse pela vida e o desejo
de continuar subsistindo. Em outras palavras, sem ter um
propósito para viver, a vida perde a cor, reveste-se de um
tédio sem fim e, na falta de um sentido, as chances de
continuar vivendo são reduzidas.
Assim, Dr. Frankl e seus companheiros de prisão espe­
ravam algo de suas vidas. Que esperariam ainda? Que po­
deriam fazer ainda por suas vidas? H averia ainda alguma
razão para continuar vivendo? Haveria alguém precisando
deles? E m contrapartida, reafirma-se o outro lado da ques­
tão: Afinal, o que a vida esperava de cada um deles? O
que poderiam fazer por suas vidas em um dado momento?
Havia m om entos em que a vida pedia m uito mais do que
podia oferecer!
A vida propõe tarefas a cada homem e o esforço para
sua realização é o que lhe confere um sentido. Encarando
a vida com o um p rojeto missionário, cada um se vê cha­
mado para uma tarefa diferente, pessoal e específica e cada
situação pede uma resposta única.
Algumas vezes, o chamamento pede unicamente a acei­
tação de uma determinada condição ou até de dor inevitável.
Outras vezes, somos chamados a ser felizes, ou chamados
a sofrer, descobrindo novas form as de crescimento. Desta
form a, analisando a natureza da pessoa humana, podemos
ver que seu desenvolvimento se dá em três áreas: somática,
psicológica e espiritual.
As duas prim eiras se relacionam estreitamente, compon­
do a unidade psicofísica. Aí se localizam os fatores inatos
e constitucionais, os instintos, impulsos, etc. Para a com­
preensão destas duas áreas, a Psicanálise, sobretudo Freud,
Adler e Jung, presta um im portante serviço, especialmente
no que se refere à Psicologia. Em todo caso, deixa-se de
levar em consideração a dimensão espiritual, a mais im por­
tante característica do homem.
Vale recordar que este plano espiritual que a Logote­
rapia leva em consideração não se refere aos “ espiritua-
lism os” de nossa cultura, mas a uma dimensão noética ou
a um Deus reprim ido no santuário interno de cada um. É
neste sentido que a Logoterapia confirm a a dimensão es­
piritual como característica fundamental e exclusiva da
existência humana; tal dimensão distingue os homens dos
animais.

38
A espiritualidade a que Frankl se refere manifesta-se
fenomenologicamente por uma consciência imediata do “ eu”
brotando daquilo que ele chamou de “ inconsciente espiri­
tual” , de onde aliás toda consciência se origina. Em outras
palavras, a Logoterapia vai reconhecer a existência de um
inconsciente espiritual além do inconsciente instintivo pro­
posto por Freud. Isto nos alerta para o fato de que o “eg o ”
não é governado pelo “ id ” sexual e impulsivo, mas por
nossa espiritualidade inconsciente. Desta espiritualidade de­
rivam as principais características do homem: a consciência,
o amor e sua capacidade estética.

Com a finalidade de diferenciar o pensamento frank-


liano da Psicanálise, é bom que estejam os atentos para o
fato de que para Freud o homem é basicamente incons­
ciente e o papel da clínica é tornar esta cegueira natural
do inconsciente em algo consciente. Para a Logoterapia, o
procedimento é inverso, ou seja, o hom em é conhecido
com o um ser consciente e a psicoterapia tem para si a
missão de torná-lo mais consciente e responsável por sua
vida.

A segunda característica da existência humana é a liber­


dade. Ao se fazer uma pergunta sobre o que é o homem,
talvez a resposta fosse a de que ele é a única criatura
capaz de decidir o que deseja ser. O homem é essencial­
m ente aquilo que deseja ser. Enquanto vaga por este mun­
do, ele tem a força de construir seu futuro e de mudar o
m om ento seguinte; o momento seguinte é fruto que nasce
até da liberdade de levantar-se contra os instintos, as dis­
posições inatas e os condicionamentos impostos pelo meio
ambiente.

Ainda que o hom em sofra a influência de todos estes


fatores externos e internos, ainda assim a força da liber­
dade, cujas raízes entrelaçam o espírito humano, apontam
qual caminho a seguir. Diante de uma decisão a ser tomada
e quando o sentido da vida estiver aparentemente apagado,
a força extraordinária do espírito manterá a capacidade de
escolher qual a m elhor direção a seguir. Mesmo quando
a realidade parecer tragicamente imutável, restará no espí­
rito a liberdade de mudar nosso m odo de ver e sentir a
realidade.

Em outras palavras, a criatura humana, além da graça


de viver, pode decidir qual será a sua form a de existência.
Pode colocar-se num plano superior aos condicionamentos

39
biológicos ou sociais estabelecendo metas para seu destino
pessoal, im previsível e livre. O ser humano é incondicio-
nado, apesar das circunstâncias do ambiente, da hereditarie­
dade e dos fatores somatopsicológicos. A dimensão espiri­
tual permanece cristalina, imaculada para toda vida.

—? O terceiro fator da existência humana é a sua capaci­


dade de ser responsável. Da mesma form a que a liberdade
humana de liberdade de passa a ser liberdade para, tam­
bém a responsabilidade é responsabilidade vara. Tudn nesta
.vida tem uma finalidade aue lhe confere um sentirin Em
outras palavras, o homem é responsável ante si mesmo,
ante sua própria consciência e a transcendência. A Logo­
terapia reforça que o homem é totalmente responsável,
levando consigo a consciência de tal responsabilidade, mas
ao mesmo tempo tem a oportunidade de saber “ por que” ,
“ para que” , ou “ frente a quem ” é responsável. Este homem
é chamado a ter responsabilidade, a responder, a dar res­
postas aos questionamentos da vida a cada momento.

Enquanto a Psicanálise propõe a conscientização dos


impulsos e das experiências reprim idas, enquanto a Psico­
logia Individual deseja ver este mesmo homem assumindo
a responsabilidade pelos sintomas, a Logoterapia busca aju­
dar no encontro rifT um semtirln vitq.l Insiste em que, além
da conscientização de um inconsciente sexual, a Psicotera­
pia tem a missão de conscientizar o cliente para a realidade
de sua espiritualidade reprim ida. Cada uma destas propos­
tas clínicas são complementares entre si e, segundo Frankl,
que respeita profundamente o trabalho de Adler e de Freud,
todas elas contribuem para uma visão da totalidade do
homem.

Com efeito, a Logoterapia basicamente irá afirm ar aue


o significado fundamental de ser humano é ser consciente e
. resvonsável. Por outro lado, tanto a Psicanálise quanto
a Psicologia Individual, se tomadas isoladamente, acabam
vendo apenas uma parte do homem. A soma destas duas
importantes teorias ajudam a perceber uma imagem mais
completa da pessoa humana. Em outras palavras: uma
perm ite a compreensão do homem em sua dimensão biopsi-
cológica, a outra esclarece aspectos da dimensão sócio-
psicológica e, finalmente, a Logoterapia ajuda a perceber
o indivíduo como um complexo psico-bio-sócio-eLJiritual.

Vale recordar que a dimensão espiritual a aue se refere


a Logoterapia é a capacidade que o homem tem de ser trans­
cendente, de estar no mundo e poder distanciar-se dele.
40
de ter consciência da efem eridade da vida, de sua respon­
sabilidade com o ser livre para m odificar o mundo ou sua
maneira de enfrentá-lo.
V iktor Frarikl vai considerar cada pessoa como um ser
único neste mundo, não apenas no que se refere aos seus
traços pessoais, mas também quanto à missão particular
de sua vida. A im portância desta diferença aparece na re­
lação com a comunidade onde cada indivíduo, pelo fato
de ser único no mundo a pensar o que pensa, a fazer o
que faz, não pode ser representado por ninguém. As dife­
renças pessoais, a liberdade da pessoa em mudar de opinião
no m om ento seguinte fazem, de cada um de nós, seres que
não podem ser representados por quem quer que seja em
nenhuma circunstância. A diferença entre os seres huma­
nos im pede a possibilidade da massificação que iguala as
pessoas e apresenta as mesmas como suEstitUíveis.
Para Frankl, as pessoas vão ser consideradas como
insubstituíveis em sua vida e missão e não podem ser re­
presentadas, seja por sindicatos, associações de classe ou
pelos governos autoritários. Ninguém pode falar em nome
de ninguém ou representar indivíduos sempre em se fazen­
do na busca de um sentido, flutuando em sua capacidade
de ser livre e mudar de opinião. Por outro lado, a repre­
sentação das pessoas por elementos autoritários ou asporu-
taneamente _esco1h]dos cria uma relação paternalista, um a.
dependência que prejudica nossa capacidade de assumir
responsabilidades. Há portanto a necessidade de um enga­
jam ento pessoal de cada um de nós com a vida; tal engaja­
m ento reflete-se no espírito comunitário bem direcionado,
cooperativo, que nasce do esforço de todos e ganha sentido
em si mesmo.
O sentido da individualidade insubstituível somente ga­
nha significado no seio da comunidade onde as diferenças
se destacam, onde o que temos em comum soma-se e cada
pessoa pode acrescentar para a sobrevivência do grupo
aquilo que ela possui como unicamente seu, a missão par­
ticular que tem. Particularmente, eu tenho pensado que a
Logoterapia é acima, de tudo uma importante nroposta polí­
tica eme apresenta o homem como elem ento predestinado
.ao engajamento na História, neutralizando a representati-
vidade massificada. e chamando rarla um a agsumír sua.
. resnonsabilidade frente a.o mundo e à existência.
Neste mundo onde cada um é chamado a ser um mis­
sionário, onde torna-se impossível ser representado, o ho­
m em é chamado a entender seus lim ites pessoais e sua
liberdade. Ninguém, no mundo, pode sentir o frio do outro.
A dor e a felicidade são experiências exclusivas de cada
um, não podem ser sentidas da mesma form a, por mais
que estejamos afetivamente ligados ao outro. A aparente
repercussão do sofrim ento ou da felicidade do outro sobre
. nós não pode ser entendida como transferência.
Vivendo em comunidade, podemos sofrer em conjunto,
podemos amar e crescer, podemos até ajudar pessoas pela
graça do amor, mas a aventura de viver é tão íntim a que
se torna, uma, experiência quase solitária, seguramente in-~
transferível. Mas o que nos faz perceber a irrepetibilidade,
o que nos aponta esta exclusividade, o que faz com que
seiamos importantes e raros é a. vida~na. comunidade
A massificação elim ina a singularida.de ria, pessoa, fa ­
zendo de cada criatura uma cópia da outra, como se cada
um fosse “ igual” ao outro, como se as pessoas não tives­
sem atribuições missionárias distintas. Mas é somente como
elemento da comunidade que o homem renasce completa­
mente novo e total. A vida em comunidade perm ite o nasci­
m ento inicial da contemplação e depois a relação criadora,
a relação eu-tu; nela resplandece a capacidade que o ho­
m em tem de amar, cuidar de seu semelhante e conviver.

4. O SE N T ID O DA V ID A

Ao contrário da interpretação freudiana, a Logoterapia


entende que a homeostase, a teoria da redução da tensão
ou o princípio do prazer oferecem uma explicação apenas
parcial sobre a conduta humana. O impulso em busca de
status da Psicologia Individual de Adler deixa de lado alguns
aspectos de extraordinária im portância no desenvolvimento
do homem, bem como os outros três impulsos: auto-expres-
são, auto-integração e auto-realização.
Para Frankl, os impulsos nomeados por Adler são con-
.seqüências p não cansas rin mmpnrt.amento ou da conduta,
do homem. O mesm o p o d e m os a f i r m a r em relação p hnsca.
do prazer e da m ntiva^ãn De fato, diz Frankl, “ somente
quando falta ou quando já se conseguiu o objetivo prim ário
é que poderá surgir interesse por si mesmo, o que é facil­
mente observável em uma existência neurótica” . Ou seja,
o imp ulso de auto-integracão não é de m odo algum p ri­
mário, pelo contrário, segundo nosso ponto de vista á uma
form a deficiente de ver a existência humana, tendendo a
reduzi-la.

42
A motivação prim ária é desenhada como sendo o dese­
jo de sentido e do encontro de um significado para a vida.
Frankl não pretendeu desqualificar a Psicanálise por sua
crenca em aue o homem caminha, guiado pelo princípio
do prazer. Não pretendeu igualmente dizer que a Psicolo­
gia de Adler estava errada, ao considerar o ser humano um
peregrino que busca superioridade.

Segundo Frankl, todas estas abordagens psicológicas


serviram a um m om ento histórico que já passou. Como
a H istória é um processo dialético em marcha, a cada época
norresnnnrift uma nhnrriagem terápica. O mom ento da Psi­
canálise atuar, conscientizando os homens da repressão
vitoriana da sexualidade, já passou. O momento da Psico­
logia Individual questionar a neurose de busca desesperada
e de obtenção do poder já fo i ultrapassado pela História
com a Prim eira e Segunda Guerras Mundiais. Mas o sofri­
m ento da humanidade com as guerras, o bombardeio atô­
m ico de Hiroshim a e os campos de extermínio nazista ainda
colocam este violento animal chamado homem diante de
sua fragilidade. O que se passou em Auschwitz chamou a
atenção da humanidade para o poder de resistência do es­
pírito humano; clarifica a importância da liberdade e da
missão de viver a fragilidade humana com espírito trans­
cendente; m ostra que a deusa Razão não é tão grandiosa
assim, e que o homem não é tão senhor de si, simples­
m ente porque tem a capacidade de raciocinar. Em lugar
desta capacidade de racionalização, começou-se a perceber
uma criatura humana tomando contato com sua existência
solitária e com a violência animalesca da humanidade
desesperada.

A decepção da humanidade consigo mesma era tama­


nha que começava a nascer uma grande consciência do
papel da responsabilidade individual, engajada no aqui e
no aaora para a construção do futuro ou pelo menos da
esperança. Começava a ser questionada a crença na realiza­
ção, na felicidade trazida pelo status e pelo acúmulo de
bens materiais; os valores começaram a ser modificados.
O sentimento de solidão do homem poderia ser ilustrado
com a seguinte estória passada em Auschwitz:

Havia uma jovem enferm eira destinada a cuidar dos


enferm os do campo. Certo dia ela saiu a serviço, tendo
de passar por dentro de um galpão com duas pilhas de
cadáveres dos dois lados e com um pequeno caminho pelo
meio. Os montes de pessoas m ortas eram de aproximada­

43
mente 2 metros de altura. Ficou surpresa quando percebeu
que, em meio aos corpos, algo se movimentava! Quando
se aproximou, viu que era uma adolescente aparentando
uns 15 anos de idade, maltrapilha, magra e com um olhar
muito brilhante, coisa que jamais pôde esquecer. Pergun­
tou-lhe, a enfermeira, o que estava fazendo ali naquele es­
paço malcheiroso; ao que ela respondeu de cabeça baixa:
“Está tão difícil viver entre OS vivo s! Pensei que encontraria
mais conforto entre os m ortos . . . ” A enferm eira pôs a mão
no bolso de seu avental e tirou um pequeno pedaço de pão
que tinha escondido para si mesma entregando-o à menina.
Esta comeu-o desesperadamente, enquanto a outra dela se
despedia para continuar seu caminho. Mais tarde, quando
voltou, a menina já não se movimentava; a enferm eira per
cebeu-a morta. Jamais pôde esquecer aquela cena!

Estes acontecimentos mudaram o conceito de sofrim en­


to humano, a form a de encarar a dor e a felicidade. A
História mudava e pedia uma nova resposta para os pro­
blemas novos que a humanidade começava a conhecer.
Viktor Frankl, tendo sobrevivido à experiência mais crucial
da H istória do homem, teria a missão de trazer uma nova
e atualizada resposta, a Logoterapia.

O homem é único na procura de um sentido para sua


-gida. mas não precisa inventá-lo. como propõe o existencia­
lism o ateu de Sartre (para ele a vida é um absurdo). S"e-
gundo Frankl, o sentido é parte da existência humana, pre­
cisa anenas se r p n m n tra rin Para Freud, o questionamento
sobre o sentido é sinal de neurose; quando as pessoas o
procuram estão literalm ente enfermas" " ‘

A procura de sentido define uma diferença fundamen


tal entre Freud e Frankl. Segundo este, fica estabelecido
como verdade o fato de que o olho não consegue ver-se a
si mesmo, mas o homem pela sua consciência pode ser res­
ponsável por seu destino; pode distanciar-se de si mesmo;
pode observar-se, decidir conscientemente qual será sua
trajetória; pode emprestar significado à vida, criando va­
lores, dando expressão aos seus valores criativos, inventan­
do soluções inéditas para as mais diversas situações; pode,
ainda, encontrar este sentido por meio dos valores expe-
rienciais, vivenciando sua capacidade de ser bondoso, ser
verdadeiro, criar a beleza ou mesmo conhecer a criatura
humana em toda sua inteireza; pode experimentar o ser
humano único e, através deste conhecimento, chegar a amá-
lo. E possível viver todas estas experiências.

44
O homem pode dar sentido à sua vida experimentando
seu destino, suas preocupações como situações de cresci­
mento. ü m mie para isto tenha m ie re-sianificar artificial­
mente tais experiências como propõe Bandler & Grinder
em Program ação neurolingüística. Em bora as diferenças
entre a re-significação e o encontro de um novo sentido
sejam aparentemente conceituais, na verdade, enquanto
Frankl é um humanista embasado pelo Existencialismo
Religioso, Bandler & Grinder são neo-humanistas com fun­
damentação neobehaviorista.

Qs valores criativos nos levam a ter atitudes completa­


mente novas frente a situações irreversíveis, ao sofrim ento
e ao im previsível. Quanto aos valores de atitude, eles apare­
cem quando estamos envolvidos pelo sofrim ento e pela dor
que, para Frankl, são plenos de significados. Segundo ele,
praticamente não há como sobreviver sem reconhecer o
sentido escondido em cada momento de dor.

O desejo de encontro de um significado para Frankl


não é uma força impulsiva no sentido psicodinâmico; não
é instintiva, nem característica do inconsciente coletivo, ou
seja, a busca de valores é muito mais do que uma força
inata que empurra. Ao contrário, é uma força de atração,
subsumindo a tomada de decisões livres e individuais por
cada ser.

A conduta m oral não é dirigível; resiste aos condicio­


namentos e não há sequer uma tendência impulsionada
pelos instintos que pudesse caracterizar um “ impulso de
m oralidade” para tranqüilizar a consciência. A conduta m o­
ral é desenvolvida espontaneamente, pela capacidade do
homem de se ligar aos semelhantes por amor e não por
instinto.

Perguntar pelo sentido vital é um predicado puramente


humano, reservado unicamente a ele e somente dele pode
nascer a resposta. Em última instância, é uma pergunta
feita a si mesmo, olhando sua própria face como em um
espelho; a resposta surge de seu íntimo. Em uma palavra,
a vida cobra de cada homem uma resposta que é res­
pondida com a própria vida; esta capacidade reservada ao
homem de dar e de receber respostas faz dele um ser
responsável.

Para Frankl, ser responsável é ser capaz de dar res­


posta ou de responder frente à sua vida. A responsabilidade
ganha importância sob a form a de um im perativo cate­

45
górico na Logoterapia: “ Viva como se a vida estivesse sendo
vivida nela lílt.ima. v p v , p m m n na. nrit.iRirn. vez tivesse
foitn todas «ejsas r r radamente. Tão erradamente, que
não se dispusesse a repetir tudo de nnyn” n si;>nificadr>
_da vida é íínim e particular, varia de indivíduo para indi­
víduo, muda com o tem po e segundo a transitorindade da
existência.

Sabemos que a vida é transitória e esta transitoriedade


está sob a responsabilidade da pessoa, uue está enfrentando
constantemente novas alternativas e responsabilidades. Na
verdade, o hom em leva toda a sua vida escolhendo, optan­
do por aquilo que m elhor responda a seus anseios mais
humanos. Quando as potencialidades se atualizam, conver­
tem-se em realidades que ocupam um lugar de importância
no presente, depois convertem-se em passado, onde final­
mente ficam a salvo e resguardadas da transitorindade. No
arquivo passado, nada fica irrem ediavelm ente perdido, tudo
fica definitivam ente armazenado. Por outro lado, as alter­
nativas rejeitadas se perdem para sempre; daí ser tão im ­
portante saber escolher responsavelmente.

5___A FRUSTRAÇÃO E O V A ZIO IíX IS T IíN C IA L

Atualmente os clientes se queixam com freqüência da


falta de sentido da existência; buscam encontrá-lo e, não
conseguindo, um grande vácuo existencial se apossa deles.
O vazio, o tédio podem ser tão imensos quanto a fragili­
dade do homem diante da dor final. A frustração sem fim ,
Frankl a explica da seguinte form a: “ sem instintos para
guiarem suas condutas, sem apoio da tradição que orienta
nossa escolha e frente à necessidade de tom ar decisões,
o homem fica perdido” e mergulha em um profundo vazio
existencial que se manifesta principalmente sob a form a
de um grande aborrecimento. O vazio é o m aior problema
psiquiátrico que existe atualmente, m aior do que qualquer
outra moléstia. Algumas vezes ela aparece sobre a form a
de uma síndrome chamada “ neurose de fim de semana” ,
um tipo de depressão que afeta as pessoas, ao perceberem
a falta de conteúdo de suas vidas quando termina a cor­
reria da semana.

A frustração do desejo de significação é o que Frankl


denomina “ frustração existencial” . Esta frustração às vezes
pode ser compensada por um forte desejo de poder ou,
em outras situações, pelo desejo de prazer. A frustração

46
existencial conduzirá muitas vezes à busca de compensa­
ções no acerbamento da sexualidade, o que não soluciona
o problema, podendo desencadear um vazio ainda maior.

| Segundo Frankl, a frustração existencial não é patoló­


gica: “ nem todos conflitos são necessariamente neuróticos;
o sofrim ento não é um fenômeno patológico e chega em
muitas ocasiões a ser necessário para o crescimento da
pessoa” . Por esta razão, a tentativa de encontrar um sen­
tido para a vida, apesar de incendiar nossa alma com as
chamas da angústia, não pode ser compreendida como trans­
torno mental, como entendia Freud.

Aliás, o fenômeno da angústia e do desespero flutua


no centro do pensamento existencialista. Tanto é assim que
as duas obras fundamentais de Sõren Kierkegaard chamam-
se Conceito ãe angústia e O tratado do desespero. Parece
que um processo de crescimento passa necessariamente
pelo caminho da angústia e se ela não fo r um remédio
suficiente para a humanização do homem, a próxim a para­
da é o desespero. Diante do abismo da loucura, surge a
esperança de uma reestruturação. Lem brando bem o m o­
delo clínico de algumas propostas existencialistas, como por
exemplo o da antipsiquiatria de Ronald Laing, o processo
de psicoterapia dá-se na seguinte seqüência: 1) levar o clien­
te à angústia, numa tomada de consciência de sua loucura,
através de um questionamento constante; 2) conduzir nosso
cliente a uma desestruturação administrada e perm itir que
ele, no vale da angústia, atinja os limites do seu desespero;
3) ao tom ar consciência de sua fragilidade e das dimensões
de seu conflito, graças ao desespero, surge a possibilidade
ou a esperança de uma reestruturação. Somente nesta etapa,
o psicoterapeuta tem o direito de falar, aconselhar, apoiar,
passar valores, sugerir. Em outras palavras, foram neces­
sários o sofrim ento e a angústia; careceu desesperar-se para
curar-se, perder sua razão para consegui-la, descer ao fundo
de um imenso vazio para descobrir solitariamente o cami­
nho de volta.

Frankl vai defender que os problemas, os conflitos de


uma pessoa podem estar condicionados por sua dimensão
psicológica, biológica e social, porém “ não são determina­
dos” por estes aspectos. Ainda que a pessoa tenha caracte­
rísticas visivelmente patológicas, sua concepção de mundo
pode não ser patológica. Geralmente o psicólogo tende a
desvalorizar o paciente, desmascará-lo, encontrar motivações
enfermas ou culturalmente patológicas e com isto acaba

47
perdendo de vista a pessoa como um todo. Esta ilusão faz
com que ele veja máscaras e não pessoas, que são julgadas
desqualificadas e permanecem desacreditadas. O m odelo
psicologista supõe uma descrença fundamental na pessoa
que nem chega a ser tomada em consideração. Ocultam a
pessoa para além das máscaras e rótulos, seu nome é substi­
tuído pelo nome de sua “ enferm idade” . Pareço que u, enfer­
midade está mais na form a de se ver o humum do que
propriam ente no cliente.

A busca de um sentido vital poderá na verdade pro­


vocar mais tensão do que equilíbrio e, paradoxalmente, a
tensão acaba sendo um requisito para a saúde mental, Em
outras palavras, enquanto o psicologismo defende “ o gozo
eterno” ou o equilíbrio ausente de tensões; enquanto insta­
la-se uma crença de que o aumento de tensão provoca o
stress e outras doenças, Frankl vai defender que a saúde
mental pressupõe um certo nível de tensões. Curiosamente,
é a tensão que proporciona o eauilíbrio e, geralmente, uma
pessoa feliz tem uma vida cheia de ocupações, tensa. A este
propósito, fo i realizada uma pesquisa nos Estados Unidos
por algumas agências de seguro e a conclusão foi surpreen­
dente: aproximadamente 60% dos aposentados m orrem no
p rim e iro ano após a paralisação de suas atividades.

É muito provável que a falta de tensão seja muito


mais perigosa do que o excesso e, em um mundo onde as
pessoas já não têm tempo para nada, a simples parada de
fim de semana tem a força de provocar surtos e enferm i­
dades passageiras. A “ neurose da desocupação” ou “ neurose
de fim de semana” é conseqüência da inércia do homem
máquina, chamado a produzir e só reconhecido pelo que
produz, incapaz de suportar o vazio, a inação do fim de
semana, das férias, a aposentadoria. Parado, não sabe o
que fazer com o tempo vazio; cai nas fobias, desespera-se
e quer manter-se na situação anterior.

A capacidade humana de suportar sofrim ento é muito


grande e acaba desenvolvendo processos de adaptação às
circunstâncias mais humilhantes: prisões, hospitais psiquiá­
tricos, escravidão, campos de concentração, etc. O depoi­
mento de prisioneiros que passam anos fo ra do mundo e
de pacientes internados revela o quanto pode ser prejudi­
cial a libertação brusca. N o campo de concentração, segun­
do experiência do próprio Dr. Frankl, o encontro violento
com a liberdade provocava um grande choque. O número
de acidentes automobilísticos é m aior no fim de semana;

48
m aior também é a ocorrência de suicídios, desavenças fam i­
liares, agressões, assassinatos, consumo de drogas, em bria­
guez, crises depressivas, problemas cardíacos, etc.

As explicações para o fenômeno da necessidade da ten­


são podem ser as mais diversas. Uma delas pode ter como
base a teoria geral dos sistemas de Ludwig von Bertalanffy
e dos psicoterapeutas sistêmicos em geral, segundo os quais,
os grupos humanos de convivência prolongada funcionam
como um sistema, com leis próprias e rígidas. A rigidez
das normas internas do grupo varia em função do isola­
mento e do teor psiccpatológico do grupo, ou seja, quanto
mais rígido fo r o grupo, quanto m elhor estruturado ele
estiver, m aior é a segurança que os elementos do grupo
experimentam e mais intenso é o golpe da quebra de um
vínculo ainda que a mudança venha a ser para melhor,
como aliás é o caso da libertação brusca, altas hospita­
lares, etc.

« Quem trabalha com pacientes crônicos depara-se com


paradoxos aparentemente inexplicáveis: pessoas que, depois
de vários anos, são liberadas, com a saúde restabelecida,
têm recaídas imediatas quando retornam ao convívio social.
Os prisioneiros, apesar do desconforto das cadeias (conhe­
cido e vivenciado por eles), geralmente praticam novos cri­
mes e voltam a ser presos como que saudosos da situação
anterior. Os doentes mentais voltam a ser internados porque
ficam perdidos quando encontram sua liberdade. Tanto o
delinqüente quanto o prisioneiro têm de passar por uma
fase de adaptação para reassumir sua vida normal. Este
fato de fundamental importância freqüentemente deixa de
ser levado em conta e coloca em risco a saúde mental e
física das pessoas. Os astronautas, quando voltaram da Lua,
tiveram de passar semanas em cabinas pressurizadas para
conseguirem sua readaptação ao clima terrestre. Os mergu­
lhadores, os escafandristas que trabalham debaixo d’água,
da mesma form a que os astronautas, carecem passar por
períodos de adaptação; se forem colocados em contato com
o ar livre, há o perigo da em bolia que mata em questão
de segundos.

Parece interessante que o fenômeno da adaptação brus­


ca escape, por vezes, à compreensão do homem moderno,
quando os gregos já se mostravam preocupados com ele,
fato exem plificável pelo m ito da caverna. Conta este mito
platônico que um grupo de prisioneiros fora criado na es­
curidão da caverna. Durante toda a vida a única coisa que

49
tinham experimentado eram as trevas. Seu mundo ora o
da escuridão e para eles não existia outra rmlidudu A única
realidade conhecida era a das sombras que transitavam na
penumbra da caverna no instante em que os reflexos do
sol as favoreciam e nada mais. Para eles n claridade não
existia. Certo dia, foram colocados em liberdade por cle­
mência do rei; ao m eio do dia chegou u escolhi. Imediata­
mente os soldados desacorrentaram as pernas do* escravos
e pediram que saíssem. A luz do sol vivo curou os olhos
deles, acostumados a viver nas trevas. O rei descobriu o
quanto era difícil fazer o bem. Para quetn eslá aeoslumado
à escuridão, a natureza oferece mecanismos de adaptação,
o impacto da luz provocara uma cegueira.

A tensão é o conflito entre o que e que deveria ser.


Nasce da luta do homem pela transformação de uma reali­
dade em outra que responda ao seu anseio. A pessoa hu­
mana precisa da tensão e não pode fugir dela a vida inteira,
pois o efeito desta fuga é o nascimento de outra tensão.
Fugir do stress pode ocasionar stress. O stress aparece no
enfadonho dia-a-dia vazio de atividades do aposentado ou
na correria do executivo que esteja empenhado em uma
tarefa que não se realiza. Não é conveniente refugiar-se na
homeostase ou na busca neurótica do equilíbrio. Muito
menos convém desesperar-se na busca do prazer ou do
poder. O que interessa é o estabelecimento da noodinâmica,
colocando-se a tensão espiritual de form a a polarizar de
um lado o homem que procura um sentido e de outro o

D ese nh o n? 1

Em busca do e q u ilíb rio , a pessoa humana vai m udando seus passos


e consegue andar.

50
sentido que ele deseja e precisa encontrar para sua vida.
Afinal, a tensão é conseqüência da busca do equilíbrio que
o homem jamais encontra porque é combustível a dina­
m izar seu espírito. A busca do equilíbrio é conseqüência
das contradições internas do hom em que sai pelo mundo
procurando encontrar a estabilidade definitiva, mas seu
caminhar acontece graças ao seu desequilíbrio; cada passo
da caminhada é uma nova tentativa de equilibrar-se. O resul­
tado é que aprendemos a mudar os passos e conseguimos
andar.

Sem a tensão dialética, sem o desequilíbrio não seria


possível caminhar. O sofrim ento humano é necessário en­
quanto chamado à transcendência e à superação do próprio
sofrimento.

6. OS VALORES E O SE N TID O DA V ID A

Todo ato m oral supõe o fato de se ter escolhido uma


dentre várias possibilidades; cada um de nós escolhe o que
considera mais valioso, o que acha mais importante para
sua vida em dado momento. Os valores são o que consi­
deramos de mais valioso para nós na vida. Passamos a vida
defendendo valores, lutando pelo que tem valor e entre­
tanto, como dizia Platão, m uito em bora cada elemento da
natureza tenha propriedades que elim inam necessidades no
plano real, eles são reflexos da nossa imaginação e nascem
no plano das idéias.

Em outras palavras, o valor de qualquer objeto não


existe isoladamente do homem. Somente a pessoa humana
tem consciência do valor e capacidade valorativa, o que
varia em função de processos pessoais internos. A capaci­
dade valorativa é conseqüência de uma consciência que tem
a força de reconhecer significados. Somente o homem tem a
faculdade de “ valorizar” objetos e atitudes quando im por­
tantes para sua realização ou deixar de reconhecer valores,
quando saciado.

A questão dos valores pode ser analisada segundo a


perspectiva da economia marxista sob a qual o valor das
coisas flutua, dependendo exclusivamente das necessidades
internas do homem, ou segundo a lei da oferta e da procura.
O objeto ganhará significado externo, independentemente
do valor que ele tenha em si. Maçã é maçã, alimento é

51
alimento e em qualquer lugar levará em si as qualidades
nutritivas naturais próprias de sua natureza, mas o ho­
mem, guiado por sua consciência, reveste-os de valores. O
homem possui um poder edificador ou destruidor, segundo
parâm etros internos. Se um objeto tem valor, ele tem tal
valor para alguém que reconheça, nele, este valor. Daí o
valor apresentar-se com uma face dupla: o valor que a coisa
tem no plano real, objetivo e o valor que ele !>,anha se­
gundo a subjetividade humana, com o por exemplo:

Tem um valor em si mesma, indepen­


dentemente do homem (valor natural).

A PR ATA
Tem um valor atrib uíd o pelo homem,
depois de transformada em substância
útil. Este valor nasce da capacidade
do hom em de humanizar a natureza
e criar com ela (va lor atribuído).

A capacidade criativa do homem m odifica a prata em


seu estado natural, emprestando a ela uma nova form a
adequada às suas necessidades. Apesar do valor que as
coisas têm em si mesmas, apesar da prata possuir caracte­
rísticas particulares que a tornam uma substância diferente
das demais, ela tem um valor para a pessoa humana, que
a vê com o algo de valor, A prata é prata somente para o
homem, com necessidades específicas que só podem ser
satisfeitas por interm édio dela, que vale o que vale por
força de o homem criar valores.

M uito embora a economia reconheça vários tipos de


valores, estes, na Psicologia, são considerados simbolica­
mente, segundo os significados que lhes são dados pelo ho­
mem, capaz de em prestar sentido às coisas, aos objetos,
à própria vida, ao mundo.

Em decorrência da capacidade criativa, o homem esta­


belece uma relação de valorização com o mundo, fetichi-
zanão coisas, projetando suas próprias carências nos obje­
tos. Esta capacidade de fetichização ou de resignificação
estende-se às pessoas quando as discriminamos, umas em
relação às outras. Fetichizamos as profissões, religiões e
filosofias, teorias científicas, obras de arte, atitudes, uma
im portante missão ou qualquer coisa que a nossa cons­
ciência revista de valor, onde quer que possamos descobrir
valores naturais e objetivos no cenário da existência.

52
Entretanto, parece um tanto simplista, segundo a fe-
nomenologia dos valores, dizer que os objetos do mundo
exterior têm um valor adquirido ou atribuído pela cons­
ciência humana. P o r outro lado, parece que os valores des­
pontam quando travamos relação com o mundo, especial­
mente quando esta relação é de crescimento, de reconhe­
cimento do potencial escondido em cada ser. Este potencial
oculto revela o que há de transcendente, o que ele tem
dentro de si e o que ao mesmo tem po vai além. Esta é a
relação eu-tu, eu-tu eterno, eu-tu transcendente que não va­
loriza magicamente nada, mas que simplesmente descobre
os valores imanentes de cada fenômeno.

P or outro lado, a utilidade de um objeto depende de


sua capacidade de satisfazer necessidades humanas. O utili-
tarism o do hom em m oderno atribui valores em função da
capacidade do objeto em dar prazer. Este homem moderno
ganhou o status de senhor do uso de coisas que brotam
e m orrem como num passe de mágica, dependendo exclusi­
vamente do nível dos desejos humanos. Com esta força
para emprestar ou retirar o significado das coisas, segundo
seu desejo e necessidades, o hom em assume o papel de um
Deus. Faz de si um ser com força para criar ou eliminar
o mundo e seus objetos, obedientes às suas necessidades.
Percebe o mundo e o outro como instrumentos que aliviam
desejos e carências; logo depois, elimina-os para o porão
da indiferença, com o se já não existissem.

Esta reflexão sobre os valores é importante para a


Logoterapia e fo i realizada com base nas idéias de A dolfo
Sánchez Vásquez, expressas em seu livro Ética. Permiti-me
tirar as seguintes conclusões:

1) Não existem valores em si como entidades ideais, mas


objetos reais que possuem valor;
2) O valor não existe independentemente do homem que
reconheça tal valor;
3) Os valores nascem da relação homem-homem e homem-
natureza, em função das necessidades humanas;
4) Cada objeto possui algum valor em potencial que pre­
cisa ser atualizado, com o semente que traz uma planta
dentro de si, com todo um potencial de realização.

Segundo Scheler, o valor pode ser definido como uma


prioridade, não do objeto em si, mas que nasce da relação
do hom em com o objeto ou com os seres, na medida em
que estes tenham condições de satisfazer necessidades hu­

53
manas. Recorrendo a Scheler, Frankl apóia :i LngoU '•npia
nos valores e acredita que eles permitam ao homem en­
contrar o significado de sua existência.

A pessoa humana vive plena de “ faltas” ou do necessi­


dades e, procurando encontrar o que m elhor preencha este
vazio, ela se movimenta, toma decisões, opta ou escolho va­
lores durante toda a vida, a cada instante o sempre. Os
valores, segundo Frankl, podem ser classificados, obedecen­
do a três grupos:

1) Valores de criação;
2) Valores de experiência;
3) Valores de atitude.

7. VALORES DE CRIAÇÃO

Valores de criação são frutos da capacidade humana


de criar coisas novas, situações novas, decorrentes de suas
atividades concretas e transformadoras do mundo. Em con­
tato com a natureza e com as forças da natureza, o homem
cria valores. A capacidade criativa do homem faz com que
ele seja insubstituível no mundo, uma vez que ninguém
consegue repetir a criação do outro. O mundo é marcado
pelas singulares: uma tarefa, uma obra de arte, a vida ou
uma história não podem ser repetidas nunca.

Frankl vai mais além, afirmando: “ Não é uma deter­


minada profissão que faz com que uma pessoa se torne
feliz, mas a form a de exercê-la” . O que interessa não é
o que se faz, mas com o se faz, porque uma profissão em
si não faz com que uma pessoa seja insubstituível, mas o
que faz uma pessoa ser única no mundo é a form a como
ela se dedica a determinadas coisas.

Quem ama uma criatura conhece a experiência de sen­


tir a presença do outro no seu agir, no seu assovio, no
ritm o de seus passos, no cheiro de sua pele, etc. A mãe
reconhece o choro do filho em meio à multidão e, pela
graça do afeto, ele não se perde. O filh o é reconhecido
pelas pequeninas coisas que faz.
No que se refere ao trabalho, Fabry considera que uma
pessoa pode chegar a ser feliz quando sua tarefa não é
obrigatória. Talvez seja por esta razão que os artistas, tra­
balhando guiados por um apelo interior, descubram em sua
atividade o sentido de sua vida. Muito além de uma con­

54
quista de prazer, a busca de sentido não implica em ser
feliz; artistas e pesquisadores que se entregam a uma ta­
refa por vocação às vezes são pessoas angustiadas.

Os valores mais verdadeiros não conduzem necessaria­


mente ao prazer ou à felicidade, ao gozo. A sensação de
realização provém do engajamento responsável do homem
em uma missão, que pode até estar envolvida pelo sofri­
mento. O sofrim ento, justificado pela importância da m is­
são, ganha significado novo. Quando uma pessoa tem claro
para si mesma o porquê, a razão de ser de sua dor, esta
parece diminuir. Neste sentido, um trabalho é diferente de
uma missão, porque aquele pode ser tarefa pesada e cansa­
tiva, mas a missão brota do centro da vida, com toda força
e com todo empenho da criatura, voluntariamente.

A felicidade do homem não pode ser determinada pela


importância de sua profissão ou pelo nível de salário que
receba; um jardineiro anônimo pode ser, comparativamen­
te, mais feliz, apesar da marca dos espinhos na pele, porque
trabalha cantando enquanto lida com a folhagem. Muitos
ganham expressão e reconhecimento. Ser ou não ser reco­
nhecido pelo que se faz depende da fo rm a como desem­
penhamos a missão, da maneira como cumprimos nossos
afazeres, firm ando o quanto somos únicos neste mundo.
Somos sempre chamados a valorar missões que nos opor-
tunizem realizar valores.

Os valores de criação, segundo Frankl, se manifestam


por três vias: 1) a via do trabalho; 2) a via do amor; 3) a
via do sofrim ento. Trilhando-as, o homem tem liberdade
de criar soluções inéditas, firm ando sua individualidade por
sua form a pessoal de viver.

8. VALO RES DE E X P E R IÊ N C IA

Valores de experiência são valores que nascem da ca-


paoidade do hom em de sentir bem e adequadamente suas
experiências. Referem-se às possibilidades do homem em
ser capaz de retirar, do mundo das diversas experiências,
um aprendizado intransferível e particular, aprendizado
proveniente das relações de uma pessoa com outras e com
a realidade. Exem plificando: perceber a beleza do mundo e
da natureza é uma das melhores form as para se encontrar
o sentido de nossa vida, entretanto, a sensação que advém
dos contatos com o mundo é ím par e varia de pessoa para

55
pessoa, contribuindo para a form ação dos valores experien-
ciais que são individuais e particulares. Frankl ensina que
quanto m aior fo r a capacidade humana de experimentar o
mundo, a natureza e a vida, m aior será a possibilidade de
realização.

A Gestalt é uma Psicoterapia Existencial que enfatiza


a experimentação do momento presente, o dar-se conta dos
sentimentos que temos aqui e agora. Muito em bora a Gestalt
prenda-se ao presente, caracterizando o que Frankl chama
de presentismo, conseqüentemente considerando passado e
futuro como menos importantes, ela é uma das mais im ­
portantes linhas que se dedicam ao trabalho com os valores
experienciais.

Perls justifica fenomenologicamente o presentism o ao


afirm ar que o futuro e o passado estão no presente, no
aqui e agora, uma vez que o homem é o que é e o que
sente no momento. Frankl não discorda totalmente da
Gestalt, mas, admitindo a vida como sendo missão, vem
acrescentar que a esperança é uma característica unicamen­
te humana, que diferencia o homem dos animais. A cons­
ciência da temporalidade e da historioidade é privilégio da
pessoa humana que tem capacidade de planejar seu futuro
com as atitudes do presente. A missão é um p rojeto em
andamento que pode v ir a ser no depois. A intencionali-
dade, a potencialidade existentes no homem agora pressu­
põem a esperança na possibilidade de futuro para concre­
tizar-se. Na verdade, a diferença entre a Gestalt e a Logo-
terapia é filosófica: a prim eira tem com o base o Existen-
cialismo Ateu enquanto que a segunda, o Existencialismo
Judaico-Cristão.

Quando uma pessoa apresenta dificuldades psicológicas


ou emocionais, este problem a se reflete na sua capacidade
de experimentar, prejudicando-se as sensações; sofrim ento
e iminência da m orte alteram nossa capacidade de sentir.
A enfermidade, os níveis de necessidade e de saciedade do
organismo alteram a sensibilidade humana, mas o sofri­
mento é mais facilm ente suportável por aqueles que desco­
briram o sentido do sofrer.

O organismo físico oportuniza a realização dos valores


experienciais, mas o que mais interessa à Logoterapia é a
experiência como oportunidade para a transcendência. Pen­
sando como Chardin, Frankl apresenta o sofrim ento como
“ necessário” , enquanto via de auto-superação ou superação

56
do próprio sofrer. Neste sentido, toda evolução tecnológica,
espiritual ou científica decorre das tentativas feitas pela
humanidade para superar a dor — importante alavanca de
crescimento humano.

A sexualidade seria completamente afetada não fosse


a capacidade humana de compartilhar experiências e de
sentir o mundo das outras pessoas. Assim, os valores de
experiência nascem da nossa capacidade de sentir e experi­
mentar o mundo.

9. VALO RE S DE A TITU D E

Valores de atitude estão relacionados com a ética pes­


soal e a tomada de posições diante da vida, do sofrimento,
da alegria e de tudo o que acontece. Às vezes temos atitu­
des firm es e não mudamos porque acreditamos naquilo que
fazemos. Outras ocasiões exigem m aior ponderação e mu­
danças de atitude.

Pode ocorrer de sermos chamados à responsabilidade,


assumindo o que o prof. Juan Etcheverry chama de logo
atitude, ou seja, uma atitude de busca do sentido trans­
cendente dos fenômenos e fatos da vida. Por pior que seja
o sofrim ento, a angústia ou enfermidade, resta o desejo de
encontrar um sentido; a adoção desta ou daquela atitude
varia em função da responsabilidade do homem para com
a sua vida. N os campos de concentração, era comum encon­
trar pessoas empenhadas na sobrevivência até o instante
final, especialmente quando tinham deixado alguma im por­
tante missão por concluir (uma carreira profissional, um
grande amor, o nascimento de um filho, etc.). As tarefas
inacabadas tinham o poder de amenizar o sofrim ento e de
ajudar o prisioneiro a tornar-se mais forte.

N o sofrim ento, manifesta-se a grandeza do homem, aí


realizam-se valores de atitude. Mas ainda que os seres hu­
manos realizem os valores no sofrim ento, eles transcendem
o sofrer, alterando todo o comportam ento e sua form a de
agir diante de outras forças. Se a vida tem um para quê,
o sofrim ento, que faz parte da vida, também ganha signi­
ficado e nossa atitude frente a ele é outra. O papel da
Psicoterapia atual, m uito mais do que fortalecer o homem
para o trabalho ou orientá-lo para sentir prazer, reside
principalmente na capacitação do hom em para enfrentar o
sofrimento.

57
O sofrim ento é uma das realidades mais concretas de
nossa vida. Com certeza, ele estará presente em algum m o­
mento; através dele, podemos chegar à plenitude do desen­
volvim ento da pessoa humana até a chegada da morte. A
certeza da dor existe porque o homem não é apenas honio
faber, com a missão de produzir bens, mas hom o patiens,
movendo-se em direção oposta. Enquanto o prim eiro cami­
nha para o êxito (no sentido m aterial), o segundo caminha
para o fracasso, sem que isto signifique ausência total de
satisfação.
A natureza humana admite o sofrim ento como algo
pertinente à sua estrutura, talvez porque o hom o sapiens
ouse transform ar momentos de dor em oportunidades de
crescimento, ouse transform ar o desespero cm satisfação
e o fracasso em êxito, se houver mudança de atitudes. Há
dores que são inevitáveis ou incuráveis e pertencem à con­
dição humana. As pessoas são mortais, suas mortes são dor
intransferível e inevitável, todos chegaremos a ela; o que
variará de pessoa para pessoa é a atitude em relação ao
que vamos experimentar.

10 IN C O N S C IE N T E N O É TIC O

A ciência pode ser comparada a uma grande casa ina­


cabada. A cada dia, novas questões são levantadas, uma
porção da verdade é descoberta e nossa compreensão do
mundo encontra maiores oportunidades de ser ampliada.
Cada verdade significa o crescimento da mansão interm i­
nável, da construção do saber. A construção é transitória,
infinita, interminável, como transitória é a existência do
homem, com o infinita é a evolução da humanidade.
Se o crescimento da pessoa humana e do saber cien­
tífico são eternos, se o progresso e a evolução da huma­
nidade não estacionam jamais, a verdade psicológica, as
descobertas da Psicologia estão sujeitas ao desgaste do tem­
po, determinadas pelo aqui e o agora de uma experiência
histórica, pela transitoriedade sem o sentido de algo defi­
nitivo e imutável. Cada m om ento do saber, cada nova cons­
tatação ou descoberta, têm uma im portância histórica: os
pavimentos superiores repousam sobre os inferiores, conso­
lidados e superados.
Frankl refere-se com m uito respeito à Psicanálise de
Freud, conserva um profundo respeito pelos grandes estu­
diosos do passado. Considera cada uma das escolas de Psi-

58
coterapia como im portantes para sua época, respondendo
aos questionamentos e necessidades de seu momento. Apre­
senta a Logoterapia com o uma abordagem que tem sentido
para os nossos dias, mas reconhece que, com o passar dos
anos, não será mais do que uma peça de museu, que perdeu
sua função.

A Logoterapia é uma resposta às necessidades de um


grupo humano em um tempo específico, ou seja, nos m o­
mentos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, após
Freud, Adler (criadores da r i e da 2 Escola Vienense de
Psicoterapia) e o nascimento da Fenomenologia Existencial,
após os importantíssimos questionamentos da filosofia de
Husserl, Heidegger e Hegel (que tiveram a força de divi­
dir a história da humanidade em antes e depois de sua
passagem por este m undo). A Logoterapia é mais uma res­
posta transitória e carrega em si a consciência desta transi-
toriedade.

N o que se refere ao inconsciente, a Logoterapia veio


ampliar este conceito fundamental, agregando informações
novas que, se vivo fosse Freud, seguramente teria incor­
porado ao seu pensamento. Enquanto a Psicanálise define
a existência do inconsciente sexual instintivo reprim ido, a
Logoterapia supõe o inconsciente noético, uma espirituali­
dade reprim ida no grande universo do inconsciente. Em
outras palavras, além do impulso sexual, há uma espiritua­
lidade reprimida, inconsciente. A tarefa psicoterápica de
tornar consciente o inconsciente é necessária; deve-se rea­
lizar a conscientização da dimensão noética.

A preocupação com o espírito humano, entretanto,


transcende a perspectiva mágica do conceito em nossa cul­
tura. O Espírito, para Frankl, não se prende ao religioso
ou ao místico, sua explicitação é encontrada na Ontologia
de Heidegger, Max Scheler, etc. Obras como a Fenom eno­
logia do espírito de Hegel e O fenôm eno humano de Chardin
contribuem para elucidar este conceito da Logoterapia. De
qualquer form a, segundo Frankl, em seu livro A presença
ignorada de Deus, o homem carrega em seu interior um
Deus desconhecido, um Deus que ele não conhece porque
está reprim ido e uma espiritualidade carente de atualização.

Esta leitura da pessoa humana im plica na edificação


de uma nova teoria da personalidade que vai considerar
o homem como um ser bio-psico-sócio-espiritual, cujas enfer­
midades, na dimensão noética, serão chamadas de neuroses

59
noogênicas. Nas palavras de Frankl, neuroses noógenus são
“ enfermidades que se desenvolvem no espírito, mas que
não o deterioram porque este é incorruptível” . As enferm i­
dades mentais nesta dimensão são conflitos de valores,
conflitos éticos ou morais, são problemas filosóficos ou
espirituais.

A dimensão espiritual não é atingida por nada, man­


tendo-se lím pida apesar de tudo o que venha acontecer com
o homem. Os conflitos espirituais se refletem em nossa di­
mensão psicofísica, mas o tratamento sd alcançará êxito se
considerarmos os próprios conflitos com o sendo de valores
(os conflitos maculam o espírito porque, semelhante a um
copo d’água, mantêm a sujeira em suspensão). As impu­
rezas não chegam a atingir a essência da água que perma­
nece limpa. Pela grandiosidade desta dimensão exclusiva­
mente humana, o espírito, sob qualquer circunstância, res­
guarda-se inviolavelmente preservado para sompre.

11. NEU ROSES NOÓGENAS

Nossa esperança, esta capacidade exclusivamente huma­


na de acreditar no mom ento seguinte, faz com que seja­
mos criaturas movidas pela busca de possibilidades que,
em nosso coração, antevemos concretizadas no futuro. Pela
graça da esperança, somos peregrinos da fé, crentes na
realização das coisas com que sonhamos. O homem é dife­
rente dos outros animais por ter consciência de seu tempo;
é m ovido pela esperança de encontrar amanhã as pérolas
perdidas no passado e tem como alimento a fé alojada em
seu coração, refletida nas mais simples atitudes de seu dia-a-
dia ou no mais sofisticado projeto.

Goethe tem um pensamento que bem reflete qual de­


veria ser nossa form a de compreensão da pessoa humana:
“ Se tom am os o homem pelo que ele é, fazemos com que
ele seja m enor; se o tomamos pelo que ele deveria ser,
contribuímos para que ele cresça e atinja o nível sonhado” .
Nada m elhor do que este pensamento de Goethe para clari­
ficar o que Frankl entende por crescimento humano: o ho­
m em movimenta-se entre o que ele é e o que deveria ser.

Transeunte voluntário da realidade para a utopia, esta


criatura em perene m ovim ento marcha desde um ponto de
partida, nossa realidade presente do aqui e do agora, para
o que deseja ser; vive a tensão entre o ser e o dever ser,

60
a crise vital de auto-imagem e a insatisfação permanente
consigo mesma. Esta tensão entre o ser e o dever ser,
V ik tor Frankl chama de tensão nooãinâmica.
O que torna cada um de nós indivíduos irrepetíveis e
únicos é a fo rm a como agimos e como realizamos uma
tarefa. Não interessa qual é nossa missão, afinal todas elas
supõem tarefas que podem enobrecer ou tornar indigna
uma pessoa. Não im porta o status proporcionado por esta
ou aquela atividade, pois todas são muito semelhantes entre
si (veja o Eclesiastes: “ Não há nada novo debaixo do so l!” ).
O que há de inédito e de pessoal em cada uma das ativi­
dades humanas é precisamente a form a particular como
cada um enfrenta uma situação difícil, o acaso, o im pre­
visto, os absurdos da existência, o momento de sofrim ento
inevitável, diante dos quais há sem pre a possibilidade de se
assumir uma atitude nova e criativa.
N a trajetória entre o ser e o dever ser, vamos encon­
trando uma série de restrições éticas, nossos valores come­
çam a ser verificados a cada momento, a vida começa a
cobrar respostas dignas e coerentes que, quando não encon­
tradas, nos fazem sofrer. Muitos são aqueles que ainda não
descobriram a razão de ser da vida, não encontraram uma
direção, não descobriram sua vocação para um dever ser
que o santuário da consciência reclama, em outras palavras,
não encontraram ainda o sentido missionário da vida ou
sequer conseguem marchar em direção ao que faz a cria­
tura sentir o sabor da esperança, a expectativa do depois.
Da existência desorientada, da falta de sentido para a
vida, emerge o fantasma da falta de um “ para-que-viver” .
O homem, perdido na imensidão do nada, encontra-se dian­
te do grande vazio existencial, vácuo sem fim , componente
fundamental para as chamadas neuroses noogênicas.
Segundo Frankl, as neuroses estão associadas a quatro
dimensões da pessoa: somática, social, existencial e espiri­
tual. A dimensão fisiológica ou biológica é constitucional,
nela se situam as neuropatias, enfermidades resultantes de
traumatismos. Esta dimensão não pode ser alterada por
tratamentos psicoterapêuticos, mas com medicamentos e
tratamentos diversos da medicina, dedicada aos cuidados
com a dimensão físico-biológica. Resta ao profissional de
psicologia, quem sabe, atuar ajudando a desenvolver, no
paciente, uma atitude positiva com respeito ao sofrimento.
Quanto à neurose, esta encontra-se associada às quatro di­
mensões não podendo ser considerada como externa ao
corpo humano.

61
Desenho n" 2

NEUROSE

O O O O
z m cr C/í
o X O o
m Cfi O
H
> >
O z r* -{
O o n
> o
I—

As atitudes da pessoa humana decorrem do equilíbrio


entre as quatro dimensões fundamentais. Quando uma pre­
domina, surgem patologias relacionadas com as outras. Não
é demais ressaltar que, na Logoterapia, a causalidade psico-
patológica é descartada quase que completamente.

12. A LIB E R D A D E E A R E SPO N SA B ILID A D E

A fé na liberdade é um dos pontos fundamentais da


análise existencial de Frankl que vê o homem como incon-
dicáonado, condenado a ser livre e isento dos condiciona­
mentos, sejam eles quais forem . A capacidade criadora, a
vocação para a liberdade são, na verdade, o que caracteriza
o homem como homem, portador de sua consciência, dono
de seu destino, que faz o que faz com sua vida porque é
chamado a ser responsável e a responder sempre, com sua
vida, aos chamados da vida.

A liberdade, como componente da análise existencial, é


muito mais do que figura de retórica; é uma atitude, um
comportamento, um jeito de ser no mundo. Como palavra,
permanece nos livros; como atitude, ganha animação e vida,
tal qual uma peça teatral que apenas ganha sentido quando
é representada.

De que vale uma peça de teatro que não saiu do papel?


De que vale a letra fria, m orta e vazia sobre a brancura
dos papéis? A liberdade apenas escrita não é um “ faz de
conta” existencial? A liberdade deve transcender os limites
da precariedade do mundo da representação. O mundo da

62
escrita não é conhecido por um grande número de criaturas
humanas, como, por exemplo, os analfabetos, mas nem por
isto eles deixam de ser pessoas livres. Todos nós conhece­
mos pessoas que não conheceram as letras e foram exem­
plos de liberdade, ministrando aulas sobre a arte de ser
também responsável.

A atitude responsável é animada pela realidade do dia-a-


dia. A responsabilidade é, para Frankl, “a capacidade hu­
mana para dar respostas” aos questionamentos da vida;
é a capacidade de se assumir o que se faz; é nossa “ habi­
lidade” de “ responder” dignamente pelo que fazemos.

Liberdade e responsabilidade conjugadas são como faces


distintas de uma mesma moeda; uma não pode ser consi­
derada independentemente da outra. O processo de liber­
tação se dá no grupo e depende da tolerância deste. Se
concordarmos com K a rl Popper, perceberemos as relações
entre liberdade, tolerância e responsabilidade. Popper a fir­
ma, em sua obra Paradoxo da liberdade e tolerância, que
a liberdade de uma pessoa se dá no grupo e depende da
tolerância do mesmo, ou uma pessoa é livre na medida em
que o grupo permite ou tolera sua liberdade. Liberdade
e tolerância são simultâneas, mas inversas, ou seja, quanto
mais uma pessoa tende a ser livre agindo no grupo, menor
a tolerância do grupo para com ele.

Desenho n° 3

0 1 2 3 4 5 6 7 8

£ 7 0 5 4 3 2 1 0

Como vemos, se o ponteiro corre para a direita, a liber­


dade aumenta, até um máximo de oito, enquanto que a
tolerância fica reduzida a zero. Se a liberdade de uma pes­
soa aumenta acima do lim ite de tolerância do grupo, este
perde a sua capacidade de tolerância e reage. Se, ao con­
trário, o ponteiro tende para a esquerda, a tolerância pode
crescer até seu lim ite máximo de oito, mas a liberdade
inexiste, chegando a zero.

Se uma pessoa atinge a máxima liberdade, ela se per­


m ite fazer o que bem quiser, inclusive praticando crimes
contra o grupo. Se o grupo é muito tolerante em relação
63
às pessoas, é sinal de que elas não são livres. Entre a liber­
dade e os limites impostos pelo grupo, um fato ganha im ­
portância fundamental e tende a acomodar as forças: a
confiança. Quanto maior fo r a confiança do grupo em re­
lação aos seus elementos e deles com respeito à comuni­
dade, m aior será a tolerânoia e m aior a liberdade de seus
elementos.

Se a confiança é infinita, o desenho 3 perde seu senti­


do, uma vez que a intolerância fica anulada e fortalecida
a confiança entre as pessoas. Sabendo-se que a confiança
não é total, o que deve nos orientar é o conflito entre
liberdade e tolerância, sempre existente, a não ser quando
a simbiose do grupo é muito acentuada; neste caso, o com­
portam ento é patológico (confiança total é sim biose).

Confiança não é apenas um conceito; ela não existe


enquanto palavra, mas como atitudes confiáveis. Na ver­
dade, a confiança é a fé que temos na capacidade do homem
em ser responsável; a responsabilidade atua como instru­
mento para o autocontrole. O bom senso da pessoa humana
responsável equilibra suas relações com o grupo, ficando
im plícito que sua liberdade não passará sobre o grupo e
que o grupo não o destruirá com sua intolerância.

Parece haver uma inata confiança na capacidade do


homem em ser responsável, graças a isto a liberdade não
chega a lim ites insuportáveis para o grupo, nem a intole­
rância do grupo impede a libertação do homem. Graças à
consciência da responsabilidade, há um certo equilíbrio
entre o processo de libertação e as relações grupais.

Do nascer ao pôr-do-sol, não fazemos outra coisa senão


assumir responsabilidades frente à vida. Tudo o que faze­
mos tem conseqüências e até mesmo a omissão é uma
form a de assumir responsabilidades, de tal maneira que é
impossível não ter responsabilidade. Ser hom em é estar
inevitavelmente condenado a ser responsável, uma vez que
não há com o deixar de responder pelo que se faz, ainda
que louco.

Liberdade e responsabilidade não se im põem ao ho­


mem. Somos chamados à liberdade e à responsabilidade
porque somos conscientes. A busca da liberdade e da res­
ponsabilidade conscientes não são impulsos instintivos que
existem independentemente da vontade do homem, mas
uma vocação para responder à vida e suas perguntas, O
fato do hom em ter um inconsciente não faz com que ele

64
seja um inconsciente. Tem os consciência, somos responsá­
veis por nossa vida, respondemos pelo que fazemos, ainda
que através do sentimento de culpa.

13. A IN T E N C IO N A L IDADE DA C O N S C IÊ N C IA

“Tudo aquilo que é im portante deve ter um sentido


em si m e s m o ...” (N ietzsche).

Começando com as palavras de Nietzsche em sua últi­


ma obra D er W ille zum M acht (A vontade de pod er), tem os
a intenção de partir para um passeio pelo vasto campo do
m odo de pensar existencialista. O prazer de divagar entre
pétalas que balançam por força do vento, inundando a brisa
com vários perfumes, um deles refletindo o próprio con­
ceito de homem da Filosofia Existencial.

Não é possível compreender a Logoterapia, nem a Feno-


menologia Existencial, sem considerar a intencionalidade
das coisas, da consciência humana e da própria natureza.
Em verdade, a intencionalidade reflete a potencialidade
transcendente do homem, da natureza e do estar-aí no mun­
do. A intencionalidade é m uito mais do que um conceito
filosófico, resume o próprio sentido da existência natural
e humana em sua transitoriedade.

Por intencionalidade, compreende-se o fato de que cada


coisa tem um sentido, uma direção. Cada coisa, cada obra
ou criatura têm uma intenção. Não há nada que não tenha
um para-quê. Todas elas caminham em uma direção e m ar­
cham para uma form a renovada de ser que também não
será definitiva. Em uma palavra, estamos em um processo
de mutação constante onde nada é definitivo, tudo é abso­
lutamente transitório, em permanente transitoriedade.

Nossa vida pode ser definida como jornada entre o aqui


e o depois, entre o ser, o vir-a-ser e o aqui-agora —■ m o­
mentos de transição da vida das criaturas que procuram
um sentido para sua vida. O sentido pode ser buscado du­
rante toda uma vida, mas nem sempre encontrado, o que
torna a vida um desafio permanente.

Vivem os a mutação inevitável e compulsiva. N a luta


entre permanência e mudança, tentamos agarrar o presente
que passa por nós rumo ao passado. O aqui-agora mergu­
lha no abismo da m em ória. Eu estou aqui, procurando

65
coisas definitivas, sólidas e seguras para buscar minha afir­
mação com o pessoa, mas elas se dissolvem como sombras
e fluem com o fumaça; o que resta é a minha transição, a
minha passagem entre o que sou e o que serei: o espírito
humano.

A mutação oculta a intencionalidaãe, ou seja, oculta a


intenção existencial de cada pessoa, de cada fato da vida.
Em cada obra realizada, permanece a intenção como sendo
a própria alma do ser e das coisas. A intenção é a face
visível de um “ iceberg” , um outro fenômeno exclusivo do
homem: a transcendência humana. É a graça de está aí,
mas estar além daí, saber que estamos aqui, mas além
daqui; a bênção de saber que fazem os parte da existência
humana, com um pé neste mundo e outro fora dele.

Transcender é a graça de poder participar do céu com


os pés na terra e de saber que somos uma realidade psi-
cossomática e social, mas que somos principalmente seres
espirituais numa caminhada para um para onde. Nosso
ponto de chegada é tão certo quanto o ponto de partida.
Ser homem é ser uma nave e ter um destino.

Por crer que guardamos em nós a semente do infinito


e na esperança de poder expressar potencialidades adorme­
cidas, sentimos o prazer de poder experimentar a eterni­
dade. Sabemos que há um p rojeto para o homem e para
a natureza, um propósito e intenções muito bem definidos,
elaborados por uma consciência transcendental. A intencio-
nalidade marca presença no santuário mais íntim o de cada
ser deste mundo, fazendo com que cada habitante do cos­
m o seja potencialmente semente. Somos seres potenciais e
transformando-nos, marchamos para novos estados e fo r­
mas transitórias de vida.

O que é a semente senão um projeto potencialmente


rico e pleno de promessas de transformação, um levar in fi­
nitamente dentro de si uma árvore cheia de outras semen­
tes com outras árvores plenas de sementes. A semente não
é apenas aquilo que nossos olhos vêem, mas um projeto
em concretização que depende exclusivamente do homem
e da natureza.
Um giz não é apenas um aglomerado mineral, mas um
arquivo de palavras que dele se despregam pela vontade
humana. Uma mina de grafite pode ser um depósito de
palavras, ou de combustível, dependendo das intenções do
homem. As flores do campo poderão se ver transformadas

66
em perfume, em frasco de lavanda, segundo a vontade do
homem. Ao considerar a criatura humana como projeto,
não estamos admitindo qualquer determinismo; não acredi­
tamos que o homem seja determinado por alguém, mas ele
se autodetermina, dirigindo a própria vida segundo sua
liberdade.

O que é construído pelas mãos do homem permanece


envolvido por suas intenções e tem um sentido, uma fina­
lidade clara, um para-quê; tudo o que nasce do homem é
construído com um fim .

Tomem os como exemplo as armas de guerra: elas fo ­


ram inventadas especialmente para m atar e não para defen­
der-se de felinos. A m etralhadora fo i construída para matar
homens, mulheres e crianças com m aior eficiência e rapi­
dez; um engenho para matar pessoas rapidamente, antes
que elas tenham condições de se defender ou reagir. Quan­
do construímos a m etralhadora sabíamos o que estávamos
fazendo: um engenho m ortal que atinge pessoas e tira-lhes
a vida. A bala perfura a pele das pessoas, derruba corpos
frágeis ensangüentados; a dor é tão intensa que provoca
desespero.

A m etralhadora é m orte potencial e, desde o momento


em que é feita, traz em si a história futura de um terror
injustificável, desde os gritos de horror da criatura atin­
gida, até a tristeza da criança desamparada pela violência
da m orte, desapontada, chorando pela vida, mendigando
continuidade.

A metralhadora tem como missão destruir a vida, pro­


vocar dor. Do momento em que uma pessoa puxa o gati­
lho, semeia horrores, gritos, pinta de vermelho a paisagem
universal, com crianças em desespero, no mundo que elas,
órfãs da humanidade, não compreendem. A metralhadora,
tal como a semente do abacate, tem em si um fim , um
para-quê. A semente é uma árvore em potencial, com folhas
verdes e frutos saciando a fome; a metralhadora é o ani­
quilar de pessoas e o provocar da dor.

O hom em é um ser dotado da capacidade de definir


intenções, podendo inventar bombas que matam outros se­
res humanos, enquanto permanecem intactas as pedras, as
árvores e a natureza. O homem que atenta contra seus
semelhantes perdeu seu valor, perdeu seu lugar, sua digni­
dade cósmica e seus valores humanitários. A Logoterapia

67
acredita que a m aior violação que a espécie humana pode
fazer contra si mesma é fu gir do fato de possuir uma
consciência viva, responsável pelas coisas que produz.

A consciência é intencional, conhece suas intenções; o


homem sabe o que faz, não consegue fu gir de seus atos,
seu coração não o permite. Daí Frankl adm itir que estamos
todos condenados a, em algum mom ento de nossas vidas,
ter sentimento de culpa.

14. A U TO TR A N SC E N D Ê N C IA
COMO FE N Ô M E N O H U M ANO

Einstein disse, certa ocasião, que “ o homem que consi­


dera a sua vida carente de sentido não é apenas um infeliz,
mas também um despreparado para v iv e r” . A Logoterapia
reconhece isto e mais: a pessoa sobrevive num espaço pola­
rizado, tensão entre o ser e o dever, a realidade do aqui-
agora e a esperança do que virá a ser. Isto talvez se con­
firm e nas diversas pesquisas empreendidas pela Psicologia
e nos estudos do próprio Dr. Frankl (A autotranscenãência
com o fenôm eno hum ano).

Frankl menciona uma pesquisa de opinião, realizada


em Viena pela Associação Trabalhista Austríaca, onde 87%
dos 1.500 jovens pesquisados sobre a im portância ou não
de se ter um ideal na vida afirm aram que a vida para ter
sentido precisa ser rica em ideais, metas e objetivos. Isto
lembra Freud (1940): “ O hom em se mantém fo rte enquanto
mantém fo rte seus ideais” . Historicam ente verificam os que,
nos campos de concentração da Europa, na Coréia e muitos
outros lugares, o fato de se ter um sentido para a vida,
atuou como fa tor de prolongamento e de preservação da
própria vida. T e r um sentido para a vida não propicia ape­
nas saúde física, mas saúde mental e parece estar relacio­
nado com a questão da sobrevivência humana.

Maslow, em 1965, ao referir-se às experiêneias-pico,


mostra-se igualmente preocupado com o sentido transcen­
dente, com a preservação do homem. Nas experiências-pico,
o ser e o ãever-ser encontram-se fundidos em plena harmo­
nia e a realização pessoal é grandiosa. Aí, conform e Frankl,
o estado de tensão psiconoético encontra-se estabilizado ou,
em outras palavras, a distância entre a realidade presente
e os ideais encurta-se e chega à inexistência. Entretanto,

68
não é a auto-realização maslowiana o que Frankl considera
transcendência, uma vez que o prazer de viver e o encon­
tro de um sentido vêm no instante da procura deste sen­
tido. A procura de um sentido já é sentido. Aquele que
busca encontrar o sentido está com a vida encaminhada
para o dever-ser, para o ideal missionário, muito embora
a realização, em termos concretos, não esteja assegurada
com o certa.
A busca é m otivada pela esperança humana de atingir
seus ideais. A realização mostra-se no ato de liberdade da
procura do com o viver, mas os fins não poderão justificar
os meios, im portando a form a como chegamos a atingir
nossos ideais. Os m étodos pessoais adotados na procura é
que nos diferenciam e nos tornam pessoas, com um m odo
de ser exclusivo, irrepetível no mundo.
Ungerama, em 1961, disse que as três escolas vienenses
de Psicoterapia poderiam ser classificadas segundo três ní­
veis de atuação: 1) a Escola Freudiana, segundo o princípio
do prazer, orientando a criança pequena que não admite
frustração; 2) a Escola Adleriana, segundo o princípio da
busca do poder, orientando o adolescente que está em tran­
sição para a vida adulta; 3) a Escola Frankliana, segundo
o princípio da busca de sentido, orientando o homem adul­
to. As três linhas acabam form ando um todo que compreen­
de o desenvolvimento ontogenético da pessoa humana, da
infância à maturidade.
A Logoterapia, tendo surgido depois de Freud e Adler,
pôde ter uma visão mais ampla do homem na sua traje­
tória, somando novos elementos para sua m elhor compreen­
são, inclusive a idéia de que o hom em está condenado à
trajetória existencial, à caminhada para algum objeto, não
vagando sem rumo. Constata carecer o homem da realiza­
ção de valores e que sua consciência é portadora de uma
intencionalidade.
Afirm ar que a consciência é intencional significa dizer
que ela busca uma intenção, tende para um valor que é a
substância mesma do sentido. Com liberdade e com res­
ponsabilidade, a pessoa segue seu curso, altera sua rota,
tendendo a emprestar à sua vida um sentido pessoal. Auto-
vigilante, cuidando de sua trajetória escatológica, o homem
manifesta sua capacidade de ser transcendente, de criar a
esperança utópica. A responsabilidade com a H istória se
materializa quando podemos mr-a-ser aquilo que nossa in­
tencionalidade quer e o que a vida pede de cada um de nós.

69
À força do transcender-se não é descoberta de ilumi­
nados, mas uma fagulha que ilumina o espírito de cada
ser humano. O índio latino-americano assim nos diz:

Y o no sé
si el hom bre es cosa de la tierra,
que se hace nube,
o cosa dei cielo,
que se hace rio.
Pero yo sé
que el hom bre y el agua
tienen un destino de tierra,
pero vocación dei cielo.

(Atauhalpa Yupanki)

As palavras do índio poeta parecem confundir-se com


as de Lao-Tsé, velhas de 2600 anos, mostrando que a im ­
portância das coisas está em sua dimensão invisível, em
sua transcendência:

A argila é trabalhada na form a de vasos,


mas o que im porta não é precisamente sua parede
que poderia ser de ouro, cristal ou de barro,
pois é no vazio entre as massas que se pode
colocar as flores.
Sua utilidade reside no vazio, no não existente,
na sua parte que não podemos ver.

(Lao-Tsé — Tao-Te K in g )

Se desenvolvermos nossa capacidade contemplativa, va­


mos encontrar uma infinidade de exemplos de transcen­
dência nos objetos ou natureza. Nossa consciência por vezes
parece não alcançar o paraíso escondido por trás de cada
fenômeno. A m etafísica tateia e procura m ostrar a imensi­
dão oculta que permanece no reino além da natureza bruta.
Quão mais profundo e verdadeiro é o que se passa com a
espécie humana! A ela fo i dada a graça de perceber a trans­
cendência dos demais seres e de si mesmo. Sua consciên­
cia, além de ser “ consciência d e” passa a ser “ consciência
para” , intencional, dirigida por e para um sentido parti­
cular, único, que está além de nós mesmos, um valor trans­
cendente que se nos ultrapassa, como a semente. A mãe
leva dentro de si a continuidade de sua existência, sua
transcendência, sua participação na criação do mundo; aí
está o valor de um filho!

70
15. O SER EM PO T Ê N C IA E O VIR-A-SER

“Que ser sou eu que penso a respeito de m eu p ró p rio


ser? Qual é meu nom e e que qualidade tenho para proce­
der esta interrogação?” ( Gabriel Mareei, Diário metafísico,
p. 137).

A base de um processo de tratam ento psicológico é a


crença de que ambos, terapeuta e cliente, investem nas
possibilidades de mudança. Os dois, revestidos de um espí­
rito de fé, iniciam o trabalho em busca da transformação
porque os dois levam em si o desejo, a intenção, a von­
tade e a esperança na mudança.

Podem os dizer que a Psicoterapia é um ato de fé, uma


crença viva e profunda que uma pessoa tem na outra, a
ponto de depositar, nas mãos do outro, aquilo que tem de
mais particular, sua intimidade e sua história pessoal. Faz-se
uma confissão, compartilha-se uma história com a pessoa
que se fez disponível e crítica, tentando uma visão com­
pleta do processo de existir. Roga-se o auxílio de uma outra
consciência que acompanhe a procura, oferecendo a opor­
tunidade do diálogo.

Assim como o arquiteto toma distância de sua obra


para ter uma visão de conjunto, também o homem dá um
passo atrás para ter uma visão mais clara do seu processo
de vida. Quando estamos próxim os demais, não consegui­
mos ver senão os pequenos detalhes, idéias distorcidas das
coisas, por estarmos dentro da situação-problema. Com a
distância, podemos enxergar bem, aos poucos refletir sobre
o que nos parece bem e o que não nos agrada, form ando
uma imagem daquilo que gostaríamos de vir-a-ser.

Levantar questões sobre nós mesmos permite-nos, junto


com o terapeuta, um diálogo a que Ronald Laing chamou
de “ metacomunicação” , ou que Gregory Bateson batizou de
“ m etálogo” . Metalogar ou metacomunicar é a Psicoterapia
propriam ente dita, nada mais nada menos do que “ a fala
sobre nós m esm os” , não apenas nossa fala, mas toda comu­
nicação verbal e não-verbal.

Se o homem é um ser sim bólico e sua existência pren­


de-se à linguagem e à comunicação, então tudo o que ele
faz carrega uma mensagem. Nossa consciência é intencio­
nal, “ tende a” comunicar sempre algum desejo, alguma
intenção. Nas palavras de Bateson, “ é im possível não co­

71
municar-se” . Condenado à comunicação eterna, o homem é
sempre mais do que aquilo que conseguimos ver. A lingua­
gem transcende o concreto; a metacomunicação terapêutica
tenta resgatar o significado mais profundo da mensagem
do ser que está aí, do Dasein.
Tal como Aristóteles, a Psicoterapia Existencial consi­
dera o hom em um ser em potência, um vir-a-ser que se
atualiza. A Logoterapia caracteriza-se por uma grande fé
no hom em que, segundo ela, traz dentro de si um potencial
infindável até a m orte. Sendo o homem criatura que busca
sentido para a vida enquanto ela existe, pode ser até que
um fato ocorra minutos antes de sua m orte, permitindo-lhe
conferir significado às coisas que antes eram absurdas.
Considerando o homem como ser missionário, um ser
que existe em potência, cujo destino é a atualização, a Logo­
terapia ousa acreditar incondicionalmente na transforma­
ção da vida da pessoa, na conversão ou na correção da
trajetória pessoal da criatura que procura encontrar o sen­
tido de sua vida. A Logoterapia é m ovida pela esperança
de que as potencialidades de cada um consigam expressão
na concretude do vir-a-ser, base da tensão psiconoética.
Segundo Gabriel Mareei:
A minha história não m e é transparente,
não é minha história, porque não me é transparente.
Neste sentido não pode ser integrada ao meu sistema
e quem sabe até o desfigure.
(Gabriel Mareei, D iá rio m etafísico, p. 161)

Não ter consciência daquilo que sou e do que comunico


faz de m im uma pessoa sem história. Se eu não tenho cons­
ciência de minha história, ela deixa de m e pertencer, é um
processo alheio a m im mesmo, não podendo eu assumir
responsabilidades, uma vez que desconheço terem as ações
partido de m im ou não.
O papel da análise existencial é o de ajudar a elaborar
a nossa história, trazendo noções claras da existência para
que possamos nos interpretar. Cada um faz de si um objeto
de suas interpretações, para que sua história de vida seja
menos absurda, desmascarando os enganos da consciência
e transform ando em realidade sua própria utopia pessoal,
sua ficção e seu projeto de vida.
Vir-a-ser é dar à luz a si próprio, renascer a cada aurora,
assumir as rédeas do destino e construir, passo a passo, sua
história.

72
Tentando assumir sua história, o que às vezes frustra
e solicita correção de sentido, o homem se depara com lim i­
tes às possibilidades de crescimento. Os limites são sete: a
m orte, a liberdade, o isolamento existencial, o sofrimento,
a culpa, a responsabilidade e a busca de um sentido para a
vida.

Ortega y Gasset disse que o homem “é naturalmente


desorientado e já nasce confuso” . Tal desorientação está
aparentemente relacionada com a solidão existencial, com
a condenação à culpa, ao sofrim ento e à m orte. Mas mesmo
confuso, o hom em procura, busca um sentido.

Frente à m o rte nada mais podemos fazer senão ficar­


m os preocupados; não há escapatória possível. Dentre as
preocupações essenciais do homem, a m orte é a mais terrí­
vel; conscientes dela, somos surpreendidos por uma sensa­
ção de absurdo, impotência e insegurança permanente. A
trágica experiência de conhecer a transitoriedade da vida
ajuda a criatura humana a em pregar responsavelmente seu
tempo. A vida se lim ita a um tem po que escoa entre os
dedos. O tempo passa, as chances de concluir nosso pro­
jeto vão-se tornando limitadas, mas é graças à transitorie­
dade, à finitude da vida, que se aprende a ser responsável.
Responder e assumir responsabilidades possivelmente se­
riam adiados se a vida não fosse passageira; talvez ninguém
chegasse a cum prir sua missão. A m orte não é de todo ruim
porque apressa o cumprimento dos propósitos pessoais. }
Se a vida fosse infinita, ela provavelm ente seria vazia,
despida de conteúdo e os afazeres do homem não seriam
importantes. O que tivéssemos de realizar hoje, poderia ser
deixado para o próxim o milênio; ninguém poderia contar
com ninguém, não haveria compromisso nem responsabili- .
dade. A m orte coloca um lim ite e instala em nós o senti- t
mento de urgência. Talvez a pressa da humanidade decorra I
do medo da morte.

A segunda preocupação essencial do hom em é com a


liberdade.

Diante da possibilidade da m orte e da transitoriedade


da vida, há uma preocupação com a urgência na realização
das coisas e na conclusão do nosso projeto de vida. Se não
temos liberdade ou se nos restringem nosso campo de ação,
sentimos retardar a concretização daquilo que desejamos,
os projetos ficam atrasados. O homem dá valor à liberdade

73
e luta por ela, tomado pela urgência de ser livre. A liber­
dade é tão preocupante para a espécie humana que, por
ela, podem ocorrer as guerras. Os limites à liberdade podem
fom entar revoluções, criar tensões ou mesmo im obilizar
indivíduos em atitudes reacionárias, recusando-se à ação
livre.

Pode existir no hom em uma tendência para agir con­


trariamente àquilo que fo i socialmente estipulado como
regra, uma necessidade de auto-afirmação que exige um
fazer contrário ao que fo i estabelecido, principalmente em
casos psicopatológicos. Mas o impulso para liberdade a que
nos referim os não é patológico, sem freios; ela se orienta
segundo uma consciência livre. Não é a liberdade relativa
ao m eio em que vivemos, mas determinada pela força do
espírito livre, da consciência autodeterminada, responsável
por sua história individual. Assim, a liberdade pode ser
compreendida como uma folha infinita de papel em branco
a desafiar a criatividade do homem, a realizar-se indepen­
dentemente das tensões, a flu ir da vontade autêntica de
cada um ser ele mesmo, apesar das provocações cotidianas.

A terceira preocupação essencial do hom em é com o


isolam ento existencial.

A pessoa humana experimenta o sentimento de isola­


mento existencial e não pode compartilhá-lo com ninguém,
senão pela palavra. Mas a palavra é insuficiente para comu­
nicar todos os sentimentos; na m aioria das vezes, apesar
da linguagem, o outro não capta a realidade profunda das
pessoas.

O homem segue solitário pela vida afora. Desde o nas­


cimento, começa a longa jornada da qual procura escapar
em vão. Luta em sua trajetória por compartilhar sua vida
com alguém, mas na m aior parte do tem po está só, abso­
lutamente só. Nunca se está tão-só como nas horas em
que se nasce e se m orre. O nascer, semelhante à chegada
do forasteiro, é experiência individual e intransferível; a
m orte é partida solitária, vivência pessoal impossível de
ser dividida.

O intervalo entre a chegada e a partida é a crua exis­


tência em comunidade que não diminui a solidão do ho­
mem. N o consultório, recebemos as queixas de pessoas que,
na multidão, sentem absoluta solidão; de nada valem os
grupos quando os sentimentos são particulares: ninguém

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pode sentir o frio do outro; ninguém pode experimentar
a felicidade de uma determinada pessoa muito embora ela
possa ser contagiante. As relações, no entanto, são muito
pouco, quando sabemos que uma criatura padece de fom e
ou de sede; nada poderá aliviá-la. Não há “ transfusão” de
experiências uma vez que o ato de experimentar é profun­
damente pessoal, reservado a cada ser e a ninguém mais.

A quarta preocupação essencial ão hom em é com o


sofrim ento porque este atinge indistintam ente todas as
pessoas.
N ão há privilégios; não há uma pessoa que não tenha
sofrido. Como o prazer é o extrem o oposto da dor, pode­
m os dizer que m om entos de sofrim ento são aqueles des­
pojados de prazer; por outro lado, os momentos de prazer
são os de recuo do sofrimento.
O sofrim ento é inevitável e, como disse Frankl, há uma
certa dose de sofrim ento que está ligada à própria condi­
ção humana. O homem, na pior das hipóteses, sofre por
saber da transitoriedade da vida. A experiência do sofri­
m ento e do prazer são intransferíveis, como se a natureza
quisesse dizer-nos que o mais im portante nesse mundo é
que todos possam experimentar diretamente a vida.
Porque somos capazes de sentir a dor e de sofrer, desen­
volvem os uma atividade cautelosa e responsável diante da
vida. Evitar o sofrim ento e viver com cautela contribuem
para a humanização do homem, desenvolvem os sentimen­
tos de piedade, de amor e de zelo pelos outros. A vulnera­
bilidade humana fez com que o homem procurasse crescer
em comunidade, minimizando a dor e garantindo a preser­
vação da espécie. N o desenvolvimento da espécie humana,
buscou-se elim inar o sofrim ento e a dor. Não fosse o conhe­
cimento que temos das possibilidades de sofrer, nossa evo­
lução seria impossível. Isto diferencia o homem dos outros
animais.

A quinta preocupação essencial ão hom em é com o


sentim ento de culpa, vivido p o r todos os hom-pns em algum
m om ento.
A culpa ajuda-nos a rever o caminho e a cuidar dos
outros. Fugimos da culpa, evitando prejudicar nossos com­
panheiros de existência e agravar ainda mais nosso isola­
mento existencial. A fraternidade ajuda a amenizar o sentia
mento de solidão.

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O sentimento de culpa tem sua origem na sensação de
se atingir ou fe rir alguém que nos é importante, fazendo-o
sofrer. Melanie Klein sugere que o sentimento faz-se acom­
panhar do desejo de reparação ou de expiação para com ­
pensar o prejuízo causado à pessoa. Tem os que levar em
conta que o homem, por ter consciência, é o único a assu­
m ir a culpa e a responsabilidade pelo que faz, responder
por sua conduta, comportamentos e atitudes.

A sexta preocupação essencial está relacionada com a


responsabilidade, inevitável ante as atitudes e os valores.

Ser hom em é basicamente ser capaz de assumir respon­


sabilidades. Quando não se consegue assumir, mergulha-se
no vazio, porque a vida sem responsabilidade permanece
desprovida de qualquer sentido.

A sétima preocupação essencial humana.

Dispensa um longo tratamento por ter sido estudada


anteriormente. Trata-se da busca de sentido para a vida,
uma questão fundamental para a humanidade desde o prin­
cípio da história: de Lao-Tsé a V iktor Frankl, dos Astecas
aos índios da Amazônia, de Zenão de Eléia a Heidegger.

O sentido volta-se para o futuro, para o depois, para o


que ainda estar por vir, o que só existe no reino da espe­
rança. O sentido tende para a possibilidade, para o vir-a-ser,
para o tornar-se e para concretude daquilo que potencial­
mente já é.

Subsistem, lado a lado, as preocupações fundamentais


do hom em com a m orte, o sofrim ento, a culpa, a liberdade,
o isolamento existencial, a responsabilidade. Todas elas con­
tribuem para a realização da meta prim ordial do homem:
o encontro de um sentido para sua vida. A preocupação
central da Logoterapia é o desejo de ajudar a encontrar
este sentido vital que pode estar escondido como as raízes
da árvore, mas que tem a força de sustentação porque, como
disse o poeta, o que a árvore tem de flo rid o vive do que
existe sepultado.

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